UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA - PPGF
RODRIGO PENNESI MAIA
SEGURANÇA E BIOPOLÍTICAa atualidade dos mecanismos de governo da vida
RIO DE JANEIRO2013
Rodrigo Pennesi Maia
SEGURANÇA E BIOPOLÍTICAa atualidade dos mecanismos de governo da vida
dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisitos parcial à obtenção do título de mestre em filosofia
Orientador: Dr Guilherme Castelo Branco
Rio de Janeiro2013
Rodrigo Pennesi Maia
SEGURANÇA E BIOPOLÍTICAa atualidade dos mecanismos de governo da vida
dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisitos parcial à obtenção do título de mestre em filosofia
Aprovado em
________________________________________________Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco (PPGF-UFRJ)(Orientador)
________________________________________________Prof. Dr. Thiago Moreira de Souza Rodrigues (PPGEST-UFF)
________________________________________________Prof. Dr. Rodrigo Gueron (PPGARTES-UERJ)
SUMÁRIO
0 INTRODUÇÃO p.1
1 SEGURANÇA p.7
1.1 soberania, disciplina, segurança p.7
1.2 características gerais p.14
1.2.1 espaços de segurança p.12
1.2.2 tratamento do aleatório p.19
1.2.3 normalização específica à segurança p.24
1.2.* recapitulação p.28
1.2.4 emergência da população p.30
2 GOVERNAMENTALIDADE p.32
2.1 Poder pastoral p.43
2.1.1 o pastorado hebraico p.48
2.1.2 o pastor na Grécia p.51
2.1.3 o pastorado cristão p.54
2.1.4 da pastoral das almas ao governo politico p.59
2.2 Razão de Estado p.61
2.2.1 Técnica diplomático-militar p.72
2.2.2 Polícia p.75
3 PACTO DE SEGURANÇA p.86
3.1 Controle e segurança p.86
3.2 Razão liberal p.91
3.3 Racismo de Estado p.97
BIBLIOGRAFIA p.102
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INTRODUÇÃOINTRODUÇÃO
Com o presente trabalho pretendemos realizar uma analise mais aprofundada da
tecnologia de segurança, sua emergência e suas transformações, tomando como ponto de
partida os diversos trabalhos de Michel Foucault sobre o assunto. A tecnologia de segurança
nos parece um conceito fundamental dentro do conjunto da obra foucaultiana, e cuja
compreensão pode facilitar o entendimento da forma como o filósofo, conhecido por sua
microfísica do poder, tratou as questões relativas às macro-estruturas de poder e do Estado
propriamente dito. Essa tecnologia aparece como mecanismo geral do poder junto com a
soberania e as disciplinas, dentro de um encadeamento histórico num processo de
governamentalização da vida e do Estado. A segurança é o mais recente dos três mecanismos
e portanto, para nós, o problema mais agudo a ser estudado.
Da mesma forma que sempre se negou a formalizar uma teoria do poder, Foucault, ao
estudar o Estado, também vai se recusar explicitamente a fazer uma teoria do Estado (cf.
FOUCAULT, 2004, p.105). Sua metodologia específica de análise do Estado se dará por meio
do conceito de governamentalidade, que analisaremos melhor no segundo capítulo, porém
vale apontar aqui que o procedimento escolhido recusa a aceitar o Estado como objeto dado
historicamente, como possuidor de uma essência ou como um universal, e busca analisar sua
estrutura de funcionamento, como se o Estado restasse sempre de uma forma espectral e todas
as análises. Esse procedimento é análogo ao modo pelo qual o filósofo estudou a loucura,
recusando-se a aceitar a loucura como
Nesse sentido tomamos como referência, uma passagem do editor dos cursos de 1978
e 1979, Michel Senellart, que em sua situação dos cursos, ao tratar do curso de 1979
Nascimento da Biopolítica, afirma: “O objetivo do curso é, portanto, o de mostrar em que o
liberalismo é condição de inteligibilidade da biopolítica”(FOUCAULT, 2004, p.442). É nossa
tese que, seguindo essa linha de raciocínio, a segurança representa, portanto, condição de
inteligibilidade do liberalismo e consequentemente da própria biopolítica. A segurança é o
modo próprio de governo das populações, e sua emergência se dá no momento histórico de
introdução do principio limitativo na prática governamental, isto é, a segurança é a prática
governamental do liberalismo.
Antes que possamos entrar na análise da segurança, é preciso que destrinchemos um
pouco melhor o que estamos querendo dizer quando falamos em biopolítica. A primeira vez
que Foucault fez uso da expressão “Biopolítica” foi em Outubro de 1974 numa conferência
proferida na UERJ, posteriormente publicada sob o título La naissance de la médicine sociale.
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Nessa conferência Foucault ressalta o fato de que “para a sociedade capitalista, é a biopolítica
que importa antes de tudo, o biológico, o somático, o corporal. O corpo é uma realidade
biopolítica; a medicina é uma realidade biopolítica”(FOUCAULT, 2001, p.210, tradução
nossa). O que temos nessa passagem é que para o modo de produção capitalista, o modo de
governo da soberania, lidando com um conjunto de sujeitos por meio do sistema jurídico não
será suficiente para suprir a demanda por mão de obra urbana. Essa nova configuração do
espaço que o processo de industrialização capitalista traz consigo, demanda um
aprimoramento e a emergência de novas tecnologias de governo.
O desenvolvimento das relações de poder em relações de biopoder corresponde ao
momento histórica da passagem de um poder monárquico a um poder burguês, e tem por
objetivo controlar ao máximo, da forma mais econômica, e o mais rápido possível toda a
massa populacional de modo a favorecer o desenvolvimento econômico. A análise da
biopolítica, inaugurada nessa conferência, tem prosseguimento nos livros Vigiar e Punir e
também no último capítulo do primeiro volume da História da sexualidade; além de uma
conferência proferida na UFBA publicada como les mailles du pouvoir.
Fazer a análise do poder em termos de biopolítica significa se desembaraçar da
concepção do poder como repressão e proibição, significa abandonar a análise da
representação do poder associada a processos ideológicos, e buscar construir uma análise do
funcionamento real do poder, de seus mecanismos, dispositivos ou tecnologias.
os tempos de biopoder, que também são nossos tempos, caracterizam-se pela ampliação crescente das articulações dos saberes biológicos e biomédicos com os dispositivos jurídico-institucionais, com grandes efeitos no campo da macropolítica, seja nas relações entre os Estados, seja no interior de cada Estado, indo até mesmo à interferência, micropolítica, no modo de vida das pessoas. (CASTELO BRANCO, 2009, p.31)
Foucault usa em alguns textos os conceitos de Biopoder e Biopolítica como
sinônimos, porém em outros textos há uma distinção entre os dois conceitos. A biopolítica é a
tecnologia que trata das populações, suas variâncias e as formas de intervir nos processos
próprios às populações, enquanto o biopoder seria caracterizado como a soma dos
mecanismos de biopolítica com os mecanismos da anátomo-política, também caracterizada
como somato-política que trata dos corpos e da docilização dos indivíduos. As tecnologias
associadas à biopolítica, são as tecnologias de segurança, é por meio dela que a biopolítica via
funcionar, enquanto que a anátomo-política se utiliza das tecnologias disciplinares.
Analisaremos melhor essas distinções no primeiro capítulo.
O biopoder surge a partir de um complexo processo de laicização do poder pastoral,
que não pode ser caracterizado como uma passagem deste para uma forma nova de poder, a
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governamentalidade; ao contrário do que se poderia inferir a crise do pastorado não levou ao
seu desaparecimento. O que de fato ocorreu foi uma intensa proliferação generalizada sobre o
plano temporal das técnicas de condução. O processo laicização do pastorado teve início
quando este tomou sob seu encargo questões relacionadas à vida material e temporal dos
indivíduos, problemas relativos aos seus bens e propriedades e à educação das crianças.
Tomemos como exemplo desse enfrentamento entre as atribuições dos Estados e da Igreja a
proibição, nos séculos XVII e XVIII, da Companhia de Jesus, quando quase todos os
monarcas europeus pediram a supressão da Ordem jesuíta em virtude de seu poderio
transnacional.
Essa nova configuração do poder pastoral laicizado, se caracteriza como um bio-poder,
cuja meta não é mais a salvação post-morten, mas um certo tipo de controle do Estado sobre
as populações. Um certo modo de exercício de poder onde governar é exercer em relação aos
habitantes, às riquezas, aos comportamentos de todos e de cada um, uma forma de vigilância,
de controle, tão atencioso como aquele do pai de família sobre sua casa e seus bens. Dentro
dessa matriz diversas técnicas independentes se refinam em seus campos de atuação
específicos, como família, trabalho, saúde, educação, etc. Respaldados cada um por uma
ciência correlata, formando intrincados nexos saber-poder
No limiar da modernidade, tornando ainda mais complexo o arsenal de técnicas disciplinares e procedimentos de normalização, um conjunto formidável de saberes foi posto a serviço da produção de subjetividades e de individualidades. Inúmeros saberes e/ou ciências participam da trama complexa do poder, entram na dança dos saberes legitimados, economia, administração, pedagogia, sociologia, demografia, psicologia, história, filosofia, direito, todos com estatuto, contestado por muitos, mas ainda assim denominados como ‘Ciências Humanas’ e ‘Ciências Sociais’. Para Foucault, antes de serem saberes de contestação e de resistência ao poder, como muitos acreditam, as ‘Ciências do Homem’, são saberes produtivos, contribuindo para o processo de construção de individualidades conformadas às estruturas de poder consolidadas.(CASTELO BRANCO, 2008, p.204)
Essa nova mecânica de poder para o governo da vida, ou Bio-poder, constitui a matriz
de Governamentalidade dos Estados modernos e atua sobre duas vertentes distintas, de um
lado uma anátomo-política disciplinar dos corpos, agindo no corpo dos indivíduos, onde as
vicissitudes da carne e os pensamentos ímpios de cada indivíduo devem ser expurgados por
meio de técnicas de confissão das verdades interiores difusas por diversos novos campos de
conhecimento fabricando assim corpos submissos, exercitados e dóceis; e de outro uma
bio-política normativa das populações, agindo no homem enquanto ser vivo, que deve ser
governado por meio de medidas sanitaristas, econômicas, arquitetônicas ou qualquer outro
meio que se revele necessário. Para gerir essa população é preciso uma politica de saúde
pública capaz de diminuir a mortalidade infantil, de prevenir epidemias e abaixar as taxas de
endemias, deve intervir nas condições de vida para as modificar e lhes impor normas O
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governo deve servir às metas articuladas em torno da proteção e bem-estar social e moral das
populações através de uma série de políticas sociais e educacionais pelas quais se tenta incutir
certos padrões de trabalho e vida social. Para assegurar o bom funcionamento de todo esse
aparato é necessário não apenas a existência de um corpo policial que imponha na prática,
independente dos meios utilizados, as medidas adotadas; mas também de todo um corpo de
saberes especializados que reconheçam os problemas no corpo social e possam desenvolver e
aperfeiçoar constantemente técnicas de governo das populações. Embora seja de importância
impar, não é o intuito desse trabalho específico analisar o papel e o desenvolvimento da
polícia desde a sociedade mercantil até a constituição do Estado moderno com a
implementação das diversas formas de exercício do Bio-poder.
Para articular essa análise, resgata-se o curso Segurança, Território, População, cuja
proposta inicial seria apresentar uma história das tecnologias de segurança, porém essa
proposta aparentemente se desvia para o caminho de uma genealogia da governamentalidade,
e o estudo aprofundado da tecnologia de segurança é relegado a um segundo plano. Embora
essa seja uma primeira impressão do desenrolar do curso, pretenderemos mostrar ao longo
dessa dissertação que o desvio para a análise da governamentalidade, na verdade, é um
complemento à compreensão das tecnologias de segurança, sua emergência e os processos
genealógicos que levaram a sua erupção.
Essa tecnologia já despontava anteriormente na obra de Foucault sob a égide de
“regulação” ou “regulamentação”, principalmente no curso Em Defesa da Sociedade. Que em
suas aulas finais já aponta um ultrapassamento dos dispositivos disciplinares pelos cálculos da
regulação.
Por se tratar de material bibliográfico de acessibilidade recente, os estudos precedentes
deixaram em aberto inúmeros problemas, não tratando da questão com a profundidade que
convêm. Incontáveis trabalhos já foram publicados acerca das disciplinas, seu aparecimento,
seu desenvolvimento e sua atualidade; tendo as pesquisas de Foucault como pano de fundo.
Trabalhos que tratem especificamente da segurança diretamente são escassos e se resumem
em sua maioria a pequenos artigos de circulação restrita. Esse trabalho não tem a pretensão de
preencher essas lacunas nos estudos da segurança, seu objetivo é meramente através de um
estudo bibliográfico rigoroso, apontar conexões e desdobramentos políticos possíveis do
trabalho filosófico de Foucault. Não há pretensão à isenção científica ou à imparcialidade, o
objetivo desse trabalho é explicitamente através da análise dos textos de Foucault buscar
apontamentos que fortaleçam os movimentos de resistência à biopolítica e a toda forma de
heteronomia.
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No primeiro capítulo tentaremos realizar uma análise aprofundada acerca do problema
da segurança, aquilo que a caracteriza como mecanismo de poder geral, aquilo que a
diferencia dos outros modos, suas características específicas. Também cabe nesse momento o
estudo da segurança em relação com outros conceitos desenvolvidos por Foucault em seus
estudos da biopolítica e do liberalismo; bem como também paralelos entre aquilo que
caracterizamos como segurança e interpretações paralelas desses mesmos fenômenos, como é
o caso específico do controle e da sociedade de controle em Deleuze e Guattari,
principalmente. O objetivo é que as análises desenvolvidas nesse capítulo possam servir de
base para guiar o estudo e o desenvolvimento dos capítulos precedentes, que devem ser
compreendidos à luz das especifidades da segurança.
Nos capítulos seguintes abordaremos os problemas da governamentalidade e do
processo não de formação do Estado, mas de governamentalização Estado, ou seja uma
genealogia dos modos reais de funcionamento dos Estados modernos. Esses são problemas
que surgem no horizonte filosófico de Foucault concomitantemente ao problema da
segurança. Nosso objetivo é o de fazer uma leitura desses problemas pensando como se dá a
articulação desses com a questão da segurança, tanto no seu desenvolvimento, quanto na sua
atualidade.
No Terceiro e último capítulo tentaremos compreender de que modo o desvio do
objetivo principal do curso para a questão da governamentalidade não representa um
abandono do estudo das tecnologias de segurança, mas sim uma complementação histórico
aos estudos. Também buscaremos apresentar de modo breve, dadas as limitações
bibliográficas a que nos propomos, analisar a questão da importância do liberalismo para as
tecnologias de segurança, focos de resistência e outros elementos dispersos pelos escritos de
Foucault que entendemos que possuem uma forte relação como nosso problema principal.
Deve-se ter presente que nos fixamos limites precisos, isto é, a análise bibliográfica de
base se restringe aos curso de 1978, Segurança, Território, População como texto base, e ao
início do curso de 1979, Nascimento da Biopolítica, porém obviamente esses cursos possuem
ressonâncias tanto no curso de 1976, Em Defesa da Sociedade, quanto no curso de 1980, Do
Governo dos Vivos cuja publicação integral ainda está em vias de se dar, mas o qual
possuímos uma publicação parcial disponibilizada pela editora achiamé.
A linha de continuidade e desenvolvimento entre os diversos trabalhos de Foucault de
todo esse período que podemos delimitar de grosso modo como indo de 1974 até 1980, é
reconhecida por diversos autores do temo, como por exemplo Roberto Nigro, que nos aponta
que “partindo das conclusões de 'Em defesa da sociedade', Segurança Território, População
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se propõe a prolongar e aprofundar o deslocamento teórico que vai do estudo das disciplinas
dos corpos aos mecanismos de regulação das populações”(NIGRO, 2005).
Além dos curso recorremos também a vasto material compilado na edição francesa dos
Dits et écrits, que representa uma contribuição impar aos estudos foucaultianos que estariam
seriamente debilitados se não fosse o trabalho hercúleo de Daniel Defert e François Ewald.
Dentro desses limites procuraremos desenvolver na presente dissertação, de maneira
expositiva, um estudo teórico de natureza reflexiva acerca de um problema que consideramos
central à filosofia política contemporânea, a saber, o advento de uma nova economia geral de
poder da ordem da segurança, uma mutação que Foucault reconhecia como a mais importante
na história das sociedades humanas.
Concluindo essa introdução, é nosso intuito então esboçar um panorama geral da
atualidade do problema da segurança. Buscaremos entender se caminhamos ou já nos
encontramos em uma sociedade de segurança/controle e como podemos enxergar, nos
mecanismos atuais, o pacto de segurança como novo pacto social. Por mais que a princípio
pareça um assunto que foge ao escopo da filosofia, o diagnóstico do presente na verdade,
surge na contemporaneidade como uma das urgências da filosofia, em especial um
diagnóstico das racionalidades políticas.
Foucault insistiu na ideia de que a filosofia é análise do tempo presente, é diagnóstico do hoje, para fora de todas as categorias tradicionais do hegelianismo-marxismo. Isto é, Foucault não entende que a atualidade seja uma etapa que decorre da “racionalidade” da História e do Real, mas o resultado de uma luta agonística com focos, posições e finalidades de alcance distintos, sem qualquer coordenação lógica interna ou tendência teleológica, o que faria do presente um resultado apenas provisório de um jogo sem nenhuma carta determinante ou lugar privilegiado do exercício do poder.(CASTELO BRANCO, 2010, p.3)
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SEGURANÇASEGURANÇA
soberania, disciplina, segurança
Em seu curso de 1978 Foucault escolhe como título três termos; sem encadeamento
aparente, porém que apontam um norte da apresentação de suas pesquisas de então; o trípto
Segurança, Território e População. O encadeamento lógico entre os termos fica a cargo do
leitor que deve ao ler o texto, ou ao assistir às aulas deve buscar fazer as conexões entre eles.
O nome do curso poderia ter sido “História da governamentalidade”, mas Foucault optou pelo
trípto pelo seu valor de instigação à busca do encadeamento. Analisemos cada um dos
elementos.
“Território é uma noção geográfica, mas antes de tudo, uma noção jurídico-política
[…] como termo político-estratégico indica como o militar ou o administrador se inscreve
efetivamente no solo”(CASTRO, 2009, p.414-415). A questão do Território nos remete a
problemática tradicional da soberania, em que este aparece como elemento fundamental,
vinculado a uma forma de poder que se exerce sobre a terra, a soberania territorial, entendida
como a administração e manutenção de um território herdado ou conquistado. Essa
problemática já aparecera em seu último curso de 1976* Em Defesa da Sociedade, onde
Foucault propõe que o modo tradicional de colocar a questão tradicional da soberania deve ser
abandonada para que possamos realizar uma nova forma de análise do poder, que se dê sob a
ótica da política como continuação da guerra por outros meios, proposta essa que será
abandonada depois já em 1978, quando Foucault fala de abandonar o modelo da guerra pelo
modelo do governo, como veremos mais a frente.
Assim a soberania territorial perde a importância central nos discursos sobre o Estado
favorecendo o aparecimento de um discurso que trate de uma especie de soberania
populacional, donde a questão da população surge como grande questão a ser compreendida
por ser o ponto chave do biopoder, tanto como anátomo-política dos corpos, por meio das
disciplinas, quanto como biopolítica das populações por meio da segurança; porém sobre a
segurança até hoje muito pouco se falou e se estudou na academia, reconhecemos nisso uma
falha a ser suprida nos estudos foucaultianos, uma vez que a segurança se caracteriza como a
tecnologia de governo própria do Liberalismo e se insere no quadro de procedimentos de
atuação política ocupado também pelas tecnologias de soberania e pelas tecnologias
disciplinares. É pela oposição entre os três modos de governo que as peculiaridades de cada
* No ano de 1977 Foucault tirou um ano sabático, e não lecionou no Collège de France
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um podem ser destacadas.
A distinção que Foucault apresenta nas últimas aulas do curso Em Defesa da
Sociedade entre a soberania, a disciplina e esse novo conceito que então recebera o nome de
regulamentação, servem quase como um prelúdio daquilo que estava porvir no curso de 1978,
assim como o fim do curso do curso de 1978 versa sobre o novo conceito de liberdade como
um prelúdio ao Nascimento da Biopolítica e a história do Liberalismo. No curso Segurança,
Território e População aquilo que havia sido esboçado e apresentado como regulamentação
passa a ser chamado de segurança, e o que se evidencia é sua distinção em relação às
disciplinas, as quais por sua vez “se opõe exatamente, termo a termo, à mecânica de poder que
a teoria da soberania descrevia ou procurava transcrever”(FOUCAULT, 2005, p.43).
SOBERANIA
A soberania é o mecanismo de poder mais arcaico, dentre os três que estudamos, sua
efetivação data da Idade média. Mais especificamente do momento em que as monarquias
tentavam estabelecer seus poderes centrais, e do embate inevitável entre o poder monárquico
e o sistema feudal. “ O direito sempre foi o instrumento do poder monárquico contra as
instituições, a moralidade, os regulamentos, as formas de vínculo e de aparências
característicos da sociedade feudal”(FOUCAULT, 2001, p.1004, tradução nossa).
Como ressalta Foucault “A teoria jurídico-política da soberania data da idade média;
ela data da reativação do direito romano”(FOUCAULT, 2005, p.41), ou ainda, “o direito
romano, que reapareceu no ocidente nos séculos XIII e XIV, foi um instrumento formidável
nas mão da monarquia para conseguir definir as formas e os mecanismos do seu próprio
poder”(FOUCAULT, 2001, p.1004, tradução nossa); porém é preciso que apontemos uma
ressalva uma vez que:
Mesmo que a noção de soberania tenha nascido do trabalho de interpretação e reinterpretação dos romano-canonistas do direito romano, ela testemunha da existência do novo direito público estatal que é muito diferente do direito público romano. A ausência de um termo romano equivalente a noção de soberania indica que um foço conceitual separa os dois modos de representação do poder (lato sensu) válido em Roma e na Europa moderna.(BEAUD, In: RAYNAUD et RIALS, 2008, p.736, tradução nossa)
A princípio a soberania se apresenta como árbitro que coibi a violência dos litígios
privados e como poder que faz cessar a guerra. “Ela se torna aceitável se dando um papel
jurídico e negativo, que ela, fique bem entendido, imediatamente torna
obsoleto”(FOUCAULT, 2001, p.150, tradução nossa). A burguesia mesmo, num primeiro
momento, se alinhou ao poder monárquico para o desenvolvimento, tanto da monarquia face
ao feudalismo, quanto dos sistemas jurídicos que
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lhes permitia, de outro lado, dar forma às trocas econômicas, que asseguravam seu próprio desenvolvimento social […] E, quando a burguesia finalmente se desembaraçou do poder monárquico, ela o fez utilizando precisamente este discurso jurídico – que fora ao mesmo tempo aquele da monarquia -, que ela virou contra a monarquia mesma. (FOUCAULT, 2001, p.1004, tradução nossa)
A relação entre o soberano e o sistema jurídico-legal é contraditória, pois “o
soberano ,a lei, a interdição, tudo isso constitui um sistema de representação do poder que foi
transmitido pelas teorias do direito”(FOUCAULT, 2001, p.150, tradução nossa), porém é o
próprio sistema jurídico-legal que de alguma forma representa uma possibilidade de limitação
de autoritarismos do soberano que busque fazer valer sua vontade absoluta a qualquer preço.
Ao longo da história podemos destacar quatro principais usos da teoria jurídico-legal;
ora como mecanismo de poder específico da monarquia feudal, onde a soberania e o soberano
como um corpo indissociável se justificam pela referência ao direito divino, se impondo por
meio da circulação de signos de respeito, devoção e sujeição, pela violência até a morte e pela
imposição do trabalho; ora como justificação para a constituição das monarquias
administrativas, com um código de leis que visava limitar o absolutismo do soberano;
posteriormente foi usada como arma que circulou entre diversos e conflitantes campos na
época das guerras de religião, o grande instrumento da luta política e teórica em torno dos
sistemas de poder dos séculos XVI e XVII; mas também um outro papel, no século XVIII no
momento de construir, contra as monarquias, e seus abusos, um modelo alternativo da
democracia parlamentar, como um poder unificado, indivisível e supremo atribuído a um ser
impessoal, o Estado.
Mesmo nesses quatro modos de utilização da soberania, existe um caráter fixo da
soberania que podemos identificar. Esse ponto de apoio é justamente o objeto sobre o qual se
exerce a soberania, ela se exerce sobre a terra, sobre o território que constituí um reino ou
principado. Nas palavras de Foucault:
A teoria da soberania é vinculada a uma forma de poder que se exerce sobre a terra e os produtos da terra, muito mais do que sobre os corpos e o que eles fazem. [Essa teoria] diz respeito ao deslocamento e à apropriação, pelo poder, não do tempo e do trabalho, mas dos bens e da riqueza.(FOUCAULT, 2005, p.43)
DISCIPLINA
Justamente essa limitação da soberania, de lidar prioritariamente com questões
fundiárias, relevando ao segundo plano tanto o nível do detalhe, dos corpos, quanto o nível
das massas; levou, ou de alguma forma possibilitou, tornou necessário o aparecimento, ou
invenção, das disciplinas, nos séculos XVII e XVIII. Essa datação histórica da elaboração das
disciplinas não significa que elas não existissem anteriormente, mas apenas que esse é o
momento em que aparecem em seu modo moderno e contemporâneo, plenamente
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desenvolvidas.
A disciplina é uma técnica de exercício de poder que não foi, devidamente falando, inventada, mas elaborada ao longo do século XVIII. Na verdade, ela já existia ao longo de toda a história, tanto na Idade Média quanto na Antiguidade. De sua maneira os monastérios constituíam um exemplo de lugar do poder no qual reinava um sistema disciplinar. A escravidão das grandes companhias escravocratas existente nas colonias espanholas, inglesas, francesas, holandesas, etc., eram igualmente modelos de mecanismos disciplinares. Poderíamos remontar às legiões romanas, e encontraríamos do mesmo modo um exemplo de disciplina.Assim, os mecanismos disciplinares datam de tempos ancestrais, mas aparecem isolados, fragmentados justamente nos séculos XVII e XVIII, quando o poder disciplinar de aperfeiçoa tornando-se uma nova técnica de gestão dos homens. (FOUCAULT, 2001, p.514-515, tradução nossa)
As disciplinas representam segundo Foucault “uma nova mecânica de poder, que tem
procedimentos bem particulares, instrumentos totalmente novos, uma aparelhagem muito
diferente e que, acho eu, é absolutamente incompatível com as relações de
soberania”(FOUCAULT, 2005, p.42), não só incompatível, mas diametralmente oposta nos
mais diversos âmbitos que possamos pensar. Ao contrario da soberania que como vimos
incide primeiro sobre a terra, ou o território, as disciplinas vão incindir sobre os corpos, e
sobre o que eles fazem. Segundo Foucault a disciplina é:
Um mecanismo de poder que permite extrair dos corpos tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente por vigilância e não de forma descontinuada por sistemas de tributo e de obrigações crônicas. É um tipo de poder que pressupõe muito mais uma trama cerrada de coerções materiais do que a existência física de um soberano, e define uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo fazer que cresçam as foças sujeitadas e a força e a eficácia daquilo que as sujeita(FOUCAULT, 2005, p.42)
As disciplinas agem sobre corpos, corpos de indivíduos que devem ser geridos
coletivamente para a extração do máximo de tempo e trabalho. Essa é a nova lógica que se
instaurava quando
O capitalismo que se desenvolve no fim do século XVIII e início do XIX, socializou um primeiro objeto, o corpo, em função da força produtiva, da força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetua somente pela consciência ou pela ideologia, mas também nos corpos e com os corpos. Para a sociedade capitalista [...] o corpo é uma realidade biopolítica. (FOUCAULT, 2001, p.210, tradução nossa)
Diferentemente da soberania centrada no soberano e na unidade e indivisibilidade da
daquele apto a exercer a soberania, apenas um soberano pode existir em um território,
qualquer ambivalência serviria para desestabilizar a alardeada paz social imposta pela
soberania. As disciplinas não só são múltiplas, mas também as instituições promotoras das
disciplinas são independentes, polimorfas e não possuem necessariamente nenhuma forma de
subordinação direta com o aparato estatal, embora se encontrem em constante jogo com esse,
porém um jogo muito mais sútil, maleável e extinguível do que qualquer forma de
interpretação ideológica de manipulação maniqueísta poderia levar a crer. Os espaços das
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disciplinas são sempre bem delimitados, e encerrados num espaço específico, a escola, a
fábrica, o hospital, as prisões, etc. Espaços múltiplos que deveriam encerrar toda a vida de um
bom cidadão
As disciplinas tem um caráter teleológico bem evidente, quando podemos ver que
buscam sempre a criação de corpos dóceis. Dóceis no sentido de que devem, na nova
sociedade que se descortinava na época, o capitalismo industrial, desempenhar os papéis
atribuídos ao indivíduo da maneira mais conformada, e esforçada possível. O trabalhador não
deve reclamar das condições do serviço na fábrica, mas deve se esforçar ao máximo para
maximizar a produção; a criança não deve questionar o que aprende, mas deve absorver o
máximo para ser útil no mercado de trabalho que a espera; o doente não deve questionar
decisões médicas; e tantos outros exemplos que poderíamos pensar relativos ao objetivo dos
mecanismos disciplinares: amansar e adestrar indivíduos. É óbvio que para as disciplinas o
indivíduo é apenas uma maneira de recortar uma multiplicidade, a população de um Estado,
que possuí um fim a atingir: compor no espaço-tempo uma força cujo efeito deva ser maior do
que a soma das partes individuais.
Esse novo tipo de poder, que já não é, pois, de modo algum transcritível nos termos da soberania, é, acho eu, uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um dos instrumentos fundamentais da implantação do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correlativo(FOUCAULT, 2005, p.43),
O efeito inibidor de autoritarismos dos códigos de lei no mecanismo de soberania, de
que falamos acima, só foi possível devido aos mecanismos disciplinares, já vemos aí que, de
forma nenhuma, temos com a invenção das disciplinas um abandono das técnicas de
soberania, temos na verdade uma reativação e complementaridade como fica evidente na
passagem:
Essa democratização da soberania se encontrava lastrada em profundidade pelos mecanismos da coerção disciplinar. De uma forma mais densa, poderíamos dizer: uma vez que as coerções disciplinares deviam ao mesmo tempo exercer-se como mecanismos de dominação e ser escondidas como exercício efetivo de poder, era preciso que fosse apresentada no aparelho jurídico e reativada, concluída, pelos códigos judiciários, a teoria da soberania(FOUCAULT, 2005, p.44)
SEGURANÇA
Se a soberania falhava ao não tratar do corpo, e isso veio a ser suprido pela invenção
das disciplinas, pelo lado das massas ainda havia uma defasagem nas técnicas de governança.
Esse duplo movimento no intuito de suprimir as linhas de fuga da soberania se evidencia na
passagem
Tudo se sucedeu como se o poder, que tinha como modalidade, como esquema
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organizador, a soberania, tivesse ficado inoperante para reger o corpo econômico e político de uma sociedade em via, a um só tempo, da explosão demográfica e da industrialização. De modo que à velha mecânica do poder de soberania escapavam muitas coisas, tanto por baixo quanto por cima, no nível do detalhe e no nível da massa. Foi para recuperar o detalhe que se deu uma primeira acomodação: acomodação dos mecanismos de poder sobre o corpo individual, com vigilância e treinamento – isso foi a disciplina. É claro, essa foi a acomodação mais fácil, mais comoda de realizar. É por isso que ela se realizou mais cedo – já no século XVII, início do século XVIII – em nível local, em formas intuitivas, empíricas, fracionadas, e no âmbito limitado de instituições como a escola, o hospital, o quartel, a oficina, etc. E, depois, vocês têm em seguida, no final do século XVIII, uma segunda acomodação, sobre os fenômenos globais, sobre os fenômenos de população, com os processos biológicos ou biossociológicos das massas humanas. Acomodação muito mais difícil, pois, é claro, ela implica órgãos complexos de coordenação e de centralização.(FOUCAULT, 2005,p.298)
Essa nova tecnologia - que em 1976 foi chamada de regulamentação, e depois, a partir
de 1978 passa a ser chamada de segurança - foi e ainda é colocada em segundo plano, ou nem
mesmo colocada nos estudos foucaultianos, por mais que, como nos aponta Foucault,
represente uma acomodação dos mecanismos de poder muito mais complexa e recente do que
as outras, disciplina e soberania. A melhor forma de entendermos o funcionamento dos
mecanismos de segurança é colocando-os em oposição aos mecanismos disciplinares. Nesse
sentido, como vimos, enquanto as disciplinas se dão sobre os corpos individuais, a segurança
vai buscar atingir a massa, a população como corpo biológico, isso só será possível a partir
dos fins do século XVIII graças a algumas descobertas que discutiremos mais a frente, porém
cabe ressaltar agora que com a segurança temos uma tecnologia que visa prever, controlar,
modificar, ou anular os acontecimentos possíveis de afetar essa massa viva que é a população,
através de cálculos econômicos de benefício da repressão e custo do desvio. “É uma
tecnologia que visa portanto não o treinamento individual, mas, pelo equilíbrio global, algo
como uma homeóstase: a segurança do conjunto em relação aos seus perigos
internos”(FOUCAULT, 2005, p.297).
A segurança não representa, como a disciplina representava frente a soberania, toda
uma nova série de técnicas de controle, ela funciona muito mais pela constante reativação dos
mecanismos de soberania e disciplinares, porém num cenário onde sua administração segue
uma dieta derivada de cálculos econômicos de vantagens e desvantagens, o objetivo não é a
anulação propriamente dita de um fator negativo à boa circulação de pessoas ou mercadorias,
mas, muito mais, a manutenção das taxas dentro de um limite aceitável. Não mais guerra de
extermínio, mas um controle eterno para evitar prejuízos à população. Como vemos no
exemplo da “lei dos pobres” que se aplicou na Inglaterra em 1846
Com a lei dos pobres aparece de maneira ambígua um importante fator na história da medicina social: a ideia de uma assistência fiscalizada, de uma intervenção médica que constituía um meio de ajudar os pobres a satisfazer as necessidades de saúde que
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a pobreza os impedia de esperar. Ao mesmo tempo, ela permitiu manter um controle pelo qual as classes ricas, ou seus representantes no governo, garantissem a saúde das classes necessitadas e, por consequência, a proteção da população privilegiada[...]Na legislação médica, vemos claramente a transposição do grande problema da burguesia na época: a que preço? Sob quais condições?(FOUCAULT, 2001,p.225, tradução nossa)
Todo um sistema de seguridade social que se desenvolve para assegurar justamente
que não haja motivos para que as pessoas abandonem a docilidade. Os extremos de pobreza
são sanados pelo assistencialismo, pelo fato de que essa medida profiláxica é mais vantajosa
do ponto de vista econômico e político para a classe privilegiada do que uma rebelião de
famintos enraivecidos. Segurança e seguridade são palavras cuja distinção não se encontra no
francês, e as tecnologias de segurança devem ser entendidas também como tecnologias de
seguridade.
Temos aí a passagem de um problema de ordem econômica, do custo, para o campo do
governo das populações. A segurança é não só o modo Liberal de governo por excelência, mas
pode e deve ser entendido como a continuação mesma do liberalismo para o campo da política
e da gestão do Estado e da população. Com a segurança há o surgimento de diversos novos
saberes que devem ser responsáveis por esses cálculos de custo/benefício, que devem inserir
os fenômeno em questão numa série de acontecimentos possíveis. Todo um corpo teórico,
composto por profissionais competentes, passa a integrar a maquina estatal pra criar e gerir
essas novas taxas de criminalidade, desemprego, epidemias, etc, devendo não só analisar
essas taxas, mas usá-las como bulas de posologia para a aplicação das medidas cabíveis,
sejam elas a repressão, o assistencialismo, ou sejam os mecanismos ora disciplinares, ora
legais.
De maneira bastante resumida, utilizando o exemplo do crime, podemos dizer que no
mecanismo legal ou jurídico, da soberania, o descumprimento de uma lei acarreta uma
punição que pode ir da morte ao exílio ou multa. Vemos claramente uma divisão binária entre
o permitido e o proibido, onde o que é dito é o proibido. O mesmo panorama num sistema
disciplinar é “enquadrado, de um lado, por toda uma série de vigilâncias, controles, olhares,
esquadrinhamentos diversos”(FOUCAULT, 2008, p.7), cujo objetivo é impedir que se infrinja
a lei. Por outro lado, havendo o fato delituoso a punição não será tão simples como no sistema
legal, mas acarretará o “encarceramento, impondo ao culpado toda uma série de exercícios…
trabalho obrigatório, moralização, correção, etc”(FOUCAULT, 2008, p.7). o binarismo
presente no sistema legal, sem ser abandonado, se inverte na disciplina onde o não dito é o
proibido e o dito é prescritivo. No sistema de segurança o que vemos é que a aplicação da lei
e os mecanismos de prevenção são acompanhados de saberes específicos da estatística, como
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a taxa de criminalidade. “A questão que se coloca será a de saber como,[...] manter um tipo de
criminalidade,[...] dentro dos limites que sejam social e economicamente
aceitáveis”(FOUCAULT, 2008, p.8). O binarismo entre proibição e prescrição está ausente
nesse mecanismo que funciona por meio de cálculos estatísticos de probabilidade, no
gerenciamento das ações de prevenção do delito.
Em outras palavras, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem proibir nem prescrever, mas dando-se evidentemente alguns instrumentos de proibição e de prescrição, a segurança tem essencialmente por função responder a uma realidade de maneira que essa resposta anule essa realidade a que ela responde – anule, ou limite, ou freie, ou regule.(FOUCAULT, 2008, p.61)
Embora possamos destacar períodos históricos de predominância de um mecanismo
sobre os outros, ou mesmo diferenças quanto ao alcance de cada um; não podemos falar de
sucessão ou anulação das estruturas de um sistema pelo outro.
Portanto, vocês não têm uma série na qual os elementos vão se suceder, […] na verdade, vocês têm uma série de edifícios complexos nos quais o que vai mudar, claro, são as próprias técnicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se complicar, mas o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança.(FOUCAULT, 2008, p.11)
A tecnologia de segurança leva como questão central a relação econômica entre os
custos envolvidos numa dada situação, utilizando-se para atuar no equilíbrio da situação, em
boa parte, da reativação e transformação das técnicas jurídico-legais e disciplinares. “A
segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos mecanismos
propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina” (FOUCAULT, 2008,
p.14).
características gerais
Partindo dessa explanação introdutória da segurança, podemos agora tentar retraçar o
caminho percorrido por Foucault no seu curso de 1978. Analisemos agora as quatro
características gerais dos dispositivos de segurança, que na verdade formam mais quatro
matrizes de analise da questão da segurança, que visam em conjunto fazer aparecer os
elementos do funcionamento dessa tecnologia. As quatro características são respectivamente,
os espaços de segurança, o tratamento do aleatório, a normalização específica à segurança e a
emergência da população. Este ultimo sem dúvida o movimento mais importante da segurança
em relação às outras modulações de governo, dado, como vimos, que as tecnologias de
segurança se dão sobre a população, e somente com sua emergência como campo dotado de
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uma natureza própria e desassociada de metáforas reducionistas é que a segurança poderá se
desenvolver plenamente até o aparecimento dos dispositivos contemporâneos de governo da
vida e controle das populações.
As três primeiras características vão aparecer com exemplos de problemas
relacionados às cidade, os exemplos tomados são respectivamente: “a cidade, a escassez
alimentar, a epidemia, ou, se preferirem, a rua, o cereal, o contágio”(FOUCAULT, 2008,
p.83). Temos portanto três exemplos que na verdade remetem todos aos problemas relativos à
cidade, pois “o problema da escassez alimentar e do cereal é o problema da cidade-mercado, o
problema do contágio e das doenças epidêmicas, é o problema da cidade como foco de
doenças”(FOUCAULT, 2008, p.83). A Cidade aparece então como problema central da
governamentalidade, como novo campo de governo, uma vez que:
No início do século XVII […] deixa-se de perceber a cidade como lugar privilegiado, como uma exceção num território constituído de campos, florestas e estradas. As cidades não são mais ilhas que escapam ao direito comum. Doravante, as cidades, com os problemas que levantam e as configurações particulares que tomam, servem de modelo a uma racionalidade governamental que se aplica ao conjunto do território. (FOUCAULT, 2001, p.1090, tradução nossa)
Dessa racionalidade governamental podemos ver como a metáfora do governo do
território como o governo de uma cidade será recorrente nessa época específica, como
veremos no exemplo de Alexandre Le Maître. Houve sem duvida uma mudança também no
estatuto jurídico das cidades, não foi apenas a cidade que influenciou o governo do território,
mas o governo que se restringia ao território, e reservava às cidades estatuto especial, passa a
penetrá-las de maneira inexorável.
A cidade representava sempre como que um espaço de autonomia em relação às grandes organizações e aos grandes mecanismos territoriais de poder que caracterizavam um poder desenvolvido a partir da feudalidade. Creio que a integração da cidade aos mecanismos centrais de poder, melhor dizendo, a inversão que fez que a cidade tenha se tornado o problema primeiro, antes mesmo do problema do território, creio que esse fenômeno, uma inversão característica do que aconteceu entre o século XVII e o início do século XIX. Problema a que foi preciso responder com novos mecanismos de poder cuja forma, sem duvida, deve ser encontrada no que chamo de mecanismos de segurança.(FOUCAULT, 2008, p.84)
Com o aparecimento do capitalismo industrial e da necessidade de grandes
quantidades de mão de obra, que só poderiam ser supridas num ambiente de alta densidade
populacional urbana, ocorre um grande êxodo em direção às cidades e as oportunidades que
surgiam com as fábricas. Essa inflação da população urbana tornou necessário então todo um
novo ordenamento das cidades, que durante toda a Idade Média haviam sido relegadas ao
segundo plano pelos tramites da soberania, figurando como espaço de relativa independência,
relegada pelo poder soberano, e encerradas em si mesmas.
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Todo um novo campo de problemáticas se abria então para as monarquias
administrativas, como lidar com o espaço urbano compreendido não apenas geograficamente,
mas em toda a complexidade de seus elementos constitutivos relativos a circulação e as
cidades. Problema da circulação no entorno da cidade para sua subsistência, a circulação de
rotas comerciais mais afastadas e a circulação dentro de uma cidade que não podia mais ser
contida dentro de muros.
Temos então, no desenrolar do texto, o problema da cidade apresentada enquanto
espaço, a cidade enquanto mercado e a cidade enquanto foco de doenças. No tratamento
desses diferentes pontos de vista sobre a cidade veremos as diferentes especificidades de cada
uma dessas características.
ESPAÇOS DE SEGURANÇA
Para falarmos de espaços de segurança é preciso, que antes de tudo, afastemos as
simplificações exageradas, que inevitavelmente, acabam por deixar escapar o funcionamento
específico desses mecanismos. Simplificações que aparecem como no exemplo esquemático
que indica que “a soberania se exerce nos limites de um território, a disciplina se exerce sobre
o corpo dos indivíduos e, por fim, a segurança se exerce sobre o conjunto da
população[...].isso não cola”(FOUCAULT, 2008, p.16). Todos os mecanismos em questão são
na verdade, diferentes maneiras de tratar da multiplicidade, cada um com sua própria
especificidade. A soberania trata da multiplicidade dos sujeitos, de um povo, a distinção entre
povo e população será abordada mais a frente. A disciplina aparece como uma forma de
individualização das multiplicidades, onde o indivíduo é apenas uma escolha tática, uma
maneira de recortar essa multiplicidade que possuí um fim comum a atingir. A segurança, que
pelo que vimos se caracteriza pelo uso das médias e cálculos probabilísticos em cima de
dados coletados de uma população, só pode obviamente tratar da multiplicidade.
Por outro lado, os problemas de espaço são igualmente comuns a todas as três. No caso da soberania, é óbvio, pois é antes de mais nada como uma coisa que se exerce no interior do território que a soberania aparece. Mas a disciplina implica uma repartição espacial, e creio que a segurança também.(FOUCAULT, 2008, p.17)
A repartição espacial da disciplina se evidencia nas delimitações bastante claras dos
internatos, ou espaços fechados de aplicação das disciplinas, as quais, não são técnicas
universalizantes, mas sim técnicas fragmentárias que possuem um campo de atuação muito
bem delimitado. A especificidade da repartição espacial das tecnologias de segurança é o que
tentaremos apresentar a seguir.
Tendo claro a necessidade de se fugir dos esquematismos podemos seguir a análise
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agora, como propõe Foucault, a partir dos exemplos de reformas urbanas em cidades
francesas em diferentes momentos históricos, as especificidades dessas reformas ressaltam as
diferenças no trato do espaço pelos três mecanismos de governo estudados.
O primeiro exemplo data do século XVII com Alexandre Le Maître e seu escrito La
Métropolitée. Apelando à metáfora arquitetônica da construção do Estado como um edifício
Le Maître divide as classes sociais dos camponeses, artesãos e nobres delimitando o espaço a
ser ocupado por cada um no território de um Estado. Essa divisão cria relações entre a capital,
as outras cidades e o resto do território que desempenham diferentes papéis, cabe ressaltar que
a relação da soberania com a cidade se dá prioritariamente em relação à função da capital e a
importância desta para o resto do território, essa importância assume diferentes formas de
relação; a relação deve ser geométrica, visto que a capital deve ficar no centro do território,
para que não possibilite que regiões mais afastadas fujam ao seu controle; ao mesmo tempo há
uma relação estética e simbólica, a capital como ornamento, pois “a capital não está apenas de
posse do útil […] mas também do escol e da glória”(LE MAÎTRE, 1682 apud FOUCAULT,
2008, p.33 n.17) ; e é claro a relação da capital deve ser política, pois as leis e decretos
impostos da capital devem atingir a totalidade do território; a capital também tem um papel
moral e científico, visto que as verdades e os costumes devem emanar também dessa; o
caráter econômico reassegura a centralidade da capital que serve como polo de redistribuição
de produtos de luxo para a alimentação do comércio.
Tudo isso, essa ideia de eficácia politica da soberania está ligada aqui à ideia de uma intensidade das circulações: circulação das ideias, circulação das vontades e das ordens, circulação comercial também. Para Le Maître, trata-se no fundo – ideia ao mesmo tempo antiga, já que se trata da soberania, e moderna, já que se trata da circulação –, de superpor o Estado de soberania, o Estado territorial e o Estado comercial. Trata-se de amarrá-los e de reforçá-los uns em relação aos outros.(FOUCAULT, 2008, p.20)
O segundo exemplo trata da cidade enquanto espaço das disciplinas, não é ao acaso
que a escolha se dê por cidades que foram construídas do zero, pensadas em seus mínimos
detalhes de funcionamento e circulação. O exemplo específico do livro vai tratar da cidade de
Richelieu, cidade construída pelo cardeal de Richelieu em 1631. A ideia por trás das cidades
disciplinares, como Richelieu dentre tantas outras, é a reativação urbanística da distribuição
geométrica presente nos acampamentos do exército romano, as castra; um castrum, ou
castellum no diminutivo, era edificado conforme um certo modelo, com duas vias principais
que se cruzavam, no sentido norte-sul, e no sentido leste-oeste, o que dividia o terreno em
quatro partes iguais. As avenidas acabavam em quatro portões de acesso, e o restante das ruas
era traçado paralelamente às duas principais, formando um padrão quadriculado.
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De fato, no caso precedente, La Metropolitée de Le Maître, a organização da cidade era pensada essencialmente dentro da categoria mais geral, mais global do território. Era por meio de um macrocosmo que se procurava pensar a cidade, com uma espécie de abonador do outro lado, já que o próprio Estado era pensado como um edifício. Enfim, era todo esse jogo entre o macrocosmo e o microcosmo que perpassava pela problemática da relação entre a cidade, a soberania e o território. Já no caso dessas cidades construídas com base na figura do acampamento, podemos dizer que a cidade é pensada de início, não a partir do maior que ela, o território, mas a partir do menor que ela, a partir de uma figura geométrica que é uma espécie de módulo arquitetônico, a saber, o quadrado ou o retângulo por sua vez subdivididos, por cruzes, em outros quadrados ou outros retângulos.(FOUCAULT, 2008, p.21-22)
Toda a distribuição dos espaços geometricamente pensado está também levando em
conta a questão da circulação de pessoas e mercadorias, e as divisões baseadas nas diferenças
de status social ou função desempenhada. O tratamento disciplinar das multiplicidades visa
construir a partir do vazio toda um espaço artificial, cuja construção deve levar em conta a
reafirmação de multiplicidades artificiais organizadas de acordo com características
específicas relativas ao objetivo de uma dada situação. A cidade disciplinar nasce como uma
série de cortes geométricos no espaço vazio, e partindo desse plano inicial de disposições
paralelas e perpendiculares é que a cidade, seus habitantes e suas circulações vão se instalar,
esses elementos da cidade são segundos face à disposição idealista das ruas e edifícios.
Em respeito aos espaços de segurança propriamente ditos, temos diversos exemplos de
urbanizações no transcurso do século XVIII, o exemplo escolhido por Foucault é o da cidade
de Nantes. A primeira diferença é que as reformas urbanas que seguem o modelo da segurança
se dão sobre cidades já existentes. Os problemas que essas urbanizações reais vão se propor a
tratar vão ser: “desfazer as aglomerações desordenadas, abrir espaço para as novas funções
econômicas e administrativas, regulamentar as relações com o entorno rural e, enfim, prever o
crescimento” (FOUCAULT, 2008, p.23). Temos aí todo um problema relativo a circulação,
mas não só isso, temos também uma questão que é a da previsão, levar em conta cálculos
específicos que possam apontar com maior ou menor precisão os acontecimentos futuros,
como por exemplo o crescimento populacional decorrente do desenvolvimento econômico.
Esse elemento da previsão é bastante característico da tecnologia de segurança, embora essa
não possa ser reduzida a uma futurologia simplesmente. A segurança tem múltiplos objetivos
a alcançar, como fica evidenciado nos objetivos da reforma em Nantes:
Em primeiro lugar, abrir eixos que atravessassem a cidade e ruas largas o bastante para assegurar quatro funções. Primeira, a higiene, o arejamento, eliminar todas aquelas espécies de bolsões em que se acumulavam os miasmas mórbidos nos bairros demasiado apertados, em que as moradias eram demasiado apinadas. Função de higiene, portanto. Segunda, garantir o comércio no interior da cidade. Terceira, articular essa rede de ruas com estradas externas de modo que as mercadorias de fora pudessem chegar ou ser enviadas, mas isso sem abandonar o controle aduaneiro. E, por fim – o que era um dos problemas importantes do século XVIII -,
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possibilitar a vigilância, a partir do momento em que a supressão das muralhas, tornada desnecessária pelo desenvolvimento econômico, fazia que não fosse mais possível fechar a cidade de noite ou vigiar com rigor as idas e vindas durante o dia; por conseguinte, a insegurança das cidades tinha aumentado devido ao afluxo de todas as populações flutuantes, mendigos, vagabundos, delinquentes, criminosos, ladrões, assaltantes, etc., que podiam vir, como se sabe, do campo [...]. Em outras palavras, tratava-se de organizar a circulação, de eliminar o que era perigoso nela, de separar a boa circulação da má, [de] maximizar a boa circulação diminuindo a má. (FOUCAULT, 2008, p.24)
Diferentemente da disciplina que visava através do controle total estabelecer todo o
tipo possível de circulação, para a segurança a questão é da ordem do cálculo, trata-se de
maximizar um e minimizar o outro. Não há a busca pela perfeição, apenas por um equilíbrio
que seja economicamente favorável, e os elementos que vão se priorizar são aqueles que
apresentam um polifuncionalidade dentro do arranjo, uma rua deve desempenhar as quatro
funções descritas na citação acima. O desempenho dessas funções também não se pauta
somente na satisfação de critérios instantâneos, mas deve-se trabalhar com o futuro, “o bom
planejamento da cidade vai ser precisamente: levar em conta o que pode
acontecer”(FOUCAULT, 2008, p.26). Esse futuro que se deve ter em mente, não é de forma
nenhuma u futuro fechado ou controlável, por isso a segurança vai tratar sempre das “séries
abertas, que, por conseguinte, só podem ser controladas por uma estimativa de
probabilidades”(FOUCAULT, 2008, p.27)
Digamos para resumir isso tudo que, enquanto a soberania capitaliza um território, colocando o problema maior da sede do governo, enquanto a disciplina arquiteta um espaço e coloca como problema essencial uma distribuição hierárquica e funcional dos elementos, a segurança vai procurar criar um ambiente em função de acontecimentos ou de séries de acontecimentos ou de elementos possíveis, séries que vai ser preciso regularizar num contexto multivalente e transformável. (FOUCAULT, 2008, p.27)
Para que possam ser regularizados esses acontecimentos possíveis, ou ainda, para que
ocorra a gestão das séries abertas por estimativas, é necessário que se esteja preso à um
espaço dado, um meio onde os indivíduos em sua multiplicidade apareçam, não mais como
sujeitos de direito, ou como uma multiplicidade de corpos, mas somente em sua
materialidade, em seu caráter biológico enquanto espécie, como população. Eis aí um
primeiro momento de emergência da população, que analisaremos a fundo mais adiante, o
aparecimento de uma técnica claramente biopolítica onde ocorre a “irrupção da naturalidade
da espécie dentro da artificialidade política de uma relação de poder”(FOUCAULT, 2008,
p.29).
TRATAMENTO DO ALEATÓRIO
A segunda característica geral apresentada é justamente esse tratamento do aleatório
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que aparece também na gestão do espaço de segurança, porém apresentado pelo autor sob o
prisma do problema da escassez alimentar, ou o estado de raridade de gêneros. O problema da
escassez é estudado na verdade para que se possa fazer surgir o “horizonte filosófico político
sobre cujo fundo a escassez alimentar aparece”(FOUCAULT, 2008, p.41), ou seja, quais os
pressupostos filosóficos que corroboram e justificam as medidas tomadas pelos governos e
seus economistas para inibir, frear ou impedir a escassez, não tanto pela escassez em si, mas
pelos efeitos que a escassez acarreta no meio urbano, isso é, a possibilidade da revolta
popular, “a revolta urbana é a grande coisa a evitar para o governo”(FOUCAULT, 2008,
p.41).
Os sistemas para lidar com a escassez são essencialmente do âmbito da segurança,
mesmo que saibamos que “estabeleceu-se contra ela, e desde há muito tempo, todo um
sistema que direi ao mesmo tempo jurídico e disciplinar, um sistema de legalidade e um
sistema de regulamentos”(FOUCAULT, 2008, p.42), ainda assim o problema da escassez está
“essencialmente centrado num acontecimento eventual, um acontecimento que poderia se
produzir e que se procura impedir antes que ele se inscreva na realidade”(FOUCAULT, 2008,
p.43-44), logo claramente um problema do âmbito da segurança.
Tradicionalmente se compreendia a escassez de viveres ou como má fortuna; ou então
como punição devido a má natureza humana; “o conceito jurídico-moral da má natureza
humana, da natureza decaída, o conceito cosmológico-político de má fortuna são os dois
marcos gerais no interior dos quais se pensa a escassez alimentar”(FOUCAULT, 2008, p.42).
A má natureza humana vai ter uma influencia real sobre o problema da escassez, dada a
avidez dos comerciantes que visando um maior aumento de ganhos vão estocar a produção
esperando o agravamento da crise e o aumento do preço. A partir desses fatos, diversos
mecanismos de controle e proibição da estocagem, regulamentação do preço, proibição da
exportação, entre outros, foram desenvolvidos e aplicados ao longo da história. Diversos
também foram os fracassos acumulados por esses sistemas que acabavam agravando a crise e
perpetuando-a por diversas safras.
A grande mudança de paradigma no tratamento da escassez se dá a partir da solução
dos fisiocratas, que não tratavam a escassez como algo bom ou ruim, mas que a tratavam
como algo que é o que é, e que precisa necessariamente ser tratado dessa maneira, uma
desqualificação moral, que reinsere a escassez como um fenômeno natural. A escassez deixa
de ser analisada apenas no mercado, e com seus efeitos sobre o mercado; para ser tratada sob
uma nova ótica em todo o processo, sua história, do momento que é plantado até o momento
em que se colhem os lucros. Entre as inovações propostas estavam a desregulamentação da
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estocagem, dos preço e do comércio intranacional e internacional. A relevância dos fisiocratas
se deve pois eles “estão justamente situados em uma linha perigosa de divisão de águas: de
um lado, as teorias jurídico-legais das quais eles assumem muitas premissas; de outro lado,
um mergulho em direção a uma sociedade econômica”(COHEN, 2005).
O tratamento da escassez como fenômeno natural, pode nos ajudar a compreender a
intenção de Foucault ao tratar dessa questão, intenção que segundo ele seria a de tratar “a
relação do governo com o acontecimento”(FOUCAULT, 2008, p.40, grifo nosso). Quando
em 1978, Foucault define o conceito de acontecimetalização (FOUCAULT, 2001, 842-844),
ele levanta três características desse processo. A primeira característica é a contínua
multiplicação causal, que consiste em analisar os acontecimentos segundo os processos
múltiplos que o constituem, vemos um exemplo disso no pensamento e nos métodos
fisiocráticos, quando tomamos a citação: “a unidade de analise não será mais, portanto, o
mercado […], mas o cereal com tudo o que pode lhe acontecer e lhe
acontecerá”(FOUCAULT, 2008, p.48). A segunda característica da acontecimentalização é
analisar o acontecimento como um poliedro de inteligibilidade, que não pode ser definido de
antemão e ao mesmo tempo, sua analise também nunca pode ser dada como acabada. A
terceira característica, aparece como encadeamento das outras duas e é o polimorfismo
crescente de elementos, polimorfismo de elementos em referência, polimorfismo de relações
descritas e polimorfismo de domínios de referência. Portanto temos a analise da relação do
governo com o acontecimento, no exemplo as medidas relativas a escassez e a liberdade de
mercado, onde o governo de alguma forma trabalha com a acontecimentalização da escassez.
O que Abeille e os fisiocratas e teóricos da economia do século XVIII procuraram obter foi um dispositivo que conectando-se à própria realidade dessas oscilações, vai atuar de tal modo que, por uma série de conexões como outros elementos da realidade, esse fenômeno, em de certo modo nada perder da sua realidade, sem ser impedido, se encontre pouco a pouco compensado, freado, finalmente limitado e, no último grau, anulado.(FOUCAULT, 2008, p.49)
Essa é a solução liberal de liberdade de comércio, do laisser faire, laisser passer,
laisser aller, completamente diferente das soluções que a precederam que tratavam de
proibições de estocagem e exportação, medidas artificiais de competência jurídico-disciplinar
que acabavam elas mesmas por gerar a escassez. Agora tudo é permitido, porque na ausência
de ingerências artificiais na realidade natural do mercado, a regulação se dará pelo próprio
mercado, que encontra seu próprio equilíbrio nas oscilações da realidade, como uma nova
entidade com suas próprias regras de funcionamento interno. Essa concepção dos mecanismos
de mercado só é possível com a ampliação da análise que deve levar em conta não só o
mercado mas a “história do cereal”. Ampliação também da análise do mercado, pois se deve
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levar em conta agora não apenas a produção de um agricultor ou de um país, mas o mercado
mundial de cereais. Ao se retirar as proibições e as regulamentações impostas aos produtores,
aplica-se também a análise dos protagonistas que devem ser compreendidos nos cálculos que
fazem para decidir pela estocagem ou venda.
É isso tudo, isto é, esse elemento de comportamento plenamente concreto do homo œconomicus, que deve ser levado igualmente em consideração. Em outras palavras, uma economia, ou uma análise econômico-política, que integre o momento da produção, que integre o mercado mundial e que integre enfim os comportamentos econômicos da população, produtores e consumidores. (FOUCAULT, 2008, p.54)
Para que o mercado se regule a si mesmo, é preciso que a escassez se dê para acarretar
sua auto-frenagem, sua auto-regulação. Não se busca impedir a escassez, apenas que ela seja
passageira e também que exista um certo tipo de mercado, ou umas série de pessoas para
quem haja uma certa escassez e fome, mesmo que isso acarrete a morte de alguns, é a miséria
de alguns que vai assegurar o lucro dos outros.
A doutrina dos fisiocratas é uma mistura de liberalismo econômico e despotismo esclarecido […] o pensamento dos fisiocratas se ordena por quatro grandes temas: a natureza, a liberdade, a terra, o 'despotismo legal' […] O Estado deve ser governado pelos proprietários de terras; só eles tem uma pátria; pátria e patrimônio andam juntos […] os fisiocratas são hostis a toda regulamentação. Sua formula é 'laissez faire, laissez passer'. (Jean TOUCHARD, Histoire des idées politiques, Tome2, Du
XVIIIe siècle à nos jours, Paris: PUF, 1958, tradução nossa)
Só interessam ao poder aqueles que possuem propriedades, só eles tem pátria, pois só
eles constituem patrimônio. O liberalismo é indissociável do racismo de Estado, pois
necessita da morte dos menos abastados para poder funcionar. “A escassez-flagelo desaparece,
mas a escassez que faz os indivíduos morrerem não só não desaparece, como não deve
desaparecer”(FOUCAULT, 2008, p.55). A mão invisível do mercado está visivelmente
manchada pelo sangue dos pobres.
Temos então um espécie de dissociação, que possibilita que a morte e o sofrimento de
alguns indivíduos não seja vista como fracasso, mas como êxito. Ocorre que temos dois níveis
de fenômenos, aqueles que morrem estão no nível da série, da multiplicidade, do povo, esse
nível só interessa a ação governamental enquanto administrado devidamente para possibilitar
o que se espera no nível da população. É a população que constitui o nível pertinente à ação
econômico-política do governo. A população é o nível pertinente enquanto objetivo da
política, já a multiplicidade dos indivíduos, em contrapartida, só será pertinente enquanto
instrumento, intermédio ou condição para obter algo no nível da população. A cisão entre
esses dois níveis, povo e população, obviamente, não é uma cisão que se instaura no real, mas
apenas no interior do nexo saber-poder das tecnologias de segurança/governo.
Justamente na separação entre povo e população reside o caráter racista do modelo
23
liberal, pois, aqueles que morrem de fome, ou sofrem desse flagelo não são pertinentes ao
nível da população, assim perdem todos os seus direitos como indivíduos ou como sujeitos.
São considerados perdas não só aceitáveis, mas necessárias para que o sistema funcione de
maneira otimizada e segundo as próprias leis naturais do mercado. É apenas no nível do povo
que pode fermentar a revolta urbana, pois:
o povo é aquele que se comporta em relação a essa gestão da população, no próprio nível da população, como se não fizesse parte desse sujeito-objeto-coletivo que é a população, como se se pusesse fora dela, e, por conseguinte, é ele que, como povo que se recusa a ser população, vai desajustar o sistema. (FOUCAULT, 2008, p.57)
O mercado deve surgir em sua naturalidade, e isto só é possível se estiver livre dos
controles e regulamentações impostas por meios exteriores, como os Estados nacionais. De
forma análoga também foi preciso que o espaço urbano emergisse em sua naturalidade, para
que se pudessem regulamentar seus fluxos. A naturalidade das cidades passava por
compreender os acontecimentos que se davam no meio urbano, como os miasmas, ou as
retenções de circulação em determinados pontos, e tratá-los como fenômenos naturais que
deveriam ser sanados ou freados; a cidade irrompia então não mais como espaço artificial,
mas como meio natural para a população e suas circulações. Para fluir naturalmente o
mercado deve se libertar de controles estatais, que só o fazem desfuncionar e se desajustar;
porém, essa naturalidade só é possível se a livre circulação for assegurada por todo um
aparato governamental que aja nas cidades, nas estradas, nas fronteiras e obviamente na
supressão e impedimento da revolta urbana ou popular, que sempre se configura como mal
maior a naturalidade do mercado.
A especificidade dos mecanismos apresentados pelos fisiocratas, como mecanismos de
segurança, pode ser ressaltado quando pensamos, mais uma vez, sua comparação com o
proposto pela disciplina. Foucault ressalta três ou quatro diferenças que seriam fundamentais
para compreendermos justamente aquilo que caracteriza o horizonte filosófico-político da
questão do tratamento da aleatoriedade. A primeira diferença diz respeito ao fato de que a
disciplina é sempre fechada em um espeço específico, ou seja é sempre centrípeta, e nesse
espaço delimitado “os mecanismos do seu poder funcionarão plenamente e sem
limites”(FOUCAULT, 2008, p.59). Já a segurança é centrífuga, pois seus mecanismos tendem
perpetuamente a ampliar seu raio de atuação. “Trata-se portanto de organizar ou, em todo
caso, de deixar circuitos cada vez mais amplos se desenvolverem”(FOUCAULT, 2008, p.59).
A segunda grande diferença se dá no âmbito de que as disciplinas por definição não podem
deixar nada escapar.
A disciplina tem essencialmente por função impedir tudo, inclusive e principalmente
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o detalhe. A segurança tem por função apoiar-se nos detalhes que não vão ser valorizados como bons ou ruins em si, que vão ser tomados como processos necessários, inevitáveis, como processos naturais no sentido lato, e vai se apoiar nesses detalhes que são o que são, mas que não vão ser considerados pertinentes, para obter algo que, em si, será considerado pertinente por se situar no nível da população. (FOUCAULT, 2008, p.60)
A Terceira diferença se dá no sentido de que o sistema soberano de legalidade
determina o proibido, as disciplinas são por definição, como vimos, aquelas que determinam o
prescritivo, já a segurança vai tratar não de proibir ou prescrever, mas “vai-se tomá-las [as
coisas] no plano da sua realidade efetiva”(FOUCAULT, 2008, p.61). A partir daí também
poderíamos ressaltar uma outra diferença no fato de que a lei trata do imaginário, tenta pensar
tudo o que pode vir a ser feito; a disciplina trata de complementar a realidade; enquanto que a
segurança age justamente na realidade dada, “fazendo os elementos da realidade trabalharem
uns em relação aos outros, graças e através de toda uma série de análises e de disposições
específicas”(FOUCAULT, 2008, p.62).
O que está em jogo então no tratamento do aleatório pela segurança é a implementação
do liberalismo, no sentido específico em que esse, consequentemente, acarreta a necessidade
de liberdade, uma liberdade num sentido bastante estreito, que porém é indispensável para o
próprio funcionamento dos mecanismos de segurança, como podemos ver na citação a seguir:
É que na verdade, essa liberdade, ao mesmo tempo ideologia e técnica de governo, essa liberdade deve ser compreendida no interior das mutações e transformações das tecnologias de poder. E, de uma maneira mais precisa e particular, a liberdade nada mais é que o correlativo da implantação dos dispositivos de segurança. Um dispositivo de segurança só poderá funcionar bem, em todo caso aquele de que lhes falei hoje, justamente se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no sentido moderno que essa palavra adquire no século XVIII: não mais as franquias e os privilégios vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de movimento, de deslocamento, processo de circulação tanto de pessoas como das coisas. (FOUCAULT, 2008, p. 63-64, grifo nosso)
NORMALIZAÇÃO ESPECÍFICA À SEGURANÇA
A terceira característica geral nos dispositivos de segurança, sobre a qual Foucault vai
se debruçar, é o processo de normalização em suas especificidades enquanto tratado pelo
sistema legal, pelas disciplinas e pela segurança, propriamente dita. Normalização é um
conceito recorrente na obra de Foucault que aparece na análise de diferentes processos, ora no
processo racista de “normalização da sociedade”(FOUCAULT, 2005, p. 73), ora tratado pelo
prisma da “normalização mental dos indivíduos”(FOUCAULT, 2001, p.146, tradução nossa)
ocorrida com a medicina social, o encarceramento e o arquipélago carcerário, normalização
como “controle policial espontâneo”(FOUCAULT, 2005, p.299) ou “a medicalização geral do
comportamento, das condutas, dos discursos e dos desejos”(FOUCAULT, 2001, p.189,
25
tradução nossa).
Mesmo que Foucault nos lembre que Hans Kelsen havia analisado a relação entre a lei
e a norma - tratando especificamente da influência de uma normatividade implícita, não
codificadas nas leis, na tomada de decisões jurídicas por parte dos magistrados (cf.
PFERSMANN, In: RAYNAUD et RIALS, 2008, p.508-514, tradução nossa) -, resta de
qualquer forma uma oposição fundamental entre os mecanismos soberanos e a norma, pois é
próprio da lei codificar, fazer da norma consuetudinária um código jurídico universalmente
aplicável e válido.
Se é verdade que a lei se refere a uma norma, a lei tem portanto por papel e função – é a própria operação da lei – codificar uma norma, efetuar em relação a norma uma codificação, ao passo que o problema que procuro identificar é mostrar como, a partir e abaixo, nas margens e talvez até mesmo na contramão de um sistema da lei se desenvolvem técnicas de normalização. (FOUCAULT, 2008, p.74)
A forma como a normalização lida com os princípios da soberania, são
definitivamente da ordem do enfrentamento e da incompatibilidade, e isso se ressalta nas
oposições que podemos levantar entre a lei e a norma, como encontramos principalmente em
Surveiller et punir, aonde encontramos que enquanto a norma se refere a um campo de
comparação e prescrição e busca homogeneizar os indivíduos; a lei se refere sempre a um
corpus de códigos que qualifica os atos individuais como permitidos ou proibidos e busca a
condenação.
Essa oposição entre a norma e a lei, pode transparecer mais claramente se tomarmos
por exemplo a crescente demanda por especialistas em tribunais. Para validar suas decisões o
sistema legal precisa recorrer a uma outra forma de discurso, exterior e independente dos
modos e dos alcances dos tribunais, que possua uma validação própria sob o manto da
cientificidade, para intermediar a afronta perpetua entre a mecânica da disciplina e o princípio
do direito.
O que quero dizer mais precisamente é que: eu creio que a normalização, as normalizações disciplinares vêm atacando cada vez mais contra o sistema jurídico da soberania e que, cada vez mais definitivamente, aparece a incompatibilidade de um com o outro; cada vez mais se faz necessário uma forma de discurso árbitro, uma sorte de poder e de saber cuja sacralização científica torne neutro. (FOUCAULT, 2001, p.188, tradução nossa)
Outra passagem que também evidencia esse mesmo movimento de fortalecimento dos
processos de normalização face aos processos jurídicos tradicionais, é a que se encontra a
seguir
Outra consequência desse desenvolvimento do biopoder é a importância crescente atribuída ao jogo da norma a expensas do sistema jurídico da lei … Eu não quero dizer que a lei desapareceu ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas sim que a lei funciona cada vez mais como uma norma e que a instituição
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judicial se integra mais e mais a um continuum de aparatos (médicos, administrativos, etc.) cujas funções são sobre tudo reguladoras. (FOUCAULT, 1999, p.189-190)
“A disciplina normaliza, e creio que isso é algo que não pode ser
contestado”(FOUCAULT, 2008, p.74). Aquilo que há de específico no processo de
normalização disciplinar, que pode ser contrastado com o processo da segurança, está no
processo de demarcação entre o normal e o anormal. Aquilo que delimita o que é normal nos
processos disciplinares é a norma, um série de prescrições que visam moldar o indivíduo para
uma otimização dos resultados esperados no momento de formulação da norma. É o indivíduo
que deve se adaptar a um modelo pré-concebido.
A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo ótimo que é constituído em função de certo resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em procurar tornar as pessoas, os gestos, os atos, conforme a esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na normalização disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma.(FOUCAULT, 2008, p.75)
O que temos portanto, é que, a normalização disciplinar é algo mais próximo de uma
normação propriamente dita, do que de uma normalização. O neologismo “normação”, visa
ressaltar que na normalização disciplinar o que ocorre de fato é uma adequação não a um
normal, mas a uma norma, esta sim primeira e fundamental.
A normalização específica aos dispositivos de segurança será tomada então, para ser
contrastada à normalização disciplinar, pela análise da questão da epidemia, e mais
especificamente, do problema da varíola nos meios urbanos dos séculos XVIII e XIX. O
problema da varíola é escolhido como exemplo para tratar da questão da normalização
porque, justamente seu tratamento historicamente se deu contrariando toda a racionalidade
médica da época. Com as técnicas de variolização ou, mais tarde, com a vacinação a ciência
médica se dobrava ao empirismo, uma vez que o sucesso prático desses métodos era
indiscutível, mesmo que seus mecanismos de funcionamento fossem desconhecidos e
inexplicáveis pelas teorias vigentes.
A técnica de variolização, embora estivesse fora da lógica médica corrente à época, se
beneficiou de alguns mecanismos que já se instauravam na época que podemos dizer que se
tratavam de mecanismos da ordem da segurança. De modo que dois suportes principais
tornaram possível o sucesso da variolização.
Primeiramente, claro, essa característica certa, generalizável, da vacinação e da variolização permitia pensar o fenômeno em termos de cálculo de probabilidades, graças aos instrumentos estatísticos que se dispunha. Nessa medida, pode-se dizer que a variolização e a vacinação beneficiaram-se de um suporte matemático que foi ao mesmo tempo uma espécie de agente de integração no interior dos campos de
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racionalidade aceitáveis e aceitos na época. (FOUCAULT, 2008, p.77)
A estatística era naquela época a única justificativa teórica da variolização, e somente
através das tabelas estatísticas podia-se averiguar a eficácia do método. É justamente esse
ganho estatístico que levará a generalização do método da inoculação, que “mesmo mortífera,
por matar crianças no berço, é preferível à varíola, que faz perecer adultos úteis a
sociedade”(MOULIN, La Vaccination anti-variolique, 1979 apud FOUCAULT, 2008, p.106
n.8). Mais uma vez vemos aparecer, emergir por trás da boa vontade e da neutralidade do
saber científico, o racismo de Estado, o caráter do desprezo à vida da biopolítica, onde se dá a
preferência a um grupo determinado na sociedade, no caso os indivíduos economicamente
produtivos. Temos então, frente a esses cálculos de mortalidade e morbidade, a prescrição aos
governantes que “será sempre geometricamente verdadeiro que o interesse dos Príncipes é
favorecer a inoculação”(BERNOUILLI, 1766 apud FOUCAULT, 2008, p.106 n.8). Por
“geometricamente verdadeiro” leia-se economicamente favorável às classes dominantes.
“O segundo fator foi o fato de que a variolização e a vacinação se integravam, pelo
menos de uma maneira analógica e por toda uma série de semelhanças importantes, aos
mecanismos de segurança”(FOUCAULT, 2008, p.77). A maneira analógica a que Foucault se
refere trata da questão relativa ao tratamento da escassez, onde é preciso que alguma forma de
escassez se dê, para que a escassez como flagelo maior possa ser controlada. A variolização
trata também do mesmo mecanismo, pois inocula-se uma certa forma de varíola para que a
anulação possa se dar, sem que ocorra a varíola em, todos os seus efeitos debilitantes. Temos a
mesma morfologia em ambos os mecanismos, mesma morfologia inclusive no caso das
perdas, aceitáveis/necessárias; se na escassez morrem os desprovidos de meios para
sobreviver com as oscilações dos preços dos víveres; na variolização morrem aqueles que não
produzem ainda a mais valia tão cara ao soberano, seja ele o príncipe ou o estado invisível.
“Ora, creio que através dessa prática tipicamente de segurança vemos esboçar-se um
certo número de elementos que são importantíssimos para a posterior extensão dos
dispositivos de segurança em geral”(FOUCAULT, 2008, p.77). Esses elementos são as noções
de caso, de risco, de perigo e de crise; são noções que serão fundamentais na análise dos
mecanismos contemporâneos de segurança. A noção de caso trata de uma forma de
individualização do fenômeno coletivo da doença, não sob a forma do caso individual, mas
como uma distribuição de casos numa população circunscrita tanto no tempo como no espaço.
Partindo da noção de caso, torna-se possível analisar a distribuição dos casos e
identificar grupos ou indivíduos, e determinar quais os riscos de mortalidade para cada grupo
específico, sejam grupos de faixas etárias, sejam de profissões, ou do lugar de residência.
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Noção de risco, portanto, que se relaciona aos casos específicos analisados face a uma média
populacional geral. A análise do risco reconhece zonas de alto risco, e também, zonas de risco
baixo, portanto atrelada também a noção de risco temos o fenômeno do risco elevado que
caracteriza-se como uma situação perigosa. Assim pode-se também identificar quais os
perigos relativos a varíola em cada caso, ou seja, quais os grupos que representam maior
perigo de mortalidade se contaminados. Um processo de multiplicação dos casos de varíola,
ou aumento substancial do contágio pode levar a uma situação de crise. “A crise é esse
fenômeno de disparada circular que só pode ser controlado por um mecanismo superior,
natural e superior, que vai freá-lo, ou por uma intervenção artificial”(FOUCAULT, 2008,
p.81).
Todos esses termos são centrais a forma como os mecanismos de segurança tratavam a
doença e que divergia completamente do tratamento disciplinar. A disciplina buscava tratar
cada um dos indivíduos contaminados e somente os contaminados, buscava também impedir o
contágio pelo contato, encarcerando os contagiosos para separá-los do convívio social. Já os
mecanismos de segurança não vão tratar a doença como algo que aflige o indivíduo doente,
sendo esse portanto o sujeito da ação sanadora; a ação dos mecanismos de segurança:
Vai consistir em levar em conta o conjunto sem descontinuidade, sem ruptura, dos doentes e não-doentes, isto é, em outras palavras, a população, e em ver nessa população qual é o coeficiente de morbidade provável, ou de mortalidade provável, isto é, o que é normalmente esperado, em matéria de acontecimento da doença, em matéria de morte ligada à doença, nessa população. (FOUCAULT, 2008, p.81)
São essas noções que possibilitam que analisemos o conjunto sem rupturas que vão
possibilitar não só descrever uma curva normal de mortalidade e contágio, mas na verdade
diversas curvas de normalidade que vão jogar umas com as outras em busca de uma curva de
normalidade global, em relação a qual as diferentes normalidades devem buscar sua
adequação. Agora sim podemos dizer que estamos tratando de uma normalização e não mais
de uma normação, como acontecia nos sistemas disciplinares.
A norma está em jogo no interior das normalidades diferenciais e a operação de normalização consiste em jogar e fazer jogar umas em relação às outras essas diferentes distribuições de normalidade. O normal é que é primeiro, e a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório. Logo, eu diria que não se trata mais de uma normação, mas sim, no sentido estrito de uma normalização. (FOUCAULT, 2008, p.83)
RECAPITULAÇÃO
As três primeiras características que analisamos trataram da cidade, da cidade como
novo paradigma central para o governo a partir do século XVII, ou seja, o problema do
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governo do espaço urbano, que já não podia mais ser contido dentro de muralhas, não podia e
de certa forma não havia mais utilidade para isso, visto que avanços bélicos tornavam as
muralhas instrumentos de defesa ultrapassados e ineficazes; com isso toda uma série de
problemas relativos a circulação de indivíduos indesejados surge, já que não se pode mais
fechar os portões da cidade a noite. Não existem mais portões ou muros que separem a cidade
do resto do território. Ao território se governa como a uma cidade, e a cidade agora é parte
não só integrante, mas central e vital para a manutenção de um governo economicamente
viável sobre um território. Toda uma nova série de problemas portanto relativos ao governo
das cidades.
Podemos de uma forma mais geral afirmar que todas as característica precedentes
trataram da cidade a partir do problema da circulação. “Circulação entendida, é claro, no
sentido bem amplo, como deslocamento, como troca, como contato, como forma de dispersão,
como forma de distribuição também”(FOUCAULT, 2008, p.84). Um problema
completamente diferente daquele que era colocado pela soberania, que tratava da manutenção
de um território, ou seja, da manutenção e não da circulação. Tínhamos portanto algo que
tratava apenas da segurança territorial, ou segurança do soberano; a tecnologia da segurança
propriamente dita, vai tratar sempre da segurança populacional. As técnicas de governo tratam
das circulações, ou seja, de incentivar as boas circulações que levem a população ao “bem
comum”, e ao mesmo tempo minimizar ou impedir as más circulações que levem a população
à revolta ou a morte.
Não mais estabelecer e demarcar o território, mas deixar as circulações se fazerem, controlar as circulações, separar as boas das ruins, fazer que as coisas se mexam, se desloquem sem cessar, que as coisas vão perpetuamente de um ponto a outro, mas de uma maneira tal que os perigos inerentes a essa circulação sejam anulados. Não mais segurança do príncipe e do seu território, mas segurança da população e, por conseguinte, dos que a governam.(FOUCAULT, 2008, p.85, grifo nosso)
Esse é um dos pontos principais que gostaríamos de ressaltar ao longo da dissertação,
a segurança da população não é a segurança do povo; a segurança da população é assegurada
apenas enquanto for útil a segurança dos que a governam, como por exemplo a lei dos pobres,
que citamos anteriormente, que assegura o bem-estar dos ricos. Voltaremos a esse ponto após
apresentarmos os elementos para a compreensão da genealogia da tecnologia de segurança.
Toda liberdade de circulação de mercadorias, ideias, pessoas, etc, não é fruto de uma
benfeitoria aos indivíduos por parte de governos preocupados e interessados. Interessados
sim, mas por uma escolha estratégica para melhor governar essa liberdade que aparece ao
mesmo tempo como ideologia e técnica de governo. “Um dispositivo de segurança só poderá
funcionar bem, […] se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no sentido moderno”
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(FOUCAULT, 2008, p.63). O sentido moderno de liberdade é justamente a liberdade
entendida como livre deslocamento, circulação de pessoas e coisas, o Liberalismo.
Esses mecanismos de segurança, que de alguma forma, trataram todos de problemas
relativos às cidades, de problemas de circulação, têm uma terceira característica em comum
que é o de tratarem de processos físicos ou naturais, e não de imposições artificiais. O próprio
modo de funcionamento desses mecanismos difere do modelo arcaico de obediência, onde a
relação de dá entre uma vontade superior e aqueles que lhe são submissos. “Não é ao eixo da
relação soberano-súditos que o mecanismo de segurança deve se conectar[...].Ele se conecta
aos processos que os fisiocratas diziam físicos, que poderíamos dizer naturais”(FOUCAULT,
2008, p.86). Trata-se de fazer que os processos naturais funcionem, aconteçam e se
relacionem entre si, de modo que sua anulação, ou frenagem se dê, ou de forma natural, ou,
em ultimo caso, através de alguma intervenção artificial.
Um quarto ponto a ser levantado em relação aos processos de segurança seria que esse
mecanismo que visa controlar a realidade mesma dos acontecimentos, difere em numero,
gênero e grau dos mecanismos da soberania. Não se trata aqui de uma ressignificação do
panóptico, a utopia, de vigilância exaustiva, da soberania e de controle total sobre todos os
atos e gestos de um espaço. “E o governo das populações é, creio, algo totalmente diferente
do exercício de uma soberania sobre até mesmo o grão mais fino de comportamentos
individuais. Temos aí duas economias de poder que são, parece-me, totalmente diferentes”
(FOUCAULT, 2008, p.87). Portanto se em seu curso precedente, Em Defesa da Sociedade,
Foucault apontava as diferenças entre a soberania e a disciplina, temos agora a diferença não
só entre a segurança, ou regulamentação e a disciplina, mas também uma diferença ainda mais
radical que seria aquela entre a segurança e a soberania.
Portanto assim como para o desenvolvimento das disciplinas foi necessário que a
soberania funciona-se como avatar de dominação, escondendo o caráter de dominação e de
exercício efetivo de poder das disciplinas em si mesmas. Também os processos de segurança,
que implicam órgãos complexos de centralização e coordenação, só se tornam possíveis a
partir do momento em que encontramos uma população devidamente disciplinada, para que o
caráter de dominação dos mecanismo de segurança só apareça em casos marginais, ou seja, a
repressão só se abate sobre aqueles que fogem não mais à norma, propriamente dita,, mas à
normalidade estabelecida pelas estatísticas calculadas em uma determinada população.
EMERGÊNCIA DA POPULAÇÃO
Temos agora a emergência dessa nova personagem política, novo campo de atuação da
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política, a população. A quarta e última característica geral dos mecanismos de segurança, e,
como dito acima, o movimento mais importante da segurança em relação às outras
modulações de governo, isto é, a diferença mais fundamental entre a segurança e a soberania e
as disciplinas.
Um personagem novo, que não havia, de alguma forma, sido percebido até o século
XVIII, oque não quer implicar que nunca se havia tratado do problema da população até esse
período, mas que a forma como o problema era colocado era diferente do que se está
propondo a partir de então. Tradicionalmente a população era entendida de forma negativa em
oposição ao conceito de depopulação, ou seja, após uma catástrofe qualquer, que leve a morte
de um grande contingente em uma região determinada ocorre uma depopulação, ou uma
desertificação e a população é o ato, a ação de repopular, repovoar a região, portanto a
população era tida como um processo, ou um “movimento”(FOUCAULT, 2008, p.88). De
modo positivo a população era tida como um dos elementos constitutivos da medida do poder
de um soberano, isto é, um soberano poderosos é aquele que tem vastas terras, grandes
riquezas e abundante população. A população entrava no cálculo pois uma grande população
significa, um grande exército, grandes cidades e, logo, grandes mercados. Analisaremos esse
ponto mais a frente ao tratar do desenvolvimento das artes de governar.
Em nenhum dos casos porém, temos um uso do termo população como um campo
dotado de natureza própria, ou seja, de variação e constância. Essa independência da
população só foi possível com o desenvolvimento da demografia, e o surgimento das tabelas
de mortalidade, natalidade, etc. Num primeiro momento porém essas tabelas de mortalidade
apenas eram aplicadas em casos de depopulação, isto é, em casos em que grande número de
habitantes morriam. “Era em relação a uma mortalidade dramática que se colocava a questão
de saber o que é a população e como se poderá repovoar”(FOUCAULT, 2008, p.89).
Essas mudança no trato da população se dá a partir do século XVII, época que se
caracterizou pelo mercantilismo que “não é simplesmente uma teoria econômica, mas é
também uma prática política que visa regular as correntes monetárias internacionais, o fluxo
correspondente de mercadorias e as atividades produtoras da população”(FOUCAULT, 2001,
p.212, tradução nossa), isto é, um saber politico que concerne a gestão da coletividade
humana. Essas práticas se caracterizavam pela enfase na intervenção estatal na economia
visando um aumento nas exportações e restrição de importações, que tinham por objetivo
aumentar as reservas de ouro dos Estados nacionais para possibilitar o financiamento dos
exércitos, alterando a correlação de forças entre os Estados.
A população passa a ser um elemento que condiciona todos os outros, pois é ela que
32
garante braços tanto para a agricultura, quanto para a manufatura, e uma abundancia de
população possibilita baixos salários, que possibilitam maior competitividade e mais
rentabilidade. A população se encontrava no centro de um discurso multiforme e
extremamente visível, sobre o valor econômico da reprodução humana. Em outras palavras,
era “a população como força produtiva, no sentido estrito do termo, a preocupação do
mercantilismo […] contanto é claro que essa população fosse efetivamente adestrada,
repartida, distribuída, fixada de acordo com mecanismos disciplinares”(FOUCAULT, 2008,
p.90-91).
A concepção mercantilista de população, de alguma forma, ainda não se assemelha a
concepção contemporânea de um a população enquanto dado dotado de natureza própria, para
os mercantilistas a população ainda tratava da “coleção de súditos de um soberano, aos quais
se podia, precisamente, impor de cima, de uma maneira inteiramente voluntarista, certo
número de leis, de regulamentos”(FOUCAULT, 2008, p.91). São os fisiocratas, que
tradicionalmente foram taxados de antipopulacionistas, que vão efetivamente redimensionar a
questão da população. Para os fisiocratas devia-se tratar das questões da população por
intermédio das riquezas, como coloca Quesnay: “o aumento da população depende
previamente do aumento das riquezas”(QUESNAY, verbete “Homes”, em F. Quesnay et la
physiocratie, t. II, p. 549 apud FOUCAULT, 2008, p.109, n.19). Esse atrelamento da
população à riqueza, aparece como uma inversão da problemática mercantilista, para quem o
aumento da riqueza dependia do aumento da população; com os fisiocratas temos o avesso
dessa fórmula, como podemos ver na passagem: “Mas comecem por fazer os rendimentos da
terra crescer: os homens, chamados de certo moda à vida pela abundância dos salários, se
multiplicarão proporcionalmente, por conta própria; eis o verdadeiro populacionismo”
(WEULERSSE, Les Physiocrates, p. 252-253 apud FOUCAULT, 2008, p.109, n.19).
São os fisiocratas, que longe de serem antipopulacionistas, vão tratar da população
como uma nova figura política, e não mais como a coletividade de súditos ou de sujeitos de
direito. Essa passagem é A população agora “vai ser considerada um conjunto de processos
que é preciso administrar no que têm de natural e a partir do que têm de
natural”(FOUCAULT, 2008, p.92). Essa natureza da população aparece então como um limite
intransponível à ação do governante, pois a relação da população com o soberano não é da
ordem da obediência. Os mecanismos tradicionais da soberania e das disciplinas não se
aplicam mais no nível da população, esta apresenta uma opacidade à vontade do soberano,
como uma espessura, a qual a ação do soberano não penetra por inteiro. Justamente como a
vontade soberana não pode comandar as chuvas e as secas, também não pode comandar uma
33
população. “Um fenômeno de natureza que não pode se mudar como que por decreto, o que
não quer dizer entretanto que a população seja uma natureza inacessível e que não seja
penetrável, muito pelo contrário”(FOUCAULT, 2008, p.93). É necessário um novo
mecanismo de controle que tangencia essa opacidade e essa espessura, para atingir a
população e poder governá-la.
O movimento da população depende de um conjunto de variáveis, tais quais recursos,
clima, hábitos, valores morais, e mesmo “as leis a que é submetida”(FOUCAULT, 2008,
p.92), e obviamente também os tipos de conduta, de forma que a população está sempre
inserida numa dinâmica complexa e multiforme.
Tudo isso mostra com clareza que, nesse pensamento, a população não é essa espécie de dado primitivo, de matéria sobre a qual vai se exercer a ação do soberano, esse vis-à-vis do soberano. A população é um dado que depende de toda uma série de variáveis que fazem que ela não possa ser transparente à ação do soberano, ou ainda, que a relação entre a população e o soberano não possa ser simplesmente da ordem da obediência ou da recusa da obediência, da obediência ou da revolta. Na verdade, as variáveis que depende a população fazem que ela escape consideravelmente da ação voluntarista e direta do soberano na forma da lei. (FOUCAULT, 2008, p.93)
Por outro lado é possível mexer em todas essas variáveis através de táticas calculadas
e refletidas, graças a um certo saber é possível conhecer e transformar aquilo que se apresenta
como um dado natural sobre a forma de fenômenos relativos à morte, ao nascimento, À
migração, entre outros. Temos aí aquilo que Foucault chamou de “naturalidade penetrável da
população”(FOUCAULT, 2008, p.94); e os meios desenvolvidos para lidar e alterar essa
naturalidade é o que constitui a grande mutação dos métodos de poder em relação à
população.
Podemos dizer que a descrição quantitativa e objetivante de uma coletividade humana
como população permite estruturar politicamente essa coletividade mesma, entramos então
nos domínios da biopolítca, e nos meandros das tecnologias de segurança. A população se
tornou agora uma realidade inegável, e um campo indispensável para se pensar a política
A população não é uma simples invenção do poder. A população como realidade ontológica não existe a não ser em relação a uma operação de pura objetivação, pois enquanto que o demógrafo, por exemplo, mede a duração média da vida em uma população dada, ele também dá expressão à qualidade de vida real ou estimada. Assim longe de ser um objeto natural constituído de variáveis puramente demográficas, a população é um objeto complexo resultado de uma construção simultaneamente política e social, onde intervem múltiplas instituições, grupos e indivíduos. (Population In: Dictionnaire polyphonique, PALTRINIERI, Luca. Paris: Portail Michel Foucault, 21 março 2011. streaming disponível em: http://michel-foucault-enseignement.org/?Population&lang=fr, tradução nossa )
Outro elemento que marca essa naturalidade da população, além de suas variáveis
ambientais, aparece no fato de que há na população um motor de ação único da população
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como um todo: o desejo. Apesar de ser formada por indivíduos com diferentes vontades, e que
não se pode prever exatamente, há além dessa aparente disparidade uma invariante, um desejo
que pode vir a gerar o interesse coletivo da população se for deixado agir dentro de uma
limitação. “Produção do interesse coletivo pelo jogo do desejo: é o que marca ao mesmo
tempo a naturalidade da população e a artificialidade possível dos meios criados para
geri-la”(FOUCAULT, 2008, p.95). É através da manipulação dos desejos dos indivíduos que
se poderá penetrar a opacidade da população, todo um jogo de construção de desejos e
também de impedimento de proliferação de desejos conflitantes com os interesses dos
governantes. Temos aqui toda uma economia do desejo que começa a se desvelar e que levará
a criação de mecanismos específicos de manipulação das opiniões e desejos.
Uma outra diferença que se dá entre as modalidades de gestão da soberania e da
segurança se mostra quando pensamos que o soberano é aquele que pode e deve dizer não ao
desejo, em contrapartida o problema dos que governam deve justamente ser o de dizer sim a
esse desejo, dizer sim pautado por questões utilitaristas, isto é, o governo das populações
passa por uma afirmação do desejo, dentro de certos limites, desde que, e para que esse desejo
crie o interesse geral da população; interesse supostamente natural, que é gerado dentro da
artificialidade dos meios criados para governá-lo. Donde podemos entender a importância da
afirmação a seguir, que se encontra no manuscrito, porém não nos áudios gravados ou no
corpo do texto editado: “O importante, também, é que a 'filosofia utilitarista' é um pouco para
o governo das populações o que a Ideologia era para as disciplinas” (FOUCAULT, 2008,
p.96*). É a utilidade de uma determinada ação que vai servir como elemento de valoração
desta, não se está mais no campo das ideologias, onde se esperava uma coerência, mas num
campo onde apenas a utilidade, o valor econômico de uma ação e seu efeito são levados em
conta.
Uma terceira forma de aparecimento da naturalidade da população ocorre “na
constância dos fenômenos que se poderia esperar que fossem variáveis, pois dependem de
acidentes, de acasos, de condutas individuais, de causas conjunturais”(FOUCAULT, 2008,
p.97). Essa constância foi descrita pela primeira vez por John Graunt, em 1662, na publicação
Natural and political observations made upon the bills of mortality. Nesse livro Graunt
demonstra sua perplexidade ao averiguar que, ao comparar as taxas de mortalidade de
diferentes anos, não apenas as taxas de mortalidade por doenças se mantinham nas mesmas
proporções ano após ano, mas mesmo as mais dependentes de acasos como o suicídio ou
afogamento se repetem ano após ano. E temos com “a pertinentização de efeitos próprios à
população […] um fenômeno muito importante: é o ingresso, no campo das técnicas de poder,
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de uma natureza”(FOUCAULT, 2008, 98).
A análise dessas tabelas demográficas, nos possibilita enxergar fenômenos relativos
apenas ao nível da população, fenômenos reais e inegáveis, que apontam para um
independência relativa do nível da população, do nível dos sujeitos jurídicos. Essa figura da
população que surge a partir de então não é a coletividade de indivíduos sobre os quais se
pode fazer valer a vontade de um soberano, é algo novo cuja natureza deve ser compreendida
não como subordinada à qualquer outra instância superior à ela própria.
Em outras palavras, no caso da população tem-se algo bem diferente de uma coleção de sujeitos diferenciados por seu estatuto, sua localização, seus bens, seus cargos, seus ofícios; tem-se um conjunto de elementos que, de um lado, se inserem no regime geral dos seres vivos e, de outro, apresentam uma superfície de contato para transformações autoritárias, mas refletidas e calculadas.(FOUCAULT, 2008, p.98)
O surgimento da população como “superfície de contato para transformações” nos leva
a pensar essas novas tecnologias de segurança como modos de governo das populações.
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GOVERNAMENTALIDADEGOVERNAMENTALIDADE
No exame mais minucioso da questão da segurança, nos remetemos em diversos
momentos ao problema do governo, da governamentalidade, do governo da vida e do governo
das populações em especial. É preciso que delimitemos melhor a questão específica do
governo e da governamentalidade, para que possamos avançar em nosso intuito de entender o
panorama atual das tecnologias de segurança.
A noção de governo, tem uma centralidade indubitável na obra de Foucault, de certa
maneira podemos dizer que a problemática do governo perpassa toda a obra do filósofo. O
próprio Foucault ao definir a si mesmo, sob o pseudônimo de Maurice Florence para o
Dictionnaire de philosophes de Denis Huisman, aponta a centralidade dessa noção, ao
incluí-la naquilo que o próprio define como seu “projeto geral” que consistiria em analisar
diferentes temas “como um modo de experiência historicamente singular na qual o sujeito é
objetivado, para/por ele mesmo e para os/pelos outros, através de certos procedimentos
precisos de governo”(FOUCAULT, 2001, p. 1455,tradução nossa, grifo nosso)*. Partindo
somente dessa passagem já podemos ter uma noção da importância do conceito de governo na
obra de Foucault, porém podemos também trazer outras citações como Edgardo Castro,
segundo quem “as noções de governo e de governamentalidade nos permitem compreender
por que é o sujeito, e não o saber ou o poder, o tema geral das investigações de
Foucault”(CASTRO, 2009, p.189), tese essa também levantada pelo próprio filósofo quando
em 1982 ao fazer um balanço de seus últimos 20 anos de pesquisa afirma que “não é portanto
o poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral das minhas pesquisas”(FOUCAULT, 2001,
p.1042, tradução nossa).
É importante que ressaltemos logo de partida que ao tratar da questão do governo,
Foucault em suas pesquisas não objetivava fazer uma simples análise pelo viés de um poder
soberano centralizado, ou do Estado de Direito. Também nunca houve a pretensão de lançar
as bases de uma teoria geral do governo, das estruturas institucionais do governo ou mesmo
do poder de forma geral. A leitura de Foucault se aproxima muito mais de uma analítica , uma
investigação mais pontual, onde o que está problematizado é a a relação entre poder político e
sociedade, que se desenrola por técnicas de controle e vigilância contínua e permanente; o que
* A tradução permite a dupla interpretação, uma vez que o original se utiliza do termo “pour”. Edgardo Castro em seu Vocabulário opta pela tradução “para ele mesmo e para os outros”, porém a nós parece que essa tradução não dá a devida dimensão ao papel ativo do sujeito no processo de assujeitamento, deixando margem para a interpretação essencialista onde toda forma de assujeitamento é fruto de um poder externo, tese questionada e combatida por Foucault e diversos de seus textos em que trata do poder. Pelos motivos expostos optamos pela inclusão de ambas as possibilidades.
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também não quer dizer que haja uma total desvinculação com o poder estatal, muito pelo
contrário.
Todas as pesquisas de Foucault relativas ao poder, às relações de poder, à microfísica
do poder, ou como quer que as chamemos, estão na verdade problematizando o sujeito, e mais
especificamente os modos pelos quais se constituem os sujeitos no ocidente. Aquilo que faz a
ligação direto entre o poder e os sujeitos são justamente os procedimentos de governo.
Foucault se utiliza da noção de governo, por enxergar problemas com os instrumentos
teóricos clássicos de análise do poder, tais quais a repressão e a própria noção de soberania.
O poder, no fundo, é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários, ou do compromisso de um frente ao outro, que da ordem do 'governo' […] O modo de relação próprio do poder não se deve buscar do lado da violência e da luta, nem do lado do contrato e da ligação voluntária (que não podem ser mais do que instrumentos): mas do lado desse modo de ação singular – nem guerreiro nem jurídico – que é o governo. (FOUCAULT, 2001, p.1056, tradução nossa).
Um primeiro passo para entrarmos na problemática do governo, é buscar nos
situarmos na própria história da palavra, isto é, tentar retraçar os caminhos e desvios
semânticos que constituíram o conceito como hoje o compreendemos. A noção de governo
não teve sempre o mesmo sentido que hoje, “a palavra 'governar', antes de adquirir seu
significado propriamente político a partir do século XVI, abrange um vastíssimo domínio
semântico”(FOUCAULT, 2008, p.164).
Em sua etimologia a palavra governo deriva do latim guberno que possui ligação com
o grego antigo κυβερνάω, que por sua vez é formada por νάω (navegar) e, κυβαία (navio),
significando literalmente navegar o navio. De onde podemos entender que boa parte de seu
uso mais arcaico fosse alusão à temas náuticos, como podemos ver logo na primeira definição
dada por Godefroy em seu “Dictionnaire de l'ancienne langue française et de tous ses
dialectes du IXe au XVe siècle”, utilizado por Foucault para referências no curso de 1978
(FOUCAULT, 2008, p.177, n.11). “se governar, se dirigir, falando de marinha”(GODEFROY,
p.325).
Visando compreender a polissemia da palavra no período em que já se desassociara de
suas origens marinhas, porém ainda não adquirira seu caráter propriamente político,
retomemos agora a continuação da passagem citada anteriormente:
Vemos que a palavra “governar”, antes de adquirir seu significado propriamente político a partir do século XVI, abrange um vastíssimo campo semântico que se refere ao deslocamento no espaço, ao movimento, que se refere à subsistência material, à alimentação, que se refere aos cuidados que se podiam dispensar ao indivíduo e à cura que se pode lhe dar, que se refere também ao exercício de um mando, de uma atividade prescritiva, ao mesmo tempo incessante, zelosa, ativa e sempre benévola. Refere-se ao controle que se pode exercer sobre si mesmo e sobre os outros, sobre seu corpo, mas também sobre sua alma e sua maneira de agir. E,
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enfim, refere-se a um comércio, a um processo circular ou a um processo de troca que passa de um indivíduo a outro.(FOUCAULT, 2008, 164)
O que se nota nessa multiplicidade de sentidos é que em nenhum dos casos podemos
falar de um governo do Estado, e esse é um ponto de mutação fundamental na concepção de
governo e que se dá nesse período que vai do século XVI ao XVIII. É o surgimento dessa
nova concepção de governo como arte de governar que nos parece extremamente interessante,
pois é a partir desse fenômeno que podemos “delinear as linhas de desenvolvimento do
Estado moderno ou o que Foucault chama de formação do Estado
governamentalizado”(CASTRO, p.191).
Toda essa questão do governo eclode a partir do século XVI, quando o foco dos
tratados políticos começa a se desviar do então tradicional modelo de conselhos ao príncipe
para se focar nesse algo novo que leva o nome de 'arte de governar'. Essas novas artes de
governar não se restringem a questões políticas, mas abrangem diferentes campos e sob
múltiplos aspectos. É somente num segundo momento que a questão passa a girar em torno
do problema de como governar um Estado.
Essa nova problemática emerge nesse período inserido nos movimentos que então se
desenrolavam, em especial dois movimentos são mais relevantes para o processo. De um lado
ao longo do século XVI passava-se pelo processo de dissolução dos antigos poderes feudais
em privilégio de uma nova estrutura centralizada de “Estados territoriais, administrativos,
coloniais”(FOUCAULT, 2008, p.118). Ao mesmo tempo os movimentos da Reforma
colocavam em voga a problematização do governo das almas. O problema principal que
desponta nesse período é justamente como ser governado, por quem, para quais fins e por
quais meios.
Um texto central que estará sempre em questão em toda essa literatura da arte de
governar, do período que vai de meados do século XVI ao final do século XVIII, é, como nos
aponta Foucault, O Príncipe de Maquiavel. Toda essa literatura que Foucault vai estudar então
se caracteriza por uma oposição, explícita ou implícita, a Maquiavel.
Em linhas gerais, digamos que O Príncipe de Maquiavel, tal como aparece na filigrana desses diferentes tratados, explícito ou implícitos, fadados ao anti-Maquiavel, aparece essencialmente como um tratado de habilidade do príncipe em conservar seu principado. Pois bem, creio que é isso, esse tratado de habilidade do príncipe, do savoir-faire do príncipe, que a literatura anti-Maquiavel quer substituir por algo diferente e novo, relativamente a isso, que é uma arte de governar: ser hábil em conservar seu principado não é, em absoluto, possuir a arte de governar. (FOUCAULT, 2008, p.123)
As críticas destinadas a Maquiavel por esses diversos autores são divididas em três
tópicos principais por Foucault. Primeiramente o príncipe se encontra em relação de
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exterioridade em relação ao seu principado, ele não forma parte dele, o recebeu de alguma
forma. Em segundo lugar não há uma forte relação entre o príncipe e a soberania, uma vez
que por um lado ele está constantemente ameaçado externamente por outros príncipes, e por
outro não há nenhuma razão a priori para que seus súditos o obedeçam. O terceiro e último
tópico destacado por Foucault é que o objetivo do exercício do poder do príncipe se restringe
a manter seu principado, e seus súditos como possessão sua.
O primeiro desses autores que Foucault vai estudar mais detalhadamente é Guillaume
de La Perrière, e seu livro O espelho político, contendo diversas maneiras de governar e
policiar as repúblicas. A primeira distinção relevante deste autor com a obra de Maquiavel se
dá porque para La Perrière o “governador” diferentemente do príncipe não é uma figura única
em seu território, o governo é constituído por práticas múltiplas desenvolvidas por múltiplos
atores. O que une todas essas práticas é que não se encontram em relação de exterioridade ao
Estado, é dentro do Estado que o pai governa a família, que o professor governa os alunos,que
o juiz governa os réus, que o superior governa o subalterno. “Há, portanto, ao mesmo tempo,
pluralidade das formas de governo e imanência das práticas de governo em relação ao Estado,
multiplicidade e imanência dessa atividade, que a opõem radicalmente à singularidade
transcendente do príncipe de Maquiavel”(FOUCAULT, 2008, p.124).
Tratamos agora de uma multiplicidade de formas de governo que se inserem na lógica
estatal, porém há uma forma de governo que sobressaí às outra que é justamente o governo do
Estado. Para ilustrar essa especificidade e essa interconexão do governo do Estado com todas
as outras formas de governo, Foucault recorre à obra de François de La Mothe Le Vayer, em
especial ao seu A Economia do Príncipe. No qual o autor distingue entre três domínios
distintos do governo: a moral, a economia e a política. Apesar da distinção não há uma
separação abrupta entre elas, mas sim uma continuidade essencial. Uma continuidade
essencial que se caracteriza por uma duplicidade constituinte, uma vez que há uma
continuidade ascendente e uma continuidade descendente. Essa duplicidade é fundamental
para que possamos compreender os pilares da questão do governo na atualidade.
A continuidade ascendente se caracteriza por um processo pedagógico, aonde quem
deseja governar o Estado deve, primeiramente, “saber governar a si mesmo; depois, num
outro nível, governar sua família, seu bem, seu domínio; por fim chegará a governar o
Estado”(FOUCAULT, 2008, p.125). É preciso que o governante do Estado seja antes uma
pessoa capacitada a se auto-governar, donde o estudo da moral e da ética serem o primeiro
passo da pedagogia do príncipe proposta por La Mothe Le Vayer. Sabendo se governar a si
mesmo, torna-se possível que o príncipe administre devidamente sua família e seus bens, e
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somente após é que o bom governo do Estado pode ser alcançado. Não há portanto ruptura ou
exterioridade do príncipe em relação àqueles a quem governa, o príncipe é parte integrante da
sociedade que almeja governar e deve também passar por instâncias inferiores de governo
antes de poder administrar o Estado.
É a pedagogia do príncipe que vai assegurar portanto essa continuidade ascendente das diferentes formas de governo. Inversamente, vocês têm uma continuidade descendente, no sentido de que, quando um Estado é bem governado, os pais de família sabem bem governar sua família, suas riquezas, seus bens, sua propriedade, e os indivíduos, também, se dirigem como convém.(FOUCAULT, 2008, p.126)
Esse encadeamento de diferentes níveis de governo apresenta uma possibilidade de
análise sob um novo paradigma e faz despontar aquele que depois analisaremos como um dos
pilares do governo contemporâneo. Como podemos ver na própria continuidade da passagem
supracitada, a linha descendente aonde o bom governo do Estado tem reflexos até na conduta
dos indivíduos, passa então a ser designada como polícia. “A polícia assegura a continuidade
descendente [das formas de governo]”(FOUCAULT, 2008, p.126). Polícia será para nós,
como veremos, um conceito de extrema importância para compreendermos a biopolítica e a
segurança.
Outro ponto crucial dessa análise é que nesse encadeamento entre diferentes níveis de
governo o que desponta é a economia como peça central dessa continuidade. Tanto na linha
ascendente, quanto na descendente é a economia que faz a ligação entre o privado e o público.
A arte de governar que despontava então vai buscar justamente entender como introduzir a
economia, como governo para o bem comum, na gestão geral do Estado, questão central, que
será recorrente em toda essa literatura, passando por Rousseau e Quesnay. A pergunta que a
arte de governar deverá responder, para assegurar o bom governo (o governo econômico), é
“como introduzir essa atenção, essa meticulosidade, esse tipo de relação do pai de família
com sua família na gestão do Estado? A introdução da economia no seio do exercício político,
isso é, a meu ver, que será a meta essencial do governo”(FOUCAULT, 2008, p.126).
Com a introdução da economia na política temos uma mudança que será revisitada em
diverso momentos pelo autor, desde os fisiocratas até as suas análises posteriores do
liberalismo. Esse casamento representa sem dúvida uma passagem essencial na genealogia do
Estado contemporâneo, a própria essência do governo na sua forma atual é totalmente voltada
às questões econômicas.
A palavra “economia" designava uma forma de governo no século XVI, e no século XVIII designará um nível de realidade, um campo de intervenção para o governo, através de urna série de processos complexos e, creio, absolutamente capitais para nossa história. Eis portanto o que é governar e ser governado.(FOUCAULT, 2008, p.127)
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Outra série de observações, sobre o texto de La Perrière se foca seguinte definição de
governo: “Governo é a correta disposição das coisas, das quais alguém se encarrega para
conduzi-las a um fim adequado”. As observações se dividem em dois momentos,
primeiramente acerca das “coisas”, ou seja, os objetos do governo; em segundo lugar Foucault
analisa a questão dos fins das técnicas de governo.
Com relação à questão das “coisas”, isto é, o fato de que a prática governamental se dá
sobre coisas. O objetivo dessa afirmação não é o de contrastar homens e coisas, mas sim o de
contrastar o território com esse complexo constituído por homens e coisas. A ação de governar
não se dá primeiramente sobre um território, mas sim sob as relações dos homens com as
coisas, isto é, “em seus vínculos, em suas imbricações com essas coisas que são as riquezas,
os recursos, os meios de subsistência, o território, é claro, em suas fronteiras, com suas
qualidades, seu clima, sua sequidão, sua fecundidade”(FOUCAULT, 2008, p.128).
A afirmação se que se governa não um território, mas coisas, pode ser facilmente
verificada pela constante metáfora do barco, que já apresentamos anteriormente, ou a noção
de governo da família, onde deve se governar diversas coisas para se assegurar o bem estar
geral na família.
É toda essa gestão geral que caracteriza o governo e em relação a qual o problema da propriedade fundiária, no caso da família, ou a aquisição da soberania sobre um território, no caso do príncipe, não são mais que elementos relativamente secundários. O essencial, portanto, é esse complexo de homens e de coisas, é isso que é o elemento principal, o território – a propriedade, de certo modo, é apenas uma variável.(FOUCAULT, 2008, p.129)
O importante desta passagem é que ela clarifica a diferença de elementos da arte de
governar, para as técnicas maquiavélicas de soberania. Ao mesmo tempo a passagem também
aponta uma diferenciação das análises da arte de governar para a metodologia marxista, ao
afirmar que a propriedade figura como uma variável secundária nessa metodologia.
O segundo destaque que Foucault faz à passagem de La Perrière, é relativa à questão
dos fins, isto é, o governo tem uma finalidade definida, sempre há um objetivo que se almeja
com a técnica governamental. A soberania também a sua maneira se propunha um fim, porém
essa finalidade da soberania era circular, o soberano exerce a soberania em nome de um bem
comum, mas o bem comum é a obediência às leis da soberania, personificada na pessoa do
soberano, isto é, o soberano exerce seu poder em nome da obediência ao seu poder, tautologia
da autoridade.
A fórmula de La Perrière coloca as coisas de uma nova maneira, primeiramente
deve-se conduzir diversas coisas aos seus fins adequados, logo há uma multiplicidade de fins,
da mesma forma que há uma multiplicidade de coisas. Outra diferença em relação à
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soberania, é que o governo vai se propor a utilizar táticas, ao invés de trabalhar com leis. Essa
é uma diferença central para compreendermos a diferença fundamental, ou segundo Foucault
“uma ruptura fundamental”(FOUCAULT, 2008, p.132) entre o governo e a segurança, face à
soberania.
Ainda no texto de La Perrière, depois de analisar a analogia do pai de família, o
problema do governo das coisas, e o problema dos fins do governo, Foucault aponta ainda um
quarto e último ponto de destaque nas diferenças entre a arte de governar e a soberania. Para
La Perrière “Todo governo de Reino ou República deve ter em si, necessariamente, sabedoria,
paciência e diligência”(G. de La Perrière, f. 23R, apud FOUCAULT, 2008, p.152, n.28). O
governante deve ter paciência, isto é, deve ser capaz de governar sem precisar da espada;
sabedoria, isto é, saber como dispor as coisas corretamente; diligência, isto é, deve exercer
sua função à serviço dos governados.
Essa arte de governar não se restringe a um problema de enfrentamento teórico face à
soberania, mas constitui uma mudança no paradigma de gestão estatal. Esses textos das artes
de governar apresentam uma nova abordagem aos então tradicionais livros de conselhos ao
príncipe, ou Espelhos, como eram chamados esses tratados desde Cícero e por toda Idade
Média. Os Espelhos tradicionais focavam-se em conselhos éticos ao soberano; o próprio La
Perrière explicita uma diferença já no prefácio de se Espelho político: “é que, assim como
num espelho aquele que nele se mira e olha não vê tão somente sua face mas vê por linhas
reflexa a maior parte da sala ou quarto onde estiver”(le mirroir politique, f. 11V, apud
SENELLART, 2006).
Não são mais os conselhos monotemáticos onde o príncipe aparece transcendente, mas
agora o príncipe deve tomar consciência do lugar aonde está, do território que lhe cabe. Essa
nova problemática fica mais evidente no texto de Fénelon intitulado Examen de Conscience
sur les devoir de la royauté, publicado em 1735 para o duque da Borgonha.
Não basta saber o passado, é preciso conhecer o presente. Sabei o número de homens que compõe vossa nação; quantos homens, quantas mulheres, quantos lavradores, quantos artesãos, quantos médicos, quantos comerciantes, quantos padres e religiosos, quantos nobres e militares? O que se diria de um pastor que não soubesse o número de seu rebanho? É fácil a um rei saber o número de seu povo: basta que o queira. Ele deve saber se há lavradores o bastante; se há, proporcionalmente, tantos artesãos, tantos médicos, tantos militares à cargo do Estado.(Examen de la conscience d'un roi, §9, FENELON. Paris: 1734. disponível em:http://www.recherche-fenelon.com/page-12901-examen-conscience-devoirs-royaute.html, tradução nossa)
Um conhecimento matemático começa a se desenvolver e as questões econômicas
passam a ter um tratamento especial, é a ciência do Estado e a estatística que substituem a
ética. O conselho não se restringe ao conhecimento dos números, como já podemos prever
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pela utilização do conceito de pastor, há também uma busca pelo conhecimento íntimo dos
cidadãos
Ele deve conhecer a índole dos habitantes de suas diferentes províncias, seus principais costumes, suas franquias, seus comércios, e as leis de seus diversos tráficos dentro e fora do reino. Deve conhecer os diversos tribunais estabelecidos em cada província, os direitos dos impostos, os abusos desses impostos, etc.(idem)
Temos com o advento da arte de governar o surgimento da estatística como ciência do
Estado e também temos o surgimento, dentro das novas monarquias administrativas, da figura
do ministro e dos aparelhos de governo correlativos. Há uma correlação com mudanças e
reformas históricas, não ficando a arte de governar restrita ao campo dos embates filosóficos
da época.
Há uma grande diferença entre o homem observado pelos técnicos da habilidade principesca e aquele estudado pela ciência do Estado: o primeiro individualiza-se a partir de uma natureza imutável que a diversidade das circunstâncias, sem alterá-la, modifica; o segundo distribui-se em massas ou categorias ativas sobre o fundo, não de uma natureza universal, mas de uma multiplicidade concreta modelada pela história.(SENELLART, 2006, p.60)
Esse primeiro momento da arte de governar foi marcado por um certo travamento
dessa nova tecnologia, por diversas razões. Aqui encontramos uma discrepância nos textos de
Foucault, quando em Setembro de 1978, este transcreve a aula de 1º de Fevereiro, para ser
publicada na revista trimestral italiana Aut-Aut(cf. FOUCAULT, 2008, p.134; et FOUCAULT,
2001, p.635 e p.648), ele omite uma passagem que consta tanto no áudio da aula quanto em
seus manuscritos, por um pequeno parágrafo aonde descreve de forma esquemática um
primeiro momento de cristalização da arte de governar. Essa cristalização é a organização da
arte de governar dentro do panorama da Razão de Estado, isto é:
A arte de governar, ao invés de ir buscar seus fundamentos em regras transcendentais, num modelo cosmológico ou em um ideal filosófico ou moral, deve encontrar os princípios de sua racionalidade naquilo que constitui a realidade específica do Estado.(FOUCAULT, 2001, p.648, tradução nossa)
Outras razões para esse travamento da arte de governar são de cunho histórico,
estritamente falando, guerras, revoltas populares e crise financeira. “A arte de governar, no
fundo, só podia se realizar, se refletir, adquirir e multiplicar suas dimensões em período de
expansão, isto é fora das grandes urgências militares, econômicas e políticas”(FOUCAULT,
2008, p.135).
Razões históricas também no sentido de que houve um travamento devido às
“estruturas institucionais e mentais”(idem). Haviam problemas claros para o desenvolvimento
completo da arte de governar dentro das estruturas da soberania, os problemas de governo não
tinham muito espaço dentro das instituições da soberania. Esse empecilho apenas começa a se
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diluir com o advento do mercantilismo, entendido por Foucault como “a primeira
racionalização do execício do poder como prática de governo”(FOUCAULT, 2008, p.136).
O mercantilismo não é uma doutrina econômica, é muito mais, é algo bem diferente de uma doutrina econômica. É certa organização da produção e dos circuitos comerciais de acordo com o principio de que, primeiro, o Estado deve enriquecer pela acumulação monetária; segundo, deve se fortalecer pelo crescimento da população; terceiro, deve estar em permanente concorrência com as potências estrangeiras.(NBP, p.8)
Foucault ressalta que o mercantilismo buscou aplicar a arte de governar por meio dos
mecanismos próprios da soberania, por meio de leis e decretos. Além de estar preso por conta
do grande aparato da soberania que engessava suas ações a arte de governar também se
encontrava limitada por sua constante definição nos parâmetros da família, e da analogia com
o trabalho do pai de família.
E, com isso mesmo, se estava bloqueado por essa ideia de economia que, ainda nessa época, se referia unicamente à gestão de um pequeno conjunto constituído pela família e pela gente da casa. A gente da casa e o pai da família, de um lado, o Estado e o soberano, do outro: a arte de governar não podia encontrar sua dimensão própria.(FOUCAULT, 2008, p.137)
A dimensão própria à arte de governar, aquilo que possibilitou seu destravamento e seu
pleno desenvolvimento é justamente a emergência da população. A arte de governar consegue
se desenvolver plenamente ao abandonar a necessidade de se referir ao âmbito familiar para
tratar de economia; e começa a se pautar cada vez mais na nascente ciência do governo, que
com o uso das estatísticas, da demografia, das taxas de mortalidade, morbidade, natalidade e
povoamento começa a delinear um novo paradigma de gestão estatal. Esses fenômenos
próprios à população são irredutíveis ao âmbito da família, tirando-a do papel central que
desempenhara na pedagogia do príncipe, para realocá-la como elemento secundário de análise
dentro do grande esquema dos cálculos populacionais. “Salvo certo número de temas
residuais, que podem ser perfeitamente temas morais e religiosos, a família como modelo de
governo vai desaparecer […] de modelo, a família vai se tornar instrumento”(FOUCAULT,
2008, p.139).
Assim a afirmação de La Perrière de que o “governo é a correta disposição das coisas,
das quais alguém se encarrega para conduzi-las a um fim adequado”, temos agora uma
reconfiguração aonde as coisas que devem ser governadas, são todos os fatores, diretos ou
indiretos, sejam eles naturais ou artificiais, jurídicos ou morais, ambientais ou culturais que
podem afetar as taxas populacionais; e o fim adequado do governo passa a ser a própria
população, “melhorar a sorte das populações, aumentar suas riquezas, sua duração de vida,
sua saúde”(FOUCAULT, 2008, p.140).
45
Essa mudança da soberania para as artes de governa não significou em nenhum
momento um esvaziamento, ou um ultrapassamento da soberania. O desenvolvimento das
artes de governar, na verdade, acarretaram uma acuidade da soberania, que deveria então
achar novos meios de lidar com um problema novo que se colocava à sua frente. Também não
há um abandono das disciplinas com o governo das populações, esses pontos específicos
foram já debatidos no primeiro capítulo.
Por conseguinte, a ideia de um governo como governo da população toma ainda mais agudo o problema da fundação da soberania - e ternos Rousseau - e ainda mais aguda a necessidade de desenvolver as disciplinas - e temos toda a história das disciplinas que procurei contar em outra ocasião. De sorte que as coisas não devem de forma nenhuma ser compreendidas como a substituição de urna sociedade de soberania por urna sociedade de disciplina, e mais tarde uma sociedade de disciplina por uma sociedade, digamos, de governo. Temos de fato um triângulo -soberania, disciplina e gestão governamental -, uma gestão governamental cujo alvo principal é a população e cujos mecanismos essenciais são os dispositivos de segurança.(FOUCAULT, 2008, p.142-143)
A análise desse processo de desenvolvimento das artes de governar, processo de
gradual governamentalização do Estado, de favorecimento da abordagem econômica da
política e da centralidade da população; todas essas análises se inserem numa história da
governamentalidade, isto é, o objeto de estudo das maneiras de governar é a
governamentalidade. Governamentalidade é um conceito criado por Michel Foucault para
designar a racionalidade própria do governo das populações. Esta racionalidade se encontra
tanto nas instituições, quanto nas análises científicas na forma de exercício de poder sobre a
população chamada governo; e também na construção de um Estado administrativo que deve
gerir essa população. Este novo conceito visa desconstruir a concepção tradicional de Estado,
para mostrar aquilo que ele encobre, como ele é construído e sobre quais saberes ele repousa.
Alguns destaques sobre esse conceito se fazem necessários, primeiramente estamos
trabalhando com uma gama de conceitos que se sobrepõem e divergem e que necessitam uma
delimitação mais formal para que fiquem mais compreensíveis. Para isso que as definições
mais simplificadas e grosseiras são uma ótima ferramenta, constantemente utilizadas por
Foucault, que sempre faz questão de salientar sua incompletude.
Por governamentalidade nos referimos ao “conjunto constituído pelas instituições, os
procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas”(FOUCAULT, 2008, p.143), ou
seja, há não uma monocromática análise do Estado, mas uma análise policromática que deve
analisar uma multiplicidade de fatores buscando os elementos que da multiplicidade
constituem um conjunto. Esse conjunto é o que vai possibilitar o exercício dessa forma
específica de poder, que tem por fim a população, entendida como elemento primordial para o
46
bom funcionamento dos elementos secundários, tais quais as famílias, as linhas de produção e
o comércio, o exército e outras estruturas fundamentais ao aparelho estatal. Essa forma de
poder tem como sua “principal forma de saber a economia política”(idem), afinal nada pode
figurar como elemento de saber se não está de acordo a um conjunto de regras específicas,
inversamente nada pode funcionar como mecanismo de poder se não se manifesta segundo
procedimentos que possam ser validados em sistemas mais ou menos coerentes de saber. Por
fim, o modo de funcionamento empírico desse modelo específico tem “por instrumento
técnico essencial os dispositivos de segurança”(idem). Como foi apresentado no primeiro
capítulo, os dispositivos de segurança representam o modus operandi da Biopolítica na
contemporaneidade, configurando assim elementos indispensáveis para a compreensão da
filosofia como diagnostico do presente, isto é para o diagnóstico dos modos e faces da
Biopolítica na nossa atualidade.
Partindo dessa definição de governamentalidade podemos começar a buscar
compreender o processo histórico, “a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não
parou de conduzir, e desde há muito tempo, para a preeminência desse tipo de poder que
podemos chamar de 'governo' sobre todos os outros – soberania, disciplina”(FOUCAULT,
2008, p.144). Esse processo histórico que se desenrolou por todo o Ocidente* é descrito por
Foucault esquematicamente como:
primeiro o Estado de justiça, nascido numa territorialidade de tipo feudal, que corresponderia grosso modo a uma sociedade da lei – leis consuetudinárias e leis escritas -, com todo um jogo de compromissos e litígios; depois, o Estado administrativo, nascido numa territorialidade de tipo fronteiriça, e não mais feudal, nos séculos XV e XVI, esse Estado administrativo que corresponde a uma sociedade de regulamentos e de disciplinas; e, por fim, um Estado de governo que já não é essencialmente definido por sua territorialidade, pela superfície ocupada, mas por uma massa: a massa da população, com seu volume, sua densidade, com, é claro, o território no qual ela se estende, mas que certo modo não é mais que um componente seu. E esse Estado de governo, que tem essencialmente por objeto a população e que se refere e utiliza a instrumentação do saber econômico, corresponderia a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurança.(FOUCAULT, 2008, p.145-146)
Temos portanto um processo que podemos chamar de governamentalização do Estado,
isso é, uma intricada co-dependência gradativamente ascendente entre o Estado como
estrutura arcaica, com as técnicas de Governo mais recentes. Não temos que buscar o
surgimento do Estado, devemos nos focar no processo de governamentalização do Estado,
essa relação entre Estado e governo é que vai moldar toda nossa matriz contemporânea de
* Vale ressaltar aqui que o conceito de Ocidente utilizado por Foucault é bastante restritivo sendo definido como “uma espécie de região geográfica que se situa entre o Vístula[, na Polônia,] e Gibraltar[, na Espanha], entre a costa norte da Escócia e a ponta da Itália”. Segundo Foucault “é preciso que digamos que, os esquemas de pensar, as formas política, os mecanismos econômicos fundamentais que eram aqueles do Ocidente se tornaram universais, por meio da violência da colonização”(FOUCAULT, 2001, p.370)
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pensar a política, e também a forma como nos pensamos e nos construímos.
Partindo dessa explanação inicial sobre o governo e a governamentalidade, podemos
agora nos focar nas especificidades históricas desse processo. A governamentalização do
Estado se deu por meio de três vetores principais, primeiro temos a pastoral, o modelo antigo,
cuja secularização levou ao princípio do contágio; em segundo, temos a técnica
diplomático-militar, a estrutura de apoio, que visava a manutenção da pluralidade estatal
contra as absorções imperiais; e por último temos a polícia, o apoio interno, a regulamentação
indefinida do país e da população num modelo urbano.
Poder Pastoral
O conceito de poder pastoral tem uma relevância impar na analítica do poder
foucaultiana, e consequentemente na compreensão do desenvolvimento das tecnologias de
poder e governo da atualidade.“Todo o desenvolvimento sobre a biopolítica somente será
possível se tomarmos como ponto de partida a evolução do pastorado de uma técnica de
governo das condutas de um grupo restrito, como as ordens monásticas; até o pastorado
secularizado em técnicas de governo não mais de rebanhos, mas de populações. “Parece-me
que o pastorado esboça, constitui o prelúdio do que chamei governamentalidade, tal como esta
vai se desenvolver a partir do século XVI”(FOUCAULT, 2008, p.243).
O uso do termo pastoral visa explicitar a forte relação entre as tecnologias modernas
de controle e disciplinamento com a forma antiga do pastorado, criada pelas instituições
eclesiásticas católicas. O pastorado católico se desenvolveu dentro das ordens monásticas a
princípio, sendo o centro de grandes, e sangrentas, disputas e transformações ao longo de
quinze séculos. “Esse jogo do governo de uns pelos outros, de governo cotidiano, de governo
pastoral, foi isso que foi entendido durante quinze séculos como sendo a ciência por
excelência, a arte de todas as artes, o saber de todos os saberes”(FOUCAULT, 2008, p.200).
Onde o pastor deve se preocupar com todos e com cada um em particular (omnes et
singulatim), conhecer profundamente a alma e a consciência de cada ovelha através da
confissão; quais sejam sua idade, seu estatuto, a ovelha se deixar governar, abrir todas as suas
verdades intimas ao governo do pastor para ser governado/conduzido à salvação. Podemos já
destacar que de forma análoga o Biopoder se subdivide em Biopolítica das populações e
anátomo-política dos corpos (omnes et singulatim).
O pastorado no cristianismo deu lugar a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os homens, uma arte de segui-los, e de empurrá-los passo a passo, uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens
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coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo da sua existência. É isso, creio – em todo caso no que diz respeito ao que seria o pano de fundo histórico dessa governamentalidade de que eu gostaria de falar –, parece-me que se trata de um fenômeno importante, decisivo e sem dúvida único da história das sociedades e das civilizações. (FOUCAULT, 2008, p.219)
Nossa análise do Poder pastoral de dividirá em dois momentos, primeiramente vamos
entender os processos históricos de formação e transformação do pastorado; e num segundo
momento focaremos o processo pelo qual o pastorado que se restringira às instituições
eclesiásticas transborda e passa a ser técnica de governo dos indivíduos e das populações, ou
nas palavras de Foucault: “como o pastorado se encontrou associado ao seu contrário, o
Estado”(FOUCAULT, 2001, p.955, tradução nossa). Foi dessa mútua afetação entre a
disciplinarização dos corpos e o governo das almas que emergiu a nossa concepção atual de
política.
Ao invés de começar a analisar a história da formação do Poder pastoral estudando às
formas de poder que surgem com o cristianismo, e mais especificamente, com o
desenvolvimento do monasticismo; Foucault opta por outro caminho, indo buscar as raízes do
problema do pastorado na Antiguidade grega e judaica. Esse retorno busca esclarecer as
diferenças no trato da oposição entre político e pastor em algumas culturas da antiguidade que
tiveram alguma influência no desenvolvimento do cristianismo.
Foucault vai optar por esse retorno à Antiguidade ao reconhecer que a especificidade
do governo face às outras formas de governo se dá pelo fato de que aquilo que se governa
“não é portanto a cidade como estrutura política, mas as pessoas, indivíduos ou
coletividade”(FOUCAULT, 2008, p.164). Essa ideia de que se governam homens é uma ideia
estranha tanto aos gregos como aos romanos, essa tese defendida por Foucault é bastante
controversa, uma vez que o próprio autor apresenta diversos textos que aparentemente
refutam sua afirmação.
O problema põe-se sobretudo no que diz respeito ao pensamento grego; ha pelo menos uma categoria de textos que comporta referências aos modelos pastorais: trata-se dos textos pitagóricos. A metáfora do pastor (pâtre) aparece nos Fragmentos de Arquitas, citados por Stobée. O termo nomos (a lei) está ligado ao termo nomeus (pastor): o pastor reparte, a lei designa. E Zeus é denominado Nomios e Némeios porque provê ao sustento das suas ovelhas. Enfim, o magistrado deve ser philanthrôpos, a saber, desprovido de egoísmo. Ele deve mostrar-se cheio de ardor e de solicitude, tal como um pastor.(FOUCAULT, 2001, p.959, tradução nossa)
O PASTORADO HEBRAÍCO
As relações mais explícitas entre o pastorado e a política devem então ser buscados
não dentro da tradição grega, mas no Oriente pré-cristão, posteriormente, em toda a extensão
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territorial na qual o Cristianismo estabeleceu sua influência no Oriente e no Ocidente. “E isso
sob duas formas: primeiramente, sob a forma da ideia e da organização de um poder de tipo
pastoral, e em segundo lugar, sob a forma da direção de consciência, da direção das almas”
(FOUCAULT, 2008, p.127- 128). Exatamente o que faz Foucault nos apontando passagens do
Egito, Assíria, Judeia, Babilônia, Mesopotâmia; culturas aonde o rei será identificado como
pastor dos homens, muitas vezes em analogia direta com a função divina. Independente dessas
referências secundárias, aqueles que mais desenvolveram e amplificaram a temática do
pastorado foram os hebreus.
No pastorado hebreu, uma característica que se destaca é que somente Deus é
considerado pastor dos homens, com exceção de Davi fundador da monarquia hebraica(cf
FOUCAULT, 2008, p. 167 & 201), jovem pastor por profissão, torna-se, depois de coroado
rei, o pastor das tribos de Israel, o único dentre os reis judeus a receber o título que
corriqueiramente se reserva à Deus. Há também as de alguns profetas que recebem o rebanho
das mãos de Deus e os maus reis que são comparados à um mau pastor que dispersa seu
rebanho. “Não pretendo de modo algum que o poder político se exercia efetivamente assim na
sociedade judaica antes da queda de Jerusalém”(FOUCAULT, 2001, p. 958, tradução nossa).
Ao explanar os traços específicos do poder pastoral, Foucault nos aponta quatro
pontos principais, sendo que, em diferentes textos esses pontos são levemente divergentes,
como podemos notar na diferença entre a aula de 08 de Fevereiro de 1978, do curso
Segurança, Território, População; e aqueles apresentados no texto Omnes et Singulatim, de 10
de Outubro de 1979. Para começar tomaremos a definição do curso no Collège de France,
para depois analisarmos as diferenças que Foucault coloca um ano depois no texto que
apresentou na Universidade de Stanford.
A primeira característica desse poder é que, “o poder do pastor não se exerce sobre um
território, é um poder que, por definição, se exerce sobre um rebanho , mais especificamente
sobre um rebanho em seu deslocamento”(FOUCAULT, 2008, p.168). Essa distinção que a
primeira vista pode parecer simplista tem um caráter importantíssimo, como vimos na
distinção entre o poder soberano e o governo. Assim podemos dizer que “em oposição ao
poder que se exerce sobre a unidade de um território, o poder pastoral se exerce sobre uma
multiplicidade em movimento”(FOUCAULT, 2008, p.169).
A segunda característica seria que aquele que exerce o poder pastoral deve fazer o
bem, não fazer o bem num sentido moralista e vago, mas fazer o bem no sentido estrito de
assegurar os meios de subsistência e reprodução do rebanho que lhe foi designado.
A terceira característica seria que diferentemente do soberano, que tem sua etimologia
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no latim super, acima, “a forma que o poder pastoral adquire não é, inicialmente, a
manifestação de sua superioridade. O Poder pastoral se manifesta inicialmente por seu zelo,
sua dedicação, sua aplicação infinita”(FOUCAULT, 2008,p .171). O pastor deve estar junto ao
seu rebanho e não acima dele.
A quarta e última característica da pastoral seria que o poder pastoral é um poder
individualizante. “o pastor dirige todo o rebanho, mas ele só pode dirigi-lo bem na medida em
que não haja uma só ovelha que lhe possa escapar”(FOUCAULT, 2008, p.172). O pastor deve
cuidar de todas e, ao mesmo tempo, de cada uma das ovelhas. As passagens do antigo
testamento que ressaltam as características de um bom pastor, sempre tratam daquele que
abandona o rebanho para buscar uma ovelha desgarrada, aquele que daria sua própria vida
para proteger cada uma de suas ovelhas.
No seminário apresentado mais de um ano depois em Stanford, Foucault nos aponta
uma listagem quadrupla, que apresenta algumas distinções face ao que fora apresentado em
78 em seu curso. Uma das diferenças é relativa à segunda característica, que agora aparece
como o fato de que “o rebanho existe pela presença imediata e pela ação direta do
pastor”(FOUCAULT, 2001, p.957, tradução nossa), basta que ele suma para que o rebanho se
disperse. Em oposição a essa característica do pastorado vemos a definição do bom político
grego, que deixa atrás de si uma cidade dotada de leis que lhe permitem perdurar sem ele. O
quarto ponto apresentado também é diferente, uma vez que aqui o exercício do poder pastoral
não é um privilégio, mas se caracteriza como um dever, ao qual não se pode renunciar.
Outras passagem que se destacam pela similitude são respectivamente o final da aula
de 08 de Fevereiro no Collége de France, e a passagem que se encontra publicada na página
958 da coletânea Dits et écrits. Passagens essas em que Foucault ressalta, com um furor
incomum em seus trabalhos, as perversidades e a sanguinolência do processo de
desenvolvimento do poder pastoral e, consequentemente, do Ocidente cristão:
Foi a Igreja cristã que coagulou todos esses temas de poder pastoral em mecanismos precisos e em instituições definidas, foi ela que realmente organizou um poder pastoral ao mesmo tempo específico e autônomo, foi ela que implantou seus dispositivos no interior do Império Romano e que organizou, no coração do Império Romano, um tipo de poder que, creio eu, nenhuma outra civilização havia conhecido. Porque é de fato este, afinal, o paradoxo, sobre o qual eu gostaria de me deter nas próximas aulas: é que, de todas as civilizações, a do Ocidente cristão foi sem dúvida, ao mesmo tempo, a mais criativa, a mais conquistadora, a mais arrogante e, sem dúvida, uma das mais sangrentas, Em todo caso, é urna das que certamente praticaram as maiores violências. Mas, ao mesmo tempo - e é este o paradoxo sobre o qual gostaria de insistir -, o homem ocidental aprendeu durante milênios o que nenhum grego sem dúvida jamais teria aceitado admitir, aprendeu durante milênios a se considerar urna ovelha entre as ovelhas. Durante milênios, ele aprendeu a pedir sua salvação a um pastor que se sacrifica por ele. A forma de poder mais estranha e mais característica do Ocidente, aquela que também viria a ter a
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fortuna mais vasta e duradoura, creio que não nasceu nas estepes nem nas cidades. Ela [não]* nasceu no âmbito do homem de natureza, não nasceu no âmbito dos primeiros impérios. Essa forma de poder tao característica do Ocidente, tao única, creio, em toda a história das civilizações, nasceu, ou pelo menos inspirou seu modelo no pastoreio, na política considerada assunto de pastoreio.(FOUCAULT, 2008,p.174)
A segunda passagem que apesar de pequenas diferenças é bastante semelhante a passagem supracitada, seria a seguinte:
Trata-se apenas de temas. Paradoxais, e até contraditórios. O cristianismo lhes daria importância considerável, tanto na Idade Média, quanto nos Tempos modernos. De todas as sociedades da história, as nossas - quero dizer, aquelas que apareceram no final da Antiguidade no lado ocidental do continente europeu - são talvez as mais agressivas e as mais conquistadoras; elas foram capazes da violência mais estupefaciente, contra elas mesmas assim como contra as outras. Elas inventaram grande número de formas políticas diferentes. Com frequência, modificaram profundamente suas estruturas jurídicas. É necessário sublinhar o espírito (com) que só elas desenvolveram uma estranha tecnologia do poder, tratando a imensa maioria dos homens em rebanho com um punhado de pastores. Assim elas estabeleceram entre os homens uma série de relações complexas, contínuas e paradoxais.
É seguramente algo singular no curso da história. O desenvolvimento da "tecnologia pastoral" na direção dos homens transformou, com toda evidência, de alto abaixo, as estruturas da sociedade antiga. (FOUCAULT, 2001, p.958, tradução nossa)
O PASTOR NA GRÉCIA
A afirmação de Foucault de que a ideia do rei pastor não encontrava referências na
cultura helênica é fortemente questionada e o próprio autor, como já explicitamos
anteriormente aponta as possíveis ressalvas à sua afirmação. Essas ressalvas podem se dividir
em três grandes grupos.
Primeiramente temos um grupo formado pelos textos clássicos e fundacionais da
cultura helênica, a Ilíada e a Odisséia de Homero, onde Agamenon é descrito como pastor dos
homens. O título de pastor dos homens é comum como no âmbito ritualístico de diversas
culturas Indo-europeias, tanto em textos arcaicos, como os assírios, como em textos tardios,
como Beowulf.
O segundo grupo de textos são os textos pitagóricos, onde a ideia do pastor aparece
aparece de dois modos distintos. Primeiramente temos a relação da palavra nomos, a lei, que
teria sua etimologia em nomeús, pastor. “O pastor aquele que faz a lei, na medida em que é
ele que distribui o alimento que dirige o rebanho, que indica a direção correta, que diz como
as ovelhas devem cruzar para ter uma boa progenitura”(FOUCAULT, 2008, p.183). Em
segundo lugar temos a ideia do magistrado como pastor, ou seja, “o magistrado, por definição,
* Há um claro erro de tradução nessa passagem, a omissão da negativa desfigura todo o sentido da passagem. A simples alusão ao homem da natureza em Foucault é de um descabimento impar, tendo em vista que toda a trajetória filosófica do autor é marcada pelo empenho contra os essencialismos metafísicos como o contido nessa falha grotesca.
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é cheio de zelo e de solicitude, tal como o pastor”(idem). O fato de haver, ou não, uma
influência hebraica no pensamento pitagórico, não pode ser comprovada, sendo portanto uma
hipótese vaga. Isto porém não diminui o fato de que apesar de sua influência as doutrinas
pitagóricas sempre tiveram um lugar marginal na cultura grega.
O terceiro grupo de textos que podemos tomar para entender o lugar da metáfora do
pastor dentro da cultura grega são os chamados grandes textos políticos. Em Isócrates não
encontramos nenhuma referência a metáfora do pastor, mesmo sua definição de magistrado se
aproximando bastante da definição de pastor, a metáfora não aparece. Em Xenofontes a noção
do rei-pastor é claramente identificada como tendo origem persa (cf, FOUCAULT, 2008,
p.210, n.10). A grande exceção a essa ausência da metáfora do pastor está em Platão, que a
parte do Político, cuja importância leva Foucault a tratá-lo profundamente e a parte, temos
três momentos da metáfora na obra de Platão, Crítias, Leis e a República.
Em Crítias, 109-b-c(cf. PLATÃO, 2011), temos que durante o período de ouro da
mitologia, o reino de Cronos, os deuses cuidavam dos seres humanos como um pastor cuida
do seu rebanho, com a exceção, e esse tópico não é levantado por Foucault, de que o pastor se
utiliza de instrumentos corpóreos para controlar seu rebanho, enquanto que os Deuses
controlam os homens por meio do conhecimento e controle de suas almas.
Nas Leis, temos uma segunda aparição dessa temática, dessa vez numa época posterior
a idade de ouro, e a tomada do Olimpo por Zeus. Os magistrados do tempo atual de Platão
também são tidos como magistrado-pastor. Esse magistrado porém se encontra sempre num
campo intermediário de atuação, entre aqueles que impõe as leis, num anacronismo grosseiro
Foucault nos remete à polícia; e aqueles que fazem as leis(“cães de guarda, pastores, ou os
mestres mais excelsos”906-b). Assim não temos uma adequação do magistrado com o
político, e portanto também não temos um político pastor, o pastor é submisso ao político.
“Ou seja, não é tanto a própria essência da função política, a essência mesma do que é o poder
na cidade, que será representada pelo pastor, mas simplesmente uma função
lateral”(FOUCAULT, 2008, p.186).
Na República, a discussão acerca da pastoral se dá pela afirmação de Trasímaco de
que o pastor tem sempre finalidades egoístas, ou seja, o pastor apenas zela pelo seu rebanho,
tendo o intuito de que haverá algum retorno para ele, seja matando as ovelhas, seja
vendendo-as. Afirmação prontamente negada, ao que se coloca que essa definição estaria
caricaturando o pastor, e que “o verdadeiro pastor é justamente aquele que se dedica
inteiramente ao seu rebanho e não pensa em si mesmo”(FOUCAULT, 2008, p.187). Foucault
enxerga aí uma referência à tradição pitagórica, ou seja, uma discussão que não era estranha,
53
mas familiar ao pensamento grego.
No diálogo O Político, o problema central debatido é o tema do poder pastoral, isto é,
é possível definir o político como o pastor dos homens. O diálogo se desenrola primeiramente
com a definição do político como pastor, para depois passar e desconstrução dessa afirmação.
O político é definido primeiramente como aquele que dá ordens; dá ordens suas e não
de outros, como o mensageiro; dá ordens a seres animados, diferentemente do arquiteto; dá
ordens à coletividades, diferente do cocheiro; aquele que dá ordens a um rebanho é o pastor,
portanto o político seria o pastor do rebanho constituído pelos cidadãos de uma cidade. Essa
primeira definição do político para Foucault seria a afirmação de um lugar comum do
pensamento grego do qual o diálogo tenta escapa.
O escape dessa invariante admitida a priori se dá em quatro movimentos. O primeiro
movimento será o de demonstrar como a divisão dos animais em homens de um lado e todos
os outros animais do outro não é uma divisão plena, passa-se então a toda uma tipologia de
animais que não cessa, e todas as tentativas de reformular essa divisão são infrutíferas para
responder à questão específica do político. Donde temos então o segundo movimento, o
político deve ser uma figura única dentro da cidade, assim como só pode haver um pastor no
rebanho; o pastor dos deve executar múltiplas funções, funções essas que também são da
alçada dos médicos, dos ginastas, dos pedagogos, etc, toda uma série de funções que não são
funções políticas. “Temos portanto, de um lado, a série todas as divisões possíveis nas
espécies animais, de outro lado, a tipologia de todas as atividades possíveis que, na cidade,
podem ser relacionadas ao pastor. O político desapareceu”(FOUCAULT, 2008, p.189)
O terceiro movimento pelo qual se busca escapar da definição do pastor vai recorrer,
assim como fizera no diálogo Crítias, ao mito da era de Cronos, onde só havia felicidade, por
terem os rebanho, dentre eles o rebanho humano, os deuses como pastores. Essa era da
abundância porém é marcada também pelo fato de que tendo os deuses como pastores, os
homens prescindiam de uma constituição política. A política surge apenas na era de Zeus em
que os deuses não mais pastoreiam os homens diretamente, sendo assim surge a necessidade
do político. Esse político porém, não está acima dos homens como estavam os deuses, e não
pode assim configurar-se como pastor da humanidade.
O quarto e último movimento é aquele que apresenta a superação do modelo do
político como pastor, e apresenta então um novo modelo para o político. O político doravante
caracteriza-se não mais na metáfora do pastor, mas como tecelão, isto é, político liga entre si
os bons elementos, numa malha que envolve toda a cidade, homens livres e escravos. Assim
como o tecelão precisa de serviços adjuvantes - “a lã precisa ser tosquiada, o fio precisa der
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trançado, o cardador tem que passar por lá para que o tecelão possa trabalha”(FOUCAULT,
2008, p.194) -, o político necessita que os cidadão sejam preparados por artes adjuvantes,
como a educação e todas as outras artes que concorriam com o rei-pastor.
Platão não faz uma rejeição geral do tema pastoral, o que faz é definir como pastores
todas essas diversas tarefas que encontramos na cidade, o agricultor, o padeiro, o médico,o
pedagogo, o músico, todos estes são pastores. Não podemos no entanto utilizar a mesma
metáfora para o político, que não teria de forma alguma o tempo necessário para cuidar de
cada um dos cidadãos com o zelo que convém a um pastor. Há portanto uma rejeição clara da
temática pitagórica do rei-pastor.
Não podemos portanto buscar as raízes do pastorado na cultura helênica, a ausência do
tema nos grandes textos políticos, e sua rejeição explícita por Platão nos indicam que o
caminho para retraçar o surgimento e evolução do tema se encontra no Oriente e em especial
no início da expansão do cristianismo. O cristianismo sim resinificará e expandirá o tema do
pastorado hebraico, para dimensões inigualáveis por qualquer outra cultura.
O PASTORADO CRISTÃO
O pastorado começa com certo processo que, este sim, é absolutamente único na história e de que sem dúvida não encontramos nenhum exemplo em nenhuma outra civilização: processo pelo qual uma religião, uma comunidade religiosa se constitui como Igreja, isto é, como uma instituição que aspira ao governo dos homens em sua vida cotidiana a pretexto de levá-los à vida eterna no outro mundo, e isso na escala não apenas de um grupo definido, não apenas de uma cidade ou de um Estado, mas de toda a humanidade.(FOUCAULT, 2008, p.196)
Nesse contexto único da história que constitui a transformação do cristianismo
primitivo em instituição eclesiástica é que o tema da pastoral vai se desenvolver
propriamente. A ciência por excelência, que para os gregos era a filosofia, e todas as técnicas
de si associadas a ela; os cristãos vão substituir, não por outra filosofia, ou pela teologia, mas
pelo poder pastoral. Poder pastoral como confluência das técnicas de si, com as técnicas de
poder advindas de uma rede institucional altamente hierarquizada e piramidal.
A obrigação imposta ao indivíduo de aceitar um certo número de deveres, de considerar certos livros como fontes de verdades permanentes, de consentir a decisões autoritárias em matéria de verdade, de crer em certas coisas – e não somente crer, mas também demonstrar que crê –, de reconhecer a autoridade da instituição: é tudo isso que caracteriza o cristianismo.(FOUCAULT, 2001, p.1623, tradução nossa).
A partir da ressignificação da temática pastoral hebraica, que se restringia a relação de
Deus com o povo escolhido; e das técnicas de si helenística– técnicas de exame da
consciência e as práticas de consulta–; o cristianismo operou um processo de
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institucionalização do pastorado, como tecnologia de governo das almas, que pressupõe o
conhecimento de todos os aspectos da vida cotidiano de cada membro do rebanho. Para
alcançar esse nível de conhecimento das verdades intimas dos indivíduos é que se desenvolve
as técnicas confessionais. “O cristianismo não é só uma religião da salvação: é também uma
religião confessional”(FOUCAULT, 2001, p.1623, tradução nossa). A confissão é uma técnica
essencial para o bom governo, tão essencial que Foucault chega a afirmar que “o homem, no
Ocidente, tornou-se um animal confidente”(FOUCAULT, 1999, p.59).
O pastorado cristão se desenvolve como uma forma de poder absolutamente nova, que
não encontra paralelos no mundo antigo. Diferentemente da pastoral hebraica que tratava da
relação de Deus com os homens, o pastorado cristão se efetiva o governo das almas, e “é
portanto uma forma de poder que é, sem duvida, um poder terrestre, apesar de ter por fim o
além”(FOUCAULT, 2008, p.204). O fato de o poder pastoral cristão se configurar como um
poder terreno não implica que deva ser confundido com o exercício do poder político.
Não confundir a figura do pastor, com a figura do magistrado, não quer dizer que não
haja nenhuma forma de entrecruzamento entre as duas formas de poder. A história do
Ocidente é repleta de exemplos de jogos políticos dentro da Igreja, e também de interferências
por parte dos membros do clero no jogo político das cidades e Estados.
Ainda que sejam os mesmos personagens a exercer o poder pastoral e o poder político, e Deus sabe quanto isso se fez no Ocidente cristão, ainda que a Igreja e o Estado, a Igreja e o poder político tivessem todas as formas de aliança que se possa imaginar, creio que essa especificidade [– da forma de exercício distinta do poder político e do poder pastoral –] foi um traço absolutamente característico do Ocidente cristão.(FOUCAULT, 2008, p.205)
Essa especificidade de cada uma das formas de governança é característica, e mesmo
com quinze séculos de desenvolvimento entrecruzado “o pastor continuou sendo um
personagem que exerce seu poder no modo místico e, o rei continuou sendo alguém que
exerce seu poder no modo imperial”(idem).
De modo geral as características básicas do pastorado cristão podem ser descritas
como a salvação, a lei e a verdade; veremos porém que o pastorado não se define por essas
características, mas sim pelo modo como vai criar novas formas relações partindo delas. Essas
características obviamente carregam suas especificidades, caso contrário não se distinguiriam
dos modelos que a precederam e o pastorado não constituiria uma forma inédita de exercício
de poder.
A temática da salvação no pastorado pode ser tratada de forma global como uma
espécie de reciprocidade de destinos, mas essa abordagem não aponta a especificidade da
pastoral cristã face à outros modelos. Também o magistrado grego era ligado ao seu povo num
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destino comum, uma desgraça que se abatia sobre uma cidade muitas vezes tinha sua origem
em alguma ação do magistrado, como Édipo e a peste em Tebas. Há já na cultura grega uma
responsabilidade recíproca entre um povo e seu encarregado, portanto essa visão geral da
reciprocidade da salvação e do castigo não podem ser tomados como exclusivos do
cristianismo.
A especificidade do pastorado cristão, em relação à salvação, vai ser analisado
tomando como ponto de partida “o lado paradoxalmente distributivo do pastorado
cristão”(FOUCAULT, 2008, p.224). O paradoxo consiste me que ao afirmar a necessidade de
salvar todo o rebanho, o pastorado está implicitamente postulando que pode haver a
necessidade de exterminar aquela ovelha que comprometa a segurança e bem aventurança do
conjunto do rebanho. Por outro lado o próprio caráter do poder pastoral em todas as metáforas
bíblicas nos aponta para o omnes et singulatim, isto é, a necessidade de cuidar de todas e de
cada uma das ovelhas, assim o paradoxo que se coloca é exatamente até onde o pastor deve
abandonar o rebanho para ir em busca da ovelha desgarrada, ou até quando é válido salvar a
ovelha que escandaliza o rebanho comprometendo a segurança do grupo. Esse é um tema
mosaico e como tal já presente na pastoral hebraica, porém o cristianismo vai acrescentar ao
tema quatro princípios, ou mecanismos que não existiam anteriormente, a saber: princípio da
responsabilidade analítica, princípio da transferência exaustiva e instantânea, princípio da
inversão do sacrifício e o princípio da correspondência alternada. Esses nomes são arbitrários,
isso é, não se encontram nos textos clássicos da pastoral cristão e dizem muito pouco sobre o
conteúdo específico de cada um.
Primeiro princípio portanto, a responsabilidade analítica do pastor, ou seja, a obrigação
do pastor de prestar contas de todas as ovelhas, seja ao fim do dia, ao fim da vida ou ao fim do
mundo. Essa prestação de contas deverá levar em conta “todos os atos de cada uma das
ovelhas, de tudo o que puder ter acontecido a cada uma delas, de tudo de bom e de mau que
elas possa ter feito em cada momento”(FOUCAULT, 2008, p.225).
Em segundo lugar o princípio da transferência exaustiva e instantânea. No dia da
prestação de contas, todos os atos, bons ou maus das ovelhas, serão transferidos para o
próprio pastor, sendo responsabilizado por eles como se fossem seus próprios atos. Nas
palavras de São Jerônimo: “faz da salvação dos outros o proveito da tua alma”(apud,
FOUCAULT, 2008, p.248, n.20).
Terceiro princípio, ainda no tema da salvação, é a inversão do sacrifício. O pastor
deve estar disposto a dar sua vida no lugar da vida de cada uma de suas ovelhas, ele deve
arriscar sua salvação biológica ou espiritual para proteger seu rebanho. Apenas se expondo
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aos perigos que rondam suas ovelhas, ao se expor aos pecados cometidos pelo seu rebanho, ao
risco de pecar face ao contato com pecadores é que o pastor poderá assegurar sua própria
salvação.
O Quarto princípio é aquele da correspondência alternada. O mérito do pastor se mede
pelas ovelhas salvas, porém se as ovelhas fossem perfeitas e sem pecados, o mérito do pastor
não seria grande, é preciso que as ovelha pequem e o pastor as salve para que seja realmente
meritoso. Inversamente, se o pastor é perfeito ele não serve de modelo para suas ovelha que o
veem com distanciamento, é preciso portanto que o pastor também tenha fraquezas e as
reconheça para que sirva de exemplo ao seu rebanho.
Esses quatro princípios nos apontam uma especificidade do pastorado cristão face à
outras formas de exercício do pastorado, essa especificidade reside nessa complexa economia
de méritos e deméritos que o pastor deve administrar, e que todavia não assegura com certeza
a salvação nem do pastor nem do rebanho.
O pastor cristão age numa sutil economia do mérito e do demérito, uma economia que supõe uma análise em elementos pontuais, mecanismos de transferência, procedimentos de inversão, ações de apoio entre elementos contrários, em suma, toda uma economia detalhada dos méritos e dos deméritos, entre os quais, por fim, Deus decidirá.(FOUCAULT, 2008, p.229)
Outra característica básica do pastor cristão, que vai diferenciá-lo dos outros modelos
de pastor, é o problema da lei. O pastor não é no cristianismo um homem da lei, ele não
escreve as leis e nem é seu representante, sua ação se assemelha muito mais à de um médico
que trata das assolações da alma, do que a de um jurista. A lei não aparece no cristianismo,
diferentemente do judaísmo que é uma religião da lei, como ponto central, o que deve estar
em primeiro lugar é a vontade de Deus. Um ponto específico do pastorado cristão é que o
lugar da ovelha face ao pastor é o lugar da obediência pura, da dependência integral.
A obediência no cristianismo diverge diametralmente da obediência no pensamento
grego. No cristianismo “a obediência é uma virtude. Quer dizer que ela não é, como nos
gregos, um meio provisório para atingir um fim, mas um fim em si mesma” (FOUCAULT,
2001, p.964, tradução nossa). A obediência no cristianismo é uma relação de submissão
completa, não a uma lei, mas a submissão de um indivíduo a outro indivíduo, essa
determinação se aplica aos leigos, mas se aplica de uma forma muito mais rigorosa aos
monges cenobíticos, os quais devem ter a vida inteira “codificada pelo fato de que cada um
dos seus episódios, cada um de seus momentos deve ser comandado, ordenado por
alguém”(FOUCAULT, 2008, p.232).
Outra característica específica da obediência no cristianismo é que nela, não há
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finalidade. Enquanto o grego obedecia aos seus pastores, os médicos, pedagogos ou ginasta,
tendo em vista um fim específico, o qual sendo atingido cessa-se a relação de obediência; no
cristianismo obedece-se por obedecer, não há finalidade na relação de obediência, é o
livre-arbítrio que deve ser abandonado para que se atinja um estado de obediência constante e
vitalício.
Esse estado de obediência que nos gregos era chamado de apathéia, tinha por função a
renuncia das paixões que o tornam escravo, visando o controle de si mesmo. No cristianismo,
que utilizará o mesmo conceito grego, a apathéia é ressignificada como a renuncia as paixões,
não mais visando o controle de si mesmo, mas visando a negação de si mesmo por meio da
obediência. Mesmo aquele que comanda apenas o faz por que o mandaram comandar, deve
comandar para obedecer.
Em relação ao princípio geral da lei, o pastorado faz surgir toda uma prática da submissão do indivíduo ao indivíduo, sob o signo da lei, é claro, mas fora do seu campo, numa dependência que nunca teve nenhuma generalidade, que não garante nenhuma liberdade, que não leva a nenhum domínio, nem de si nem dos outros. É um campo da obediência generalizada.(FOUCAULT, 2008, p.237)
Com relação à verdade o pastorado cristão também vai introduzir uma série de
inovações inéditas. O pastor tem a tarefa de ensinar o seu rebanho, mas não deve apenas
ensinar por meio de palavras, seus ensinamentos também devem emanar dos exemplos de sua
própria vida. Essa forma de ensino própria do pastorado cristão traz duas novidades
fundamentais.
O modo de ensino do pastor deve se caracterizar primeiramente como uma direção da
conduta cotidiana, isto é, seus ensinamentos nunca podem deixar de lado nenhum aspecto, por
menor que seja, ou por mais baixo que seja, da vida de seus pupilos. “Temos portanto um
ensino integral que implica, ao mesmo tempo, um olhar exaustivo do pastor sobre a vida das
suas ovelhas”(FOUCAULT, 2008, p.239).
Além de ser uma direção de conduta cotidiana é importante que o ensino do pastor
também seja uma direção de consciência. A ideia de direção de consciência não e é uma
invenção cristã, ela já era praticada na Antiguidade, porém de forma bastante divergente da
cristã. Na Antiguidade a direção de consciência era voluntária e circunstancial, isto é,
escolhia-se procurar alguém, devendo-se inclusive pagar em alguns casos, e essa direção era
restrita a um processo cujo objetivo final era o auto-controle de si. Na prática cristã a direção
de consciência é obrigatória e vitalícia, não cessa. Só se faz um auto-exame de consciência
visando expô-lo ao diretor, é um instrumento de dependência.
Temos com o aparecimento do pastorado cristão uma forma absolutamente nova de
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poder, forma que não vai repetir velhas fórmulas, mas partindo delas vai rearticulá-las em
práticas inéditas. “Essas novas relações dos méritos e deméritos, da obediência absoluta, da
produção de verdades ocultas, é isso que, a meu ver, constitui o essencial, a originalidade e a
especificidade do cristianismo, e não a salvação, não a lei, não a verdade”(FOUCAULT, 2008,
p.242).
DA PASTORAL DAS ALMAS AO GOVERNO POĹITICO
A passagem do poder pastoral ao governo se dá num momento de crise do pastorado,
que ao invés de levar ao abandono do pastorado, levou a uma explosão, uma intensificação do
pastorado. A relação entre crise e intensificação da pastoral se evidência a tal ponto que,
pode-se afirmar que o vigor do poder pastoral se mede “pela intensidade e pela multiplicidade
das agitações, revoltas, descontentamentos, lutas, batalhas, guerras sangrentas travadas em
torno dele, por ele e contra ele”(FOUCAULT, 2008, p.197)
A passagem da pastoral das almas ao governo político dos homens pode ser situada
historicamente entre o século XV e o século XVIII, em um clima resistências, revoltas e
insurreições contra a forma de pastoral vigente. Contexto histórico que, obviamente, não se
restringe à Reforma Protestante, mas abarca toda uma série de revoltas, agitações,
descontentamentos, que, todavia, tiveram na Reforma, e consequentemente na
Contra-Reforma “ao mesmo tempo a forma mais radical e a retomada de
controle”(FOUCAULT, 2008, p.306).
A revolta contra a pastoral não é de forma alguma exclusividade da Reforma, ou dos
movimentos contemporâneos à Reforma. Desde o gnosticismo face à transubstanciação; às
revoltas contra o quarto concílio de Latrão e a obrigatoriedade da confissão; às comunas dos
Diggers e Levellers; aos anacoretas face aos cenobíticos; às práticas pagãs à Inquisição; a
história da Igreja é recheada de inumeráveis exemplos de revoltas à institucionalização do
dogmatismo.
O que temos com essas revoltas na verdade é uma insatisfação com os moldes pelos
quais se guiavam as coisas e as pessoas no Ocidente, isso é, de um lado uma insatisfação com
o modo pelo qual a Igreja católica orquestrava seu controle temporal, e do outro uma
incapacidade do modelo feudal de lidar com novas relações econômicas e políticas que
despontavam. A crise da pastoral cristão não se constitui, de modo algum, como um
abandono da temática pastoral, mas sim como uma explosão, uma grande profusão da questão
pastoral.
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Ao mesmo tempo que essa crise gerou uma intensificação do pastorado como conduta
das almas, por meio do enrijecimento dos métodos de controle dos indivíduos; a crise também
gerou uma extensão do pastorado temporal, por meio da intervenção na vida material e
temporal dos indivíduos, seja nas questões de higiene, da infância, dentre tantos outros
campos que passaram por um processo de governamentalização crescente fora da autoridade
eclesiástica, desde os últimos séculos.
A dita explosão é acompanhada no campo filosófico por toda uma reviravolta no modo
de fazer filosofia. A partir de Descartes, vemos uma retomada da questão sobre como
governar, como conduzir no âmbito privado, questão comum aos estoicos e epicuristas
imperiais e presente em toda época helenística, porém completamente suspensa no fazer
filosófico medieval; depois dessa primeira retomada temos também outro elemento que será
central na obra de Foucault que é a abordagem kantiana da crítica como a arte de não se
deixar governar. Igualmente essa amplificação do pastorado também perpassa o âmbito do
governo político, isto é, toda uma nova série de perguntas acerca de como governar os
homens.
Esse governo dos homens apresenta dois problemas imediatos: primeira a questão
acerca da racionalidade e do cálculo governamental e a segunda questão acerca dos domínios
do governo, ou seja, o que pode se constituir como objeto de governo. Temos então uma
quebra no continuum que vai justificar o governo do soberano sobre os homens de modo
inquestionável, e essa quebra se dá por conta de um processo maior de
“desgovernamentalização do cosmo”(FOUCAULT, 2008, p.316). Processo esse que nos afasta
de um mundo governado pastoralmente por Deus, onde há uma causa final aparente e mística
em tudo; esse afastamento se dá com o surgimento da episteme clássica:
O que torna possível o conjunto da episteme clássica é, primeiramente, a relação a um conhecimento de ordem. Quando se trata de ordenar as naturezas simples, recorre-se a uma máthêsis cujo método universal é a Álgebra. Quando se trata de pôr em ordem naturezas complexas (as representações em geral, tais como são dadas na experiência), é necessário constituir uma taxonomia e, para tanto, instaurar um sistema de signos.(FOUCAULT, 2007, p.99)
Esse fato do aparecimento da episteme clássica se caracteriza como fato de extrema
importância, uma vez que temos as similitudes entre a matematização clássica e a
racionalização dos modos de governar, como fica explicitado na seguinte passagem:
O Estado moderno nasce, a meu ver, quando a governamentalidade se torna efetivamente uma prática política calculada e refletida. A pastoral cristã parece-me ser o pano de fundo desse processo, estando entendido que há, por um lado, uma imensa distância entre o tema hebraico do pastor e a pastoral cristão e haverá, é claro, outra distância não menos importante, não menos ampla, entre o governo, a direção pastoral dos indivíduos e das comunidades e o desenvolvimento das artes de governar, a especificação de um campo de intervenção política a partir dos séculos
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XVI-XVII. (FOUCAULT, 2008, p.219-220)
Surgimento então do espaço próprio ao governo, do campo de intervenção política,
isto é, o surgimento do governo político como questão central. Esse espaço político deve se
diferenciar do pastorado como vimos, para que possa se desenvolver plenamente. Não
devemos entender o conceito de Estado como algo acima dos indivíduos, mas sim como uma
espécie de “matriz moderna da individualização, ou uma nova forma de poder
pastoral”(FOUCAULT, 1995, p.237). O governo “é mais do que a soberania, é um suplemento
em relação à soberania, é algo diferente do pastorado, e esse algo que não tem modelo, que
deve buscar seu modelo, é a arte de governar”(FOUCAULT, 2008, p.317).
Algumas características dessa nova forma do pastorado, devem ser ressaltadas.
Primeiramente, o objetivo da pastoral não é mais assegurar a salvação em outro mundo, mas a
salvação nesse mundo. “E, nesse contexto, a palavra salvação tem diversos significados:
saúde, bem-estar(isto é, riqueza suficiente, padrão de vida), segurança, proteção contra
acidentes”(FOUCAULT, 1995, p.238). Em segundo lugar, essa nova pastoral era exercida ora
por instituições públicas, ora por iniciativas privadas, diferenciando-se da soberania pura e
simples. Tendo em vista sempre dois polos de atuação, de um lado um saber quantitativo
relativo à população, e de outro um saber analítico concernente ao indivíduo.
Voltamos agora à questão da arte de governar que havíamos exposto anteriormente.
Passamos então de um poder pastoral voltado unicamente para a salvação das almas, e que era
exercido exclusivamente pela autoridade eclesiástica; para um pastorado que problematizado
e em crise se reinventa por meio da proliferação tanto à outros modelos de condução das
almas, por diferentes autoridades eclesiásticas, quanto pelo governo político dos homens
propriamente dito. A pastoral, portanto, figura como um dos alicerces da governamentalidade,
sendo seu modelo antigo; passemos agora aos outros alicerces, que se caracterizam como
modelos que se efetuam na atualidade.
RAZÃO DE ESTADO
O surgimento da episteme moderna, e consequentemente o rompimento do continuum
cosmológico-teológico, como vimos, acaba com toda a ingerência divina que fuja a uma
razão. Esse acontecimento na história da razão ocidental, instaura um novo paradigma, que
traz por um lado o surgimento da busca pelos princípios fundamentais da natureza e por outro
uma série de questionamentos acerca da razão própria ao governo. “Uma natureza – que não
pode ser compreendida se supusermos um seu governo, que só pode ser compreendida,
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portanto, se a alijamos de um governo pastoral e se lhe reconhecemos para regê-la, a
soberania de alguns princípios fundamentais”(FOUCAULT, 2008, p.319).
Essa mudança epistêmica afetou também a maneira de pensar aquilo que se chamava
política, “a política, que seria um pouco para a arte de governar o que a máthesis era, na
mesma época, para a ciência da natureza”(FOUCAULT, 2008, p.384) A continuidade entre o
soberano e o divino é rompida também, devendo o Estado, a república, se alicerçar em uma
nova série de verdades, e “um governo que vai muito além da soberania”(FOUCAULT, 2008,
p.319). essa nova forma de justificativa, de manutenção do poder do soberano, se caracteriza
como Razão de Estado. Segundo a definição de Botero, um dos primeiros teóricos da razão de
Estado, “o Estado é uma firma dominação sobre os povos”(BOTERO, Della ragion di Stato
libre dieci, 1598, apud FOUCAULT, 2008, p.318), vemos que o Estado se define não
territorialmente, mas pela sua população; e a razão de Estado é “um conhecimento perfeito
dos meios pelos quais os Estados se formam, se reforçam, duram e crescem” (BOTERO,
Della ragione di Stato dieci libri, 1598, apud FOUCAULT, 2001, p.969, tradução nossa)
Com a crise do pastorado clássico, começa um processo crescente de
governamentalização do Estado, e proliferação da pastoral por instituições estatais e privadas.
Toda uma nova problemática política se abre com o aparecimento de uma racionalidade
específica a gestão do Estado. “A doutrina da razão de Estado tenta definir em que os
princípios e os métodos do governo estatal diferem, por exemplo, da maneira como Deus
governa o mundo, o pai sua família, ou um superior sua comunidade”(FOUCAULT, 2001,
p.969, tradução nossa). Essa afirmação de que a busca dos alicerces do governo deve ser
buscado fora da continuidade entre leis humanas, leis naturais e leis divinas; leva à acusações
de ateísmo e mesmo a condenação por parte do papa Pio V que afirmou que a razão de Estado
é a razão do diabo. Aqueles que estudam a razão de Estado “não se interessam pela natureza
nem por suas leis em geral. Interessam-se pelo que é o Estado, pelo que são suas
exigências”(FOUCAULT, 2001, p.971, tradução nossa).
A razão de Estado é uma descoberta nova, não é uma releitura de métodos antigos, é
uma descoberta que acompanha uma série de descoberta científicas, como aponta Chemnitz:
“Os matemáticos modernos descobriram com suas lunetas novas estrelas no firmamento e
manchas no sol. Os novos políticos também tiveram suas lunetas, por meio das quais
descobriram o que os antigos não conheciam ou haviam ocultado com cuidado”(CHEMNITZ,
Dissertatio, t.i, 1712, apud FOUCAULT, 2008, p.322).
Todas essas novidades da razão de Estado tiveram uma recepção bastante controversa,
sendo a princípio tratadas como heterodoxias políticas, porém de toda essa literatura contra a
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razão de Estado, tomemos três palavras para analisarmos mais a fundo: Maquiavel, político e
Estado. Primeiro temos a referência a Maquiavel, que como vimos não pode ser caracterizado
como arte de governar, porque aquilo que Maquiavel busca salvar é a relação do príncipe com
aquilo sobre o que ele exerce seu poder, não se trata de governar a população, ou de pensar
meios de assegurar a continuidade do Estado, mas o que está em questão é a manutenção do
príncipe como soberano.
Os críticos da razão de Estado, que são os defensores de uma manutenção do modelo
católico tradicionalista de governo, aonde o soberano apenas exerce sua soberania em alusão
ao soberano divino, ou seja, uma manutenção do continuum cosmológico-teológico que estava
sendo bombardeado em diversos campos pelas descobertas da época. Esses críticos acusam os
partidários da razão de Estado de não possuírem uma fundamentação séria de suas
afirmações, uma vez que tirando Deus da equação em última instância toda a razão de Estado
se curva perante aos caprichos do príncipe. A acusação que recai sobre os partidários da razão
de Estado é o de estarem apenas repetindo o maquiavelismo, e não trazendo uma nova teoria.
Dentre aqueles que defendiam a razão de Estado teremos, de um lado aqueles que
afirmam que Maquiavel não serve de forma alguma para a razão de Estado, suas teorias
servem apenas para a manutenção do poder de um príncipe e não para o objetivo de
manutenção e expansão do Estado em si.
De outro lado porém, houveram defensores da razão de Estado que fizeram um esforço
de apropriação de Maquiavel, alguns chegaram a afirmar que a origem da razão de Estado
deveria ser buscada em Maquiavel, que teria orquestrado ao mesmo tempo a invenção da
razão de Estado e o renascimento de um ideal político inspirado na antiguidade pagã (cf.
ZARKA, In: RAYNAUD et RIALS, 2008, p.611-615). Essa afirmação de que Maquiavel
seria a origem da razão de Estado é contestada por dois pontos de vista opostos. Primeiro por
aqueles que afirmam que a razão de Estado pode se ligar aos conceitos medievais de ratio
publicae utilitatis, de ratio status, e de necessitas. Do outro lado temos aqueles que afirmam
que a razão de Estado não pode ser encontrada nem em Maquiavel e nem na Idade Média,
mas somente a partir de Botero podemos vislumbrar a razão de Estado propriamente dita.
Segunda palavra de destaque a analisar, político. Em todo esse corpo de textos que
passam por Maquiavel, seja para negá-lo seja para aceitá-lo, e que de toda forma “a coisa não
passa por ele, mas se diz através dele”(FOUCAULT, 2008, p.325), bem em todos esses textos
há uma referência negativa aos políticos, como uma espécie de seita herética. Não
encontramos num primeiro momento uma referência à política, como domínio, as referências
são aos políticos, entendidos como “pessoas que, entre si, unem certa maneira de pensar, certa
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maneira de conceber oque um governo deve fazer e em que forma de racionalidade se pode
apoiá-lo” (FOUCAULT, 2008, p.328), ou ainda “uma certa maneira de colocar, de pensar, de
programar a especificidade do governo em relação ao exercício da soberania”(idem).
O problema da política ou dos políticos tratados como uma forma de heresia não
perdura por muito tempo, porém sua persistência, mesmo que limitada, é sintomática de uma
diferença nos modos de enxergar o governo do Estado e o objeto que deve ser buscado nos
textos que visavam dar sustentação ao domínio estatal. Essa diferença de objetos é explicitada
quando entendemos que “por oposição ao problema jurídico-teológico do fundamento da
soberania, os políticos são os que vão tentar pensar em si mesma a forma de racionalidade do
governo”(FOUCAULT, 2008, idem). Contudo, já em meados do século XVII a política como
domínio de ação estatal torna-se lugar comum, um domínio valorizado positivamente.
Essa positivação da política consolida a razão de Estado, como conhecimento
fundamentado, ou ao menos, não contrário às escrituras, essa passagem é vivificada pela
afirmação de Luís XIV de que “o Estado sou eu”. A reconciliação do governo e da soberania
dentro dos ditames eclesiásticos e pastorais representam a pá de cal no túmulo do sonho da
reunificação imperial, do sacro império romano dos últimos dias, esse abandono do ideal
imperial vai ser extremamente significativo para o pleno desenvolvimento da técnica
diplomático militar, como veremos mais a frente.
Enfim a última palavra de destaque desse corpo de textos, o Estado. Palavra que figura
em todas as passagens e que figura como objeto central de nossa pesquisa, sabendo que com
essa pequena história da governamentalidade estamos buscando elucidar um pouco mais o
processo de aparecimento do Estado moderno, ou o processo de governamentalização do
Estado. Não falamos em nenhum momento de nascimento do Estado, mas sim do momento
no qual o Estado se torna uma prática refletida, passa a ser objeto de conhecimento de uma
ciência específica que se desenvolve para esse fim específico. “O Estado nada mais é do que
uma peripécia do governo, e não o governo que é um instrumento do Estado”(FOUCAULT,
2008, p.331).
O que é um rei? O que é um soberano? O que é um magistrado? O que é um corpo constituído? O que é uma lei? O que é u território? O que são os habitantes desse território? O que é a riqueza do príncipe? O que é a riqueza do soberano? Tudo isso começou a ser concebido como elemento do Estado. O Estado foi certa maneira de conceber, de analisaram de definir a natureza e as relações desses elementos já dados. O Estado é, portanto um esquema de inteligibilidade de todo um conjunto de instituições já estabelecidas, de todo um conjunto de realidades já dadas. (FOUCAULT, 2008, p.384-385)
Além de ser um esquema de inteligibilidade, o Estado também é, de certa forma, um
objetivo a ser alcançado, a felicidade, a continuidade, o fortalecimento do Estado. Um
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objetivo estratégico que se busca alcançar por meio de intervenções ativas. “Governar
racionalmente porque há um Estado e para que haja um Estado”(FOUCAULT, 2008, p.386)
Deixando os críticos da razão de Estado, passemos agora as definições que seus
partidários vão lhe dar. Começando por Palazzo que define a razão de Estado como “um
método ou uma arte que nos permite descobrir como fazer reinar a ordem e a paz no seio da
República” (PALAZZO, Discorso del governo e della ragione vera di Stato, 1606, apud
FOUCAULT, 2001, p.970). Palazzo define a razão de dois modos, objetivo e subjetivo; a
razão objetiva é aquilo que constitui a essência, a união de todas as partes em um todo; a
razão subjetiva é uma capacidade da alma que permite que captemos essa unidade objetiva.
Palazzo vai definir o Estado em quatro sentidos: primeiramente Estado significa “um
lugar limitado do domínio”(PALAZZO, op cit, apud FOUCAULT, 2008, p.373, n.6), uma
limitação geográfica da atuação, do poder do domínio. Em segundo lugar “estado significa a
mesma jurisdição […] tal estado outra coisa não é senão um domínio perpétuo e estável do
príncipe”(idem), um conjunto de leis e regras comuns, segundo Foucault uma Instituição. Em
terceiro lugar “estado significa uma opção perpétua de vida”(idem), como por exemplo uma
opção de profissão ou de estado civil. Última definição de Estado, “estado significa uma
qualidade das coisas contrárias ao movimento”(idem).
A república é um estado, nos quatro sentidos da palavra, que venho de explicar. Uma república é antes de mais nada um domínio, um território. É, depois, um meio de jurisdição, um conjunto de leis, de regras, de costumes. A república, se não é um estado, pelo menos é um conjunto de estado, isto é, de indivíduos que se definem por seu estatuto. E, enfim, a república é certa estabilidade dessas três coisas precedentes: domínio, jurisdição, instituição ou estatuto dos indivíduos.(FOUCAULT, 2008, p.342-343)
Partindo dessas definições iniciais de Palazzo, a razão de Estado então será definida
objetivamente como tudo o que é necessário, para a manutenção do Estado em todos os quatro
sentidos apresentados. E, subjetivamente, a razão de Estado é a arte que assegura essa
manutenção, que assegura a paz. A dicotomia do termo status, como Estado propriamente
dito, ou como imobilidade e repouso, é explorada por Palazzo em todas as suas nuances que
busca manter o estado do Estado.
Essa definição de razão de Estado não se referencia a nada fora do Estado, não há
ordem natural ou lei divina que esteja por trás do Estado. A razão de Estado é a própria
essência do Estado, sua verdade, sendo assim a arte de governar possui de um lado um caráter
teórico de busca da verdade do Estado e um caráter prático de intervenções materiais
propriamente ditas. E mais, a razão de Estado visa a conservação, ou manutenção do Estado
dentro de um campo de forças mutáveis que não perite estagnação, e exige o aprimoramento
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constante, mas mesmo assim ainda se trata de conservação. Enfim, a finalidade dessa razão de
Estado é o próprio Estado, não há uma finalidade exterior, não há nem mesmo uma finalidade
propriamente dita, estamos num espaço em que há uma abertura histórica para o futuro, não
há mais um ponto final, um dia do julgamento.
Essa análise da razão de Estado vemos esboçar-se um tempo, um tempo histórico e político que tem, em relação ao que tinha dominado o pensamento na Idade Média ou até mesmo ainda na Renascença, características bem particulares. Porque se trata justamente de um tempo indefinido.(FOUCAULT, 2008, p.436)
Esse novo tempo trás consigo algumas características específicas, em primeiro lugar,
deixa de se levar em conta o problema da origem, ou o problema da dinastia. Em Maquiavel
ainda dependendo da forma como se adquiriu o poder há coisas distintas a se fazer, na razão
de Estado, deve-se manter o Estado e não se busca de forma nenhuma uma justificativa para a
origem do Estado, ou sua justificação temporal. Da mesma forma, perde o sentido a colocação
do problema do ponto terminal, o governo não almeja mais a salvação dos indivíduos em
outra vida, mas busca apenas a salvação e perpetuação do Estado nesse mundo. É a morte do
sonho medieval do Império dos últimos dias e do retorno de cristo. Essa temática é
ressignificada de certo modo na questão da paz perpétua, que era na Idade Média um caráter
do império, agora passa a ser a questão central e completamente desassociada da absorção dos
Estados, inclusive a paz perpétua só é possível entre diversos Estados. Noção da balança de
Estados que analisaremos logo mais.
Existe uma correspondência histórica da razão de Estado com o poder pastoral, porém
da mesma forma que a pastoral cristã era completamente diferente da pastoral hebraica;
também aqui, encontramos diferenças e especificidades enormes entre a pastoral e a razão de
Estado. Alguns desses traços específicos da razão de Estado em relação ao poder pastoral
analisaremos com mais calma,cada um ao seu tempo, são eles: o problema da salvação, o
problema da obediência e o problema da verdade.
A especificidade do problema da salvação na razão de Estado é evidenciado estudando
a temática do golpe de Estado, não da forma como compreendemos o termo hoje em dia, mas,
diferentemente, na forma como os teóricos da razão de Estado, pensavam o problema no
século XVII. “A palavra 'golpe de Estado', no início do século XVII, não significava em
absoluto o confisco do Estado por uns em detrimento dos outros, que o teriam detido até então
e que se veriam despojados de sua posse”(FOUCAULT, 2008, p.349). Golpe de Estado era
entendido como uma ação legitima do príncipe tendo em vista o bem público ou a
conservação do povo. Ação essa que poderia, pelas severidade das circunstâncias, se utilizar
de mecanismos fora da legalidade. Necessitas non habet legem (a necessidade não tem lei).
67
Segundo Chemnitz à razão de Estado “cumpre comandar, não segundo as leis, mas as
próprias leis, as quais devem se acomodar ao presente estado da República, e não o Estado às
leis”(CHEMNITZ, Interets des Prince d'Allemagne, 1712, apud FOUCAULT, 2008, p.376,
n.23). Essa superioridade da razão de Estado face às leis em função de uma necessidade
politica maior é que vai tornar possível a prática do golpe de Estado, não como uma ruptura,
mas como uma necessidade da ordem estabelecida. “A racionalidade da razão de Estado é
concebida como superior àquela que concerne o governo corrente dos assuntos
públicos”(ZARKA, In: RAYNAUD et RIALS, 2008, p.612). A razão de Estado é “o resíduo
irredutível de não-direito que acompanha a arte de governar, quando a necessidade
exigir”(ZARKA, In: RAYNAUD et RIALS, 2008, p.611).
O golpe de Estado representa um caráter único da razão de Estado, porque explicita o
fato de que são as leis que devem se dobrar a razão de Estado, e não o Estado que deve seguir
as leis. Obviamente esse ultrapassamento do campo jurídico, não pode ser algo corriqueiro,
mas é sempre uma possibilidade em nome da salvação do Estado, isto é, para assegurar a
continuidade e o crescimento do poder do Estado. “O golpe de Estado é a automanifestação
do próprio Estado”(FOUCAULT, 2008, p.350).
Algumas noções são importantes na compreensão da relação de salvação na razão de
Estado por meio do golpe de Estado, a primeira delas e a noção de necessidade. A lei própria a
razão de Estado é a lei da necessidade, necessidade de salvação do Estado. A lei da
necessidade está acima das leis do direito e de toda jurisprudência corriqueira. “Não, portanto,
governo relacionado com legalidade, mas razão de Estado relacionada com
necessidade”(FOUCAULT, 2008, p.351).
Essa questão da necessidade associada ao golpe de Estado nos leva à segunda noção
importante, a de violência. O golpe de Estado é inerentemente violento, mas essa violência
não faz parte da prática habitual do governo, apenas em nome da necessidade de salvação do
Estado é que a violência é praticada. “Pode-se até dizer que a violência do Estado nada mais é
que, de certa forma, a manifestação irruptiva de sua própria razão”(FOUCAULT, 2008,
p.353).
Outro ponto importante do golpe de Estado é sua teatralidade. É necessário que o
golpe de Estado seja imediatamente reconhecido, por isso há uma necessidade premente de
certa encenação da efetivação do golpe. Para que um golpe de Estado seja triunfante é preciso
que haja segredos quanto ao seu preparo, porém no momento em que o golpe é deflagrado é
preciso que haja adesão a seus efeitos e às razões que o sustentam.
Esse problema da prática teatral será melhor estudado por Foucault no curso de 1980
68
“do Governo dos Vivos”, aonde irá desenvolver o conceito de aleturgia, a partir de aleteia e
liturgia, ou seja, os serviços públicos associados a validação de uma verdade. A teatralidade
política perpetrada pelos golpes de Estado são uma forma de aleturgia da razão de Estado.
Toda essa temática do golpe de Estado, sua necessidade e sua violência, enfim, tudo
isso se insere na grande temática da salvação específica da razão de Estado. Não é mais, como
no poder pastoral, a salvação das ovelhas o do rebanho que se busca, é a salvação do Estado,
por meio do uso racional da violência nos momentos em que se faça necessária. Essa nova
configuração vai de encontro a todas as mudanças que ocorreram nesse período, sejam
mudanças científicas ou política, mudança cosmológica, mas também geopolítica com o início
do período de governamentalidade indefinida, aonde os Estados se encontram em constantes
flutuações de níveis de enfrentamento.
O segundo traço específico da razão de Estado em relação ao governo pastoral se dá
em relação à questão da obediência, questão central à temática pastoral católica como vimos.
A temática será abordada tomando como ponto de partida o ensaio de Francis Bacon
intitulado ensaio sobre sedições e distúrbios, para que possamos contrastá-lo com a obra de
Maquiavel. Nota-se de partida um contraste face aos textos pastorais, que dissertavam sobre a
arte da obediência, enquanto que no ensaio do inglês o que está em questão não é a obediência
propriamente dita, ou os métodos para se atingir a obediência, mas sim a desobediência e os
meios para lidar com a inevitabilidade da revolta.
Foucault define o ensaio de Bacon como uma física das sedições, ou seja, as sedições
são fenômenos naturais, imanentes à vida da república, segundo a definição de Bacon as
sedições são como “tempestades nos Estado”, e somente é possível prever uma tempestade
prestando atenção aos seus primeiros sinais de
desordens, pois é da calmaria que se produzem as piores tempestades. É necessário então a
constituição de toda um semiótica da revolta, que leve em conta tanto os discursos contra o
Estado, como também os pequenos empecilhos ao funcionamento interno da própria maquina
estatal. Esses sinais que se deve buscar podem vir debaixo, do descontentamento popular, ou
de cima, do descontentamento dos generais e grande senhores a quem o soberano possa ter,
como diz a sabedoria popular, “o rabo preso”.
As sedições possuem suas causas próprias, e essas causas são divididas em causas
ocasionais e causas materiais. A materialidade das sedições é o que constitui o elemento
inflamável, o material combustível e se divide em dois tipos. A primeira causa material é a
indigência, a fome, um nível de pobreza que deixa de ser suportável. Em seguida,
existem os fenômenos de descontentamento que são independentes do estômago, porque
69
são da ordem da opinião, da cabeça, são os descontentamentos. Fome e opinião são os
combustíveis das sedições.
As causas ocasionais são as fagulhas que caem sobre o material inflamável sem que
haja grandes possibilidades de controle, essas causas são inúmeras, múltiplas e imprevisíveis.
Não se deve portanto buscar impedir as revoltas combatendo as causas ocasionais, é preciso
agir contra as causas materiais, para que ao cair a fagulha não encontre combustível o bastante
para se alastrar.
O remédio às sedições deve se aplicar então ou sobre a indigência ou sobre as
opiniões, a barriga ou a cabeça. Para remediar a indigência, Bacon exemplifica várias medidas
que podem surtir o efeito desejado, todas as medidas buscam diminuir as grandes
discrepâncias na distribuição das riquezas e assegurar o equilíbrio entre as camadas
produtivas e as improdutivas (nobreza e clero). Para remediar os descontentamentos Bacon
divide a população em duas porções, de um lado o povo comum e do outro a nobreza. As
sedições só ocorrem quando há a união entre as duas porções, pois para Bacon o povo é
incapaz de agir sozinho por sua lerdeza e a nobreza por sua fraqueza. Para lidar com o nobres
é mais simples, sendo em menor número e estando próximos do rei podem ser executados,
traídos, comprados ou qualquer outro método eticamente questionável tão comum nas cortes
europeias. O foco da remediação deve estar descontentamento popular, muito mais difícil de
se lidar e de controlar.
Essa apresentação esquemática do ensaio de Bacon tem por objetivo, como apontamos
se colocar em contraste com as teorias de Maquiavel, visando explanar as diferenças e
especificidades dessa nova arte de governar que se desvelava nesse período.
O primeiro contraste possível com Maquiavel é que o problema central dos textos
políticos dele eram como fazer para assegurar a continuidade do soberano e para evitar
ataques ao seu poder pessoal. Para Bacon o problema é outro, o ensaio citado trata de técnicas
de governo que visem impedir a efetivação de algo que no fundo é inevitável, a saber, a
sedição e a sublevação. É a virtualidade desse constante perigo de sublevação que deverá
ocupar a arte de governar do soberano. “E o governo – é um dos seus aspectos – serpa
precisamente a assunção dessa possibilidade de sedição e da sublevação”(FOUCAULT, 2008,
p.362).
O segundo ponto é o ponto da localização do maior foco de ameaças, para Maquiavel
a maior ameaça ao poder de um soberano são os nobres que poderiam armar um complô para
derrubá-lo. Para Bacon o problema dos nobres é menor, pois sua proximidade e seu numero
reduzido o tornam mais facilmente controlável. O problema principal é o povo e “governar
70
vai ser essencialmente governar o povo”(idem).
O terceiro elemento de contraste entre os dois filósofos é que Maquiavel se interessava
pelas características aparentes do príncipe, como o príncipe deve ser visto pelos outros, um
cálculo dos epítetos do príncipe. Enquanto que em Bacon o que temos é um cálculo que visa
elementos da economia, e, ao mesmo tempo, elementos da opinião. Economia no sentido de
que as técnicas para evitar as sedições materiais devem intervir nas riquezas, circulações,
impostos, taxas, etc. E de opinião pois essas medidas de governo devem também interromper
o crescimento dos descontentamentos. “Economia e opinião são, a meu ver, os dois grandes
elementos de realidade que o governo terá de manipular”(FOUCAULT, 2008, p.363). Eis
portanto a especificidade da questão da obediência na razão de Estado, o que esta em jogo
aqui não são mais conselhos ao príncipe ou um guia ético ao cidadão, mas sim uma nova
forma colocar o problema, tratando a desobediência como inevitável e focando as ações sobre
a economia e a opinião visando minimizar as sedições. Temos um modelo já bastante próximo
da tecnologia de segurança, mas ainda não é disso que falamos exatamente.
O terceiro traço específico da razão de Estado em relação ao governo pastoral é o
problema da relação entre a razão de Estado e a verdade. A questão da verdade na razão de
Estado vai se diferenciar do pastorado e das técnica arcaicas da arte de governar. O pastorado
mantém uma estreita relação com a verdade, seja ela ensinada pelo pastor, ou extraída do
fundo da alma da ovelha. Nos conselhos ao príncipe das artes de governar até o século XVII o
que tínhamos era uma relação aonde o príncipe deveria ser um grande conhecedor das leis do
reino, das leis naturais e das leis divinas; o conhecimento que um príncipe deveria buscar é a
partir das leis do mundo fazer o uso prudente de suas forças, sabendo distinguir o momento do
rigor férreo e o momento da misericórdia cristã.
Nesses novos escritos sobre a razão de Estado, como racionalidade intrínseca da arte
de governar, temos uma nova série de conhecimentos para o governante, seja o soberano ou
não. Conhecimentos novos que não se centram mais no conhecimento das leis, mas que vão se
centrar no conhecimento do Estado que se governa, isto é, “quem governa tem de conhecer os
elementos que vão possibilitar a manutenção do Estado em sua força ou o desenvolvimento
necessário da força do Estado, para que ele não seja dominado pelos outros”(FOUCAULT,
2008, p.365).
Essa ciência do Estado é o que vai se chamar estatística. A palavra estatística só
aparece em meados do século XVIII e é derivada do termo neolatino statisticum collegium
("conselho de Estado"). Estatística então é a ciência do Estado, segundo o dicionário de
francês Petit Robert, o termo sem seu sentido arcaico designava o “estudo metódico dos fatos
71
sociais, através de métodos numéricos, destinado a informar e auxiliar os governos”(PETIT
ROBERT, 2010, p.2431, tradução nossa).
Temos aqui uma mudança capital na forma de relação do governante com a verdade,
“Não mais, portanto, corpus de leis ou habilidade em aplicá-las quando necessário, mas
conjunto de conhecimentos técnicos que caracterizam a realidade do próprio
Estado”(FOUCAULT, 2008, p.365).
Além do desenvolvimento da estatística, a relação da razão de Estado com a verdade
também pode ser descrita por outros elementos. Um desses elementos seria a relação dessa
com o segredo, em especial os segredos de Estado. Os conhecimentos essenciais acerca das
forças de um Estado, em especial os dados estatísticos, não poderiam cair em mãos inimigas,
e por isso eram tratados como segredos de Estado, ou arcana imperii. O conceito de arcana
imperii é interpretado por alguns autores como tendo origem no discurso eclesiológico
medieval(cf SENELLART, p.264-266), porém para Bodin, e para Senellart, o conceito era um
resgate à filosofia antiga, sendo um conceito aristotélico e tendo em Tácito seu último teórico
antes de Maquiavel. O uso do conceito é uma ruptura com a filosofia cristã medieval e seu
esquecimento da arte politica, por meio de um retorno à filosofia antiga orquestrada por
Bodin.
Outro elemento importante é o problema do público, a razão de Estado deve executar
todo um complexo trabalho sobre esse sujeito-objeto que é o público. Esse trabalho sobre a
opinião do público não se restringi à imposição de um discernimento entre o que é verdadeiro
e falso, mas a modificação da opinião deveria também modificar o modo de agir desse
público, modo de agir como sujeitos econômicos e políticos.
Tomando então esses três traços específicos, a saber: a salvação e o golpe de Estado, a
obediência e a sedição, e a verdade a estatística e o público; percebemos que há um elemento
que será central à tecnologia de segurança, mas que se mantém ausente da reflexão acerca da
razão de Estado, embora mantendo uma certa presença espectral. Falamos da população, o
conceito de população não aparece nos estudos dessa época, porém quando se trata da
salvação se fala da felicidade do Estado, a felicidade do Estado de certa forma essa felicidade
é a felicidade da população; a obediência trata do problema da revolta do povo e de seu
controle, mais uma vez a população se faz sentir por sua ausência; a verdade por sua vez deve
moldar a opinião do público, conceito bastante próximo à população. A noção de população,
porém, apenas será elaborada mais tarde, quando todos esses apontamentos levarão à
necessidade da criação de um aparelho específico de controle da população, a polícia.
72
TÉCNICA DIPLOMÁTICO MILITAR
Quando falávamos da necessidade de que a razão de Estado não buscasse uma
manutenção dos Estados engessante, o fazíamos lembrado que a manutenção dos Estados
deve ser buscada como uma forma de ampliação e fortalecimento do Estado, uma vez que
esse se encontra em um campo de forças e em estado de concorrência com outros Estados. O
repouso puro e simples de um Estado é o que pode levá-lo à queda face aos avanços da
história, e essa queda das civilizações, Estados ou República é justamente o que a razão de
Estado visa evitar acima de tudo. No vocabulário da época esse processo de esfacelamento do
Estado era chamado de revolução.
Essa ideia da concorrência entre Estados era uma ideia nova e fundamental, que surgiu
com o avanço da razão de Estado. Devemos abordar esse nova temática sob os aspectos
teóricos e práticos. Teoricamente a razão de Estado ao afirmar sua racionalidade centrada no
Estado, sem referenciais externos, desenha-se um panorama onde desponta uma pluralidade
de Estados em convivência, não necessariamente harmônica. A coexistência e concorrência
entre Estados é segundo o próprio Foucault uma consequência “inelutável da razão de Estado.
É a ideia de uma historicidade aberta, aonde não há mais espaço para o fim dos tempos, e
portanto não há mais espaço para a refundação do sacro-império último; e aonde a pluralidade
de Estados também não aparece como fase transitória entre o império romano e o império do
juízo final, do retorno apocalíptico do messias.
Essa correlação entre a pluralidade de Estados e a razão de Estado, em cuja prática se
encontra gérmen daquela, não se efetiva somente como uma articulação teórica, ela está
articulada a uma realidade histórica específica. Foi por meio das práticas governamentais
adotadas sob a insígnia dessa nova racionalidade política que se efetivaram essas novas
formas de relação entre os Estados; mais especificamente falando, o surgimento desse
paradigma de uma história infinda em que diversos Estados se encontram em constante
concorrência, e consequentemente o fim definitivo do império romano e de qualquer
possibilidade de rearticulação imperial de unificação da Europa, todos esses fatos tem uma
data de surgimento muito bem delimitada, 1648.
O ano de 1648 é marcado pela assinatura do Tratado de Vestefália, no qual foi
estabelecida a chamada paz de Vestefália, que pôs fim da guerra dos 30 anos, marcando
também, ao mesmo tempo, o fim definitivo do Império Romano e o nascimento da Europa
como a conhecemos.
Podemos marcar aí o fim do Império Romano, porque a Paz de Vestefália põe fim as
73
pretensões do Império Universal, sendo um marco do reconhecimento dos Estados como
unidade soberana. Os Estados, em processo de crescente governamentalização, e regidos cada
vez mais pela razão de Estado, que emergem então não aceitam mais o sonho medieval de sua
diluição e fusão no Sacro Império dos últimos dias. Entramos numa época em que são
reconhecidos os impérios locais como soberanos não só dos seus territórios, mas sim como
enumera o tratado: “Todos os vassalos, súditos, pessoas, cidades, municipalidades, castelos,
casas, fortalezas, florestas, bosques, minas de ouro e prata, minerais, rios, riachos, pastos...”
(Tratado de Münster, artigo LXXVI, 1648 apud RODRIGUES, 2008, p.328). Na Paz de
Vestefália acata-se a “a fórmula do ejus regio, ejus religio – em cada Estado, a lei desse
Estado -, base lógica do sistema de Estados soberanos” (RODRIGUES, 2008, p.131).
Os Estados colocados nesse novo paradigma de coexistência devem buscar sua
perpetuação por meio do fortalecimento constante de suas forças, pois as relações de
constantes concorrências implicam que qualquer estagnação das forças de um Estado
implicam necessariamente uma posição de desvantagem frente aos outros Estados que não se
deixaram estagnar. Passamos de um momento histórico caracterizado pelas rivalidades entre
príncipes, ou rivalidades dinásticas, para um momento de rivalidade entre os Estados. O que
tem valor estratégico para o cálculo das possibilidades de enfrentamento não são mais as
territórios, posses e riquezas de um príncipe; mas das forças de um Estado, força essa
calculada de forma muito mais sólida. Nova categoria fundamental, estrato teórico da razão
política, a força de um Estado. “Todos esses fenômenos conduzem a uma mutação no
pensamento político que faz que estejamos, pela primeira vez, em presença de um pensamento
político que pretende ser ao mesmo tempo uma estratégia e uma dinâmica de
forças”(FOUCAULT, 2008, p.397).
Razão de Estado portanto, visa a manutenção do estado do Estado, porém esse estado
não pode ser fixo, ele é sempre um estado de constante fortalecimento do Estado, caso
contrário significaria sua derrocada e seu desaparecimento. A necessidade da constante
manutenção das relações de forças levou às novas técnicas de tipo diplomático-militar. Essas
novas técnica visavam estabelecer um sistema onde se restringisse ao máximo a mobilidade e
as ambições dos outros Estados, sem que isso implicasse uma restrição ao desenvolvimento
das forças de seu próprio Estado. Essas técnicas possuíam um objetivo e instrumentos
específicos.
O objetivo era obviamente o equilíbrio da Europa, dois conceitos novos que merecem
ser tratados individualmente. Primeiramente o conceito de Europa, note-se que já não há mias
alusão nos tratados de Vestefália à uma cristandade que deve se expandir por todo o mundo,
74
temos em seu lugar o conceito de Europa como uma delimitação geográfica específica não há
universalidade aí. Europa também se define pela inexistência de uma relação hierárquica entre
os diversos Estados, oque não implica que sejam todos iguais, existem os Estados pequenos e
os grandes, porém não há uma subordinação direta entre eles e nem a pretensão de unificação
imperial. A Europa também, e isso é fundamental, mantém relações com o resto do mundo, “a
Europa só deve ter e só começa a ter com o resto do mundo um tipo de relação, que é o da
dominação econômica ou da colonização”(FOUCAULT, 2008, p.400).
A Europa como região geográfica de Estados múltiplos, sem unidade mas com desnível entre pequenos e grandes, tendo com o resto do mundo uma relação de utilização, de colonização, de dominação, foi esse pensamento que se formou [no] fim [do] século XVI e bem no início do século XVII, um pensamento que vai se cristaliza em meados do século XVII com o conjunto dos tratados que são assinados nesse momento – e é a realidade histórica de que ainda não saímos. É isso o que é a Europa. (idem)
Depois temos o conceito da balança, do equilíbrio, Trutina Statuum Europae. Essa
noção de balança entre os Estados europeus significava a “limitação absoluta da força dos
mais fortes, equalização dos mais fortes, possibilidade de combinação dos mais fracos contra
os mais fortes: são essas as três formas concebidas e imaginadas para constituir o equilíbrio
europeu, a balança da Europa” (FOUCAULT, 2008, p.402). Os mecanismos estabelecidos
então deveriam gerar um equilíbrio inabalável, caso esse equilíbrio fosse quebrado pela
pretensão imperial de algum Estado em particular, a aliança entre os Estados asseguraria o
restabelecimento da ordem através da guerra. E foi isso que se deu com as guerras
napoleônicas e também com a segunda guerra mundial.
Com o equilíbrio entre os Estados europeus, o que se busca alcançar é um estado de
paz universal, isto é, um estado de paz mais ou menos definitivo. Os instrumentos utilizados
por essa técnica para alcançar esses objetivos, a paz universal e o equilíbrio entre os Estados,
serão principalmente três. O primeiro desses instrumentos é a guerra, deve-se fazer a guerra
para alcançar a paz, é preciso que se faça a guerra contra as pretensões imperiais de um
Estado qualquer, para que o equilíbrio se mantenha. A guerra se faz por razões diplomáticas,
pela necessidade de se reestabelecer o equilíbrio, noção bastante diferente das guerras
medievais que se travavam por querelas jurídicas ou de justiça. Doravante as guerras se fazem
por querelas políticas, eis um predecessor do famoso princípio formulado 200 anos após
Vestefália “a guerra e a continuação da política por outras formas”.
O segundo instrumento para assegura o equilíbrio entre os Estados é o instrumento
diplomático. A grande novidade que essa nova configuração da diplomacia vai trazer é que os
diplomatas não servem mais a um direito do soberano, mas devem se deixar guiar por uma
75
forma de física entre os Estados. A Europa irrompe como espécie de meio ambiente aonde vão
se desenvolver uma multiplicidade de Estados, os quais devem ser regulados para que não
impeçam o crescimento dos outros. Diplomacia permanente e com missões permanentes
estabelecidas também, ou seja, delineia-se um dispositivo permanente que deve regular essa
nova sociedade de Estados chamada Europa. Esses mecanismos tinham o intuito de apagar
definitivamente o sonho imperial, ao qual a Alemanha sempre teve grande dificuldade de se
desvincular.
O Terceiro instrumento de manutenção dessa nova paz universal será a constituição de
um dispositivo militar permanente.
No fim do século XVII, a introdução do fuzil faz o exército mais técnico, mais sutil e caro. Para aprender a manejar um fuzil, é preciso aprendizagem, manobras e instrução. É assim que o custo de um soldado excede o custo de um trabalhador e que o custo de um exército se torna um item orçamentário de todos os países. FOUCAULT, 2001, p.514, tradução nossa)
Essa inovação vai permitir a profissionalização da guerra e dos guerreiros, tornando
também a reflexão teórica e das manobras mais aprofundada e especializada, essa
profissionalização permite também que se tenha toda uma estrutura montada para o
enquadramento dos guerreiros recrutados em tempos de guerra, além disso cria-se também
toda uma estrutura de fortalezas permanentes. Os Estados que buscam o equilíbrio devem
manter suas forças militares ao menos com o mesmo poderio das forças de seus inimigos.
Por conseguinte, a constituição de um dispositivo militar que não vai ser tanto a presença da guerra na paz quanto a presença da diplomacia na política e na economia, a existência desse dispositivo militar permanente que é uma das peças essenciais numa política comandada pelo calculo dos equilíbrios, pela manutenção de uma força que se obtém pela guerra, ou pela possibilidade de guerra, ou pela ameaça de guerra. (FOUCAULT, 2008, p.409)
Um quarto instrumento que poderíamos acrescentar a essa lista seria o surgimento de
um aparelho de informação, isto é, mecanismos pelos quais se torna possível adquirir
infirmações sigilosas acerca das forças reais de um Estado. Embora a prática da espionagem
seja tão antiga quanto a guerra ou a diplomacia, temos novas características que emergem
nesse período. Somente a partir do século XVI é que se começam a organizar mecanismos
permanentes e centralizados cujo objetivo será “conhecer suas próprias forças (e, aliás,
ocultá-las), conhecer a força dos outros, aliados, adversários, e ocultar que as conhece.
(FOUCAULT, 2008, p.410 **)
POLÍCIA
76
Num panorama político em que os Estados se enfrentam constantemente num campo
relacional de forças, a arte de governar se desenvolve focada em dois mecanismos específicos.
De um lado todo o aparato diplomático-político, de representações diplomáticas permanentes,
exércitos e estruturas militares permanentes e um serviços de inteligência. Todos esses
mecanismos são como uma estrutura de apoio, ou uma espécie de sustentação externa das
forças do Estado e sozinhos não são o bastante para assegurar a prosperidade de um Estado. A
arte de governar desenvolve portanto um mecanismo diferente que terá por função ser uma
espécie de suporte interno para que as forças de um Estado possam aumentar, esse suporte
interno ao Estado governamentalizado é o que vai se chamar polícia.
Primeiramente precisamos ressaltar que o conceito de polícia aqui aplicado é utilizado
tendo em vista o que nos séculos XVII e XVIII se compreendia por polícia, bastante diferente
do conceito atual. “O que será chamado até o fim do Antigo Regime de polícia não é, ou não é
apenas, a instituição policial; é o conjunto dos mecanismos pelos quais são assegurados a
ordem, o crescimento canalizado das riquezas e as condições de manutenção da saúde 'em
geral'”(FOUCAULT, 2001, p.17, tradução nossa).
O que se tratava como polícia naquela época eram os mecanismos pelos quais a razão
de Estado vai se ocupar dos indivíduos. Como vimos o objetivo da razão de Estado é o Estado
mesmo, portanto o indivíduo se torna importante apenas enquanto pode ser útil a manutenção
e à expansão das forças do Estado. O indivíduo é tratado como um objeto marginal que deve
ser integrado à entidade social pela polícia, de uma maneira que nos remete bastante ao
pastorado e à obediência. “No Estado moderno, com efeito, a integração marginalista dos
indivíduos à utilidade do Estado não toma forma da comunidade ética característica da cidade
grega. Nesta nova racionalidade política, ela é obtida com a ajuda de uma técnica particular
que se chamou, então, a polícia.”(FOUCAULT, 2001, p.1639, tradução nossa).
A POLÍCIA NOS SÉCULO XVII E XVIII
A palavra polícia já era utilizada desde de o século XV em três sentidos principais, ora
para designar uma comunidade regida por uma autoridade pública, como em associação à
palavra República; ora como o conjunto de atos que rege essa comunidade; ora como o
resultado do bom governo dessa comunidade. A partir do século XVII a palavra adquire um
significado completamente diferente, doravante a polícia passa a identificar, de acordo com a
razão de Estado que passa a vigorar, “o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as
forças do Estado crescerem”. Temos uma passagem do conceito de polícia de um efeito para
77
uma causa, é a polícia que possibilita um crescimento estável das forças do Estado ao
assegurar a ordem interna, aquilo que chamávamos de movimento ascendente da pedagogia
do príncipe nas artes de governar. A polícia deve assegurar o esplendor do Estado, como era
colocada a questão na época. Esse esplendor representa ao mesmo tempo um estado estético
de preservação da cidade e um esplendor que emana de um povo bem adestrado.
Em segundo lugar a polícia possui uma intrincada relação com a técnica
diplomático-militar. Uma relação que se dá em vários níveis, primeiramente uma relação
formal, morfológica, isto é, ambas as técnicas estão genealogicamente conectadas, possuem
uma formação concomitante. Há também uma relação de condicionamento, uma vez que a
balança europeia só é viável se houverem polícias eficientes em todos os Estados europeus,
caso contrário há desequilíbrio. Uma terceira forma de relação seria uma espécie de
instrumentação que podemos notar pelo fato de que ambas as técnicas só são possíveis de se
efetivarem graças a estatística. É a estatística a ciência que possibilita o conhecimento das
forças reais de um Estado. “É necessário portanto um princípio de decifração das forças
constitutivas de um Estado […] e é nessa medida que a estatística vai se encontrar na
articulação dos dois conjuntos tecnológicos”(FOUCAULT, 2008, p.424)
Em terceiro lugar, diferentemente da razão de Estado que se desenvolveu de uma
forma mais homogênea, a polícia se desenvolveu de uma forma bastante desproporcional em
diferentes regiões. Enquanto os diplomatas e representações permanentes e o exército
profissional e as bases permanentes foram fenômenos difundidos por todos os Estados
europeus, a polícia se desenvolveu mais em alguns Estados e praticamente se encontrava
ausente em outros por questões conjunturais as mais diversas.
A polícia para poder alcançar seu objetivo principal, que é o esplendor do Estado, não
pode ser uma instituição isolada ou única. Segundo a utopia policialesca de Turquet de
Mayerne são quatro os grandes funcionários que devem auxiliar o soberano: o Chanceler para
cuidar da justiça, o Condestável para cuidar do exército, o Superintendente para cuidar das
finanças e também o Conservador e reformador-geral da polícia. Ao Conservador da polícia
cabe articular quatro centros que desenvolvem tarefas distintas. Primeiro a de se cuidar da
educação dos jovens e de sua destinação ao mercado de trabalho; segundo a de se cuidar da
caridade e da ajuda aos necessitados, inserindo-os no mercado de trabalho; terceiro é preciso
regular o comércio e a produção pra que não haja prejuízos ao Estado; e quarto é preciso
cuidar dos bens imobiliários, registro de imóveis, compra e vendo dos mesmos, heranças,
estradas, florestas, edifícios públicos etc.
Vemos assim duas coisas principais, um é que a polícia não é uma instituição única e
78
independente dentro do Estado, ela funciona em conjunto com o exército, os financistas e o
judiciário. E depois podemos ver que as tarefas cuja incumbência recai sobre a polícia são
bastante distintas daquilo que hoje em dia enxergamos como tarefa da polícia. Hoje essas
tarefas são divididas entre instituições privadas e públicas de ensino, assistentes sociais,
ONG's, cartórios, empresas terceirizadas de conservação ou empresas públicas de obras.
Essa instituição policial é a única dentre as quatro citadas por Turqet que não é uma
instituição já tradicional na administração do Estado, a polícia “vai ser a modernidade
administrativa por excelência”(FOUCAULT, 2008, p.431). A polícia assim definida tem por
objetivo de certo modo uma adequação dos indivíduos para que se tornem úteis ao esplendor
do Estado, se tornem um elemento diferencial no desenvolvimento das forças do Estado, eis aí
mais uma vez a integração marginalista propagada pela polícia. “É isso que é visado pela
polícia, a atividade do homem, mas a atividade do homem na medida em que tem uma relação
com o Estado […] a boa qualidade do Estado dependia da boa qualidade dos elementos do
Estado”(FOUCAULT, 2008, p.432-433).
Para atingir seus objetivos a polícia deve se utilizar de todos os instrumentos
disponíveis, visando sempre integrar as atividades humanas à utilidade do Estado. A polícia
cria a utilidade do Estado a partir das ocupações dos indivíduos, mantendo os indivíduos
trabalhando para a utilidade estatal evita-se o aparecimento do crime e esse é o papel do bom
policial, não combater o crime, mas evitá-lo. Os objetos com os quais a polícia deverá lidar
para atingir os seus objetivo podem ser divididos em cinco categorias.
O primeiro objeto que será tratado pela polícia é o número de homens. A polícia deve
fazer aumentar o número de homens de um Estado, mas por homens entende-se um grupo
bastante restrito de adultos, do sexo masculino, fisicamente aptos a servirem o exército e cuja
ocupação seja vantajosa ao Estado. Essa correlação entre a força de um Estado e o número de
seus habitantes já era bastante corrente na Idade Média e não representa nenhuma novidade,
um exército forte é aquele que tem muitas vidas a sua disposição. O objeto da polícia será
então, mais especificamente “o desenvolvimento quantitativo da população em relação aos
recursos e possibilidades do território que essa população ocupa”(FOUCAULT, 2008, p.435).
O segundo objeto da polícia é zelar para que as pessoas possam manter suas vidas,
fornecendo os itens básicos a manutenção da vida, sejam víveres, roupas, calefação ou que
mais se fizer necessário. Esse cuidado implica uma certa regulamentação da produção e da
comercialização dessas mercadorias, Vemos aparecer mais uma vez a problemática da
escassez de grãos que discutimos acerca dos mecanismos de segurança, nessa regulação a
polícia desempenha um papel central.
79
Terceiro objeto do qual a polícia deve se ocupar, é a questão da saúde. Esse objeto na
verdade é uma espécie de continuação dos dois primeiros, uma vez que para aumentar o
número de habitantes, é preciso que eles não morram, ou morram o mínimo possível; e a
saúde de certa forma é uma condição indispensável à manutenção da vida. E mais uma vez
vemos ressurgir um tema abordado nas técnicas de segurança, uma vez que a atuação da
polícia em questões de saúde se dará principalmente por meio das reformas urbanas baseadas
nas teorias dos miasmas.
O quarto objeto que a polícia deve ter em conta ao buscar seus objetivos é a atividade
desempenhada pelos habitantes. É preciso que haja todo um aparato voltado a conseguir
manejar as vagas disponíveis e os desocupados hábeis a ocupá-las, deve-se diminuir o ócio
dando assistência apenas àqueles que não podem desempenhar uma atividade de maneira que
seja proveitosa ao Estado, os inválidos. A regulamentação dos ofícios é uma tarefa para a
polícia.
O quinto e último objeto a ser tratado pela polícia é a circulação, de mercadorias
produzidas pelos habitantes. A forma da polícia zelar pela boa circulação era primordialmente
assegurando as boas condições dos instrumentos materiais para essa, isto é, estradas, rios
navegáveis, pontes, etc. Além de cuidar dos instrumentos materiais também competia à
polícia determinar decretos que incentivassem ou restringissem a circulação de mercadorias e
pessoas dentro e fora das fronteiras do Estado, de acordo com as necessidades do Estado em
dado momento.
De maneira geral, no fundo, o que a polícia vai ter de regular e que vai constituir seu objeto fundamental são todas as formas, digamos, de coexistência dos homens uns em relação aos outros. É o fato de vivermos juntos, de se reproduzirem, de necessitarem, cada um de seu lado, de certa quantidade de alimento, de ar pra respirar, viver, subsistir, é o fato de trabalharem, de trabalharem uns ao lado dos outros, em ofícios diferentes ou semelhantes, é também o fato de estarem no espaço urbano de circulação, é (para empregar uma palavra que é anacrônica em relação às especulações da época) toda essa espécie de socialidade que deve ser tarefa da polícia.(FOUCAULT, 2008, p.438)
Temos portanto uma polícia que deverá se preocupar de toda uma série de elementos
de modo que o Estado possa tirar o maior proveito possível das condições que lhe são dadas.
É preciso regular todas as circulações, distribuições, produções e ocupações de modo que se
possa sempre ampliar a força do Estado. Ampliar a força do Estado implica que a subsistência
não é mais uma opção, doravante se buscará sempre mais, temos aí uma mudança de nível
antropológico ou cosmológico com relação aos processos de produção na nossa civilização.
A polícia deve portanto assegurar o esplendor do Estado, e fazendo isso assegurar
também a felicidade dos habitantes, pois a docilidade e passividade são elementos
80
extremamente importantes para que o Estado mantenha seu estado sem sedições. Daí
podemos definir o objetivo da polícia como “tudo o que vai do ser ao bem-estar, tudo o que
pode produzir esse bem-estar para além do ser e de tal sorte que o bem-estar dos indivíduos
seja a força do Estado”(FOUCAULT, 2008, P.440).
A análise da técnica policial e seu desenvolvimento entre os séculos XVII e XVIII
não poderia deixar de invocar o grande pensador da polícia nessa época, Nicolas Delamare e
seu Traité de la Police, obra inacabada, mas mesmo assim de importância impar para o
desenvolvimento da polícia. Para Delamare as tarefas da polícia se encerram em onze partes*:
“a Religião; a Disciplina dos costumes; a Saúde; os Víveres; a Segurança e a Tranquilidade
pública; as Estradas; as Ciências e as artes Liberais; o Comércio, as Manufaturas e as Artes
Mecânicas; os Servidores Domésticos, os Operários e os Pobres” (DELAMARE, Traité de la
Police, 1705, t.I, livro I, título I, p.4, apud FOUCAULT, 2008, p.483, n.4). Essas funções
também são agrupadas em títulos mais gerais, sendo eles, a bondade da vida, a conservação
da vida, a comodidade da vida e o aprazimento da vida.
Todos esses problemas dos quais a polícia se ocupa, para fazer valer seus
regulamentos, são referentes ao ambiente urbano, são problemas decorrente da vida em
glandes aglomerações urbanas, problemas relativos à densidade populacional. Essa relação da
polícia com a cidade é tão forte, que se afirmava que só se pode haver cidades se há polícia, e
que as polícias criam as cidades. Toda essa codificação da arte da polícia no século XVII esta
na verdade aglomerando toda uma série de regulamentos acerca das cidades que chegam a
remontar ao século XIV. A polícia surge então como uma arte que visava aprimorar a eficácia
desses regulamentos e ao mesmo tempo se alastrar por outras cidades do Estado, num
movimento que ao mesmo tempo buscava urbanizar e policiar. No sentido estrito dos termos,
policiar e urbanizar é a mesma coisa”(FOUCAULT, 2008, p.453)
Também são problemas relativos aos mercados, dentro do contexto urbano
obviamente, cabe a polícia toda um série de regulamentações da produção, distribuição,
compra e venda. “Digamos, em suma, que a polícia é essencialmente urbana e mercantil, ou
ainda, para dizer as coisas mais brutalmente, que é um instituição de mercado, no sentido bem
amplo”(FOUCAULT, 2008, p.451). Nesse sentido ,não se pode dissociar a polícia nesse
período da emergência das práticas mercantilistas. O mercantilismo vai se caracterizar por
preconizar que a competição intra-europeia deve se focar não no âmbito militar, mas nas
* Foucault em Segurança, Território, População fala em treze partes, porém Delamare enumera onze e o próprio Foucault mais tarde no Omnes et Singulatin também se refere a onze divisões. A discrepância se justifica pois Foucault, segundo Senellart, “aponta o teatro e os jogos como um item especial, quando estão compreendidos no dos costumes, como explica Delamare, e distingue domínios que Delamare reúne”(FOUCAULT, 2008, p.483, n.4)
81
relações comerciais. É preciso que cada Estado aumente sua população, coloque todos para
trabalhar, recebendo um salário ínfimo, para poder aumentar a competitividade de seus
produtos no grande mercado europeu, aumentando assim as reservas de ouro do Estado em
questão.
E vocês percebem por que, no momento em que a razão de Estado se dá como objetivo o equilíbrio europeu, tendo como instrumento uma armadura diplomático-militar, e na época em que essa mesma razão de Estado se dá como objetivo o crescimento singular de cada potência estatal e se dá ao mesmo tempo, como instrumento desse crescimento, o comércio, vocês percebem como e por que a polícia não pode ser dissociada de uma política que é uma política de concorrência comercial no interior da Europa. (FOUCAULT, 2008, p.454-455)
Essa nova perspectiva de um grande mercado europeu, e o aumento das trocas
monetárias entre os Estados a partir do século XVI é o pano de fundo para o desenvolvimento
da polícia. Podemos afirmar que os processos que se desenrolam nesse período fazem entrar a
vida humana no mundo da mercadoria, como colocavam os situacionistas ao fazer sua crítica
da sociedade do espetáculo e do fetichismo da mercadoria. Foucault, porém, opta por um
caminho diferente ao apontar que esse período deve ser reconhecido como relevante pela
manifestação de todo um encadeamento entre diversos dispositivos, ou nas suas palavras o
encaixe entre as faces de um mesmo poliedro. Seriam quatro as faces desse poliedro, primeiro
uma arte de governar regida pela razão de Estado; segundo a competição do equilíbrio
europeu; terceiro a polícia como tecnologia de crescimento das forças estatais; e por fim a
emergência da cidade-mercado moderna. Todos esses elementos estão de alguma forma
conectados entre si num paradigma em que a força dos Estados passa a ser medida pelo
comércio, o qual, por sua vez, deve ser regulado pela polícia.
A polícia, nesse período, era vista como um instrumento completamente separado ao
instrumento jurídico e a todo o ordenamento jurídico. Não é à justiça que a polícia se reporta,
é diretamente ao soberano, para fazer valer seus ditames sem que se passe por problemas
legais, nas palavras de Foucault “a polícia é o golpe de Estado permanente”(FOUCAULT,
2008, p.457). A polícia age somente de acordo com a razão de Estado, ela não está
diretamente subordinada ao ordenamento jurídico, é preciso que as leis sejam pétreas e que a
polícia seja maleável e mutável face aos interesses do Estado num momento dado, não é por
meio das leis que a polícia vai agir, mas por meio do decreto, da proibição, da instrução, em
suma, dos regulamentos perpetuamente renováveis – voltamos agora a toda a problemática
inicial da soberania, disciplina e segurança, o modelo de polícia que descrevemos aqui é o
surgimento do mundo disciplinar, o grande sonho da polícia é transformar o Estado num
grande convento, passagem do poder pastoral à disciplina.
82
A POLÍCIA A PARTIR DO SÉCULO XVIII
Como havíamos dito no início do capítulo, essa concepção de polícia foi vigente entre
os séculos XVII e XVIII, já no final do século XVIII vemos um desmantelamento filosófico e
prático desse grande sonho do Estado policial. Toda essa teoria da governamentalidade que
buscava um Estado policial vai ser colocada em cheque pelos novos escritos dos fisiocratas e
outros economistas que vão se ocupar do grande mercado europeu. O ataque ao sonho do
Estado policial por parte dos fisiocratas, pode ser exemplificado ao se analisar as diferenças
no trato das questões relativas aos cereais. Esse ataque se concretiza por meio de algumas
teses sustentadas pelos economistas, como veremos.
A primeira tese dos fisiocratas que se opunha aos mercantilistas e ao Estado policial,
era que para que houvesse abundância de cereais é necessário que eles sejam bem pagos, isto
é, é preciso que os agricultores tenham o maior lucro possível, para que se sintam
incentivados a cultivar mais e ao mesmo tempo, para que tenham dinheiro para fazer
investimentos e melhorias. Em outras palavras o que está sendo colocado é a importância para
a economia do bem-viver do campesinato, colocação completamente oposta à dos
mercantilistas que pregavam o menor preço possível para incentivar as exportações,
aumentando o fluxo de caixa e o bem-viver urbano. Com as medidas fisiocráticas que
inseriam na equação o campesinato, isto é, o espaço não urbanizado. “Uma desurbanização
em benefício do agrocentrismo, substituição ou, em todo caso, emergência do problema da
comercialização, é, creio eu, o primeiro grande abalo no sistema da polícia”(FOUCAULT,
2008, p.461).
A segunda tese suportada pelos economistas, que vai abalar o sistema de polícia como
havia sido pensado nos séculos XVII e XVIII, é a tese de que se deve deixar o preço dos
cereais subir o tanto quanto queira, isto é, deve-se para de tentar regulamentar externamente
os preços e deixar que em livre flutuação encontrem um ponto de equilíbrio ideal, justo.
Ataca-se assim todo o sistema policial de regulamentação, agora são as regulamentações que
causam os problemas, ao gerar barreiras artificiais e impedir o equilíbrio natural dos preços no
mercado europeu.
A terceira tese dos economistas que vai contra o modelo da polícia como era entendido
então diz respeito à população. Para a polícia a população era uma dado relevante no sentido
de deveria ser sempre aumentada para que se aumentasse o poderio do soberano. Entendia-se
por população obviamente os trabalhadores, era preciso aumentar o número de pessoas que
trabalham e que são dóceis. Os fisiocratas e os economista vão tratar a população de uma
83
forma completamente diferente, para estes a população não é um dado indefinidamente
modificável, se você tem uma população grande demais, haverá necessariamente um
rebaixamento nos salários, e salários baixos desincentivam as pessoas a trabalharem e
produzirem, portanto é preciso manter um controle sobre os números da população e não
apenas buscar seu crescimento indiscriminado.
A quarta tese a desestabilizar o sonho do Estado policial é a pregação por parte dos
economistas da livre circulação de mercadorias entre os países, em oposição a regulamentação
policialesca de vender a maior quantidade possível de produtos aos outros países, para em
contrapartida repatriar a maior quantidade possível de ouro. Os economistas vão incentivar
não uma concorrência entre os Estados, mas sim uma concorrência entre os particulares, e é
essa concorrência entre os particulares que vai assegurar agora a felicidade e o bem-viver da
coletividade, ficando o Estado relegado ao papel de regulador dos interesses e cuja
intervenção deve ser mínima.
Em suma, o que temos é que a partir do século XVIII presenciamos o surgimento de
uma nova arte de governar, uma nova governamentalidade oposta à arte da Polícia como
havia sido praticada no século XVII e início do século XVIII e essa nova governamentalidade
ira se desenrolar no âmbito da economia. Da mesma forma que com o fim da Idade Média os
políticos surgem trazendo uma nova arte de governar e sendo tachados de seita herege, no
século XVIII vemos o surgimento dos economista, também tratados como uma seita e
trazendo para o campo do cálculo político uma série de questões de pertinência econômica e
fazendo duras críticas a forma de governar propagada pela polícia e pelos seus aparatos. O
que acontece é que um século depois do surgimento de uma nova arte de governar surgir com
os políticos, temos o surgimento de uma novíssima arte de governar com os economistas, mas
não é uma arte que vai negar a razão de Estado, mas sim uma razão econômica que vai
complementar, dar um novo conteúdo à razão de Estado. Temos portanto uma
“governamentalidade dos políticos que vai nos dar a polícia, [e] governamentalidade dos
economistas que vai, a meu ver, nos introduzir em algumas linhas fundamentais da
governamentalidade moderna e contemporânea”(FOUCAULT, 2008, p.468).
As modificações na razão de Estado, não vão afetar os objetivos a se buscar, isso é, o
crescimento da força do Estado num ambiente externo de equilíbrio entre os Estados, e no
ambiente interno um equilíbrio sob a forma da ordem. Mesmo não alterando o objetivo
principal existem especificidades dessa nova racionalidade que merecem certo destaque.
Em primeiro lugar a razão de Estado se instaurou como forma de governar em
substituição a todo um conjunto cosmo-teológico medieval que via uma continuidade entre
84
ordem do mundo, bom governo e leis divinas. Assim a razão de Estado propunha um governo
artificial, isto é, sem correlação divina ou natural, artificialidade absoluta. Os economistas vão
propor um retorno à naturalidade do governo, porém não mais a naturalidade cosmo-teológica
medieval, mas a uma nova forma de naturalidade, “uma naturalidade específica às relações
dos homens entre si, ao que acontece espontaneamente quando eles coabitam, quando estão
juntos, quando intercambiam, quando trabalham, quando produzem […] a naturalidade da
sociedade”(FOUCAULT, 2008, p.470). Essa é uma grande mutação face ao Estado de polícia
que lidava ainda com o conjunto dos súditos, agora os economistas lidam com a sociedade, e
mais especificamente com a sociedade civil, é um novo sujeito de governo que aparece.
Também temos uma mutação importante ao constatarmos que há o surgimento de toda
uma nova forma de conhecimento, a economia política, que reivindica para si o status de
racionalidade científica. O domínio desse novo conhecimento é uma condição indispensável
para o bom governo, mas que não é um conhecimento do governo ou de como governar, mas
sim um conhecimento externo acerca dos processos naturais da sociedade.
A terceira grande modificação é a emergência da população, de uma nova forma de
compreender e de tratar o problema da população. A população passa a ser vista como um
elemento relativo, mas que possui sua própria naturalidade, suas próprias leis de
transformação. O conjunto dos súditos subordinados a um soberano era o conjunto sobre o
qual agia a polícia, porém a população é um nível muito mais denso, e como tal, muito mais
complexo de ser manipulado, há toda uma série de interesses espontâneos entre os indivíduos
da população que não passam pelo crivo do soberano, mas que devem ser tratados de alguma
forma. Nível de complexidade completamente novo então, que leva ao surgimento de uma
série de novas ciências e táticas de intervenção.
A quarta mutação que temos é que ao reconhecer a população como um conjunto que
possui suas próprias regras e sua própria natureza, torna-se prejudicial e desaconselhável às
artes de governar buscar intervir nesse conjunto por meio de regulamentos e restrições, que
serviriam apenas de barreiras artificiais a processos naturais, impedindo o bom funcionamento
do conjunto. O Estado passa então a ter de respeitar esses processos naturais, e trabalhar com
eles incentivando-os ou retardando-os, mas sem restrições ou regulamentações mais rígidas, o
Estado deixa de regular e passa a gerir. A gestão dos processos naturais é a nova ordem das
artes de governo, e a forma que essa gestão assume são justamente os mecanismos de
segurança, a intervenção estatal deve garantir a segurança desses fenômenos naturais.
Com todas essas mutações temos um golpe fulminante na instituição policial como
esta havia se desenvolvido nos séculos XVII e XVIII, agora é preciso respeitar a liberdade dos
85
fenômenos naturais da população e da economia. Assim as funções reguladoras da polícia
passam a ser do âmbito de outros mecanismos e instituições que deveram doravante gerir
esses fenômenos seguindo essa nova ciência econômica e sempre respeitando esse novo
conceito limitado e limitador de liberdade. Por outro lado, temos a manutenção da polícia
como instituição específica e amplamente distribuída pelo território, porém que mantém
apenas suas funções negativas de eliminar as desordens que possam atrapalhar a liberdade de
desenvolvimento desses fenômenos.
Como estão vendo, o antigo projeto de polícia, tal como havia aparecido em correlação com a razão de Estado, se desarticula, ou antes, se decompõe entre quatro elementos – prática econômica, gestão da população, direito e respeito às liberdades, polícia -, quatro elementos que vêm se somar ao grande dispositivo diplomático-militar que, por sua vez, não foi modificado no século XVIII.”(FOUCAULT, 2008, p.476)
Eis portanto como passamos de um conceito de polícia que deveria desempenhar toda
uma série de funções para assegurar a própria existência do Estado, para o conceito
contemporâneo de polícia como instituição repressora. Essa passagem não significou o fim
das funções desempenhadas pela polícia regulamentadora, apenas o esquartejamento dessas
funções por diversas instituições e mecanismos que poderiam assim se especializar em suas
funções específicas. O liberalismo e seu conceito específico e restrito de liberdade fazem com
que a polícia se torne uma instituição meramente repressiva, delegando o restante de suas
funções a toda uma série de novos mecanismos que passam a respeitar não mais os políticos
sua razão de Estado, mas os economistas e suas novas contribuições mercadológicas à razão
de Estado.
86
PACTO DE SEGURANÇAPACTO DE SEGURANÇA
controle e segurança
Gostaríamos de agora contrastar o trabalho de Deleuze sobre as sociedades de controle
e os de Foucault sobre a sociedade de segurança, ou seja, localizar no post-scriptum sobre as
sociedades de controle (DELEUZE, 1992, p. 219-226.) e no curso Segurança, Território,
População (FOUCAULT, 2008) os pontos de convergência e divergência, atração e
repulsão.O primeiro ponto que salta aos olhos é que sem que tivessem o conhecimento
específico desses trabalhos um do outro (o curso de Foucault de 78 só foi publicado em 2004,
9 anos depois da morte de Deleuze, e o texto de Deleuze data de 1990, 6 anos depois da morte
de Foucault), ambos tratam por diferentes perspectivas de um mesmo problema, o diagnóstico
da atualidade das tecnologias de gestão das populações e ambos também nos apontam para
uma mudança em curso, na economia geral do poder. Apesar da separação física e
cronológica, ambos conseguem diagnosticar que há algo novo no ar.
Deleuze toma como ponto de partida da sua análise os trabalhos de Foucault sobre as
sociedades disciplinares que segundo ele “procedem à organização dos grandes meios de
confinamento” (DELEUZE, 1992, p.219). Para Deleuze, Foucault já tinha tomado consciência
da brevidade do modelo disciplinar, fadado a crise e ao abandono, assim como ocorreu na
passagem da soberania à disciplina, também a disciplina deve dar lugar a algo novo. Essa
nova força que se anuncia é o controle, e vivemos, ou vivíamos na década de 90, o momento
histórico da instauração de uma sociedade de controle.
Foucault discute esse panorama da crise das disciplinas no seu curso de 1978
(FOUCAULT, 2008), porém para ele a segurança aparece como uma nova forma de fazer
funcionar os antigos dispositivos da soberania e das disciplinas. Não podemos portanto falar
de eras da soberania, da disciplina e da segurança.
Portanto, vocês não têm uma série na qual os elementos vão se suceder, … na verdade, vocês têm uma série de edifícios complexos nos quais o que vai mudar, claro, são as próprias técnicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se complicar, mas o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança. (FOUCAULT, 2008, p.11)
Foucault, como vimos, é mais cauteloso na tentativa de datar o momento do advento
da sociedade de segurança, já Deleuze não hesita ao falar de uma lenta instalação do controle,
porém uma precipitação após a segunda guerra mundial (DELEUZE, 1992, p.219-220). Essa
data tão bem delimitada intriga, porque ela não é devidamente justificada e nem reaparece ao
87
longo do texto, é apenas lançada. Não conseguimos também achar nenhum indicativo de
Foucault sobre a emergência dessa nova tecnologia que nos aponte para esse evento; então
buscaremos ao longo deste artigo compreender melhor esse cruzamento e voltaremos depois a
esse ponto buscando entender o porque da escolha dessa data como marco.
Como metodologia de contraste entre os dois textos, seguiremos o texto de Deleuze
fazendo as conexões possíveis com a perspectiva apresentada no curso de Foucault,
especificamente às 4 características gerais das tecnologias de segurança apresentadas nas
primeiras aulas do curso, à saber: os espaços de segurança, o tratamento do aleatório, a
normalização específica à segurança e a emergência da população. Assim ressaltando os
pontos de encontros e desencontros, e também aquilo que cada um apresenta que o outro
negligenciou.
Deleuze começa com a explicação da sua leitura da sociedade disciplinar estudada por
Foucault, aonde estamos incessantemente passando de um meio fechado, de confinamento ao
outro, o objetivo final desses confinamentos é “compor no espaço-tempo uma força cujo
efeito deva ser maior do que a soma das partes individuais” (DELEUZE, 1992, p.219). O
autor enfatiza então a atual generalização da crise em todos os grandes meios de
confinamento: a prisão, o confinamento por excelência; a escola, primeiro; a fábrica, depois; o
hospital, de vez em quando; e a família, nas horas vagas. A gestão da crise nesses meios se dá
pelo advento de infindáveis reformas, que são inevitavelmente inócuas a longo prazo, uma
vez que o que presenciamos é a derrocada, a bancarrota dessas instituições. Essas reformas,
porém, tem sua validade momentânea, uma vez que servem o intuito de gerir a agonia dos
meios disciplinares de controle social, ocupando as pessoas enquanto novos dispositivos não
se instauram, dispositivos de controle, que operam sob um novo paradigma de controle social.
Para Foucault não é após o término da reforma e a supressão dos dispositivos
disciplinares que se instaura esse novo modelo. A própria reforma é em si parte desse novo
modelo, é em si um mecanismo de segurança. A segurança não busca a aplicação homogênea
do sistema jurídico-legal da soberania ou dos dispositivos disciplinares; mas opera por meio
de uma economia de aplicação dos dispositivos tanto da soberania quanto da disciplina,
baseando-se no uso das médias, de cálculos probabilísticos, de informações estatísticas,
tentando tratar assim de acontecimentos prováveis. Existe toda uma competência técnica a
serviço das tecnologias de segurança.
Em outras palavras, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem proibir nem prescrever, mas dando-se evidentemente alguns instrumentos de proibição e de prescrição, a segurança tem essencialmente por função responder a uma realidade de maneira que essa resposta anule essa realidade a que ela responde – anule, ou limite, ou freie, ou regule. (FOUCAULT, 2008, p.61)
88
Esse é um resumo bem esquemático das tecnologias de segurança, e não representa
obviamente, toda a complexidade do tema. Passemos agora aquelas 4 características gerais
das tecnologias de segurança que havíamos citado anteriormente, e vejamos aonde podemos
enxergar paralelos com o texto. A primeira característica é relativa aos espaços de segurança.
Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios é analógica. Ao passo que os diferentes meios de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica. (DELEUZE, 1992, p.220-221)
O que Deleuze não expõe com a devida clareza é que esses “controlatos” operam, e
tem que operar, por meio da reforma dos antigos internatos, caso contrário não constituiriam
variações inseparáveis. Pra explicar melhor esse ponto busquemos o exemplo que Foucault
usa de organização do espaço urbano.
A partir dos exemplos de reformas urbanas em cidades francesas em diferentes
momentos históricos, Foucault ressalta as diferenças do trato do espaço pelos mecanismos da
soberania, da disciplina e da segurança. Deixemos as referências a datas e lugares de lado para
chegarmos logo ao que interessa.
Digamos para resumir isso tudo que, enquanto a soberania capitaliza um território, colocando o problema maior da sede do governo, enquanto a disciplina arquiteta um espaço e coloca como problema essencial uma distribuição hierárquica e funcional dos elementos, a segurança vai procurar criar um ambiente em função de acontecimentos ou de séries de acontecimentos ou de elementos possíveis, séries que vai ser preciso regularizar num contexto multivalente e transformável. (FOUCAULT, 2008, p.27)
Em outras palavras, a segurança age sempre sobre aquilo que existe, e nele faz agir
seus mecanismos para maximizar os efeitos positivos e minimizar os desvios possíveis. É a
própria definição de reforma, dar nova forma a uma pré-existente, agir sobre aquilo que está
dado na realidade visando um devido fim.
O problema da reforma ser ou não um mecanismo de controle, fica ainda mais claro ao
estudarmos os casos concretos propostos por Deleuze onde a reforma da indústria é a sua
transformação em empresa, “numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a
empresa é uma alma, um gás” (DELEUZE, 1992, p.221). A empresa é o exemplo mais claro,
e o mais ressaltado pelo autor, de controlato, porém também temos a escola reformada, onde
as provas bimestrais são substituídas pela avaliação continuada, ou as penas em sistema de
condicional sob controle integral.
A empresa aparece em Deleuze como controlato por excelência, pois gera situações
metaestáveis constantes, ou seja, salário e estabilidade dependentes de modulações que
89
exigem o empenho totalitário no ganho. É a própria aplicação dos conceitos de economia de
dispositivos que as tecnologias de segurança possibilitam aplicadas à iniciativa privada. Esse
estado de perpétua metaestabilidade do indivíduo nas empresa, é a aplicação daquilo que os
mecanismos de segurança aplicam ao nível do governo das populações, aonde não se trata de
atingir um objetivo final, mas sim de perpetuar uma média geral eternamente flutuante. Assim
“Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a
situação de empresa” (DELEUZE, 1992, p.221), mas não somente a situação da empresa, mas
também a situação do Governo e da moderna burocracia computacional.
O segundo ponto de aproximação que quero ressaltar ocorre na definição de Deleuze
de que “os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles, são uma
modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente” (DELEUZE,
1992, p.221). Nesse ponto, a semelhança entre os dois autores é notável no momento em que
Foucault explica o processo de normalização específica à segurança.
A normalização aparece como um problema que se coloca de uma certa forma na
contramão de um sistema de lei, uma vez que é próprio da lei codificar, fazer da norma
consuetudinária um código jurídico universalmente aplicável e válido.
Se é verdade que a lei se refere a uma norma, a lei tem portanto por papel e função – é a própria operação da lei – codificar uma norma, efetuar em relação a norma uma codificação, ao passo que o problema que procuro identificar é mostrar como, a partir e abaixo, nas margens e talvez até mesmo na contramão de um sistema da lei se desenvolvem técnicas de normalização. (FOUCAULT, 2008, p.74)
A forma como a normalização lida com os princípios da soberania, são
definitivamente da ordem do enfrentamento e da incompatibilidade, e isso se ressalta nas
oposições que podemos levantar entre a lei e a norma, como encontramos principalmente em
Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2004), onde encontramos que, enquanto a norma se refere a um
campo de comparação e prescrição e busca homogeneizar os indivíduos, a lei se refere sempre
a um corpus de códigos que qualifica os atos individuais como permitidos ou proibidos e
busca a condenação. Na normalização temos não um problema de adequação à norma dada,
mas um problema novo que só pode se resolver no âmbito das tecnologias de segurança.
Essa oposição fica mais clara quando ressaltamos as diferenças entre as técnicas
disciplinares e de segurança. É incontestável que a disciplina normaliza, porém o problema é
que
A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo ótimo que é constituído em função de certo resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em procurar tornar as pessoas, os gestos, os atos, conforme a esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na normalização disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma.
90
(FOUCAULT, 2008, p.75)
O que vemos aqui é que a normalização disciplinar é algo mais próximo de uma
normação propriamente dita, do que de uma normalização, como vai ocorrer com os
dispositivos de segurança onde “o normal é que primeiro, e a norma se deduz dele, ou é a
partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório”
(FOUCAULT, 2008, p.83). Esta bastante clara a aproximação entre os dois autores nesse
ponto, e podemos dizer para resumir que a normalização é uma modulação, ao contrário da
normação que funciona por moldagens.
O terceiro ponto que destacamos é a passagem onde Deleuze relata os dois pólos da
disciplina individualizante e massificante:
As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em “pastor” laico por outros meios). (DELEUZE, 1992, p.222)
O próprio Deleuze nos remete ao poder pastoral estudado por Foucault. O controle
porém, segundo ele, opera por outro mecanismo, a cifra, essa palavra pode ter muito
significados na língua portuguesa, porém ela deve ser entendida aqui no sentido de código de
acesso, como podemos perceber se tomarmos o exemplo no final do texto da cidade distópica
imaginada por Guattari
Onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico que abriria barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.(DELEUZE, 1992, p.224-225)
Porém para Foucault as coisas são um pouco diferentes, o Biopoder é constituído de
fato por, de um lado, uma anatomopolítica dos corpos, e por outro, uma biopolítica das
populações. A disciplina age de forma individual como uma anatomopolítica dos corpos, onde
o indivíduo é apenas uma maneira de recortar uma multiplicidade que possuí um determinado
fim a atingir. A segurança por outro lado, trabalha sempre por estatísticas e tabelas
populacionais, sendo assim o modo de governo da população. Para entendermos melhor a
relação que se dá entre esses dois pólos como propõe Deleuze, reproduzimos aqui uma
passagem um tanto extensa, porém também extensamente elucidativa:
Tudo se sucedeu como se o poder, que tinha como modalidade, como esquema organizador, a soberania, tivesse ficado inoperante para reger o corpo econômico e político de uma sociedade em via, a um só tempo, da explosão demográfica e da industrialização. De modo que à velha mecânica do poder de soberania escapavam
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muitas coisas, tanto por baixo quanto por cima, no nível do detalhe e no nível da massa. Foi para recuperar o detalhe que se deu uma primeira acomodação: acomodação dos mecanismos de poder sobre o corpo individual, com vigilância e treinamento – isso foi a disciplina. É claro, essa foi a acomodação mais fácil, mais comoda de realizar. É por isso que ela se realizou mais cedo – já no século XVII, início do século XVIII – em nível local, em formas intuitivas, empíricas, fracionadas, e no âmbito limitado de instituições como a escola, o hospital, o quartel, a oficina, etc. E, depois, vocês têm em seguida, no final do século XVIII, uma segunda acomodação, sobre os fenômenos globais, sobre os fenômenos de população, com os processos biológicos ou bio-sociológicos das massas humanas. Acomodação muito mais difícil, pois, é claro, ela implica órgãos complexos de coordenação e de centralização. (FOUCAULT, 2005, p.298)
Tradicionalmente, e sob alguns pontos de vista até hoje, a população era tida como a
“coleção dos súditos de um soberano, aos quais se podia, precisamente, impor de cima, de
uma maneira inteiramente voluntarista, certo numero de leis, de regulamentos que lhes dizia o
que deviam fazer, onde deviam fazer, como deviam fazer” (FOUCAULT, 2008, p.91). A
população não é um dado primeiro sobre o qual se pode exercer diretamente a ação do
soberano, as variações da população dependem de diversos fatores, tais quais, o clima, o
entorno material, as circulações e também leis e regulamentos que possam atingir a
reprodução e manutenção da espécie.
Um novo paradigma de população começa a surgir quando a população passa a ser um
elemento fundamental, uma superfície de contato para intervenções, que condiciona todos os
outros, porque ela é vista agora como “força produtiva... contanto, é claro, que essa população
seja efetivamente adestrada, repartida, distribuída, fixada de acordo com os mecanismos
disciplinares” (FOUCAULT, 2008, p.90-91). Portanto não abandonando de forma alguma os
dois polos inaugurados pelo poder pastoral, os mecanismos de controle ou segurança, ainda
necessitam de corpos dóceis, e paralelamente de populações governadas para um fim comum,
no nosso caso o lucro de alguns.
Durante o texto de Deleuze, três das quatro características gerais dos dispositivos de
segurança que Foucault estuda apareceram. A única característica que ficou de fora foi o
tratamento do aleatório, que pode ser a cifra para compreendermos melhor o texto. O
tratamento do aleatório aparece apresentado por Foucault sob o prisma do problema da
escassez alimentar, estado de raridade de gêneros. Os sistemas para lidar com esse problema
são essencialmente do âmbito da segurança, uma vez que estão “essencialmente centrados
num acontecimento eventual, um acontecimento que poderia se produzir e que se procura
impedir antes que ele se inscreva na realidade” (FOUCAULT, 2008, p.43-44).
Razão liberal
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O tratamento do aleatório pela tecnologia de segurança é ponto onde melhor se pode
perceber os efeitos do liberalismo, uma vez que o modelo proposto pelos economistas do
século XVIII era justamente o respeito a naturalidade dos fenômenos
O que Abeille e os fisiocratas e teóricos da economia do século XVIII procuraram obter foi um dispositivo que conectando-se à própria realidade dessas oscilações, vai atuar de tal modo que, por uma série de conexões como outros elementos da realidade, esse fenômeno, em de certo modo nada perder da sua realidade, sem ser impedido, se encontre pouco a pouco compensado, freado, finalmente limitado e, no último grau, anulado. (FOUCAULT, 2008, p.49)
Essa é a solução liberal do laisser faire, laisser passer, laisser aller, completamente
diferente das soluções que a precederam que tratavam de proibições de estocagem e
exportação, medidas artificiais de competência jurídico-disciplinar que acabavam elas
mesmas por gerar a escassez. Agora tudo é permitido, porque na ausência de ingerências
governamentais artificiais na “realidade natural” do mercado, a regulação se dará pelo próprio
mercado, que encontra seu próprio equilíbrio nas oscilações da realidade, como uma nova
entidade com suas próprias regras de funcionamento interno, e que nós reles mortais não
podemos compreender.
É que na verdade, essa liberdade, ao mesmo tempo ideologia e técnica de governo, essa liberdade deve ser compreendida no interior das mutações e transformações das tecnologias de poder. E, de uma maneira mais precisa e particular, a liberdade nada mais é que o correlativo da implantação dos dispositivos de segurança. Um dispositivo de segurança só poderá funcionar bem, em todo caso aquele de que lhes falei hoje, justamente se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no sentido moderno que essa palavra adquire no século XVIII: não mais as franquias e os privilégios vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de movimento, de deslocamento, processo de circulação tanto de pessoas como das coisas. (FOUCAULT, 2008, p. 63-64, grifo nosso)
Esse novo mecanismo, o Liberalismo, acaba por redesenhar as relações entre os
Estados, já que a livre circulação deve se dar não só dentro do país, mas também entre todos
os países. O que interessa aos Estados nessa nova configuração não é mais a preservação de
uma ordem pré-acordada de reconhecimento de soberania, mas a preservação agora inseridos
num campo de forças econômicas que se auto-determinam “naturalmente”. Os Estados devem
ser mantidos em equilíbrio por um aparato diplomático-militar permanente como estrutura de
apoio, e devem maximizar as forças e os recursos pelo trabalho da polícia como suporte
interno. A colocação da competição econômica como fonte primária de competição entre os
Estados é sem dúvida a mutação mais fundamental tanto para a forma da vida política
ocidental, quanto para a história ocidental. A emergência do liberalismo foi parte de um
processo maior governamentalização do Estado, levando-nos até o Estado contemporâneo
como o conhecemos hoje.
O processo de governamentalização do Estado foi progressivamente se instaurando
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por meio da adoção da razão de Estado como a racionalidade pela qual se deveria gerir os
Estados nacionais. Estados nacionais esses que vão surgir como paradigma político no qual a
razão de Estado passa a ser adotada é o cenário da Europa pós-Vestefália, aonde os Estados
nacionais se inserem numa historia aberta e sem fim. O governo regido pela razão de Estado
tem dois mecanismos principais de funcionamento: um voltado à política externa e a inserção
e manutenção do Estado na balança europeia; e outro voltado à política interna e ao aumento
das forças do Estado, visando sempre uma situação mais favorável na balança.
A Paz de Vestefália põe fim as pretensões do Império Universal, os Estados,
governamentalizados e regidos pela razão de Estado, que emergem então não aceitam mais o
sonho medieval de sua diluição e fusão no Sacro Império dos últimos dias. Entramos numa
época em que são reconhecidos os impérios locais como soberanos não só dos seus territórios,
mas sim como enumera o tratado: “Todos os vassalos, súditos, pessoas, cidades,
municipalidades, castelos, casas, fortalezas, florestas, bosques, minas de ouro e prata,
minerais, rios, riachos, pastos...” (Tratado de Münster, artigo LXXVI, 1648 apud
RODRIGUES, 2008, p.328). Na Paz de Vestfália acata-se a “a fórmula do ejus regio, ejus
religio – em cada Estado, a lei desse Estado -, base lógica do sistema de Estados soberanos”
(RODRIGUES, 2008, p.131).
Estamos num mundo de historicidade indefinida, num tempo aberto e sem termo. Em outras palavras, através da razão de Estado está esboçado um mundo em que haverá necessariamente, fatalmente e para sempre urna pluralidade de Estados que terão sua lei e seu fim apenas em si mesmos. (FOUCAULT, 2008, p.389)
Isso implicava que os Estados deveriam estar constantemente preparados para a
competição perpétua. Os mecanismos estabelecidos então deveriam gerar um equilíbrio
inabalável. “Limitação absoluta da força dos mais fortes, equalização dos mais fortes,
possibilidade de combinação dos mais fracos contra os mais fortes: são essas as três formas
concebidas e imaginadas para constituir o equilíbrio europeu, a balança da Europa”
(FOUCAULT, 2008, p.402). Caso esse equilíbrio fosse quebrado pela pretensão imperial de
algum Estado em particular, a aliança entre os Estados asseguraria o restabelecimento da
ordem através da guerra. E foi isso que se deu com as guerras napoleônicas e também com a
segunda guerra mundial.
Os Estados devem ser mantidos em equilíbrio por um aparato diplomático-militar
permanente como estrutura de apoio, e devem maximizar as forças e os recursos pelo trabalho
da polícia como suporte interno. A colocação da competição econômica como fonte primária
de competição entre os Estados é sem dúvida a mutação mais fundamental tanto para a forma
da vida política ocidental, quanto para a história ocidental.
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Esse aparato diplomático-militar é um dos três grandes pontos de apoio a partir dos
quais pôde se produzir a governamentalização dos Estados. Um dos outros pontos é a
secularização do pastorado, na forma do biopoder. O Terceiro ponto de apoio é a polícia, não
a polícia liberal que entendemos hoje e se vê reduzida a suas funções negativas de prevenção
da revolta associada a justiça criminal; mas o sentido do século XVII e XVIII de polícia.
Polícia entendida tanto negativa quanto positivamente, como um sistema administrativo
responsável por maximizar o tamanho da população em relação aos recursos naturais de um
dado território, assegurando uma população produtiva, promovendo a circulação de pessoas e
mercadorias por meio da criação e manutenção de estradas, canais o outras benfeitorias
públicas. É importante ressaltar que a polícia promove o interesse da população, apenas
enquanto esse interesse servir para aumentar o poder do Estado. Quando falamos de
segurança ou de bem comum, não podemos esquecer que estamos sempre tratando da
segurança e do bem estar daqueles que governam.
As mudanças que afetaram a Polícia no século XVIII, são efeitos de uma mudança
epistêmica que atinge também as regras de governo dos Estados e da economia. Estamos
falando do abandono da teorias mercantilistas, que pregavam o fortalecimento do mercado
interno, pro meio de uma série de regulamentos e restrições impostas pelo Estado ao mercado,
visando a acumulação de metais preciosos; e emergência de uma nova teoria que acrescenta
novos fatos e elementos ao cálculo econômico do governo estatal, primeiro por meio dos
fisiocratas, e logo depois o liberalismo propriamente dito. Temos assim como havíamos visto
o desmembramento das funções da polícia entre diversas instituições.
Afirmamos na Introdução que no curso Segurança, Território, População não havia
um desvio do objeto de estudo da segurança para a governamentalidade, mas uma espécie de
caminhar de lagostin que visava esclarecer melhor o mecanismo de segurança pelo estudo da
genealogia histórica da governamentalidade; e essa afirmação se evidencia ao notarmos a
passagem, em que ao falar dos dois mecanismos da razão de Estado e se perguntar por aquilo
que eles asseguram Foucault afirma:
Primeiro, a manutenção de uma relação de forças e, por outro lado, o incremento da cada uma das forças sem que haja uma ruptura do conjunto. Essa manutenção da relação das forças e esse desenvolvimento das forças internas a cada um dos elementos, sua junção, é precisamente isso que mais tarde vai se chamar de mecanismo de segurança. (FOUCAULT, 2008, p.398)
As teses sustentadas por esses novos teóricos da economia, apontavam para a
necessidade de impedir os impedimentos, isto é, era preciso que o Estado não intervisse no
mercado, para que não alterasse sua natureza, fazendo assim com que perca seu equilíbrio
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natural e penda para um dos lados levando à escassez e a fome, ao gerar barreiras artificiais
impede-se o equilíbrio natural dos preços no mercado europeu. No plano filosófico a inovação
foi a inserção da liberdade e da naturalidade dos elementos que compõem a equação
econômica, toda intervenção deve ser limitada, princípio limitador da intervenção estatal, que
vai afetar além do mercado, o aparato policial, o trato da população que passa a ser tratada em
sua naturalidade, em oposição ao tratamento dos fisiocratas, para quem devia-se aumentar o
número de súditos-sujeitos, desconhecendo-se completamente os elementos naturais que
condicionam o crescimento ou a docilidade da população; também deve-se opor ao
protecionismo a livre circulação de pessoas e mercadorias, e opor à acumulação de ouro pelo
Estado o lucro dos particulares que compõe a população e mais especificamente a sociedade
civil.
Um princípio filosófico de limitação das intervenções artificiais que tem diversos
efeitos práticos, diversos campos de atuação do governo passam então a ter suas ações
limitadas em prol do cálculo e da previsão econômica, é a segurança como mecanismo de
intervenção que vemos surgir com as intervenções liberais no modo de funcionamento da
razão de Estado. Essas limitações se instauram, como vimos no caso da policia, com a
instauração da economia política como “princípio de limitação da arte de governar que já não
lhe seja extrínseco”(FOUCAULT, 2004, p.14). Como foi possível que a economia política
concretizasse essa limitação de fato:
Ela não se desenvolveu contra a razão de Estado e para limitá-la, pelo menos em primeira instância. Ao contrário, ela se formou no próprio âmbito dos objetivos que a razão de Estado havia estabelecido para a arte de governar [...] A economia política se propõe justamente a manutenção de certo equilíbrio entre os Estados para que, precisamente, a concorrência possa se dar. (FOUCAULT, 2004, p.19)
Com a instauração desse princípio de auto-limitação da ação governamental a polícia,
e o Estado policial sofre um forte ataque, fazendo surgir assim o conceito de polícia como
aparelho de repressão e prevenção que conhecemos hoje. Embora no curso de 1978 Foucault
afirme que a técnica diplomático-militar não sofreu nenhuma alteração com a instauração do
liberalismo no século XVIII, no Nascimento da Biopolítica, ele já reconhece que houve sim
uma mutação fundamental no modo de funcionamento e mesmo nos objetivos do aparelho
diplomático-militar.
A autolimitação da prática governamental pela razão liberal foi acompanhada do desmantelamento dos objetivos internacionais e do aparecimento de objetivos ilimitados, como o imperialismo.A razão de Estado havia sido correlativa do desaparecimento do princípio imperial, em benefício do equilíbrio concorrencial entre Estados. A razão liberal é correlativa da ativação do princípio imperial, não sob a forma do Império, mas sob a forma do imperialismo. (FOUCAULT, 2004, p.29*)
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A territorialidade é outra, não é mais a Europa do dispositivo diplomático-militar
como havia sido pensado em 1648, a concorrência dos Estados europeus na balança, tendo o
comércio exterior como grande mecanismo de equilíbrio, nos levou a um novo panorama
aonde ressurge a tentação imperial, não por meio da anexação territorial, mas da anexação dos
mercados. Essa nova doutrina imperial persiste e vai amadurecendo a partir do século XVIII,
mas é na nossa contemporaneidade que podemos analisar seus efeitos mais nefastos.
A erosão do sistema de Estados registrado pelos Tratados de Westfália se explicita na própria redefinição do direito de recorrer à guerra que o direito internacional pretendia ter confinado e domesticado com a proibição da guerra de agressão e o redimensionamento da guerra justa na Carta de São Francisco. No entanto, após os atentados terroristas de 11 de setembro, os Estados Unidos proclamaram a chamada doutrina da guerra preventiva, considerando-a como uma justa interpretação do Art. 51 da Carta da ONU que autoriza os Estados a se defenderem de um ataque externo. A diferença com o que previa o referido artigo é que os EUA não foram atacados por outro Estado, mas por uma organização terrorista, ou seja, um grupo ilegal sem status jurídico-político [...] A doutrina lançada pelos estadunidenses anuncia a ultrapassagem do direito internacional do sistema de Estados por, talvez, um novo direito da era do Império. (RODRIGUES, 2009, p.391)
Como nos apontava Foucault já em 1977: “Doravante, a segurança está acima da lei”
(FOUCAULT, 2001, p.366). É somente com o fim da segunda guerra mundial que o conselho
de segurança da ONU ressignifica o equilíbrio entre as nações e arroga para si o papel
mantenedor de um permanente equilíbrio dos Estados, entendidos com forças econômicas em
constante enfrentamento. Toda força que impedir a livre circulação de mercadorias lícitas, e
de pessoas bem adestradas entra para o eixo do mal. Temos aí, ainda mais forte talvez do que
no poder atômico, a grande chave para a compreensão do advento da sociedade de controle,
ou da hegemonia da segurança, frente a soberania e a disciplina.
Com a hegemonia das tecnologias de segurança como racionalidade de gestão
governamental e como dosadora das aplicações dos sistemas de soberania e disciplina, o que
temos de certa forma é a substituição de um pacto de territorial, do modo como era
assegurado pela soberania aonde o soberano garantia mediante pagamentos e obediência, a
segurança de suas terras, contra injustiças. Doravante o que temos é um pacto de segurança,
onde o que se assegura é a própria segurança e a vida, se a biopolítica faz viver e deixa
morrer, então esse caráter de fazer viver biopolítico é o que vai configurar a existência desse
pacto de segurança como novo pacto social.
O que acontece hoje portanto? A relação de um Estado com a população se dá essencialmente sob a forma do que se poderia chamar de “pacto de segurança”. Antigamente, o Estado podia dizer: “vou lhe dar um território” ou: “Garanto que vocês vão poder viver em paz em suas fronteiras”. Era o pacto territorial, e a garantia das fronteiras era a grande função do Estado.Hoje o problema das fronteiras não se coloca mais. O que o Estado propõe como pacto à população é: “você será garantido” Garantido contra todo tipo de incertezas, acidentes, danos, riscos. Você está doente? Temos a seguridade social! Você está
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desempregado? Temos o seguro desemprego! Há uma crise? Criaremos um fundo de solidariedade! Existem delinquentes? Asseguraremos a sua recuperação, uma boa cobertura policial! (FOUCAULT, 2001, p.385, tradução nossa
É nesse sentido que falávamos no início da dissertação que há a substituição da
soberania territorial por uma espécie de soberania populacional, pois não é necessariamente
da tecnologia da soberania que tratamos, porém o pacto social como elemento fundacional da
soberania funciona hoje em dia como pacto de seguridade assegurando que o Estado é o
mantenedor da vida e da continuidade da existência de toda a população docilizada.
Outro elemento que contou para a quebra dos vínculos comunitários foi o desenvolvimento do sistema de seguridade e de previdência social, na medida em que para dar direito a um possível ‘benefício’, passa a exigir uma vida de trabalho, e também uma maneira de conduzir a vida (regrada e sem riscos), assim como pede hábitos e rotinas que não levem ao aumento de gastos em seu orçamento global. As pessoas são separadas entre as cobertas pela seguridade social e as sem direito a ela, e estas segundas são logo vistas pelos demais como quase-párias e indesejáveis socialmente, uma vez que têm um modo de vida inconsequente e perigoso. A aspiração ao direito à previdência social, portanto, se faz à custa de uma vida assujeitada, submissa a padrões de controle e de governabilidade, avessa a todo risco, intensidade e forma de vida desarrazoáveis. (CASTELO BRANCO, 2009, p.35)
Racismo de Estado
O pacto social assegura uma vida calma e sem movimentos bruscos, e cobra a
sedentarização, comodismo e conformismo, é preciso que se ocupe o tempo dos indivíduos
entre trabalho, dívidas e entretenimento midiático, impedindo assim a indocilidade. Aqueles
que insistem em não se moldar aquilo que é dado, são no fundo uma parte constituinte do
sistema e é no trato desses casos limites que enxergamos com mais clareza o caráter
intrinsecamente racista do Estado contemporâneo.
Sob as mais diversas justificativas e também com as mais diversas estratégias, os Estados, no decorrer do século XX, eliminaram grandes contingentes humanos dentre os membros de suas próprias nações. O que perturba Foucault é que o biopoder, que em tese deveria ser uma modalidade de gestão do poder que tem por finalidade gerir a vida e fazer viver, tenha se convertido, sobretudo, num poder de morte, exercendo a função prioritária de acarretar a morte das pessoas. Com indignação, o filósofo pergunta: “como é possível que um poder político mate, reivindique a morte, exija a morte, faça matar, dê a ordem para matar, exponha à morte não apenas seus inimigos, mas também seus cidadãos?” (CASTELO BRANCO, 2009, 31)
O racismo de Estado do modo como Foucault o entende, não é fruto da ideologia, não
é do racismo ideológico que falamos, é do racismo enquanto tecnologia de governo. Da
mesma forma como buscamos analisar o Estado, não enquanto entidade, mas focando as
tecnologias que o constituem e que o sustentam; o racismo de Estado é uma tecnologia, quase
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que completamente dependente da tecnologia de segurança na contemporaneidade. O racismo
é o mecanismo que vai permitir à racionalidade biopolítica exercer a função de morte, é
através das divisões entre grupos e sub-grupos, normais e anormais, disciplinados e
indisciplinados, legais e ilegais. “O que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi
mesmo a emergência desse biopoder”(FOUCAULT, 2004, p.304).
Quando falamos aqui de racismo de Estado, não estamos nos restringindo apenas a
discriminação racial, mas incluímos nesse conceito toda espécie de hierarquização que pregue
um determinado extermínio em prol da saúde da espécie. Falamos do eugenismo em diversas
formas, falamos do clamor popular pelo linchamento de transgressores da lei, falamos das
agressões homofóbicas, falamos do higienismo classistas das elites, do choque de ordem, da
limpeza urbana, da revitalização, entre outros infinitos processos que poderíamos enumerar.
O neorracismo que se inicia na era do biopoder, por um lado, se exerce segundo uma crescente e renovável divisão da população em grupos e subgrupos, em raças e sub-raças, numa escalada sem fim, de modo a que seja sempre possível, no interior de uma sociedade ou coletividade, apontar para grupos inferiores, patológicos, doentes, anormais, em oposição a grupos saudáveis, superiores, viçosos. (CASTELO BRANCO, 2009, p.32)
Na sociedade de segurança, os mecanismo para se lidar com os grupos indesejáveis
são baseados na aplicação de diversas medidas, sejam elas no nível jurídico-legal, sejam
medidas socio-educativas, seja o extermínio puro e simples. O racismo é uma parte tão
essencial do modo de funcionamento da nossa racionalidade política, que está também ligado
a toda uma série de questões acerca do ilegalismo.
Só uma ficção teórica pode fazer crer que nós aderimos de uma vez por todas às leis da sociedade a que pertencemos. Todos sabem também que as leis são feitas por uns e impostas aos outros […] A ilegalidade não é um acidente, uma imperfeição mais ou menos inevitável. É um elemento absolutamente positivo do funcionamento social, cuja função está prevista na estratégia geral da sociedade. (FOUCAULT, 2001b, p.1586-1587, tradução nossa)
Há uma interligação um tanto quanto obscura a princípio entre a segurança e o
ilegalismo, uma ligação que passa pelo racismo de Estado e pelo prerrogativa da razão de
Estado de nulificar a lei. Foucault afirma em uma entrevista que doravante a segurança está
acima da lei, mas isso não é uma especificidade da segurança, é uma apropriação do direito ao
golpe de Estado da razão de Estado. O ilegalismo entra nessa equação pelo fator do medo.
A positividade do ilegalismo no nosso mecanismo de governo se dá justamente na
possibilidade sempre presente do risco, do perigo e dos imprevistos, que o pacto de segurança
deveria supostamente impedir. A existência constante desses fatores vai tornar todas as
medidas de controle adotadas pelo governo não só justificáveis, mas desejáveis. O medo
individual desempenha um papel central na aceitação do controle policial, e o medo do
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extermínio coletivo na aceitação dos exércitos e dos grandes arsenais, o medo é a grande
ferramenta midiática no controle dos desejos e das opiniões.
Numa conferência na UFBA ao ser questionado acerca de qual seria a produtividade
que o poder visa com as prisões Foucault responde:
A utilidade político-econômica da delinquência nós podemos desvendar facilmente: primeiro, quanto mais delinquentes, mais crimes; quanto mais crime, mais medo haverá na população; e quanto mais medo houver na população, mais aceitável, e até mesmo desejável se tornará o sistema de controle policial. A existência desse pequeno perigo interno permanente é uma das condições de aceitabilidade desse sistema de controle; o que explica porque, nos jornais, nas rádios, na televisão, em todos os países do mundo sem nenhuma exceção, dá-se tanto espaço à criminalidade, como se fosse novidade a cada novo dia. (FOUCAULT, 2001, p.1514, tradução nossa)
Esse é o modus operandi do sistema de Estado em que vivemos, é esse o contrato
social ao qual estamos sujeitos, o pacto de segurança, que criou naturalidades nos processos
artificiais que criou, a cidade construída pelo povo se tornou meio natural no qual se
desenrola toda a naturalidade da vida, o tempo do calendário e do relógio se tornou o sísifo
existencial, a manipulação da opinião pública uma arte análoga ao dos domadores de leão nos
circos.
O racismo separa por meio de seus mecanismos os indivíduos sãos da população
daqueles que devem ser tratados por outros métodos, mais incisivos, esse é o povo, ou o
povão. É todo esse “resíduo de uma objetificação incompleta”(COHEN, 2005), ou nas
palavras de Foucault:
o povo é aquele que se comporta em relação a essa gestão da população, no próprio nível da população, como se não fizesse parte desse sujeito-objeto-coletivo que é a população, como se se pusesse fora dela, e, por conseguinte, é ele que, como povo que se recusa a ser população, vai desajustar o sistema. (FOUCAULT, 2008, p.57)
O povo é aquele que não suporta, é aquele que se rebela; é aquele que prefere o risco
da expropriação, à humilhação da fome; prefere morrer pelas armas da repressão à morrer de
inanição. O povo é aquele que não entende que o mercado vem primeiro, e que apenas com o
bom funcionamento do mercado e o respeito à sagrada propriedade pode haver prosperidade.
O povo é aquele que acredita que a naturalidade da fome e o direito natural de comer, estão
mais profundamente arraigados na realidade do que a naturalidade do mercado e o direito ao
lucro. O povo é o desajustado que desajusta todo o sistema, aquele sobre quem o medo da
punição e o ajuste disciplinar não surtiram efeito desejado. O ingovernável. O nível do povo
só é pertinente à ação governamental na medida em que
Ser governado significa ser observado, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, cercado, doutrinado, pregado, marcado, estimado, valorizado, censurado, comandado, por criaturas que não têm nem o título nem a ciência ou a virtude[...] Ser governado é ser a cada transação, cada movimento anotado,
100
registrado, contados, tributado, carimbado, sondado, taxado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, advertido, impedido, reformado, endireitado, corrigido. Que a pretexto de utilidade pública e em nome do interesse público ser envolto, treinado, redimido, explorado, monopolizado, contundido, espremido, enganado, roubado, e depois na menor pretensão, a primeira palavra de reclamação, reprimido, multado, desprezado, chateado, perseguido, esmagado, atordoado, desarmado, amarrado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, para coroar tudo, jogado, trapaceado, ultrajado e desonrado. Este é o seu governo, esta é a sua justiça, esta é a sua moralidade!”(PROUDHON, Idée générale de la révolution au XIXe siècle, tradução nossa)
Nosso intuito ao estudar a genealogia da governamentalidade, era que por se tratar de
uma história recente e que marca os processos que nos levaram a ser aquilo que somos,
poderíamos no estudo das tecnologias de segurança encontrar fissuras recentes, linhas de
fuga, focos de resistência que carreguem em si não só a chance de destruição desse sistema de
heteronomias, mas também os gérmens de um novo futuro. Esse caminho é apontado por
Foucault na última aula do curso de 1978, quando destaca as três grande contra-condutas
contemporâneas que se recusam a aceitar o modo de ser do biopoder, do Estado, do
liberalismo, ou qualquer outro nome que se use para falar dessas técnicas de governo dos
outros, ou desse sistema hegemônico de heteronomias.
A razão de Estado ao afirmar a história aberta, e abandonar a lenda do fim dos tempos,
adota no fundo uma visão de que a multiplicidade dos Estados não tem fim, sempre haverão
Estados nacionais, é o grande lema de Margaret Tatcher, “There is no alternative”, não tem
pra onde correr, todo o planeta foi governamentalizado, não existem mais ilhas perdidas,
náufragos ou territórios livres. Essa é a verdade deles, que nos repetem a todo momento,
porém existe também paralelamente a esse discurso, uma verdade que não se apaga do
coração das pessoas, “o tempo do Estado terminará”(FOUCAULT, 2008, p.478).
O fim do Estado para Foucault é sua supressão por parte da sociedade civil que
absorveria todo o poder estatal. Essa é a primeira contra-conduta contemporânea, a derrubada
do Estado por meio da construção de um contra-poder que se consolide na gestão coletiva da
sociedade. Tema eternamente presente nos textos anarquistas que sempre se opondo ao
foquismo ou outras vertentes da revolução guiada pelo partido, propuseram a organização das
forças populares, para que essas por si só façam frente ao poder hegemônico do Estado. É por
meio do crescimento da força das organizações do povo que poderemos vislumbrar a
derrubada do Estado governamentalizado como o conhecemos.
O que nos leva à segunda grande forma de contra-conduta contemporânea que é o
direito à desobediência e à revolução. Direito a romper com as relações de poder vigentes, a
desobediência generalizada é justamente a concretização de uma revolta pastoral que ainda
não ocorreu. “O pastorado ainda não passou pelo processo de revolução profunda que o teria
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aposentado da história”(FOUCAULT, 2008, p.199). Direito portanto a autonomia, face à
heteronomia.
A terceira grande forma de contra-conduta contemporânea “a ideia de uma nação
titular de seu próprio saber”(FOUCAULT, 2008, 479), no nosso caso seria a ideia de
desenvolver um pensamento pós-colonial que buscasse se desembaraçar das amarras do
eurocentrismo e todos os efeitos associados a ele.
Temos portanto uma contra-conduta que dá conta da gestão coletiva da sociedade, uma
contra-conduta que recusas a pastoral em prol da sedição e da insurreição, e por fim uma
contra-conduta que alardeia a necessidade da construção de um saber próprio aos grupos em
resistência, a construção de um contra-poder, de uma autonomia ética e de uma contra-cultura
própria. mas esses três modos da contra-conduta hoje, já são assuntos que abririam
desdobramentos o bastante para uma tese nova.
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