MASSENO, André. “Sabores e dissabores de uma realidade tropical”. In: CHIARA, Ana; ROCHA, Fátima Cristina Dias. Literatura Brasileira em Foco, Vol. 5: Realismos. Rio de Janeiro: Casa Doze, 2012, pp. 61-75.
Sabores e dissabores de uma realidade tropical.
André Masseno
Padre eterno deu um enorme bocejo
e disse:
Vou também tirar minhas férias.
Raul Bopp
Do outro lado do Pão de Açúcar, a região se tornou triste, bem triste.
Karl von den Steinen
Em “Estilo tropical: a fórmula do naturalismo brasileiro” (1888), o crítico Araripe
Júnior discute a aclimatação do movimento literário europeu dentro do território brasileiro.
Defendendo as condições física e geográfica como determinantes na literatura nacional, o
autor declara uma oposição entre o “realismo quente” – escrita aclimatada e que paga tributo
“às endemias dos países quentes” e dotadas de um “veneno atmosférico” – e o “realismo
decadente, frio”, ou seja, proveniente de uma “madre Europa”, de sociedade decadente e
tristonha (ARARIPE JÚNIOR, 2011, p. 234).
É evidente que o pensamento crítico de Araripe Júnior reverbera a atmosfera pós-
romântica e cientificista da década de 1870, quando proliferavam estudos sobre as relações
entre meio e sujeito, tão caras às ideias evolucionistas e deterministas dos Oitocentos. O autor
intenta circunscrever uma literatura brasileira cujo traço estilístico residiria em uma
incorreção, considerada positiva, perante o modelo literário da Europa, pois segundo Araripe
Júnior, “o tropical não pode ser correto. A correção é fruto da paciência, e dos países frios;
nos países quentes, a atenção é intermitente” (ARARIPE JÚNIOR, 2011, p. 233). Portanto, é
a literatura de uma sociedade ainda jovem, composta por brasileiros “envenenado[s] pelo
oxigênio” tropical que, ao tornar a respiração ofegante, faz com que sejam tomados por uma
imaginação delirante “numa deliciosa insensatez equatorial” (ARARIPE JÚNIOR, 2011, p.
233). Araripe Júnior aponta uma literatura de estilo tropical, orgulhosa pela forma irregular e
pela acidez agressiva de seu sabor, mesclando doçura e violência:
O estilo nesta terra é como o sumo da pinha que, quando viça, lasca, deforma-se, e pelas
fendas irregulares poreja o mel dulcíssimo, que as aves vêm beijar; ou como o ácido do
ananás do Amazonas, que desespera de sabor, deixando a língua a verter sangue, picada e
dolorida (ARARIPE JÚNIOR, 2011, p. 233).
“Estilo tropical” convidava o leitor oitocentista a enxergar as peculiaridades de uma
literatura local e, por conseguinte, buscava firmar um lugar independente da escrita literária
brasileira perante os substratos imagéticos e formas estilísticas do império europeu. Porém, é
curioso que este convite feito por Araripe Júnior, que é uma discussão seminal acerca de uma
produção literária nos trópicos, de atmosfera envenenada e asfixiante, permaneça aberto e
potente para nós, leitores contemporâneos de um país no qual o fazer artístico-literário sempre
fora assombrado por algumas formas de crítica ansiosas por uma arte que seja um documento
do real e/ou espelho de nossa realidade social, além da existência recorrente de uma tensão
entre a possível representação da paisagem local e a apropriação do suposto modelo
estrangeiro.
Portanto, retomo o texto de Araripe Júnior como ponto de partida para um possível
tracejar, ainda que tortuoso e pontilhado, acerca das reverberações da noção de tropical dentro
do nosso campo literário – e principalmente em duas produções literárias do final da década
de 1960, quando então estava surgindo o movimento tropicalista, que trazia a ideia de uma
tropicalidade brasileira em contraposição à imagem de uma identidade nacional construída
pelo regime ditatorial. Partirei, portanto, das obras “Vida paixão e banana do tropicalismo”,
de José Carlos Capinam e Torquato Neto, e Panamérica, de José Agrippino de Paula – e
justamente com esta segunda que começarei este tracejado sobre o tropical, de modo falho e
não exaustivo.
Panamérica, de José Agrippino de Paula (1967), é uma obra de ritmo cinematográfico,
onde há uma profusão de acontecimentos que não dão pausa para a respiração do leitor que, a
cada capítulo, é confrontado com situações inconclusivas e mirabolantes, dotadas de uma
velocidade voraz e de espacialidades cambiantes. Escrita em primeira pessoa, o narrador de
Panamérica é discursivamente multifacetado, ora sendo um cineasta norte-americano, ora um
guerrilheiro em fuga em uma América Latina sob o peso da ditadura. O discurso do narrador-
personagem é um devorar incansável da cultura norte-americana, tomando os mitos-ícones da
indústria cinematográfica e do entretenimento dos Estados Unidos como figuras moldáveis,
inseridas em uma narrativa alucinógena/alucinada e isenta de psicologismos. Neste panorama
desfilam as personagens de Marilyn Monroe, Gary Cooper, Burt Lancaster, Marlon Brando,
Sophia Loren, entre tantas outras. Panamérica parece uma escrita-roteiro onde proliferam
informações, atmosferas, situações, ações e comportamentos repletos de cortes bruscos no
espaço-tempo. Em suma, Panamérica, que tem o subtítulo de epopeia, é um livro-filme de
uma América hiperreal – ou se preferirmos, um relato elíptico do futuro de um Brasil prestes a
aderir ao discurso homogeneizante da globalização.
O contexto sócio-histórico em que a epopeia de José Agrippino de Paula foi produzida e
publicada, isto é, durante os anos 1964-69, era de uma América Latina dominada por regimes
ditatoriais, que, especialmente no território brasileiro, exerciam um sistema coercitivo de
patrulhamento ideológico e de censura sobre as manifestações populares e os segmentos
artísticos. Contudo, em vez de ser uma narrativa fidedigna acerca da situação social brasileira,
Panamérica parece optar por uma visada nada documental da realidade daquele momento,
sublinhando crítica e ironicamente a predominância discursiva da cultura de massa norte-
americana sobre os países periféricos como o Brasil, que buscava expandir-se pela própria
subserviência econômico-cultural ao império do capital norte-americano. Sendo assim,
Panamérica desliza para uma escrita fragmentada, caótica em sua pluralidade e às voltas com
o substrato simbólico que se introjetava na “subjetividade brasileira” através dos veículos de
comunicação de massa.
Ao jogar com a problemática do avanço midiático-tecnológico do império do capital
sobre os ditos países “subdesenvolvidos”, Panamérica articula situações espetacularizadas
acerca dos processos de seleção, edição e/ou omissão de fatos sócio-históricos operados pelo
mass media no que tange às etnias, classes sociais e culturas consideradas dissidentes. Um dos
exemplos é a narração de um desastre de dimensões apocalípticas durante as filmagens de
uma cena bíblica ironicamente intitulada “A Fuga dos Judeus” – onde morrem centenas de
figurantes vestidos de judeus e de arqueiros do exército egípcio, enquanto o narrador-cineasta,
ao ser interpelado pelo produtor cinematográfico sobre como foi o andamento da filmagem,
responde que foi “tudo perfeito” e acrescenta: “ocorreram alguns acidentes inevitáveis e
alguns extras estavam feridos e outros mortos, mas a companhia de seguro deveria pagar as
indenizações por morte ou invalidez dos extras” (PAULA, 1988, p. 27). Um segundo exemplo
– também relevante para o avanço de uma reflexão acerca da noção de tropical – é a cena em
que o narrador, Marilyn Monroe e uma amiga param, ocasionalmente, diante de uma vitrine
com a estátua de um nativo nu.
Marilyn Monroe encontrou uma amiga e parou para conversar em frente à vitrina. Eu me
introduzi na conversa falando com a amiga de Marilyn, enquanto procurava esconder com
o corpo o índio brasileiro enfeitado de penas que estava nu exposto na vitrina. O enorme e
mole pênis do índio caía até o joelho e eu não queria que Marilyn Monroe visse o
tamanho do sexo do índio brasileiro. Enquanto eu conversava com a sua amiga, Marilyn
se afastou um passo para trás e permaneceu olhando com o canto do olho o comprido
pênis caído do índio brasileiro exposto na vitrina. Eu sofria internamente, mas procurava
representar a mesma conversa amigável (PAULA, 1988, p. 66-7).
No âmbito social, esta passagem de Panamérica encena criticamente a condição de uma
etnia transformada em estátua viva, envidraçada1 e exposta à apreciação pública – passagem
que se aproxima de uma cena da versão cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade para a
obra Macunaíma, de Mário de Andrade, quando a personagem Venceslau Pietro Pietra
mantém, em sua mansão aristocrática, “estátuas vivas” de indígenas dentro de pequenas
estufas envidraçadas, semelhantes àquelas onde se repousam peças de museu e artigos de um
antiquário.2 No âmbito artístico, ao apresentar um nativo brasileiro aparentemente inerte por
detrás de uma vitrine-jaula, Panamérica rompe com o registro típico da literatura romântica
indianista que, por sua vez, construíra tanto a figura literária do nativo como encarnação de
força, bravura e imponência de um jovem Brasil em formação quanto de uma literatura
nacional que alçava à independência das letras portuguesas. Logo, entrevê-se nesta cena de
Panamérica duas camadas de escrita sobre a imagem do nativo brasileiro: a primeira,
localizando-se no ser de carne e osso étnica e culturalmente denominado indígena; a segunda,
descolando-se daquela etnia e cultura ao sugerir a formação de um emblema denominado
índio, isto é, este espaço da alteridade engendrado pelas produções literária e artística
brasileiras para se tornar receptáculo de uma força fundante da cultura nacional.
Contudo, na nudez do indígena/índio é possível vislumbrar uma agressividade
resguardada, que residiria na dimensão avantajada de seu pênis, embora flácido e impotente.
Talvez venha, pela iminente intumescência do órgão sexual do nativo brasileiro diante do
olhar desejoso de Marilyn Monroe, a tentativa do narrador de encobri-lo, evitando que a
1 Esta passagem de Panamérica, com as personagens em torno de uma vitrine, parece antecipar a prosa brasileira do decênio
de 1980 que, segundo Flora Süssekind no célebre artigo “Ficção 80: Dobradiças e vitrines”, jogaria tanto com o ritmo e
movimento cinematográficos quanto com o registro de uma sociedade envidraçada e espetacularizada (cf. SÜSSEKIND,
2003). Todavia, a própria autora já apontava na produção tropicalista este traço temático-estilístico assentado pela ficção dos
anos 80 – como é verificável no seguinte trecho de “Literatura e vida literária”: “Com o Tropicalismo, ao contrário, a crítica à
indústria cultural e às imagens arcaizantes ou desenvolvimentistas do país se dá no espetáculo, vira espetáculo. Ao invés de
apenas receber o mundo ‘numa pequena vitrine de plástico transparente’, como chamaria atenção Gilberto Gil na música
‘Vitrines’, tratava-se de se apropriar da vitrine” (SÜSSEKIND, 1985, p. 15).
2 Macunaíma. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Distribuidora: Embrafilme, 1969.
presença daquele pênis e a possibilidade de sua ereção possam interromper o roteiro de uma
narrativa amorosa dedicada à diva-ícone de uma indústria cultural. Porém, o olhar inquieto de
Marilyn para o sexo do indígena/índio insinua o próprio flerte desejante – não direto, porém
de canto de olho e disfarçado – da massiva produção cultural, ansiosa por domar a “força
selvagem” (ainda que já domesticada ou exaurida) de uma corporeidade supostamente
tropical. Olhar de uma indústria cultural que flerta e rapta a potência do outro rechaçado, ao
encarcerá-lo na selva infinda da mídia de massa.
Além disso, desprendo desta passagem da epopeia de José Agrippino de Paula a
figuração de um nativo com o “coração” deslocado para o baixo corporal. Enquanto o coração
do índio idealizado pela escrita romântica se localiza na altura do tórax – como o coração
arfante e bravio da personagem Iracema de José Alencar –, em Panamérica o músculo
cardíaco do nativo imóvel em sua vitrine-jaula vem se abrigar em seus quadris: o sexo mole e
imóvel passa a ser o “coração” do índio envidraçado. A meu ver, através desta descida do
órgão cardíaco à região pélvica e a consequente amálgama daquele com o órgão sexual,
Panamérica suscita a apresentação de mais uma das facetas do tropical: um coração domado e
aparentemente flácido. Porém, uma faceta extremamente potente em sua impotência, ao
arrastar os olhares de soslaio dos desejos alheios. Ainda que adormecido, o tropical continua a
ser um coração invejado; há o desejo de uma cultura em transplantar, para seu tórax, este
coração tropical – transplante este que será encenado pela escrita de José Carlos Capinam e
Torquato Neto em “Vida paixão e banana do tropicalismo” (1968).
“Vida paixão...” é um roteiro televisivo da filmagem de um ritual celebratório e festivo
que tematiza a morte do tropicalismo.3 De acordo com Paulo Roberto Pires, o roteiro de
3 É importante frisar que existem diferenças conceituais entre os termos Tropicália, tropicalismo e tropical. Contudo, estas
diferenças não são categóricas, já que os termos são utilizados de maneira diversa pelos artistas e críticos da época.
Dependendo do contexto de enunciação, os termos podem ganhar registros múltiplos. Primeiramente, Tropicália era o nome
de um dos Penetráveis de Hélio Oiticica de 1967, e que foi prontamente apropriado por Caetano Veloso após assistir, naquele
mesmo ano, a montagem teatral de José Celso Martinez Corrêa de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Logo, Tropicália
transformou-se em título tanto de uma canção de Caetano (1967) quanto do álbum Tropicália ou Panis et Circenses (1968)
que incluía as participações vocais de Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes, Nara Leão e Gilberto Gil. A Tropicália não
se configurou per si como movimento estritamente organizado, pois existiram vários procedimentos e interesses artísticos
dentro deste fervilhante “caldeirão cultural”, que ia desde a indústria musical até à produção cinematográfica e às artes
visuais. Já o termo tropicalismo, foi recorrentemente enunciado para demarcar criticamente um viés modista e palatável da
Tropicália elaborado por uma indústria cultural que, ironicamente, certa fatia do movimento tropicalista – principalmente a
da vertente musical – a utilizara como meio de difusão, de produção e de posicionamento na esfera pública. Por fim, o termo
tropical apresenta-se mais abrangente e de longínqua tradição, promovendo leituras que não ficam restritas aos estudos do
movimento tropicalista, permitindo a aproximação de um legado literário acerca desta discussão, ao qual pertence o texto
“Estilo tropical”, de Araripe Júnior, que problematiza como a terra, o clima e a geografia dos trópicos se constituíam em
diferença com os do europeu. Para uma discussão mais aguda deste tema, cf. BASUALDO, 2007.
Capinam e Torquato foi idealizado para ser o primeiro programa tropicalista de TV. Porém,
devido ao desentendimento com a Rodhia – empresa patrocinadora do programa –, houve
uma alteração no programa, que teve uma versão reduzida exibida pela Rede Globo sob o
nome de “Tropicália ou Panis et Circensis”, em 1968 (cf. NETO, 2004, p. 57). O título do
roteiro parece remeter a uma via crucis, neste caso a do movimento tropicalista, fazendo
paródia à vida e paixão cristãs e, consequentemente, ao auto que encena, na Semana Santa, o
trajeto de martírio, crucificação, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
O roteiro reúne várias personagens pertencentes à Tropicália e ao imaginário
tropicalista, tendo em seu elenco figuras como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chacrinha,
Grande Otelo, Glauber Rocha, Vicente Celestino, José Celso Martinez Corrêa, entre outras.
Com a participação de uma grande orquestra regida pelo maestro Rogério Duprat – artista
importante nos arranjos musicais das canções tropicalistas –, “Vida paixão...” ainda inclui
vários convidados em sua empreitada, entre eles a Academia Brasileira de Letras, Misses com
faixas, travestis, Fã-Clubes das cantoras Marlene e Emilinha Borba, turistas americanos e
torcidas uniformizadas (NETO, 2004, p. 65).
“Vida paixão...” exige um número vasto de participantes em cenas vagamente
delineadas, parecendo uma grande festa que necessita de uma participação ativa de seus
atuantes. Esta atmosfera festiva e espetacular confere ao roteiro de Torquato e Capinam o
registro de um grande happening teatral – uma entre diversas práticas artísticas de um período
em que o corpo era considerado o elemento catalisador de experiências e de rompimento das
barreiras entre arte e vida, com artistas vivendo em comunidade e apostando em experiências
grupais de des-repressão cultural e de liberação sexual.4 Esta dessacralização dos valores
artístico e cultural através do ritual da festa seria uma estratégia típica da arte brasileira entre
os anos 1964-1969 – onde se incluem “Vida paixão” e Panamérica. O ritual da festa, por
conseguinte, surgia nas práticas artísticas como crítica e denúncia à situação político-social
vigente, que estava centrada tanto na preservação da noção de indivíduo e da tradição familiar
– que eram caros ao sistema pré-1964 e que foram preservados pelo Estado pós-1964 – quanto
4 Naquele período, um dos exemplos desta experiência de desmantelamento das estruturas binominais caras ao Ocidente –
tais como arte/vida, corpo/ mente, fisicalidade/conceitualidade – é o grupo de teatro norte-americano The Living Theater,
liderado por Julian Beck e Judith Malina. No contexto brasileiro, encontramos o diretor José Celso Martinez Corrêa e seu
Teatro Oficina, que ainda hoje problematiza tais premissas, encarando o teatro como um espaço criticamente celebratório e
de uma experiência extática do corpo.
na disseminação dos valores tecnocráticos impostos pela indústria cultural (cf. HOISEL,
1980, p. 32-47).
A festa de “Vida paixão...” é composta por cenas onde canções brasileiras e entrevistas
desenrolam em um cenário composto por bananeiras, macacos, faixas de protesto e por um
telão com a reprodução do célebre quadro “A Primeira Missa no Brasil”, de Victor Meirelles.
Em meio a esta atmosfera tropical, a personagem Caetano Veloso dispara: “Isso tudo é Brasil,
sem ilusão. A luz dos trópicos, das florestas verdes e barrocas, das marmóreas catedrais e
casas de ciência eu respiro o doce e melancólico vazio brasileiro. Carmem Miranda bole
comigo em meu sono” (NETO, 2004, p. 82).
Em “Vida paixão...”, o tropical é entrevisto como uma apoteótica celebração da
natureza e cultura locais que, por sua vez, se caracterizam pela convivência mútua de
temporalidades aparentemente díspares e de espacialidades supostamente distintas: o verde e
o concreto; o arcaico e o moderno; a matéria-prima e o avanço científico-tecnológico; as
linhas multivetoriais da floresta tropical e os traços límpidos da arquitetura modernista; a
melancolia “selvagem” e o desenvolvimentismo “esperançoso” das cidades. O saboroso
espetáculo festivo das discrepâncias em “Vida paixão e banana do tropicalismo” se apresenta
não como a representação fidedigna da realidade brasileira, mas sim como a encenação, sem
aparatos, do real de uma cultura envenenada pelo saber/sabor da incongruência e da errância.
Dando um salto ao passado, é relevante resgatar rapidamente a visão histórica dos
trópicos contida nos relatos de viagem dos colonizadores para confrontar com o olhar tropical
dos tropicalistas. Na escrita dos primeiros expedicionários, sempre houve uma ênfase na
descrição dos insetos, serpentes e “bestas feras” tropicais, desenhando uma natureza
exoticamente perigosa; ênfase que, séculos mais tarde, foi retirada de cena pelos pintores
europeus em missão durante o período do Brasil Colônia, e que “carregariam na tinta” da
pintura dos nossos trópicos como natureza edênica e (quase) nada ameaçadora. Por
conseguinte, também haveria em suas pinturas um desconforto na representação tanto da
exploração escrava – como representar os escravos diante do desejo de uma paisagem
edênica? – quanto da falta de adaptação da família real portuguesa à natureza e clima tropicais
(cf. SCHWARCZ, 2008). Fazendo um paralelo entre este apagamento histórico na cultura
brasileira de um trópico terrível e a visão da Tropicália de uma tropicalidade aberta e
inclusiva, poder-se-ia dizer que os artistas tropicalistas engendraram a afirmação provocativa
das “bestas feras” culturais de seu tempo, isto é, do “cafona”, do “mau gosto”, do que era
considerado fruto de uma suposta falta de apuro e requinte estéticos. Deste modo, as
produções tropicalistas eram uma parcela de um comportamento ético e crítico de alguns
artistas em relação ao ideal de uma identidade nacionalista que, obviamente, bania e renegava
algumas manifestações culturais à condição de subprodutos, como pertencentes a um
espetáculo pífio e desprovido de potência e valor cultural.
“Vida paixão...”, assim como Panamérica, evoca o artifício do espetáculo como uma
tentativa radical de aproximação e de pensamento crítico acerca do real deste país: como um
longo e lânguido son(h)o tropical. Porém, no possível despertar deste son(h)o festivo, parece
vir um “vazio melancólico” pós-festa que embala os corpos e os espaços. Um vazio
melancólico que também pode ser encontrado nos relatos históricos de alguns pesquisadores
expedicionários que, a despeito de um olhar estrangeiro e deslumbrado diante da paisagem
tropical, se esquivavam de um relato sensacionalista dos trópicos, como o alemão Karl von
den Steinen, por exemplo, que em 1886 relatou:
Do outro lado do Pão de Açúcar, a região se tornou triste, bem triste. À esquerda,
campina, à direita, palmeiras do Chaco, a monotonia bocejando de um lado, o nervosismo
efervescendo do outro e um calor anestesiante cobrindo tudo. Um domingo de tédio.
Ficava-se dormindo, fumando e cismando ensimesmado (KRAUS, 2008, p. 17).
Uma paisagem monótona e bocejante, de temperatura anestesiante e perturbadora,
coloca por terra a representação dos trópicos como cenário paradisíaco. Aponta-se, por
conseguinte, para uma ambiência nada festiva em que há um gasto/gastura do tempo em um
nada fazer. Configura-se um tempo cansado, tempo-Macunaíma de um son(h)o preguiçoso.
Retomando a obra de José Agrippino de Paula, é possível vislumbrar uma melancolia
semelhante, através do olhar do narrador de Panamérica para os foliões carnavalescos, e que
parece enxergar, no esgotamento físico após o carnaval, um vazio iminente:
(...) eu observava a saída de homens e mulheres de um baile de carnaval. Todos estavam
cansados e caminhavam lentamente. O rosto dos homens e das mulheres de fantasia de
carnaval. Todos estavam cansados e caminhavam lentamente. O rosto dos homens e das
mulheres de fantasia ou de calça comprida e blusa solta no corpo estava brilhando de suor
(PAULA, 1988, p.118-9).
O narrador observa o corpo exausto dos foliões em sua caminhada lenta quase mórbida.
O cansaço corporal dos fantasiados, com sua transpiração brilhante, demarca o término da
folia carnavalesca e prenuncia a melancolia após o êxtase. Este trecho de Panamérica sugere
a leitura de outra paisagem possível do tropical: como uma quarta-feira de cinzas, uma longa
e “transpirada” despedida da euforia festiva – despedida que não passa incólume diante dos
olhos alheios.
A ideia de uma morte lenta assistida por todos também pode ser entrevista nos
momentos finais de “Vida paixão e banana do tropicalismo”, quando o tropicalismo se
apresenta moribundo diante do leitor-espectador. Embalado por uma marcha fúnebre, a
personagem Gilberto Gil declara que “o tropicalismo está quase morto. Perto das seduções da
moda, dos artifícios do tempo, da veleidade de ser o que não somos, ele morre” (NETO, 2004,
p. 83). Na sequência, os participantes cantam “Aquarela do Brasil”, que transita para um rufar
de tambores e que finaliza pontuado por um silêncio. Então surge uma música eletrônica,
durante a qual é transplantado o coração tropical:
LOCUTOR – Estamos assistindo neste momento ao transplante do coração do
monumento da Tropicália, que vai falecer. O momento é de enorme tensão coletiva. A é o
doador (sic). Até o presente momento não podemos informar que será o receptor do
coração tropicalista. Há notícias de que será o PODER JOVEM. Mas por enquanto o
coração restará entregue a si mesmo, conservado numa solução de sangue, suor e
lágrimas (NETO, 2004, p. 83-4).
O coração é ritualmente posto sobre o mapa da América do Sul, seguido pelas
personagens gritando “Abaixo o tropicalismo! Viva o tropicalismo!”, “Viva o tropicalismo!
Abaixo o tropicalismo!” (NETO, 2004, p. 84). Esta situação de aparente dilema entre ode e
escárnio do movimento/monumento tropicalista, de transplante e conservação de um coração
que ainda não sabe quem será o seu receptor e quem vai querer recebê-lo – ou seja, uma
doação para todos e para ninguém –, delimita o imaginário tropical enquanto condição
inclusiva e apropriadora de vivências e posicionamentos considerados paradoxais. Além
disso, a morte deste coração tropical arrancado é adiada, mantendo-se conservado em meio a
fluidos corporais e repousado sobre a cartografia latino-americana, na expectativa de uma
nova geração. Portanto, um coração em suspenso e endereçado ao imprevisto de uma
juventude vindoura, e ainda inapreensível. Enquanto este “poder jovem” não vem, uma
América Latina, revoltada e guerrilheira, tenta proteger este coração para que não seja raptado
(ou seduzido, quem sabe?) pelo sobrevoo mortífero dos “vencedores” da História:
(...) apareceu Gary Cooper, o ator norte-americano, sobrevoando acima da minha cabeça
vestido de cowboy (...). A multidão de índios bolivianos apontava para o cowboy Gary
Cooper dizendo que eles precisavam derrubá-lo (...). Eu tirei o revólver e apontei para
Gary Cooper sobrevoando o trem boliviano e atirei. Gary Cooper desabou do alto e
explodiu de encontro ao solo. Os índios bolivianos festejaram a minha vitória (...)
(PAULA, 1988, p. 137-8).
Nas artimanhas da construção de uma versão unívoca da História, quando o percurso
dos vencedores é feito sobre os corpos dos vencidos, as vozes são interrompidas por meio da
coerção e da tortura, causando o desaparecimento e o silêncio na esfera social. Retomando a
citação de Araripe Júnior sobre o ácido do ananás do Amazonas, que “desespera de sabor,
deixando a língua a verter sangue, picada e dolorida” (ARARIPE JÚNIOR, 2011, p. 233), o
elogio ao fruto tropical parece ganhar um sabor mais agressivo quando sob o peso de um
regime ditatorial. A meu ver, o narrador-guerrilheiro de Panamérica parece sugerir
elipticamente tal mudança de paladar do fruto nacional ao sufocar-se com o sabor vermelho e
nauseabundo da dor: “Eu deitei na cama e acordei durante a noite vomitando sangue. E eu
sentia a língua preenchendo a boca e não conseguia gritar. O sangue e a língua preenchiam a
minha boca” (PAULA, 1988, p. 130).
A voz do narrador se transforma em voz engasgada pelo inchaço da língua e pelo
acúmulo de sangue; sujeito de boca interditada, sem a passagem de ar necessária para a
produção de sua discursividade no âmbito social; a língua torna-se músculo inflamado e sem
mobilidade. Se, no texto de Araripe Júnior, o fruto tropical é portador de uma acidez que
transforma a língua numa musculatura ensanguentada e ferida, no discurso do narrador de
Panamérica entrevê-se o fruto tropical como que arrancado à força, reprocessado e
empurrado goela abaixo pela força cruel da tortura, que produz o inchaço da língua e faz as
vísceras verterem sangue. Logo, se o tropical é um espaço do devaneio e portador de uma
linguagem que machuca a língua com o gosto marcante da ferida aberta, por outro lado, não
se pode esquecer o seu lado sombrio: um fruto raptado e estereotipado por desejos
nacionalistas de um Estado autoritário, e que o defendia através do sabor ácido da tortura.
A todo o momento, a indústria tecnocrática está se apropriando da alteridade, retirando
a sua potência e peculiaridade, transformando-a em uma estereotipia a fim de ser disseminada
massivamente. Culturas, pensamentos e comportamentos considerados fora dos padrões
vigentes são inseridos dentro da normatividade, aplicando uma estratégia de docilidade sobre
o que antes era alteridade e diferença. A epopeia de José Agrippino de Paula parece assinalar
tais procedimentos por meio de cenas que remetem ao Manifesto Antropófago de Oswald de
Andrade, porém lido de modo perverso e às avessas pelas máquinas do capital, absortas em
uma disputa acirrada de quem consegue devorar e “defecar” com maior eficiência a cultura
alheia:
“(...) a disputa entre os dois comilões, Carlo Ponti defendendo as ações da Cinecittà e Di
Maggio defendendo as ações de Hollywood, iria ter início (...). O juiz (...) anunciou que
qualquer um dos dois que vomitasse seria desclassificado. Todo alimento ingerido
deveria sair pelo cu (...). Os marcadores eletrônicos controlados pelos juízes passaram a
marcar o número de bois. Carlo Ponti naquele momento tinha devorado 785 bois e Di
Maggio 853. Carlo Ponti continuava mastigando velozmente e a sua barriga se estendia
por um espaço de trinta metros e uma corrente de vinte guardas cercava a enorme barriga
esparramada no solo (...). Carlo Ponti arrancou as calças, dirigiu as nádegas pequenas e
redondas e lançou um potente jato de merda para cima. Jorrava merda líquida para os
lados (...) (PAULA, 1988, p. 227-30).
Esta passagem de Panamérica também sugere, de modo enviesado, o rapto da
antropofagia oswaldiana, que é transformada em comilança voraz por um Estado conservador
e com desejos imperialistas, que consome, estagna e liquefaz a radicalidade das diferenças,
além de desempenhar um papel protecionista sobre os bens culturais locais. Apesar deste
contexto nada aprazível, torna-se relevante pensar em uma noção de tropical que não se
esquiva de “consumir o consumo” e, ao mesmo tempo, de avançar fora de qualquer registro
“saudosista” propagado pelos discursos institucionais em prol da conservação dos bens
culturais da nação. Como indaga o artista plástico Hélio Oiticica no artigo “Brasil diarreia”:
“Por acaso fugir ao consumo é ter uma posição objetiva? Claro que não. É alienar-se, ou
melhor, procurar uma solução ideal, extra – mais certo é, sem dúvida, consumir o consumo
como parte dessa linguagem [de (re)formulação dos problemas nacionais]” (OITICICA, 2009,
p. 114 – grifos de Oiticica). Isso traz à baila a imagem de um Brasil tropical que foge da
representação de uma nação culturalmente essencialista. Portanto, haveria pouco espaço para
preciosismos em uma cultura tropical que, além de ser composta pela paisagem local, seria
definida pelo consumo crítico que ela faz tanto da paisagem estrangeira quanto da imagem
(lique)feita de si produzida pelo olhar diluidor do meio tecnocrático. A ação de “consumir o
consumo” rechaça o discurso purista do tropical enquanto “cor local” totalmente isenta do
diálogo com outras paisagens. Sendo assim, a epopeia de José Agrippino de Paula, ao
problematizar a ideia de uma “cor local” unívoca e ontológica, evita coadunar com o discurso
purista-estatal-nacionalista de uma “identidade brasileira” e de sua respectiva representação.
Caminhado para o desfecho e nos apropriando da lição de Walter Benjamin em “Sobre
o conceito de história”, pensemos o estilo tropical como um modo de escovar a nossa história
a contrapelo (cf. BENJAMIN, 1994, p. 225), interrompendo a ânsia desenvolvimentista (que
ainda perdura) em prol de uma pausa crítica para a releitura das escritas históricas de nossa
cultura. O tropical é muitas paisagens, e uma delas é a de ser uma resposta à dominação
histórica, cultural e econômica do imperialismo sobre o território latino-americano; ou pode
ser o tropical um traço estilístico dos vencidos, que o transforma em linguagem no esforço de
extirpar o engasgo deixado pelo contínuo banho de sangue dado em prol de um discurso
unilateral da História. O tropical seria, também, a condição para uma reivindicação ético-
política bastante cara ao movimento tropicalista, no qual se inserem as escritas de José
Agrippino de Paula, Torquato Neto e Capinam aqui analisadas. Seus textos, em vez de
descreverem fidedignamente a realidade brasileira daqueles anos, optam pelo jogo
ironicamente festivo e espetacularizado da vida. O tropical surge não como ilusão, mas sim
como nossa crua/cruel configuração do real. Panamérica e “Vida paixão e banana do
tropicalismo” parecem assinalar o real na tropicalidade, com sua espetacular e assombrosa
exuberância melancólica e vertiginosa. O tropical se apresenta como estilo e noção
disparadores de escritas do/com o real – este aqui compreendido não como fato, mas sim
como espaço de experiências. O tropical torna-se local de uma língua ferida devido ao sabor
desesperado e suculento do fruto tropical; espaço ofegante diante da diversidade excessiva de
uma paisagem dispendiosa e repleta de son(h)o.
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