Download - REVISTA QUERUBIM NITERÓI – RIO DE JANEIRO 2017

Transcript

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 1 de 145

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

2017 2017

2017

2017

REVISTA QUERUBIM

Letras – Ciências Humanas – Ciências Sociais

Ano 13 Número 32 Volume 3

ISSN – 1809-3264

REVISTA QUERUBIM

NITERÓI – RIO DE JANEIRO

2017

N I T E R Ó I R J

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 2 de 145

Revista Querubim 2017 – Ano 13 nº32 – vol. 3 - – 145 p. (junho – 2017) Rio de Janeiro: Querubim, 2017 – 1. Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais Periódicos. I - Titulo: Revista Querubim Digital Conselho Científico Alessio Surian (Universidade de Padova - Italia) Darcilia Simoes (UERJ – Brasil) Evarina Deulofeu (Universidade de Havana – Cuba) Madalena Mendes (Universidade de Lisboa - Portugal) Vicente Manzano (Universidade de Sevilla – Espanha) Virginia Fontes (UFF – Brasil) Conselho Editorial Presidente e Editor Aroldo Magno de Oliveira Consultores Alice Akemi Yamasaki Andre Silva Martins Elanir França Carvalho Enéas Farias Tavares Guilherme Wyllie Hugo Carvalho Sobrinho Janete Silva dos Santos João Carlos de Carvalho José Carlos de Freitas Jussara Bittencourt de Sá Luiza Helena Oliveira da Silva Marcos Pinheiro Barreto Mayara Ferreira de Farias Paolo Vittoria Pedro Alberice da Rocha Ruth Luz dos Santos Silva Shirley Gomes de Souza Carreira Vanderlei Mendes de Oliveira Venício da Cunha Fernandes

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 3 de 145

Sumário 01 José Ricardo Silva e José Milton de Lima – O movimento como conteúdo na creche:

proposições para o trabalho com o bebê 04

02 Julia Rossoni Souto e Rodrigo de Rosso Krug – As dificuldades que os professores de Educação Física do ensino regular encontram em incluir alunos com deficiências nas aulas

11

03 Juliana de Almeida Martins Goiz – A história dos africanos e dos afro-brasileiros no currículo de História do 8º ano do Ensino Fundamental II da rede oficial do Estado de São Paulo

21

04 Juliana de Almeida Martins Goiz – O percurso metodológico da pesquisa: considerações sobre a pesquisa qualitativa e a análise do conteúdo em estudos para educação étnico-racial

33

05 Juliana Mauricio, Aline Alcântara, Amanda da Silva Viana e Beatriz Almeida Aguiar – Trabalho infantil e a pedagogia social: uma relação necessária

43

06 Karina Maria Mesquita Da Silva e Bruno Gomes Pereira – Metodologias ativas no Curso de Graduação em Enfermagem: (im) possibilidades?

46

07 Keyla Christina Almeida Portela e Karin Claudia Nin Brauer – Paradigmas educacionais na atuação de professores na educação à distância: um estudo de caso

53

08 Liane Nair Much, Kauana Martins Bonfada, Daniele Fialho Pelizzaro e Eduardo A. Terrazza – Reflexões sobre a prática docente

64

09 Lilian Rodrigues e Anselmo Lima – Estratégias de gestão do espaço físico da sala de aula no PIBID Artes Visuais: pesquisa e intervenção em clínica da atividade

71

10 Luiz Antonio Dias e Rafael Lopes de Sousa e Rafael Lopes de Sousa – De Braços Abertos: Análise da recepção do jornal Folha de S. Paulo ao regime militar em 1964

78

11 Maria Helena Biscuola, Marlene Almeida de Ataíde e Tatiana de Oliveira Lima – Serviço Social e a população em situação de rua após a alta hospitalar: Articular a rede intersetorial uma questão possível?

86

12 Marina Braga da Silva e Hedvaldo Caldeira Costa – Terceirização ilícita: Operador de Telemarketing em instituições bancárias em Minas Gerais

96

13 Marina Braga da Silva e Rosângelo Rodrigues de Miranda – O trabalho e a modernidade líquida

102

14 Marina de Paulo Nascimento e Glauber Heitor Sampaio – Crenças de alunos hispanofalantes sobre a proficiência em português no exame Celpe-Bras

106

15 Max Silva da Rocha, Marcos Apolinário Barros, Ana Izabel dos Anjos Silva, Francis Jadson Lima das Neves e Fellype Lima Alves da Costa – Produção de texto na escola: aspectos normativos, discursivos e textuais

114

16 Meire Celedônio da Silva - Os Desafios no Uso de Ferramentas Digitais no Ensino e Aprendizagem da Escrita

121

17 Nathalia Franco Alves e Márcia Regina Canhoto de Lima – A Sociologia da Infância como suporte para os professores: a criança e a cultura do brincar

130

18 Newton Cândido de Assis, Solange de Fátima Lolis, Rodney Haulien Oliveira Viana e Carolina Machado Rocha Busch Perreira – Ribeirão São João: estudos dos impactos socio-ambientais através da memória da população ribeirinha no Município de Porto Nacional – TO.

136

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 4 de 145

O MOVIMENTO COMO CONTEÚDO NA CRECHE: PROPOSIÇÕES PARA O TRABALHO COM O BEBÊ.

José Ricardo Silva1

José Milton de Lima2 Resumo O objetivo do texto é defender o movimento enquanto conteúdo a ser desenvolvido na creche com bebês e, ainda apontar possibilidades para esta prática. Movimento aqui entendido como manifestação tipicamente humana que proporciona ao indivíduo, relações conscientes com o entorno de forma autônoma. Na busca por este objetivo, utilizaremos como aporte teórico, a teoria histórico-cultural. Para esta perspectiva, o movimento humano não é dado biologicamente, portanto, faz-se necessário que o professor o assuma enquanto conteúdo a ser mediado. Concluímos que, ao entender e propor o movimento nas práticas pedagógicas com o bebê, o professor promoverá o desenvolvimento dos pequenos. Palvras-chave: Bebês. Movimento. Teoria histórico-cultural. Abstract The purpose of the text is to defend the movement as content to be developed in daycare with babies and also to point out possibilities for this practice. Movement here understood as a typically human manifestation that provides the individual with conscious relationships with the environment in an autonomous way. In the search for this objective, we will use as theoretical contribution, the historical-cultural theory. For this perspective, human movement is not given biologically, therefore, it is necessary that the teacher assumes it as content to be mediated. We conclude that, in understanding and proposing the movement in pedagogical practices with the baby, the teacher will promote the development of the little ones. Keywords: Babies. Movement. Cultural-historical theory. Introdução.

A Educação Infantil encerra em sua trajetória histórica e ainda nos dias de hoje obstáculos

nos âmbitos legais, estruturais e de formação de professores (inicial, continuada e em serviço). Tal problemática foi denunciada ao longo do tempo por diversas pesquisas. Entendemos que tais práticas são resquícios históricos da Educação Infantil que traz em sua trajetória, marcas assistencialistas e de maternagem. Como exemplos, podemos citar o fato de que os primeiros asilos destinados a atender crianças objetivaram combater a pobreza; o abandono de menores; famílias carentes; mães trabalhadoras e minimizar o descaso com a educação pública (NOSELLA, 2002; KULHMANN Jr., 2007).

Embora haja, atualmente, avanços teóricos e práticos e de políticas públicas que auxiliam e

orientam práticas docentes, a organização e a gestão na Educação Infantil, notamos que este desarranjo se torna ainda mais preocupante no que concerne ao atendimento de bebês nas creches.

1 Doutorando em Educação - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Campus de Presidente Prudente - SP. Membro do grupo de pesquisa Cultura Corporal: Saberes e Fazeres UNESP. Professor efetivo do quadro funcional do estado de São Paulo na área de Educação Física. Professor substituto no curso Pedagogia na Universidade Estadual Paulista Filho - FCT UNESP, Presidente Prudente e professor no curso de Educação Física na Faculdade de Presidente Prudente (FAPEPE). 2 Docente do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia – UNESP de Presidente Prudente. Líder do Grupo de Pesquisa Cultura Corporal: saberes e fazeres pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Unesp de Presidente Prudente.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 5 de 145

Por muito tempo o trabalho docente com o bebê foi considerado de pouca importância, bastando o atendimento às necessidades básicas, alimentação, banho e sono e, por isso, a atuação docente em creches, ainda apresenta concepções assistencialistas que marca a rotina como afazeres domésticos, focado na proteção, alimentação e higiene, caracterizando o trabalho docente como não diretivo, espontâneo, embasado no cotidiano, no empirismo, no conhecimento tácito e na espera pelo desenvolvimento do bebê que há de vir e que, por isto, não há trabalho pedagógico a ser realizado com ele (CAMPOS, FÜLLGRAF, WIGGERS, 2006; MARTINS, 2009; RAMOS, 2011; OLIVEIRA, 2014).

Sob esta problemática, os conteúdos que deveriam ser desenvolvidos na rotina da creche

acabam, por vezes, sendo prejudicados. Dentre estes conteúdos, queremos destacar neste texto, o movimento. Engatinhar, andar ereto, pegar e mover de lugar determinado objeto, escovar os dentes, beber água, ações desenvolvidas cotidianamente de forma aparentemente natural, mas que são derivadas das mediações culturais nas relações entre indivíduos mais experientes com aqueles em desenvolvimento. Com o papel de oferecer vivências diferentemente da vida cotidiana, emergem as instituições de educação da primeira infância como aquelas onde o conhecimento científico, cultural, artístico, representativo da cultura humana, é mediado pela figura do professor, responsável pelo desenvolvimento ainda não alcançado dos indivíduos que ali frequentam independente da faixa etária (MARTINS 2009).

A partir desta complexa trama que se coloca frente aos bebês na creche consideramos ser

pertinente elaborar, mesmo que de forma incipiente, algumas reflexões sobre o trabalho docente que valorize e oportunize a movimentação dos bebês na creche. Para tanto, tomaremos como base teórica autores da psicologia histórico-cultural. Para esta base teórica, a aprendizagem do indivíduo é compreendida como o processo de transmissão do conhecimento representativo da espécie humana. Assim, o sujeito aprende não de maneira natural, mas ao apropriar-se da cultura desenvolve suas funções psíquicas superiores que, facilitarão sua relação com os sujeitos e a realidade.

O desenvolvimento do movimento é de ordem cultural.

Ao nascer, manifestam-se nos bebês mecanismos reflexos não condicionados, de

orientação e protetores que irão assegurar a adaptação e o desenvolvimento do organismo às novas condições de vida, diferente da intra-uterina. Uma herança biológica humana “[...] formas primitivas e inatas de comportamento, de qualquer maneira necessária para que a criança sobreviva e posteriormente atinja sua maturidade psíquica. ” (MUKHINA, 1996, p. 41). Como exemplos de reflexos de orientação, podemos citar: reflexo de sucção, reflexo de preensão, reflexo de impulso, o ato de piscar os olhos sob luz forte, assustar-se com altos sons, retrair mãos e pés sob novas sensações, mover a cabeça em direção ao alimento que lhe tocam os lábios, e etc.

Tais reflexos tendem a desaparecer mediante relações humanas. Para que haja este

desenvolvimento, são necessárias aos bebês ações práticas, por exemplo, a troca de roupa, o banho, a alimentação, o toque, o olhar, o diálogo. O bebê por sua vez, responderá a estas ações externas com movimentos desordenados de braços e pernas, são nestas manifestações que reside a sua capacidade de assimilar novas experiências e desenvolver sua humanização. Dialeticamente, formarão nos bebês, ações internas que lhe permitirão interação com o mundo que o rodeia. É durante a formação dessas ações internas que se constitui o conteúdo principal do desenvolvimento psíquico da criança. Estas orientações psicológicas internas são chamadas de ações de orientação, serão estas que irão anteceder todas as próximas ações práticas. A ação de orientação tem início na forma externa, seu resultado é alcançado mediante as relações em que o bebê estabelece (MUKHINA, 1996).

De acordo com Elkonin (2009), a primeira metade do primeiro ano de vida, é marcada pelo

desenvolvimento adiantado do sistema nervoso. Para o autor, o desenvolvimento de setores

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 6 de 145

sensoriais deve adiantar-se aos atos motores. Desenvolvem-se, em particular, os setores responsáveis por captarem impressões externas. Sua visão e sua audição se desenvolvem mais rápido que os movimentos do corpo devido a maturação do sistema nervoso. “O desenvolvimento dos sistemas sensoriais antecipa-se ao da esfera dos movimentos das mãos. Os movimentos da criança ainda são caóticos, ao passo que os sistemas sensoriais já se tornam dirigíveis. ” (ELKONIN, 2009, p. 208)

Afirmam Mukhina (1996) e Elkonin (2009) que a visão e os movimentos estarão

intrinsecamente interligados, uma coordenação visomotora (olho-mão), como aquela que irá facilitar o ato de agarrar. Os estímulos externos que os bebês receberão, colocarão em exercício seus órgãos dos sentidos, seus analisadores (receptores, nervos aferentes e zonas cerebrais de elaboração de impulso e resposta), que farão a conexão entre o mundo externo e o interno do bebê, como um meio de comunicação não verbal. Esta capacidade do bebê é assegurada pelas áreas primárias do córtex cerebral, ligadas à sensibilidade ou com a motricidade. “No recém-nascido estão mielinizadas tão somente as chamadas áreas primárias do córtex, vinculadas aos órgãos da percepção que por seu próprio desígnio são esferas receptoras” (VYGOTSKI, 2006, p.293). É esta a primeira área que receberá os estímulos do meio e os enviará às demais áreas do cérebro. Serão, portanto, os seus órgãos dos sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar) que captarão os mais diversos estímulos e os enviarão através de conexões neurais ao córtex cerebral para serem processados, para então, formarem o psiquismo humano, ou seja, a imagem subjetiva da realidade objetiva ou, ainda, o reflexo psíquico da realidade. É, segundo Martins (2013), por meio da relação estabelecida entre o bebê mediante seus órgãos do sentido e os objetos que formarão as primeiras imagens subjetiva da realidade.

Depois da formação do ato de preensão, há o surgimento dos movimentos concatenados.

De acordo com Elkonin (2009), este movimento está relacionado aos movimentos soltos, uma forma de contemplação do objeto que o bebê tem em mãos: palmadas no objeto, agita-o, passa-o de mão em mão, balança-o quando dependurado, golpeia-o com outro objeto. De acordo com Elkonin, (2009) a palma da mão do bebê transforma-se num aparelho receptor de funcionamento ordenado e, durante este processo, continua o autor, é estabelecido a vinculação entre a percepção visual e o movimento. Com o passar do tempo, este bebê passará a se agarrar ao chão e se arrastar, primeira forma de deslocamento autônoma. Isto se dá, pois o arrastar autêntico não se origina com a força e impulso dos pés, mas sim do movimento com as mãos.

Em síntese inicial, podemos afirmar que o aparato biológico do bebê é guia de sua relação

com o meio e fonte representativa de suas possibilidades. Tomando-o como base o bebê buscará estabelecer relações com o entorno, consequentemente, desenvolverá, dentre outras funções, a motricidade. Contudo, o nível maturacional do cérebro do bebê não assegura o desenvolvimento dos sentidos que irão nortear sua relação em sociedade. Seu cérebro está em desenvolvimento pois, diferentemente do animal, o cérebro humano continua a se formar ainda depois do nascimento. No entanto, este órgão possui determinante função no desenvolvimento humano, pois mesmo ainda em desenvolvimento, é capaz de captar informações do mundo externo. Seu desenvolvimento é decorrente da quantidade de impressões externas que recebe a partir das experiências do bebê. O cérebro do bebê não tem seu funcionamento organizado, suas estruturas funcionais são derivadas de formações de novas conexões neurais organizadas sistematicamente. Nisso reside a necessidade de relações sociais que os bebês precisam experenciar para desenvolver suas capacidades e sua destreza motora (VYGOTSKI, 2006).

Esta concepção de desenvolvimento nos leva, então, a concluir que o movimento

autônomo deriva das relações, estímulos culturais, que o bebê receber. Portanto, para que ele avance sua condição de movimento reflexo, formas inatas de comportamento, em direção aos movimentos autônomos, formações neurofuncionais mais complexas, é necessário, quando inseridos na creche, que o professor oportunize e incentive o movimento do bebê.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 7 de 145

O movimento enquanto conteúdo na creche. Ao iniciarmos nossas discussões é preciso definir o que entendemos como conteúdo a ser

trabalhado com os bebês na creche. Para isto nos apoiamos em Martins (2009, p. 94) quando esta define conteúdos de ensino como “[...] os conhecimentos mais elaborados e representativos das máximas conquistas dos homens, ou seja, componentes do acervo científico, tecnológico, ético, estético etc. convertidos em saberes escolares. ” Na mesma direção, complementa Saviani (2011, p. 14), sobre os conteúdos de ensino “[...] diz respeito ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular. ”

Com esta definição, consequentemente outra questão se coloca: quais são as descobertas

humanas que se configuram enquanto conteúdos escolares a serem trabalhados com os bebês? Para Mukhina (1996) quanto menor é a criança, mais elementares e simples serão os conhecimentos que ela poderá assimilar. De certo, os conteúdos escolares são aqueles que ampliam as possibilidades de controle do ser humano sobre si mesmos e sobre o mundo, ou seja, aqueles que desenvolvem as Funções Psíquicas Superiores3. Esta relação fica ainda mais clara ao levarmos em consideração que o, ao nascer, o bebê apresenta Funções Psíquicas Elementares e, socialmente poderá desenvolver Funções Psíquicas Superiores que facilitarão cada vez mais sua relação com o mundo externo e o controle sobre si. Para Martins (2009), no trato pedagógico com o bebê, os conteúdos são entendidos como conteúdos de formação operacional. Estes conteúdos devem estar sob o domínio do professor e subjazem suas propostas como saberes interdisciplinares e não são transmitidos em seu conteúdo conceitual produzindo uma aprendizagem indireta (grifos da autora). Como exemplo de conteúdos com esta natureza, destacamos a acuidade perceptiva e sensorial, domínios psicofísicos e sociais e a destreza psicomotora.

Sobre o trabalho com a destreza motora dos bebês, entendemos que não deve haver uma

dicotomia entre corpo e mente, considerando o corpo apenas como uma forma mecânica de movimento. A compreensão acerca do movimento não pode se restringir a concepção orgânica, ou seja, ao desenvolvimento apenas de habilidades físicas, mas entendê-lo nos aspectos que englobam o cognitivo, o social, o afetivo, entre outros, sem dicotomizar corpo e mente. “Os objetivos da educação motriz da criança não podem estar limitados ao desenvolvimento físico, a exercitações de seu aparato motor.” (ZAPORÓZHETS, 1987, p. 71)

É dentro dessa perspectiva que salientamos o movimento enquanto conteúdo a ser

desenvolvido com bebês na creche. Ao proporcionar intencional e sistematicamente experiências de movimento para os bebês, acreditamos que os professores estarão contribuindo para que eles possam adquirir cada vez mais formas de movimentar-se no espaço, conhecendo a si mesmo, os espaços, os objetos, criando sua autonomia e se apropriando da cultura. O movimento do bebê na creche: possibilidades para a prática docente.

Toda ação docente com e para o bebê deva ser antecipada e conscientemente planejada

como uma atividade de ensino. O movimento, por exemplo, é visível em todas estas situações. A preocupação reside no como estas vivências dos bebês são organizadas na creche. Faz-se, consequentemente, saber dosar este conhecimento de modo a possibilitar aos frequentadores da instituição educacional o apoderamento dos saberes clássicos que o humanizarão.

Uma forma de estimular o movimento dos bebês está ligada à organização dos espaços. Na

relação espaço/bebê, o espaço deve ser complementar à ação dos bebês, não devem se opor,

3 Formas complexas e superiores de comportamento onde, desprovidas das condições sociais de formação, o psiquismo humano não conquistaria, por exemplo, linguagem, escrita, cálculo, desenho, etc. (MARTINS 2013).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 8 de 145

ambos constituem uma relação de interdependência. Os espaços devem ser, portanto, móveis no sentido antagônico à palavra estático, mutável tal como o desenvolvimento dos bebês. Deve ser modificado de acordo com os avanços alcançados pelos bebês. Nesta organização e reorganização, haverá para os bebês novos motivos, novas necessidades que irão convidá-los a investigar com os olhos, pesquisar com as mãos, deslocar-se até móvel ou objeto que antes não estava ali. Um espaço amplo, seguro e a diversidade de materiais tornam-se convidativos para que o bebê explore. Serão novos desafios que farão com que o bebê se movimente (MOREIRA, 2013). Além disso, Campos e Rosemberg (2009) discorrem sobre o fato das crianças terem direito a creches com um espaço amplo aberto para os dias de calor e fechados ou cobertos para os dias de frio ou chuva. Esse espaço pode estar, também, nas proximidades das instituições de ensino. Ele deve servir para que os bebês possam se movimentar ao ar livre; desenvolver a força, a agilidade e equilíbrio físico necessários para outras conquistas motoras como correr, pular, saltar, explorar espaços.

Outra forma de incitar a movimentação dos bebês é através de materiais, objetos diversos.

São os objetos culturais que, neste período do desenvolvimento, encerram as necessidades e afetam os bebês e, nessa relação, o movimento realizado pelo bebê é explícito (MUKHINA, 1996). Os professores podem colocar objetos a curtas distâncias de seu alcance e em seguida a distâncias maiores; posicionar pequenos obstáculos entre os bebês e os objetos; oferecer-lhes colchonetes para rolarem e, deitados, elevarem inicialmente o pescoço e, posteriormente, o peito do chão; aplicar na superfície do piso texturas diferenciadas, espelhos, barras de sustentação para as primeiras tentativas do caminhar e etc. Buscar, pegar, lançar e bater em objetos como, copos e colheres plásticas, bolas, bexigas, potes, garrafas plásticas, enfim, tornam-se motivos para se movimentar (BRASIL, 2012).

Outro elemento cultural possível de ser utilizado na creche e promotora de movimento do

bebê são as músicas. Ao propor a música para os bebês, os professores podem fazer uso de objetos diversos como os brinquedos sonoros, objetos do cotidiano (potes, panelas, colheres) e os próprios instrumentos musicais em miniatura para facilitar o manuseio mas, também, em tamanho real, recursos da natureza, do próprio corpo, cantar, dançar. Além das contribuições psíquicas e culturais, quando inseridas na rotina, a música, incentiva os bebês a novos modos de se movimentarem, exercita a musculatura das pernas e dorsal que auxilia na postura, logo, no engatinhas, ficar em pé, andar, correr, tocar em uma banda (SOARES, 2007)

Com as devidas intervenções, no fim do primeiro semestre e começo do segundo, o bebê

se arrasta com o intuito de alcançar objetos de seu interesse. Consequentemente, os movimentos que utiliza para chegar até o objeto, se fixam e tornam-se condutas motoras. O bebê assim também procederá com o andar ereto, forma autenticamente humana de se deslocar. Esta capacidade é precedida por um período relativamente longo de aprendizagens, momentos de fortes emoções. Inicialmente, a criança se colocará em pé com o auxílio de um apoio, dará passos sem se apoiar, seus pés se moverão com muita dificuldade, perderá continuamente o equilíbrio, qualquer objeto deverá ser contornado, desde os pequenos até os maiores, até que ganhar maior estabilidade e cairá cada vez menos até caminhar livremente (MUKHINA, 1996).

No entanto, salienta a autora, em contraposição às experiências motoras, estão os

movimentos estereotipados: chupar o dedo, balançar-se de cócoras, apalpar as próprias mãos olhando-as fixamente ou aproximando-as do rosto. Este tipo de comportamento motor do bebê deriva de intervenções empobrecidas, opressoras e impositivas do meio.

Ainda em tempo, é preciso ressaltar o papel de destaque que há na linguagem do professor

dirigida ao bebê. Será a linguagem que provocará uma revolução em seu sistema psíquico. De acordo com Vygotski (2006), por meio da linguagem verbal, a criança dará início a um diferente modo de se relacionar com o meio; irá analisar, classificar e examinar as impressões recebidas, a memória se tornará lógica e intencional, surge a atenção voluntária e novas formas de experiência emocional com a realidade. Aos poucos, a linguagem se configura enquanto forma de organização

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 9 de 145

da atividade sociológica humana. Mesmo que eles ainda não dominem esta função, entendemos ser imprescindível que os professores falem com os bebês em todas as ocasiões possíveis para que, com o tempo, consigam relacionar os objetos, os atos e os comportamentos com o som que os representem socialmente.

Conclusões

Assumimos neste texto o objetivo de apresentar o movimento enquanto conteúdo a ser

tratado com os bebês na creche. A discussão teórica nos levou a compreender esta manifestação humana como histórica e social, portanto, necessita ser apropriada. Estes autores partem do princípio de que aquilo que não faz parte da natureza humana, precisa ser ensinado, de forma que cada indivíduo singular se aproprie de toda produção humana, em forma de uma segunda natureza. Assim, é preciso haver rupturas em concepções históricas que colocam os bebês em patamares de incapazes, incompetentes e em estágio de preparação para a vida adulta.

Para atingir este objetivo, os professores podem convidar e agir com os bebês de várias

formas: colocar objetos a curtas distâncias de seu alcance e em seguida a distâncias maiores; posicionar pequenos obstáculos entre os bebês e os objetos; oferecer-lhes colchonetes para rolarem e, deitados, elevarem inicialmente o pescoço e, posteriormente, o peito do chão; aplicar na superfície do piso texturas diferenciadas, uso de espelhos, barras de sustentação para as primeiras tentativas do caminhar, espaços organizados e a música. Os movimentos realizados pelos bebês podem, ainda, serem considerados como indícios de seu nível de desenvolvimento. Deste modo, o professor pode utilizá-los para pensar em suas propostas. Para isso, é necessário que os professores estejam atentos a estes sinais externalizados pelos bebês e, a partir deles, planejar e propor atividades que contribuam com este desenvolvimento. Portanto, o trabalho de escuta e atenção às possibilidades expressivas do bebê emerge como possibilidade para que a professora conheça os modos próprios de pensar e a versatilidade de ações sócio comunicativa empreendida para partilhar seus desejos, necessidades e intenções como elementos contextualizadores da organização didática.

Referências BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Brinquedos e brincadeiras na creche: manual de orientação pedagógica. Brasília, MEC/SEB, 2012. CAMPOS, M., M., FULLGRAF J., WIGGERS V. A qualidade da educação infantil brasileira: alguns resultados de pesquisa. Cad Pesqui.; 36 (127): 2006 p. 87-128. CAMPOS, M. M, ROSEMBERG, F (orgs.). Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças. 6. ed. Brasília: MEC, SEB, 2009 ELKONIN, B. B. Psicologia do jogo. São Paulo: Martins Fones, 2009 KULHMANN Jr. M. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. 4. ed. Porto Alegre: Mediação, 2007. MARTINS, L. M. O ensino e o desenvolvimento da criança de zero a três anos. In: ARCE, A.; MARTINS, L. M. Ensinando aos pequenos: de zero a três anos. Campinas: Alínea, 2009. _____. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas, Autores Associados, 2013. MOREIRA A., R., C., P. Os bebês e os espaços da creche: um estudo de caso/intervenção. R. Educ. Públ. Cuiabá, v. 22, n. 49/1, p. 305-325, maio/ago. 2013 MUKHINA, V. Psicologia da idade pré-escolar. São Paulo: Martins Fontes, 1996. NOSELLA, P. A linha vermelha do planeta infância: o socialismo e a educação da criança. In: FREITAS, M. C.; KUHLMANN JR., M. (Orgs.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002. p. 129-165. OLIVEIRA R. P. de. Entre a fralda e a lousa: um estudo sobre identidades docentes em berçários. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais, Escolas de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, 2014.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 10 de 145

RAMOS, C. de M. M. N. O papel da professora no desenvolvimento humano da criança pré-escolar sob o enfoque da teoria histórico-cultural. Tese de doutorado – Marília, 2011. SAVIANI D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11ª ed. rev. Campinas, Autores Associados, 2011. SOARES C., V., da S. A música na Educação Infantil: o movimento dos bebês em ambiente musical. Dissertação, Universidade Federal de Goiás, 2007. VYGOTSKI, L., S. Obras Escogidas - Tomo IV. (2a ed.). Madrid: Visor Aprendizage y Machado Libros, 2006. ZAPORÓZHETS A. Estudio psicológico Del desalloro de La motricidad en El niño preescolar. In. SHUARE M. La psicologia evolutiva y pedagogia em la URSS. Editorial Progreso, Moseú, 1987. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 11 de 145

AS DIFICULDADES QUE OS PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA DO ENSINO REGULAR ENCONTRAM EM INCLUIR ALUNOS COM DEFICIÊNCIAS

NAS AULAS

Julia Rossoni Souto4; Rodrigo de Rosso Krug.5

Resumo O objetivo deste estudo foi analisar os desafios que os professores de Educação Física do ensino regular encontram em incluir alunos com deficiência, nas aulas. Este estudo de caso descritivo qualitativo teve como sujeitos dois professores de uma Escola da cidade de Cruz Alta – RS. Aplicou-se questionário contendo onze questões interpretadas por análise de conteúdo. Constatou-se que o principal desafio encontrado pelos professores para efetivar a inclusão de alunos com deficiência, no ensino regular, foram a falta de preparo do professor (formação inicial e continuada insuficiente na temática) para trabalhar com algum tipo de deficiência. Palavras-chave: Inclusão. Educação Física Escolar. Deficiências. Abstract The aim of this study was to analyze the challenges that Physical Education teachers of regular education find in including students with disabilities in class. This qualitative descriptive case study had as subjects two teachers from a School at Cruz Alta – RS city. Applied a questionnaire containing eleven questions interpreted by content analysis. It was found that the main challenge encountered by teachers to make the inclusion of students with disabilities in regular education, was the lack of preparation of the teacher (initial and continuing formation insufficient in the thema) to work with some type of disability. Keywords: Inclusion; School Physical Education; Disabilities. Introdução

A história da inclusão na Idade Média, época em que ocorriam muitas matanças e

perseguições às pessoas que nasciam com alguma deficiência. Estas pessoas não eram consideradas pertencentes à maioria da sociedade, eram abandonadas, escondidas ou mortas (MAZZOTA, 2001). No século XV as pessoas consideradas loucas ou com alguma deficiência mental ou física eram mandadas para a fogueira, pois eram vistas como possuídas pelos espíritos malignos. Na antiguidade as pessoas com deficiência eram eliminadas ou abandonadas pelo incômodo que representavam as suas famílias e sociedade (MAZZOTA, 2001). Neste sentido, historicamente podemos constar a rejeição que estas pessoas sofriam e ainda sofrem, o que as impedem de usufruírem do convívio social.

Nos tempos mais atuais a sociedade ainda é regida por grupos considerados tradicionais,

dificultando o convívio social harmonioso, menosprezando a diversidade humana e exaltando a exclusão (MANTOAN, 2005), principalmente de pessoas com deficiências. Assim, conviver com a diversidade é um dos maiores desafios sociais atuais, e implica em reconhecer, conviver, aceitar, e respeitar as diferenças que caracterizam cada ser humano (MANTOAN, 2005).

4 Acadêmica do Curso de Educação Física – Licenciatura da Universidade de Cruz Alta – Unicruz [email protected] 5 Professor Doutor do Curso de Educação Física da Universidade de Cruz Alta – Unicruz – [email protected]

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 12 de 145

Para se efetivar a inclusão, através do convívio harmonioso e do respeito às diversidades, primeiramente deve-se priorizar a educação para todos (educação inclusiva), enfatizando o respeito às diferenças e as minorias (GÓES, 2005). Na última década, o Brasil tem se destacado internacionalmente pela transformação de suas políticas públicas no campo da educação de pessoas com deficiência, buscando romper com concepções assistencialistas ou clínicas e investindo em ações de cunho educacional e de inclusão social (ZARDO, 2012).

A política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 2005) na Perspectiva da Educação

Inclusiva foi regulamentada pelo Decreto-lei n° 3/2008 que considera que a educação inclusiva visa à equidade educativa, consiste de maneira que as leis sejam respeitadas de forma correta. A educação especial como uma modalidade transversal a todos os níveis e modalidades de ensino, enfatizando a atuação complementar da educação especial ao ensino regular.

Os dados de matrículas provenientes do Censo da Educação Básica do INEP informam

que grande parte dos alunos com deficiência encontra-se hoje na Rede Pública de Ensino. Porém, um grupo importante de alunos com deficiência ainda não está na escola regular (BRASIL, 2012).

A incorporação de uma visão científica pela Educação Física tem contribuído para o seu

processo de modernização, trazendo uma nova perspectiva para as aulas, na qual essa disciplina passa a ser vista como fruto de uma construção cultural, isto é, os seus conteúdos e temas podem apresentar diferentes sentidos e significados para os diferentes grupos sociais que compõem a escola (KAWASHITA, DIAS, 2015). Esta disciplina apresenta um caráter eminentemente prático, sendo uma disciplina que proporciona o desenvolvimento de comportamentos e pré-requisitos necessários para a construção de conhecimentos e habilidades mais complexas e que dependerão, basicamente, das oportunidades vivenciadas pelos educandos (NEIRA, 2009).

A prática de atividades físicas dentro da escola pode ajudar o aluno a ter melhorias para a

sua qualidade de vida e sentir que a prática não desconsidera suas dificuldades e limites, além de promover inclusão, valorizar o aluno, proporcionar autonomia, autoconfiança e liberdade (SOUZA, 2014).

Porém, a grande polêmica está focada em como promover a inclusão escolar e nas aulas de

Educação Física de forma competente. Muitos fatores podem dificultar a inclusão, dentre eles a precariedade do atendimento oferecido a alunos com deficiência, a falta de acessibilidade física, as dificuldades de acesso ao conhecimento e o descompasso em relação à turma frequentada (BEZERRA; ARAUJO, 2011; PRIETRO, 2010), a falta de preparo das escolas para receber o aluno com deficiência e o fato de os escolares que não têm deficiência não estarem preparados sobre como aceitar ou brincar com os colegas com deficiência (SOUZA, 2014).

Outro ponto importante que dificulta a inclusão escolar nas aulas de Educação Física é que

muitos professores atuantes nas escolas não receberam em sua formação conteúdos e/ou assuntos pertinente à Educação Física Adaptada ou a Inclusão, o que faz com que os professores não se sintam preparados para atender adequadamente as necessidades daqueles alunos (SOUZA, 2014).

Assim, tem-se como objetivo geral, analisar os desafios que os professores de Educação

Física do ensino regular encontram em incluir alunos com deficiência, nas aulas.

Materiais e Métodos

Este estudo caracterizou-se como sendo um estudo de caso descritivo qualitativo. Os sujeitos do estudo foram todos os professores de Educação Física da Escola Estadual

de Ensino Fundamental e Médio Venâncio Aires da cidade de Cruz Alta – RS. Porém, um dos

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 13 de 145

professores não aceitou participar da pesquisa. Sendo assim participaram do estudo dois professores que atuavam nos anos finais do ensino fundamental na referida escola.

Como instrumento de pesquisa foi aplicado questionário contendo 11 questões referentes à

formação acadêmica dos professores, ao processo de inclusão escolar, convivência dos alunos com deficiências com os colegas e com os professores durante as aulas de Educação Física, contendo também as possíveis adaptações da escola e da prática nas aulas de Educação Física

Primeiramente, foi realizado contato com o diretor da escola solicitado uma autorização

para realizar a pesquisa por meio de uma carta de apresentação da UNICRUZ. Posteriormente, os professores de Educação Física da escola foram contatados a fim de explicação e convite para participação na pesquisa. Os professores que aceitaram participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A coleta de dados ocorreu nos meses de agosto e setembro de 2016, na própria escola. O

formulário foi entregue aos professores e foi marcado um dia para buscá-lo. Os dados coletados a partir das respostas dos professores pesquisados foram analisados

pela técnica de análise de conteúdo. Este tipo de análise interpreta as comunicações visando obter a descrição do conteúdo das mensagens, permitindo a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção dessas mensagens. A análise de conteúdo se dá pela pré-análise, que envolve os primeiros contatos com os documentos de análise, a formulação de objetivos, definição dos procedimentos a serem seguidos e a preparação formal do material; pela exploração do material, que corresponde à categorização, definição das unidades de contexto e de registro, entre outros; e pelo tratamento dos resultados obtidos e interpretação, fase na qual os dados são lapidados, tornando-se significativos (BARDIN, 2006).

Resultados e Discussões

No quadro 1 encontra-se que os dados relativos a caracterização sociodemográficas e

profissional dos sujeitos do estudo. Os professores pesquisados eram do sexo feminino, graduadas na Universidade de Cruz Alta (professor I em 1979 e II em 2001), tinham 59 anos e 35 anos respectivamente. O professor I trabalha na escola a 35 anos e o II a 7 meses.

Perguntas Professor I Professor II

Sexo Feminino Feminino

Idade 59 anos 37 anos

Graduação Unicruz-1979 Unicruz-2001

Há quanto tempo trabalha na escola?

35 anos 7 meses

Quadro 1. Caracterização sociodemográficas e profissional dos sujeitos do estudo. Cruz Alta, Rio Grande do Sul, Brasil, 2016.

No quadro 2 analisou-se a formação acadêmica e profissional dos sujeitos dos estudos em relação a temática inclusão escolar. O professor I, como se graduou em 1979, não teve disciplinas referentes ao tema, pois naquela época a universidade ainda não oferecia disciplinas nesta temática. Já o professor II, teve disciplinas sobre o tema. Nenhum dos professores realizou cursos relativos a inclusão.

Perguntas Professor I Professor II

Teve disciplinas relacionadas a educação física adaptada na graduação?

Não Sim

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 14 de 145

Realizou cursos relativos a inclusão?

Não Não

O que é deficiência física? É toda dificuldade motora e /ou mental do indivíduo.

São pessoas com disfunções física ou psíquica.

O que é inclusão? Alunos com essas dificuldades devem estar incluídas em turmas regulares.

É a convivência com outros alunos em classe regular.

Quadro 2. Formação acadêmica e profissional dos sujeitos dos estudos em relação a temática inclusão escolar. Cruz Alta, Rio Grande do Sul, Brasil, 2016.

De acordo com Almeida e Coffani (2010), observou-se que os docentes com maior tempo

de graduação não possuem formação na área de Educação Física Inclusiva, em contrapartida, os profissionais que se formaram recentemente já possuem uma formação básica na área (SILVEIRA, 2012), demonstrando a preocupação em possibilitar uma formação inicial mais focada na incusão.

Entretanto, Almeida e Coffani (2010) mencionam que, às vezes, a disciplina básica ofertada

durante a graduação para preparar os futuros profissionais não é suficiente para que a intervenção profissional seja eficaz. Além disso, Silveira (2012) acredita que a ausência ou ineficiência da formação na área da Educação Física Inclusiva impeça a eficácia na proposta da educação inclusiva, pelo fato de não conseguirem adaptar suas aulas. Porém, é perceptível a busca pelo conhecimento sobre os processos inclusivos; vários professores têm procurado se capacitar para atender essa nova concepção de sociedade (CELESTINO; OLIVEIRA, 2009). Contudo, a falta de conhecimento dos professores, principalmente o de Educação Física, sobre as estratégias e recursos pedagógicos empregados junto aos alunos com deficiência dificulta o acesso e a permanência desses alunos em suas aulas (MUNSTER, 2006).

Relativo as definições do que é deficiência, os professores responderam (Quadro 2):

“Deficiência é toda a dificuldade motora e/ou mental do indivíduo” (Professor I); “Deficiência são pessoas com disfunções físicas ou psíquicas” (Professor II). Segundo o Decreto nº 3.956, de (2001). Artº 1, entende-se por deficiência: "uma restrição física, mental ou sensorial de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social".

Já inclusão, foi definida da mesma maneira pelas duas professoras como sendo “o processo de

incluir o aluno com necessidades especiais em classes regulares para ter a convivência com os demais alunos” (Quadro 2). Os Parâmetros Curriculares Nacionais/Educação Física (BRASIL, 1998, p. 30) corroboram com esse princípio: [...] a inclusão do aluno é o eixo fundamental que norteia a concepção e a ação pedagógica da Educação Física Escolar [...] seja na sistematização de conteúdos e objetivos, seja no processo de ensino e aprendizagem, para evitar a exclusão ou alienação na relação com a cultura corporal de movimento.

No quadro 3 verificou-se as questões relativas ao trabalho com alunos com algum tipo

deficiência. Ambos os professores relataram sentimento de expectativa e desafio ao saberem que iriam ministrar aulas para algum aluno com deficiência. De forma geral, o trabalho na perspectiva da educação inclusiva é compreendido como um desafio, diante do pouco conhecimento sobre os métodos de estimulação frente às necessidades educativas apresentadas pelo aluno com deficiência, associado à falta de recursos dos professores (CARVALHO, 2003).

Além disso, os dois professores disseram não se sentirem preparados para trabalhar com

estes alunos. Quando questionados se conseguem trabalhar todos os conteúdos, como expressão corporal, coordenação, habilidades motoras e jogos com alunos deficientes incluídos, o professor I, respondeu que não, com exceção dos surdos-mudos, já o professor II, que sim, consegue trabalhar (Quadro 3). Segundo Vitta et al. (2010), a ausência de uma formação especializada dos professores de Educação Física em relação à inclusão resulta em sensações de incapacidade deles para lidar com

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 15 de 145

esse processo. Ainda com a falta de capacitação dos profissionais, percebe-se que alguns não sabem como atuar, nem como diferenciar as necessidades de inclusão dessas pessoas.

Costa (2004) cita que existem diversas barreiras para a inclusão como a falta de preparação

do professor; falta de conhecimento dos docentes e de metodologia apropriada para trabalhar com crianças que requerem um atendimento educacional especializado.

Perguntas Professor I Professor II

Já ministrou aulas para alunos com necessidades especiais?

Sim, mas já ministrei aula para alunos com Down, surdos, mudos e cadeirantes.

Sim, síndrome de Down, paralisia cerebral e esquizofrenia.

Qual a sua primeira impressão em ter que educar um aluno com deficiência?

Expectativa-Desafio. Expectativa-Desafio.

Se sente preparado para trabalhar com eles?

Não. Não.

Consegue trabalhar todos os conteúdos com todos os alunos?

Não. Com exceção dos surdos e mudos.

Sim

Como é o relacionamento entre os alunos e alunos com deficiências?

Regular. Os surdos conseguem ter uma relação mais fácil com os outros.

Bom.

Sua turma tem prejuízo devido a presença do aluno com deficiência?

A turma em si não, o aluno sim.

A turma não, o aluno deficiente sim.

A escola oferece recursos didáticos pedagógicos adequado para os alunos?

Sim. Sala de recursos. Sim. Sim Sala de recursos.

Qual a suas maiores dificuldades e desafios?

Com exceção dos surdos-mudos que mesmo não sabendo a língua de sinais, consigo me fazer entender e o aluno participa da aula normal.

Falta de tempo para atendê-los e falta de paciência dos alunos.

Quais aspectos facilitadores para trabalhar com alunos com deficiências?

Para trabalhar com outras dificuldades o professor precisa de um tempo maior.

O interesse e motivação dos alunos.

Sua opinião sobre a inclusão de alunos com deficiências nas aulas de Educação Física.

Todos professores deveriam ter preparação direcionada para cada caso, o que acho meio individual.

A inclusão se dá só em relação a consciência dos alunos, pois em termos de conteúdos o professor não tem tempo para atendê-los individualmente.

Quais sugestões para melhorar o desempenho profissional frente as necessidades dos alunos com deficiência?

Esses alunos requerem um tempo maior do professor para que se possa trabalhar. Isso virá, as vezes, em detrimento restante da turma. Como hoje as turmas de um modo geral já são difíceis de trabalhar em função da disciplina, torna esse atendimento mais

Cursos específicos para cada área.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 16 de 145

individual mais complicado. Como trabalhamos em espaço amplo, dificulta um pouco, podemos ter o controle da turma como um todo, enquanto fazemos um atendimento mais individual.

Quadro 3. Questões relativas ao trabalho com alunos com algum tipo deficiência. Relatados pelos sujeitos do estudo. Cruz Alta, Rio Grande do Sul, Brasil, 2016.

O movimento inclusivo no contexto educacional é desafiador, pois exige mudanças em

vários aspectos a fim de superar as barreiras para a educação inclusiva. Temos que considerar todas as variáveis do processo educativo como as pessoas da escola (educadores, gestores, alunos, apoio administrativo); o ambiente físico (em termos de acessibilidade), os recursos financeiros e materiais (origens, quantidades, periodicidade de recebimento, manutenção de equipamentos e instalações), os graus de participação da família e da comunidade (parcerias), a filosofia de educação adotada (se tradicional ou não), o projeto político pedagógico construído pela comunidade escolar (natureza do documento, autores, destinação), a prática pedagógica (se mais centrada no ensino ou na aprendizagem), os procedimentos de avaliação (formativa, somativa, formal, informal), dentre outros aspectos (CARVALHO, 2003).

Ao serem indagados sobre quais tipos de deficiência já trabalharam, o professor I não

lembrou para quantos ensinou, mas lembra que trabalhou com alunos surdos/mudos, com Síndrome de Down e cadeirantes. Já o professor II citou que deu aula para alunos com Síndrome Down, paralisia cerebral e esquizofrenia (Quadro 3).

Nota-se que os dois professores citaram ter ministrado aula para alunos com Síndrome de

Down. Nos dias de hoje existe um grande número de alunos com deficiências nas escolas, o aluno com Síndrome de Down é um deles. Esse distúrbio genético é caracterizado de um cromossomo 21 adicionais em todas as células do organismo do indivíduo, levando-o a apresentar várias características físicas e mentais especificas. A síndrome de Down é um evento genético natural e universal, estando presente em todas as raças e classes sociais (CARDOSO, 2004).

Segundo Silva e Cabral (2004) estudar o contexto de inserção na escola regular ao aluno

com Síndrome de Down é relevante, pois ele traz marcado no seu corpo o resultado de fatores biológicos que certamente é alvo de olhares diferenciados na sala de aula, e no momento de luta em relação à inclusão como medida favorável ao exercício da tolerância em relação a estas pessoas diferentes, o tema em questão passa a ser objeto de ampla repercussão no âmbito educacional.

Miranda (2010) relata que independentemente da deficiência que o aluno apresenta o

professor deve ter como um dos saberes necessários para atuar na escola inclusiva, incorporar todos os alunos com deficiência no ensino comum.

Referente ao relacionamento dos alunos, o professor I citou que o relacionamento dos

alunos com deficiência e os demais colegas é regular, destacando que os surdos conseguem ter uma relação mais fácil com os outros colegas. O professor II, disse que o relacionamento de todos era bom. Ao serem indagados se na opinião deles (professores) a turma tem algum prejuízo devido a presença de alunos com deficiência, ambos os professores citaram que a turma em si não, mas o aluno com deficiência sim (Quadro 3).

Alguns educadores acreditam que os alunos com deficiência não acompanham os demais

colegas na aprendizagem e por isto deveriam ser preservados e estudarem na escola especial, onde

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 17 de 145

estaria com crianças "iguais" e, assim, não precisaria lidar com este desafio. Outros educadores acreditam que o aluno com deficiência deve frequentar a escola de ensino regular, justamente pela riqueza que surge através da diversidade (ROSA, 2008).

De acordo com Selau (2007) as crianças conseguem se adaptar bem e se relacionar com o

grupo, independente de suas capacidades e dificuldades. Desenvolvem a criatividade na relação com o grupo e se adaptam as mais diferentes situações, percebem as diferenças e aprendem com isso. “Somos diferentes. Essa é a nossa condição humana” (CARVALHO, 2007, p.11).

A educação inclusiva tem sido caracterizada como um “novo paradigma”, que se constitui

pelo apreço a diversidade como condição a ser valorizada, pois é benéfica à escolarização de todas as pessoas, pelo respeito aos diferentes ritmos de aprendizagem e pela proposição de outras praticas pedagógicas, o que exige a ruptura com o instituído na sociedade e, consequentemente, nos sistemas de ensino (PRIETO 2006, p. 40).

Os dois professores relataram que a escola oferece recursos didáticos pedagógicos

adequados para que os professores possam desempenhar um bom trabalho com esses alunos, tendo em vista que a escola possuí uma sala de recursos (Quadro 3). A sala de recursos a pouco tempo, está inserida na escola, e é um recurso positivo para o professor que trabalha com a inclusão. Ela facilita o professor a ensinar e na aprendizagem do aluno com deficiência. Os benefícios dela são muitos, além do professor dar atenção principal ao aluno, o aluno se sente especial em ter aquele momento só para ele, não tendo nada que a distraia, que tire a atenção, assim o desenvolvimento da criança só tem a crescer, além dos vários recursos que a escola disponibiliza (jogos, brincadeiras e livros) (PARANÁ, 2008).

No texto das Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL,

2001) encontra-se o conceito desse serviço de apoio à inclusão, pelo qual deve ser desenvolvido o atendimento educacional especializado (AEE) na escola, envolvendo-se professores com diferentes funções: Salas de Recursos é o serviço de natureza pedagógica, conduzido por professor especializado, que suplementa (no caso dos superdotados) e complementa (para os demais alunos) o atendimento educacional realizado em classes comuns.

Sobre a função e a importância da sala de recursos, Arnal e Mori (2007, p.3) alertam para o

fato de que a sala de recursos só pode ser considerada instrumento de inclusão "[...] desde que consiga atender à diversidade, assegurando ao aluno a inclusão em situações de aprendizagem no ensino regular". Uma sala de recursos multifuncional - Tipo I autorizada para funcionar 20h semanais pode oferecer atendimento especializado para, no máximo, vinte alunos, e realizado de acordo com o cronograma elaborado pela professora especializada, juntamente com a equipe pedagógica (PARANÁ, 2011).

Em relação a quais são os aspectos que podem facilitar o trabalho com pessoas com

deficiência o professor I relatou ‘’ para trabalhar com outras dificuldades o professor precisa de um tempo maior do que o restante dos alunos’’. Já o professor II disse que se os alunos tiverem interesse e motivação o trabalho de inclusão fica facilitado (Quadro 3).

A prática esportiva nas aulas de Educação Física pode significar, para os alunos com

deficiência, um ganho significativo de autoconfiança e autoestima, principalmente pelo fato de elas perceberem que são capazes de executar diferentes ações de forma independente (GORGATTI, 2003). Os professores de Educação Física devem, por meio de suas atividades, proporcionar aos alunos com deficiência ganhos em relação a sua autonomia e independência nas atividades do cotidiano, respeitando as capacidades e limitações de cada um (CARDOSO; BASTILHA, 2010). Dessa forma, as aulas de Educação Física podem proporcionar ao aluno uma oportunidade de ser incluído, aprender e realizar novos movimentos, de lazer, de aprendizagem de novos jogos e

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 18 de 145

brincadeiras, além de oferecer a oportunidade da experiência competitiva e cooperativa entre os alunos, tornando os alunos com deficiência mais independentes (KRUG, 2002).

Quando convidado as opinar sobre a inclusão de alunos com deficiências no ensino

regular, o professor I citou que, para que haja uma inclusão efetiva, todos professores deveriam ter preparação direcionada para cada caso, e o professor II, falou que, a inclusão se dá só em relação a convivência dos alunos, pois em termos de conteúdo o professor não tem tempo para atendê-los individualmente (Quadro 3). A inserção de alunos com deficiências nas escolas regulares é recente na história do Brasil. Vive-se um período de transição, no qual a desqualificação dos professores, o preconceito e o despreparo das famílias ainda têm sido barreiras para a prática inclusiva nas escolas (MARQUES, 2008).

Quando foi solicitado que os sujeitos pesquisados dessem sugestões para melhorar o

desempenho profissional frente as necessidades dos alunos com deficiência, o professor I, explicou que, os alunos requerem um tempo maior do professor para que se possa trabalhar. Isso virá, as vezes, em detrimento ao restante da turma. Como hoje as turmas de um modo geral já são difíceis de trabalhar em função da disciplina, torna esse atendimento mais individual mais complicado. Como trabalhamos em espaço amplo, dificulta um pouco, podemos ter o controle da turma como um todo, enquanto fazemos um atendimento mais individual. O professor II, citou, que cursos específicos para cada área ajudaria no melhor desempenho profissional.

Kassar (2005) destaca que a ação educativa de inclusão é responsabilidade institucional que

deve prover condições para o processo da inclusão, diferente de uma ação isolada, centrada apenas no professor. As escolas inclusivas devem garantir igualdade de oportunidades, de participação, contribuindo para a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos (GUIJARRO, 2005). Nesta perspectiva, é imprescindível que, durante a sua formação, o professor compreenda primeiro como se dá a aprendizagem, a fim que, ao deparar-se com alunos com alguma deficiência, não reproduzam discursos e ações que pré-determinem quem pode e quem não pode aprender (ZANELLA, 2001). Conclusão

Após a análise dos resultados deste trabalho pode-se evidenciar que o principal desafio

encontrado pelos professores de Educação Física para efetivar a inclusão do aluno com alguma deficiência, no ensino regular, foi a falta de preparo do professor (formação inicial e continuada insuficiente na temática) que não possui conhecimento para trabalhar com determinada deficiência.

No que se refere às escolas, as mesmas não estão totalmente preparadas para receber alunos com deficiência nos aspectos físicos, motores, didáticos e intelectuais, primeiro, pela falta de cursos preparatórios para professores sobre esse tema e pela falta de acessibilidade e estrutura da escola.

Neste sentido, sugere-se que a inclusão seja melhor abordada na graduação em Educação

Física para que os profissionais não saiam despreparados para trabalhar com esse aluno. Já a escola, deve oferecer possibilidades ao aluno com deficiência para que possa estar inserido e não excluído nas aulas de Educação Física, para que busque novas práticas, experiências e sentir o prazer pela pratica da atividade física.

A pesquisa oferece contribuições para que possamos fazer uma reflexão diante da postura

do professor e sua prática, pois só o conhecimento da teoria não basta, teremos que uni-las para que haja realmente um bom desenvolvimento do aluno e o professor.

Espera-se que os resultados desta pesquisa auxiliem e contribuam para que governos e

gestores universitários repensem na formação inicial e continuada dos professores de Educação

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 19 de 145

Física, referente a temática inclusão. Pois com isso, os professores poderão estar melhor preparados para efetivar a inclusão escolar.

Sugere-se que novos estudos de cunho quantitativo e com um maior número de

professores seja realizado para que possamos identificar melhor as dificuldades da inclusão nas aula de Educação Física, bem como a realização de estudos que indaguem os pais e gestores também.

Referências ALMEIDA, J. B.; COFFANI, M. S. C. R. Educação Física Escolar: Reflexões e perspectivas em relação à inclusão do aluno com deficiência física. Revista de Educação, n. 28, p. 55-67, 2010. ARNAL, L. S. P.; MORI, N. N. R. Educação Escolar Inclusiva: A prática Pedagógica nas Salas de Recursos. In: CONGRESSO BRASILEIRO MULTIDISCIPLINAR DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, 4., 2007, Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2007. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, p. 680, 2006. BEZERRA, G. F.; ARAUJO, D. A. C. Back to the stick's curvature theory: intellectual disabilities in inclusive school. Educação em Revista, v. 27, n. 37, 2011. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental - (Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais). Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1998. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Resolução 02/2001. Brasília: Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação, 2001. BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Documento Subsidiário à Política de Inclusão. Secretaria de Educação Especial: Brasília (DF). 2005. BRASIL. Ministério da Educação, INEP. Censo Escolar da Educação Básica, 2012. CARVALHO, R. E. Educação inclusiva: com os pingos nos “is”. 3.ed. Porto alegre: Mediação, 2007. CARVALHO, R. E. Removendo barreiras para a aprendizagem. Educação inclusiva. 3 ed. Porto Alegre: Mediação, 2003. CARDOSO, Simone De La Roque. Crianças com crianças: o olhar infantil sobre a inclusão na educação física escolar. Dissertação de Mestrado. Pará, 2004. Cardoso, V., D., & Bastilha, R. R. (2010). Inclusão de alunos com necessidades especiais na escola: reflexões acerca da Educação Física Adaptada. EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, 15(146). http://www.efdeportes.com/efd146/inclusao-de-alunos-com-necessidades-especiais.htm CELESTINO, P. P.; OLIVEIRA, J. B de. Capacitação do professor para inclusão do deficiente físico na aula de Educação Física escolar. Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão, Presidente Prudente. Revista Colloquium Humanarum, v. 5, n. Especial, 2009, p. 214-218. DIAS, D. A. MARTINS, D. R. O aluno portador de Síndrome de Down nas aulas de educação Física: A importância da formação do professor, para garantir sua participação. 2004. Tucuruí. PA. COSTA, A. M.; SOUZA, S. B. Educação física e esporte adaptado: história, avanços e retrocessos em relação aos princípios da integração/inclusão e perspectivas para o século XX. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 25, n. 3, p. 27-42, 2004. GÓES, M. C. R. Desafios da inclusão de alunos especiais: a escolarização do aprendiz e sua constituição como pessoa. In: GÓES, M. C. R.; LAPLANE, A. L. F. Políticas e Práticas de Educação Inclusiva. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. p. 69-91. GORGATTI, T. Ferramenta para a felicidade e bem-estar. Educação & Família - deficiências: a diversidade faz parte da vida! Prêmio Professores do Brasil: Educação Infantil São Paulo, v.1, p.40-41, 2003. GUIJARRO, M. R. B. Inclusão: Um desafio para os Sistemas Educacionais. In: Brasil, Ministério da Educação, Secretaria da Educação Especial. Brasília, 2005. p.7-8. KASSAR, M.C.M. Matrículas de crianças com necessidades educacionais especiais na rede de ensino regular. Do que e de quem se fala? In: GÓES, M.C.R.; LAPLANE, A.L.F. Políticas e práticas de educação inclusiva. Campinas: Autores Associados, 2004. p. 49-68. KAWASHITA. I.M.S, DIAS. T.R.S. Deficiência Intelectual e Educação Física Escolar. Intellectual Disability and Physical Educational School, 2015. KRUG, H. N. A Inclusão de Pessoas Portadoras de Necessidades Educativas Especiais na Educação Física Escolar. Revista Centro de Educação: Cadernos, n. 19, p. 01-07, 2002. MARQUES, A. C. O perfil do estilo de vida de pessoas com Síndrome de Down e normas para avaliação da aptidão física. 2008. 162 f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) - Escola de Educação Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. MANTOAN, M. T. E. Inclusão Escolar: O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Moderna, 2005.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 20 de 145

MAZZOTA, M. J. S. Educação Especial no Brasil: história e políticas públicas. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2001. MIRANDA, C. R. S. A Educação inclusiva e a escola: saberes construídos. 2012. 113f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2010. MUNSTER, M. A. V.; ALMEIDA, J. J. G. de. Um olhar sobre a inclusão de pessoas com deficiência em programas de atividade motora: do espelho ao caleidoscópio. In: RODRIGUES, D. (Org.). Atividade motora adaptada: a alegria do corpo. São Paulo: Artes Médicas, 2006. p. 81- 91. NEIRA, M. G. A Educação Física em contextos multiculturais: Concepção docente acerca da própria prática pedagógica. Currículos sem fronteira, v. 8, n.2, p. 39-54, 2009. PARANÁ. SEED/SUED. Instrução 16/2011. Critérios para o atendimento educacional especializado em Sala de Recursos Multifuncional - Tipo I, na Educação Básica. Curitiba, 2011. PRIETO, R. G. Atendimento escolar de alunos com necessidades educacionais especiais: um olhar sobre as políticas públicas de educação no Brasil. In: ARANTES, V. A. (Org.). Inclusão escolar: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus, 2006. p. 31-73. ROSA, R. S. A Inclusão Escolar de Alunos com Necessidades Educativas Especiais em Escola de Ensino Regular. 2008. SELAU, B. Inclusão na sala de aula. 1°ed. Porto alegre: Evangraf, 2007. SCHIRMER, C. R. Deficiência Física. Atendimento Educacional Especializado. São Paulo:MEC/SEESP, 2007, p. 130. SILVEIRA, K. A. et al. Concepções de professores sobre inclusão escolar e interações em ambiente inclusivo: uma revisão da literatura. Revista Brasileira de Educação Especial, v. 18, n. 4, 2012. SOUZA C. J, A Disciplina de Educação Física Adaptada: Uma abordagem interdisciplinar. Artigo 2014. VITTA, F. C. F. A inclusão da criança com necessidades especiais na visão de berçaristas. Cadernos de Pesquisa, v. 40, n. 139, p. 75-93, 2010. ZANELLA, L. Aprendizagem: uma introdução. In: LA ROSA, Jorge de. Psicologia e Educação. O significado do aprender. 7ª ed. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001. ZARDO, S. P. Direito à Educação: a Inclusão de Alunos com Deficiência no Ensino Médio e a Organização dos Sistemas de Ensino. Tese de Doutorado. Brasília: Universidade de Brasília, 2012. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 21 de 145

A HISTÓRIA DOS AFRICANOS E DOS AFRO-BRASILEIROS NO CURRÍCULO DE HISTÓRIA DO 8º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL II DA REDE OFICIAL DO

ESTADO DE SÃO PAULO

Juliana de Almeida Martins Goiz 6 Resumo A Lei 10.639/03 e os demais dispositivos legais vinculados, torna obrigatória a Educação para as Relações Étnico-Raciais e o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos oficiais das redes de ensino públicas e privadas. Assim, após quatorze anos de regulamentação, foi consolidada uma representação desejável da História da África e dos Afro-brasileiros no currículo de História do 8º ano do Ensino Fundamental II na Rede Oficial do Estado de São Paulo? Este estudo se propôs a analisar o desenvolvimento da proposição legal no âmbito educacional delimitado. Para isso, adotamos como metodologia a pesquisa qualitativa, concentrada na análise documental das legislações que abordam a História da África, dos Afro-Brasileiros e a educação para a diversidade no currículo de História do Ensino Fundamental II e nos ‘Cadernos do Aluno’, material paradidático amplamente adotado na educação básica da rede estudada. As análises preliminares revelaram que o currículo estudado não adotou as determinações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e não propicia um debate consistente sobre diversidade, preconceito e racismo. Consideramos que é necessário reavaliar os conteúdos programáticos contidos no Currículo e nos materiais paradidáticos com o propósito de (re)significar a História da África e dos afro-brasileiros. Palavras-chave: Currículo; Estado de São Paulo; História; Lei 10.639/03; História da África; História Afro-brasileira; Racismo. Abstract Law 10.639 / 03 and other related legal provisions obligate Education for Ethnic-Racial Relations and the teaching of Afro-Brazilian and African History and Culture in the official curricula of public and private education networks. Thus, after fourteen years of regulation, was a desirable representation of the History of Africa and Afro-Brazilians consolidated in the History curriculum of the 8th year of Elementary School II in the Official Network of the State of São Paulo? This study aimed to analyze the development of the legal proposal in the delimited educational scope. For this, we adopted as qualitative research methodology, focused on documentary analysis of the laws that address the History of Africa, Afro-Brazilians and education for diversity in the curriculum of History of Elementary Education II and in the 'Student's Notebooks', material Paradigm widely adopted in the basic education of the studied network. Preliminary analyzes revealed that the curriculum studied did not adopt the determinations of the National Curricular Guidelines for the Education of Ethnic-Racial Relations and for the Teaching of Afro-Brazilian and African History and Culture and did not provide a consistent debate on diversity, prejudice and racism. We believe that it is necessary to re-evaluate the syllabus contents contained in the Curriculum and in the para-cultural materials in order to (re) signify the History of Africa and Afro-Brazilians. Keywords: Curriculum; State of São Paulo; History; Law 10.639 / 03; History of Africa; Afro-Brazilian History; Racism.

6 Professora de História e Ensino Fundamental I na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Discente no Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 22 de 145

Considerações iniciais

O contexto histórico brasileiro nos demonstra que à população afrodescendente, foi destinada as margens da sociedade. Quanto a isso, foi construído um amplo processo de luta, resistência e disputa de espaços, inclusive no âmbito educacional. A Lei 10.639/03 incluiu no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, dentre os demais dispositivos legais associados que tratam da educação para as relações étnico-raciais e ensino de História e cultura africana e afro-brasileira.

O currículo de História do Estado de São Paulo foi implementado a partir do ano de 2008, com isso, após quatorze anos de regulamentação da lei 10.639/03, foi consolidada uma representação desejável da História da África e dos Afro-brasileiros no currículo de História do 8º ano do Ensino Fundamental II na Rede Oficial do Estado de São Paulo? Este estudo se propôs a realizar a análise do desenvolvimento da proposição legal no âmbito educacional delimitado.

Como metodologia, adotamos a pesquisa qualitativa, concentrada na análise documental das legislações que abordam a História da África, dos Afro-Brasileiros e a educação para a diversidade no currículo de História do Ensino Fundamental II e nos ‘Cadernos do Aluno’, material paradidático amplamente adotado na Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo.

O arcabouço teórico assumido foram os estudos culturais, pós-modernos e pós-coloniais. Consideramos que esta pesquisa possa contribuir com as discussões a respeito do quanto a lei 10.639/03 tem efetivamente atingido o que foi proposto e os obstáculos no que se refere aos privilégios representativos étnico-raciais nos espaços educacionais.

Em nosso primeiro item, discutiremos sobre a Lei 10.639/03 e a possibilidade da construção de uma educação para as relações étnico-raciais de caráter antirracista. Em nosso segundo item exporemos algumas reflexões sobre os estudos culturais curriculares e suas contribuições na idealização de um currículo descolonizado. Por fim, exporemos o currículo de História da rede oficial de ensino do Estado de São Paulo e realizaremos uma análise da abordagem da história dos africanos e dos afrodescendentes, concentrada no 8º ano do Ensino Fundamental II.

Construir uma educação descolonizada e democrática diz respeito ao projeto de nação que se almeja construir. Legislações por si só não são suficientes para alterar valores implementados em uma sociedade com fortes heranças do racialismo. Inclusive, podem ser utilizadas para reforçar o discurso de democracia racial, amplamente combatido pelo Movimento Negro e suas entidades associadas. LEI 10.639/03: a possibilidade de uma educação antirracista

Em 2003, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, regulamentou a Lei 10639/03, que alterou a Lei no 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, através da incorporação do artigo 26-A e 79-B, que regulamentou a inclusão do dia 20 de novembro no calendário escolar, como Dia Nacional da Consciência Negra:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 23 de 145

sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’ (BRASIL, 2003:1).

A regulamentação deste dispositivo legal configurou um progresso na ressignificação da

educação brasileira, sobretudo se refletirmos acerca do preconceito institucionalizado nos estabelecimentos de ensino, que tem contribuído com o insucesso escolar de pessoas negras (ROSENBERG & PINTO, 1987:27). A amplitude da legislação supera as demandas educacionais, simboliza um dos maiores avanços na extensa luta contra o racismo. Caracteriza a permanência da resistência perante o preconceito e a inclusão de novas propostas pautadas no acesso a uma educação descolonizada e efetivamente democrática que possa contribuir com o desenvolvimento de uma sociedade justa, multicultural e com condições para superar o preconceito racial.

Ao abordarmos os artigos 26-A e 79-B da Lei 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da

Educação (LDB), nos referimos à política educacional e ao projeto de nação que almejamos construir. Seguindo esta conjuntura ampla de ressignificação das relações sociais na luta contra o racismo é que os artigos 26-A e 79-B se deparam com seus critérios morais, legítimos, conceituais, didáticos e coletivos. É a invisibilização das populações afro-brasileiras, o preconceito racial e suas implicações ferozes que justifica a inclusão destes artigos na LDB.

Analisar estes dispositivos em disjunção do panorama social, político e educacional é

inadequado e essencialista. É imprescindível discorrer sobre a relação direta entre o preconceito racial e a criação dos artigos 26-A e 79-B para que seu conteúdo não se torne inócuo. É necessário compreender o racismo institucional e suas dinâmicas de produção e reprodução, antes mesmo de abordar a essência destes dispositivos legais.

O racismo é um fato social integrado à história do Brasil, atua como propulsor na

delimitação de características orgânicas inerentes a esta nação. Desde a escravização dos africanos em solo brasileiro até a contemporaneidade, aos negros têm sido destinadas diversas formas de agressão, sejam elas físicas, sociais, psicológicas, financeiras, dentre outras. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)7 e o Mapa da Violência 2015, 66% das famílias que residem nas periferias brasileiras são negras, 75% da população carcerária é constituída por negros entre 18 e 34 anos, os jovens negros têm 165% a mais de probabilidade de morrer de forma violenta em comparação com os jovens não negros e as famílias negras, tem renda 75% inferior às famílias brancas. Assim,

[...]podemos dizer que a estrutura do capitalismo no Brasil está montada em cima da exploração do negro. Portanto, ela não é uma estrutura social. Ela é uma estrutura étnica. Ou ainda: é uma estrutura social de base étnica. (BARBOSA, 2009: 71-72).

Apesar de concreto e contínuo, o racismo não é uma ocorrência natural ou uma estrutura

viva. Seus diversos meios de produção e representação o mantém atuante na sociedade brasileira por mais de quatro séculos. Segundo Schwarcz, “(...) ninguém nega que exista racismo no Brasil, mas sua prática é sempre atribuída a outro” (1993:181), ou seja, ninguém se reconhece enquanto racista, apesar de concordar que esta estrutura faça parte da sociedade. Neste sentido, surgem algumas compreensões equivocadas, a exemplo de que as vítimas do preconceito são as responsáveis pela existência e permanência do racismo.

7 Disponível em: http://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores.html. Acesso em 01 jun. 2016.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 24 de 145

Conforme nos aponta Munanga “ (...) o racismo brasileiro omite o criminoso, é um crime

perfeito” (2005, p.27). Um crime contínuo e naturalizado em uma sociedade que ainda resiste em sustentar o mito de democracia racial. Evidências incontestáveis desta prática ideológica são os dados apresentados por uma pesquisa realizada pelo DataFolha, em 25 de junho de 1995, intitulada de ‘Racismo Cordial’, os dados levantados demonstraram que 87% dos entrevistados não negros manifestavam algum preconceito contra negros, entretanto, somente 10% dos entrevistados admitiam racismo em suas atitudes. No ano de 2003, oito anos após a pesquisa realizada pela Data Folha, a Fundação Perseu Abramo reproduziu a pesquisa, os resultados foram que novamente, “87% dos brasileiros reconheceram a existência do racismo no Brasil, todavia, apenas 4% dos entrevistados admitiram ser racistas”, conforme relatado por (SANTOS & SILVA, 2005, p. 9). Com base nestes dados, compreendemos que o brasileiro admite a existência do racismo, contudo, não identifica porque não sabe ou porque não quer, suas razões, origens e estruturas.

É neste contexto, em meio a hipocrisia social e a inabilidade em identificar a dinâmica do

preconceito, que o racismo se fortalece, se produz e reproduz. Por este motivo é indispensável combatê-lo. Se uma das principais peculiaridades de uma sociedade racista é sua inabilidade em se declarar como tal, é inútil almejar que esta mesma sociedade organize voluntariamente ações de luta contra o racismo. Isto posto, os princípios dos Direitos Humanos são suficientes para impulsionar condutas oficiais do Estado para o enfrentamento do racismo.

Ações de combate não devem ser apenas projetos burocráticos, mas sim metas a serem

cumpridas. O entendimento de que o racismo e o preconceito racial devem ser superados não pode ser um preceito apenas, mas sim um propósito, visto que nada mais indicativo de uma sociedade racista que a resistência em se construir políticas públicas de combate ao preconceito. Neste sentido que se justifica a relevância da educação antirracista como instrumento denúncia e combate ao racismo. Estudos curriculares: a urgência da descolonização dos currículos

A área de estudos curriculares se estabeleceu no Brasil a partir dos anos sessenta, sobretudo na década de setenta, quando iniciaram a tradução das obras de autores estrangeiros que já estudavam e escreviam sobre a temática. A esta altura, as discussões eram amplamente pautadas na releitura da concepção de currículo. Muitos estudiosos se dedicaram na estruturação de uma área de estudo curricular mais ampla e diversificada, refletindo sobre os estudos que já haviam sido realizados na área: Os pesquisadores começaram a reavaliar a formulação das teorias críticas do currículo e perceberam a necessidade de adaptá-las ao contexto histórico-social da época. Esta reformulação foi denominada de ‘reconceptualização’. Inúmeros estudiosos da temática agregaram esforços para exceder as prerrogativas do senso comum, que afirmavam ser o currículo ideologicamente neutro, atuando tão somente como um documento normativo institucional e a escola apenas uma difusora de conhecimentos. Conforme Silva (1995), a partir destas novas concepções, introduziu-se o conceito de que o conhecimento é produzido em ambiente escolar com base na dialética e convívio entre docentes e discentes.

O novo conceito de currículo, saber e educação, foi estruturado em inúmeras teorias, o

que proporciona sua ampla diversidade conceitual e seu embasamento científico. Segundo Candau & Moreira, são empregadas, ao menos, cinco concepções de currículo que apontam seu caráter diverso, são elas:

I. os conteúdos a serem ensinados e aprendidos; II. as experiências de aprendizagem escolares a serem vividas pelos alunos; III. os planos pedagógicos elaborados por professores, escolas e sistemas educacionais;

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 25 de 145

IV. os objetivos a serem alcançados por meio do processo de ensino; V. os processos de avaliação que terminam por influir nos conteúdos e nos procedimentos selecionados nos diferentes graus da escolarização (2007, p. 17).

As novas concepções de currículo apresentam a diversidade da temática, neste sentido,

percebemos que a definição e currículo é mais complexa do que se aparenta a princípio. Todas essas definições são sustentadas por uma ampla literatura, carregada de valores ideológicos e convicções políticas, por isso compactuamos com a afirmação de Candau & Moreira, sob a qual, “todas as investigações sobre currículo devem ter em vista as múltiplas perspectivas de abordagem e delimitar uma diretriz condutiva”. (2007, p.19).

Entretanto, a reflexão não se refere meramente a determinação de uma concepção

científica para o currículo. Macedo (2006, p.100), realizou um estudo em teses e dissertações brasileiras, e concluiu que existe uma distinção fundamental entre ‘currículo formal’, aquele normatizado nos documentos institucionais escolares e o ‘currículo vivido’, que segundo Perrenoud (1995, p.51), “seria a maneira como o currículo formal se concretiza no dia-dia, tendo em vista as experiências trazidas pelos discentes, o contexto social no qual está inserido e suas interpretações de mundo”. De acordo com a pesquisadora, “a dicotomia entre currículo formal e currículo vivido, tem consequências políticas significativas” (2006, p.100). A autora (2006), argumenta que a concepção de currículo abordada nas teses e dissertações analisadas era dicotômico.

Usualmente as pesquisas que priorizam o currículo formal, costumam delatar a atuação

repressora do Estado, destacando o empenho de sujeitar a educação às conveniências políticas, governamentais e econômicas. Com isso, subjugam a criatividade e a determinação dos protagonistas envolvidos no processo educativo, considerando que a escola e o saber podem ser domados, submetidos e contidos. Em contrapartida, pesquisadores que partem da perspectiva do currículo como experiência, costumam desagregar a escola de um contexto social mais extenso, simplificam a educação formal, descartando o fato incontestável de que a educação e a escola são procedimentos políticos. Paradoxalmente, as duas abordagens parecem ser complementares, mas representam uma separação na concepção de currículo que tem prejudicado o aperfeiçoamento de abordagens habilitadas a entender o currículo de forma ampla. (MACEDO, 2006).

Na perspectiva do estudo realizado, abordamos o currículo em sua concepção formal e

legal. No entanto, compreendemos que a educação não se limita apenas a procedimentos formais, sobretudo no tratamento da educação para as relações étnico-raciais e ações educacionais de combate ao racismo, uma vez que a história das ações pedagógicas de combate ao racismo em geral partiram de simpatizantes da temática de forma independente e educadores que acreditam que a educação é uma ferramenta essencial na luta de combate à discriminação, intolerância e racismo isto é, não será somente o currículo na qualidade de legislação que assegurará o desenvolvimento de uma educação para as relações étnico-raciais e de combate ao racismo, mas sim o currículo vivido como experiência pessoal e coletiva. No entanto, optar por abordar a dimensão formal do currículo neste estudo, representa ratificar a confiança nas instituições democráticas, na educação escolar pública de qualidade, laica e diversa, como promissora ferramenta na construção de uma sociedade igualitária e disposta a realizar enfrentamentos contra o racismo. E também representa o reconhecimento de que a alienação institucional é algo negativo, principalmente para aqueles que são silenciados e invisibilizados no processo educacional.

Buscamos problematizar neste estudo a aplicação das Diretrizes Curriculares Nacionais

para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nos currículo de História do 8º ano do Ensino Fundamental II da rede pública oficial de ensino no Estado de São Paulo. Sobretudo, em um contexto no qual os governos se utilizam destes documentos normativos para adequar o trabalho de docentes e o conhecimento

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 26 de 145

dos alunos aos padrões de avaliações externas. Burocraticamente, o currículo comum seria organizado de acordo com os parâmetros avaliativos do PISA8.

Buscar a inserção de temáticas relativas à diversidade nos currículos educacionais é sinônimo de lutar pela construção de uma sociedade mais justa, pautada em valores de diversidade e cidadania plena, independente de raça, classe, gênero e etnia. Atingir metas de avaliações externas não é garantia de uma educação inclusiva, a formação escolar está além de estatísticas mercadológicas e os currículos não deveriam ser meros instrumentos meritocráticos. O currículo de História do Estado de São Paulo e suas representações

O Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria Estadual de Educação (SEE)

propôs no ano de 2008, cinco anos após a promulgação da Lei 10.639/03, um currículo educacional para ser para ser implementado na rede estadual de ensino nos níveis de Ensino Fundamental e Ensino Médio como componente do projeto ‘São Paulo faz escola’. De acordo com o documento que formaliza a base comum curricular estadual, a SEE/SP buscou apoiar o trabalho já realizado na rede municipal e colaborar com a qualidade das aprendizagens destinadas aos discentes (SÃO PAULO, 2008).

Além do currículo formal, foram elaborados outros materiais paradidáticos que tinham

como objetivo subsidiar a efetiva implementação dos conteúdos propostos na base curricular estadual comum, são eles: Caderno do Aluno, Caderno do Professor e Caderno do Gestor. O Caderno do Aluno é uma espécie de apostila, organizada com conteúdo bimestral nos quais continham situações de aprendizagem que orientavam o trabalho do professor de acordo com os dispositivos do currículo oficial. No caderno do professor, poderiam ser encontradas maiores especificações sobre como aplicar os conteúdos contidos no Caderno do Aluno, além das respostas das atividades propostas e sugestões de conteúdos complementares. O Caderno do gestor era constituído por direcionamentos que os habilitassem a orientar os docentes sobre a forma mais adequada de se aplicar os conteúdos contidos no currículo educacional e nos materiais paradidáticos supracitados.

A proposta inicial dos documentos era de que estes contribuíssem com o processo de

ensino e aprendizagem dos discentes através do desenvolvimento de competências e habilidades adequadas para cada ciclo de aprendizagem, definindo à escola como um espaço de construção cultural destinada a todas as pessoas. Com base nestas informações, buscamos analisar a representação do negro no currículo de História e no Caderno do Aluno do 8º ano do Ensino Fundamental II, de acordo com as orientações contidas na Lei 10.639/03 e nos demais dispositivos legais associados. Tendo como pressuposto que as representações contidas em currículos educacionais dizem respeito ao projeto de sociedade que os Governos pretendem contribuir com a construção, ou seja, democráticas ou representativas apenas para limitados setores sociais. Considerando estas possibilidades, seguiremos com as análises argumentativas que podem auxiliar no encontro de respostas a estas perguntas. Reiteramos que em razão do espaço limitado, exporemos apenas os conteúdos contidos acerca da História dos Afro-brasileiros abordados no 8º ano do ensino fundamental.

8 PISA é o Programme for International Student Assessment (Pisa) - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes - é uma iniciativa de avaliação comparada, aplicada a estudantes na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países. O programa é desenvolvido e coordenado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No Brasil, o Pisa é coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 27 de 145

Na antiga 7ª série, atual 8º ano do Ensino Fundamental, o Currículo do História do Estado de São Paulo (2008) indica conteúdos para trabalhar a história dos afro-brasileiros no 4º bimestre. Os conteúdos destinados ao 4º bimestre muitas vezes não são alcançados em virtude do tempo restrito e da necessidade de se permanecer por um maior número de aulas em determinadas situações de aprendizagem tendo em vista o respeito ao tempo de construção do conhecimento por parte dos discentes, dentre outras questões.

A primeira situação de aprendizagem dedicada ao tema é denominada de ‘Revolta dos

Malês’. Primeiramente, a atividade solicita que os alunos anotem exemplos de situações de resistência dos escravos ocorridas no Brasil desde o Período Colonial. O espaço dedicado aos resultados desta pesquisa é composto por 7 linhas. Reiteramos que, até então, o Currículo de História do Estado de São Paulo (2008) dedicou apenas uma situação de aprendizagem a respeito dos afro-brasileiros e africanos no Brasil, foi no Caderno do Aluno do 7º ano do Ensino Fundamental, tratando dos movimentos de resistência dos escravizados, abordando de forma superficial o Quilombo de Palmares. Com base nestas informações, consideramos que os alunos não têm conhecimentos suficientes acerca de situações de resistência dos negros escravizados. A situação de aprendizagem segue com um texto de apresentação sobre os a Revolta dos Malês:

Um grupo de africanos escravos e libertos ocupou as ruas de Salvador no dia 25 de janeiro de 1835, liderado por seguidores do islamismo, chamados malês. Eles se rebelaram contra a escravidão, a proibição das práticas religiosas dos muçulmanos e a imposição do catolicismo. Houve lutas dos revoltosos com a polícia e a Guarda Nacional, apoiadas pela elite baiana, que temia uma resistência generalizada dos escravos. Nesses confrontos, morreram 70 negros e 7 integrantes das tropas oficiais, que conseguiram deter o movimento. Entre os sobreviventes, 200 negros foram processados e receberam penas diversas: 22 foram presos e condenados a trabalhos forçados, 44 condenados a açoite e 4 receberam a pena de morte e foram executados. Além disso, centenas de negros africanos foram expulsos do Brasil e retornaram à África. Elaborado por Mônica Lungov Bugelli especialmente para o São Paulo faz escola (SÃO PAULO, 2014, p. 6).

A publicação é composta por 13 linhas e aborda de forma superficial a Revolta dos Malês,

acentuando repressão sofrida pelos negros e as punições em detrimento da organização da luta. O texto indicado é técnico e insuficiente para explicar a grandiosidade do evento: a organização dos Malês, suas táticas de luta, ideais religiosos que influenciavam sua resistência à escravidão, a forma como a elite da época se surpreendeu com a organização dos Malês, a propagação do Islamismo, as reuniões sigilosas, o grau de instrução dos Malês, dentre outras informações que se fariam indispensáveis para uma abordagem efetiva. Segundo Reis

Esses africanos muçulmanos que sabiam ler e escrever – numa terra onde até os mais ricos eram analfabetos – estavam, de fato, promovendo um movimento de conversão ao islamismo na Bahia. Nesse processo, o aprendizado do árabe era parte fundamental. Reunidos em suas casas, em quartos alugados, no local de trabalho ou onde mais fosse possível, os malês ensinavam uns aos outros a ler e escrever, pregando a crença em Alá. Quem não foi descoberto ou conseguiu sobreviver à repressão após o levante, tratou de disfarçar ao máximo a sua fé no Alcorão e, principalmente, de afastar os seus descendentes desse perigoso estigma. Mas ainda hoje existem algumas pistas, através dos relatos orais, que permitem entrever detalhes não descobertos pela polícia e algumas heranças deixadas pelos malês. O principal legado parece ser justamente a importância creditada à instrução, que levou muitos dos descendentes dos malês baianos à ascensão social, realizando assim o sonho dos seus antepassados de superação da opressão, mesmo que, agora, não mais guiados pelo profeta Maomé (2003, p. 56).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 28 de 145

Posteriormente, o Currículo do Estado de São Paulo (2008), elabora um questionário no qual há apenas uma pergunta de múltipla escolha sobre a Revolta dos Malês, na qual se questionava sobre onde ocorreu o evento e quem o compôs. A situação de aprendizagem também traz uma pintura de Debret que retrata um Malê: Imagem 1: Negro muçulmano vendedor de palmito, gravura de 1835, de Jean-Baptiste Debret

Fonte: (SÃO PAULO, 2014, p. 6)

Para finalizar a situação de aprendizagem, o Caderno do Aluno (2014), indica duas bibliografias complementares, são elas: O período das regências, de Marco Morel, é realizado um panorama histórico, político e social sobre o período regencial. As rebeliões regenciais, de Roberson Oliveira, na obra são apresentadas lutas políticas ocorridas no período regencial, nas quais os escravizados participaram ativamente. Nenhum dos pesquisadores é negro.

Para a constituição da habilidade de reconhecer a importância do uso de obras de arte para

a construção do conhecimento histórico, especialmente para períodos anteriores à invenção da fotografia, o Caderno do Aluno de História Vol.1 da 7ª série / 8º ano do Ensino Fundamental (2014), trouxe uma situação de aprendizagem denominada de ‘O Brasil urbano de Debret’. No decorrer do conteúdo, o artista é apresentado, assim como a Missão Artística Francesa9, encarregada de realizar a criação da Academia de Belas Artes. Joahnn Moritz Rugendas (1802-1858) também fez parte da expedição. Estes artistas tinham como público a burguesia europeia, sequiosa por informações da ‘pitoresca e exótica’ América, além, é claro, do governo do Brasil, que os contratou e hospedou.

Nesta situação de aprendizagem, o discente analisaria imagens produzidas por Jean-

Baptiste Debret (1768-1848), que fazem parte de sua obra ‘Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834-1839)’, composta por um conjunto de documentos visuais produzidos no advento da vinda da Missão Artística Francesa para o Brasil, em 1816, patrocinada pelo então Príncipe Regente Dom João VI (1767-1826). As obras de Debret e Rugendas são relevantes para a história do Brasil. Villaça (apud RUGENDAS, 1991, p. 20) afirma que “Socialmente o Brasil está neles, em Debret e em Rugendas, o Brasil do I Reinado, o Brasil nascente, o povo, a rua, os hábitos, a vida na sua concretude, na sua cotidianidade, no seu realismo áspero”. As obras de ambos artistas são

9 Em 1816 chega ao Rio de Janeiro um grupo de artistas franceses com a missão de ensinar artes plásticas na cidade que era, então, a capital do Reino unido de Portugal e Algarves. O grupo ficou conhecido como Missão artística francesa. O convite para a vinda do grupo teria partido de Antonio Araújo Azevedo, Conde da Barca, ministro das relações exteriores e da guerra de D. João. A missão tinha o objetivo de estabelecer o ensino oficial das artes plásticas no Brasil, e acabou influenciando o cenário artístico brasileiro, além de estabelecer um ensino acadêmico inexistente até então. A missão foi organizada por Joaquim Lebreton e composta por um grupo de artistas plásticos. Esse grupo organizou, em agosto de 1816, a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, transformada, em 1826, na Imperial Academia e Escola de Belas-Artes.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 29 de 145

constantemente utilizadas em materiais didáticos para retratar o contexto histórico da época. Foram utilizadas no Caderno do Aluno (2014) as seguintes ilustrações de Debret: Imagem 2: Empregado do Governo saindo a passeio, gravura de 1820/1830, de Jean-Baptiste Debret

Fonte: (SÃO PAULO, 2014, p. 58). Imagem 3: Uma senhora de algumas posses em sua casa, gravura de 1823, de Jean-Baptiste Debret

Fonte: (SÃO PAULO, 2014, p. 58)

Imagem 4: Um jantar brasileiro, gravura de 1827, de Jean-Baptiste Debret

Fonte: (SÃO PAULO, 2014, p. 59)

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 30 de 145

Imagem 5: Volta à cidade de um proprietário de chácara, Jean-Baptiste Debret

Fonte: (SÃO PAULO, 2014, p. 59)

O Currículo de História do Estado de São Paulo (2008) e o Cadernos do Aluno (2014) ao expor somente a perspectiva do ‘outro’, continuamente por meio de um aspecto humilhante e desumano, reforçado pelas imagens selecionadas, promove inúmeras consequências em sujeitos negros. Dentre as imagens designadas de Debret, por exemplo, relatam o trabalho escravo e ainda que não tenham sido publicadas imagens de negros sofrendo castigo, consideramos que o trabalho escravo, seja ele residencial ou urbano, também ocasionava sofrimento. Idealizar de forma positiva os escravizados que viviam nestas situações, por estarem vestidos e vivendo próximos aos ‘senhores’ é negar a violência da escravidão e assumir o discurso de democracia racial.

No que se refere às representações imagéticas veiculadas em materiais didáticos e

paradidáticos, Bittencourt (2008) aponta que imagens como pinturas, esculturas, fotografias e ilustrações de pessoas, exigem dos discentes a construção de competências e habilidades, tais como analisar e caracterizar. As imagens podem construir ideias, avaliações, informações, concepções, podendo gerar aceitações e rejeições. Oferecer aos discentes imagens significativas é proporcionar uma interlocução não-verbal positiva. Na construção de cada imagem, há um propósito por parte de seu autor, já para seu posterior emprego, há outro fundamento (COSTA, 2006). Ter potencial para explorar estas imagens, imbuídas de interpretações pessoais, educacionais e ideológicas, auxilia-nos a compreender determinações sociais, a educação, a sociabilização, ou seja, a entender as circunstâncias históricas e o propósito com que elas foram produzidas e reinterpretadas por toda a extensão do processo sócio histórico, sobretudo numa obra pedagógica. A compreensão das imagens assegura ao destinatário um significado, uma definição particular em conformidade com suas experiências, cultura, classe social, conforme nos aponta Meneses:

A visão e seus efeitos são sempre inseparáveis das possibilidades de um sujeito que observa, que é tanto um produto histórico como o lugar de certas práticas, técnicas, instituições e procedimentos de subjetivação (2005, p. 5).

As imagens devem ser estudadas não somente como documentos, mas também como

elementos do cenário social, na sua complexidade e diversidade, por isso, devem ser sempre historicamente contextualizadas (MENESES, 2005). Ao analisarmos uma imagem, devemos perceber suas hipóteses de inclusão e exclusão, identificar os personagens que ela torna acessível, compreender as formas como eles são difundidos e decifrar as alteridades e classificações que ela naturaliza.

De acordo com Lajolo (1996) os livros didáticos e demais materiais paradidáticos, em suas

formas tradicionais, devem evidenciar todos os componentes que beneficiem o processo de ensino e aprendizagem. Neste sentido, seus escritos informativos, suas imagens, gráficos, tabelas, devem aprimorar o sentido dos temas que essas imagens explicitam. Os parâmetros avaliativos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) inferem que,

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 31 de 145

As imagens, que devem ser de fácil compreensão, constituem valioso instrumento para levar o aluno a problematizar os conceitos históricos, ao intrigá-lo, convidá-lo a pensar, ao despertar nele a curiosidade. É necessário que as legendas estejam adequadas às finalidades para as quais foram elaboradas, contextualizando, adequadamente, a imagem com sua autoria e época de produção. É necessário que façam parte dos objetivos do texto, constituindo-se não apenas em ilustrações, mas em recursos intrínsecos à compreensão dos conteúdos históricos, além de proporcionar o uso de diferentes linguagens visuais (BRASIL, 2016, p.14).

Materiais didáticos com imagens, tem como principal propósito o estabelecimento de

diálogo. A linguagem visual difunde informações como comunicados específicos ou emoções persuasivas (OLIM e MENEZES, 2007). Nos Cadernos do Aluno de História, a contribuição determinante das imagens é a possibilidade de estimular um recurso discursivo por meio do estímulo visual. Contanto que seja associada à legenda que ou se relacione com um texto de origem, as imagens colaboram para a compreensão do texto e o desenvolvimento de concepções, conforme prescreveu o PNLD (2016).

A imagem é um texto, tem um discurso, não é somente um desenho, por isso deve ser

levada em consideração a sua relevância. Ainda que publicações escritas em materiais didáticos sejam reformuladas para impossibilitar a propagação de estereótipos e preconceitos, a imagem também deve ser submetida à critérios avaliativos. A análise de materiais didáticos e paradidáticos deve se concentrar no que se pretende aprender/ensinar, de fato, mas também dos lugares que se determinam para sujeitos com os quais dialogam. As imagens não podem ser vistas apenas como figuras ou ilustrações desprovidas de conteúdo ideológico (MACEDO, 2004).

Com base nas análises realizadas nos materiais didáticos e currículo de História do Estado

de São Paulo, consideramos que não houve compromisso em se construir as determinações contidas na Lei 10.630/03 e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Poucas foram as abordagens sugeridas e as imagens veiculadas não contribuíam com a construção de uma conduta reflexiva. O Currículo e os Cadernos do Aluno não representam a história da África e dos Afro-brasileiros na construção da sociedade brasileira e com isso, não é suficiente para auxiliar na construção de reflexões e debates sobre racismo e preconceito. Considerações finais

A partir do estudo realizado, consideramos que o Currículo de História do Estado de São Paulo em associação com o Caderno do Aluno deste mesmo componente curricular no 8º ano do Ensino Fundamental, ainda que aborde temáticas relativas a história dos africanos e afro-brasileiros, o faz de forma superficial. A história da África não foi trabalhada e não houveram discussões sobre a construção de uma educação para as relações étnico-raciais de caráter antirracista, contribuindo assim com as potencialidades do discurso de democracia racial.

O africano e afrodescendente foi amplamente apresentado como mão-de-obra escravizada

apenas, tendo sido, sua história anterior a este processo, silenciada. As contribuições destas populações na construção da sociedade e cultura brasileira também foram invizibilizadas. Com isso, compreendemos que o material estudado, apresentou uma história estereotipada e distanciada do que realmente é a história dos africanos e afrodescendentes no Brasil.

A negação no tratamento de uma outra história das populações negras contribui com o

discurso de uma falsa igualdade e nega a existência do racismo, associando-o à invenção de suas vítimas. É fundamental que os discentes tenham contato com diversos documentos de diferentes épocas, construídos por autores habilitados na área. A utilização de obras literárias específicas, pinturas, imagens, textos jornalísticos, filmes, podem auxiliar na elaboração de um currículo

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 32 de 145

descolonizado e uma educação resignificada. Para que isso ocorra, é necessário se reavaliar o projeto de sociedade que se almeja construir e a importância da educação no seguimento deste caminho. Referências bibliográficas BARBOSA, Wilson Nascimento. A discriminação do negro como fato estruturador do poder. Sankofa: Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, São Paulo, n. 3, p. 71-103, jun. 2009. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Identidades e ensino de História no Brasil. In: Ensino da História e Memória Coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2008. BRASIL. Presidência da República. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. BRASIL. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004. BRASIL. Ministério da Educação. Guia de livros didáticos PNLD 2017. Brasília: MEC, 2016. CANDAU, Vera Maria; MOREIRA, Antônio Flavio. Currículo, conhecimento e cultura. In: BEAUCHAMP, Jeanete; PAGEL, Sandra Denise, NASCIMENTO, Aricélia Ribeiro (org). Indagações sobre currículo: currículo, conhecimento e cultura. Brasília: Ministério da Educação: Secretaria de Educação Básica, 2007. COSTA, Warley. As imagens da escravidão nos livros didáticos de História do ensino fundamental: representações e identidades. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIRIO, 2006. DATA FOLHA. Racismo cordial. São Paulo: Ática. 1995. Disponível em: < http://almanaque.folha.uol.com.br/racismocordial.htm>. Acesso em 12 set. 2016 LAJOLO, Marisa. Livro didático: um (quase) manual de usuário. Em Aberto, Brasília, 1996. Disponível em <http://www.inep.inep.gov.br>. Acesso em 16 jan. 2017. MACEDO, Elizabeth. A imagem da Ciência: folheando um livro didático. Educação e Sociedade. Campinas, vol. 25, n. 86, p. 103-129, abril 2004. _______. Currículo: política, cultura e poder. Revista Currículo Sem Fronteiras. v.6, n.2, pp.98-113, Jul/Dez 2006. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Rumo a uma “História Visual”. In.: MARTINS, José de Souza; ECKERT, Cornélia e NOVAES, Sylvia Caiuby (orgs.). O imaginário e o poético nas Ciências Sociais. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2005. MUNANGA, Kabengele. (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, 2005. OLIM, Bárbara Barros. MENEZES, Hemerson Alves de. Aprendizagem visual: um estudo das funções da imagem como alternativa para novas representações do negro nos livros didáticos, São Paulo: Ática. 2007. PERRENOUD, Pierre. Currículo real e trabalho escolar. In: Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora, 1995 ROSEMBERG, Fúlvia.; PINTO, Regina. Pahim. (Org.). Raça negra e educação. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 63 (número especial), p. 1-67, nov. 1987. SANTOS, Gevanilda Gomes; SILVA, Maria Palmira. (Ed.). Racismo no Brasil: percepções da discriminação e do preconceito racial no século XXI. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005. SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Educação de São Paulo. Currículo do Estado de São Paulo: Ciências Humanas e suas Tecnologias. São Paulo, 2008. SÃO PAULO. Secretaria do Estado da Educação de São Paulo. Caderno do aluno: história, ensino fundamental – 7ª série/8º ano. São Paulo: SEE, 2014. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SILVA, Tomaz Tadeu da. Novos mapas culturais e o lugar do currículo em uma paisagem pós-moderna. Educação, Sociedade e Cultura, [S.l.], n. 03, p. 125-142, 1995. WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência 2014: os jovens do Brasil. Brasília (DF): Secretaria-Geral da Presidência da República, Secretaria Nacional de Juventude, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; 2014. Acesso em 20 ago 2016. Enviado em 30/04/2017 / Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 33 de 145

O PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESQUISA QUALITATIVA E A ANÁLISE DO CONTEÚDO EM ESTUDOS PARA

EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL

Juliana de Almeida Martins Goiz10 Resumo O objetivo deste estudo é apresentar o percurso metodológico adotado na construção inicial de nossa dissertação de Mestrado, intitulada de: “O currículo de História do Estado de São Paulo em face da lei 10.639/03: avanços e retrocessos na primeira década da legislação federal”. Nosso corpus científico é caracterizado pelos dados coletados nas legislações federais, sobretudo na lei 10.639/03 e instrumentos estaduais que tratam da educação para as relações étnico-raciais, em especial o Currículo de História do Estado de São Paulo no 8º ano do Ensino Fundamental. O arcabouço teórico adotado se baseia, principalmente, nos estudos de Aplle (2003, 2006, 2008), Bachelard (1996), Deslauriers e Kérisit (2012), Fonseca (2002) e Minayo (2001 e 2010). A Metodologia adotada foi a Análise Qualitativa, em conjunção com as teorias críticas e pós-críticas do currículo e a Análise do Conteúdo. Palavras-chave: Percurso metodológico; Análise qualitativa; Teoria crítica do currículo; Análise do conteúdo; Educação étnico-racial.

Abstract The aim of this study is to introduce the path methodology adopted in the initial construction of our dissertation, entitled: “The curriculum of the History of the State of São Paulo in the face of the law 10.639/03: advances and setbacks in the first decade of the federal legislation”. Our corpus of science is characterized by the data collected in the laws on federal, especially in the law 10.639/03 and the instruments state that deal with education for ethnic-racial relations, in particular the Curriculum of the History of the State of São Paulo, in the 8th year Keywords: Route methodology; qualitative Analysis; critical Theory of the curriculum; Analysis of content; Education of ethnic-racial. Introdução

A metodologia de pesquisa adotada em um estudo acadêmico é fundamental para a

construção adequada de um trabalho cientificamente relevante. Segundo Fonseca (2002, p. 52), a metodologia é a explicação detalhada de toda ação a desenvolver durante o trabalho de pesquisa, ou seja, o percurso metodológico é parte fundamental da pesquisa científica, pois é através dele que o pesquisador relata os procedimentos adotados que o permitiram obter os resultados apresentados.

Neste estudo, temos como objetivo (I) apresentar o percurso metodológico adotado na

construção inicial de nossa dissertação de Mestrado, intitulada de: “O currículo de História do Estado de São Paulo em face da lei 10.639/03: avanços e retrocessos na primeira década da legislação federal”, (II) justificar as razões que nos levaram a adotar determinadas teorias e metodologias científicas e (III) explicitar os resultados obtidos em nossa pesquisa acadêmica até o presente momento.

Nosso corpus científico é caracterizado pelos dados coletados nas legislações federais e

instrumentos estaduais que tratam da educação para as relações étnico-raciais, são eles: I. Lei

10 Professora de História e Ensino Fundamental I na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Discente no Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 34 de 145

10.639/03 que estabelece o ensino da História da África e da Cultura afro-brasileira nos sistemas de ensino; II. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História da Cultura Afro-Brasileira e Africana; III. Resolução 001/2004 do Conselho Nacional de Educação; IV. Parecer 003/2004 do Conselho Nacional de Educação; V. Currículo de História do Estado de São Paulo no 8º ano do Ensino Fundamental; VI. Caderno do Aluno da disciplina de História no 8º ano do Ensino Fundamental, volume I e II11.

O arcabouço teórico utilizado nesta pesquisa se baseia nos estudos de Aplle (2003, 2006,

2008), Bachelard (1996); Deslauriers e Kérisit (2012), Fonseca (2002) e Minayo (2001 e 2010).

A metodologia adotada foi a Análise Qualitativa, em conjunção com as teorias críticas e pós-críticas do currículo e a Análise do Conteúdo, de Laurense Bardin (1977).

Optamos pelo método de Análise do Conteúdo porque ele legitima as teorias críticas e pós-

críticas do currículo, nos permitindo explorar conteúdos ocultos nos discursos manifestos, ultrapassando assim, as aparências do que se foi explicitamente comunicado.

Desta forma, almejamos realizar uma pesquisa fundamentada em conceitos científicos

reconhecidos, para que assim, possamos, academicamente, contribuir com as discussões acerca da educação para as relações étnico-raciais, assunto relevante em uma sociedade que viveu sob o regime escravocrata por aproximadamente quatro séculos.

Assim, apresentados os objetivos estipulados, o corpus documental selecionado o

arcabouço teórico escolhido e a metodologia de análise adotada, seguiremos com algumas considerações acerca da Pesquisa Qualitativa. A Pesquisa qualitativa

A pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,

crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 2001, p. 14). Assim, a pesquisa qualitativa estaria além da contabilização de números, ela parte de um modelo que analisa as relações sociais de forma empírica, reflexiva e social.

Deslauriers e Kérisist argumentam em seu estudo “O delineamento da pesquisa

qualitativa” (2012), que toda pesquisa se faz necessária porque parte de um problema ainda não estudado até o esgotamento de suas possibilidades, sendo assim, a Pesquisa Qualitativa não se diferencia das outras teorias. Contudo, esta modalidade atua sobre a não linearidade da produção do conhecimento científico.

A pesquisa científica parte de um problema, ou seja, a constatação da falta de

conhecimento acerca de determinada temática. Entretanto, estes estudos não se baseiam em uma dinâmica acabada, cuja resolução é plenamente alcançada quando da finalização da pesquisa. É comum a pergunta se reformular, se tornando mais complexa, ou ainda, irrelevante ao ponto de ser substituída por outra ao longo da pesquisa. Por este motivo, Deslauriers e Kérisist, adotam o termo “delineamento”, evitando o termo método ou projeto de pesquisa.

Estes autores assumem uma perspectiva fenomenológica, argumentam que a pergunta que

alicerça a pesquisa, define seu objeto, assim, o objeto pode ser flexível. Desta forma, tal como o

11 O Caderno do aluno é um material pedagógico que auxilia discentes da rede estadual de ensino paulista no desenvolvimento de competências do Currículo Oficial, atua como um livro didático. Este material também é a base para o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 35 de 145

método de pesquisa qualitativa, o objeto da nossa dissertação foi flexibilizado, repensado e retomado sob outras perspectivas, mas sem perder seu objetivo primeiro: Verificar se o currículo de História do Estado de São Paulo no 8º ano do Ensino Fundamental atende as demandas da Lei 10639/03 quanto ao estudo de História e Cultura Afro-Brasileira.

Consideramos que este processo de reavaliação critica da pesquisa é um estado normal que

compõe a elaboração científica do conhecimento, conforme nos aponta Bachelard (1996, p.11), “a formação do espírito científico passa por três estados: no estado concreto, o espírito apropria-se das primeiras imagens e gera suas concepções iniciais; no estado concreto-abstrato o espírito, mesmo apegado a suas experiências, inicia um processo de generalização ao acrescentar esquemas científicos; e o estado abstrato, onde o espírito já consegue problematizar suas experiências e gerar conhecimentos a partir de seus questionamentos”.

Assim, a problematização crítica e a flexibilização do objeto de pesquisa, nos permitiu

passar pelos três estados propostos por Bachelard, e a partir de então, iniciar o processo de construção do conhecimento de forma sólida, ainda que não totalmente imparcial e inflexível, mas de forma embasada em estudos científicos fundamentados.

Para Bachelard (1996, p. 18), “aquilo que cremos saber ofusca o que deveríamos saber”,

assim, foi necessário desapegar de hipóteses primeiras e reconhecer novos resultados, alterando antigos conceitos. O conhecimento científico é movido pela crítica, pela reavaliação e reconstrução dos saberes.

Assim, reavaliar nosso objeto de pesquisa sob a perspectiva de outros teóricos nos auxiliou na construção de novas hipóteses indispensáveis, que passaram a nortear a estruturação do nosso trabalho.

Apresentados os conceitos de Pesquisa Qualitativa e sua aplicação em nosso estudo,

seguiremos com algumas considerações acerca da Teoria Crítica do Currículo, aplicada à Pesquisa Qualitativa. A teoria crítica do currículo aplicada à pesquisa qualitativa

As teorias curriculares se ocupam sobre as funções e as possíveis perspectivas do currículo

escolar no contexto educacional. O currículo é uma construção sócio-cultural, que sofre redefinições ao longo do tempo, em conformidade com o contexto histórico.

De acordo com as teorias críticas e pós-criticas do currículo, a escola se utilizaria de

documentos curriculares como instrumento de legitimação de desigualdades sociais, para a manutenção do status quo das classes dominantes. Segundo as teorias críticas e pós-críticas do currículo, os conteúdos contidos nos documentos educacionais atuam como legitimadores dos preconceitos estabelecidos na sociedade. Assim, consideramos essencial abordar estas concepções teóricas em nosso trabalho.

O aprofundamento nos estudos sob a perspectiva de autores como Pierre Bourdieu, Louis

Althusser, Michael Aplle, Gimeno-Sacristán, Vera Candau, Circe Bittencourt, Demerval Saviani e Tomaz Tadeu Silva, que trabalham dentro das perspectivas da teoria crítica e pós-critica do currículo, reorientou a interpretação do objeto, suscitando assim, novas problematizações. A princípio, todo este processo de alterações manifestava certa incoerência em virtude dos desvios iniciais do projeto. Entretanto, esta dinâmica se legitima em processo de delineamento característico da Pesquisa Qualitativa.

A pesquisa bibliográfica reorientou as perspectivas acerca do objeto, (re)significando

nossas percepções, apontando assim, recortes mais adequados, novas problematizações e

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 36 de 145

interpretações. Houve a necessidade de contextualizar o currículo politicamente, uma vez que sua essência é de fato política, assim como o ensino de História da África e dos Afro-Brasileiros. Novas leituras foram incluídas, enquanto outras foram dispensadas, neste segundo momento.

A educação anti-racista e as políticas de ações afirmativas no contexto educacional têm

uma extensa agenda de lutas e realizações, que se projetam através do enfrentamento político, locais de disputa ideológica, ressignificação dos currículos educacionais e valorização da identidade negra na sociedade brasileira.

Abordar os significados que a Lei 10.639/03, que institui o ensino de História da África e

dos Afro-Brasileiros nos estabelecimentos de ensino públicos e privados em âmbito nacional, poderia abranger dimensões extensas, tais como a compreensão social, dos alunos, dos educadores, dos gestores, dos movimentos sociais, a composição dos livros didáticos, dos cadernos dos alunos, a formação docente, entre outros.

Todos estes componentes seriam indispensáveis para a compreensão efetiva do Ensino de

História da África. Contudo, abordá-los integralmente seria algo extenso para uma dissertação de Mestrado, de forma que não seria viável em virtude das proporções de amplitude que o trabalho tomaria.

Posto isso, o que se pretende na nossa pesquisa é analisar como se aplica o estudo da

História da África e dos Afro-Brasileiros no Currículo de História do 8º ano do Ensino Fundamental no Estado de São Paulo. Qual a mensagem “oculta” que o currículo do Estado de São Paulo e seus materiais complementares (cadernos do aluno) expressam com relação à educação anti-racista nos termos da História da África e dos Afro-Brasileiros? Qual o significado do ensino de História da África nas abordagens curriculares através de seus conteúdos?

Certamente não há apenas um significado para o ensino de História da África. Contudo, este

significado é essencial para entendermos a dinâmica curricular através do estabelecimento de relações de poder, haja vista que no que diz respeito à Lei 10639/03, ter o significado, o sentido e mensagem claros, são indispensáveis para a efetiva implementação da História da África e ressignificação da História e da reconstrução da identidade dos negros através da educação.

Fundamentados os conceitos de teoria crítica e pós-crítica do currículo, justificada esta

optativa de acordo com nosso objeto de pesquisa, daremos seguimento ao percurso metodológico abordando a análise do conteúdo, segundo Laurense Bardin, método que adotamos para codificar e decodificar a Legislação Federal e orientações estaduais, que regulamentam a educação anti-racista, conforme especificaremos no item a seguir.

Análise do conteúdo, método de Laurense Bardin

Toda comunicação é iniciada pela transmissão de uma mensagem, carregada de um todo de significado. A teoria afirma que este significado, receberá seu sentido através da interpretação. A interpretação, por sua vez, é influenciada pelo contexto histórico-social, bem como de outras condições subjetivas de quando, onde e por quem a informação é interpretada.

Segundo Bardin (1977, p. 14-15), a Análise do Conteúdo tem raízes seculares, enquanto ferramenta de análise de mensagens, contudo, se estabeleceu como método de pesquisa científico a partir da primeira metade do século XX nos Estados Unidos, principalmente na análise qualitativa de mensagens publicitárias e do contexto político.

O método de análise do conteúdo é dividido em cinco itens, sendo eles: I.Organização da

Análise; II. Codificação; III. Categorização; IV. Inferência e V. Tratamento dos dados. A primeira etapa, intitulada de “Organização da Análise”, descreve metodicamente as etapas constituídas da

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 37 de 145

Análise do Conteúdo, enquanto que as demais etapas são destinadas a abordar as potencialidades do método. Esta etapa foi descrita na obra de Bardin (1977, p. 94).

A “Organização da Análise” é composta pela Pré-análise, através da leitura flutuante, ou seja,

o contato inicial que estabelecemos com o objeto de pesquisa. Todas as leituras realizadas acerca da História da África e dos afro-brasileiros foi considerada, inicialmente, como parte do corpus documental.

Após este primeiro percurso da pré-análise, realizamos a análise dos documentos, neste

momento, definimos de forma concreta nosso corpus documental, que foi orientado pelas regras de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência, assim optamos por realizar uma abordagem político-legislativa da temática, delimitando nosso corpus documental às legislações e orientações acerca de como a História da África e dos Afro-Brasileiros deve ser abordada nos currículos educacionais. Assim, definimos como corpus documental: I. Lei 10.639/03 que estabelece o ensino da História da África e da Cultura afro-brasileira nos sistemas de ensino; II. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História da Cultura Afro-Brasileira e Africana; III. Resolução 001/2004 do Conselho Nacional de Educação; IV. Parecer 003/2004 do Conselho Nacional de Educação; V. Currículo de História do Estado de São Paulo no 8º ano do Ensino Fundamental; VI. Caderno do Aluno da disciplina de História no 8º ano do Ensino Fundamental, volume I e II.

Após o procedimento explicitado, mas ainda na pré-análise, formulamos nossa hipótese

inicial: a legislação federal, através de seus dispositivos legais, transmite uma mensagem de caráter político, ideológico e pedagógico que deve ser acatada pelos currículos educacionais, nesta pesquisa, mais especificamente o currículo educacional da disciplina de História do Estado de São Paulo no 8º ano do ensino fundamental.

Formulamos também nosso objetivo primeiro: que é analisar o Currículo de História do

Estado de São Paulo e seu posicionamento perante a Lei 10639/03, elencando avanços e retrocessos na primeira década da legislação Federal.

Concluídos estes procedimentos, seguimos com a definição dos descritores/indicadores,

para isso, dividimos o material de forma hierárquica, trabalhamos inicialmente com as legislações federais e posteriormente, com os documentos estaduais a fim de codificá-los:

Figura 1: Construção dos descritores

Após este percurso, seguimos para a etapa de exploração do material, nesta etapa, realizamos a codificação dos documentos, através da construção de índices. Codificar um material é o mesmo que reorganizá-lo em novas categorias de análise a fim decodificá-lo quando necessário. Codificamos nosso corpus documental através da determinação de unidades de registro, que são produtos de critérios de contextos semânticos. No caso dos documentos utilizados no nosso recorte, a abordagem de pesquisa foi realizada a partir de trechos temáticos, organizados de acordo com seus contextos

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 38 de 145

semânticos, sendo eles: I. Concepções e pressupostos; II. Princípios e valores sociais; III. Justificativas e fundamentação; IV. Relatos de iniciativas; V. Ensino; VI. Conteúdos; VII. Objetivos, ações e metas; VIII. Determinações e orientações e IX. Atribuições e responsabilidades.

As Unidades Semânticas supracitadas estão presentes nos documentos analisados,

atuando, assim, como recursos semânticos argumentativos contidos durante o percurso do texto, atuando de forma não linear. Tais Unidades de Contexto Semântico apresentam articulações entre os três documentos Federais analisados (Parecer número 003/2004 Conselho Nacional de Educação; Resolução 001/2004 do Conselho Nacional de Educação; Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares para Educação das Relações étnico-raciais e Para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana).

Com o objetivo de formular uma codificação ainda melhor detalhada abordando os três

documentos Federais, foram formuladas as Unidades de Registro Temático, sendo estas subdivisões das Unidades de Contexto Semântico.

Desta forma, podemos elencar as unidades mínimas de codificação dos documentos.

Segundo Bardin (1977, p. 105-106), “o tema é geralmente utilizado como unidade de registro para estudar motivações de opiniões, de atitudes, de valores, de crenças, de tendências, etc”. Assim, construímos dezesseis Unidades de Registro Temático:

Unidade de Contexto Semântico Unidade de Registro Temático

1. Concepções / Pressupostos

1.1. Concepção de Racismo 1.2. Concepção de Educação 1.3. Concepção de Estado

2. Justificativas / Fundamentação

2.1. Legislação 2.2. Diagnóstico Educação

3. Princípios sociais / Valores

3.1. Diversidade 3.2. Identidade 3.3. Direitos Sociais

4. Ensino

4.1. Como ensinar 4.2. O que ensinar

5. Conteúdos

5.1. Relações Etnico-Raciais 1.2 História e Cultura Afro-Brasileira 5.3. História e Cultura da África

6. Objetivos / Ações / Metas

6.1. Sociais 6.2. Pedagógicos

7. Determinações / Orientações

7.1. Sociais 7.2. Institucionais 7.3. Legais

7.4. Pedagógica

8. Atribuições / Responsabilidades

8.1. Atribuições Institucionais 8.2. Atribuições Legais

Codificação

Tabela 1: Unidades de Contexto Semântico e Unidades de Registro Temáticos Para exemplificar, explicitamos um trecho do Parecer 03/2004, que trata das Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, no qual o tema consiste na abordagem acerca da História da África e dos Afro-Brasileiros, enquadrada na Unidade de Registro Temático 5.2. Conteúdo de História e Cultura Afro-Brasileira:

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 39 de 145

O ensino de Cultura Afro-Brasileira destacará o jeito próprio de ser, viver e pensar manifestado tanto no dia a dia, quanto em celebrações como congadas, moçambiques, ensaios, maracatus, rodas de samba, entre outras. (BRASIL, 2004a).

Desta forma, toda a legislação Federal acerca da História da África e dos Afro-Brasileiros

foi codificada.

Além de analisar o conteúdo dos documentos estudos, as Unidades de Registro Temático apontaram uma dinâmica semântica cuja análise propõe um projeto político, pedagógico e ideológico de implantação de uma educação ressignificada com o objetivo de desmistificar o racismo e assim, erradicá-lo. Desta forma, se justifica nossa adesão metodológica.

Sendo assim, após a determinação das Unidades de Contexto Semântico e das Unidades

de Registro Temático, demos início à construção das Categorias de Análise. Concebemos que os três documentos Federais compõem um projeto político, pedagógico e ideológico, desta forma, as Categorias de Análise trabalharam para evidenciar estes projetos com o propósito de que os mesmos sejam utilizados como descritores sobre o Ensino de História da África e dos Afro-Brasileiros no Currículo de História do 8º ano do Ensino Fundamental no Estado de São Paulo e nos Cadernos do aluno desta mesma disciplina e série.

Assim, estabelecemos o seguinte plano de pesquisa analítico: I. Tentar agrupar as

Unidades de Contexto Semântico em unidades mais amplas, ou seja, as Categorias Analíticas; II. Verificar as possíveis articulações entre as Categorias Analíticas; III. Estudar se existe alguma Estrutura Semântica que possa organizar as Categorias Analíticas. IV. Verificar qual mensagem a Estrutura Semântica transmite.

Desta forma, construímos a categoria de análise “Estruturantes da Mensagem”, a partir da

articulação das Unidades de Contexto Semântico e das Unidades de Registro Temático:

Unidade de Contexto Semântico

Unidade de Registro Temático Estrutura da Mensagem

Concepções / Pressupostos

Concepção de Racismo Concepção de Educação Concepção de Estado

Fundamentação

Justificativas / Fundamentação

Legislação Diagnóstico Educação

Princípios sociais / Valores

Diversidade Identidade Direitos Sociais

Ensino

Ensino

Como ensinar

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 40 de 145

O que ensinar

Conteúdos

Relações Etnico-Raciais História e Cultura Afro-Brasileira História e Cultura da África

Objetivos / Ações / Metas

Sociais Pedagógicos

Objetivos

Determinações / Orientações

Sociais Institucionais Legais

Pedagógicas

Atribuições / Responsabilidades

Atribuições Institucionais Atribuições Legais

Responsabilidades

Codificação Decodificação

Tabela 2: Unidades de Contexto Semântico, Unidades de Registro Temático e Estrutura da Mensagem

Com as Estruturas das Mensagens definidas, podemos reorganizar o conteúdo dos três

documentos como se fosse um único documento. O próximo estágio consistiria em dar origem aos descritores, contudo, ainda não

finalizamos este percurso, razão pela qual, optamos apenas por exemplificá-lo no próximo item a partir de alguns resultados construídos e encerrar, por hora, a descrição do percurso metodológico adotado em nossa pesquisa.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 41 de 145

Análise do Conteúdo Temática

Corpus Documental: Legislação Federal acerca do Ensino de História da África e dos Afro-Brasileiros

Unidade de Contexto Semântico

Unidade de Registro Temático

Estrutura da Mensagem

Descritores

Concepções / Pressupostos

Concepção de Racismo Concepção de Educação Concepção de Estado

Fundamentação

Leis e Direitos Demandas Sociais Concepções de Educação Diagnóstico Social

Justificativas / Fundamentação

Legislação Diagnóstico Educação

Codificação Decodificação

Tabela 3: Analise do Conteúdo Temático com Unidade de Contexto Semântico, Unidade de Registro Temático, Estrutura da Mensagem e Descritores

Ressaltamos que os resultados obtidos, poderão ser futuramente explicitados em um estudo

completo, diverso de nossa dissertação de Mestrado. Contudo, o percurso metodológico inicialmente adotado, foi manifestado neste trabalho. Considerações finais

Ancorados nos métodos adotados para a análise do objeto de pesquisa de nossa dissertação de mestrado, podemos concluir até então que, o ensino de História da África e dos Afro-Brasileiros compõe um projeto social, político, pedagógico e ideológico, cuja mensagem, de acordo com o percurso metodológico aplicado, poderia ser resumida da seguinte forma: Embasado em dispositivos legais e direitos sociais, reconhecendo que a educação tem como princípio e função alterar o atual diagrama social acerca do racismo, se alicerçando em uma determinada tipologia de ensino, inspirada em novos métodos, princípios e conteúdos, pode-se alcançar objetivos sociais, desde que responsabilidades, inclusive com amparo legal, sejam cumpridas.

Os sentidos, bem como os significados que esta mensagem atingirá, podem ser alterados

de acordo com as interpretações e contextos diversos que influenciam o processo de significação. Contudo, excluir alguma das categorias implantadas nesta pesquisa até o presente momento, descaracterizaria a mensagem construída pela legislação federal acerca do Ensino de História da África e dos Afro-Brasileiros, uma vez que esta legislação não atua apenas como uma diretriz elaborativa de conteúdos escolares, e sim como uma política de inclusão e combate ao racismo, que contribui com a (re)significação da escola para a população negra e também não negra que tem sido orientada segundo uma política educacional inapropriada, por ser excludente e racista.

Logo, propor a formulação de descritores, não pode ser interpretado apenas como uma

forma de descrever a legislação federal e o currículo de História do Estado de São Paulo, e sim de verificar se a educação anti-racista é efetivamente aplicada através do currículo e de seus materiais paradidáticos.

Ressaltamos que os resultados obtidos até este momento, não são ainda suficientes para comprovar nossas hipóteses iniciais e os objetivos de nossa pesquisa de Mestrado, contudo, são

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 42 de 145

essenciais para legitimar o arcabouço teórico selecionado e a metodologia de pesquisa adotada, ou seja, os resultados obtidos até o momento correspondem às expectativas esperadas.

Almejamos que, em um futuro breve, nossa pesquisa esteja concluída e assim, ofereça argumentos que possam contribuir com as problematizações acerca de uma educação anti-racista, promotora de ideais de inclusão, igualdade e democracia. Referências BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BARDIN, Laurense. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer 03/2004. Brasília, 2004a. BRASIL. Ministério da Educação: Conselho Nacional de Educação. Resolução 01/2004. Brasília, 2004b. BRASIL. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004c. DESLAURIERS, Jean.-Pierre.; KÉRISIT, Michèle. O delineamento de pesquisa qualitativa. In: POUPART, J. et al. (Org.). A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2012. FONSECA, João José Saraiva da, Metodologia da pesquisa científica. UFCE, Ceará. V.1 2002. GODOY, Arilda Schmidt. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. RAE - Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 35, n. 2. 1995. LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Irene Ferreira e outros. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. (Coleção temas sociais). Resenha. _______________ O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro: UCITEC-ABRASCO, 1994. SÃO PAULO. Secretaria de Estado de Educação. Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Ciência Humanas. São Paulo, 2008. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 43 de 145

TRABALHO INFANTIL E A PEDAGOGIA SOCIAL: UMA RELAÇÃO NECESSÁRIA

Juliana Mauricio12 Aline Alcântara

Amanda da Silva Viana Beatriz Almeida Aguiar

Resumo O trabalho infantil urbano tem sido invisibilizado e, quando percebido, naturalizado ao longo dos anos. São milhares de crianças que perdem boa parte de suas vidas ou até mesmo a totalidade delas, ajudando a complementar a renda mensal de suas famílias, resultado de um projeto de sociedade espoliador e excludente que faz com que lutem em tão tenra idade, como se adultos fossem. Se falarmos em quantitativos, trata-se de um verdadeiro genocídio. Quando na escola, essas crianças lançam diariamente inúmeros desafios aos educadores, estabelecem novas regras, exigem diferentes posturas e imprimem múltiplas lógicas à prática docente daqueles que por elas se deixam afetar e se permitem aprender, para ensinar cada vez mais e melhor. Suas vivências e experiências, ao serem consideradas e incorporadas às dinâmicas escolares, produzem novos sentidos à pedagogia, desvelando outras possibilidades educacionais. Palavras-chaves: Pedagogia social. Trabalho infantil. Introdução:

O projeto “Trabalho Infantil Urbano: mitos e desafios” volta-se para o ramo da pesquisa, tratando da problemática do trabalho infantil e suas consequências na vida dessas crianças que se encontram em tal situação. Atuando no ramo da Pedagogia Social, o projeto, por meio de pesquisas de configuração prática, tem por objetivo criar produções acadêmicas acerca deste tema.

Neste primeiro momento, foram abarcadas crianças e jovens de Niterói, da Baixada Fluminense e Nova Friburgo. Foram observados diversos tipos de reações e sentimentos desenvolvidos pelo público infantil a essa situação de vulnerabilidade social. Alguns se animavam com a ideia de trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro, conquistando uma quase independência; outros, porém, sentiam a perda de seu precioso tempo que deveria ser aproveitado para o lazer e educação. Há ainda os que nem se dão conta do que estão passando, sem ao menos nutrirem as esperanças de outra realidade e, muito menos, lutarem por ela.

Esses jovens cidadãos, na maioria das vezes, não recebem os estímulos certos de forma que seguem suas vidas conformados com seus prováveis futuros. É por meio da escola que esse ânimo deve ser restaurado, conferindo a este indivíduo a confiança necessária para mudar sua vida “Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e histórica de Ser Mais.” (FREIRE, 1987) Porém, e quando, por questões financeiras, a criança é privada dessa experiência escolar? Essa é uma questão de responsabilidade do Estado, e cabe à escola estar pronta para receber, acolher e entender o aluno que, mesmo em meio às dificuldades, busca este ambiente de aprendizagem.

12 Alunas do curso de especialização em Pedagogia Social – Universidade Federal Fluminense - RJ

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 44 de 145

Relato de experiência:

De acordo com observações feitas pelas bolsistas, cada vez mais tem se notado a importância de uma nova roupagem da escola e das práticas pedagógicas. Dentre as 6 crianças acompanhadas até o momento, 2 crianças admitem sentir falta da escola, que não pode ser plenamente vivida e aproveitada por conta de seus trabalhos; 2 crianças estão assumindo papéis de adultos em suas famílias, com responsabilidades que ultrapassam a necessidade de comprar alimentos, incumbindo-se dos papéis de pais e mães; 1 criança, apesar dos muitos problemas escolares e familiares, ainda pensa em seguir uma carreira acadêmica; e por último, 1 criança, dentre essas 6, sente orgulho de seu trabalho, que lhe oferece a oportunidade de comprar seus objetos desejados. Este último citado diz não sentir dificuldades na escola ocasionadas pelo trabalho, apesar do pouco tempo para brincar. Apenas 1 criança se mostrou um pouco mais satisfeita com a sua situação, todas as outras 5 sentem de forma mais intensa o peso do trabalho nesta época tão primordial de suas vidas. É necessário que o professor tenha uma sensibilidade que o permita compreender a realidade do dia a dia de cada aluno. Deve estar sempre com o olhar atento, pesquisando, buscando e articulando os saberes que os alunos já têm interiorizados com os que ainda irão aprender. Esses desafios impulsionam o docente a aprender e desenvolver sua capacidade de adaptação, tão necessária no contexto atual: “Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.” (FREIRE, 2001).

Uma das crianças observadas se chama Lucas. Ele tem 13 anos e mora em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ele está no 8º ano do ensino fundamental e o está cursando em uma escola estatual próxima a sua casa. No período da manhã frequenta a escola e, no período da tarde trabalha como ajudante em uma padaria de sua rua. Esse é seu primeiro emprego e Lucas parece estar animado. Na data da primeira conversa, ele estava completando um mês de trabalho neste estabelecimento. Seu turno na padaria vai de 14h às 19h, de segunda a sábado. Por esse trabalho, ele recebe 50 reais semanais. Sua função se resume a ajudar um pouco em tudo o que for necessário: ele varre o chão, atende os clientes, ajuda a arrumar as vitrines com os pães e bolos, enfim, faz o que precisar de sua ajuda. Lucas mora com sua mãe e seus três irmãos, um menino de poucos meses, outro de cinco anos e uma irmã mais velha cuja idade não foi revelada. Sua mãe encontra-se separada de seu pai, que mora na mesma rua e aparentam não ter muitos problemas de relacionamento após o término. Ele é o primeiro entre os irmãos a trabalhar. Seu motivo é esclarecido de forma simples e orgulhosa: o dinheiro conseguido pelo trabalho servirá para comprar seu primeiro computador. Segundo Lucas, seu pai esta desempregado, ao contrário de sua mãe que trabalha para sustentar a si mesma e os quatro filhos. A ideia de trabalhar para comprar seu computador surgiu de seu pai que sugeriu essa alternativa por não ter condições de atender ao pedido do filho. Dentre seus irmãos, ele é o único a trabalhar e, ao que parece, não é cobrado para ajudar financeiramente em casa, apesar de mesmo assim contribuir quando pode. Lucas é uma criança bastante esperta e não pensa em deixar de estudar. Pensa em fazer faculdade de Medicina. Apesar de perder metade do seu dia por conta do trabalho, ele está feliz e se sente de certa forma independente. Porém, como já foi dito, ele esta trabalhando a apenas um mês. Até quando irá essa animação? Até quando seu trabalho não irá o irá atrapalhar nos estudos?

Outra criança observada foi Jesiel. Ele também é morador de Nova Iguaçu e tem 12 anos. Ele trabalha como chapeiro; lida com as carnes na chapa, frita os ovos e etc. Apesar da alta temperatura da chapa, Jesiel apresentou grande habilidade no manuseio dos alimentos, sem se queimar e fazendo sua função de forma satisfatória. Ele trabalha em uma lanchonete improvisada no portão da casa de sua patroa de terça a domingo, do período do fim da tarde, 17h, até por volta de 22h30. Para esse serviço ele ganha por volta de 200 reais por mês e com o dinheiro ajuda nas despesas de casa, onde mora com seu irmão mais novo e sua mãe, que trabalha como revendedora de cosméticos e roupas. Ele está no 8º do ensino fundamental e diz que gosta muito de ir para a escola, pois é o único lugar onde pode brincar com seus amigos, já que ele trabalha e acaba não tendo tempo para brincar. Jesiel diz que não sente que o trabalho atrapalhe muito seus estudos,

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 45 de 145

apesar de se sentir cansado muitas vezes por conta de sua carga horaria. Ele se preocupa com sua família, por isso, mesmo cansado, não pensa em parar de trabalhar. Seu futuro é incerto; ele não sabe se quer fazer uma faculdade, porém ama música e gostaria de viver dela, apesar de acreditar que este caminho seja muito improvável para ele. Jesiel poderia ser um grande talento no Brasil, poderia ter um futuro brilhante na área da música, porém sem incentivo da escola, de sua família e mesmo de seu país, talvez ele seja mais um talento perdido, como tantos outros.

O que se fazer diante dessas realidades? Ainda há alguma esperança? Muitas questões como essas surgem na mente de um profissional da educação ao se deparar com crianças que são impedidas de crescerem em diversas áreas de suas vidas por conta do sistema de ensino do país, que prioriza números e não resultados que realmente mudariam tanto a vida dessas crianças quanto o futuro da própria nação.

Entre as crianças acompanhadas está Jonathan. Ele tem 12 anos e, junto a seus irmãos, sempre teve uma vida muito dura. Seu pai há muito tempo esteve envolvido com o tráfico, e seu irmão mais velho tem seguido o mesmo caminho. Jonathan trabalha de manhã na barraca de seu tio, ajudando a carregar caixas e a vender guaravita. Jonathan e mais dois irmãos, um de 14 e outro de 10, recebem até 20 reais para trabalhar na barraca. Sua relação com seu pai não é nada boa; segundo palavras do próprio menino o pai “não presta. Entrou pra vida que não presta, ele é bandido.”. Jonathan enxerga na educação um meio de melhorar de vida para que possa sair dessa realidade e não cair na mesma situação que seu pai, por isso ele diz que “quando terminar os estudos quero fazer faculdade biologia, ganhar um bom dinheiro”. A dúvida que permanece neste momento é: Será que a escola irá aproximar ou afastar Jonathan de seu ideal? Será que o que restará para ele será seguir os passos do pai?

A Pedagogia Social tem como objetivo essa inovação, que muda a vida de indivíduos e dá a eles novas oportunidades. É uma pedagogia de acertos e possibilidades e está inserida no campo do conhecimento que trata da organização da escola. O espaço socioeducativo, formal e não formal, é o lugar da concepção e do fazer pedagógico, que dão sentido a formação de cidadãos capazes de participarem ativamente da vida socioeconômica, política e cultural do seu tempo.

Quanto mais a população de um país é entregue à sua própria sorte, maior se faz a necessidade da Pedagogia Social, que se traduz em um fazer pedagógico voltado para a realidade das crianças e adolescente trabalhadoras exposta a todo tipo de dificuldades oriundas de uma educação direcionada para um público com valores e necessidades bem diferentes. Dificuldades estas que não abrangem apenas o âmbito educacional, mas também o social, o político e o afetivo. Com isso, a Pedagogia Social aponta a Educação como um único elemento possível para combater as expressões da “questão social”. Referências ARAUJO, Margareth Martins de. Pedagogia Social: Diálogos com crianças trabalhadoras. São Paulo: Expressão e Arte, 2015. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2001. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 46 de 145

METODOLOGIAS ATIVAS NO CURSO DE GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM: (IM) POSSIBILIDADES?

Karina Maria Mesquita Da Silva13 Bruno Gomes Pereira14

Resumo Abordaram-se noções das metodologias ativas, práticas pedagógicas e suas relações no curso de enfermagem. Essas ideias surgiram devido as dificuldades vivenciadas pela autora em aplicá-las, pois durante sua formação predominou o método tradicional. Por isso, foi realizada uma pesquisa bibliográfica de natureza descritiva, com descritores e bases de dados selecionadas para analisar as possibilidades do uso das metodologias ativas com o auxílio das práticas pedagógicas. O estudo foi dividido em três etapas: noções sobre metodologia ativas, práticas pedagógicas, e a relação entre metodologia ativas e a práticas pedagógicas no curso de graduação em Enfermagem. A aplicação das metodologias ativas na graduação em enfermagem, como demais cursos de nível superior, são possíveis, porém devem considerar-se: formação do docente, experiências, domínio, conhecimento, práticas didáticas, estrutura física adaptadas, turmas menos numerosas, internet com boa qualidade, participação ativa dos acadêmicos, ética, intencionalidades, sistematização e flexibilidade no processo de ensino-aprendizagem, para instigar o estudante mediante problemas, a examinar, refletir e posicionar-se de forma crítica. Palavras-Chave: Metodologia Ativa. Enfermagem. Prática Pedagógica Abstract Addressed notions of active methodologies, pedagogical practices and their relationships in the course of nursing. It was due to difficulties experienced by the author in applying them, because during her formation predominated traditional method. Then, a literature searching of descriptive nature, with descriptors and selected databases was done to analyze the possibilities of use active methodologies with aid of pedagogical practices. Study was divided into three steps: Understanding active methodology; pedagogical practices; and relationship between active methodology and pedagogical practices in undergraduate program of nursing. That application of active methodologies in nursing, like other undergraduate courses, are possible, but should be considered: teacher training, experience, knowledge, educational practices, physical structure, fewer students, good quality internet, active participation of students, ethics, intentionality, systematization and flexibility in the teaching-learning process, for instigating students through problems, to examine, reflect and take position themselves critically. Keywords: Active Methodology. Nursing. Pedagogical Practice Introdução

Com a globalização, inovações tecnológicas e docência contemporânea, o ensino torna-se cada vez mais inovador e exigente nos cursos universitários.

Compreende-se que as metodologias ativas em parceria com as práticas pedagógicas são

recursos que vão contribuir significativamente no processo do ensino-aprendizagem, e na formação crítica e reflexiva do acadêmico de enfermagem.

13 Professora do Centro Universitário Presidente Antônio Carlos (ITPAC/Araguaína). Mestranda do curso de ciências da educação. 14 Doutor em Ensino de Língua e Literatura pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Professor de Língua Portuguesa do Centro Universitário Presidente Antônio Carlos (ITPAC/Araguaína).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 47 de 145

A mudança no processo de ensino-aprendizagem, de acordo com Sobral e Campos (2012), é árdua, pois busca a ruptura com os modelos de ensino tradicional. Ao abandonar os métodos tradicionais de transmissão de conhecimentos, em que professor fala e os alunos ouvem, o professor assume uma posição de facilitador e técnico no processo de aprendizado (MAZUR, 1996). Há, desta forma, a necessidade de “envolver o aluno enquanto protagonista de sua aprendizagem, desenvolvendo ainda o senso crítico diante do que é aprendido, bem como competências para relacionar esses conhecimentos ao mundo real” (PINTO et al., 2012, p.78).

Os métodos tradicionais, que privilegiam a transmissão de informações pelos professores,

faziam sentido quando o acesso à informação era difícil. Com a Internet e a divulgação aberta de muitos cursos e materiais, podemos aprender em qualquer lugar, a qualquer hora e com muitas pessoas diferentes. Isso é complexo, necessário e um pouco assustador, porque não temos modelos prévios bem-sucedidos para aprender de forma flexível numa sociedade altamente conectada. (ALMEIDA & VALENTE, 2012).

O presente artigo aborda as noções das metodologias ativas e práticas pedagógicas e as suas

relações. Essas ideias surgiram devido as dificuldades vivenciada pela autora em aplicá-las, pois durante a sua formação predominou o método tradicional. Além desse fator, outros também contribuem como: a formação profissional, a questão do novo, a falta de prática, do domínio, a participação passiva dos acadêmicos durante as atividades, turmas numerosas, as salas de aulas com estruturas físicas inadequadas e problemas técnicos com a internet.

Considerando os fatos anteriores para colocar em prática as metodologias ativas no

processo ensino-aprendizagem do seu dia a dia, realizou-se uma pesquisa bibliográfica de natureza descritiva baseada nos seguintes critérios: publicações em português utilizando as palavras-chave ou descritores (metodologia ativa; enfermagem; pratica pedagógica); artigos, dissertações e teses publicadas no período de 1994 a 2014.

Este estudo foi dividido em três etapas: noções sobre metodologia ativas, práticas

pedagógicas, e a relação entre metodologia ativas e a práticas pedagógicas no curso de graduação em Enfermagem. Noções Sobre Metodologias Ativas

As metodologias ativas de aprendizagem são métodos utilizados pelos docentes universitários onde o aprendizado se dá a partir de problemas e situações reais, com a finalidade de estimular os acadêmicos a pensarem e refletirem sobre as soluções de tais problemas, e dentro desse contexto contribuírem para a construção do seu próprio conhecimento.

Para Bastos (2006) o conceito de metodologias ativas se define como um processo

interativo de conhecimento, análise, estudos, pesquisas e decisões individuais ou coletivas, com a finalidade de encontrar soluções para um problem. Ainda segundo o autor, o docente deve atuar como um facilitador, para que o estudante faça pesquisa, reflita e decida por ele mesmo o que fazer para alcançar os objetivos.

As Metodologias Ativas baseiam-se em formas de desenvolver o processo de aprender, como desafios de inovações, onde o discente assume o papel de instituidor de seu conhecimento e não somente receptor de informações, como há muito tempo o ensino tradicional preconiza. Conforme Berbel (2011), as metodologias ativas utilizam-se de experiências reais ou simuladas, visando às condições de solucionar, com sucesso, desafios advindos das atividades essenciais da prática social, em diferentes contextos.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 48 de 145

Assim como Moran (2014), vivemos um momento diferenciado do ponto de vista do ensinar e aprender. Aprendemos de várias formas, em redes, sozinhos, por intercâmbios, em grupos etc. Para ele, essa liberdade de tempo e de espaço em processos de aprendizagem configura um novo cenário educacional onde várias situações de aprendizagem são possíveis com a ajuda das Metodologias Ativas - MAs ou Metodologias Inovadoras - MIs.

Segundo Freire (1996) saber ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as

possibilidades para sua própria produção ou sua construção, com isso, é de suma importância que cada vez mais se tenha atividades que coloquem o aluno como ser autônomo capaz de pensar e criar, ou ainda, que possam criar condições para o desenvolvimento de capacidades e habilidades visando a autonomia na aprendizagem e independência de pensamento dos alunos (LIBÂNEO,1994).

As metodologias ativas surgem como uma interessante estratégia de ensino- aprendizagem,

com o objetivo de alcançar e motivar o discente a examinar e refletir sobre determinada situação/problema, relacionando este com sua própria história e, consequentemente, resinificando suas descobertas. Além disso, este tipo de metodologia de ensino pode tornar-se um instrumento necessário e significativo para ampliar as possibilidades e caminhos do discente, que poderá exercitar sua liberdade e autonomia na realização de escolhas e na tomada de decisões (CYRINO, TORALLES-PEREIRA, 2004).

Portanto as metodologias ativas utilizam a problematização como instrumentos de

incentivo no processo de ensino-aprendizagem, onde o acadêmico pesquisa a busca das soluções para o problema, onde o mesmo torna-se o responsável pela construção do seu próprio conhecimento. De acordo com Berbel (2011), na problematização, o sujeito percorre algumas etapas e, nesse processo, irá refletir sobre a situação global de uma realidade concreta, dinâmica e complexa, exercitando a práxis para formar a consciência da práxis. Problematizar, portanto, não é apenas apresentar questões, mas, sobretudo, expor e discutir os conflitos inerentes e que sustentam o problema.

Neste sentido, a educação voltada a métodos inovadores deve ser capaz de desencadear

uma visão integralista, com a consequente expansão da consciência individual e coletiva dos atores sociais envolvidos. Assim, a utilização de metodologias ativas de ensino-aprendizagem permite o desenvolvimento de uma prática pedagógica baseada na ética e na crítica reflexiva e transformadora, ultrapassando os limites do treinamento puramente técnico (MITRE et al., 2008).

Na formação dos profissionais da área de saúde, destacando a enfermagem, surge também

o conceito de aprender fazendo, o qual, segundo Fernandes e colaboradores (2008), pressupõe que se repense a sequência teoria prática na produção do conhecimento, assumindo que esta ocorre por meio da ação-reflexão-ação. Reafirma-se, assim, a ideia de que o processo ensino- aprendizagem precisa estar vinculado aos cenários da prática e deve estar presente ao longo de toda a carreira. Assumir esse novo modelo no aprendizado de enfermeiros ou profissionais de saúde, implica o enfrentamento de novos desafios como, a construção de um currículo integrado em que o eixo da formação articule a tríade prática-trabalho-cuidado, rompendo a polarização individual-coletivo e biológico-social, e direcionando-se para uma consideração de interpenetração e transversalidade.

A construção de novas práticas tem desenvolvido habilidades significativas aos acadêmicos

da área de saúde, tal prática como: trocas de experiências com pacientes ou comunidade, planejamento do atendimento, intencionalidade e soluções-problemas, define novos conteúdos, transformações e novas orientações dos trabalhos a serem desenvolvidos, pois tem sido essencial para a construções do aprendizado individual e coletivo. E novas práticas incluem uma nova concepção no planejamento e construção de conteúdos e objetivos educacionais, segundo Zanolli (2004).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 49 de 145

Nessa perspectiva, as instituições formadoras são convidadas a mudarem suas práticas pedagógicas, sob recomendações das Diretrizes Curriculares, numa tentativa de se aproximarem da realidade social e de motivarem seus corpos docente e discente a tecerem novas redes de conhecimentos através das metodologias inovadoras, entre as metodologias mais aplicadas atualmente, pelos docentes universitários destacamos, Sala invertida, Peer Instruction, Fishbowl, PBL, Portfólios e Mapa Mental. Práticas Pedagógicas No Curso De Enfermagem

O conceito de prática pedagógica ainda permanece muito comparado à ideia de transmissão do conhecimento, à competência instrumental, mais este conceito vai muito além, é algo mais do que a expressão do ofício do professor, são práticas nas quais convivem ações teóricas e práticas, refletidas e mecânicas, normativas, orientadas, reguladoras e cotidianas. Segundo Fernandes (2008), prática intencional de ensino e aprendizagem não reduzida à questão didática ou às metodologias de estudar e de aprender, mas articulada à educação como prática social e ao conhecimento como produção histórica e social, datada e situada, numa relação dialética entre prática-teoria, conteúdo-forma e perspectivas interdisciplinares.

Essas práticas, no curso de graduação em Enfermagem talvez são realizadas de forma

aleatória, pois a maioria dos docentes são graduados, apenas um pequeno percentual é licenciado, especialista em docência universitária, mestre ou doutor, o que demostra uma formação profissional deficiente e a educação universitária fragilizada.

A problemática em questão, trás preocupações relevantes no comportamento, na ética, na

dimensão política das práticas sociais, e na prática da didática do docente, além de afetar diretamente o processo de ensino-aprendizagem.

Considera-se que uma das opções para amenizar essa problemática, seria a formação

continuada, atenderia o desenvolvimento pessoal, individual e coletivo da classe docente do curso de enfermagem, a partir da construção de novas competências e de um novo perfil profissional através de aperfeiçoamento e da capacitação dos profissionais que atuam em nome da educação universitária.

Assim como Freire (1996) Rios (2008) argumenta que o professor não ensina apenas as

disciplinas, sua atitude ensina, seus gestos falam. Ao ensinar uma disciplina, ele não está ensinando somente determinados conteúdos, mas está ensinando modos de ser e estar no mundo, atitudes em relação à realidade e à convivência social. Decorre disso a necessidade do planejamento, do desenvolvimento, da revisão e do encaminhamento do trabalho pedagógico, ser guiado por princípios éticos, antes referidos, coordenando essas diferentes dimensões que a prática pedagógica envolve. Afinal, é preciso que o aluno vivencie essa proposta, veja nas ações do professor a corporificação de tais princípios, de outra forma, será difícil fazer com que aquilo que foi idealizado, materialize-se. Na escola, no exercício de profissão, a prática pedagógica é o espaço mais importante, permanente e efetivo de formação de professores, muito mais que os cursos, seminários ou congressos, pois é na prática onde os professores usam seus conhecimentos, valores e atitudes e onde percebem seus domínios e dificuldades. A prática docente vem sendo vista como uma disciplina a mais ou como requisito de graduação do futuro professor, mais que a realização mesma da docência e, como tal, fonte e matéria-prima para a aprendizagem contínua de todo professor em exercício. A reflexão e a sistematização sobre a prática pedagógica são as melhores ferramentas que os professores possuem para avançar e superar- se profissionalmente (MERCADO, 1999).

As práticas pedagógicas organizam-se em torno de intencionalidades previamente

estabelecidas e tais intencionalidades serão perseguidas ao longo do processo didático, de formas e meios variados. O professor, no exercício de sua prática docente, pode ou não se exercitar

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 50 de 145

pedagogicamente. Ou seja, sua prática docente, para se transformar em prática pedagógica, requer, pelo menos, dois movimentos: o da reflexão crítica de sua prática e o da consciência das intencionalidades que presidem suas práticas.

Segundo Houssaye (1995), muitas variáveis induzem a uma boa interação, a um bom

interesse e diálogo entre as variáveis do processo-aluno, professor e conhecimento, entre tais variáveis destacamos: desejos; formação; conhecimento do conteúdo; conhecimento das técnicas didáticas; ambiente institucional; práticas de gestão; clima e perspectiva da equipe pedagógica; organização espaço-temporal das atividades; infraestrutura; equipamentos; quantidade de alunos; organização e interesse dos alunos; conhecimentos prévios, vivências e experiências anteriores.

Contudo percebemos então, que as práticas pedagógicas incluem desde planejar e

sistematizar a dinâmica dos processos de aprendizagem até caminhar no meio de processos que ocorrem para além dela, de forma a garantir o ensino de conteúdos e de atividades que são considerados fundamentais para aquele estágio de formação do acadêmico de enfermagem, e, através desse processo, criar nos acadêmicos mecanismos de mobilização de seus saberes. A Relação Entre as Metodologias Ativas e as Práticas Pedagógicas

Defino as metodologias ativas como um processo do ensino-aprendizagem, cujo o seu principal foco, é colocar os discentes de graduação como agentes principais pela sua aprendizagem, em quando Sacristán (1999) define a prática pedagógica, como uma ação do professor no espaço de sala de aula. Baseando-se em tais definições entendo que ambas têm uma relação de complementariedade, é preciso estimular o acadêmico de enfermagem a ser crítico-reflexivo, mais é necessário que o docente tenha formação, conhecimento, ética, planejamento, experiências, práticas didáticas, intencionalidades, e ser reflexivo e sistemático.

Conforme Debald (2003), em muitos casos, percebe-se que a dificuldade não está no

conteúdo, mas no aspecto metodológico, ou seja, o professor tem domínio sobre a temática, mas não consegue encontrar uma forma adequada de abordá-la, possibilitando a aprendizagem. Um outro fator considerável é, o ambiente físico das salas de aula e da universidade como um todo também precisa ser redesenhado dentro dessa nova concepção mais ativa, mais centrada no acadêmico. As salas de aula podem ser mais multifuncionais, que combinem facilmente atividades de grupo, de plenário e individuais. Os ambientes mais abertos, integrados, amplos, agradáveis, e precisam estar conectados em redes sem fio, para uso de tecnologias móveis, porém com uma internet que suporte conexões simultâneas necessárias.

Constata-se que as modificações provocadas pelo avanço da tecnologia exigem uma maior

qualidade na formação docente e, consequentemente, uma maior exigência em sua prática. Desse modo, não basta capacitar o professor para as tecnologias. É necessário garantir uma formação para um posicionamento crítico diante dessa realidade. Assim, espera-se que as tecnologias sejam integradas aos processos de formação continuada de professores, multiplicando informações e acenando para novos rumos no cenário sócio educativo. (OLIVEIRA, 2001; GOMES; VERMELHO, 2001; GOMES, 2012).

Em nenhum momento discorda-se do fato de que as questões metodológicas, técnicas não

sejam relevantes, entretanto, como ressalta Freire (1996) a educação não é só uma questão de métodos e técnicas, essa passa pela questão do estabelecimento de uma relação diferente com o conhecimento e com a sociedade. Uma das principais tarefas da educação, desde essa perspectiva, seria o estímulo à crítica. Proporcionar que as pessoas adquiram uma visão crítica que lhes permitam “ler” a sua própria realidade, que aprendam a razão de ser dos fatos que elas descobrem, para que possam, se não concordarem, fazer algo a respeito, agir, mobilizarem-se.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 51 de 145

Considerações Finais Pode-se considerar com base neste estudo bibliográfico, que a aplicação das metodologias

ativas no curso de graduação em enfermagem, assim com nos demais cursos de nível superior, são possíveis, porém devem considerar-se: formação do docente, estrutura física adaptadas, experiências, domínio, participação ativa dos acadêmicos, práticas didáticas, ética, intencionalidades, sistematização e flexibilidade no processo de ensino-aprendizagem, para instigar o estudante mediante problemas, pois assim ele tem a possibilidade de refletir e posicionar-se de forma crítica.

A sociedade tecnológica e globalizante da pós-modernidade precisa de profissionais com

grandes operacionalidades de pensamento, com habilidades e competências de comunicação, abstração, integração, entre outras. Assim, o professor do novo tempo deve buscar competências e desenvolver habilidades frente a sua própria formação, visto que diante dos novos desafios presentes no ensino-aprendizagem, em que o conhecimento que se transforma a cada instante, torna-se necessário o desenvolvimento de novos hábitos e de atitudes frente à nova realidade social e humana. Para reconstruir a sua formação, o professor deve repensar a sua prática, buscando competências pedagógicas na sua própria prática através de uma reflexão sobre a mesma.

Considerando o anterior recomenda-se uma pesquisa descritiva, quanti-qualitativa de

campo sobre as características das metodologias ativas aplicadas pelos professores do curso de graduação em enfermagem do ITPAC durante o ano de 2017. Referências ALMEIDA, M. E. B. Integração de currículo e tecnologias: a emergência de web currículo. Anais do XV Endipe – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino. Belo Horizonte: UFMG, 2010. BASTOS, A. B. B. Interações e desenvolvimento no contexto social da creche à luz de Henri Wallon. 1995.Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1995. BERBEL, N. A. N. As metodologias ativas e a promoção da autonomia de estudantes.Semina: Ciências Sociais e Humanas, v. 32, n.1, p. 25-40, 2011. Disponível em:<http://www.proiac.uff.br/ sites/default/files/documentos/berbel_2011.pdf >. Acesso em:07 fev. 2017. CORRÊA, H. L. Teoria geral da Administração – Abordagem Histórica da Gestão de Produção e Operações. São Paulo: Atlas, 2003. CYRINO EG, TORALLES-PEREIRA ML. Trabalhando com estratégias de ensino-aprendizado por descoberta na área da saúde: a problematização e a aprendizagem baseada em problemas. Cad Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(3):780-788, 2004. DAVIS, M. M.; AQUILANO, N. J. & CHASE, R. B. Fundamentos da Administração da Produção. 3. ed. São Paulo: Artmed, 2008. DEBALD, Blausius Silvano. A docência no ensino superior numa perspectiva construtivista. In: SEMINÁRIO NACIONAL ESTADO E POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL. Cascavel-Pr, 2003. FERNANDES, Cleoni. À procura da senha da vida-de-senha a aula dialógica? In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org.). Aula: gênese, dimensões, princípios e práticas. Campinas: Papirus, 2008. p.145-165. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GOMES, P. V.; VERMELHO, S.C. A Experiência da PUC PR na implantação das tecnologias de informação e comunicação no ensino superior. Colabora – Revista Digital da CVA-RICESU, Santos, SP, V.1, N. 1, ago. 2001. KRAJEWSKI, L.; RITZMAN, L. & MALHOTRA, M. Administração de Produção e Operações. 8. ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2009. LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de Metodologia Científica. 5ª Edição. São Paulo- SP.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 52 de 145

Editora Atlas. Ano 2007. LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994 MITRE, SM et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais.Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro; 2133-2144, 2013. NOVAK, G.; PATTERSON, E.; GAVRIN, A. & CHRISTIAN, W. Just-in-time teaching: Blending active learning with web technology.Upper Saddle River: Prentice Hall, 1999. OLIVEIRA, M. R.N. S. Do mito da tecnologia ao paradigma tecnológico; a mediação tecnológica nas práticas didático-pedagógicas. In: Revista Brasileira de Educação. [online]. 2001, n.18, pp. 101-107. PINTO, A. S. S.; BUENO, M. R. P.; SILVA, M. A. F. A.; SELLMAN, M. Z. & KOEHLER, S. M. F. Inovação Didática - Projeto de Reflexão e Aplicação de Metodologias Ativas de Aprendizagem no Ensino Superior: uma experiência com “peer instruction”. Janus, Lorena, ano 6, n. 15, 1jan./jul., 2012, pp.75-87. RIBEIRO, Luis Roberto C. et al; Uma experiência com a PBL no ensino de engenharia sob a ótica dos alunos. São Paulo: COBENGE, 2003. SACRISTÁN, J. Gimeno & PÉREZ GÓMEZ, A. I. Compreender e transformar o ensino. trad. Ernani F. da Fonseca Rosa. 4a Ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998. SOBRAL, F. R. & CAMPOS, C. J. G. Utilização de metodologia ativa no ensino e assistência de enfermagem na produção nacional: revisão integrativa. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v.46, n.1, Feb. 2012, pp.208-218. VALENTE, J. A. Comunicação e a Educação baseada no uso das tecnologias digitais de informação e comunicação. Revista UNIFESO – Humanas e Sociais, Vol. 1, n. 1, 2014, pp. 141- 166. ZANOLLI M. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na área clínica. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC, organizadores. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Educação Médica; 2004. p. 40-61. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 53 de 145

PARADIGMAS EDUCACIONAIS NA ATUAÇÃO DE PROFESSORES NA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: UM ESTUDO DE CASO

Keyla Christina Almeida Portela15 Karin Claudia Nin Brauer16

Resumo

O presente trabalho teve por objetivo verificar qual o paradigma educacional utilizado pelos professores que atuam no curso Superior de Tecnologia de Sistemas para Internet, ofertado pela Universidade Aberta do Brasil - UAB, do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Mato Grosso - IFMT. Como base teórica utilizou-se o viés da complexidade (MORIN (1999,2000, 2002, 2011); PETRAGLIA (2000), MORAES (2008) e BEHRENS (2006, 2010)) e da abordagem tradicional (BEHRENS (2006, 2010); BEHRENS, FERREIRA e CARPIM (2010); FREIRE (1983)). A metodologia utilizada foi o estudo de caso. Para iniciar o processo de busca de dados, foi aplicado um questionário aos professores.Concluiu-se que embora as respostas do questionário indiquem uma atuação voltada para o paradigma da complexidade, no confronto com as análises dos fóruns, percebeu-se que nem sempre o professor realmente atua dentro dos princípios desse viés. Palavras-chave: educação à distância, paradigmas educacionais, estudo de caso.

Abstract

The present study aimed to ascertain what educational paradigm is used by teachers working in the course of Internet Systems Technology, offered by the Open University of Brazil - UAB, Federal Institute of Education Science and Technology of Mato Grosso - IFMT. As a theoretical basis, we used the complexity principles (MORIN (1999, 2000, 2002, 2011); PETRAGLIA (2000), MORAES (2008) and BEHRENS (2006, 2010) and the traditional approach (BEHRENS (2006, 2010); BEHRENS, FERREIRA e CARPIM (2010); FREIRE (1983). The methodology used was the case study. To start the process data search, a questionnaire was given to teachers. We concluded that although the questionnaire responses indicate performance with view toward the complexity paradigm, in comparison with the analysis of the forums realize that is not always the teacher actually operates within the complexity principles.

Key-words: distance education, educational paradigms, case study.

Introdução Atualmente o uso das ferramentas da educação a distância (EaD) está sendo empregado

com mais ênfase nas novas propostas pedagógicas, ou seja, no processo de ensino aprendizagem. Fato que remete a uma atualização sobre estas interfaces, em outras palavras, os professores precisam inteirar-se com diferentes tipos de formações ligadas a educação a distância e as novas interfaces, também conhecer abordagens que atendam as reais necessidades dos alunos e dos próprios professores.

15 Graduada em Secretariado Executivo pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e licenciada em Letras pelo Centro Universitário de Varzea Grande (UNIVAG). Mestre em Educação pela Universidade de Lisboa – Portugal. Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). 16 Graduada em Letras Português- Inglês pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Especialista em Língua Inglesa pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Mestre em Letras pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 54 de 145

Os professores, quando iniciam seus trabalhos na modalidade à distância, enfrentam uma

série de desafios como o uso de aplicativos diferentes sem ter o devido treinamento. Estes precisam enfrentar as novas interfaces, por vezes desconhecidas, em uma educação mediada e dependente do uso de tecnologias da informação e comunicação (LAPA e PRETTO, 2010). Assim, é relevante levar em consideração as necessidades destes profissionais e possibilitar inter-relações na educação distância.

Outro fator importante na EaD é observar que a relação entre professor e aluno ocorre

com o distanciamento físico, ou seja, estão em espaços diferentes, sendo o professor fundamental para proporcionar um ambiente de interação e aprendizagem possibilitando o desenvolvimento de um ambiente agradável. Deste ambiente os alunos poderão participar utilizando-se da tecnologia e dos recursos disponibilizados de forma a propiciar a eles a construção do conhecimento de forma colaborativa e a autonomia destes neste processo de ensino e aprendizagem e a reflexão sobre as constantes mudanças ocorridas em seus processos.

Assim, é preciso desenvolver ambientes que oportunizem a aprendizagem colaborativa,

possibilitando aos alunos que interajam e construam o seu conhecimento respeitando e observando os diferentes estilos de aprendizagem e desenvolvendo-se tanto individualmente como em grupo. Para desenvolver este tipo de aprendizagem e ambiente que apresentam características do viés complexo (MORIM, 1999, 2000, 2002, 2011), os professores precisam estar capacitados para atuar na modalidade à distância e também conhecer o viés da complexidade.

Neste trabalho buscou-se verificar qual é o paradigma educacional utilizado pelos

professores que atuam em um curso superior de tecnologia a distância do Instituto Federal de Mato Grosso. Para atingir o objetivo proposto, foi acompanhada a atuação de 3 professores, na plataforma Moodle, no 2º semestre de 2016, de um curso tecnológico ofertado pela Universidade Aberta do Brasil no IFMT, pretendendo identificar o paradigma educacional em que eles se baseiam para o processo de ensino e aprendizagem.

A pesquisa fundamentou-se na teoria da complexidade conforme os autores Morin (1999,

2000, 2002, 2011), Petraglia (2000), Moraes (2008) e Behrens (2006, 2010) e no que remete a aspectos levantados em relação a abordagem tradicional em estudos de Behrens (2006, 2010) Behrens, Ferreira e Carpim (2010) e Freire (1983).

Com base nesses alicerces teóricos e procurando atender ao objetivo proposto, a pesquisa

buscou responder a seguinte pergunta: Qual paradigma educacional em que os professores se baseiam no processo de ensino e aprendizagem na educação a distância do curso Superior de Tecnologia de Sistemas para Internet do? Referencial Teórico O paradigma tradicional

Muitos professores basearam-se na docência conservadora de uma visão reducionista

incumbida de propagar estruturas educacionais que criadas no século XVIII, conhecido também como paradigma newtoniano-cartesiano. O paradigma tradicional é fundamentado no conhecimento “objetivo”, simplificador, resultante da experimentação e da observação controlada, e busca o critério de verdade na experimentação (sensação) e na lógica matemática (razão).

No século XX a sociedade caracterizou-se como uma "produção de massa" no qual o

ensino educacional era apenas uma prática pedagógica de reprodução do conhecimento, ou seja, priorizava a transmissão de informações sem significado para o aluno, era apenas o ensinar e não o aprender (BEHRENS; SANT´ANA, 2003), dando ênfase também a um método tradicional.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 55 de 145

Segundo Behrens (2006, p.103) o século XX caracterizou-se por uma sociedade “alicerçada

nos pressupostos do pensamento newtoniano-cartesiano, a ciência contaminou a educação com um pensamento racional, fragmentado e reducionista". Os paradigmas conservadores foram utilizados por muitos professores, assim como também são usados por alguns ainda hoje. Estes paradigmas utilizam modelos antigos de aprendizagem os quais enfatizam apenas o fazer e a reprodução do conhecimento.

É importante salientar que as abordagens conservadoras eram baseadas apenas em

repetição, reprodução das ações dentro de uma visão mecanicista. Assim, a visão conservadora privilegiava o adestramento intelectual do aluno, e não levava em consideração o Ser no processo evolutivo que necessitava desenvolver sua inteligência múltipla. Para Moraes (1997, p.43) o método reducionista: foi enraizando em nossa cultura e levou-nos a um processo de alienação e a uma crise planetária de abrangência multidimensional, traduzidos por processos de fragmentação, atomização e desvinculação. Em consequência, a cultura foi ficando dividida, os valores, cada mais individualizados e os estilos de vida mais patológicos.

A atuação do professor neste paradigma tradicional era a transmissão do conhecimento

como produto pronto e acabado, do qual o conhecimento era visto como absoluto e inquestionável, tendo uma relação vertical com os alunos, o que distanciava o professor dos alunos, pois ele se mantinha em um pedestal, como o detentor do saber, com postura rigorosa, objetiva e disciplinar. Além disso, o professor apenas informava e conduzia os alunos para a repetição e reprodução do conhecimento.

A atuação dos alunos neste modelo de paradigma tradicional era de um ser passivo que

apenas reproduzia o conhecimento e era completamente submisso, tendo que memorizar definições e conceitos com a orientação do professor. Não havia uma autoreflexão por parte dos alunos e esta atitude também não era incentivada, questionamentos por parte dos alunos não eram considerados e não deveriam ocorrer.

Paulo Freire em sua obra Pedagogia do Oprimido traz uma concepção de educação conhecida

como "educação bancária" que dialoga com o paradigma tradicional, pois é uma educação antidialógica a qual possui uma contradição entre educador-educando. Conforme Freire (1983, p.36), a educação bancária possibilita aos estudantes estarem “no mundo e não com o mundo e com os outros”. Eles seriam espectadores e não transformadores do mundo. Esta educação concebe a consciência como algo especializado e não aos homens como corpos conscientes.

Para Freire (1983, p.67) a concepção “bancária de educação não leva em conta a

experiência do educando e o vê apenas como depósito de informações”, ou seja, o aluno deve esvaziar-se de suas experiências e entrar em sala de aula pronto para receber os saberes do professor.

O modelo educacional tradicional possui uma visão de papéis definidos na perspectiva de

que o educador é o sábio, “dono do conhecimento” enquanto o educando é apenas aquele que não sabe, ou seja, o educador é quem educa, ensina, disciplina, corrige e os educandos ao contrário, não sabem, apenas escutam, são passivos e disciplinados.

Contudo, é importante mencionar que o paradigma newtoniano-cartesiano foi útil e

necessário para orientar o conhecimento e os caminhos da humanidade até o presente. Agora, no entanto, ele entende as necessidades dos professores e alunos perante as novas realidades e consequentemente as novas exigências.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 56 de 145

O paradigma da complexidade O advento das novas tecnologias da comunicação e da educação envolve mais do que

simplesmente lidar com elas ou utilizá-las em seu cotidiano, é necessário estar preparado para um processo de mudança com as novas mídias e um novo paradigma educacional que não enfatize saberes fragmentados, compartimentados, redutores e inacabados. É necessário um paradigma que propõe uma visão aproximada da realidade, complexa para condizer e responder as necessidades de um mundo que vive repleto de incertezas, contradições, paradoxos, conflitos e desafios. O mundo precisa de conforme os autores Behrens, Carpim e Ferreira, (2010) de um paradigma inovador que busca então estimular a reflexão do aluno, o seu espírito investigativo, valorizando suas inteligências múltiplas, oportunizando um relacionamento dialógico com o professor, os colegas, a escola e o ambiente profissional. Possibilita também construir seu próprio conhecimento, levando o aluno a ser respeitado em suas diferenças individuais, considerados um ser únicos, valioso e com talentos próprios (BEHRENS, CARPIM e FERREIRA, 2010, p.55).

O atual momento necessita de algo complexo, no sentido originário do termo complexus: o

que é tecido junto (MORIN, 2000), apontando para o paradigma da complexidade que faz com que a sociedade e a educação assumam uma postura de mudança. Este novo paradigma, também conhecido como paradigma emergente, tem como princípio a visão do homem como um ser integral e complexo. Além disso, a complexidade está presente em qualquer experiência vivida, seja ela individual ou coletiva.

O paradigma da complexidade resultou na superação do paradigma tradicional também

conhecido como paradigma simplificador ou reducionista no século XX, que passou por várias revoluções revelando suas limitações do mundo mecanicista, contrapondo-se ao saber generalista e globalizante. No entanto, o paradigma da complexidade não se caracteriza como substituto, mas como complementar, do qual reconhece os aspectos positivos, aceita as incertezas, une e busca as relações necessárias e interdependentes de todos os aspectos da vida humana.

No paradigma da complexidade o saber não é fragmentado, não compartimentado, não

redutor, há o reconhecimento do inacabado e da incompletude de qualquer movimento (MORIN, 2002). O conhecimento é visto, percebido e coproduzido por meio de diálogos com o mundo e essa ideia ainda é reforçada por Moraes (2006, p. 88) quando afirma que o “pensamento e o conhecimento, sob o viés da complexidade, pressupõem a participação do indivíduo e sua interação com o objeto, o meio físico e social”.

Além disso, a complexidade fundamenta-se na negação da simplificação e pressupõe a

intencionalidade de dialogar com as imprecisões, os equívocos, as diversidades, por meio dos princípios do pensamento complexo. Trata-se de um pensamento que integra os diferentes modos de pensar, considerando todas as influências recebidas, internas e externas, e ainda, enfrenta a incerteza e a contradição, sem deixar de conviver com a solidariedade dos fenômenos existentes.

Na complexidade a questão educacional é tida como um todo sistêmico (Tescarolo, 2004),

como partes interligadas entre si. O professor é visto como um sistema que integra um sistema maior, se relacionando com outros tantos sistemas, com o objetivo de promover organizações e reorganizações na sociedade, um movimento de recursividade e circularidade do conhecimento.

Uma vez explicado o conceito da complexidade, outros fatores que precisam ser pautados

são os princípios que a regem, pois tratam-se de instrumentos de articulação, que evitam a linearidade habitual e enriquecem a capacidade de encontrar soluções, desenhar cenários e tomar decisões. Recuperam uma visão deixada ao longo de quatro séculos fundamentados no pensamento fragmentado (MARIOTTI, 2007).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 57 de 145

Para Moraes (2008. p.96), estes “princípios funcionam como instrumentos ou categorias de pensamento que auxiliam na compreensão do que seja a complexidade e ajudam também a implementar esta mudança no pensamento, transformando-se de simples e linear para complexo”. Eles são: princípio recursivo, princípio dialógico e princípio hologramático que atuam concomitantemente, complementarmente e interdependente.

O princípio da recursividade está diretamente relacionado às interações entre causa e efeito,

ao processo de autorregulação, mas vai além: liga-se ao processo de auto-organização, caracterizado por uma espiral evolutiva do sistema.

O princípio dialógico sinaliza que as contradições existem e são complementares. Para

Morin (2002, p.300) a “unidade complexa entre duas lógicas, entidades ou instâncias complementares, concorrentes e antagônicas que se alimentam uma da outra, se completam, mas também se opõem e combatem”.

O princípio hologramático possibilita religar os saberes, perceber as contradições e as

relações que se estabelecem entre as partes e o todo e vice-versa. Para Morin (2002, p.302) “o princípio hologramático significa que não apenas a parte está num todo, mas que o todo está inscrito, de certa maneira, na parte”.

Esses três princípios – recursivo, dialógico e hologramático – são três expressões da mesma

ideia, que é o fundamento da complexidade. É a ideia de que a totalidade não é apenas justaposição de localidades separadas.

Dessa maneira, os professores que se utilizam destes princípios utilizam das contradições

para intervir e provocar aprendizagens em seus alunos em sala de aula religando os saberes, além de realizar o movimento de construção de conhecimento por meio de um movimento circular. Além disso, fazem entender que as percepções individuais contribuem para uma maior compreensão do assunto e, ainda mais, procuram possibilitar aos seus alunos a ideia de complementaridade, no sentido de cooperação, e não da oposição em si mesma que leva ao sentido da competitividade.

Metodologia Para esta pesquisa foi utilizado à abordagem metodológica estudo de caso. O estudo de

caso é considerado “híbrido” por, geralmente, utilizar uma gama de métodos para coleta e análise de dados ao invés de ficar restrito a um único procedimento. Yin (2001, p. 32) define estudo de caso como "uma investigação empírica que observa um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos".

Para Gil (2009, p. 75), o estudo de caso é “utilizado quando o professor-pesquisador deseja

focar um determinado evento pedagógico, componente ou algo relativo à sua prática em sala de aula”. Ainda para este autor, ele relata que, nos estudos de caso, o pesquisador foca sua atenção para uma única entidade ou caso oriundo de seu próprio meio profissional. Os estudos de caso estão centrados na descrição e explicação de um fenômeno único, permitindo que pesquisadores encontrem respostas para diferentes tipos de perguntas cujas técnicas correlacionais são apropriadas.

A pesquisa foi realizada no Instituto Federal de Mato Grosso, especificamente no curso

Superior de Tecnologia de Sistemas para Internet, ofertado por meio da Universidade Aberta do Brasil, tendo como participante três professores que ministram aulas no curso. Os procedimentos de coleta e interpretação desta pesquisa foram realizados por meio da aplicação de um questionário aos docentes visando descobrir qual o paradigma que utilizavam em sua prática pedagógica. Outra etapa foi concretizada pela observação das aulas dos três professores, na plataforma Moodle,

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 58 de 145

buscando identificar o paradigma educacional utilizado por eles no processo ensino aprendizagem pretendendo confrontar o questionário respondido com a prática em si.

Resultados e discussões Primeiramente, três professores ativos que estavam ministrando aulas no curso Superior de

Tecnologia de Sistemas para Internet foram contactados, no segundo semestre de 2016, com o intuito de convidá-los a fazer parte da presente pesquisa. Posteriormente, foi enviado via e-mail um questionário para ser respondido por estes abordando questionamentos em relação as suas práticas pedagógicas no ambiente virtual de aprendizagem (AVA) da plataforma Moodle.

O questionário aplicado foi elaborado de forma clara, objetiva e diretamente vinculada ao

objetivo definido para este trabalho. O propósito do questionário foi identificar qual o paradigma educacional que os professores utilizam em suas aulas na educação a distância. O questionário produzido foi composto de oito questões abertas, além de questões para identificar o perfil e formação destes professores.

Leopardi (2001, p.208) diz que as “questões de um questionário devem obter informações

sobre o problema em si a partir das variáveis existentes em seu estudo”. Assim, a elaboração das questões seguiu alguns critérios, isto é, as questões foram organizadas de formas alternadas vinculadas aos paradigmas tradicionais e complexo e desta forma, relacionadas ao objetivo da pesquisa buscando identificar qual o paradigma educacional que os professores estudados utilizavam em suas aulas na educação à distância.

Dessa maneira, quatro questões foram elaboradas e pensadas dentro dos princípios da

complexidade e as outras três questões dentro das ideias do paradigma tradicional e uma questão mais aberta para verificar as ideias dos professores sobre um curso à distância e por meio destas respostas observar se eles se baseavam nas ideais do paradigma da complexidade ou tradicional.

Na questão um buscou-se informações sobre recursividade, que é um indicativo do

paradigma da complexidade, bem como nas questões 3, 5 e 7 que trazem a ideia de incompletude, cooperação por meio de contribuições e aceitar o conhecimento prévio do aluno que são alguns dos princípios do paradigma da complexidade. Já as questões 2, 4 e 6 foram elaboradas tendo como indicativos o paradigma tradicional, no qual o aluno apenas aprende por meio da reprodução do conhecimento, executando apenas as tarefas propostas, sem interação, contribuindo com suas experiências, bem como a elaboração dos conteúdos por sequência que não permite a recursividade para poder sanar qualquer dúvida do aluno.

Também é importante salientar que o questionário contou com um texto explicativo para

os professores explanando a finalidade da pesquisa. Após a aplicação do questionário aos professores foram realizadas cópias (print screen) de seus chats ou fóruns na plataforma Moodle para poder corroborar as respostas do questionário com a prática em sala de aula. Com as repostas do questionário, foi possível obter o perfil destes professores, os quais foram descritos a seguir:

Prof1 está com 27 anos, graduado em direito, com mestrado em Ciência Políticas. Trabalha

na educação a distância a um ano. Prof2 está com 51 anos, graduado em Matemática com especialização em Matemática

Superior. Possui seis anos de experiência na educação a distância. Prof3 tem 39 anos, graduado em Tecnologia em Rede de Computadores, com mestrado

em Engenharia Elétrica. Trabalha na educação a distância a três anos.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 59 de 145

Na questão um do questionário buscou-se saber como os professores retomavam os conteúdos ensinados antes de iniciar um novo conteúdo. Os três professores responderam que eles retomam alguns pontos ou tópicos que foram abordados em outra aula. Nesta questão, então, é possível encontrar o princípio da recursividade, ou seja, os professores buscam fazer um "vai e vem" do conteúdo, retomando o que foi exposto na aula anterior.

Assim, nesta questão, encontramos o pensamento complexo nas respostas dos professores,

pois eles buscam a aprendizagem e a construção do conhecimento por meio do processo recursivo, ou seja, um “movimento espiral do saber, que possibilita rever, repensar uma situação vista”, já conhecida, mas com um olhar diferente que contempla as diferenças (MORIN, 1999, p.33).

Na questão dois, buscou-se identificar se os professores procuravam "o saber do aluno pela

reprodução do conhecimento", aqui todos os professores responderam que SIM, deixando claro que com relação ao saber do aluno eles ainda pensam apenas na reprodução do conhecimento como um adestramento do aluno.

Na questão acima, ficou nítido a questão do paradigma tradicional na atitude dos

professores, pois analisaram a aprendizagem e o saber gerado apenas na reprodução do conhecimento, todo estruturado e institucionalizado. Rosalini (2003) diz que toda didática tradicional dificilmente proporciona oportunidades que possibilitem um pensamento não fragmentado e que muitas escolas são marcadas pelo conservadorismo cultural.

Na questão três, tentou verificar de que maneira os professores esclareciam as dúvidas dos

alunos e apenas dois professores (prof1 e prof3) conseguiram expor como sanavam as dúvidas dos alunos, que era por meio do canal de chat, webconf ou fórum. Aqui nota-se o interesse do professor em auxiliar e ajudar os alunos a resolverem os problemas e dificuldades em algum conteúdo indo ao encontro com a complexidade.

Na questão quatro, pretendeu-se identificar se para o professor era mais importante que o

aluno executasse apenas as tarefas propostas. Os professores um e dois foram claros em dizer que não, pois o mais importante para eles era que os alunos buscassem tirar dúvidas. No entanto, o professor três, respondeu que os alunos também deviam executar as tarefas. Neste caso percebemos que o professor três possui uma abordagem metodológica voltada mais para o paradigma tradicional, pois dava mais ênfase na execução das atividades.

A questão cinco teve a intencionalidade de saber se os professores aceitavam as

contribuições dos alunos no ambiente virtual de aprendizagem (AVA) e todos os professores responderam que sim. Este comportamento dos docentes volta-se para o paradigma complexo, sendo que eles aceitam as contribuições dos alunos que auxiliam na compreensão do assunto, deixam os alunos com o sentimento e a ideia de complementaridade dando sentido de cooperação.

Na questão seis pretendeu-se identificar de que maneira os professores organizavam seus

conteúdos, ou seja, se eles o faziam por sequência. Nesta questão, todos os professores responderam que organizam seus conteúdos por sequência, indo ao encontro aos princípios do paradigma tradicional, isto é, uma linearidade dos conteúdos. Moraes (2006, p. 201) afirma que essa “linearidade aprisiona, pois exige a busca incessante por sequência no planejamento, nos conteúdos, nos temas”. É um passo a passo, “seguindo um único caminho que vai, por exemplo, do A ao F, mas tendo que passar e respeitar a sequência do A → B → C→ D → E, para se chegar ao F” (MORAES, 2006, p. 215), ou seja, os alunos não seguem a multidirecionalidade proposta no paradigma da complexidade.

A questão sete teve por objetivo saber como os professores lidavam com o conhecimento

prévio dos alunos. Nesta questão, todos os professores demonstraram preocupação em aceitar e valorizar o conhecimento adquirido de seus alunos como sendo algo válido, que pode ser

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 60 de 145

aproveitado nas aulas, além de ser um ponto de partida para construir conhecimentos, desenvolver habilidades e atitudes. Assim, as ideias dos professores dialogam com o paradigma da complexidade, além disso, complexo é a junção dos elementos já estudados. Freire (1983) diz que professor deve considerar os conhecimentos prévios dos alunos para trabalhar os conteúdos e educar exige respeito aos saberes dos educandos. Já Morin (2011, p.39) diz que é por meio do “conhecimento pertinente que o indivíduo consegue localizar toda e qualquer informação em seu contexto”.

Na questão oito, última do questionário, procurou-se saber dos professores qual era a

definição de bom curso à distância. Os professores tiveram ideias semelhantes, considerando que para eles, um bom curso é aquele que dá suporte aos aluno para desenvolver conhecimento e espaço para a interação e construção dos saberes. Ainda afirmaram que o curso deve fornece todas as ferramentas para que se aprenda e atue na educação a distância. Nesta questão, notou-se que os professores tiveram a ideia de um ensino não fragmentado voltado para as mudanças e atualidades.

Diante das análises das questões, foi possível observar que as respostas dos três professores

estudados estão voltadas para os princípios educacionais do paradigma da complexidade. Análise dos fóruns

Nesta seção serão apresentados alguns trechos dos fóruns dos professores, os quais foram

observados com o intuito de compreender suas atuações para comparar com as questões respondidas. Desta forma, foi identificado se as respostas do questionário têm coerência com o comportamento dos professores em um ambiente virtual de aprendizagem (AVA).

FÓRUM DO PROFESSOR UM Interação do Prof1: Caros alunos, Considerando as premissas estabelecidas no material propostos, conforme consta do Guia de Estudos, bem

como das informações postadas no módulo 1 e 2, discutam acerca da seguinte reportagem: "O petróleo foi o motivo da guerra, admite Wolfowitz".Bom debate!

Participação do aluno um: Vindo do país que se acha o mais poderoso e o mais rico em armas e soldados, os mais tudo, realmente não

me surpreende essa declaração. Participação do aluno dois: Eu acredito que os Estados Unidos são capazes de qualquer atrocidade para tirar tudo e todos do seu

caminho, um exemplo disso é a guerra no Iraque onde eles fizeram de tudo para conseguir o controle desse País. Não duvido que através de falsas ameaças eles invadam o nosso País para tomar a nossa Amazônia que representa um terço da reserva florestal do mundo.

Participação do aluno três: É realmente todos nós tínhamos uma certa desconfiança sobre o verdadeiro motivo do ataque ao Iraque, pois

o motivo que alegavam, era de o país ter armas de destruição em massa que poderia levar o mundo a um ataque perigo, e que nunca foram encontradas estas armas, acabando suas teses sobre este motivo.

Interação do Prof1: Prezados, Concordo plenamente com a visão imperialista e dominadora dos E.U.A. que foi defendido até aqui,

contudo vou colocar uma pimentinha nessa discussão...Leiam atentamente as seguintes reportagens: a) O imperialismo brasileiro na América do Sul;b) América do Sul: integração ou dominação? E ai moçada, será que o Brasil pratica atos similares aos praticados pelos E.U.A? Boa discussão.

Percebe-se que a atuação do professor 1 não está fragmentada. Na segunda interação, o

professor busca a participação dos alunos com outra questão fazendo com que eles pensem e sejam críticos em suas reflexões. Essas atitudes vão ao encontro do paradigma da complexidade, pois este paradigma busca a participação do indivíduo e a sua interação com o objetivo, meio físico e social.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 61 de 145

Morin (2000, p. 64-65) diz que o “planeta exige um pensamento policêntrico capaz de apontar o universalismo, não abstrato, mas consciente da unidade/diversidade da condição humana”. Educar tendo este pensamento é a finalidade da educação do futuro, que deve trabalhar na era planetária, para a identidade e a consciência terrenas.

Assim, pôde-se analisar que as questões do questionário respondidas por este professor

conferem com sua atuação no ambiente virtual de aprendizagem, pois o professor fez uma retomada do conteúdo com uma concordância e, ao mesmo tempo, estimulou a participação dos alunos dando prioridade à discussão, dando ao aluno a liberdade para argumentar e construir novas ideias.

FÓRUM DO PROFESSOR DOIS Interação do Prof2: Envio de atividade Participação do aluno um: É postei uma duvida, e não obtive resposta, amanhã (02/07) eu posto as atividades digitalizadas, se não

for assim o envio, paciência. Interação do Prof2: Pode postar digitalizadas as atividades. Neste caso, o professor dois tem uma atuação mais voltada para o paradigma tradicional,

não buscou uma interação com o aluno visando sanar as dúvidas. O professor estava apenas preocupado com a execução das atividades. Corroborando suas respostas no questionário, o professor não buscou sanar as dúvidas do aluno.

FÓRUM DO PROFESSOR TRÊS Interação do Prof3: No Texto Base da Unidade 1, é abordado o tema componentes de uma rede de computadores, tais como:

Placas de redes, Servidor, Clientes, Recursos, Protocolos e Cabeamento. Quanto a esse componente vamos aprofundar um pouco nosso estudo.

1) Cite um TIPO ou uma CARACTERÍSTICA desses componentes de rede citados no Texto Base.

Por exemplo: ==> Placas de Redes (existem as placas de rede Ethernet 10 Mbit, 10/100 Mbits e as placas Gigabit

10/100/1000 Mbits; ==> Servidores (HP ML115: Dual-Core AMD Athlon™ 2.3GHz, HP 1GB DDR Memory, HP

4 Port SATA Controller, HP 160GB 3G SATA Non-Hot Plug 7,200rpm 3.5", HP SATA DVD-ROM) Neste servidor você não pode trocar (tirar/colocar) os discos rígidos sem desligar o Servidor. Isto fica evidente pela característica "Non-Hot Plug". Este fórum é um método de avaliação. Suas observações contarão como nota a ser avaliada. Portanto é obrigatória a participação.

Aguardo as contribuições de vocês... Participação do aluno um: É um micro ou dispositivo que acessa os recursos oferecidos pela rede. Ao analisar os fóruns, percebeu-se que a pessoa que fazia a interação com os alunos não

era o professor da disciplina, mas sim, o tutor da disciplina. Diante disso, não foi possível comparar as respostas do questionário do professor três com

sua atuação no ambiente virtual, ficando assim, fora do escopo do estudo de caso, sendo desconsiderado.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 62 de 145

Conclusão O caminho trilhado nesta pesquisa permitiu analisar qual paradigma educacional que os três

professores baseavam-se no processo ensino aprendizagem na educação a distância, ou seja, o paradigma tradicional e o complexo.

Após as análises das questões dos questionários juntamente com as análises dos fóruns

realizados por estes professores com seus alunos, foi possível concluir que apenas um professor (prof1) baseou-se nos princípios da complexidade, pois buscou a interação, inovação ao desenvolver atividades capazes de reunir os saberes, contextualizá-los, reconhecendo o singular e o universal com seus alunos.

Morin (2000) comenta que o paradigma da complexidade sustenta o princípio do saber do

conhecimento em relação ao ser humano, valorizando a sua iniciatividade, criatividade, detalhe, complementaridade, convergência, complexidade. Segundo alguns autores teóricos, o ponto de encontro de seus estudos sobre este paradigma emergente é a busca da visão da totalidade, o enfoque da aprendizagem e a produção do conhecimento.

Já os outros dois professores (prof2) e (prof3), mesmo tendo respondido algumas questões

voltadas para a complexidade, seus comportamentos na plataforma não condizem com as respostas do questionário, ou seja, eles deram uma maior ênfase no paradigma tradicional.

Percebeu-se que um dos professores (prof2) dá mais importância às resoluções dos

exercícios. De acordo Freire (2004, p.77) "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção,” este processo se dá dinamicamente com a problematização dos temas abordados em aula.

É importante salientar que um dos professores (prof3) não foi possível comparar as

respostas das questões com seu comportamento na plataforma, pois era o tutor da disciplina que fazia a interação, assim ficamos apenas com as respostas do questionário.

Dessa maneira, concluiu-se que apenas um dos professores estudados baseou-se no

paradigma da complexidade enquanto que os outros dois professores ainda deram ênfase ao paradigma tradicional. Desta maneira, estes professores necessitam buscar uma educação que rompa com as fragmentações para mostrar as correlações entre os saberes, a complexidade da vida e dos problemas que existem atualmente. Caso contrário, será sempre ineficiente e insuficiente para os cidadãos do futuro (MORIN, 2000). Referências BEHRENS, M. A. Paradigma da Complexidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2006. ____. O paradigma emergente e a prática pedagógica. Petrópolis, Rj: 4.ed. Vozes, 2010 BEHRENS, M. A; CARPIM, L.; FERREIRA, J. L. Do paradigma tradicional ao paradigma da complexidade: um novo caminhar na educação profissional. B. Téc. Senac: R. Educ. Prof. Rio de janeiro, v.36, nº1, 51-59 p, 2010. BEHRENS, M. A.; SANT´ANA, E. L. Superação dos paradigmas conservadores na sociedade do conhecimento. Docência universitária na sociedade do conhecimento. Coleção Educação: teoria e prática, Curitiba, Pr, v.3, p. 15-30, 2003. GIL, A. C. Estudo de caso. São Paulo: Editora Atlas, 2009. FREIRE, P. A Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. ____. Pedagogia da autonomia. 29 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. LEOPARDI, M.T. Metodologia da pesquisa na saúde. Santa Maria: Pallotti, 2001. LAPA, A. PRETTO, N. D. L. Educação a distancia e precarização do trabalho docente. Revista em aberto, Brasília, v. 23, n.84, p. 79-97, 2010. MARIOTTI, H.. Pensamento complexo: suas implicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Atlas, 2007.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 63 de 145

MORIN, E.. Epistemologia da complexidade. In: Schnitman, D. F. Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 2011. ____. Por uma reforma do pensamento. In: PENA-VEJA, Alfredo NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. O Pensar Complexo: Edgar Morin e a Crise da Modernidade. Rio de Janeiro: Garamond, p. 21 – 24, 1999. ____. Os sete saberes necessários para educação do futuro. São Paulo: Cortez. 2000. ____. Cabeça Bem Feita. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002. ____. Introdução ao pensamento complexo. São Paulo: Editora Salina, 2011. MORAES, M. C. O paradigma educacional emergente. Campinas: Papirus, 1997 ____. Pensamento Eco-Sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. ____. Ecologia dos saberes: complexidade, transdisciplinaridade e educação: novos fundamentos para iluminar novas práticas educacionais. São Paulo: Antakarana/WHH-Willis Harman House, 2008. PETRAGLIA, I. C. Edgar Morin: A educação e a complexidade do ser e do saber. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. ROSALINI, A. M. D. Questionamentos acerca da didática tradicional para novos tempos com novos paradigmas. Lumen: revista de estudos e comunicações, São Paulo, v. 9, n. 21, p. 39-60, mai/ago, 2003. YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2001. TESCAROLO, R. A escola como sistema complexo: a ação, o poder e o sagrado. São Paulo: Escrituras Editora, 2004. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 64 de 145

REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DOCENTE

Liane Nair Much17 Kauana Martins Bonfada18 Daniele Fialho Pelizzaro19

Eduardo A. Terrazzan20

Resumo O presente trabalho é um relato circunstanciado de uma experiência que ocorreu no âmbito do Grupo de Pesquisa INOVAEDUC/NEC, da UFSM. Esta reflexão crítica tem por objetivo evidenciar a importância da reflexão dos professores sobre sua prática na busca de construírem um conjunto de saberes que os auxilie nas atividades pedagógicas cotidianas. Atualmente tem-se consolidado a visão de que a formação é permanente, ou seja, o professor precisa sempre estar estudando, aprendendo, construindo e reconstruindo seus saberes para auxiliar em sua prática profissional. Oportunizar situações de reflexão sobre a própria prática docente é favorecer a consolidação de novos saberes. Palavras-chave: Prática Docente. Prática Reflexiva. Saberes Docentes. Resumen El presente trabajo es un relato circunstanciado de una experiencia que ocurrió en el ámbito del Grupo de Investigación INOVAEDUC/NEC, de la UFSM. Esta reflexión crítica tiene por objetivo evidenciar la importancia de la reflexión de los profesores acerca de su práctica en la búsqueda de construyeren un conjunto de saberes que les auxilien en las actividades pedagógicas cotidianas. Actualmente tiene se consolidado la visión de que la formación es permanente, o sea, el profesor necesita estar siempre estudiando, aprendiendo, construyendo y reconstruyendo sus saberes para auxiliar en su práctica profesional. Crear situaciones de reflexión acerca de la propia práctica docente es favorecer la consolidación de nuevos saberes. Palabras-clave: Práctica Docente. Práctica Reflexiva. Saberes Docentes. Considerações Iniciais

O presente artigo foi elaborado a partir de reflexões e estudos realizados no âmbito do Grupo de Estudos, Pesquisas e Intervenções “Inovação Educacional, Práticas Educativas e Formação de Professores” (INOVAEDUC), que pertence ao Núcleo de Estudos em Educação Ciência e Cultura (NEC) do Centro de Educação (CE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Este trabalho tem por objetivo evidenciar a importância da reflexão crítica sobre a prática docente na construção dos saberes docentes. O estudo foi elaborado a partir da análise de aulas desenvolvidas durante o 1º SETIPAC 2016 (Semana de Estudo, Trabalho, Interação e Produção Acadêmico-Científico) que ocorreu no início do primeiro semestre de 2016.

17 Licenciada em Geografia pela Universidade da Região da Campanha (URCAMP). Professora da Rede Escolar Pública Estadual/RS. Aluna do Curso de Mestrado Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Maria. 18 Licenciada em Letras Habilitação Português e suas Respectivas Literaturas pela Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista de Iniciação Científica pelo Programa PROBIC/FAPERGS/PRPGP/UFSM. 19 Licenciada em Letras Habilitação Espanhol e suas Respectivas Literaturas pela Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista de Iniciação Científica pelo Programa PIBIC/CNPq/PRPGP/UFSM. 20 Doutor em Educação pela USP. Professor Associado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Coordenador do Grupo de Pesquisas INOVAEDUC.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 65 de 145

A formação do professor não é concluída ao final da formação inicial, ou seja, ao final da graduação. Esta é, como o próprio nome diz, a etapa inicial de sua formação, e se estende ao longo da sua vida profissional. A formação profissional deve ser permanente, pois a sociedade está em constante mudança/modificação, o que exige dos professores a busca por diferentes maneiras para se manterem atualizados, seja por meio de estudos, troca de experiências, debates, reflexões individuais e coletivas sobre as práticas docentes, entre outros meios. Para poder assim oferecer uma educação de qualidade aos seus alunos, isto é, criando estratégias de ensino-aprendizagem que favoreçam o protagonismo dos discentes.

Sabemos que para os alunos obterem um bom rendimento escolar, é necessária a

contribuição de todos: deles mesmos, de suas famílias e, claro, da escola. Para isso, a escola entra com a sua função social, pois ela representa a instituição que a humanidade elegeu para socializar o saber metódico, isto é, o lugar onde é obtido o conhecimento que estima ser necessário, principalmente, para as novas gerações, visando o processo de formação, dos homens como sujeitos históricos.

A docência é um trabalho cujo objeto não é constituído de matéria inerte ou de símbolos, mas de relações humanas com pessoas capazes e dotadas de certa capacidade de resistir ou de participar das ações dos professores. (TARDIF, LESSARD, 2012, p.35).

O trabalho docente está precedido por várias diretrizes. Assim, compreender o

desempenho do professor é refletir sobre as questões que intercalam a prática docente e o que possuem influência na representação de sua ação, como também investigar as ações do trabalho docente e ver como ele se relaciona com o agir profissional. Neste contexto onde os mais variados espaços desenvolvem práticas sociais, Franco (2002) faz um questionamento ao analisar os diferenciados conceitos de prática educativa, prática pedagógica e prática social e como esses conceitos se articulam, se diferenciam e se estruturam. Segundo a autora a definição desses termos não é uma questão semântica, mas sim pela sua relevância das inconstantes delimitações do fazer profissional dessas práticas.

Nas experiências vivenciadas pelo fazer pedagógico, se visa uma melhoria social e

intelectual dos alunos, pois os mesmos são capazes de reescrever sua própria história, e como consequência disso é que devemos compreender e identificar a diferença entre os tipos de práticas a partir de um critério que é a intencionalidade ou a não intencionalidade da prática. Logo, podemos dizer que uma prática educativa torna-se pedagógica quando é intencional e que toda prática docente é de certa forma uma prática pedagógica, pois carrega um alto grau de intenção.

Práticas educativas, com fins de formação, realizadas de modo formal, organizado e que carregam compromissos com a transmissão de boa qualidade de conhecimentos e da cultura com um todo, exigindo, portanto, profissionais qualificados para tanto, se caracterizam como práticas docentes (TERRAZZAN, 2007, p.152).

Assim, com o intuito de aprofundar seus conhecimentos e enriquecer sua prática docente,

muitos professores participam de seminários, cursos, palestras e oficinas, também, aprendem muito com colegas na própria escola, trocando materiais, ideias e experiências. No entanto, uma das mais importantes formas de aprendizagens e de mudanças nas atitudes profissionais é a reflexão sobre a própria prática. Por meio dela, o professor tem a oportunidade de analisar suas ações, melhorá-las, ou modificá-las. Infelizmente essa reflexão crítica sobre o próprio trabalho não é uma prática habitual para muitos professores. No entanto, Nóvoa (1995) defende que a formação profissional para ser considerada completa é necessário que os professores se assumam como protagonistas de suas formações, ou seja, os professores precisam tornar-se produtores da sua profissão.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 66 de 145

Prática Reflexiva

No Brasil a formação de professores inicia-se com curso de graduação em Licenciatura e estende-se ao longo da vida profissional do docente. Em virtude disso, diferentes autores ligados à área da educação, utilizam a expressão formação permanente, para se referir a formação docente, tendo em vista que ela ocorre ao longo da vida profissional do professor.

Durante muito tempo o professor era visto como o especialista de uma determinada área

do conhecimento (disciplina curricular), ou seja, como especialista do ensino/aprendizagem dos conteúdos específicos de um componente curricular. Atualmente defende-se que ele não é o detentor de todos os conhecimentos historicamente produzidos em sua área de formação, e consequentemente esse profissional assume novas funções, buscando cumprir seu papel que é o de proporcionar situações de construção de aprendizagens pelos educandos. Neste contexto, o professor ressurge como uma figura central do processo educacional, e com isso, sua formação fica em evidência. Para Soares (2001, p.93), “formar o professor não é apenas qualificá-lo em uma área específica, capacitá-lo teoricamente e metodologicamente para ensinar determinado conteúdo, mas é também formá-lo para enfrentar e construir a ação educativa escolar em sua totalidade”.

Desde a última década do século XX a expressão “professor reflexivo” tomou conta do

cenário educacional, sendo fortemente defendido por Zeichner (1993). De acordo com a obra de Corinta, Geraldi e Messias (1998), em que um dos tópicos é o propósito da reflexão e da prática reflexiva, as autoras mencionam que os professores não fazem uma autorreflexão sobre o seu próprio ensino, e que acabam aceitando naturalmente a realidade do dia a dia de suas escolas, e concentram seus esforços na busca de meios mais eficientes para alcançar seus objetivos e para encontrar soluções para os problemas. Na mesma linha de pensamento, as autoras mencionam que Zeichner apresenta os termos: prático reflexivo e ensino reflexivo, como fundamentais nas reformas do ensino e da formação de professores em vários países. O autor mencionado um alerta para uma armadilha relacionada ao desenvolvimento docente, por meio da reflexão, pois o ensino reflexivo é um conceito ao qual ninguém se opõe.

De acordo com Pimenta (2006), o ato de pensar, refletir, pertence à essência humana, e nos

difere dos animais. Na literatura contemporânea a prática reflexiva recebe diferentes interpretações e concepções. Entre estas, ela também é vista como um processo que ocorre antes e depois da ação, e de certa maneira, durante a ação, pois os práticos têm conversas reflexivas com as situações que estão a praticar, enquadrando e resolvendo problemas no local que atuam, ou seja, no caso dos professores, na escola. “Através da reflexão sobre a prática, os professores podem alterar/(re)construir/desenvolver os currículos, de forma a encontrarem os caminhos mais adequados às metas desejadas” (REIS, 2011, p. 54).

É por meio da reflexão sobre a teoria e prática que os professores e futuros professores

constroem um conjunto de saberes. É a partir da prática que os licenciados poderão, diante do novo, revisar e agregar outros sentidos aos aprendidos na teoria, sendo esta ação chamada por Andrade (2006) de “reorquestração dos saberes”.

Uma das condições básica de toda e qualquer profissão é organizar um repertório de

saberes necessários à realização de suas tarefas específicas. Porém, isso não acontece com o ofício de ensinar, que nas palavras de Gauthier (2006), o ensino tarda a refletir sobre si mesmo. Confinado ao segredo da sala de aula, ele resiste à sua própria conceitualização e mal consegue se expressar. Na verdade, “mesmo que o ensino já venha sendo realizado há séculos, é muito difícil definir os saberes envolvidos no exercício desse ofício, tamanha a sua ignorância em relação a si mesmo”. (2006, p.20). Entre as possíveis justificativas para a falta da identificação dos saberes docentes envolvidos na prática de ensinar, encontra-se a falta de reflexão sobre a prática docente propriamente dita e o contexto envolvido nesse processo.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 67 de 145

Refletindo sobre a Prática - Relato de Experiência

Na Semana de Estudo, Trabalho, Interação e Produção Acadêmico-Científico (1º SETIPAC-2016) realizada no âmbito do Grupo de Estudos Pesquisas e Intervenções “Inovação Educacional, Práticas Educativas e Formação de Professores” (INOVAEDUC), o foco de estudo estava voltado para a obra de Albano Estrela, intitulada “Teoria e Prática de Observação de Classes: uma estratégia de formação de professores”(1994).

Durante este estudo, o grupo foi desafiado pelo Coordenador Geral, o Professor Dr.

Eduardo A. Terrazzan, a elaborar e apresentar para os demais membros pertencentes ao grupo, uma “aula” sobre uma temática de livre escolha, porém de sua área do conhecimento. O grupo é constituído por membros licenciados em diferentes áreas do conhecimento, por exemplo, Ciências da Natureza, Linguagens e Ciências Humanas, o que oportunizou serem ministradas aulas com temáticas que contemplaram conhecimentos das diferentes áreas curriculares.

As aulas deveriam ser ministradas em um período de 50 minutos, e alternadamente, um

componente do grupo assumiria o papel de observador dessa aula e os demais membros o papel de alunos. Essas aulas foram gravadas e filmadas para uma análise a posterior. Pedro Reis (2011, p.11) defende que “a observação desempenha um papel fundamental na melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem, constituindo uma fonte de inspiração e motivação e um forte catalisador de mudança na escola”.

Os membros do Grupo de Estudos e Pesquisa INOVAEDUC, alunos de Graduação e

Pós-Graduação da UFSM presentes neste estudo desenvolveram suas aula para os demais colegas, e cada um realizou apontamentos necessários evidenciando suas interpretações e observações particulares sobre as referidas aulas. Após esse exercício, em um segundo momento os membros reuniram-se para análise coletiva sobre o trabalho realizado, utilizando-se para isso da Coleta de Informações Mediante a Utilização de Observação sobre a prática docente.

A fim de extrair informações, por meio do método de observação, utilizamos, no âmbito

do Grupo INOVAEDUC, roteiro de observação de aula. Este serviu de guia para conduzir um olhar mais criterioso sobre a prática docente, pois um roteiro de questões, frases ou categorias, que guia a análise e a coleta daquelas informações são relevantes para responder às perguntas de pesquisas.

Quadro 1: Roteiro de Observação de Aula

REGISTROS BÁSICOS

TEMPO

Espaço

Intervenientes

Conteúdos

Atividades

Tarefas

Material Hor

a (s) Minuto (s)

Segundo (s)

Fontes: Dados da Pesquisa

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 68 de 145

Quadro 2: Continuação do Roteiro de Observação de Aula

BLOCO: INTERAÇÃO ENTRE O PROFESSOR E OS ALUNOS

Nº QUESTÕES SÍNTESE OBSERVAÇÃO

1. Os objetivos das aprendizagens esperadas dos conteúdos (atitudinais, procedimentais e conceituais) em questão estão claros para a turma?

2.

As propostas de atividades foram entendidas por todos? Seria necessário o professor explicar outra vez ou de outra maneira? As informações dadas por ele são suficientes para promover o avanço da turma?

3. As intervenções são feitas no momento certo e contêm informações que ajudam os alunos a refletir?

4. O professor aguarda os alunos terminarem o raciocínio ou demonstra ansiedade para dar as respostas finais, impedindo a evolução do pensamento?

5. As hipóteses e os erros que surgem são levados em consideração para a elaboração de novos problemas?

6. As dúvidas individuais são socializadas e usadas como oportunidades de aprendizagem para toda a turma?

Fontes: Dados da Pesquisa Quadro 3: Continuação do Roteiro de Observação de Aula

BLOCO: INTERAÇÃO ENTRE OS ALUNOS E O CONTEÚDO

Nº QUESTÕES SÍNTESE OBSERVAÇÃO

1. O conteúdo é adequado às necessidades/realidade de aprendizagem da turma?

2. As atividades e os problemas propostos são desafiadores e proveitosos para todos os alunos ou para alguns existem uma grande facilidade e para outros não?

3. Existe a retomada de pré-requisitos? Quais?

4. Os recursos utilizados são adequados ao conteúdo?

5.

Como está organizado o tempo da aula? Foram reservados períodos de duração suficiente para que os alunos realizem anotações, apresentem dúvidas, debatam e resolvam problemas?

Fontes: Dados da Pesquisa

As observações possibilitam um registro simultâneo de comportamentos e de condições físicas e sociais em que ocorre durante o processo do fenômeno pesquisado. A coleta de informações, mediante observações, depende exclusivamente dos sentidos do pesquisador ou, em

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 69 de 145

outras palavras, da capacidade dele em classificar dentre as informações coletadas as que são pertinentes para responder à problemática da pesquisa. Segundo Vianna (2003) a observação é uma das fontes de informações mais importante em pesquisas qualitativas na área da educação, pois sem uma rigorosa observação, não há ciência. Uma vez que, anotações cuidadosas e detalhadas vão construir os dados brutos da observação.

Assim, expondo e analisando suas práticas, para si próprio e para os seus colegas, o

professor pode perceber suas próprias falhas, dificuldades, acertos, e/ou necessidade de mudança de prática, para mediar a construção da aprendizagem de seus discentes. Para Reis a análise, a discussão e a reflexão pós-observação “constituem o cerne de qualquer processo de desenvolvimento profissional de professores, permitindo desafiar o status quo, estimular a criatividade na superação de dificuldades e problemas detectados, e desenvolver diferentes dimensões do conhecimento profissional”. (2011, p.53)

Este trabalho também se fundamenta na concepção de que a construção e o acúmulo de

conhecimentos pelo professor são potencializados pela reflexão, de modo que a prática do professor está diretamente ligada à prática reflexiva. Baseado em Zeichner (1993), defendemos que a ação reflexiva é um processo que implica mais do que a busca de soluções lógicas e racionais para a solução dos problemas. “A reflexão implica intuição, emoção e paixão; não é, portanto, nenhum conjunto de técnicas que possa ser empacotado e ensinado aos professores, como alguns tentaram fazer”. (1993, p.18)

Considerações Finais

A partir da análise e reflexão sobre as aulas ministradas, utilizando-se para isso do método

de observação, com o apoio dos recursos de filmagem e gravação das aulas, foi possível levantar importantes considerações sobre o trabalho desenvolvido no 1º SETIPAC, entre as quais se destacam: a oportunidade do professor (ministrante da aula) se enxergar trabalhando, vendo seus gestos (filmagem), ouvindo suas vozes/falas, interagindo com o grupo de alunos; analisar seu planejamento; refletir sobre aspectos positivos e negativos ocorridos durante a aula, e as tarefas que poderiam ter sido abordadas de modo diferente; entre outros. A reflexão sobre a prática pode oportunizar ao professor, a efetivação de saberes experiências, e/ou ainda a mudanças em sua prática docente, e a busca por inovações pedagógicas para atender as demandas de seus trabalhos. Concordamos com Reis, ao afirmar que:

A reflexão na acção é fundamental na superação de situações problemáticas, permitindo ao professor criticar a sua compreensão inicial do fenómeno e construir uma nova teoria fundamentada na prática. Através da reflexão, os professores estruturam e reestruturam o seu conhecimento prático e pessoal. Sem a realização de análises organizadas e disciplinadas sobre a experiência, limita-se o ensino a uma mera rotina e reduzem-se consideravelmente as oportunidades de aprendizagem. O professor aprende pensando sobre a sua própria experiência ou sobre as experiências de terceiros, desde que devidamente documentadas e discutidas. (2011, p.54)

Outro ponto que deve ser abordado aqui se refere à importância da construção de um Roteiro de Observação de Aula, pois ele permite ao observador definir os elementos que deverão ser observados, evitando com isso dispersões. Já que se torna inviável observar tudo que acontece em uma aula. Para Reis o “sucesso de uma observação de aula baseia-se na selecção e na adaptação rigorosa dos instrumentos de acordo com o contexto, as fases do ciclo de supervisão, o foco da observação e as necessidades específicas de cada professor”. (2011, p.7). Segundo Reis (2011, p.63).

A disseminação desta prática nas escolas, no âmbito de processos essencialmente formativos e desenvolvimentistas, permitirá encarar a observação como uma oportunidade para os professores se envolverem,

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 70 de 145

colaborativamente, na reflexão sobre o seu desempenho profissional e na investigação e discussão de estratégias que permitam melhorar a sua prática, contribuindo para a eliminação progressiva da carga negativa e do stress a ela associados. (REIS, 2011, P.63).

Referências FRANCO, M. A. S. ‘Para um currículo de formação de pedagogos: indicativos’. In: PIMENTA, S. G (org). Pedagogia e pedagogos: caminhos e perspectivas. São Paulo Cortez. P.99-127, 2002. GAUTHIER, C., et. al. Por uma teoria da Pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Trad. Francisco Pereira. 2.ed. Ijuí: Ed.Unijuí, 2006. GERLADI, C. M.G; FIORENTINI, D; AGUIAR. E. M. Cartografias do trabalho docente: professor(a)-pesquisado(a). Campinas/BR: Mercado de Letras, 1998. REIS, P. Observação de aulas e avaliação do desempenho docente. Ministério da Educação – Conselho Científico para a avaliação de Professores. Lisboa, 2011. SOARES, Magda. As pesquisas nas áreas específicas influenciando o curso de formação de professores. In: ANDRÉ, Marli (org.) O papel da pesquisa na formação e na prática dos professores. Campinas, SP: Papirus, 2001. TARDIF, M; LESSARD, C. O Trabalho Docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2012. TERRAZZAN, E. A. ‘Inovação escolar e a pesquisa sobre formação de professores’. In: Roberto Nardi. (org). A pesquisa em ensino de ciências no Brasil: alguns recortes. São Paulo. p.148-194, 2007. VIANNA, H. M. Pesquisa em Educação – a observação. Brasília/BR: Plano, 2003. ZEICHNER, K. M. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Trad. TEIXEIRA, A. J. Carmona; CARVALHO, Maria João; NÓVOA, Maria. Educa:Lisboa, 1993. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 71 de 145

ESTRATÉGIAS DE GESTÃO DO ESPAÇO FÍSICO DA SALA DE AULA NO PIBID ARTES VISUAIS: PESQUISA E INTERVENÇÃO EM CLÍNICA DA ATIVIDADE

Lilian Rodrigues21

Anselmo Lima22

Resumo Este artigo trata de estratégias de gestão de sala de aula no âmbito da formação docente inicial pelo PIBID Artes Visuais do Instituto Federal - câmpus Palmas. Utilizando como proposta teórico-metodológica a Clínica da Atividade e como método a autoconfrontação simples e cruzada verificou-se como problemática as adaptações que uma dupla de professoras em formação envolvida realizava no seu trabalho docente. Constatou-se que mesmo em meio às adversidades da escola pública, as professoras em formação encontram alternativas de gestão de sala de aula, pensando em questões relativas à organização do espaço físico e à compreensão dos alunos em suas aulas. Palavras-chave: PIBID. Gestão de Sala de Aula. Clínica da Atividade. Abstract This article deals with classroom management strategies within the scope of initial teacher training by PIBID Visual Arts of the Federal Institute - campus Palmas. Using as a theoretical-methodological proposal the Clinic of Activity and as a method the simple and cross self-confrontation verified as problematic the adaptations that a pair of teachers in formation involved carried out in their teaching work. It was found that even in the midst of the adversities of the public school, the teachers in formation find alternative classroom management, thinking about issues related to the organization of physical space and the understanding of students in their classes. Keywords: PIBID. Classroom Management. Activity Clinic. Introdução

Este artigo apresenta um recorte de resultados relacionados ao desenvolvimento de estratégias de gestão de sala de aula no âmbito da formação docente inicial pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) - Subprojeto Artes Visuais, do Instituto Federal do Paraná (IFPR) - câmpus Palmas. Está vinculado a um grupo de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), o “Linguagem, Atividade e Desenvolvimento Humano” (LAD’ Humano).

A iniciação à docência é um estágio da formação docente que merece atenção fundamental, pois é nesse período que o professor iniciante possui mais dúvida e menos experiência com os desafios encontrados em sala de aula. Tendo o PIBID como recurso “aumentador” da capacidade do aluno no enfrentamento desses desafios, os alunos de licenciatura contemplados por esse programa podem vivenciar as experiências escolares antes da conclusão da graduação e de maneira supervisionada, já que, dentro deste programa, os professores em formação realizam seus projetos sob a supervisão de um professor regente da disciplina.

21 Mestre do Programa de Pós ­Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR) da Universidade

Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) de Pato Branco. 22 Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP/CNPq/CAPES). Professor da

disciplina de Linguagem, Atividade e Ambiente e Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ

“Linguagem, Atividade e Desenvolvimento Humano” (LAD’ Humano)

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 72 de 145

Entre os objetivos específicos do PIBID está: "incentivar escolas públicas de educação

básica, mobilizando seus professores como co-formadores dos futuros docentes e tornando-as protagonistas nos processos de formação inicial para o magistério" (CAPES, 2010). Sendo assim, entende-se que, dentro deste programa, a escola pública é vista como o principal espaço de formação docente e que o professor supervisor é co-responsável por esta formação. Pensando nesse objetivo do programa, compreende-se que, a partir das intervenções do PIBID na escola, este processo de formação docente inicial deve ser desenvolvido. A fim de tornar este processo de formação docente inicial concreto, inseriu-se uma Clínica da Atividade Docente no âmbito do PIBID Artes Visuais, como ferramenta de desenvolvimento tanto para as professoras em formação quanto para esta pesquisadora, na sua função de supervisora.

Tendo as aulas de Arte do Colégio Estadual Alto da Glória como lócus deste trabalho e

estando as professoras em formação pelo PIBID, que são sujeitos desta pesquisa, inseridas no referido colégio sob a supervisão desta pesquisadora, iniciou-se o processo deste trabalho, trazendo como problema abrangente as lacunas na formação docente inicial. Partindo deste problema geral, os dados produzidos com uma dupla de professoras em formação, apontaram para o problema específico da gestão de sala de aula. Este problema específico só se definiu a posteriori, através da prática da Clínica da Atividade.

Dentro deste contexto, a pergunta de pesquisa elaborada a partir dos dados produzidos foi:

como são constituídas as estratégias de gestão de sala de aula encontradas pelas professoras em formação em situação real de trabalho?

Com base nessa questão, este artigo tem como objetivo geral analisar as estratégias de

gestão de sala de aula no trabalho docente de duas professoras em formação pelo PIBID. A estrutura deste artigo se divide em duas partes, Na primeira parte apresenta a proposta

teórico-metodológica da Clínica da Atividade e o método da autoconfrontação simples e cruzada, bem como as etapas realizadas para a produção dos dados. Na segunda parte apresenta análises e discussões sobre os dados produzidos.

Proposta teórico-metodológica

A Clínica da Atividade é a proposta teórico-metodológica desenvolvida por Yves Clot que, segundo Lima (2010, p. 109), parte de três características: “1) considera o trabalho como atividade humana às voltas com o real; 2) visa dar aos trabalhadores a oportunidade de se reconhecer naquilo que fazem; 3) tem por objetivo “tratar” e “curar” o trabalho”. Esta proposta oportuniza, portanto, analisar o trabalho real, tornar os trabalhadores protagonistas nas suas próprias atividades e apontar soluções para o trabalho, a partir do desenvolvimento dos próprios trabalhadores envolvidos.

Nesta perspectiva e para este artigo, considera-se como problema geral a formação docente

inicial. Portanto, foram analisadas as situações reais de trabalho das professoras em formação pelo PIBID atuantes no Colégio Estadual Alto da Glória.

Para a análise dialógica das atividades docentes a partir da Clínica da Atividade, adotou-se o

método da autoconfrontação simples e cruzada (CLOT, 2010), que consiste em colocar o trabalhador em contato com a sua própria atividade profissional através de imagem gravada em vídeo e, nesse caso, verificada pela gravação em vídeo das aulas das professoras em formação pelo PIBID.

Para iniciar esta pesquisa, a proposta deste trabalho foi apresentada à direção e

coordenação do Colégio Estadual Alto da Glória a fim de receber a autorização para a sua implementação. Em seguida foi realizada uma reunião com os professores em formação pelo PIBID, juntamente com a coordenação de área do programa, na qual foram explicados os objetivos

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 73 de 145

e procedimentos do método de autoconfrontação. Nessa mesma reunião, duas professoras em formação se voluntariaram para fazer parte da pesquisa. A dupla de professoras em formação, sujeitos desta pesquisa, são alunas do curso de licenciatura em Artes Visuais do Instituto Federal do Paraná (IFPR), câmpus Palmas.

No colégio, na fase de produção destes dados, segundo semestre de 2015, a professora A

era responsável por acompanhar as aulas de arte e desenvolver projetos na turma de um sétimo ano, no período vespertino. A professora B era responsável por acompanhar as aulas na turma de um oitavo ano, no período matutino. Nessa fase, aos alunos das turmas nas quais ocorreria esta pesquisa, foi apresentado o projeto, a fim de que houvesse o consentimento dos mesmos para a gravação das aulas em vídeo. Após o consentimento dos alunos, as autorizações foram solicitadas aos pais ou responsáveis, por meio de um termo de concessão de imagem e áudio. Posteriormente, foi observada uma aula de cada componente da dupla de professores em formação com o propósito de problematizar junto com elas alguns aspectos de suas atividades docentes.

Após esse diálogo, foram realizadas as filmagens das aulas de cada professora "A" e "B". O

conteúdo trabalhado na aula da professora “A” era relativo à danças folclóricas numa turma do sétimo ano. Na turma de oitavo ano, na qual a professora “B” desenvolvia seu projeto, o conteúdo trabalhado era a “assemblagem”. Segundo a enciclopédia do Itaú Cultural (2016) a assemblagem ou “assemblage” se refere a trabalhos que segundo o pintor e gravador francês Jean Dubuffet (1901-1985) “vão além das colagens: todo e qualquer tipo de material pode ser incorporado à obra de arte” (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2016).

Observando as filmagens de suas aulas, as professoras em formação foram convidadas a

selecionar um trecho específico de 2 a 3 minutos da sua própria aula, devendo este trecho apresentar uma problemática de sala de aula.

A partir dos dois trechos selecionados de cada uma das aulas, no primeiro momento, foi

realizada a autoconfrontação simples, sendo que este momento do método se constitui de três etapas: na primeira etapa a professora “A”, na presença da pesquisadora, observou o trecho da sua aula em vídeo; na segunda etapa a professora “A” foi convidada a descrever e explicar o trecho observado; na terceira etapa a mediadora fez perguntas à professora “A” sobre a descrição e explicação feitas a partir do vídeo. O mesmo procedimento (com três etapas) foi feito com a professora “B”. As sessões de autoconfrontação simples foram gravadas em formato audiovisual.

No segundo momento foram realizadas as sessões de autoconfrontação cruzadas, com a

dupla de professoras A e B, na presença da mediadora. Este momento se constituiu de quatro etapas: na primeira etapa, a professora "A", na presença da professora "B" observou o trecho de aula da professora "B"; na segunda etapa, a professora "A" foi convidada a descrever e tentar explicar o trecho da aula do professora "B"; na terceira etapa, as professoras "A" e "B" dialogaram sobre a descrição feita e sobre possíveis diferenças de pontos de vista; na quarta etapa a pesquisadora coordenou o diálogo e a reflexão sobre as possíveis diferenças nos pontos de vista das professoras, a fim de gerar um terceiro ponto de vista. Os mesmos procedimentos foram repetidos com a professora "B", a partir da observação do trecho de aula da sua colega. As sessões de autoconfrontação cruzadas também foram gravadas em formato audiovisual.

Para a análise desses materiais, foram realizadas as transcrições das sessões de

autoconfrontação simples e cruzadas de acordo com as normas do Projeto de Estudos Norma Linguística Urbana Culta de São Paulo (Projeto NURC-SP-Núcleo USP) (Preti, 2003).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 74 de 145

OCORRÊNCIAS SINAIS

Incompreensão de palavras ou segmentos ( )

Hipótese do que se ouviu (hipótese)

Truncamento /

Entonação enfática Maiúscula

Prolongamento de vogal e consoante :

Interrogação ?

Qualquer pausa ...

Comentários descritivos do transcritor ((minúscula))

Superposição, simultaneidade de vozes [

Citações literais “ ”

Análises e discussões

Para as análises, apresentaremos inicialmente o trecho de aula selecionado pela professora em formação A seguido pelo trecho selecionado pela professora em formação B, no segundo momento apresentaremos a problemática verificada nos trechos de aula, sendo seguidos pelas análises das sessões de autoconfrontação simples e cruzada. Nos recortes utilizados para as análises leia-se: “PA” como professora em formação A, “PB” como professora em formação B, “PAV” professora em formação A no vídeo, “PBV” professora B no vídeo e “A’sV” como alunos no vídeo.

No recorte do trecho de aula da professora em formação A, a mesma está organizando

alunos voluntários para a dança folclórica no centro da sala, de modo que estes possam reproduzir o vídeo de “baião” que está sendo visualizado na TV. Enquanto cinco alunos estão fazendo esta reprodução, os outros, cerca de quinze alunos estão observando seus colegas sentados nas carteiras no entorno da sala. Observa-se no vídeo que o espaço da sala de aula é pequeno para se realizar essa atividade. O modo como a professora organizou os alunos: cinco fazem a prática e o restante observa, reflete uma estratégia de organização da sala de aula feita pela professora para que os alunos consigam fazer, ainda que em parte a atividade prática. PAV: a gente vai ter que dançar pra cá para poder seguir a mesma linha deles tá?... então se imaginem como se vocês estivessem de costa pra cá ou seja se eles são direita a gente é esquerda... tá? A’sV: ( ) PAV: e outra coisa... quem estiver afim de avacalha:r pode ficar sossegado que vai vir participar daí....

Nesse trecho a professora dá instruções aos alunos que se propõem a reproduzir a dança junto com ela e ao mesmo tempo adverte os alunos que estão observando. Percebe-se que a professora tenta ao mesmo tempo, tanto adequar a maneira correta de se dançar, quanto cuidar da possível indisciplina dos alunos observadores. Nas duas falas, ela prevê possíveis problemas. Nesse sentido, associamos os enunciados da professora com o postulado de Bakhtin (2011, p. 297), que

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 75 de 145

diz que “cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva”.

No trecho de aula da professora em formação B, a mesma está em pé à frente da turma,

mostrando imagens projetadas no quadro negro. Os alunos estão sentados próximos uns dos outros para que possam visualizar as imagens.

PBV: daí eu vou mostrar exemplos agora... aleatórios que do que fazem (hoje) por exemplo esse daqui... o que que isso daqui parece? (...) PBV: ( ) o rosto dela é feito de papel porque tem letrinhas está vendo?

Ao explicar as imagens projetadas ela busca uma atitude responsiva dos alunos (BAKHTIN, 2011, p.301) em momentos como: “por exemplo esse daqui... o que que isso daqui parece?” e “o rosto dela é feito de papel porque tem letrinhas está vendo?”. No trecho, os alunos conversam entre si e respondem algumas frases inaudíveis à professora.

Os alunos, nesse momento da aula, aparentemente observavam com interesse a projeção

dos exemplos de assemblagens. Isso se identifica enquanto a professora B está mostrando os exemplos:

PBV: não é só em artes que a gente faz essa assemblagem a gente faz também em outros: lugares A’sV: é de jornal:? PBV: é de jornal... são pedacinhos de revista ó: cada pedacinho desse aqui (provavelmente) tem um nome ( ) são nomes de revista... tem por exemplo essa imagem é melhor de enxergar A’sV: nossa!

Uma aluna pergunta: “é de jornal:?”. Outra aluna ao observar uma das imagens exclama: “nossa!” A relação interlocutiva entre professora e alunos nesses trechos, nos remete ao papel do outro para Bakhtin (2011, p. 301), ou seja, o discurso é realizado em função dessa pessoa, ou dessas pessoas. Nessa relação, os ouvintes não são passivos: “o falante aguarda a resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva” (BAKHTIN, 2011, p.301).

Observados os trechos de aula selecionados pelas professoras “A” e “B”, verificou-se que

ambas buscaram alternativas para a gestão de suas respectivas turmas. Aspectos das adaptações que as professoras em formação realizam na gestão de sala de aula são possíveis de serem observados no vídeo e posteriormente confirmados nas sessões de autoconfrontação simples e cruzada. Por esse motivo, a teoria referente à gestão de sala de aula emergiu como essencial para o desenvolvimento deste trabalho.

Gauthier et al. (1998, p. 240) ao conceituarem a gestão de classe, destacam que ela

“consiste num conjunto de regras e de disposições necessárias para criar e manter um ambiente ordenado favorável tanto ao ensino quanto à aprendizagem”. A gestão de classe (aqui denominada gestão de sala de aula), a partir deste conceito, consiste em determinações utilizadas para a organização da sala de aula, a fim de se criar um meio propício tanto ao ensino, quanto à aprendizagem.

A partir da análise das sessões de autoconfrontação simples e cruzadas algumas categorias

referentes à gestão de sala de aula foram elencadas. Para este artigo o aspecto de gestão de sala de aula referente à organização do espaço físico se tornou mais relevante.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 76 de 145

Espaço físico e organização da sala de aula Observando no vídeo a organização dos alunos feita para o desenvolvimento da atividade

prática de dança, a professora em formação A em situação de autoconfrontação simples comenta:

PA: então aqui no começo… éh o que eu percebo do vídeo no início é que tem: cerca de uns cinco alunos no centro da sala participando e os demais estão sentados né?

Ao organizar os alunos na sala de aula, a professora “A” atende à observação que Gauthier et al. (1998, p. 243) traz: “se é certo que a estruturação do ambiente físico aparece como uma variável importante para os professores, também é essencial para eles planejar como ele será utilizado”.

Após ser questionada pela pesquisadora se mudaria algum aspecto da aula, a professora A traz sua insatisfação com o aspecto do espaço físico:

PA: eu ia achar outra alternativa de deixar todo mundo na frente... não: não pode ficar de costa mas ali o espaço físico não ajuda MUITO…

Ao buscar estratégias de organização, a professora chama a atenção para o problema do espaço físico, dando ênfase na palavra “muito”, indicando o quanto este problema a incomoda.

Na situação de autoconfrontação simples com a professora em formação “B”, o aspecto da

organização do espaço físico também aparece. A professora “B” julga a má organização do espaço físico como prejudicial à visão dos alunos: PB: as carteiras estão muito mal proje/tipo são muito mal organizadas porque a sala é estreita é uma sala comprida não é uma sala de pra:pra todos eles enxergar…

Nesse excerto, a docente demonstra sua preocupação com a compreensão visual dos alunos em relação às imagens mostradas por ela nesse trecho de aula. Sobre o aspecto do espaço físico é importante lembrar a situação do colégio estadual onde acontecem as aulas do PIBID. O referido colégio funciona num espaço precário cedido pelo município, sendo que as salas de aula, muitas vezes, não comportam a demanda de alunos.

Na situação de autoconfrontação cruzada 2, a professora B ao observar o trecho de aula da

professora A no vídeo, comenta sobre a precariedade do espaço físico: PB: daí o espaço também é muito (ruim)... pra você ter uma aula de dança ( é muito ruim mesmo a sala) sempre está com muita carteira e::: as salas de lá da escola são muito pequenas né?...

Na definição do trabalho artístico as próprias Diretrizes Curriculares Estaduais (2008, p. 71), reconhecem as carências da escola pública: “apesar das dificuldades que a escola apresenta para desenvolver essa prática, ela é fundamental, pois a arte não pode ser apreendida somente de forma abstrata”. Lembrando que a metodologia do ensino da Arte no Paraná exige que sejam feitas a teorização, a apreciação e o trabalho artístico nas aulas da disciplina (DCE, 2008, p. 70).

Na situação de autoconfrontação cruzada 2, a professora “A” também justifica a

organização dos alunos no momento do trecho de aula (cinco alunos estavam dançando no centro da sala e o restante dos alunos estavam sentados nas carteiras encostadas na parede): PA: você não consegue controlar todo mundo no meio da sala correndo gritando se estapeando... e:: e aquelas carteiras uma muvuca mas assim a gente tem que ir trabalhando com o que tem né?

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 77 de 145

A professora A ao comentar com a professora B, o motivo da sua organização daquela maneira, demonstra mais uma vez seu descontentamento com a organização do espaço físico: o fato de não conseguir “controlar todo mundo”. Esses fatos estão relacionados à gestão de sala de aula em situação de interação com os alunos. Para Gauthier (1998, p. 243), o planejamento da organização do espaço físico é fundamental para o trabalho do professor. Nesse caso, porém, a professora A fez uma adaptação no seu planejamento para a organização da sala de aula. Ainda nesse excerto, a professora A traz novamente a questão das alternativas de gestão de sala de aula ao assegurar: “mas assim a gente tem que ir trabalhando com o que tem né?”. Considerações finais

A partir das análises é possível perceber que a abordagem da Clínica da Atividade

implementada no Colégio Estadual Alto da Glória possibilitou às professoras em formação e à esta pesquisadora o protagonismo nas suas atividades docentes. Mesmo em meio a toda a precariedade encontrada na escola pública, elas trabalham com alternativas que são suas próprias estratégias de gestão de sala de aula, pensando em questões relativas à organização e à compreensão dos alunos. As sessões de autoconfrontação realizadas permitiram que as professoras falassem dos problemas que encontram na realidade dos seus trabalhos e também das estratégias criadas por elas a fim de realizar o trabalho que lhes é incumbido.

A implementação de uma Clínica da Atividade no âmbito do PIBID tornou visível a

realidade da escola pública, com todas as suas carências, trazidas nas falas das professoras. O trabalho com o real possibilita aos professores em formação não uma idealização da escola, mas a busca e a realização de alternativas de gestão de sala de aula em meio a situações adversas, com alunos e dificuldades reais.

Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. CAPES. PIBID - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência. <http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid/pibid> Acesso em 16 de dezembro de 2016. CLOT, Yves. Trabalho e poder de agir. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Assemblage. 2016. Disponível em <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo325/assemblage>. Acesso em 10 de julho de 2016. GAUTHIER, Clemont et al. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Trad. Francisco Pereira. Ijuí: Ed. IJUÍ, 1998. LIMA, Anselmo Pereira de. Visitas técnicas: Interação Escola-Empresa. Curitiba: CRV, 2010. PRETI, Dino. (org.). Análise de Textos Orais. 6.ed. São Paulo: Humanitas, 2003. SECRETARIA DO ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Educação Básica de Arte. Paraná, 2008. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 78 de 145

DE BRAÇOS ABERTOS: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO JORNAL FOLHA DE S. PAULO AO REGIME MILITAR EM 1964

Luiz Antonio Dias e Rafael Lopes de Sousa23

Rafael Lopes de Sousa24

Resumo Apresentação da recepção do jornal Folha de S. Paulo, ao Regime Militar e à posse de Castelo Branco, por meio da análise de editoriais veiculados em abril e maio de 1964. Buscamos mostrar a importância desse veiculo de comunicação na consolidação da ideia, necessária, de legitimidade e legalidade do novo regime. Além disso, analisamos, de forma rápida, os editoriais veiculados em dezembro de 1968, para compreender a posição do jornal sobre a edição do Ato Institucional nº 5, de 13/12/1968 e, novamente, destacar o esforço em dar ares de legitimidade ao endurecimento do regime. Palavras chave: Golpe civil-militar de 1964; Ditadura Militar; Imprensa; Folha de S. Paulo.

Abstract This presentation shown the receiving of Folha de S. Paulo’s newspaper, to the Military Regime and occupation of Castelo Branco, by analyzing editorials aired in April and May 1964. We seek to show the importance of this communication vehicle to strengthen the idea, necessary legitimacy and legality of the new regime. Besides, we analyze, quickly, editorials aired in December 1968, to understand the position of the newspaper on the promulgation of Institutional Act No. 5 of december, 13 in 1968 and again emphasize the effort to give an air of legitimacy the hardening of the regime. Keywords: Civil-military coup of 1964; Military dictatorship; Press; Folha de S. Paulo.

Nesse artigo, discutimos a recepção do jornal Folha de S. Paulo ao regime estabelecido em

abril de 1964, após a deposição do Presidente João Goulart (popularmente conhecido como Jango). Analisamos os editoriais vinculados ao novo cenário político com ênfase nos meses de abril e maio de 1964, quando o jornal explicita sua adesão ao novo Governo. Interessa-nos, sobretudo, compreender as razões que levaram esse periódico, no primeiro momento, a adotar um discurso de aproximação elogiosa com a política estabelecida pelo Governo militar sem deixar, contudo, de levantar hipóteses e oferecer pistas para a mudança de postura na linha editorial verificada com o “endurecimento” do regime a partir de 1968. A escolha desse jornal ocorreu pela amplitude de seu publico, já que em 1964 era o jornal mais lido no Estado de São Paulo.

As ciências humanas, notadamente o segmento dos historiadores, têm recorrido aos

arquivos e às publicações da imprensa como fonte para a análise de determinados acontecimentos históricos. Depois das contribuições da Escola dos Annales o historiador relativizou as certezas de que determinada fonte era, a priori, “suspeita”, ou representava prioritariamente os interesses do grupo social ao qual estava vinculado. Graças a essas contribuições a “ilusão” de que a “fonte” ou o “documento” pode ser isento das influências de um dado contexto histórico foram definitivamente superadas. É importante destacar, contudo, que dependendo das necessidades e conveniências do momento histórico, as fontes podem ser “manipuladas” seja para justificar, seja para produzir uma “realidade” que legitime o discurso de uma época. Cabe, portanto, ao pesquisador analisar o documento de forma “isenta” e crítica para dele retirar a sua “verdadeira” mensagem.

23 Professor do deptº. de História da PUCSP, professor do programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas UNISA. São Paulo, Brasil 24 Professor do programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas UNISA. São Paulo, Brasil.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 79 de 145

Assim, por exemplo, notícias sobre os movimentos sociais ou sobre greves veiculadas por algum jornal da grande imprensa ou revista semanal no período da ditadura, são ali deslocados e imediatamente articulados à produção de uma narrativa sobre como ocorriam os movimentos naquele período. (CRUZ, 2007, p. 258).

As notícias e narrativas veiculadas nos jornais não podem, pois, ser tomadas como verdade

absoluta, uma vez que estão diretamente relacionadas aos interesses econômicos e ao alinhamento ideológico de seus mantenedores. Em outras palavras, a narrativa jornalística é uma construção histórica que carrega os sentimentos, desejos e interesses da linha editorial do jornal. A forma como o jornal Folha de S. Paulo noticiou o golpe de estado responsável pela implantação da ditadura civil-militar em 1964 é, neste sentido, um caso exemplar do que aqui estamos argumentando.

(...) importante é inquirir sobre suas ligações cotidianas com diferentes poderes e interesses financeiros, aí incluídos os de caráter publicitário. Ou seja, à análise da materialidade e do conteúdo é preciso acrescentar aspectos nem sempre imediatos e necessariamente patentes nas páginas desses impressos. (LUCA, 2006, 140)

Interesses paralelos voltados para obter privilégios políticos e vantagens econômicas

atravessam o fato noticiado constantemente, mas nem sempre são percebidos pelo “homem comum”. A imprensa e seus agentes orgânicos, isto é, proprietários, editores e jornalistas são quem determinam o que será “notícia” e, o que é mais importante, a forma como ela será noticiada. Cabe, pois, ao historiador aplicar o rigor técnico e metodológico de sua profissão na análise dos fatos e documentos, afim de problematizar sua estrutura, discutir suas nuances e, assim, oferecer subsídios para melhor entender as causas e motivações que elevam determinado acontecimento a condição de “notícia”.

Ao assumir a defesa do governo militar a Folha de S. Paulo fez ecoar o pensamento de

variados setores da imprensa. Para esses setores a defesa da “Revolução Gloriosa” era o caminho mais seguro para reencontrar paz social e garantir os direitos básicos do cidadão ameaçados, naquele contexto, pela perigosa presença comunista no território brasileiro. Estimulado por essa paranóia, no dia 02 de abril de 1964, o jornal afirmava em editorial, intitulado “Em defesa da Lei”:

Não foi por falta de advertências que a situação nacional chegou ao estado em que hoje se encontra (...). Ninguém por certo desejou tal situação, excluídos certamente os elementos comunistas para os quais a situação do país estará tanto melhor quanto pior em verdade for. Esses elementos, infelizmente, vêm agindo há muito em altos cargos da administração pública federal e, de certa maneira, orientando muitas ações do governo (p.4)

A sequência do editorial reforçava os argumentos de que o presidente deposto, João

Goulart, governava em conluio com os comunistas e, o que era mais grave, violava constantemente a Constituição com tentativas inaceitáveis de subordinar o Congresso aos interesses da ideologia comunista. Para fermentar ainda mais a situação, as greves que contavam com a “simpatia” do presidente, paralisavam o país e provocavam uma aguda crise econômica. Motivado por essa conjuntura adversa, o editorial não economizava argumentos para convencer a população de que o golpe militar, antes de ser uma “rebelião contra a lei”, era um ato de patriótica coragem dos militares em defesa da ordem:

Depois de lentamente tentar corromper o cerne das Forças Armadas mediante a conhecida pregação falsamente reformista, surgia o golpe que deveria prenunciar o fim da legalidade democrática: o assalto à própria organização das Forças Armadas. E estas, em vários pontos do país, chefiadas por alguns de seus chefes de maior respeitabilidade, se levantaram em defesa das instituições ameaçadas. São claros os termos do manifesto do comandante do II Exército. Não houve

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 80 de 145

rebelião contra a lei, mas uma tomada de posição em favor da lei. Na verdade, as Forças Armadas destinam-se a defender a pátria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem (...). Resta-nos esperar que os focos de resistência esboçados em raros pontos logo desfaçam, para que a família brasileira reencontre no menor prazo possível a paz a qual tanto aspirava o povo, livre da pregação e da ação dos comunistas que se haviam infiltrado no governo, volte a ter o direito, que lhe haviam tirado, de trabalhar em ordem e dentro da lei. (02/04/1964, p. 4)

Pode-se dizer, então, que a Folha de S. Paulo, com o posicionamento de sua linha editorial,

ajudou a construir um discurso de legalidade à deposição do presidente João Goulart. De tal sorte que nas páginas desse periódico o “golpe”, tornava-se uma ação revolucionária para salvar o país das mãos dos comunistas.

O regime político que irrompeu a partir de 1964 se debateu, desde seus primeiros momentos, para atestar a legitimidade de seu poder de mando e decisão. Para isso, ele lidou com dois desafios. O primeiro foi construir os elementos que viessem a certificar, de imediato, que aquele movimento era legítimo. O segundo se caracterizou pelo empenho do grupo de poder em dar continuidade ao processo de construção da legitimidade no transcorrer dos governos ditatoriais. (REZENDE, 2013, p. 41)

Essa situação muda completamente quando Castello Branco assume o poder. Nessa

ocasião, a Folha de S. Paulo apressa-se em fazer um editorial elogioso ao novo mandatário da nação com os seguintes dizeres: “O presidente de Todos”. Para além da bajulação explicita desse editorial, o que se buscava era conferir legitimidade ao novo governo que trazia para todos os brasileiros a esperança de um novo tempo.

A nação ouviu ontem do presidente da República, na solenidade de sua posse, as palavras que desejava ouvir (...). É com satisfação que registramos ter seu discurso de posse reafirmado todas as nossas expectativas e revigorado a nossa esperança de que uma nova fase realmente se descerrou para o Brasil. (16/04/1964, p. 4)

Os editoriais seguem doravante uma linha de apelo emocional sempre convocando os

cidadãos de “bem” a engajarem-se na construção desse novo Brasil agora, finalmente, livre da contaminação comunista. O editorial, “O sacrifício necessário”, de 24 de abril de 1964, explicita esse urgente desejo:

Nossas palavras dirigem-se hoje, de maneira muito especial, a todos aqueles que entendem, e com razão, que para a redenção da pátria se torna preciso dar mais do que trabalho de todos os dias e a confiança, geradora de disciplina (...). Dirigem-se aos que se acham dispostos ao sacrifício de interesses, de bens, de direitos, para que a nação ressurja, quanto antes, plenamente democratizada. (24/04/1964, p.4)

Com o passar do tempo, o jornal operou uma mudança estratégica em sua linha editorial.

Essa ação foi meticulosamente planejada e atendia a dois objetivos principais: lutava, por um lado, pela preservação patrimonial da empresa enquanto, por outro lado, trabalhava pela sobrevivência comercial, que só poderiam ser alcançados com seu alinhamento ideológico à nova estrutura de poder. O curioso é que, anos antes, quando o governo de João Goulart vivia uma aguda crise de credibilidade, o tratamento que seu governo recebeu da imprensa de maneira geral e, da Folha de S. Paulo particularmente, foi bem mais duro e intencionalmente direcionado, ou seja, na crise generalizada que tomava conta da sociedade às vésperas do golpe militar, o jornal atuou como porta-voz dos setores conservadores defendendo a inviolabilidade da Constituição e fazendo pesados ataques à autoridade e capacidade que o Presidente tinha para governar.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 81 de 145

Assim, durante o governo do Presidente João Goulart, qualquer proposta de renovação de

seu mandato era duramente criticada como um continuísmo desnecessário pelo jornal Folha de S. Paulo. Mas, no período posterior, quando o mandato do general Presidente Castello Branco foi prorrogado, o jornal foi mais condescendente. É o que se pode ler no editorial de 18 de julho de 1964: “(...) está em boas mãos a presidência da República e assim a prorrogação do atual mandato presidencial, por si mesma, não pode ser considerada um mal”. (18/07/1964, p. 4)

Neste mesmo editorial a Folha de S. Paulo afirma que “não tem o tabu da intocabilidade da

Constituição”. O curioso é que, durante todo o período do Governo João Goulart esse jornal foi um ferrenho defensor da intocabilidade da Constituição. Assim, a cada boato de reforma constitucional, pesados editoriais eram publicados com violentos ataques ao Presidente João Goulart, que na visão do jornal, não respeitava a Constituição.

O argumento de que o presidente preparava um golpe foi mobilizado diversas vezes na imprensa, especialmente depois que Goulart solicitou ao congresso a decretação do estado de sítio (outubro de 1963), pedido retirado antes de ir a votação diante da oposição da esquerda e da direita. (MARTINS, 2006, p. 97)

Pode-se dizer, então, que as páginas do jornal Folha de S. Paulo foram utilizadas para

alardear as intenções golpistas do presidente João Goulart. O pedido de estado de sítio em 1963 justificava, por assim dizer, o pânico dos setores conservadores. Essa situação tornou-se, todavia, mais evidente após o comício da Central do Brasil – ocorrido na Guanabara em 13 de abril de 1964, quando o presidente propôs as Reformas de Base. A partir dessa data as ações do governo foram colocadas em permanente estado de suspeição, já que propunham reformas sociais que só poderiam ser alcançadas com a violação da constituição. Foi assim, evocando a defesa da lei, que a Folha de São Paulo, no dia seguinte ao comício da Central do Brasil, conclamava as Forças armadas a resistir às pretensões inconstitucionais do governo, seu editorial destacava:

O comício de ontem, se não foi um comício de pré-ditadura, terá sido um comício de lançamento de um espúrio movimento de reeleição do próprio Sr. João Goulart. Resta saber se as Forças Armadas, peça fundamental para qualquer mudança deste tipo, preferirão ficar com o Sr. João Goulart, traindo a Constituição, a pátria e as instituições. Por sua tradição, elas não haverão de permitir essa burla. (14/03/1964, p. 4)

O editorial explicitava o desejo da intervenção militar pelo jornal. Os militares puderam,

pois, justificar suas ações como legitimas e necessárias contra um governo que definia suas metas segundo os preceitos da agenda comunista. Diversos depoimentos recolhidos com os protagonistas da época deixam entrever essa busca de legitimidade para a ação dos militares. O depoimento do Coronel Alberto da Fontoura é, neste sentido, revelador:

A coisa mais difícil que há (...) é um coronel, um comandante, mesmo um bom comandante, quebrar a legalidade, mesmo que tenha apoio de toda a sua gente, de sua tropa. É difícil. A gente passa a vida inteira pregando a legalidade. Passa a vida inteira falando para o soldado de disciplina, de lealdade, etc., como é que de repente vai-se voltar contra o governo? (D’ARAUJO, 1994, p.205-206)

A sequência de seu depoimento é esclarecedor, na medida em que um membro do exército

assume ser o legítimo guardião da legalidade e justifica a intervenção militar como uma medida preventiva contra os usurpadores da ordem constitucional: “Nós não fizemos uma revolução. Nós demos um contragolpe, porque o golpe estava sendo dado por eles (...)”. (ARAUJO, 1994, p.206).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 82 de 145

Os testemunhos da época indicam, então, que a imprensa se comportou como porta voz da opinião pública e assim exigiu a intervenção das Forças Armadas nas instituições públicas do país. Alegavam que apenas a força e a moralidade das Forças Armadas poderiam retomar o controle e dissipar o caos que tomava conta da sociedade. O depoimento do General Rubens Mário Brum Negreiros que, em 1964, era Tenente Coronel, é neste sentido esclarecedor:

Sabia-se, através de jornais da época, que no Palácio Laranjeiras, onde o presidente João Goulart se encontrava constantemente, a sala de espera era local de reunião de sindicalistas, onde pelegos relaxados, com os pés em cima das cadeiras e das mesas, demonstravam a intimidade que tinham com o governo. (MOTTA, 2003, p.101)

Na sequencia de sua argumentação e, interessado em isentar a sua corporação de qualquer

responsabilidade, convida o leitor a conferir o “real significado de 1964”, utilizando as páginas da imprensa como fonte ou testemunho da época: “(...) ao fazermos o movimento em 31 de março (...) significou a resposta aos anseios da sociedade (...). Quem quiser hoje saber se é verdade ou é mentiras é só ir à bibliotecas e ler os jornais (...)”. (MOTTA, 2003, p. 104).

Com a chegada dos militares ao poder o governo iniciou uma nova fase de sua relação com

os trabalhadores agora, tudo era bem diferente daquela promiscuidade trabalhista que tomava conta do Governo de João Goulart quando os “pelegos relaxados” controlavam os sindicatos. Assim, se no governo de João Goulart essa aproximação com os trabalhadores era vista como promiscua como vimos no testemunho do General Brun Negreiros, no governo de Castello Branco ela foi defendida e vista como altamente benéfica para a harmonização social do país. Assim, logo após o golpe, o jornal aplaudia a atenção dada pelo governo aos trabalhadores, conforme destacamos no editorial a seguir:

O necessário diálogo que vinha sendo reclamado entre a revolução e o trabalhador, iniciou-o ontem, na praça da Sé, o presidente Castello Branco. E iniciou-o com uma linguagem concisa, direta e por isso acessível a todos, que já nós estamos acostumados a admirar nos pronunciamentos do novo chefe da Nação. (02/05/1964, p. 4)

O editorial segue elogiando a posição do governo, principalmente no que diz respeito à

volta dos sindicatos ao seu legitimo papel de defensores das classes trabalhadores. Sindicatos estes que, segundo o jornal, eram focos de subversão comunista durante o período de João Goulart. Com a confiança renovada com os novos rumos do país, o editorial conclui suas reflexões com um chamado ao mesmo tempo otimista e desafiador para os trabalhadores desses novos tempos que se anunciavam: “A Revolução veio ao trabalhador, na praça da Sé. O trabalhador pode confiar na Revolução”.

Em 04 de maio de 1964 outro editorial revelador dessa mudança de postura do jornal veio à público. Nele se lia que a greve era um legitimo direito das classes trabalhadoras e, em seguida, tecia elogios ao governo que pretendia enviar ao Congresso um projeto de lei que objetivava regulamentar o direito de greve. Essa não era, todavia, a posição do jornal, durante o governo de João Goulart, que sempre foi acusado de ser leniente com as greves que paralisavam o país e atrasavam o seu desenvolvimento econômico.

A essa altura dos acontecimentos o jornal já praticava um bem pensado jogo pendular, isto é, de ora atacar e ora defender a política do governo militar. O jornal inicia, assim, uma nova fase em sua linha editorial com críticas ao governo militar, como mostraremos mais adiante. É importante salientar, todavia, que essas críticas aos militares nunca foram tão ácidas quanto aquelas endereçadas ao governo e à pessoa do Presidente João Goulart.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 83 de 145

Do ponto de vista da orientação política, a Folha de S. Paulo apoiou o golpe de 1964, como quase toda a grande imprensa (...). Deu cobertura às manifestações estudantis de 1968, apoiando-as discretamente enquanto não surgiu a luta armada. Seus editoriais, no entanto, eram extremamente ‘inócuos e anódinos’ e foram suspensos com a escalada da censura. O jornal fez auto-censura (...). (GOLDENSTEIN, 1986, p. 246)

Os editoriais “inócuos e anódinos”, trabalhados pela autora, são realmente muito

frequentes. Após o golpe de 1964 vários editoriais da Folha de S. Paulo foram escritos para preencher espaço ou para nada dizer. O principal propósito era confundir o leitor e ocultar a verdadeira opinião de seus mantenedores. Estes editoriais elogiavam com temperos críticos e criticavam com palavras elogiosas.

É interessante observar que em dezembro de 1968, em plena efervescência política – com ameaças de estado de sítio, de um novo Ato Institucional e de grandes manifestações estudantis – a Folha de S. Paulo não tenha lançado, na segunda quinzena do mês, nenhum editorial sobre a situação política do país. Ainda que esteja fora do principal recorte temporal deste artigo, os editoriais que cobrem o período do Ato Institucional n° 5 ajudam-nos a compreender melhor o posicionamento do jornal.

No dia seguinte à decretação do AI5, que “fechou” de vez o regime político em 13 de dezembro de 1968, a Folha de S. Paulo lançou seu ultimo editorial do ano ligado à política nacional.

O chefe da Nação deve ter tido fortíssimos motivos para a opção que tomou (...). diante da realidade só se podem formular votos para que essa seja uma fase passageira e reingressemos o mais rapidamente possível na senda da normalidade constitucional.” (14/12/1968, p.4)

O jornal que antes era tão explicito nos elogios ao regime militar, comportava-se de

maneira pusilânime nesse novo contexto, pois ainda que destacasse a importância do retorno à normalidade constitucional, o jornal não ousava criticar o “estado de exceção” em que estava mergulhado o país. Apresentava, contrariamente, o regime ditatorial como “normalidade” e argumentava que o “golpe dentro do golpe” resultou de “fortíssimos motivos”, que merecia uma intervenção mais forte dos militares na sociedade civil. Conferia, portanto, legitimidade ao novo governo. A esse respeito a historiadora REZENDE (2013) comenta: “O grupo de poder justificava o golpe dentro do golpe como a única saída, tendo em vista que os movimentos de resistências criavam uma situação de embaraço para o governo e para o próprio regime”. (REZENDE, 2013, p. 41)

Nesse editorial do dia 14 de dezembro de 1968, intitulado “Horas Difíceis”, o jornal afirmava que era: “(...) inútil procurar culpados responsáveis pela situação. Se culpa e responsabilidade há, é do radicalismo que desde há alguns meses começou a aprofundar-se entre nós(...)”. Prosseguia em busca de argumentos que justificasse o “estado de exceção” para finalmente concluir que a decisão da Câmara dos Deputados sobre o caso Márcio Moreira25, estimulou o radicalismo político. Critica, assim, o que denomina de “autoridades menores” e reafirma sua crença no “poder maior”, quando destaca que: “Costa e Silva na chefia do governo é garantia de que não resvalaremos, agora, para excessos injustificados (...)”. Encerra suas palavras reafirmando a

25 Em setembro de 1968, o deputado Márcio Moreira Alves (MDB), subiu à tribuna e fez um discurso que os militares consideraram ofensivo às tradições do exército. Entre outras reivindicações polêmicas Moreira Alves, solicitava um boicote às comemorações da Semana da Pátria. Numa flagrante ingerência à autonomia dos Poderes o Ministro da Justiça solicitou que a Câmara de Deputados autorizasse que o deputado fosse processado. A Câmara, todavia, rejeitou o pedido. Esse episódio costuma ser apontando pelos estudiosos do período como o estopim que precipitou a edição do AI Nº5.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 84 de 145

legitimidade do governo e a necessidade de lhe prestar apoio para garantir a ordem e assegurar a paz para “todos”.

Desejamos todos que a caminhada para a normalidade constitucional continuasse. Isso não ocorreu. Esperamos que seja apenas o preço para a manutenção da ordem e da paz no País, e para que se reinicie em breve o processo democrático, em bases mais sólidas e duradouras. (Grifos nossos)

Da segunda quinzena de dezembro de 1968 até o encerramento deste mês, a Folha de S.

Paulo desviou convenientemente a pauta de seus editoriais para temas que tratavam das peculiaridades municipais como, por exemplo, as profissões mais valorizadas do vestibular mais concorrido do país e o barulho da cidade de São Paulo. Já no noticiário internacional mereciam destaque os grandes feitos dos EUA para a humanidade, como a conquista da lua26. Frente à situação política que o país vivia os editoriais prestavam um desserviço para a informação de seus cidadãos.

O jornal que foi um entusiasta defensor dos militares na luta pela “defesa da ordem e contra a subversão” em 1964 continuava, mesmo depois da decretação do AI5, em 1968, sem fazer autocrítica de sua escolha nada republicana. O fato é que, com o endurecimento do regime militar o jornal Folha de S. Paulo assume o risco de sofrer retaliações e inicia um movimento de distanciamento gradual, porém, permanente dessas políticas. Esse distanciamento não foi, todavia, transformado em oposição declaradamente aberta ao governo militar, o que houve foi uma redução dos elogios a sua política.

Essa mudança de postura atendia, possivelmente, as conveniências políticas do momento, uma vez que com o endurecimento do regime o jornal perde os privilégios que ainda tinha e passa a sofrer intervenções e censura prévia em suas publicações. Assim, ainda que no presente, o jornal tenha feito mea culpa sobre o apoio que deu aos militares, o fato é que a maneira como agiu no passado – patrocinando inclusive a realização de reuniões conjuntas com os militares para arquitetar a deposição do presidente João Goulart – permanecem, ainda hoje, uma mancha irretocável na história desse jornal. A esse respeito o historiador Leôncio Basbaum comenta que a deserção dos civis ocorreu somente quando os militares anunciaram que para cumprir suas metas precisariam de mais tempo do que aquele inicialmente previsto:

Os revolucionários civis, evidentemente, não gostaram nem aprovaram (a prorrogação do mandato de Castello), principalmente Carlos Lacerda, que acabava de voltar de uma viagem ao exterior, onde fora com o objetivo de explicar a revolução. ‘O governo, diz ele, está se afastando dos seus ideais revolucionários’. Mas não rompe com ele. É cedo ainda e muita água ainda pode correr até lá. (BASBAUM, 1975, p. 148)

Com a instituída da eleição indireta para Presidente da República, as lideranças civis que

pretendiam retomar a vida política tiveram de refazer os seus planos.

Sendo eleitos pelo Congresso, e estando este nas mãos do governo, as conclusões eram lógicas. Esses candidatos em perspectiva, Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar, nada puderam fazer senão ensaiar uma tênue oposição à política financeira e econômica do governo. (BASBAUM, 1975, p. 151)

Assim, quando percebem que seriam gradativamente excluídos da cena política nacional, os

golpistas civis adotaram um tom mais críticos sobre os rumos seguidos pelo regime militar. Alguns

26 Neste sentido é interessante observar os editoriais da Folha de S. Paulo, p. 04. Em 17/12/68: “Metrô”; 22/12/68: “Carreiras valorizadas” sobre o curso superior de física; 24/12/68: “Vestibulares”; 27/12/68: “Cidade Barulhenta”; 28/12/68: “O grande feito”, sobre a conquista da lua; 31/12/68: “Oriente Médio”.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 85 de 145

destes políticos, como Adhemar de Barros e Carlos Lacerda, acabaram inclusive sendo cassados e tiveram seus direitos políticos suspensos. Castigo impingido pelo governo que eles haviam apoiado.

Na segunda metade da década de 1970, o jornal intensifica seus esforços para reconstruir a sua imagem de imparcialidade com a vida política do país. Inicia, assim, uma oposição ao governo questionando de maneira sistemática a sua legitimidade. Neste período compôs forças com outros segmentos da sociedade civil na luta pela redemocratização do país, na defesa incondicional dos direitos humanos e liberdade de imprensa.

A sobrevivência de qualquer veículo de comunicação depende fundamentalmente da credibilidade que seu discurso assume junto ao público leitor. Ocorre que essa credibilidade só pode ser alcançada ou construída quando o compromisso do jornalista com os fatos narrados não forem direcionados. Por isso, depois de sofrer decepções com a censura dos Governos militares, o jornalismo da Folha de S. Paulo, tentou retomar o seu papel critico de impulsionador do debate público na sociedade brasileira.

É importante salientar que os interesses econômicos e o alinhamento ideológico que

atravessam as redações dos jornais não são facilmente captados pelo homem comum, o qual muitas vezes é manipulado pelos noticiários.

No contexto do apoio que este jornal prestou aos Governos militares a preocupação com a

credibilidade estava em segundo plano. Importava, sobretudo, obter vantagens desse alinhamento ideológico, plenamente justificado como uma necessidade vital de defesa da democracia. Depois da abertura dos arquivos da época, hoje sabemos que interesses menos republicanos estavam em jogo. Bibliografia BASBAUM, Leôncio – História Sincera da República (1961 a 1967).São Paulo: Alfa-Omega, 1975. CRUZ, Heloisa de Faria e PEIXOTO, Maria do R. C. - “Na oficina do historiador. Conversas sobre história e imprensa” in Projeto História. Nº 35. São Paulo: EDUC, 12/2007, p. 255-272. D'ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio A. D., & CASTRO, Celso. Visões do golpe: A memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. GOLDENSTEIN, Gisela T. –Folhas ao vento: Contribuição ao estudo da Indústria Cultural. São Paulo: Tese de doutorado, Filosofia/USP, 1986. Folha de S. Paulo http://acervo.folha.com.br LUCA, Tania R. – “História dos, nos e por meio dos periódicos” in PINSK, Carla B. (org.) – Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. MARTINS, A. L. e LUCA, T. - Imprensa e cidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2006. MOTTA, Aricildes M. (org.) 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história. Tomo 1. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editoria, 2003. REZENDE, Maria José de - A ditadura militar no Brasil : repressão e pretensão de legitimidade : 1964-1984 [livro eletrônico] / Maria José de Rezende. – Londrina: Eduel, 2013. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 86 de 145

SERVIÇO SOCIAL E A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA APÓS A ALTA HOSPITALAR: ARTICULAR A REDE INTERSETORIAL UMA

QUESTÃO POSSÍVEL?

Maria Helena Biscuola27 Marlene Almeida de Ataíde28

Tatiana de Oliveira Lima29 Resumo O presente estudo se pautou por meio de uma pesquisa qualitativa, que teve como objetivo conhecer como ocorre a articulação com a rede de retaguarda social no processo de alta hospitalar da pessoa em situação de rua que se encontra convalescente em um hospital público da cidade de São Paulo. Compreender se há uma rede de suporte e analisar como os profissionais a avaliam e quais propostas possuem para possibilitar a efetivação dos direitos desta população. A pesquisa foi ancorada pelo materialismo histórico dialético, cujo método de abordagem adotado é pelo viés da história oral na perspectiva semi-estruturado. Desta forma foram entrevistados quatro profissionais que já vivenciam a experiência dos cuidados com essa população específica conforme orientação da Política Nacional da População em Situação de Rua. Sabe-se que na área saúde esse perfil de paciente após procedimento cirúrgico, se diferencia dos demais pelo motivo de que ele não tem o suporte familiar ou social, bem como para onde retornar, e se não t iver autonomia cabe ao Estado assumir essa responsabilidade nos cuidados com esse paciente, através das Políticas Públicas, direcionando-os para instituições específicas. Nesse ponto começa o grande entrave e a dificuldade do assistente social em conseguir a vaga para essa população em extrema vulnerabilidade social, prejudicando sua reabilitação, tornando-se uma regressão no quadro de saúde e uma violação de direitos. Palavras-chave: Pessoa em situação de rua. Convalescente. Saúde. Políticas Públicas. Intersetorialidade. Pesquisa Qualitativa. Abstract The present study was based on a qualitative research that aimed to know how the articulation with the social rearguard network in the process of hospital discharge of the homeless person thatis convalescent in a public hospital in the city of São Paulo Paulo. Understand if there is a support network and analyze how professionals evaluate it and what proposals they have to enable the rights of this population to be accomplished. The research was anchored by dialectical historical materialism which method of approach is taken by the bias of oral history in the semi-structured perspective. In this way, four professionals were interview, who already experience the care of this specific population according to the orientation of the National Policy of Population in Street Situation. It is known that in the health area, this profile of patients after a surgical procedure differs from others because they do not have the family or social support, as well as where to return, and if they do not have autonomy, it is up to the State to assume this responsibility in the Care with this patient, through the Public Policies, directing them to specific institutions. At this point begins the great obstacle and difficulty of the Social Worker in getting the vacancy for this population in extreme social vulnerability, harming their rehabilitation, becoming a regression in the health and a violation of rights. Keywords: Homeless Person. Convalescent. Health. Public Policies. Intersectoriality. Qualitative research.

27 Assistente Social, graduada pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU, Especialista em Residência Multiprofissional em Saúde com ênfase na atenção a terapia intensiva pela Secretária Municipal de Saúde – SP e Universidade de Santo Amaro. Pesquisadora. 28 Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Docente dos Cursos de Graduação de Serviço Social e da Residência Multiprofissional da Universidade Santo Amaro – Unisa/São Paulo. Líder de grupo de pesquisa credenciada pelo CNPQ. Linha de Pesquisa centrada na área das Ciências Sociais Aplicadas do curso de Serviço Social. Orientadora do Trabalho de Conclusão do Curso. 29Assistente Social, Preceptora do Serviço Social do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde na área de Intensivismo, Especialista em Gerontologia Social e Mestranda do curso Ciências da Saúde da Universidade Santo Amaro – UNISA. Co-orientadora do trabalho de Conclusão do Curso.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 87 de 145

Introdução

O número de pessoas em situação de rua da cidade de São Paulo “cresceu 10% nos últimos quatro anos e chegou a 15.905”. Os dados fazem parte do censo da população em situação de rua do município de São Paulo, realizados pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) entre 23 de fevereiro e 26 de março de 2015.

Nas últimas décadas é expressivo o aumento desse contingente na cidade de São Paulo,

cuja visibilidade torna-se inevitável, ainda mais porque passa a ocupar bons espaços de calçadas, a viver embaixo de marquises e de viadutos, nas praças, jardins, canteiros, transformando esses lugares em “territórios residenciais”, seja de forma temporária ou permanente. Observa-se, também, o quão heterogênea é essa população, pois nela se encontra desde famílias em seus variados arranjos, até grupos de crianças, adolescentes, idosos que passam o dia percorrendo as ruas da cidade, buscando sobreviver.

A população que vive em situação de rua tem seus direitos sociais básicos negados, dentre

estes o acesso à moradia, saúde, educação, alimentação, ao lazer e cultura. Alguns deles estão numa situação na qual suas necessidades fundamentais não são atendidas de forma adequada. Segundo Maria Lúcia Silva grande pesquisadora no assunto, constitui-se uma problemática tipicamente urbana, sendo uma manifestação radical da questão social na atualidade, essa manifestação da questão social deve ser visto à luz das transformações estruturais do sistema capitalista mundial, que gera uma massa de trabalhadores sobrantes.

Esse termo “sobrantes” é utilizado por Castel (1997), referindo-se a indivíduos que se

encontram completamente, rejeitado pelo sistema capitalista, pois para sobreviver, como todos na sociedade de consumo, dependem do mercado vendendo sua força e trabalho, mas como eles não participam do processo de circulação de mercadorias, simplesmente sobram, são excluídos da sociedade sofrem um processo de desfiliação social. Estão à margem da sociedade, sem terem suas necessidades básicas de sobrevivência atendidas.

Segundo Costa (2005), eles são um grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas

com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição da pobreza absoluta e a falta de pertencimento na sociedade formal. São homens, mulheres, jovens, famílias inteiras, grupos, que tem em sua trajetória a referência de ter realizado alguma atividade laboral, que foi importante na constituição de suas identidades sociais. Com o tempo, algum infortúnio atingiu suas vidas, seja a perda do emprego que por sua vez resulta na perda de seu papel social, seja pelo rompimento de algum laço afetivo, fazendo com que, aos poucos, fossem perdendo a perspectiva de projeto de vida, levando-os a viverem em condições sub-humanas, e todas as decorrências em relação a essa perda: desemprego, violência, perda de algum ente querido, perda de autoestima, alcoolismo, drogadição, doença mental ou outras adversidades da vida.

No Brasil, fica claro que só com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a

Assistência Social passa a fazer parte do tripé da Seguridade Social brasileira (saúde, previdência e assistência). Sendo um dos mais importantes progressos na política social do país. Sendo assim, a assistência social se insere no campo da responsabilidade estatal, rompendo com os laços históricos de atendimento a população em situação de rua com cunho de benemerência, exercido caridosamente por aqueles que se compadecem com a situação de exclusão do outro.

Através de muitas lutas e discussões, principalmente articuladas na cidade de São Paulo,

devido ao número expressível desse perfil de população na cidade, a discussão ganhou espaço e culminou na criação da Política Nacional para a População em Situação de Rua, decreto nº - 7053 de 23 de Dezembro de 2009. De acordo com essa política, considera-se população em situação de rua:

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 88 de 145

Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. LETRA 10

Com relação à saúde desse perfil de pessoas, existem inúmeras dificuldades devido à situação

de extrema vulnerabilidade em que eles vivem, além das questões psicossociais geradoras de sofrimentos físicos e emocionais, a maneira como eles vivem favorece riscos maiores para a saúde desse grupo, isso representa um desafio a efetivação de políticas de saúde que tem dificuldades para dar conta de toda essa complexidade, gerando a necessidade de se pensar em saúde-doença de forma diferenciada, pois as desingualdades sociais do país permeiam as diversas esferas da vida dos sujeitos. (BRETAS, CAVACCHIOLI, ROSA, 2005, p.579).

Há, por fim, uma criminalização da pobreza que gera o preconceito, esse estigma na area da

saúde pode causar sérios danos, devido à falta de atenção necessária no cuidado, acarretando consequências futuras a saúde do paciente. É importante destacar que devido ao preconceito e discriminação que essa população sofre é muito comum a recusa em acessar as unidades de saúde, devido a episódios de mau atendimento em hospitais, de negação a atendimento e impedimento de entrada nas unidades de saúde. Em 2009, o Ministério da Saúde institui o Comitê Técnico de Saúde para a População em Situação de Rua. A partir desse ponto se estabelece as diretrizes e estratégias para o enfrentamento das iniquidades e desigualdades na atenção com a saúde dessa população que vive em situação de extrema vulnerabilidade, convivendo com a violência, com a falta de alimentação, sem condições de higiene devido à falta de água a privação do sono e a falta de adesão ao tratamento de saúde.

Na área da saúde esse perfil de paciente após procedimento cirúrgico, se diferencia dos

outros pacientes pelo motivo que ele não tem o suporte familiar e moradia, e se não possuir autonomia, cabe ao Estado assumir essa responsabilidade nos cuidados com esse paciente através das políticas públicas, direcionando-os para Hospitais de Retaguarda ou Centros de Acolhidas referenciados da instituição. Nesse ponto começa o impasse e a dificuldade do assistente social em conseguir uma vaga para essa população de alta vulnerabilidade social após a alta hospitalar, pois na maioria das vezes não existe um serviço adequado para receber este perfil de sujeito/paciente. Esses pacientes que chegam ao hospital são atendidos referentes à questão da doença, mas a continuidade do atendimento esbarra na falta de vagas nos equipamentos, e isso pode gerar uma regressão no seu quadro de saúde, tornando-se uma violação de direitos.

Nesta perspectiva, o presente estudo teve como objetivo conhecer como ocorre a

articulação com a rede de retaguarda no processo de alta hospitalar da pessoa em situação de rua que se encontra convalescente30 em um hospital público da cidade de São Paulo. Compreender se há uma rede de suporte para esse perfil de paciente após a alta hospitalar. Analisar como os profissionais avaliam a rede de atendimento direcionada a esse público alvo. Verificar quais as propostas que os profissionais possuem para possibilitar a efetivação dos direitos desta população, possibilitando assim uma reflexão acerca das políticas públicas de atenção à pessoa em situação de rua e o papel do assistente social frente a essa demanda.

30 Paciente Convalescente são aqueles submetidos a procedimento clínico e/ou cirúrgico e que se encontra em recuperação e necessita de acompanhamento médico, de outros cuidados assistenciais e de reabilitação física funcional (BOLETIM OBSERVA SAÚDE - SP, 2013)10

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 89 de 145

Metodologia Este estudo foi pautado por uma pesquisa de natureza qualitativa foi utilizada entrevista,

este tipo de pesquisa estabelece uma correlação entre os dados coletados a partir das entrevistas fazendo um diálogo com a fundamentação teórica. O método adotado está amparado pela história oral. As referências éticas desta metodologia são a Resolução Nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde e o termo de Cessão Gratuita de direitos de depoimento oral e compromisso ético de não identificação do sujeito. A pesquisa foi submetida ao comitê de ética da UNISA e demais comitês das instituições cooparticipantes, sendo aprovada pelo número 54440316000000081.

Devido à temática tratar da rede de intersetorialidade a pesquisa foi realizada em

instituições de diferentes perfis de atendimento no Município de São Paulo, sendo que todas elas atuam com pessoas em situação de rua em período de convalescência. Desta forma, foram eleitas as seguintes instituições: 02 Hospitais Públicos situados na região Sul do município de São Paulo e 02 Centros de Acolhida Especial para Pessoas em Período de Convalescença - situados na região central da Capital - São Paulo. Desenvolvimento

As primeiras ações desenvolvidas no sentido de atender essa população específica no Brasil, assim como qualquer outra prática da assistência social, eram realizadas no campo da solidariedade, com cunho paternalista e conservador, através de obras sociais e filantrópicas, com ações de ordens religiosas, nada ligado ao direito. Yasbek ressalta que essa cultura moralista e autoritária culpa o pobre por sua pobreza é observada na atualidade nos campos de trabalho

Foi apenas com a Constituição de 1988 e a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS

(1993) que essas características começaram com o processo de intenção de rompimento para com o assistencialismo conservador e iniciou-se uma nova fase no enfrentamento das manifestações da questão social, com a Seguridade Social e a Proteção Social Pública, estabelecendo uma nova matriz: a do direito, da universalização dos acessos e da responsabilidade estatal. Visando promover um conjunto de seguranças que cubram, reduzam ou previnam riscos e vulnerabilidades sociais.

Em 2004, acontece o episódio que ficou denominado de “Massacre na Sé” no centro de

São Paulo, com o ataque a 15 pessoas em situação de rua, resultando na morte de 07. Esse massacre exaltou a cobrança por proteção e políticas públicas para essa população. No mesmo ano foi aprovada a Política Nacional de Assistência Social – PNAS (Resolução CNAS nº 145, de 15 de outubro de 2004)

Entre as proteções asseguradas aos sujeitos sem referência, a PNAS descreve questões

voltadas “à segurança de moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram sem referência, ou em situação de ameaça”

Com isso, fica legitimada a necessidade de uma política que atenda ao fenômeno população

em situação de rua, uma vez que é uma população que vive em circunstância de alta complexidade, porque sofre a violação de todos os seus direitos sociais.

O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) é lançado em 2005 sendo apoiado

pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e em 2009 a criação da Política Nacional para a População em Situação de Rua, no seu artigo 7º são objetivos dentre outros:

Assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda; criar meios de

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 90 de 145

articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde para qualificar a oferta de serviços.

Na área da saúde um passo importante para atender esse público foi o Comitê Técnico de

Saúde por meio da Portaria MS/GM n° 3.305, de 24 de dezembro de 2009. E em 2013 houve a publicação do Plano Operativo para Implementação de Ações em Saúde da População em Situação de Rua por meio da Resolução n° 2, de 27 de fevereiro de 2013. Esta Resolução define as diretrizes e estratégias de orientação para o atendimento a população em situação de rua no âmbito do SUS, cuja redação no seu Artigo 3º traz a seguinte orientação; “O processo de enfretamento das iniquidades e desigualdade em saúde com foco na PSR31 no âmbito do SUS sera operacionalizado mediante articulação intra e intersetorial e transversalidade no desenvolvimento de políticas e ações prioritárias que garantam o acesso dessa população às ações e serviços públicos de saúde.”

A população em situação de rua convalescente necessita de um lugar para ficar até que normalize sua situação de saúde. Nesse ponto entra a atuação do assistente social na área da saúde na busca de uma vaga na rede socioassistencial para dar continuidade do tratamento desse paciente. A referência do Assistente Social que está no hospital precisando de uma vaga para a PSR convalescente é feito com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS.

Através da pesquisa identificamos que atualmente na cidade de São Paulo só existe duas

instituições que tem essa característica híbrida com a atuação de profissionais da saúde e da assistência que é o Centro de Acolhida Especial para Pessoas em Período de Convalescença - CAE Boracéia que fica na Rua Norma Pieruccini Giannott, 77 Santa Cecília com 80 vagas e Casa de Cuidados Lar Transitório Batuíra, situado na Rua Maria José, 311 no centro de São Paulo, com 13 vagas.

Para requerer a vaga essa profissional precisa encaminhar junto com o seu relatório social

os relatórios do médico e do profissional da enfermagem, pois a instituição que irá receber o paciente deve saber em que condições clínicas o mesmo se encontra. Este é o fluxo, mas devido à morosidade ao acesso a vaga, nota-se com a narrativa da entrevistada, que a equipe culpabiliza a área do Serviço Social por não conseguir a vaga.

Na busca de compreender a percepção das profissionais que atuam com esse perfil de sujeitos/pacientes, foi solicitado que apontasse quais as dificuldades encontradas na realidade cotidiana no atendimento a pessoa convalescente que está em situação de rua. Para as profissionais que atuam nos hospitais, a questão mais evidente foi a falta de vaga.

A gente encontra várias dificuldades, a gente avalia isso como uma deficiência do serviço, das questões das políticas públicas. Tem uma lei da população em situação de rua, que lá diz que ele tem o direito a uma moradia, porém efetivamente a gente não consegue a vaga em um albergue como na situação de um convalescente isso é ineficaz, um serviço que garanta a inserção dele dentro deste contexto, é bem difícil!.[…] Eu fiz um levantamento de 06 casos daqui somente 01 caso eles conseguiram a vaga. Cinco nós conseguimos, através de contato com a família os outros casos foram para Casa de Terapia – Comunidade Terapêutica que acabou assumindo o paciente, justamente por que nós não conseguimos através do CREAS, porque não tem esse serviço ele é limitado para esse tipo de serviço. E nós do Serviço Social sofremos uma pressão imensa do hospital para conseguir a vaga. (Entrevistada G). Encontramos vários entraves, pois existem poucos recursos e serviços que atendem população de rua convalescente e as políticas públicas voltadas para esse segmento social ainda são ineficazes se distanciando constantemente da teoria com a prática.

31 PSR – População em situação de rua

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 91 de 145

Diante do exposto avalio como negativa, pois mesmo havendo legislações que assegurem os direitos desta população, quando temos que encaminhar ou transferi-los não encontramos, com facilidade serviços que nos atendam. E quando surgem determinadas vagas, a burocracia e os perfis de cada serviço instituição, muitas vezes são contraditórios com as demandas apresentadas pelos pacientes que internam neste hospital. (Entrevistada H).

Em contrapartida as entrevistadas, que atuam nas instituições de acolhimento desse perfil de pacientes, referem que não tem condições para atender toda a demanda, ao alegar os seguintes motivos:

Quando a gente fala em período de convalescença, significa que as pessoas viriam para cá, teriam um apoio, a gente ajuda no que for preciso, por exemplo, quando o usuário fratura a perna, então ele viria para nós; nós daríamos o suporte desse tratamento junto com a rede, ele se restabeleceria, e nós o encaminharíamos para um Centro de Acolhida normal [...] Mas na realidade isso não esta acontecendo, porque a característica do nosso serviço aqui mudou muito, ficou mais pessoas com comprometimento mental, onde elas chegam para nós e nós não conseguimos mais transferi-las, porque não há um serviço que atenda elas nessa demanda. Eles acabam ficando permanente aqui, eu não consigo ajudar a rede com as vagas, eu não consigo fazer esse rodízio. (Entrevistada C) Precisaria muitas mais casas como a nossa que pudessem atender num período mais longo. Porque se eu fico com um caso por um ano, por exemplo, eu não irei atender outros casos necessários. Realmente aqui é um Lar Transitório no período de convalescência, então precisaria locais onde eles pudessem ficar por 24 horas em que eles fossem acolhidos visando a saída da condição de rua. Para isso deveria aumentar as vagas, mas com qualidade, pois não adianta só aumentar o número de vagas, tem que ter qualidade no atendimento, visando auxiliá-los, apoiá-los para a ressocialização, por que senão a gente fica numa situação sempre igual onde ele vai para um Centro de Acolhida, vai para outro e outro. Ele precisa sair realmente da rede. (Entrevistada B).

Trata-se de narrativas emblemáticas em que as profissionais, tanto aquelas que trabalham no hospital quanto as que atuam nos Centros de Acolhida Especial, são pressionados para conseguir a vaga, mas não dispõem de ferramentas e condições para atender a demanda devido à precarização de trabalho em que elas estão expostas.

Com isso observa-se que a questão da intersetorialidade fica prejudicada e o Serviço Social

acaba procurando outros meios de resolver o problema, atuando de uma forma solitária dentro do contexto hospitalar. O grande entrave relacionado à população em situação de rua na área da saúde é a construção destas especificidades dentro de cada política, isso pede um diálogo intersetorial nos diversos níveis. Mas na maioria das vezes a realidade da pessoa não se enquadra nos programas e projetos inseridos nos equipamentos, principalmente relacionado à pessoa em situação de rua convalescente, pessoas sem autonomia que não tem família para dar o suporte necessário, cabendo ao Estado assumir a responsabilidade com o paciente, que deve ter seus direitos garantidos. Esse acompanhamento de saúde deve envolver cuidados específicos por profissionais de diversas áreas: medicina, serviço social, enfermagem, fisioterapia, etc.

Na área da Assistência os equipamentos são regidos conforme a Tipificação da Rede

Socioassistencial do Município de São Paulo, através da Portaria nº 46 e 47/2010/SMADS. Serviços que se compõem em rede, dentro do Sistema Único de Assistência Social - SUAS de âmbito nacional, são de responsabilidade da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social - SMADS - órgão de comando único na cidade de São Paulo. São os

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 92 de 145

Centros de Acolhida Especial – CAE, modalidade de serviços, que atende a pessoa em situação de rua convalescente.

Ao colocar sobre a realização do trabalho pautado na perspectiva da e intersetorialidade

as Assistentes Sociais que atuam na realidade hospitalar, acrescentaram, Os serviços que mais articulamos aqui no hospital são os da Assistência Social, da própria Saúde, Poupa Tempo, Cartórios, DHPP32, IIRGD33, e entidades filantrópicas. Realizamos esses contatos através de contatos telefônico, e-mail, visitas institucionais. [...] Aqui no hospital existe um Grupo de Trabalho - GT Pop Rua Convalescente. Esse grupo já existe ha mais de um ano e há a participação de vários serviços: Saúde, Assistência Social, Direitos Humanos, Defensoria Pública e Organização Civil. (Entrevistada H). Essa questão da rede intersetorial, a gente pensa no sentido de fortalecer essa rede, nós temos uma grande dificuldade de vínculo com o CREAS, nós solicitamos para eles participarem de reuniões técnicas e eles não comparecem. [...] Agora se o paciente ficar mais de um mês nós notificamos a Defensoria, pensando na solução e a visibilidade da demanda para que se tenha dados para efetivação das Políticas Públicas, porque São Paulo só tem 02 serviços para pessoa em situação de rua convalescente e não dá conta! (Entrevistada G)

Essa ineficiência das articulações entre as políticas acaba prejudicando o cidadão de direitos e refletindo na atuação do Assistente Social que não consegue dar conta da demanda.

Para Silva (2011) o problema da fragmentação das políticas, dificulta o acesso ao direito, ela atribui como um dos motivos a seletividade, a questão histórica do conservadorismo e assistencialismo e também aos mínimos sociais inseridos em toda e qualquer política social existente no território nacional, pontua que a política para a população em situação de rua tem uma cobertura ínfima, e destaca que isso ocorre por causa do pouco financiamento e também pela dificuldade do sujeito acessar seu direito devido aos critérios adotados que são excludentes.

Diante dessa realidade foram indagadas as profissionais que vivenciam no cotidiano de

trabalho todas essas dificuldades, quais seriam as propostas que elas teriam para garantir a efetivação dos direitos dessa população convalescente que esta em situação de rua e as mesmas se colocaram da seguinte forma;

Em primeiro lugar, vou falar sobre a questão dos vínculos familiares, acho que as políticas públicas deveriam dar suporte para as famílias acolherem essas pessoas, na grande maioria as famílias não cuidam por que não tem condições, é dever do Estado dar condições mínimas para que as famílias possam acolher essas pessoas. [...] Outra coisa importante nessas instituições acolhedoras é a questão do transporte, tem que ter veículos disponíveis, por que você põe um auxiliar de enfermagem, uma acompanhante para ir junto às consultas, ou levar para tirar um documento, pois a documentação precisa estar em dia para receber o benefício. Outra questão são as pessoas demenciadas, que não conseguem tirar seus benefícios, tem usuário aqui que perde o benefício, pois não conseguem ir lá e digitar a senha para tirar e nós não podemos fazer isso por eles, porque não somos tutores legais

32DHPP - Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa 33IIRGR – Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt / Departamento de

Inteligência Polícia Civil - DIPOL (Assistente Social, do hospital, encaminha relatório solicitando

exame datiloscópico para a identificação de pacientes desconhecidos)

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 93 de 145

deles. E quem cuida disso? Veja os problemas que nós temos que resolver! Veja onde esbarra na política, tem um monte de problemas! Se os políticos resolverem essas questões a gente sanava muitos problemas. [...] Tem que ser um espaço de cuidado digno, que tenha a equipes articuladas, enfim uma normativa que dê condições de trabalhar com facilidade, dentro dessa perspectiva híbrida. Essas dificuldades vão precarizando o serviço e dificultando a forma de trabalhar. É muito triste quando você olha e vê o teu serviço incapaz, porque tem uma tipificação a portaria 46 e 47 que me diz o que nosso serviço tem que fazer e isso muitas vezes não me da condições para trabalhar com facilidade com esses perfil de usuários que temos aqui; porque nossas necessidades aqui são outras. Por isso se for abrir mais espaços tem que sentar com as Secretarias e discutir bem essa questão, com a Assistência, Saúde, Previdência, Direitos Humanos e amarrar isso de uma maneira que se possa trabalhar com dignidade e condições de trabalho. Ou então quando aparecer os casos que se tenham vagas em espaços adequados. Tem casos que aparecem e nós estudamos, estudamos e não vemos saída. Nós ficamos muito frustrados quando não conseguimos atender a rede. (Entrevistada C). “grifo nosso”

Vale destacar que a mesma entrevistada em vários momentos de sua fala retoma a questão do transtorno mental e a demência. Esse tema é muito forte para quem atua em Centro de Acolhida Especial, pois, segundo ela, são essas as vagas mais solicitadas para a instituição,

Outro problema é a questão mental tem que trabalhar junto, porque o maior problema é a senilidade, o alzheimer, então essa saída tem que estar muito estruturada, com articulação com CAPS, CRATOD34, atenção primária toda envolvida, na UBS com ESF35, com o PAI.36 Enfim a rede bem articulada, uma equipe híbrida, para não ficar nessas condições que estamos aqui. E quanto aos adultos com transtornos mentais também, eu não estou falando em voltar os manicômios, ou hospitais psiquiátricos, já que extinguiram esses serviços, que a política dê subsídios para um bom atendimento, que melhorem essas Casas Terapêuticas, que abram mais vagas nos CAPS. (Entrevistada C)

Considerações finais

As experiências obtidas com as entrevistas das profissionais que atuam tanto da área da Assistência como na Saúde, mais especificamente dentro dos hospitais, despontou uma realidade profissional angustiante diante da precarização do trabalho no sentido de não haver condições suficientes para suprir os direitos dessa população convalescente em situação de rua, devido à deficiência dos serviços, a dificuldade em articular a rede socioassistencial e das políticas públicas Observa-se nos relatos das profissionais experiências como: sentimento de impotência, frustração, tristeza, pressão por parte de colegas de trabalho e até mesmo do próprio Estado em busca da vaga para a pessoa convalescente que está em situação de rua. Chamou-nos a atenção a mescla de pacientes com patologias diferentes nos CAEs, (doenças físicas, transtornos mentais, demências), onde se constata que essa desorganização no atendimento gera a deficiência de vagas por causa da falta de rotatividade no serviço para o qual ele foi proposto, que seria o atendimento somente ao convalescente e com seu restabelecimento e encaminhamento a um Centro de Acolhida normal. Nesse aspecto destacamos vários obstáculos, entre eles a questão do envelhecimento nas ruas e as consequências que essas condições precárias de vida causam, levando a doença e a convalescença. O poder público deve estar preparado e dar conta de atender esse aumento de idosos em situação de rua com ILPs bem estruturadas, de grau I, II e III. Outro ponto importante é a questão mental,

34 CRATOD - Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas. 35 ESF - Estratégia Saúde da Família 36 PAI - Programa Acompanhante de Idosos

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 94 de 145

pois se notou através das vivências das entrevistadas, que ainda há muito que se discutir nessa área, depois da Reforma Psiquiátrica, havendo a premente necessidade de se aumentar os CAPS.

Através das leituras de autores consagrados que subsidiou a fundamentação teórica deste

trabalho avalia-se que o problema da população em situação de rua se configura como expressão da questão social, pautada pelo sistema capitalista que é excludente e desigual. População em situação de rua é uma categoria que envolve a questão estrutural da precarização do trabalho ou até mesmo da falta dele; isso gera a pobreza e a miséria.

Uma questão que se avalia necessário ressaltar diz respeito ao uso abusivo de substâncias

psicoativas, e isso é um fator de risco atrelado à evolução de doença, levando-os as dificuldades na convalescença. Destaca-se por oportuno a importância de que os gestores públicos se debrucem sobre essa temática, tendo em vista que quando se refere a gestores destaca-se a questão da prevenção desde a infância envolvendo diversas pastas como: da Educação, da Saúde, da Assistência, da Previdência, da Cultura, do Esporte, do Trabalho, dentre outras, pois isso é um problema de questão pública. Em um país que cobra tantos impostos de seus cidadãos, os direitos que estão registrados em nossa “Constituição cidadã” deveriam ser efetivados. Se o Estado oferecer condições dignas de vida a sua população as famílias certamente assumirão mais os cuidados dessas pessoas convalescentes.

Outro destaque diz respeito à questão do cuidado em rede, necessitando atenção a frase a seguir ao frisar que: “Não dá para cuidar da rua se não for em rede, e fazer rede e trabalhar em rede é sempre muito complexo” Mas embasados nas discussões da pesquisa esse é o caminho. Se essa rede for bem articulada não é necessário criar tantos serviços, a muitas demandas que podem ser atendidas dentro do território, mas essa rede deve estar bem estruturada, com discussões de casos (matriciamentos), articulação com UBS, AMA, AME, CAPS, CAE, hospitais, entre outros e todos os programas que envolvem esses serviços. Para que isso funcione os gestores públicos deve repensar a questão dos serviços dando condições legais, normativas que facilitem a atuação dos profissionais, além de flexibilizar os protocolos para que os profissionais tenham condições de atuar nos cuidados com a pessoa em situação de rua convalescente, dando a eles condições dignas de vida.

Considera-se importante ressaltar que os estudos feitos permitiram avaliar o quanto as Políticas Públicas não atendem de fato as demandas sociais que tem surgido no que diz respeito ao crescimento dessa população convalescente em situação de rua, pois esse sujeito demanda um trabalho específico que deve ser articulado com diversas políticas, necessitando de um trabalho intersetorial realizado em rede nos diversos níveis. Reafirma o nosso compromisso, principalmente a preponderância do Serviço Social na luta de continuar pensando e buscando respostas e maneiras para a construção de políticas públicas que contemplem as necessidades desse perfil de usuário.

Tal compromisso em reafirmar e buscar a efetivação dos direitos dessa população como foi observado na articulação dos profissionais que atuam nas diversas esferas de atendimento para estes sujeitos, quando se uniram e organizaram o Grupo de Trabalho para Pop Rua, a fim de fomentar o debate em relação a esta temática, bem como pleitearem equipamentos híbridos para todas as regiões de São Paulo.

Portanto este estudo possibilitou identificar que articular a rede intersetorial é uma questão possível, quando todos os profissionais das mais divesas áreas e segmentos que prestam atendimento para esta população se organizam em rede para reinvidicar/ ou pleitear a efetivação de direitos destes sujeitos que sofrem as várias mazelas da expresão da questão social que nestes casos estão vinculados ao processo saúde doença.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 95 de 145

Referências bibliográficas BRASIL. Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado; 1988. ______. Lei nº8742/1993- Lei Orgânica da Saúde – LOAS, 1993 ______. Ministério da Saúde. Brasília: Portaria nº 3.305, de 24 de dezembro de 2009 Institui o Comitê Técnico de Saúde para a População em Situação de Rua. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt3305_24_12_2009.htm Acesso em 16 fev.2016 ______. Ministério da Saúde, Plano Operativo para Implementação de Ações em Saúde da População em Situação De Rua - 2012-2015. Disponível em: <www.mpma.mp.br/.../PLano_Operativo_para_Implementação_de_Ações_em_Saúde>. Acesso em 21 ago2016. ______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS. Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social, PNAS. Brasília, 2004. ______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional para População em Situação de Rua, Brasília 2009 ______. Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social – SMADS, Portaria nº 46/2010/SMADS. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/legislacao/portarias/index.php?p=3214>. Acesso em 11set 2016 BRÊTAS ACP; CAVICCHIOLI MGS; ROSA AS. O Processo saúde-doença-cuidado e a população em situação de rua. Rev Latino-am Enfermagem, v.13, n.4, p.576582, 2005 CASTEL, Robert. As armadilhas da exclusão. In: Wanderley, Mariângela; Bògus, Lúcia; Yasbek, Maria Carmelita. Desigualdade e a questão social. São Paulo: EDUC, 1997 COSTA, A M. População em Situação de rua: Contextualização e caracterização. In: Revista Virtual Textos & Contextos, nº 4, dez. 2005. Porto Alegre. OBSERVATÓRIO DE SAÚDE DA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO. Leitos de Retaguarda: definições e perfil dos leitos na região metropolitana de São Paulo. São Paulo: FUNDAP, 2011. 33 p. (Série 2 Boletim Observa Saúde.SP) – (Série 2. Ano III, nº 1) SÃO PAULO. Município, Pesquisa Censo da população em situação de rua na cidade de São Paulo. Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FIPE, 2015. SILVA, MLL O trabalho do/a Assistente Social no SUAS: In. Seminário Nacional / Conselho Federal de Serviço Social - Gestão Atitude Crítica para Avançar na Luta. Brasília: CFESS, 2011 YASBEK - Pobreza no Brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamento. In Serv. Soc. 110. São Paulo Apr. /June 2012 Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 96 de 145

TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA: OPERADOR DE TELEMARKETING EM INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS EM MINAS GERAIS

Marina Braga da Silva37

Hedvaldo Caldeira Costa38 Resumo Diante das controvérsias no julgamento de ações envolvendo a terceirização do serviço de operador de telemarketing na área bancária, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, publicou o Incidente de Uniformização de Jurisprudência e a Súmula Nº 49, com a finalidade de regulamentar o tema. A regulamentação da terceirização foi analisada nas perspectivas do Direito e do Território. A questão foi decidida pelo órgão e seu entendimento é de que esse tipo de terceirização é ilícita, em específico, para os bancos no Estado de Minas Gerais. Palavras-chave: Terceirização ilícita; direito; território. Abstract Considering the controversy in the trial of actions involving the outsourcing of the telemarketer operator in the banking area, the Regional Labor Court of the 3rd Region, published the Standardization Incident of Case law and the Precedent No. 49 with the purpose to regulate the matter. The regulation of the outsourcing was examined from the perspectives of law and of the Territory. The issue was decided by the body and its understanding is that this type of outsourcing is illicit, in particular, for banks in the State ofMinas Gerais. Keywords: illicit Outsourcing; law; territory. Introdução

A terceirização do serviço de operador de telemarketing estava gerando dúvidas de sua

licitude no julgamento de ações envolvendo especificamente as instituições bancárias. Diante das controvérsias existentes sobre a temática, o Tribunal Regional do Trabalho

decidiu a questão, através do Incidente de Uniformização de Jurisprudência e da Súmula Nº 49. A regulação da terceirização do serviço de operador de telemarketing pelo Tribunal

Regional do Trabalho da 3ª Região será analisada nas perspectivas do Direito e do Território. O método utilizado para o desenvolvimento da pesquisa é a revisão bibliográfica. No

presente trabalho também será apresentada a jurisprudência sobre a temática com o propósito de verificar a sua aplicação no estado de Minas Gerais, com finalidade de mostrar como é a relação entre território, regulação e a sua importância.

37 Advogada, Mestre em Gestão Integrada do Território pela Universidade do Vale do Rio Doce - Univale (2014/2016), possui pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho pela Anhanguera-Uniderp (2013), graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce - FADIVALE (2006) e graduação em Administração pela Faculdade de Administração Governador Valadares – FAGV (2004). 38 Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Sete Lagoas (2001). Atualmente é analista judiciário - área judiciária - Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, atuando principalmente no seguinte tema: cálculos trabalhistas.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 97 de 145

Na perspectiva jurídica

A controvérsia no julgamento das lides trabalhistas referente à terceirização do serviço de telemarketing na área bancária, em Minas Gerais, foi identificada na apreciação de Recurso de Revista, pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). Diante disso, foi determinado ao Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região a uniformização da jurisprudência sobre a matéria.

A uniformização da jurisprudência pelos Tribunais Regionais do Trabalho segue a

prescrição do artigo 896, §3º da CLT. O incidente de uniformização de jurisprudência está previsto no Capítulo I do Título IX do Livro I da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil (BRASIL, 1973).

É importante ressaltar, que após a revogação do Código de Processo Civil de 1973, o

incidente de uniformização de jurisprudência continua a ter aplicabilidade na seara trabalhista. Assim, a sua subsistência é corroborada pela Resolução nº 205, de 15 de março de 2016, que regulamenta a Instrução Normativa Nº 40 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), conforme o artigo 2º.

A atuação do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região na uniformização da

jurisprudência também está em conformidade com o artigo 896, § 4º da CLT, que determina a sua realização na hipótese de ser identificada, através de provocação ou de ofício das partes ou do Ministério Público do Trabalho, a ocorrência de decisões conflitantes no Tribunal Regional do Trabalho (TRT), sobre a questão discutida em recurso de revista. Desta forma os autos retornam do Tribunal Superior do Trabalho (TST) para a sua origem.

A edição do Incidente de Uniformização de Jurisprudência demonstra a necessidade de

definir a licitude/ilicitude da terceirização do serviço de telemarketing, na atividade bancária, em Minas Gerais.

O desembargador João Bosco Pinto Lara durante a sessão, na qual foi suscitado o

Incidente de Uniformização de Jurisprudência, destacou que ao decidir pela ilicitude da contratação do telemarketing através de empresa interposta na terceirização de atividade bancária, o Tribunal criou precedente que servirá de parâmetro para análise de questões semelhantes em outros segmentos da economia.

Na sessão um dos desembargadores manifestou sua opinião, no sentido de que considera

ilícita este tipo de terceirização somente para “call Center”, no caso das empresas de telecomunicações. Em que pese o seu posicionamento, a matéria encontra-se sobrestada, aguardando julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em decorrência da repercussão geral reconhecida no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 791932. Na oportunidade percebeu-se pelo voto dos desembargadores a divergência, quanto à ilicitude ou licitude da terceirização deste serviço, entretanto a maioria dos votos considerou ilícita essa modalidade de terceirização.

Nos autos do processo nº 02555-2014-183-03-00-9 foi reconhecida a fraude na

terceirização, a condição de bancário do trabalhador terceirizado, sendo aplicado o tratamento isonômico. Deste modo, o Pleno do referido Tribunal decidiu pela ilicitude da terceirização de “telemarketing”, por ser atividade-fim da instituição bancária, pertencente à administração pública indireta, Caixa Econômica Federal.

Assim, a ilicitude da terceirização do serviço de telemarketing pelos bancos foi decidida em

15 de dezembro de 2015, no processo nº 02555-2014-183-03-00-9, que deu origem ao Incidente de Uniformização de Jurisprudência, em sessão do Pleno do Tribunal Regional do Trabalho do Estado de Minas Gerais, “in verbis”:

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 98 de 145

TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇO DE "TELEMARKETING". INSTITUIÇÃO BANCÁRIA. ILICITUDE. RESPONSABILIDADE. I - O serviço de telemarketing prestado por empresa interposta configura terceirização ilícita, pois se insere na atividade-fim de instituição bancária (art. 17 da Lei n. 4.595/64). II - Reconhecida a nulidade do contrato de trabalho firmado com a prestadora de serviços (arts. 9° da CLT e 942 do CC), forma-se o vínculo de emprego diretamente com o tomador, pessoa jurídica de direito privado, que responde pela quitação das verbas legais e normativas asseguradas aos seus empregados, com responsabilidade solidária da empresa prestadora. III- A terceirização dos serviços de telemarketing não gera vínculo empregatício com instituição bancária pertencente à Administração Pública Indireta, por força do disposto no art. 37, inciso II e § 2°,. da Constituição Federal, remanescendo, contudo, sua responsabilidade subsidiária pela quitação das verbas legais e normativas asseguradas aos empregados da tomadora, integrantes da categoria dos bancários, em respeito ao princípio da isonomia. (TRT da 3.ª

Região; Processo: 02555-2014-183-03-00-9IUJ; Data de Publicação: 15/12/2015; Órgão Julgador: Tribunal Pleno; Relatora: Rosemary de Oliveira Pires)

Após o incidente de uniformização da jurisprudência, o Tribunal Regional do Trabalho da

3ª Região, editou a Súmula 49, em de 15 de dezembro de 2015, que aborda a ilicitude da terceirização do serviço de telemarketing em instituição bancária, “in vebis”:

TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇO DE "TELEMARKETING". INSTITUIÇÃO BANCÁRIA. ILICITUDE. RESPONSABILIDADE. I - O serviço de "telemarketing" prestado por empresa interposta configura terceirização ilícita, pois se insere na atividade-fim de instituição bancária (art. 17 da Lei n. 4.595/64). II - Reconhecida a nulidade do contrato de trabalho firmado com a prestadora de serviços (arts. 9º da CLT e 942 do CC), forma-se o vínculo de emprego diretamente com o tomador, pessoa jurídica de direito privado, que responde pela quitação das verbas legais e normativas asseguradas aos seus empregados, com responsabilidade solidária da empresa prestadora. III - A terceirização dos serviços de "telemarketing" não gera vínculo empregatício com instituição bancária pertencente à Administração Pública Indireta, por força do disposto no art. 37, inciso II e § 2º, da Constituição Federal, remanescendo, contudo, sua responsabilidade subsidiária pela quitação das verbas legais e normativas asseguradas aos empregados da tomadora, integrantes da categoria dos bancários, em respeito ao princípio da isonomia. (RA 283/2015, disponibilização: DEJT: 22, 23, 28 e 29/12/2015, 7, 8 e 11/01/2016; republicação em razão de erro material: disponibilização: DEJT/TRT3/Cad. Jud. 27, 28 e 29/01/2016).

O TRT da 3ª Região ao editar o Incidente de Uniformização de Jurisprudência e a Súmula

nº 49 demonstra seguir o posicionamento do TST sobre terceirização, previsto na Súmula 331. Apesar de a Súmula referir-se a hipóteses de terceirização lícita, a mesma consequência jurídica da responsabilidade subsidiária aplica-se ao Ente Público pela impossibilidade de formação de vínculo empregatício direto em razão da regra constitucional do concurso público. Ressalve-se, todavia, posicionamento doutrinário e jurisprudencial de responsabilidade solidária nestes casos, nos termos do art. 942 do Código Civil.

A elaboração da Súmula nº 49 pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região apresenta

relevância, pois serve de paradigma no conhecimento do recurso de revista, segundo o artigo 896, §6º da CLT:

§ 6o Após o julgamento do incidente a que se refere o § 3o, unicamente a súmula regional ou a tese jurídica prevalecente no Tribunal Regional do Trabalho e não

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 99 de 145

conflitante com súmula ou orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho servirá como paradigma para viabilizar o conhecimento do recurso de revista, por divergência.

É a partir da fonte que se cria o direito, e com este, a obrigação e a exigibilidade ao cumprimento desta. A fonte formal regula o comportamento das pessoas, que por sua vez, tem que ter ciência do direito vigente que as obriga naquele momento (CASSAR, 2015, p. 50). Portanto, a edição de Súmula pelo Tribunal é relevante por ser fonte formal do Direito do Trabalho. Além disso, verifica-se através de seu poder normativo a coercibilidade em relação à conduta das pessoas e aplicabilidade da legislação em vigência.

Quanto à exteriorização de fatos e a exigibilidade das fontes formais destaca-se as lições de

Barros e Alencar: “... as fontes formais traduzem a exteriorização dos fatos por meio da regra jurídica. Essa fonte pode ser imposta de forma coercitiva, obrigando de maneira geral” (BARROS; ALENCAR, 2016, p. 76).

No tocante à aplicação de Súmula pelo Tribunal Regional, Cassar (2015) destaca o seu

efeito vinculante com relação aos desembargadores, uma vez que sua aplicação é obrigatória em conformidade com a Lei Nº 13.015/2014, o ato 491/14, IN 37/15 do TST e Resolução 195/15.

Diante do reconhecimento da ilicitude da terceirização do serviço de telemarketing na área

bancária, após a publicação da Súmula nº 49, o Tribunal Regional da 3ª Região já está aplicando em suas decisões o entendimento nela firmado, sendo comprovado o seu efeito vinculante em relação aos desembargadores. Neste sentido, destaca-se a seguinte ementa:

TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA. RECUPERADOR DE CRÉDITO. ATIVIDADE-FIM. BANCÁRIO. Restou incontroverso que a atividade exercida pela reclamante era de recuperação de crédito de clientes do 2º reclamado, na função de teleatendimento. E sob esse aspecto, a contratação da reclamante, através de empresa terceirizada, para realizar atividades típicas dos bancários, tal como o atendimento a clientes, fere o disposto nos artigos 9º e 468 da CLT. Este Eg. Tribunal Regional perfilha o atual posicionamento no sentido de que o operador de teleatendimento, ou telemarketing, atuando na cobrança de débitos junto aos clientes do banco, negociando dívidas e buscando o resgate de ativos financeiros para as instituições bancárias, presta serviços inseridos na atividade-fim do banco, circunstância que caracteriza a ilicitude da terceirização, nos termos do item I da Súmula 331 do TST. Esse o teor da Súmula 49, que dispensa novas discussões acerca da ilicitude da terceirização do serviço de teleatendimento, ou telemarketing, em instituição bancária. Uma vez definido o posicionamento predominante neste Regional pelo Tribunal Pleno, impõe-se lhe o acatamento. (TRT da 3.ª Região; Processo: 0001434-79.2014.5.03.0113 RO; Data de Publicação: 02/05/2016; Órgão Julgador: Terceira Turma; Relator: Milton V.Thibau de Almeida; Revisor: Emilia Facchini).

Do ponto de vista do território

A edição do Incidente de Uniformização de Jurisprudência e da Súmula 49 pelo Tribunal

Regional do Trabalho da 3ª Região pode ser estudada do ponto de vista do território, pois a regulamentação decorreu da necessidade de uma norma, para ser aplicada a todos os processos no território do Estado de Minas Gerais, referentes às relações de trabalho terceirizadas das instituições bancárias.

Destacam-se as lições de Antas Jr. quanto à necessidade e ao papel da lei. Embora a

publicação da lei seja atual, recente, ela serve para atender as necessidades anteriores e visa à harmonização das relações sociais no tempo e no espaço (ANTAS JR, 2005).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 100 de 145

As normas jurídicas editadas pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região são

relevantes para a divisão territorial do trabalho, especificamente na terceirização de serviço bancários. A norma jurídica regula de forma detalhada as seguintes relações: sociais, produção, circulação e consumo, garantindo a solidariedade entre os envolvidos e a harmonia da divisão social e territorial do trabalho (ANTAS JR, 2005).

A atuação do órgão público está em consonância com os ensinamentos de Antas Júnior

sobre a percepção da norma pela geografia e o seu uso no território. Segundo o autor, a norma para a geografia tem origem na tensão ou na harmonia dos objetos componentes do espaço geográfico. No caso da terceirização do serviço de telemarketing a norma é consequência da tensão ocorrida no espaço geográfico.

Na edição do Incidente de Uniformização de Jurisprudência e na Súmula 49 do Tribunal

Regional do Trabalho da 3ª Região identifica-se a normatização pelas ações dos conceitos de território normado e território norma de acordo com Antas Jr, como se verifica a seguir:

Assim temos a instituição legal das fronteiras políticas, isto é, a normatização do espaço geográfico pelas ações. Articulam-se a isso a própria estruturação e a organização do território, realizadas segundo uma racionalidade que se pretende o mais eficaz possível na ordem econômica vigente, reguladoras dos comportamentos e diretrizes das ações pautadas pelo que se afigura útil a essa ordem. No que tange à normatização pelas ações, Milton Santos66 fala em território normado; no que concerne à configuração territorial produtora de normas, em território como norma. No território normado, o elemento repressivo sobrepõe-se aos demais; no território como norma, o elemento comunicacional fornece o referencial diretor. Em ambos os casos, que de fato compõem um par dialético, o elemento sistêmico está presente, primeiro organizacionalmente, depois, organicamente. (ANTAS Jr, 2001, p.6).

As normas editadas pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região funcionam como

território normado, pois se trata de elemento repressor com a finalidade de coibir a terceirização ilícita do serviço de telemarketing e território como norma, na medida em que estabelece a legislação considerada referência e, portanto, deverá ser aplicada nas decisões do órgão.

Considerações finais

As normas sobre terceirização de serviço de operador de telemarketing foram editadas em virtude da repetição de processos a serem julgados pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região acerca da questão. Elas são o resultado da tensão ocorrida na relação de trabalho terceirizado, devido à utilização do instituto jurídico da terceirização, em atividade-fim dos bancos, pela empresa tomadora de serviços.

Desse modo, no Incidente de Uniformização de Jurisprudência e na Súmula 49 do

Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região ficou demonstrado ser ilícita a terceirização do serviço de telemarketing, para o setor bancário em Minas Gerais, assim como as consequências decorrentes da aplicação ilegal da terceirização.

Diante do exposto, percebe-se na relação entre norma e território, a sua importância na

relação de trabalho, inclusive na atividade terceirizada, com o objetivo de determinar quais serviços podem ser terceirizados de forma lícita e a obrigatoriedade de sua aplicação aos contratos de trabalho no Estado de Minas Gerais, por parte dos bancos envolvidos na terceirização e pela Justiça do Trabalho no julgamento de processos.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 101 de 145

Referências BARROS, Alice Monteiro de Barros. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo. Ltr, 2016. p.75-93. BRASIL. Decreto-Lei N.º 5.452, de 1º de Maio de 1943. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm>. Acesso em: 17 abr. 2016. BRASIL. RESOLUÇÃO Nº 205, de 15 de março de 2016. Disponível em:<http://www.tst.jus.br/documents/10157/1adc0917-d2f6-4936-8b54-bf8432359a4d>. Acesso em: 18 abr. 2016. CASSAR, Vólia Bomfim. Fontes de direito do trabalho. In.: CASSAR. Direito do Trabalho. 11. ed. São Paulo: Método. 2015. P. 49-97. MINAS GERAIS. Tribunal Regional do Trabalho. (3ª. Região). INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. Suscitante: Ministro Relator da 2A. Turma do Tribunal Superior do Trabalho. Suscitado: Desembargador 1º. Vice-Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª. Região. Data da publicação: 15/12/2015. Disponível em: < http://as1.trt3.jus.br/consulta/detalheProcesso1_0.htm>. Acesso em: 05 mai. 2016. MINAS GERAIS. Súmula 49. Disponível em: <http://www.trt3.jus.br/bases/sumulas/sumulas.htm>. Acesso em: 18 abr. 2016. MINAS GERAIS. Tribunal Regional do Trabalho (3. Região). BELO HORIZONTE. Tribunal Regional do Trabalho (3. Região). Processo 01434-2014-113-03-00-9 RO. Recorrente: Dayse da Silva. Recorrido: Global Teleatendimento e Telesservicos de Cobrancas Ltda. (1)Banco Bradesco Financiamentos S.A. Relator: Milton V.Thibau de Almeida. 02/05/2016. Disponível em: <https://as1.trt3.jus.br/juris/detalhe.htm?conversationId=22392>. Acesso em: 05 maio 2016. Sessão do pleno do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Disponível em: <http://tvtrt3.overseebrasil.com.br/index.php?media=14024&6c9f565f54b6ff5ca79b&p=1>. Acesso em: 20 abr. 2016. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 102 de 145

O TRABALHO E A MODERNIDADE LÍQUIDA

Marina Braga da Silva39

Rosângelo Rodrigues de Miranda40

Resumo A relação jurídica de trabalho mudou com o tempo. A relação bilateral, empregado e empregador, divide espaço com outras formas de contratação por parte das empresas. O presente artigo tem por objetivo analisar as mudanças relativas ao trabalho, às novas formas de contratação, à flexibilização da relação de trabalho e a terceirização que está incluída neste contexto. Palavra-chave: Relação de trabalho; flexibilização; terceirização. Abstract Legal employment relations have changed over time. The bilateral relations between employers and employees share space with other forms of employment by companies. The purpose of this article is to analyze employment related changes, new forms of employment, flexibility of employment relations, and the outsourcing included in this context. Keywords: employment relations; flexibility; outsourcing. Introdução

A relação jurídica de trabalho passou por transformações no decorrer do tempo. A relação de emprego bilateral, tradicional, perdeu parte do seu espaço para outras relações de trabalho, entre elas, a de terceirização.

O presente artigo tem por finalidade analisar as mudanças relativas ao trabalho, à

flexibilização da relação de trabalho e a terceirização que está incluída neste contexto. Para a pesquisa utilizou como referencial os estudos de Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida.

A base para o desenvolvimento do artigo é a pesquisa bibliográfica. De acordo com

Marconi e Lakatos (2003, p. 183), a pesquisa bibliográfica tem a seguinte finalidade: “[...] colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que foi escrito, dito ou filmado sobre determinado assunto, inclusive conferências seguidas de debates que tenham sido transcritos por alguma forma, quer publicadas quer gravadas”.

A relação jurídica de trabalho

A relação jurídica de trabalho, assim como a sua visão por parte de empregadores e

empregados, passou por modificações no transcurso do tempo. Para compreensão do trabalho, e

39 Advogada, Mestre em Gestão Integrada do Território pela Universidade do Vale do Rio Doce - Univale (2014/2016), possui pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho pela Anhanguera-Uniderp (2013), graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce - FADIVALE (2006) e graduação em Administração pela Faculdade de Administração Governador Valadares - FAGV (2004. 40). Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1991), graduação em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (1993), mestrado em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995), doutorado em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004) e pós-doutorado em Direito pela Universidade Nova de Lisboa (2011). Atualmente é professor titular da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce, professor da Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD/IESI, professor titular da Universidade Vale do Rio Doce e promotor - Promotoria Geral da Justiça do Estado de Minas Gerais.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 103 de 145

das formas de contratação realizadas pelas empresas na contemporaneidade, será utilizado o termo liquidez em decorrência das características dos líquidos tais como a fluidez. Segundo Bauman, o vocábulo é apropriado para mostrar o tempo presente: “Essas são razões para considerar "fluidez" ou "liquidez" como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade”. (BAUMAN, 2001, p. 9):

Durante um longo período, a relação de emprego direta dominou a contratação de

trabalho, mas surgiram outras formas de admissão de trabalhadores com a finalidade de atender as necessidades das empresas e o contexto empresarial, que levaram à flexibilização (BARROS; ALENCAR,2016).

Bauman mostra a relação entre a flexibilidade no emprego e o mercado de trabalho:

[...] “Flexibilidade” é o slogan do dia, e quando aplicado ao mercado de trabalho augura um fim do "emprego como o conhecemos" anunciando em seu lugar o advento do trabalho por contratos de curto prazo, ou sem contratos, posições sem cobertura previdenciária, mas com cláusulas "até nova ordem". A vida de trabalho está saturada de incertezas (BAUMAN, 2001, p.169).

A flexibilização é conceituada nos seguintes termos, por Leite (2015, p. 300): “Trata-se de

um processo de quebra de rigidez das normas, tendo por objetivo, segundo seus defensores, conciliar a fonte autônoma com a fonte heterônoma do direito do trabalho, preservando, com isso a saúde da empresa e a continuidade do emprego”.

A flexibilização de desregramento significa: “[...] na quebra da rigidez da legislação do

trabalho por via legal, ou seja, independente de negociação coletiva [...]” (LEITE, 2015a, p. 301). É nesta modalidade de flexibilização, que segundo o mesmo autor surge a chamada terceirização (LEITE, 2015, p. 301). Assim, a terceirização é um exemplo de flexibilização das relações de trabalho na modalidade desregramento.

Nas empresas na atualidade são utilizadas outras relações jurídicas de trabalho permitidas

pela legislação, e como consequência destas mudanças, em seus quadros, não há mais apenas os empregados. A forma de atuar das empresas e as novas formas de contratar empregados e prestadores de serviços vão ao encontro das alterações do capitalismo e a sua passagem do pesado para o leve, no qual os empregados deixam as empresas e não estão à sua disposição por tempo integral. De acordo com Bauman (2001), no capitalismo pesado havia a manutenção da “mão-de-obra”, que era forçada ou subornada a estar sempre disponível para trabalhar conforme os prazos. Já no capitalismo leve, por sua vez, a mão-de-obra - os empregados - fica mais distanciada da empresa, havendo um empenho para a sua saída.

A alta rotatividade de empregados e a duração da prestação de serviço na terceirização vão

ao encontro dos preceitos do capitalismo leve, pois as empresas têm menos empregados. Segundo estudos da Central Única dos Trabalhadores (CUT), os empregados diretos permanecem nas empresas uma média de 5,8 anos, enquanto os terceirizados 2,7 anos, sendo que a rotatividade destes é de 64,4 % e daqueles é de 33%. (CUT, 2014).

A terceirização é um exemplo desta mudança, na qual os empregados são admitidos pela

empresa prestadora de serviços, que desenvolvem o trabalho para as empresas tomadoras, sem serem contratados pela última. Deste modo, a empresa tomadora de serviços tem um número reduzido de empregados. A terceirização é, portanto, sinônimo de capitalismo leve.

Os números relativos ao tempo de permanência e à rotatividade apresentados acima

indicam como o trabalho se encontra na modernidade líquida, a redução da quantidade de

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 104 de 145

empregados nas empresas e o distanciamento destes trabalhadores das empresas tomadoras, sendo contratados através da terceirização, por empresas prestadoras de serviços.

A alta rotatividade dos empregados nas empresas e, principalmente, nas prestadoras de

serviços terceirizados, é resultado das mudanças relativas ao trabalho. Estas transformações são relatadas por Bauman (2001, p. 160):

[...] o trabalho perdeu a centralidade que se lhe atribuía na galáxia dos valores dominantes na era da modernidade sólida e do capitalismo pesado. O trabalho não pode mais oferecer o eixo seguro em torno do qual envolver e fixar autodefinições, identidades e projetos de vida. Nem pode ser concebido com facilidade como fundamento ético da sociedade, ou como eixo ético da vida individual.

A rotatividade da terceirização não é benéfica. Segundo a CUT (2011), a rotatividade apresenta repercussões e não está restrita apenas ao trabalhador, como se verifica abaixo:

[...] alterna períodos de trabalho e períodos de desemprego resultando na falta de condições para organizar e planejar sua vida, inclusive para projetos pessoais como formação profissional, mas tem também um rebatimento sobre o FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador) uma vez que essa alta rotatividade pressiona para cima os custos com o seguro desemprego (CUT, 2011, p. 6).

Por outro lado, no art. 477, § 1º da CLT, há previsão de que a rescisão do contrato de

trabalho ou pedido de demissão, no caso de contrato de trabalho com mais de um ano, apenas será válida, se houver assistência do sindicato ou do Ministério do Trabalho e Previdência Social (BRASIL, 1943). Logo, a rotatividade é benéfica para as empresas, pois na rescisão dos contratos de trabalho com prazo inferior a um ano não haverá acompanhamento destas instituições e, assim, a empresa pode obter benefícios em razão da rotatividade, caso não sejam aplicados, aos empregados terceirizados, todos os direitos previstos na legislação, com a possibilidade dos empregados terceirizados não acionarem a justiça.

Segundo Bauman (2001), o trabalho na forma fluida, moderna, não provoca interrupção na

comunicação entre capital e trabalho, mas indica que, na fase líquida, esta ligação encontra-se fragilizada. Assim, a rotatividade e o tempo de permanência no trabalho são características do trabalho na atualidade, mas, acima de tudo, revelam o estado da relação capital e trabalho, mais frágil, se comparada, quando o trabalho era uma relação duradoura. Considerações finais

As mudanças relativas ao trabalho e as formas de contratação foram significativas. A

relação de trabalho bilateral, por prazo indeterminado, duradoura, deixou de ser exclusiva, passou a compartilhar o espaço do trabalho com outras formas de contratação autorizadas pela legislação e pela jurisprudência.

As novas relações de trabalho caracterizam por relações flexíveis, temporárias e fluidas. A

terceirização está inserida nos novos modelos permitidos para a admissão de trabalhadores pelas empresas na contemporaneidade.

Neste contexto, a flexibilização do emprego terceirizado, a fluidez do sentido de

pertencimento, agudiza o problema, e revela ser o trabalhador terceirizado um dos que mais sofrem com os malefícios da fragilização contemporânea da categoria trabalho.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 105 de 145

Referências BARROS, Alice Monteiro de. ALENCAR, Jessé Claudio Franco de. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: Ltr, 2016. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei n.º 5.452, de 1º de Maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm>. Acesso em: 20 mar. 2017. CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES (CUT). Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Terceirização e desenvolvimento, uma conta que não fecha: dossiê sobre o impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos. São Paulo, 2011. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. In: LEITE, Carlos Henrique

bezerra.  Globalização,  Flexibilização  e Terceirização no direito do trabalho. Curso de

direito do trabalho. 6.  ed.  São Paulo: Saraiva, 2015a.  p.  209-315. MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. fundamentos da metodologia e da ciência

científica. 5. ed. São Paulo; Altas, 2003.p. 175-185.  ______.Terceirização e desenvolvimento, uma conta que não fecha: dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos. São Paulo, 2014. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 106 de 145

CRENÇAS DE ALUNOS HISPANOFALANTES SOBRE A PROFICIÊNCIA EM PORTUGUÊS NO EXAME CELPE-Bras.

Marina de Paulo Nascimento41 Glauber Heitor Sampaio42

Resumo O presente artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que objetivou conhecer e compreender as crenças de alunos nativos em espanhol que participaram de um curso preparatório cujo foco foi o ensino de português brasileiro para a realização da prova de proficiência Celpe-Bras. Ao final do estudo, percebemos que as crenças dos referidos aprendizes se dividiram em dois momentos: anteriores e posteriores ao contexto de imersão linguística e cultural, o que sugeriu que temas tais como a facilidade de aprendizagem de português por hispanofalantes são crenças que devem ser debatidas. Palavras-chave: Português para estrangeiros; crenças de hispanofalantes; Exame Celpe-Bras Abstract This article presents the results of a research project that aimed to investigate the beliefs of Spanish-speaking students who participated in a preparation course designed to develop students’ skills to take the Brazilian Portuguese proficiency test – Celpe-Bras. At the end of this study, we noticed that the beliefs of the referred students could be divided into two different significant moments: after and before the linguistic and cultural immersion, which suggested themes such as learning Portuguese by Spanish native speakers with ease are beliefs that are to be debatable. Key words: Portuguese as a Foreign Language; Spanish-speakers beliefs; Celpe-Bras Certificate. Introdução

Em função do desenvolvimento econômico e participação do Brasil no Mercosul nos

últimos anos, o interesse estrangeiro por esse país e, consequentemente, por seu idioma cresceu (CASTILHO, 2013). Nessa perspectiva, é possível observar em meio à universidade na qual esta pesquisa foi desenvolvida, a presença cada vez mais acentuada de estrangeiros que buscam aprender o português brasileiro nas diversas áreas do conhecimento, tanto no nível de graduação quanto de pós-graduação. Observa-se a constante busca por cursos de português para que possam inserir-se e desenvolverem seus projetos acadêmicos e profissionais de forma eficaz, assim como para obter certificação em proficiência na língua para diversos fins.

Em função desta procura, a instituição onde esta pesquisa foi desenvolvida vivenciou,

recentemente, mudanças subsequentes, dentre as quais destacam-se a) a contratação de um professor para atuar no ensino, pesquisa e extensão na área de Português como Língua Estrangeira, b) a criação de um projeto de extensão universitária (CELIPE - Curso de Extensão de Língua Portuguesa para Estrangeiros) para oferecer cursos de Português para a comunidade

41 Graduada em Letras Português-Inglês pela Universidade Federal de Viçosa (MG) e em Estudos

Portugueses pela Universidade de Coimbra, Portugal. contato: [email protected] 42 Mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (MG). Professor de Línguas Estrangeiras, Departamento de Letras – UFV; Foreign Language Teacher Assistant na área de Português para Estrangeiros pelo programa Capes-Fulbright (2013-2014) no School for International Training (SIT) Graduate School, Brattleboro (VT, USA). contato: [email protected]

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 107 de 145

estrangeira de alunos, pesquisadores e seus familiares e c) a nomeação de seu campus como um dos postos aplicadores do Celpe-Bras43 no Brasil.

Como participantes do curso preparatório de extensão exercendo, respectivamente, os

papéis de professora e coordenador, assim como aplicadores e avaliadores da parte oral do teste Celpe-Bras, percebemos um fenômeno passível de discussão com relação aos estudantes de intercâmbio hispano-falantes. Como demonstrado por Fanjul (2002) e Almeida-Filho (1995), parece existir o senso comum de que a semelhança entre o espanhol e o português favorece e facilita a aprendizagem tanto do falante de espanhol que se propõe a aprender português quanto na situação inversa. Por essa razão, é relevante observar se há também a crença de que a aprendizagem, e consequentemente a certificação em português seriam de fácil alcance para aprendizes cuja língua materna é o espanhol.

Este trabalho justifica-se, portanto, em função da importância em descrever e compreender

as crenças de um grupo de alunos hispano-falantes em um curso de extensão em língua portuguesa, cujo o foco incide no desenvolvimento de suas habilidades linguísticas e comunicativas para a realização da prova do Celpe-Bras. Esta investigação põe-se relevante para a área de PLE (Português como Língua Estrangeira) visto que as crenças, no âmbito do ensino, podem favorecer a aprendizagem, mas também miná-la a depender das crenças que subjazem ao processo (BARCELOS, 1995, 2001, 2004, 2006; SILVA, 2007). Ao explorar este tema, geram-se novos conhecimentos no intuito de entender o contexto explorado levando-se em consideração a voz dos alunos e suas percepções, colaborando, em fim, com perspectivas adicionais a um espaço ainda crescente na área do ensino de Português para Falantes de Espanhol (PFE).

A pesquisa aqui apresentada contou com a participação de dois grupos de ex-alunos do

curso preparatório para o Exame Celpe-Bras oferecido pelo CELIPE-UFV. No corpo do texto os participantes serão identificados por pseudônimos por eles escolhidos para que se mantenham suas identidades. Participaram o total de três mulheres e um homem, de idades entre 23 a 31 anos. O grupo selecionado foi composto por falantes nativos em espanhol, provindos de três países distintos (Argentina, Colômbia e Panamá). Os dados foram coletados através de questionários abertos e narrativas escritas sobre experiências e crenças sobre a aprendizagem de português no Brasil e no exterior e expectativas sobre o Celpe-Bras.

A análise do material coletado foi desenvolvida em duas etapas. Inicialmente, fez-se uma

leitura criteriosa do material coletado. Em seguida, os dados foram categorizados de acordo com a similaridade dos temas sobre os quais versavam. Por fim, desenvolveu-se o exame de cada grupo categórico. No decorrer desses passos, forma utilizadas as contribuições metodológicas de análise

de dados prescritas por Creswell (1994).

43 O Manual do Celpe-Bras (BRASIL, 2013) descreve o exame de proficiência como o único em Língua Portuguesa para Estrangeiros cujo certificado é reconhecido oficialmente pelo governo do Brasil. Tal iniciativa foi desenvolvida e outorgada pelo Ministério da Educação em parceria com o INEP sendo que a sua aplicação acontece tanto no Brasil quanto no exterior. Como pontua Dell’Isola et al (2003), o Celpe-Bras possui caráter comunicativo e objetiva aferir a competência de uso oral e escrito do português brasileiro. Logo, os aspectos que o exame se propõe a avaliar refletem a utilização da língua em situações reais de comunicação. Dentro desse objetivo, o teste prevê a ênfase no uso da língua, a utilização de textos autênticos e a avaliação integrada da compreensão e da produção (oral e escrita) (BRASIL, 2015, p. 8), a partir das quais, estrangeiros, de diferentes nacionalidades, podem chegar a obter certificados em quatro níveis de proficiência na língua portuguesa: intermediário, intermediário superior, avançado e avançado superior (BRASIL, 2015, p. 8).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 108 de 145

O Português para Falantes de Espanhol (PFE) e as crenças de aprendizagem.

Embora ainda haja pouca representatividade destinada à área do PFE (SCARAMUCCI, 2013), há um número considerável de pesquisadores que se debruçam sobre investigações nessa área. Almeida-Filho (1995), por exemplo, retrata a problemática da aprendizagem do português pelos referidos aprendizes, mostrando existir uma base comum entre o nosso idioma e o espanhol que os aproxima tipologicamente. Assim sendo, defende que quando o hispanofalante inicia seus estudos, parte de um ponto mais adiantado encaixando-se em um estágio ao qual denomina como “pós-elementar”. Afirma que esse patamar de aprendizagem leva o estudante ao quase-falar e à criação-livre, ou seja, a facilidade enganosa e ao conhecimento movediço (ALMEIDA-FILHO, 1995, p.15). Fanjul (2002) direciona-se em especial ao diálogo entre Brasil e Argentina. Para ele, teceu-se um mito, historicamente, em ambos os países, sobre uma enorme proximidade entre o português e o espanhol e esse fenômeno teria interferência direta no ensino de ambas as línguas. Demonstra que, uma vez que há a crença na referida proximidade, existem também aprendizes que aplicam à língua aprendida características intrínsecas da própria língua materna. Como estudos de aquisição apontam (ROJAS, 2006; ORTIZ-ALVAREZ, 2002) constantes interferências da língua nativa na língua alvo pode resultar na cristalização, ou fossilização, desenvolvendo-se no que chamamos de interlíngua, fenômeno muitas vezes observável em comunidades de alunos de português como segunda língua, como observável no contexto aqui exposto devido ao alto contingente de hispânicos no contexto universitário em questão.

Grannier (2000) menciona a existência de um ponto de convergência entre os diversos

pesquisadores da área de PFE, haja vista que é consensual que o aluno hispano-falante que se dispõe a aprender português deve ser conscientizado sobre as diferenças entre as línguas. De forma equivalente, Almeida-Filho (2009) indica a necessidade da sensibilização do aluno à percepção da discrepância formal entre as línguas. Diante disso, aconselha que se desenvolvam atividades por meio das quais os discentes sejam conscientizados sobre o que ainda não sabem e o que não podem fazer em detrimento daquilo que já sabem e podem fazer. É, contudo, neste sentido, que identificar, reconhecer e refletir sobre as crenças dos alunos na sala de aula tem papel imprescindível no processo de aprendizagem de línguas próximas.

Em busca de uma definição para nortear este estudo, adotamos a definição de Barcelos

(2006) que entende as crenças como sociais (e ou individuais), dinâmicas, contextuais e paradoxais, e vistas como construções da realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos, coconstruídas em nossas experiências, resultantes de um processo interativo de interpretação e (re)significação (BARCELOS, 2006, p.18). As crenças estão relacionadas às experiências que cada indivíduo vivencia e ao processo de internalização pelo qual elas passam dentro de cada sujeito. Por esse ângulo, se pensarmos apenas em nossas próprias experiências e nas diferentes visões que a elas destinamos, provavelmente, discorreremos sobre um universo de construtos que é passível de influenciar, quer a prática discente, quer a docente. Sobre a pesquisa em crenças, Barcelos (1995) explicita que nem sempre existe uma correspondência direta entre as crenças e as estratégias de aprendizagem dos alunos, porque, em função de variados fatores (abordagem de ensino do professor, material didático, etc.) as mesmas são modificáveis. O papel do pesquisador é, entretanto, estudar as crenças e guiar os discentes pelo caminho da reflexão. Essas considerações são importantes neste artigo uma vez que, como professores dos participantes dessa pesquisa, estivemos diretamente ligados a alguns dos fatores que podem levar os mesmos à reflexão de suas opiniões influenciando, portanto, na qualidade do modo como aprendem. Baseados nestas questões, apresenta-se a seguir a análise das crenças que foram categorizadas a partir dos dados fornecidos pelos participantes da pesquisa aqui relatada. Crenças, diferentes contextos e consequentes ressignificações

Duas crenças principais inicialmente identificadas se interligam. Em primeira instância, os participantes demonstraram acreditar na semelhança entre a língua portuguesa e a espanhola e,

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 109 de 145

consequentemente, na facilidade de aprendizado do nosso idioma em função do domínio nativo que detém sobre o espanhol.

Três dos participantes expressaram, de diferentes maneiras, que antes de viverem no Brasil

acreditavam que aprender português seria uma missão relativamente simples. A crença comum entre os participantes sobre a proximidade e semelhança entre as línguas pode os ter levado a acreditar também na consequente facilidade em aprender o português (ROJAS, 2006; FANJUL, 2002 e ALMEIDA-FILHO, 1995). Dos participantes investigados, apenas um declarou ter estudado a língua antes de vir para Brasil. Diferentemente dos demais, tal participante expressou sua consciência de que as línguas, embora próximas, diferem-se em vários fatores e, logo, há a necessidade de um conhecimento prévio anterior à chegada ao país. A mesma consciência parece não fazer parte das concepções das participantes Marisa e Catarina:

Excertos 01 e 02: nunca cheguei a estudar até chegar no Brasil [...] (Marisa. N. 22/04/2016); [o

primeiro contato com a língua portuguesa aconteceu] no Brasil, quando cheguei no 2010 a estudar na Universidade. (Catarina. N. 18/04/2016)

Os excertos sugerem a existência de uma relação entre a crença da semelhança das duas

línguas e a não necessidade de uma preparação formal e mais aprofundada da mesma como pré-requisito para inserirem-se no novo contexto interacional. A partir do momento em que os primeiros passos são dados no Brasil, surgem desafios que parecem ir de encontro à crença inicial. Essa necessidade faz com que passem a ser repensadas. Ao chegarem ao Brasil, sofrem um confronto com a realidade. Problemas com o uso da nova língua e a impossibilidade de se comunicarem efetivamente com os interlocutores brasileiros reconfigura a crença da facilidade:

Excerto 03: Foi um choque, não entendia nada do que o povo falava na rua [...] foi difícil, porque a

gente chegou aqui e o primeiro contato foi procurar apartamento, procurar móvel e tal e eu não entendia nada do que o pessoal falava nas ruas, foi meio frustrante, porque eu não tinha essa sensação, eu tinha a sensação de que ia chegar e ia entender todo mundo. (Marisa. N. 22/04/2016)

A experiência do primeiro contato é descrita, por exemplo, através de palavras negativas

como choque, nervosa e difícil. Nota-se que Marisa afirma nunca ter estudado português e, ainda assim, ter vivenciado um choque por causa da dificuldade enfrentada. Novamente, observa-se nuanças das crenças da semelhança e da facilidade. É importante pontuar que as crenças referidas levaram a participante à ilusão da assimilação instantânea do português, mas ao perceber que a facilidade esperada não é verdadeira, sente-se frustrada. Barcelos (2006) mostra que as crenças são experienciais e as entende baseando-se em Dewey, para quem a experiência é resultado das interações entre indivíduo e ambiente, entre aprendizes, entre aprendizes e professores (BARCELOS, 2006, p. 19). A partir da ocasião em que o contexto é alterado, possibilitando novas experiências significativas para o aprendiz, entende-se que a própria percepção dos estudantes pode também acompanhar tal modificação.

O excerto abaixo revela outra crença do participante Rony:

Excerto 04: Cheguei aqui e minha percepção mudou, porque percebo que a pronúncia dessas palavras

pode variar muito, além de que pessoas nativas falam muito rápido, e não falam as palavras corretamente [...] Penso que para alguém que fala espanhol pode ser fácil de aprender, quando comparado com outras línguas de origem não latina, mesmo assim pode ser um pouco difícil para compreender os nativos da língua quando falam. Quando cheguei no Brasil percebi que sabia muito pouco. (Rony. N. 09/04/2015)

Rony relembra a percepção que teve ao chegar no Brasil destacando a pronúncia das

palavras e o modo como variam nas situações de fala cotidiana como sendo o fator que o impossibilitava de manter uma conversa com um nativo. Aponta que pelo fato de os nativos

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 110 de 145

falarem rápido e incorretamente, sua compreensão foi dificultada. O participante justifica sua dificuldade não por razão de sua falta de conhecimento para utilizar a nova língua, mas ao modo como a língua articulada na situação real de fala não fazia jus àquilo que sua crença o fazia acreditar, ou seja, a falsa expectativa sobre a proximidade e, portanto, a facilidade.

Após três anos resididos no Brasil, Marisa demonstra ter modificado suas crenças. Apesar

de não ter estudado português em seu país, muda sua crença sobre a similaridade e facilidade quando inicia seus estudos da língua portuguesa.

Excerto 05: Passei a ver a língua diferente, sem dúvida, mas é que a gente acha que vai ser mais

acessível por essa proximidade mas é difícil[...] (Marisa. N. 22/04/2016) Marisa demonstra compreender a necessidade de aprender o português sistematicamente, e

admite que se o tivesse feito da maneira citada, provavelmente teria se desenvolvido mais rapidamente. Nesse sentido, é possível acreditar que esta última consideração vai de encontro ao que ela descreveu sobre suas percepções iniciais:

Excerto 06: A principal diferença na aprendizagem destas línguas com (sic) respeito ao

português é que em todas elas tive aulas de língua nas que estudei gramática e vocabulário. O português tive que aprender na rua mesmo, falando com pessoas pelo que o aprendizado foi muito menos sistemático e demorei mais para conseguir um nível bom. (Marisa. Q. 22/04/2016)

A partir do momento em que os participantes passam a vivenciar um novo contexto, no

bojo social brasileiro, e experimentam o contato com o português em situações reais de imersão em língua portuguesa do Brasil, percebe-se, justamente, uma ressignificação das crenças. Ao serem questionados sobre como distinguem seu desempenho atual no uso da língua portuguesa, todos os participantes demonstram acreditar em um avanço significativo em comparação ao primeiro momento vivenciado no país da língua alvo. Rony, por exemplo, demonstra que seu domínio linguístico tornou-se bom, fazendo com que se sentisse seguro. Contudo, ressalta que ainda tem que aprender muito, visto que seus projetos e trabalhos acadêmicos ainda apresentam grande quantidade de erros:

Excerto 07: [o domínio da língua] é bom porque já tenho anos morando no Brasil,

assim essa experiência no uso cotidiano do português me faz ter um domínio bom da língua, não fico com vergonha, como acontecia quando cheguei no Brasil. Não é excelente, já que cada vez que entrego um projeto para que corrijam ele volta cheio de vermelhos [...] (Rony. Q. 09/04/2016)

Demonstra-se que a segurança em utilizar o português aumenta ao passo que outras

experiências são vivenciadas, mas ressalva a noção de que a sua proficiência ainda não é excelente devido ao tipo de retorno recebido através dos projetos que submete à correção. Um dos aspectos que destacamos aqui diz respeito ao fato de Rony associar a efetividade do aprendizado do idioma ao tempo e à experiência do contato diário com ele. Vemos então a crença de que para que se aprenda bem o idioma é preciso que a aprendizagem seja no país da língua alvo. As crenças sobre o Exame Celpe-Bras

Um dos objetivos desta pesquisa foi apontar as crenças que os participantes deste curso possuem (e possuíam) sobre o exame Celpe-Bras. Abaixo, apresentam-se algumas das percepções dos participantes.

Excerto 08: (...) uma prova com grão (sic) alto de dificuldade. (Catarina N.

18/04/2016)

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 111 de 145

Excerto 09: Eu não tinha a mínima ideia de como era aquela prova, mas achei

que podia ser difícil, tipo uma prova TOEFL. (Rony N. 09/04/2016) Catarina e Rony acreditavam que o Exame Celpe-Bras exigiria um alto nível de

conhecimento. Nesse sentido, nota-se que Rony tinha como ponto de partida a experiência que trouxe com prova de proficiência em língua inglesa, o TOEFL. Marisa relatou que a princípio não conhecia o formato do exame e imaginou que seria como outros. A participante ressalta o fato de não ter que escolher o nível que acredita se encaixar (como é necessário que seja feito em outros testes de proficiência em outras línguas estrangeiras) e faz uma apreciação positiva sobre este ponto:

Excerto 10: não pesquisei muito sobre a prova, imaginei que teria que escolher

o nível. Eu fiz prova de outras línguas que tem que escolher, prova do nível B1, B2, aí dependendo do nível que você escolher mais difícil a prova, mas achei bom não ter que escolher, porque em português acho que seria prejuízo para mim, porque as vezes um se julga ou que fala muito bem ou muito mal [...] eu achei melhor nesse sentido. (Marisa N. 22/04/2016)

Marisa acredita que se tivesse que escolher um nível, isto seria um “prejuízo” para muitos

examinandos. Por fim, novas crenças surgem posteriormente a participação do curso de preparação e do exame. A este respeito, os participantes fizeram as seguintes considerações:

Excerto 11: Melhorou minha confiança da prova, sentir mais segura e tranquila ao

fazer a prova. A prova não é fácil mais (sic) não impossível. (Catarina N. 18/04/2016)

Excerto 12: A prova não achei difícil, achei difícil estar sentada essas horas e escrever

quatro textos, mas acho que em qualquer língua seria difícil [...] As vezes porque quero fazer um bom texto, um texto que seja agradável de ler, para mim a dificuldade foi isso, daí demorei, por exemplo, artigo de opinião, quando se está cansado, ter que escrever como se fosse para um jornal. (Marisa N. 22/04/2016)

Excerto 13: A prova do Celp-Bras é uma boa forma de quantificar a proficiência das

pessoas estrangeiras na língua porque esta composta de escuta, escrita e oral, da prova somente não concordei com a escrita porque deveriam ter um jeito de qualificar a prova e entender direitinho, em meu caso eu não tirei um melhor nível na prova porque com certeza meu qualificador não entendeu minha letra o qual acho injusto já que a prova não e de caligrafia. (Marilu N. 13/04/2016)

Verificou-se que, depois de terem se submetido à prova, quase todos os participantes

passaram a acreditar que ela tem um grau de dificuldade menor em relação ao que acreditavam antes de fazê-la. Ainda assim, cada um destaca, através de um aspecto em particular, o que criam ser os aspectos mais desafiadores dela. Catarina acredita que a prova é difícil, mas não é “impossível”, demonstrando para além da crença no alto grau de dificuldade de execução da prova, um reforço à ideia de que passou a ver o português como uma língua cujo aprendizado não é tão fácil. Marisa, destaca que o tempo da prova escrita é um fator de dificuldade, visto que o cansaço pode prejudicar o desenvolvimento do gênero textual que ela deveria escrever e seu desempenho. Marilu expressa a crença de que a dificuldade da prova diz respeito à correção por parte dos avaliadores. Ela acredita que sua nota obtida na parte escrita foi ocasionada pelo fato de não ter uma caligrafia facilmente compreensível. Em função da prévia preparação por meio do curso, Rony exibe a crença de que a prova não é difícil, mas que isso se deve ao fato de “conhecer bem” o “esquema” de antemão.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 112 de 145

Considerações Finais

Em um primeiro momento nesta investigação, verificou-se que as principais crenças dos

participantes apontavam que a) o português e o espanhol são línguas parecidas, b) para falantes de espanhol, aprender português é relativamente fácil, e c) comunicar-se em espanhol com um falante de português é uma tarefa executável. Em um segundo momento, com a mudança de contexto e a vivência de novas experiências, as crenças iniciais são reformuladas e mostram que a) para falantes de espanhol falar e, principalmente, compreender português não é tão fácil o quanto parece, b) o português é uma língua cuja a gramática é complexa e c) o contexto de imersão em língua portuguesa no Brasil traz benefícios sobre a performance nesse idioma que não perceberam adquirir enquanto estavam no seu país de origem.

Sobre o exame, as impressões são bastante diversas, indo desde a crença de que o teste é

difícil e cansativo, ou até mesmo fácil e de objetivos claros se bem preparados. As crenças também se modificaram a partir do momento em que tomaram consciência do formato do teste e se submeteram a ele. Ao compara-lo com outros testes proficiência, consideraram o Celpe-Bras mais vantajoso por não ser preciso se candidatar a um nível.

Finalmente, foi possível compreender dois fatores essenciais: a especificação das diferenças

entre o português e espanhol e a necessidade de se refletir sobre a existência dessas especificidades. O contexto, quer seja de imersão ou não, influencia as crenças dos participantes considerando-se o fato de serem encontradas modificações nas crenças a partir da alteração dos espaço e estágio de experiências em que os citados estudantes encontravam-se. Além disso, cabe fazer referência ao mito de que o português e o espanhol são idiomas similares, sendo esta, possivelmente, uma crença cerne a partir da qual algumas outras se desenvolvem e/ou à qual estão interligadas. No que diz respeito a aplicabilidade dos dados examinados, concluiu-se que, ao saber no que os estudantes abordados acreditam e que influências essas crenças podem ter sobre a maneira com a qual aprendem português, devem ser desempenhadas atividades que proporcionem a discussão das percepções e particularidades da língua alvo em relação à espanhola, bem como a abertura de espaços destinados à reflexões com estes discentes sobre o ensino.

Em conclusão, espera-se que esta pesquisa possa contribuir com reflexões iniciais aos

professores de alunos hispano-falantes, em especial ligados ao desenvolvimento das habilidades comunicativas esperadas pelo exame Celpe-Bras, considerando-se a necessidade de aprofundamento sobre o que os alunos pensam sobre a língua estrangeira, sobre a preparação para o teste, o próprio exame de certificação e o modo como são avaliados em prol de viabilizar o melhor preparo possível para o uso da língua portuguesa. Referências Bibliográficas ALMEIDA FILHO, J. C. P. O Ensino do Português como Língua Não-Materna: concepções e contextos de ensino. 2009. Disponível em:<http://docplayer.com.br/8435926-O-ensino-de-portugues-como-lingua-nao-materna-concepcoes-e-contextos-de-ensino-jose-carlos-p-almeida-filho-universidade-de-brasilia.html>. Acesso em: 05 de Maio de 2016.

ALMEIDA FILHO, J. C. P.  Português para Estrangeiros: Interface com o

Espanhol. Campinas: Pontes Editores, 1995.

BARCELOS, A. M. F.  A cultura de aprender língua estrangeira (inglês) de alunos de

Letras. 1995. 188 f. Dissertação (Mestrado) - Mestrado Letras, Unicamp, Campinas, 1995. __________. Metodologia de Pesquisa das Crenças sobre Aprendizagem de Línguas:

Estado da Arte.Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p.71-92, 2001. __________. Crenças sobre aprendizagem de línguas, Lingüística Aplicada e ensino

de línguas. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 1, n. 7, p.123-156, 2004.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 113 de 145

__________; VIEIRA-ABRAHÃO, Maria Helena. Cognição de professores e alunos:

tendências recentes na pesquisa de crenças sobre ensino e aprendizagem de línguas. Campinas: Pontes, 2006.

BRASIL.  Manual do Examinando Celpe-Bras.  2015. Disponível em:<http://download.inep.gov.br/outras_acoes/celpe_bras/manual/2012/manual_examinando_celpebras.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2016. CASILHO, A. T. Relatórios de Projeto de Pesquisa. 2013. Disponível em: https://issuu.com/museulp/docs/projetos_de_pesquisa_lingu__stica. Acesso: 12 de Maio de 2016. DELL'ISOLA, Regina et al. A avaliação de proficiência em português língua estrangeira: o

exame CELPE-Bras. Brasil Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p.158-184, 2003.

FANJUL, Adrián Pablo. Português e Espanhol: línguas próximas sob o olhar discursivo. São Carlos: Claraluz, 2002. 190 p. GRANNIER, Daniele Marcelle (2000): Uma Proposta Heterodoxa para o Ensino de Português a Falantes de Espanhol. Em: III Congresso da SIPLE. Brasília: Intertexto, p. 1-12. ORTIZ ALVAREZ, Maria Luisa. A transferência, a interferência e a interlíngua no ensino de línguas próximas. In: CONGRESO BRASILENO DE HISPANISTAS, 2., 2002, San Pablo. ROJAS, Juan Pedro. Processo de fossilização na interlíngua de hispanofalantes aprendizes de português no Brasil: acomodação consentida?. 2006. 103 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada)-Universidade de Brasília, Brasília, 2006. SCARAMUCCI, MATILDE. A área de Português para Falantes de Espanhol no Brasil. Campinas: A área de Português para Falantes de Espanhol no Brasil. Entrevista concedida à Lyris Wiedemann, Fernanda Consoni e Michael Ferreira. [10/11/2013]. SILVA, K. A. Crenças sobre o ensino e aprendizagem de línguas na Lingüística Aplicada: um panorama histórico dos estudos realizados no contexto brasileiro. Linguagem & Ensino, Campinas, v. 1, n. 10, p.235-271, 2007. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 114 de 145

PRODUÇÃO DE TEXTO NA ESCOLA: ASPECTOS NORMATIVOS, DISCURSIVOS E TEXTUAIS

Max Silva da Rocha44 Marcos Apolinário Barros45

Ana Izabel dos Anjos Silva46 Francis Jadson Lima das Neves47

Fellype Lima Alves da Costa48 Resumo O presente trabalho objetiva fazer uma discussão acerca de alguns aspectos da produção textual, são eles: normativos, discursivos e textuais. Nesse sentido, apontamos possíveis caminhos para uma produção de texto coerente e coesa, como também um aprofundamento maior da utilização dos gêneros textuais/discursivos em sala de aula. Para essa pesquisa qualitativa, tomamos por referencial teórico os postulados de Antunes (2007); Bazerman (2006), Cezario e Votre (2008); Marcuschi (2008); Koch (2014); além de outros. Portanto, acreditamos que para uma boa produção textual é fundamental conhecer e utilizar os fatores ora apresentados. Palavras-chave: Critérios. Produção textual. Sala de aula. Abstract The present work aims to make a discussion about some aspects of textual production, they are: normative, discursive and textual. In this sense, we point out possible paths for a coherent and cohesive text production, as well as a greater deepening of the use of textual / discursive genres in the classroom. For this qualitative research, we take as theoretical reference the postulates of Antunes (2007); Bazerman (2006), Cezario and Votre (2008); Marcuschi (2008); Koch (2014); Besides others. Therefore, we believe that for a good textual production it is fundamental to know and use the factors presented here. Keywords: Criteria. Text production. Classroom. Considerações iniciais

Lemos e ouvimos durante nossas trajetórias no prazeroso mundo da escolarização, que a gramática normativa era/é um livro de difícil compreensão e até mesmo chato de ser estudado. Isso tem um fundo de sentido, porém é necessário entendermos as regras e compreendermos a funcionalidade para adequar o compêndio normativo ao uso interativo na sala de aula.

Ensinar gramática na educação básica é de suma importância, já que ela tem a função de

aprimorar a linguagem mostrando, sobretudo, o seu funcionamento. No entanto, devemos saber como realizar esse ensino e levar em conta as inferências das teorias linguísticas atuais. Se o

44 Graduando do 8° período do curso de Letras – Português pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, Campus III em Palmeira dos Índios – AL. Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID/CAPES/UNEAL. E-mail: [email protected] 45 Graduando do 7° período do curso de Letras – Português pela Universidade Estadual de Alagoas –UNEAL, Campus III em Palmeira dos Índios – AL. E-mail: [email protected] 46 Graduanda do 7° período do curso de Letras – Português pela Universidade Estadual de Alagoas –UNEAL, Campus III em Palmeira dos Índios – AL. 47 Graduando do 8° período do curso de Letras – Português pela Universidade Estadual de Alagoas –UNEAL, Campus III em Palmeira dos Índios – AL. 48 Graduando do 8° período do curso de Letras – Português pela Universidade Estadual de Alagoas –UNEAL, Campus III em Palmeira dos Índios – AL.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 115 de 145

professor de língua materna levar em consideração os estudos linguísticos e se os docentes aprimorassem as suas metodologias pedagógicas, não teríamos dúvidas de que o ensino-aprendizagem melhoraria significativamente, porque os alunos seriam instigados a desenvolver suas habilidades linguísticas e passariam a ter um maior interesse pelas aulas. Não são poucas as teorias que criticam o uso desordenado que é feito da gramática tradicional.

Não negamos a importância do compêndio normativo, mas indagamos como estudá-lo em

sala de aula. A gramática é quem preserva a língua; é quem serve como um escudo de defesa da língua; é quem faz com que a língua perdure por muito tempo. No entanto, ela não dever ser uma lei, imposição, mas uma possibilidade de ensino de língua. (ANTUNES, 2007, p.36).

Os estudos atuais da Linguística moderna não partilham de um modelo único, invariável,

fechado, como a gramática normativa nos apresenta. Um bom exemplo são os estudos acerca do texto. Esse todo significativo é apresentado, pelas correntes linguísticas como um processo aberto e passível de inferências por parte do interlocutor, da mesma forma a língua é viva e não fica parada no tempo. Além do mais, há vários fatores linguísticos e extralinguísticos que influenciam o aprendizado de língua materna. Esses fatores deveriam ser levados em consideração pela gramática.

Os fatores sociais são determinantes na língua, “[...] eles são considerados essenciais para o

estudo linguístico porque o homem adquire a linguagem e dela se utiliza dentro de uma comunidade de fala, tendo como objetivos a comunicação com os indivíduos e a atuação sobre os interlocutores”. (CEZARIO e VOTRE, 2008, p.147).

Entretanto, a gramática tradicional não leva em consideração estes fatores imprescindíveis

nos estudos sociais da língua, como também em outras áreas linguísticas, a saber: linguística de texto, linguística aplicada, análise do discurso, além de outras subáreas da linguística moderna. “Em geral, a escola se fixa nesses padrões ideais e deixa de analisar os padrões reais, aqueles que, efetivamente, estão em uso, agora: nos livros, nos jornais, nas revistas, nos cartazes, na boca do povo, enfim” (ANTUNES, 2007, p.74).

É válido destacarmos que o falante tem mais de uma maneira de utilizar à língua para falar

a mesma coisa. Um falante da região Nordeste pode dizer mandioca; já o da região Sul pode falar aipim. São duas formas distintas para dizer a mesma coisa, mas o que importa é que o significado continua sendo o mesmo. As línguas variam e as formas de falar são as mais diversas possíveis, como já dito anteriormente.

É notório que a gramática normativa não leva em consideração os estudos linguísticos

atuais como a variação linguística, visto que o compêndio normativo prega um único padrão de língua. Para o conjunto de normas, só há uma variação, qual seja, a certa ou a errada. Se não observarmos este aspecto, estamos em conflito com a gramática normativa ou desqualificando o idioma que ela propõe.

O livro normativo não toma para si as novas tendências linguísticas, pois a própria

gramática se acha um padrão de correção linguística. É por este motivo, por exemplo, que fica evidente o atrito dos sociolinguistas com a gramática tradicional, visto que esta muitas vezes se contradiz e não é transparente em suas regras.

O ensino de gramática normativa (ou o “não-ensino”) tem despertado o interesse nos

estudos em ensino de língua portuguesa. De um lado, gramáticos defendem a padronização da língua (o que é impossível de acontecer, ao menos na fala), enquanto pesquisadores em Linguística, sobretudo em Linguística Textual e Sociolinguística, defendem que seu ensino é desnecessário é excludente. Posições e afinidades teóricas importam; e nisso cada teórico ou estudante da língua sabe levantar sua bandeira. Discussões como essas, desde que não fiquem no plano do achismo, são

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 116 de 145

necessárias para que o estudante de Letras, futuro professor, tenha uma concepção firmada de língua.

O que acontece às avessas é que muitos professores entram numa sala de aula sem uma concepção de língua, de texto e de prática docente. Isso prejudica, quando não invalida, o ensino, uma vez que toda a prática do professor deve estar embasada em pelo menos uma das tantas concepções teóricas que o estudante de Letras vê em quatro anos de estudo. Isso implica um posicionamento crítico sobre a língua. E assumir a prática docente sem esse posicionamento deixa o professor inconsciente sobre o porquê de seu próprio trabalho. Afinal, como questionam famosos pesquisadores do ensino de língua portuguesa, o que se ensina quando se ensina a língua materna? É inadmissível que o professor não saiba a resposta para essa pergunta, uma vez que já entramos na escola falando nossa língua.

Corroborando com o pensamento citado acima, Mioto (2000, p.19) nos afirma que a

gramática normativa: “[...] não se constitui em um corpo coeso de conhecimentos; e ampliando a crítica: o conjunto de observações que a GT faz nada dá conta nem de longe de riqueza da língua, nem mesmo do registro que ela se propõe a descrever”. Vê-se, pois, que a gramática normativa e as correntes linguísticas estão longe de se complementarem, pois há um forte distanciamento entre ambos os segmentos.

Acreditamos que se os docentes compreenderem e levarem para a sala de aula as inovações

interacionistas, as aulas se tornarão mais significativas mesmo ensinando gramática, entretanto, de outro modo. (ANTUNES, 2007, p.71). O que reforçamos não é deixar de se ensinar gramática normativa, mas a maneira de se ensinar. Nesse sentido, é pertinente frisarmos as indagações de Rocha (2015, p.3460):

Os textos que os alunos produzem em sala de aula são analisados ou simplesmente corrigidos?; há socialização dos textos em sala de aula?; após o professor identificar alguns problemas textuais o texto é devolvido ao aluno para ele fazer as devidas correções?; o que está sendo trabalhado em sala tem a ver com os textos que os alunos produzem?; o uso da gramática normativa é feito para identificar como elaborar um texto coerente e coeso ou somente para expor as definições e nomenclaturas?

Vê-se, desse modo, que o uso da gramática normativa, muitas das vezes, é feito para expor

apenas as nomenclaturas e isso é um grande equívoco. Ela deve ser utilizada, por exemplo, para o aluno entender como produzir um texto coerente e coeso (ROCHA, 2015). Aspectos discursos da produção textual

A produção textual é uma atividade verbal e não – verbal que exige o máximo de cuidado

possível ao ser produzida, uma vez que precisa ser entendida pelo interlocutor da comunicação. Nesse sentido, vários estudiosos da linguística textual e de outras linhas teóricas, apontam mecanismos para tornar a produção de texto coerente e coesa. Dentre estes mecanismos temos a coesão, coerência, intencionalidade, além de outros critérios textuais. Para que a produção de texto seja completa é necessário observar e adotar esses aspectos.

Sabe-se que um texto não é um amontoado de palavras soltas, desordenadas. Pelo

contrário, ele é constituído por elementos linguísticos e extralinguísticos ordenados pelos co-enunciadores, durante a atividade verbal de modo a permiti-lhes, a interação. (KOCH, 2014, p.27). Quando produzimos um texto, é necessário pensarmos no leitor. Um “tu” necessita ser um participante e não apenas um receptor fixo.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 117 de 145

A atividade textual necessita ser redigida com fundamentos para que não cause ambiguidades, redundâncias desnecessárias, fuga do tema, além de outras inconsistências textuais/discursivas. A partir dessa produção coerente e coesa, o viés discursivo do texto consegue direcionar o pensamento do interlocutor. Todo texto precisa ter uma intenção e é nesse ambiente que a argumentação discursiva se faz presente.

É importante que o texto siga uma linearidade concatenada e também que o produtor

mantenha a harmonia discursiva da atividade comunicativa, a fim de obter os seus respectivos objetivos. Harmonia, no campo linguístico, significa relação entre os constituintes do texto e/ou discurso. Por exemplo: se em um parágrafo escrevemos sobre o que é linguística, devemos expor sequencialmente os conceitos dessa ciência da linguagem e manter o foco do conteúdo que está sendo trabalhado, haja vista que “toda comunicação verbal, toda interação verbal, desenrola-se sob a forma de um intercâmbio de enunciados, isto é, sob a forma de um diálogo” (BAKHTIN 1929, apud KOCH, 2014, p.119). Essa sequenciação lógica diz respeito as relações entre os enunciados. Ao elaborarmos um texto é importante manter a amarração das ideias para que o todo significativo possa expressar, de forma coerente, a comunicação desejada.

Tendo produzido o texto, é necessário observamos os aspectos discursivos, ou seja, aqueles

que estão por trás da superfície textual, uma vez que “não há como esquivar-se de trabalhar com a linguagem sem levar em consideração a interpretação, a ideologia, o inconsciente, a história e, sobretudo, os sujeitos nos seus limites e possibilidades”. (CAVALCANTE, et al., 2009, apud ROCHA, 2015, p.147).

A noção de texto e discurso adotada por pesquisadores da linguística textual não é uma

dicotomia, mas uma separação que diz respeito, primeiramente, à noção de língua. Para Marcuschi (2008), texto é um evento comunicativo em que convergem ações cognitivas, linguísticas e sociais. Nesse sentido, entende-se por texto a materialização do discurso em forma oral ou escrita. Quanto ao discurso, segundo Adam (2011), sua noção implica a parte enunciativa do texto, que se relaciona a um determinado ato de fala, dentro de uma formação sociodiscursiva e por meio de uma língua. Segundo esse autor, a análise textual recai sobre os discursos, realizado por um sujeito pragmático, e não assujeitado pelo sistema, como prevê a AD de linha francesa.

Dessa forma, numa análise textual, o professor deve ter uma visão global sobre a produção

do aluno, perpassando a superfície do texto e procurando as estratégias empregadas pelo autor. O olhar do docente deve ir além dos aspectos puramente gramaticais, como os mecanismos de coesão, uma vez que coesão não é um critério para definir se um texto é texto.

Ter uma visão global implica analisar o propósito comunicativo do gênero em questão, a

linguagem utilizada e as estratégias corretas. Se o professor solicita uma dissertação argumentativa, por exemplo, é de se esperar que o aluno escreva um texto em terceira pessoa e que defenda uma tese. No entanto, nem sempre essas estratégias são empregadas, de modo que faz-se necessário uma reescrita orientada, cujo maior objetivo seja a adequação ao gênero, isto é, uma análise apurada dos aspectos discursivos do texto, tanto por parte do professor como do aluno.

É imprescindível diferenciarmos o texto do discurso, pois eles não são a mesma coisa. O

texto é concreto; o discurso é abstrato; o texto é interacional; o discurso é uma condição de produção; o texto tem autor; o discurso tem sujeito; o texto sofre inferências do receptor; o discurso não sofre inferências do destinatário; o texto é um instrumento do discurso; o discurso é o sentido que está no texto. Percebemos, desse modo, que texto e discurso não são a mesma coisa e o produtor tem que levar isso em consideração para que a produção de texto complete o seu respectivo objetivo comunicativo.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 118 de 145

Uma proposta de ensino: os gêneros textuais – discursivos na sala de aula

Aprender e ensinar através dos gêneros textuais/discursivos é o que as várias pesquisas científicas estão despertando nos estudos atuais sobre essa área de investigação científica. Essas pesquisas permitem vislumbrar um futuro promissor para a prática pedagógica. O trabalho com a oralidade em sala de aula, a atividade da leitura e produção textual, além de outras utilidades podem ser aprimoradas através dos mais diversos gêneros.

O trabalho educativo com os gêneros permite ao aluno inteirar-se do ensino, mas também

do meio social em que está inserido. Levando essa teoria para a sala de aula, acreditamos que é papel do docente efetivar essa proposta inovadora fazendo com que o aluno tenha uma melhor participação em sua vida estudantil-social. O professor precisa, o mais rápido possível, incentivar o aluno a trabalhar com os gêneros textuais/discursivos no ambiente escolar. Para Dell’Isola (2007, p.24):

Os profissionais da linguagem precisam levar os alunos a compreender e procurar explicar como se manifestam os diferentes gêneros textuais. [...] o estudo dos gêneros possibilita a exploração de algumas regularidades nas esferas sociais em que eles são utilizados. Por isso qualquer profissional da área de ensino de língua deveria levar em conta esse aspecto no trabalho com o aprendiz.

Ao utilizar os gêneros em sala de aula, o professor permite que o aluno se expresse ativamente colocando as suas ideias em um texto e fazendo-se assim um estudante crítico e participativo. A nosso ver, o aluno atual precisa ser reflexivo e crítico, o trabalho com os mais diversos gêneros, pode viabilizar significativas melhorias no ensino-aprendizagem e tornar o aluno letrado.

Dessa forma, o aluno mantém contato com traços culturais cotidianos, aprendendo através

dos gêneros, como também trabalhando com um tipo específico de gênero que ele se identifica, pois, os vários tipos de gêneros se adaptam a cada ambiente diferente da interação. Em nosso Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, escolhemos um gênero específico para ser trabalhado em sala de aula, o cordel. Estudamos esse gênero numa perspectiva sociointeracionista proporcionando leitura, oralidade, produção textual, reescrita e produção final. Mas, nesse trabalho não vamos nos deter a esse ponto.

A importância desses aspectos até aqui mencionados é imprescindível, porque esse tipo

específico de metodologia pode ser utilizada como objeto transformador da realidade em uma sala de aula expandindo-se pela sociedade como um todo, visto que o ensino-aprendizagem com os gêneros textuais – discursivos tem uma forte relação com as práticas sociais dos alunos e os professores precisam trabalhar essas novas tendências textuais. É importante destacarmos o que pontua Bazerman (2006, p.30):

Cabe a nós, professores, ativarmos o dinamismo da sala de aula de forma a manter vivos, nas ações significativas de comunicação escolar, os gêneros, em situações sociais que eles consideram significativas, ou explorando o desejo dos alunos de se envolverem em situações discursivas novas e particulares, ou ainda tornando vital para o interesse dos alunos o terreno discursivo que queremos convidá-los a explorar.

Essas inovações só serão alcançadas se as instituições de ensino e os professores se

voltarem para as práticas inovadoras. É delegada à escola a função de propiciar aos alunos o contato com os gêneros textuais/discursivos destacando os que mais se adequam a prática de linguagem presente naquela instituição ou localidade.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 119 de 145

Se a escola tomasse essa iniciativa criaria, assim, um canal entre professor - procedimento metodológico – aluno. Esses mecanismos podem trazer à tona o ambiente interacional professor – aluno com o intuito de inovar e aprender através dos gêneros textuais/discursivos. Colocando esses aspectos em prática, criar-se-ia um elo entre aluno e manifestação da linguagem no qual o principal foco é como o aluno utiliza essa linguagem, tanto na sua forma escrita quanto falada. É nesse ponto desafiador que os gêneros podem alcançar índices transformadores para o ensino de língua materna como também estrangeira.

Estudar os gêneros é manter contato com a língua em uso, pois conforme Marcuschi

(2008), o gênero é a prática de linguagem na qual visa analisar como o falante faz uso dos mais diversos textos, a fim de materializar a comunicação desejada. “Para Bakhtin, nossa fala é modulada pelos gêneros discursivos, pois todas as enunciações de nosso discurso-fala revelam escolhas particulares de formas construídas dentro de um todo, as enunciações”. Falamos e escrevemos através desses textos, no entanto, é necessário conhecê-los para que possamos utilizá-los da melhor maneira possível. Usar os gêneros no cotidiano é algo natural, mas acreditamos que esse uso precisa ser mais lapidado, principalmente, nas salas de aula da educação básica, pois este ensino se encontra caótico. (MACHADO, 2005, p.145).

Trabalhar com esses textos em sala de aula é o grande desafio da atualidade, pois o ensino

básico, principalmente, pede socorro para as inovações/teorias linguísticas. A educação básica está um caos e essas novas tendências, aqui expressas pelos gêneros, podem mudar essa triste realidade. Sabemos que para o aluno poder fazer uso dos gêneros o discente precisa conhecê-los, pois de acordo com Bakhtin (2003, p.285):

Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso.

Conhecendo os gêneros o autor pode passar para os seus receptores as mais diversas ideias

sobre um conteúdo a ser abordado, a saber: persuadir, seduzir, informar, direcionar, manipular, entre de outras situações comunicativas.

Precisamos observar em que ambiente devemos utilizar cada tipo de gênero, porque do

mesmo modo que o discurso, o texto não é uma comunicação neutra, desvinculada do mundo, “pois todos os gêneros têm uma forma e uma função, bem como um estilo e um conteúdo, mas sua determinação se dá basicamente pela função e não pela forma”. (MARCUSCHI, 2008, p.150).

Por exemplo, se estamos trabalhando os gêneros textuais numa localidade onde as

tradições culturais estão arraigadas a um estilo em que as rimas e os versos predominam nos textos, entendemos que os gêneros mais adequados a serem trabalhados, são: o cordel, a poesia, ou seja, textos que mais se aproximem daquela cultura social linguística, já que:

Os gêneros reportam-se às formas de uso das línguas e linguagens. O conceito de gênero é potencialmente a imagem de uma totalidade, em que os fenômenos da linguagem podem ser apreendidos na interatividade dos textos através do tempo, decorrente, sobretudo, dos vários usos que se faz da língua” (MACHADO, 2005, p.144).

Usar o gênero é fazer uso da língua e o aprendizado com um gênero específico e

predominante numa determinada região, pode trazer resultados satisfatórios, tanto para a leitura e escrita, como também para a prática e formação pedagógica. Desse modo, “os gêneros caracterizam-se por aquilo que se faz com a linguagem: mostrar, descrever, explicar. Do ponto de

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 120 de 145

vista dos meios linguísticos, os “gêneros” manifestar-se-ão, antes de tudo, pelos tipos de enunciados e modos de encadeamento desses enunciados”. (MELO, 2005, p.180).

Compreendemos que o ensino de gêneros perpassa os fatores linguístico – discursivos abrangendo também os socioculturais, uma vez que os gêneros estão relacionados ao dia a dia do ser humano que utiliza esses textos nas mais variadas formas. Considerações finais

Este estudo procurou realizar uma breve discussão acerca dos conceitos de produção textual, que são imprescindíveis na construção do todo semântico. A produção de texto comporta vários aspectos que a constitui, como os discursivos, gramaticais, estruturais, textuais entre outros. No presente estudo, discorremos sobre os aspectos normativos, textuais e discursivos. Notamos que eles regem a produção textual e dão forma e função ao texto produzido. Estes aspectos fazem com que o todo significativo se torne um conjunto de orações concatenadas por uma estrutura concreta.

A nosso ver, os critérios dão forma e função ao texto, não podendo faltar nem ultrapassar a

materialidade textual. Com isso, acreditamos que os critérios de textualidade precisam ser trabalhados na sala de aula para fazer com que os discentes possam se familiarizar com esses mecanismos e consigam produzir textos coerentes e coesos.

Compreendemos, que o ensino-aprendizagem, principalmente da escrita, poderia ter

resultados satisfatórios se os alunos aprendessem o que são fatores de textualidade, quais são e como utilizá-los na produção de texto. E para dar cumprimento a este trabalho, é válido parafrasearmos Karl Marx: “professores e professoras de todos os países, uni-vos”. Referências ADAM, Jean Michel. Linguística textual: uma introdução à análise textual dos discursos. São Paulo. Contexto, 2011. ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 10. ed. São Paulo: Hucitec, 2003. BELINE, Ronald. A variação linguística. In: FIORIN, José Luís. Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2007. CEZARIO, Maria Maura; VOTRE, Sebastião. Sociolinguística. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo. (Org.). Manual de Linguística. São Paulo: Editora Contexto, 2008. DELL’ISOLA, Regina Lúcia Péret. Retextualização de gêneros escritos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. KOCH, Ingedore G. Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2014. MIOTO, Carlos. Manual de Sintaxe. Florianópolis: Insular, 2000. MELO, Lélia Erbolato. Estrutura da narrativa ou gêneros, mundos, lugares discursos & companhia? In: BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de Gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. MACHADO, Irene A. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In: BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005. ROCHA, Max Silva da. Texto na escola: um olhar sob o viés da linguística textual. In: Encontro das ciências da linguagem aplicadas ao ensino (ECLAE), 6., 2015, Garanhuns. Anais eletrônicos do VI ECLAE. Garanhuns, PE: Pipa comunicação, 2015, p. 3451-3461. ROCHA, Max Silva da. Olhares sobre o discurso da rede globo e suas influências na sociedade. Temática, João Pessoa/PB, v. 21, n.6, p.140-152, junho de 2015. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 121 de 145

OS DESAFIOS NO USO DE FERRAMENTAS DIGITAIS NO ENSINO E APRENDIZAGEM DA ESCRITA

Meire Celedônio da Silva49 Resumo Este trabalho tem como objetivo apresentar algumas discussões sobre o uso de tecnologias digitais em atividades de ensino e aprendizagem na produção de textos escritos. Tal trabalho parte dos desafios encontrados pelo professor e, principalmente, pelos discentes quando se propõem a utilizar ferramentas digitais para desenvolver atividades de cunho didático e pedagógico e em especial de escrita para o desenvolvimento de capacidades de linguagem. Assim, pretendemos expor quais os desafios enfrentados pelos estudantes ao utilizarem a ferramenta de escrita colaborativa Googledrive. O presente trabalho é do tipo descritivo de cunho quanti-qualitativa. Foi pensado a partir de atividades propostas em uma escola de ensino médio do estado do Ceará com estudantes do segundo ano do Curso Técnico em Informática para aprimorar a escrita de um texto dissertativo argumentativo. Com a inserção e a expansão do uso de tecnologias digitais na escola, e, também no cotidiano das pessoas, pressupõe se que os estudantes dominam, razoavelmente, ferramentas desse tipo. No entanto, a pesquisa mostra que a maioria dos sujeitos da pesquisa não conseguem utilizar, ou mesmo não possuem o conhecimento necessário para o manuseio desta e das suas funcionalidades. Palavras-chave: Ferramentas digitais, ensino e aprendizagem, escrita. Abstract The objective of this study is to present some discussions on the use of digital technology in teaching-learning activities involving written texts. Such study starts from the challenges encountered by teachers, and mainly by their students, when the former propose to use digital tools to develop activities of didactic and pedagogic nature, and specifically, regarding the written language for the development of language skills. Therefore, it is our intent to expose those challenges faced by the students while using the so-called written collaborative tool Googledrive. The study is of a descriptive kind and of quantitative-qualitative nature. It was conceived from proposed activities carried out at the referred to high school in the State of Ceará, having second graders of a Computer-Science Technical Course towards the refinement of an argumentative-dissertational text. By way of the insertion and expansion of the use of digital technologies at the above-mentioned high school and throughout people's daily life, it can be presupposed that the students are reasonably capable of mastering that kind of tools. However, the research suggests that the majority of the subjects under observation were unable to use or even to have the necessary skill to handle that referred to technology nor its functionalities. Keywords: Digital tools, teaching-learning, written language. Introdução

A introdução de tecnologias digitais na educação nos diferentes níveis e modalidades de

ensino vem sendo amplamente debatida nos meios acadêmicos brasileiros, assim como a relevância que esses instrumentos têm conquistado em várias esferas das atividades sociais (LEVY, 1999). Esse assunto, geralmente, é pesquisado sob o ponto de vista do uso que os docentes têm feito dessas tecnologias (CABRAL, 2015) e os desafios enfrentados por esses profissionais no que diz

49 Doutoranda em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte. Atuou como tutora dos cursos de graduação ofertados pela Universidade Aberta do Brasil em parceria com UFC. Desenvolve pesquisa no ensino e aprendizagem de Português Língua Materna e Língua Estrangeira com foco no texto escrito.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 122 de 145

respeito à apropriação desse tipo de ferramenta50 emergente juntamente com as mudanças que rodeiam a educação formal. No entanto, é também imprescindível perceber outro sujeito da educação – o estudante. Este precisa ser visto como um indivíduo em desenvolvimento e em interação não apenas com o professor, mas também com os demais estudantes e com os objetos do mundo no qual estão inseridos. O manuseio desses objetos são também desafios, que merecem ser analisados, para os estudantes.

O PCN+ nos direciona, mesmo que de maneira vaga, para o uso de editores de texto para

a produção textual. Assim, percebemos ser esse um campo fértil e com grandes possibilidades para a produção e edição de textos (reescrita). É singular pensar que essas ferramentas funcionam como artefatos para o ensino e aprendizagem da escrita pautada nos pressupostos da interação51. Contudo, há a necessidade de refletir sobre o uso dessas ferramentas enquanto prática desafiadora não apenas para os professores, mas também para os estudantes.

É notório que na educação formal, a construção do conhecimento não acontece apenas

com sujeitos que recebem informação e a transportam como se o conhecimento fosse estanque. A cadeia de construção deste perpassa os desafios de cada momento nos quais os estudantes estão envolvidos e as interações entre os pares e objetos que vão se incorporando às práticas pedagógicas.

O objetivo do nosso trabalho é analisar, portanto, os desafios que os estudantes enfrentam,

enquanto sujeitos ativos do processo de ensino e aprendizagem, ao utilizarem recursos digitais como instrumento de mediação do conhecimento. Partimos, portanto, das seguintes perguntas: Sob o ponto de vista dos estudantes, que desafios existem quando são levados a utilizar recursos digitais? Os estudantes conseguem realmente participar das atividades propostas? Qual é o comportamento deles diante da escrita com o uso de ferramentas tecnológicas?

Para atender ao nosso objetivo, o nosso trabalho está dividido em três partes: primeiro,

tratamos da teoria de base que utilizaremos para abordar a importância da apropriação de artefatos nas atividades sociais das quais os estudantes participam. Segundo, o contexto da pesquisa sobre o qual faremos algumas considerações para a compreensão do desenvolvimento das atividades realizadas. Terceiro, faremos a análise que será divida em dois momentos, a saber: as dificuldades dos estudantes em se apropriar de ferramenta digital; e as adversidades com a produção escrita em um ambiente de colaboração. Além dessas seções, nosso trabalho conta ainda com essa introdução e com as considerações finais. Teoria de base

O presente trabalho enquadra-se na teoria e epistemologia do interacionismo sociodiscursivo (doravante ISD) por tratar–se de uma pesquisa que está diretamente relacionada à linguagem no seio de uma atividade social. Com base no ISD, e como preconiza Bronckart (1999), as cooperações dos indivíduos são reguladas e mediadas por verdadeiras interações verbais. É a partir, portanto, do produto dessas interações semiotizadas52 nos textos que podemos perceber o desenvolvimento do humano.

Levando em consideração esse pressuposto, podemos perceber que a escola é um lugar onde

se produz conhecimento tendo como base as interações verbais. Ao longo dessas interações, os sujeitos vão se apropriando de diferentes artefatos para organizar e mediar as suas atividades

50 Chamaremos essa ferramenta de artefato de acordo com as considerações de Rabardel,1995 – o conceito discutiremos mais tarde. 51 Todo processo comunicativo implica uma determinada reciprocidade e continuidade entre os pares (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 20). 52 De acordo com Bronckart (1999) “Todo texto empírico é o produto de uma ação de linguagem – presente nas interações, é seu correspondente verbal”.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 123 de 145

sociais. Ao apropriar-se desses artefatos, sejam eles simbólicos ou não, os actantes de um processo os transformam em instrumentos. É desse ponto de vista que trataremos de ferramentas digitais no processo de ensino e aprendizagem da escrita na educação básica, mais especificamente no ensino médio. No próximo tópico faremos algumas considerações sobre a apropriação de artefatos nas atividades sociais.

Artefatos e instrumentos: apropriação de ferramentas digitais

Sobre a questão do artefato é necessário vê-lo sob um ponto de vista de uma transformação

deste nas diferentes práticas sociais. Para isso, precisamos compreender como acontece esse processo. Rabardel (1995) caracteriza as situações de atividades instrumentadas pela “inserção pelo sujeito de um (ou vários) instrumento em sua atividade”. Para ele, o artefato é um objeto que pode ser transformado e quando apropriado pelo homem transforma-se em um instrumento.

No campo do ensino e aprendizagem, os artefatos utilizados pelos professores, são, de

acordo com Machado e Lousada (2010, p.621) “elaborados pelo coletivo da escola, eles associam a eles saberes profissionais, mais ou menos conscientemente.” Assim, também deve ser o caminho trilhado pelos estudantes numa situação de ensino e aprendizagem com o uso de tecnologias digitais.

Assim de acordo com Rabardel (1995), as ferramentas digitais disponibilizadas nas

práticas sociais podem ser, sob uma leitura do artefato, apropriado pelo sujeito que o utiliza como um instrumento para mediar a ação dos actantes do processo de ensino e aprendizagem. Com esse instrumento, os estudantes podem utilizá-los para agir sobre os outros e sobre si mesmo, por meio da língua escrita como forma de conscientização sobre o agir no mundo.

Para sintetizar como se dá a relação entre estudantes, professores e ferramentas digitais,

pode se pensar que

têm duplo uso nas atividades educativas: Para alunos – o seu uso influencia profundamente a construção do saber, no processo de conceitualização; Para professores – podem ser considerados como variáveis sobre as quais podem agir para a concepção e o controle das situações pedagógicas. (RABARDEL, 1999, p. 40)53.

Assim, fica claro o lugar das ferramentas digitais e sua utilização no processo de ensino e

aprendizagem. Elas precisam ser apropriadas enquanto instrumentos que podem contribuir para a construção do conhecimento sobre determinado conteúdo. Estes devem ser apropriados pelos professores e consequentemente por alunos. Contexto da pesquisa

A pesquisa é do tipo descritivo-exploratória, pois parte da observação dos dados de um

contexto específico e delimitado para o uso de ferramentas digitais para desenvolver trabalhos com a escrita de alunos no contexto de uma escola de ensino médio da rede estadual de ensino.

Para isso, esse trabalho foi desenvolvido dentro de uma escola de ensino profissionalizante

do estado do Ceará. É um modelo de escola de tempo integral que oferece cursos técnicos integrados ao ensino médio regular.

A escola onde foi realizada a pesquisa está localizada na cidade de Horizonte, na região

metropolitana de Fortaleza no Ceará. Ela funciona nesse modelo desde o ano de 2009. Conta com

53 Tradução de Rocha e Britar, 2013.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 124 de 145

aproximadamente 450 alunos e oferece a estes 05 cursos técnicos: agronegócio, informática, enfermagem, finanças e segurança do trabalho, computando, assim, 12 turmas nas três séries do Ensino Médio.

Em relação ao desempenho da escola nas avaliações externas – ENEM – é uma das

primeiras colocadas no ranking estadual das escolas públicas: ocupou até 2013 a terceira posição, no entanto no ano de 2014, a escola ficou em sexta posição. Por outro lado, o desempenho dos estudantes do terceiro ano na redação do ENEM apresenta, embora satisfatório em relação a escolas regulares, por exemplo, debilidades, assim como acontece na maioria das instituições de Educação Básica do Brasil, quando o assunto é produção escrita.

Diante desse contexto, a escola decidiu acrescentar na carga horária de língua portuguesa

aulas e atividades direcionadas para desenvolver o trabalho de escrita para minorar a defasagem nas capacidades de linguagem dos estudantes quando confrontados com o texto escrito. Este trabalho é pautado nas exigências das competências da matriz de referência da redação do ENEM.

Como processo complexo que é o ensino e aprendizagem, as atividades realizadas na escola

são variadas para atender ao perfil e às necessidades de cada turma. Além disso, o tempo de aula disponibilizado, as condições físicas da escola e os recursos humanos são, muitas vezes, limitados. Isso exige, principalmente por parte do professor, ações que promovam a participação e responsabilidades dos estudantes. Assim, podemos também descrever o lugar que eles assumem nessas ações. Para isso, contamos com as ferramentas digitais disponíveis que podem auxiliar os professores a promover maior interação entre os estudantes. Do corpus e perfil dos participantes

Como se trata de produção escrita, o nosso corpus é composto de redações que são

produzidas de acordo com a proposta de redação do ENEM. Esses textos foram produzidos manuscritamente, e digitado no documento do Googledrive. Além das redações, temos também os textos produto da análise dos estudantes em relação ao texto de seus pares. Além desses dados elaboramos um questionário que servirá para analisar o nível de conhecimento que os estudantes têm de manusear a ferramenta.

A turma na qual foi desenvolvido o trabalho é composta por 37 alunos do segundo ano do

curso Técnico em Informática, integrado ao ensino médio regular. A proposta de trabalho

A proposta de trabalho com a escrita foi realizada, nesse caso específico, para que os

estudantes participassem de um concurso de redação promovido pela Controladoria Geral da União (CGU). Assim, depois dos debates em sala sobre o tema do concurso: “Pequenas Corrupções - Diga Não” e das orientações dadas pelo professor, os estudantes produziram os textos em sala aula.

Depois, esses textos foram comentados em sala e em seguida, os estudantes, orientados a

digitar o seu texto no googledrive a compartilhá-lo com mais três colegas – cada grupo era formado por 4 membros – e com o professor para acompanhar o processo e as interações entre os estudantes.

É importante pontuar que antes de os estudantes utilizarem a ferramenta, o professor junto

com um estudante, que conhecia a ferramenta, montaram um tutorial para apresentar as funcionalidades da ferramenta aos demais estudantes.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 125 de 145

Nossa proposta passa, portanto, por uma questão dupla que envolve ferramentas digitais e o uso para o melhoramento do texto. Nossa análise segue o seguinte esquema: Análise dos dados

Depois da contextualização realizada e da descrição do perfil dos estudantes participantes

dessa atividade, temos a análise dos dados resultantes do questionário aplicado aos estudantes e das produções produzidas e comentadas por eles com o uso da ferramenta digital. Nossa análise está divida em dois momentos. No primeiro tratamos do uso do artefato googledrive – pois, de acordo com Rabardel (1995) torna-se instrumento depois de apropriado pelos sujeitos. Em seguida, fazem-se algumas considerações sobre os textos comentados por meio de interações. O uso da ferramenta googledrive

Colocaremos nesse espaço a análise dos questionários que expressa a visão dos estudantes sobre o uso dessa ferramenta que de acordo com Rabardel (1995) pode ser manuseado como um instrumento para realizar determinadas ações.

Quadro 1 – Informações sobre o uso da ferramenta

Desafios

Com a ferramenta digital googledocs

Com o texto - produto de uma atividade de

linguagem

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 126 de 145

Número de produções escritas

Número de produções digitalizadas

Conhecimento prévio da ferramenta

Reutilizou a ferramenta

Número de produções comentadas

31 27 03 06 18

O Quadro 1 apresenta dados relacionados ao conhecimento e manuseio da ferramenta

digital Googledrive. O questionário foi respondido por 36 dos 37 estudantes da turma já descrita. Deste número, 31 alunos fizeram a produção textual manuscrita como a primeira parte da tarefa proposta54 pela professora. Destes 31, 27 digitalizaram a redação para fazer o trabalho de maneira colaborativa entre seus pares. Percebe-se assim, que um bom número de alunos respondeu, positivamente, às prescrições dadas pelo professor.

Cada estudante deveria disponibilizar sua produção e comentar outras três, sugerindo

mudanças no texto. Os dados da tabela mostram que das 27 redações digitalizadas, apenas 18 foram comentadas. Isso mostra, provavelmente, que os estudantes não se apropriaram do artefato ou mesmo não conseguem desenvolver um trabalho eficaz com o texto escrito.

Um dado nos chama atenção: por se tratar de estudantes do curso técnico de informática que já estão no segundo ano do Ensino Médio, apenas 03 estudantes afirmaram que já conheciam a ferramenta. A maioria afirmou que nunca havia ouvido falar sobre. Isso revela o quanto é necessária as atividades escolares que envolvam o uso de ferramentas digitais. A apropriação pelos estudantes de artefatos digitais pode auxiliá-los tanto em atividades escolares quanto em atividades extraescolares, pois a necessidade de utilizá-las surge a partir das várias atividades sociais nas quais nos envolvemos no nosso dia a dia.

Em relação ao uso dessa ferramenta além dessa atividade específica, que, para muitos, foi o

primeiro contato, apenas 3 alunos afirmaram ter usado novamente a ferramenta. Um dos motivos apontados foi o escasso acesso à internet tanto em casa quanto na escola. Mesmo que esta disponibilize dois laboratórios aos estudantes, a internet da escola não é de boa qualidade. Isso dificulta, portanto, o trabalho com o uso de ferramentas tecnológicas por estudantes e professores. Produção de textos e o googledrive

A ferramenta googledrive permite a realização de comentários e marcações nos textos – como

podemos ver nas figuras 1, 2 – que são realizados entre os estudantes. O objetivo da proposta foi levar os alunos a melhorar o texto escrito por meio de interações entre os colegas, por meio de comentários. No entanto, os comentários foram realizados apenas nos momentos da aula – que tinha um tempo escasso. Isso fez com que a atividade não apresentasse progressão. Um dos motivos apontados pelos estudantes sobre isso, mais uma vez, foi a dificuldade de acesso à internet.

Outro ponto a ser considerado é o tipo de contribuição dado pelos membros. A maioria

dos comentários resume-se a questões relacionadas, vagamente, à norma culta. Um mapeamento desses comentários poderia nos mostrar como são as leituras realizadas pelos estudantes, enquanto seres ativos na construção de um conhecimento e semitiozação de determinado conteúdo.

54 É importante pontuar que o trabalho inicialmente tinha como objetivo, como atividade rotineira da escola, a escrita de um texto sobre a campanha da CGU. A partir da necessidade de reescrita do texto, a professora pensou em desenvolver esse trabalho como forma de melhorar as capacidades de linguagem nos estudantes e que facilitasse e trouxesse a contribuição de todos os estudantes por serem percebidos como sujeitos ativos na construção de seu desenvolvimento humano.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 127 de 145

Figura 1- Texto editado a partir dos comentários dos estudantes

Como podemos observar na Figura 1, foram realizados nesse texto apenas dois

comentários que pertencem a um mesmo estudante. Isso nos desperta para uma questão pertinente em relação ao uso de ferramentas digitais por estudantes – que estímulos a escola promove aos estudantes para o uso desses instrumentos para o ensino e aprendizagem em contexto escolar?

Na maioria dos textos, havia poucos comentários dos integrantes de cada grupo. Os

comentários ficaram limitados a dois ou a três comentários e realizados por um ou dois membros apenas.

Além dessas questões, a ausência de retorno do estudante aos colegas que realizaram os

comentários deve, também, ser considerado, pois parece ser mais um entrave que surge com esse tipo de proposta de trabalho. A armazenagem desses textos permite nos verificar e analisar a atenção dada pelos estudantes a atividades de reflexão sobre a sua escrita. Esse é, pois, um potencial da ferramenta, mas que não foi aproveitado pelos estudantes.

Figura 2 – texto com os comentários

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 128 de 145

A Figura 2 expõe uma interação entre os participantes, por meio do recurso do documento do googledrive, o comentar. Essa interação produz uma reflexão55 sobre a escrita entre os estudantes do grupo. Percebemos que o autor da redação consegue estabelecer um diálogo sobre o seu texto com os outros integrantes. Embora, haja essa interação, ela ainda é elementar. Os estudantes precisam apropriar-se melhor da ferramenta e de capacidades da escrita para utilizar as duas de maneira que uma complemente a outra.

Em relação aos comentários, podemos constatar que há uma relação dialógica entre os

estudantes. Assim, há questionamentos sobre as escolhas de determinadas unidades linguísticas pelo produtor da redação. Logo em seguida a pergunta é respondida. Isso, provavelmente, promove uma tomada de consciência pelos sujeitos da interação com o uso da linguagem. Porém a maioria dos questionamentos sobre as tomadas de decisão não são respondidas.

Os comentários realizados pelos alunos em grupo de interação restrito mostram que o uso

efetivo, além da apropriação dessa ferramenta, por alunos e professores, pode contribuir para uma profícua atividade de linguagem escrita.

É necessário perceber também que essa atividade precisa ser bastante aprimorada. As

reflexões em torno da escrita do outro provavelmente provoque um modo diferente de ver o texto escrito. O desafio que podemos perceber, a partir da Figura 1, é levar o aluno a ter um aprofundamento do tipo de interação que ele pode estabelecer com os seus pares.

As perguntas entre os sujeitos podem perpassar uma atividade que é geralmente

considerada como enfadonha na escola. Dessa forma essas interações pressupõe a linguagem como intrinsecamente dialógica. As várias tentativas de interação são vista como uma atividade pertinente para a escrita de um texto. A partir dela, podemos inferir que os interactantes tomam consciência das potencialidades disponibilizadas pela língua para agir em diferentes atividades sociais. Algumas Considerações

Os desafios pelos quais passam os estudantes da educação pública no Ceará em relação ao

texto escrito ainda são grandes. A ausência de infraestrutura, o trabalho que não é formativo e, portanto, não há continuidade, a limitação dos professores em relação ao trabalho desempenhado com tecnologias digitais, a escassez de acesso à internet pelos estudantes mesmo no ambiente escolar. Tudo isso contribui para o desinteresse e a falta de zelo com aprendizagem por parte dos estudantes.

Os dados mostraram como os estudantes se comportam diante de um trabalho pedagógico

com o uso de ferramentas digitais. Mostrou-nos, principalmente que, embora os estudantes estejam “antenados” com recursos digitais, o uso deles para a aprendizagem de um conteúdo curricular precisa ser ensinado. Outro ponto observado foi a dificuldade em alcançar todos os alunos da turma para realizar as atividades propostas. Percebeu-se, ainda, que há uma resistência em realizá-las, mostrando a desmotivação dos estudantes.

Embora tenhamos nos detido aos desafios que precisam ser contornado pelos estudantes,

podemos dizer, mesmo que incipiente, que a ferramenta apresenta muitas potencialidades: o trabalho significativo através da interação; a discussão e reflexão dos participantes em relação aos textos escritos por eles; a consulta ao texto é otimizada, além da facilidade com a edição do texto e portanto de retorna a ele sempre que necessário.

55 Essa atividade de reflexão sobre o escrever e usar a língua é denominada na literatura dessa área de epilinguística. Não aprofundaremos nessa ocasião essa atividade.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 129 de 145

A clareza sobre a natureza do trabalho é apenas embrionário, pois existem muitas questões que precisam ser analisadas. Não foram aqui feitas por limite de espaço e da proposta de discussão. Entre esses fatores podemos citar a análise do contexto de produção e o agir comunicativo dos estudantes através de um instrumento digital. A partir de uma análise linguística mais aprimorada, elencar que capacidades de linguagem podemos trabalhar no texto dos estudantes. Referências BRASIL. Ensino Médio: Orientações complementares aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília/DF: MEC/SEMTEC, 2002. BRONCKART, J-P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. Trad. De Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. (2.ed., 2.reimpr.) São Paulo: EDUC, 1999. CABRAL, Z. A. Ser professor na cultura digital: e agora?. Artefactum – revista de estudos em linguagem e tecnologia, 02, 1-15, 2015. Disponível em <http://artefactum.rafrom.com.br/index>. Acesso em: 20 abr. 2015. LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. MACHADO, A. R.; LOUSADA, E. G. A apropriação de gêneros textuais pelo professor: em direção ao desenvolvimento pessoal e à evolução do "métier". Ling. (dis)curso (Impr.), Tubarão , v. 10, n. 3, 619-633, 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em 20 abr. 2015. RABARDEL, P. Les hommes et les technologies, approche cognitive des instruments contemporains. Paris: Armand Colin, 1995. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 130 de 145

A Sociologia da Infância como suporte para os professores: a criança e a cultura do brincar.

Nathalia Franco Alves56

Márcia Regina Canhoto de Lima57 Resumo Refere-se aos resultados da iniciação científica intitulada “A Ludicidade como eixo estruturador das culturas da infância, dando voz a criança”, desenvolvida pelo grupo de pesquisa CEPELIJ58, em parceria com uma escola de Educação Infantil de Presidente Prudente. Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo – etnográfica pautada na Sociologia da Infância. Teve por objetivos compreender como a Ludicidade é trabalhada dentro do contexto escolar observando a postura das professoras e permitir que a criança protagonize suas vivências. Como resultados, crianças e professoras estiveram mais presentes nessa relação. Palavras Chave: Professoras, Infância, Escola. Abstract It refers to the results of the scientific initiation entitled "Ludicidade as the structuring axis of childhood cultures, giving voice to the child", developed by the research group CEPELIJ, in partnership with a school of Early Childhood Education of Presidente Prudente. This is a qualitative research of the ethnographic type based on the Sociology of Childhood. She had as objectives to understand how the Ludicidade is worked within the school context observing the posture of the teachers and to allow the child to protagonize their experiences. As a result, children and teachers were more present in this relationship. Keywords: Teachers, Childhood, School. Introdução

A infância, segundo Sarmento (2005), Aries (1981), Cordeiro (2008), Corsaro (2009) entre

outros, trata-se de uma construção histórica. Por mais críticas que a obra59do historiador Philipe Áries receba, as suas contribuições não podem ser negligenciadas. O autor denota que as crianças antecedentes ao século XVII, eram concebidas como adultos em miniatura, pequenos seres que reproduziam todas as ações dos adultos próximos a eles.

Pinto e Sarmento (1997) reafirmam essas considerações quando denotam que as crianças

existiram desde sempre, mas a infância como categorial social só teve início no final do século XVI

56 Professora licenciada e bacharela em Educação Física pela Faculdade de Ciências e Tecnologia Júlio de Mesquita Filho - UNESP - Campus de Presidente Prudente - SP. Participa do Grupo de Pesquisa: Cultura Corporal Saberes e Fazeres e do Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Ludicidade, Infância e Juventude (CEPELIJ). Participa de Projetos de pesquisa apoiados no referencial teórico da Sociologia da Infância e de outras temáticas para compreensão da criança, infância e suas culturas. 57 Docente do Departamento de Educação Física e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia- Unesp de Presidente Prudente.m a Produção Coordena o Centro de Estudo e Pesquisa em Educação, Ludicidade, Infância e Juventude (CEPELIJ) e é Vice-líder do Grupo de Pesquisa: Cultura Corporal, Saberes e Fazeres, cadastrado no CNPQ. Coordena os seguintes Projetos de Pesquisa e Intervenção: - Projeto PIBID: A formação de professores de Educação Física para a Educação Básica a partir da interlocução entre Infância, Juventude, Educação e Cultura Corporal De Movimento, financiado pela CAPES. 58 Cepelij: Centro de estudo e pesquisa em educação, ludicidade, infância e juventude. 59 “História Social das Crianças e da família” 1981, com iconografias francesas de um contexto financeiramente favorecido.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 131 de 145

e início do século XVII. Ao ser relatado a existência de criança desde os tempos remotos, mas sem a existência da infância, define que essa categoria foi construída gradativamente.

Nesse sentido, o presente artigo refere-se a um recorte da pesquisa intitulada “A

Ludicidade como eixo estruturador das culturas da infância, dando voz a criança”, que visa à construção histórica da infância e como os pequenos são tratados dentro do contexto escolar.

A Ludicidade, segundo Sarmento (2003) é a atuação mais significativa das crianças e

necessita estar presente em todos os contextos vivenciados por elas. Ao dizermos “dar voz a criança” não nos referimos apenas a palavras, mas em todas as formas de expressão de seus sentimentos.

As crianças falam por gestos, por olhares, por ações. Em cada movimento elas podem estar

querendo dizer algo, e são nesses momentos que os nossos olhares precisam estar atentos para entender a mensagem que nos está sendo passada.

Os objetivos dessa pesquisa referem-se a analise de como a ludicidade ocorre no interior de

uma instituição de Educação Infantil, compreender como esse eixo é trabalhado pelas professoras e observar a relação das crianças com a brincadeira. Além destes, procura-se promover espaço para que os pequenos possam se manifestar de maneira criativa.

Metodologia

O presente estudo é realizado pelo grupo de pesquisa CEPELIJ 60em parceria com uma

escola periférica de Presidente Prudente. Conta com a parceria de uma escola de Educação Infantil do mesmo munícipio, onde os bolsistas trabalham com 54 crianças e duas professoras. É financiada pela agência de fomento Pibic/Cnpq. Trata-se de uma pesquisa qualitativa do Tipo – Etnográfica.

A etnografia compreende a entrada do pesquisador no mundo do pesquisado, no caso em

questão, assumimos algumas ferramentas da etnografia, mas passamos um tempo reduzido no contexto que estudamos.

As observações na escola acontecem uma vez na semana. Todas as análises são registadas

no diário de campo e em vídeos e fotografias. Com as professoras são realizadas entrevistas, diálogos e observações das atividades e com as crianças, além das observações, trabalhamos com o registro de suas concepções em desenhos, que ocorrem com o auxilio das bolsistas de um projeto de extensão que atuam na mesma instituição escolar. Afim de não interpretar o que elas estão falando, mas apenas considerar suas informações, as bolsistas vão perguntando e anotando o que os pequenos estão desenhando. Os nomes das crianças citados no decorrer do artigo são fictícios, sendo eles representados por personagens de desenhos animados e super – heróis, escolhidos pelas próprias crianças.

Por ser uma pesquisa realizada com crianças, se fez necessário a sua aprovação pelo comitê

de ética, correspondendo ao seguinte número: 13424213800005402.

Resultados É imprescindível mencionar que a pesquisa em questão é realizada juntamente com as

crianças e não sobre crianças. Elas são protagonistas das vivências e auxiliam na elaboração das atividades, visto que as bolsistas aos términos das observações, perguntam aos pequenos o que querem fazer na próxima aula. Quando se estabelece um trabalho com crianças, elas precisam permitir que o adulto entre em seu espaço. Elas não gostam de um adulto com atitudes infantis,

60 CEPELIJ: Centro de estudo e pesquisa em educação, ludicidade, infância e juventude.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 132 de 145

mas de alguém que seja realmente adulto e consiga entender o que esta acontecendo em seu mundo, o que Corsaro (2009) concebe como um adulto atípico.

No momento que o adulto começa a entender a criança a partir da perspectiva de vida tida

por ela, ele estreita uma relação de confiança com os pequenos que abre espaço para a descoberta do seu mundo. Uma das salas estudadas vem sendo acompanhada pelo projeto de extensão desde o maternal. Diante de relatos das bolsistas e das observações com essas crianças, elas sempre foram submetidas a atividades lúdicas e imaginárias. A outra turma, por sua vez, passou a ter esse aporte desde o ano passado (2015). A diferença entre as duas salas é inegável. Os alunos que recebem esse tratamento diferenciado desde os seus 24 meses tem uma resposta aos sentidos das culturas infantis muito mais ampla do que os que estão adentrando agora nessa realidade. Não que os que iniciaram o ano passado não tenham a mesma essência de infância, mas a maneira que esses elementos se afloram são distintas e menores.

Observamos que em ambas as salas, a brincadeira foi à chave para manter as crianças como

protagonistas. Toda brincadeira que era apresentada continha elementos imaginários. As bolsistas trabalhavam com contação de histórias, caças, brincadeiras cantadas e atividades de correria, sempre enfatizando o mundo encantado de personagens infantis. O intuito era levar atividades que impulsionassem vivências fora de seu contexto.

Um exemplo disso foi à manhã na praia. Por se tratar de uma cidade no interior paulista

distante do litoral, a maioria das crianças nunca viu o mar a não ser por vídeos e fotografias. A escola possui um espaço com areia, onde as crianças brincam às vezes. As bolsistas

levaram um pedaço de TNT azul e colocaram ao lado desse espaço, simbolizando o mar. E na areia espalharam brinquedos como baldes, pás, rastelos, carriolas e outras coisas semelhantes.

Sentamos no canto da quadra e observamos como eles se portavam. As crianças chegaram

correndo e foram direto nos brinquedos, de repente o Lanterna Verde levantou e disse: Vou nadar de verdade, - e sem pensar deitou-se no TNT o transformando no mais profundo oceano. Na beira da praia o Thor estava enchendo os baldes e fazendo bolos, quando a Bela Adormecida chegou e perguntou:

- Por que vocês conseguem fazer bolos tão rápido? - Porque a gente sabe! (Respondeu o Batman). - Ah e eu posso fazer também? Nesse instante o Lanterna Verde saiu do mar, sentou–se com as crianças e disse: Sim, ajuda

a encher os baldes. (DIÁRIO DE CAMPO). As crianças dessa turma específica tem uma capacidade interativa que nos impressiona.

Não importa quais brincadeiras eram expostas e quais contextos estavam sendo vivenciados, elas sempre se uniam e colocavam na brincadeira um pouco do que cada um queria.

Em outra situação, elas estavam cavando a terra e falando que era um escorregador.

Cinderela enquanto enchia um pote com areia nos dizia que estava fazendo um “pundio”. (Doce de leite condensado conhecido como pudim).

Enquanto estávamos observando e fazendo nossas considerações, um aluno se aproximou

com um pouco de areia e nos disse que era massa de bolo de milho. Ao perguntarmos seu nome ele respondeu: Homem Aranha.

Durante toda a pesquisa estamos usando o nome das crianças como personagens, porém,

nesse momento, a criança realmente disse que se chamava Homem Aranha. No mesmo instante,

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 133 de 145

um outro aluno apareceu dizendo que se chamava Flash, nos puxaram pelas mãos e nos levaram para mergulhar no mar.

Todas as crianças se aproximaram e disseram que dentro desse mar havia um jacaré muito

feroz e faminto. À medida que íamos atravessando as águas marinhas, eles jogavam areia do outro lado do mar, a fim de nos proteger e matar o carnívoro. Em todas as vivências as crianças estiveram como protagonistas e a capacidade imaginativa delas aflorava a cada história

Em uma das observações, as atividades na escola precisavam ser finalizadas antes do

horário normal, portanto, a aula foi submetida com as duas salas ao mesmo tempo. Por mais que a euforia tivesse tomado conta do local, todas as crianças participaram das brincadeiras e deram suas contribuições. E para a nossa surpresa, as professoras também.

Ah eu acho que vou brincar também professora. Afinal, hoje eu não vim de calça branca, então posso sentar no chão. (risos). “Venham crianças. Vamos todos brincar porque depois vocês vão querer saber de novo e eu não vou saber. Venha Kelly61, chame a sua sala”. (DIÁRIO DE CAMPO, PROFESSORA ANITA, 01/06/2016).

Essa foi uma das observações mais significativas, pois realmente vimos à vontade das professoras em estarem ali. Pelo fato das salas estarem juntas, a intervenção durou dez minutos a mais do que costuma ser normalmente e as crianças não queriam parar de brincar.

“Professora, mas já acabou? Porque a gente só brincou de duas coisas? Não deu tempo de nada! A gente

tem que brincar de novo”. (DIÁRIO DE CAMPO, ELSA, 01/06/2016). Mas só isso? A gente não vai brincar de pintinho comendo o milho62? (DIÁRIO DE CAMPO,

CAPITÃO AMÉRICA, 01/06/2016). Mencionaremos na discussão desse artigo, que o tempo da criança é diferente do adulto,

para eles, por mais que as bolsistas tenham ficado cronologicamente a mais que o comum, a vivência estava tão prazerosa que não poderia se findar. Discussão

Como já mencionado no início desse estudo, as crianças na idade média não eram

consideradas diferentes dos adultos, mas não se pode negar que os pequenos recebiam os cuidados básicos para a sobrevivência, havia alguém que os amparava. Quando se diz que nesse período não existia sentimento de infância, os autores estão mencionando que as crianças eram vistas sem o respeito de uma categoria social, não sendo reconhecidas como atores sociais.

[...] o sentimento de infância não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia. (ARIÈS, 1981, p.156)

Compreendemos a partir disso que era obscuro o entendimento de que a infância é um

período diferente de qualquer outro, que existem idades distintas durante a vida que devem ser respeitadas. As mudanças dessas situações começaram a serem observadas quando os pintores

61 Kelly: Nome fictício dado a professora de uma das salas de Educação Infantil. 62 Mamãe Galinha: Atividade realizada na primeira intervenção do ano de 2015, onde a professora era a mamãe galinha e alimentava os pintinhos (as crianças) com milho.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 134 de 145

deram início às obras de crianças já falecidas, retratando também que guardavam lembranças daqueles que já se foram. A partir dessas novas concepções, outras teorias foram sendo exploradas e a maneira como as famílias sofriam as perdas das crianças mostrou o novo sentimento.

O que a Sociologia da Infância denota é que a criança é um sujeito ativo, particular e

protagonista. Ela desmembra o pensamento de uma criança apartada da sociedade e nomeia a relação da criança com a sua realidade e suas ações de Reprodução Interpretativa. A Reprodução Interpretativa enfatiza a capacidade de a criança reinventar o seu contexto a partir do que denomina-se “rotinas culturais”. Esse aparato cultural propicia aos pequenos a segurança de que pertencem a um grupo social e não encontram-se alienados em um mundo desconhecido. Além disso, dá ênfase na interpretação do que se vive e a reformulação do que será produzido. Segundo Corsaro (1992), tais rotinas auxiliam as crianças no que é inesperado e diferente, tornando-as atores sociais.

Segundo Prout (2010), a Sociologia da Infância encontra-se em fase de aprimoramento,

visto que a mesma iniciou-se da Sociologia Moderna, considerando o que há de positivo nela e rejeitando os pareceres que abortam o posicionamento ativo da criança. No entanto, o próprio autor define como louvável uma Sociologia que enfatize as particularidades da criança, a considerando como sujeito e valorizando as Culturas da Infância.

As crianças produzem e possuem particularidades, mas essas são envolvidas no contexto

em que o adulto que a educa se encontra. Diante disso, Sarmento (2003) nos apresenta quatro eixos que estruturam as culturas infantis: Interactvidade, Ludicidade, Fantasia do Real e Reiteração.

A Interactividade é a relação que a criança estabelece com seus pares; a Ludicidade é o que

a criança tem de mais significativo, a sua maneira de entender o mundo, a Fantasia do Real é a capacidade imaginativa da criança e a Reiteração equivale ao tempo recursivo apresentado por elas.

Destes, a Ludicidade é o aporte principal de nossos estudos. Tomada como sinônimo de

brincadeira, além de ser o momento de prazer e satisfação, constitui-se do que a criança faz de mais significativo. São nessas vivências que elas reinventam seus mundos. Impedir que uma criança brinque e explore a sua imaginação é não permitir que ela se desenvolva completamente.

As instituições educacionais estão sendo cada vez mais o local onde as crianças passam

grande parte de seus dias, quando não passam o dia todo nessa realidade. Portanto precisamos subsidiar as vivências lúdicas e amparar as relações entre infância e brincadeira.

Conclusão

No decorrer de nossas observações percebemos que as professoras que antes não

demonstravam tanto interesse pela Ludicidade, agora se mostram mais presentes nas vivências. Todo esse processo foi uma construção, analisada aula após aula. As crianças esperavam ansiosamente por esses momentos, e quando as bolsistas finalmente chegavam, não queriam as deixar partir. É importante denotar que a relação das professoras com os alunos se mantinha bem mais próxima quando elas estavam dispostas a participarem de suas vivências, isso se remete ao que mencionamos do adulto que consegue a permissão de entrar no mundo da criança.

A mente de uma criança é cercada por descobertas e inovações e dar voz a ela é permitir

que a mesma exprima a sua visão de mundo. Nessa fase da vida, elas estão tentando descobrir o que é esse complexo de pessoas em que vivemos e qual a importância delas nele. E a escola, por sua vez, tem o papel de auxiliar nessa descoberta, visto que as responsabilidades sobre as crianças não se resumem apenas a família, por mais que essa seja a primeira agência geracional responsável pelos cuidados básicos e educação, mas compete a toda a sociedade.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 135 de 145

Referências ARIES, Philippe. História Social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. 196 p. BARBOSA, M. C. S. Culturas escolares, culturas de infância e culturas familiares: as socializações e a escolarização no entretecer destas culturas. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100 – Especial, p. 1059-1083, out. 2005. CHAUI, Marilena. Filosofia moderna. In. Primeira Filosofia: aspectos da Historia da Filosofia. 10. reimpressão.São Paulo: Brasiliense, 1996. CORDEIRO, Sandro da Silva; COELHO, Maria das Graças Pinto. Descortinando o conceito de infância na história: do passado à contemporaneidade. Junho. 2007. Disponível em:http://www.faced.uf.br/colulhe06/anais/arquivo/76SandroSilvaCordeiro_MariaPintoCoelho.pdf. Acesso em: 28/11/2008. CORSARO, W.A. (1992). Reprodução interpretativa em culturas de mesmo nível infantil. Social Psicologia trimestral, 55(2), 160-177. Washington CORSARO, Willian. Sociologia da Infância. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. 384 p. HOLANDA, Aurélio Buarque. Mini Dicionário da Língua Portuguesa. Brasil: Saraiva, 2010. MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maria Almeida. Encontros e diálogos: notas introdutórias. In: MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maria Almeida (Org.). Teoria e Prática na pesquisa com crianças: diálogos com Willian Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009. O COMEÇO da vida. Direção de Estela Renner. Brasil: Marina Faria Filmes, 2016. P&B. PROUT, Alan. RECONSIDERANDO A NOVA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA1. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 141, p.729-750, set. 2010 QVERTRUP, Jens. A infância enquanto categoria estrutural. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. 2, p.631-643, maio 2010. SARMENTO, Manuel Jacinto. As Culturas da Infância nas encruzilhadas da 2° Modernidade. Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, Portugal, p.1-22, 2003. SARMENTO, Manuel Jacinto. Gerações e alteridade: interrogações a partir da Sociologia da Infância. Educação Social, Campinas, v. 26, n. 91, p.361-378, 2005. SIROTA, Régine. Emergência de uma Sociologia da Infância: Evolução do objeto e do olhar. Cadernos de Pesquisa, Paris. N. 112, p.7-31, mar. 2001. VEYNE,P. O Império Romano. In: ARIÈS & DUBY. Historia da Vida Privada. São Paulo: Cia das Letras, 1994.vol.1. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 136 de 145

RIBEIRÃO SÃO JOÃO: ESTUDOS DOS IMPACTOS SOCIO-AMBIENTAIS ATRAVÉS DA MEMÓRIA DA POPULAÇÃO RIBEIRINHA NO MUNICIPIO DE

PORTO NACIONAL – TO.

Newton Cândido de Assis63

Solange de Fátima Lolis64

Rodney Haulien Oliveira Viana65

Carolina Machado Rocha Busch Perreira66

Resumo O Ribeirão São João fornece água para o município de Porto Nacional – Tocantins, e a falta de gestão e consciência ambiental acarreta comprometimento na vida das futuras gerações. Objetivou-se com este trabalho, apresentar uma parte da historia de vida de antigos moradores baseado nos métodos de pesquisa qualitativa e história oral, que a partir das atividades de campo e entrevistas com os moradores, ajudaram a compor o cenário da memória dos moradores. O crescimento populacional do município causou e vem causando impactos no Ribeirão, e na população do entorno, e, esta memória não deve ser negligenciada. Palavras chave: História oral; uso da água; mata ciliar. Abstract The São João riversides provides water for the municipality of Porto Nacional – Tocantins, and the lack of management and environmental awareness implies a compromise in the lives of future generations. The objective of this work was to present a part of the life history of ancient residents based on methods of qualitative research and oral history, which from the field activities and interviews with the residents helped to compose the scenario of the residents' memory. The population growth of the municipality has caused and is causing impacts in riversides, and in the surrounding population, and this memory should not be neglected. Key words: Oral history; Water use; Riparian forest. Introdução

Desde o surgimento do ser humano, ele vem usufruindo todos os recursos que o ambiente

natural possa lhe oferecer. E estes bens são usados até hoje muitas vezes de uma forma predatória, não sendo motivo de preocupação até alguns anos atrás. No entanto, atualmente tem havido uma maior preocupação em relação à preservação ambiental, muitos estudos tem sido feitos para avaliar os impactos ambientais causados pelo homem. Atualmente, sabemos que os recursos naturais são finitos e que se não forem tomadas algumas providencias com relação à conservação dos mesmos, a vida na terra de modo geral, corre sérios riscos desaparecer.

63 Licenciado em Ciências Biológicas – Universidade Federal do Tocantins – UAB – Campus de Porto Nacional. TO. Mestrando em Biodiversidade, Ecologia e Conservação – Universidade Federal do Tocantins – Campus de Porto Nacional. TO. 64 Doutora em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais – Ciências Ambientais – Universidade Estadual de Maringá – Pr. Docente do Curso de Ciências Biológicas e Programa de Pós-graduação em Biodiversidade, Ecologia e Conservação – Universidade Federal do Tocantins – TO. 65 Doutor em Botânica – Universidade Federal de Viçosa – MG. Docente do Curso de Ciências Biológicas– Universidade Federal do Tocantins – TO. 66 Doutora em Geografia Humana – Universidade de São Paulo – SP. Docente do Curso de Geografia e Programa de Pós-graduação Geografia – Universidade Federal do Tocantins – TO.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 137 de 145

A água é um dos principais problemas que envolvem o meio ambiente. Apesar de ser um recurso natural renovável, pode vir a se esgotar, caso seu uso seja mal manejado (Rosa, et al, 2014). Sabe-se que a porcentagem de água potável no planeta é muita pequena, e apesar disto há muitos mananciais que foram totalmente destruídos, e muitos dos que restaram continuam sofrendo ações antrópicas. A redução dessas áreas provoca perda de habitat natural e consequentemente a diminuição na riqueza de espécies (BIERREGAARD et al., 1992. p.859-886).

Aproximadamente 70% da superfície terrestre encontram-se coberta por agua. No entanto, menos de 3% deste volume é de agua doce, cuja maior parte está concentrada em geleiras (geleiras polares e neves das montanhas) restando uma pequena porcentagem de aguas superficiais para as atividades humanas. A agua está distribuída da seguinte forma no planeta- 97,5% da disponibilidade da agua do mundo estão nos oceanos, ou seja, agua salgada – 2,5% de agua doce e ela está distribuída da seguinte forma -29,7% em aquíferos -68,9% nas calotas polares -0,5% nos rios e lagos e 0,9% em outros reservatórios (nuvens, vapor d’agua ) (SERQUEIRA, 2014)

Os sistemas hídricos brasileiros vêm sofrendo severas agressões com o uso indiscriminado

da água. Como o uso feito pelas populações urbanas grandes ou pequenas que não possui tratamento de esgoto, devido a essa falta de tratamento seus efluentes são lançados diretamente nos córregos ou rios mais próximos tornando-os altamente poluídos. Também o consumo muito grande de água usada na irrigação de lavouras, de pastagens para a prática da pecuária. E como consequência essas ações são convertidas em impactos, se tornando problemas socioambientais graves. A poluição de rios, portanto, é uma realidade constante na história da humanidade, desde o momento em que o homem procurou fixar residência (BRANCO, 1972. 157.p).

A água está no centro das atenções mundiais nesse século, seja por causa dos índices de qualidade ou pela quantidade de demanda. Esta atenção especial com os recursos hídricos decorre do desenvolvimento ocorrido no mundo que foi, aos poucos, mas ininterruptamente, estabelecendo mudanças nos regimes das águas através de ocupação dos solos e de diversos usos desse recurso. A bacia hidrográfica é a unidade de planejamento geográfico natural, sobre a qual se estabelece a dependência de todos os componentes do crescimento e desenvolvimento da sociedade e define os múltiplos usos de gestão de recursos hídricos. A visão equivocada de que a água é um bem abundante e inesgotável, ocasionando, portanto, a ausência de medidas conservacionistas e uso adequado dos recursos hídricos, com a consequente contaminação de mananciais gerando a escassez de água, está sendo reformulada no sentido de que os recursos hídricos são um bem passível de exaustão, tendo como consequências graves a deterioração e escassez de água potável para o abastecimento de cidades. Este artigo tem como objetivo fazer uma analise sobre os usos que se têm dado aos recursos hídricos, principalmente em áreas urbanas. (ALENCAR, 2011, p. 212-213)

Surgimento e desenvolvimento de Porto Nacional Em 1722, teve inicio a corrida do ouro, Pontal nasceu a partir das descobertas de minas de

ouro em 1738 (GIRALDIN, 2002, p.131-146). Um velho morador de origem Portuguesa Felix Camoa, fazia o transporte de passageiros entre as duas margens do Rio Tocantins, alguns passageiros vinham em busca do garimpo localizado no Arraial do Carmo (SEDUC, TO).

Em um plano elevado na margem direita do Rio Tocantins, foi o local escolhido por Felix

Camoa, onde o mesmo tinha uma visão, caso houvesse um ataque de índios. Aos poucos o contingente populacional foi aumentando ao redor da casa do barqueiro, abrigando ali, agricultores, pescadores e outros. Mais tarde um novo povoado surgiu conhecido como Porto Real (GODINHO, 1988).

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 138 de 145

O medico naturalista Johann Emanuel Pohl, viajou pelo Brasil de 1817 a 1821, em seu livro

Viagem no Interior do Brasil relata que Porto Real.

O arraial de Porto Real é uma das povoações mais novas do Brasil. O número de casas sobe a umas trinta, mas poucas cobertas de telha a maioria é coberta de palha de palmeiras. Entre as melhores casas estão a que habito (foi construída à custa do governo para o juiz Inez e nela se acha também a cadeia) e a casa do comandante. A igreja recém-construída, porém pequena. O Vigário reside habitualmente no Carmo e vem dizer missa aqui três a quatro vezes por ano durante grandes festas religiosas. Aqui mora um comandante. Tem o posto de major (sargento-mor) e também é encarregado do presidio, isto é, da proteção contra os índios. Tem de promover, também, a ligação do correio, pelo Rio Maranhão, até o Pará (POHL, 1976, s/p.).

Com o surgimento de um porto comercial no Arraial, foram dados os primeiros passos

desta comunidade as áreas administrativa, intelectual e religiosa. Em 14 de novembro de 1831, o Arraial de Porto Real foi elevado a Porto Imperial, neste mesmo ano D. Pedro I, abdicou ao trono. Trinta anos depois do Porto Imperial, em 13 de julho de 1861, pela resolução provincial 333, nascia Porto Nacional, importante pólo cultural, politico e econômico do então Norte Goiano, atualmente Estado do Tocantins (GIRALDIN, 2002).

Segundo Godinho (1988), quando Porto Nacional passou para condição de município,

através de um relatório do Governo da Província de Goiás, enviado a Assembleia Legislativa Provincial, o município contava com 3897 pessoas livres e 415 escravos, em um total de 4313 habitantes.

Porto Nacional pertencia então norte Goiano, a Constituição Federal de 05 de outubro

1988, criou o Estado do Tocantins, o novo Estado passa fazer parte da Região Norte do País, integrando a Amazônia Legal.

O Município de Porto Nacional, atualmente abrange uma área de 4.449,918 km², com uma

população estimada67 em 52.510 habitantes e densidade demográfica de 11,04 habitantes/km². A cidade de Porto Nacional teve em sua construção uma longa historia com muitos reveses, como lutas entre índios e garimpeiros. E grandes dificuldades devido ao isolamento naquela época em consequência da distancia da capital Goiás.

O Município de Porto Nacional sempre esteve ligado histórica e culturalmente ao Rio

Tocantins o qual margeia o lado Oeste da cidade, e também ao ribeirão São João que atravessa a cidade no sentido de Leste Oeste, que era usado para vários fins. Esta ligação com o rio Tocantins foi devido a sua utilização por muito tempo como único meio de transporte de pessoas e mercadorias, e o seu uso para pesca de subsistência.

A população de Porto Nacional se concentrava na margem esquerda do ribeirão São João.

Mas com o desenvolvimento e o crescimento da população as pessoas foram habitando a sua margem direita, hoje em sua drenagem na parte baixa (foz) está completamente urbanizada.

67 Dados do IBGE de 2016. Disponível em http://cidades.ibge.gov.br/xtras/home.php Acesso em 27 de março de 2017.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 139 de 145

Material e métodos Localização da Área de estudo

O Ribeirão São João, desagua na represa da usina Hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães que

margeia a cidade de Porto Nacional “Tem sua nascente na Serra do Carmo na Fazenda Pilão abrangendo propriedades rurais e a zona urbana. Suas águas são utilizadas para lazer e a área rural, para criação de animais, e para agricultura de subsistência” (BORGES e BERTOLIN, 2002). Possui em média uma área de 8.882,1968 hectares e, “O curso principal que dá nome a sub- bacia hidrográfica, Ribeirão São João, possui aproximadamente 20 km de extensão. Suas nascentes situam-se na Depressão do Alto Tocantins (Domínio dos complexos metamórficos e sequência Vulcano-sedimentar do arqueano e do proterozóico inferior)”, (LEITE, 2011. p. 6366)

A sub-bacia do Ribeirão São João é um dos tributários do Rio Tocantins. Este ribeirão

corresponde a um corpo hídrico de considerável importância, por ser responsável pelo abastecimento do município de Porto Nacional, que é o segundo maior município que margeia o reservatório da UHE Luís Eduardo Magalhães (Figura 01).

Figura 01 – Localização do Ribeirão São João e Porto Nacional – TO, Brasil. Metodologia

Objetivou-se através deste trabalho, fazer um relato dos impactos socioambientais

causados pela degradação do Ribeirão São João, o qual reflete na vida das pessoas de maneira direta ou indireta. Para isso foi entrevistados antigos moradores da margem do Ribeirão São João localizado na região urbana do Município de Porto Nacional, Tocantins. Com intuito de padronizar as entrevistas foi elaborado um roteiro. Foram realizadas quatro entrevistas, sendo que a idade dos entrevistados variou de 68 a 82 anos. Todos entrevistados assinaram voluntariamente o carta de cessão de direitos autorais.

As populações ribeirinhas mantem uma forte relação com rio, no intuito de dar voz a esta

população, buscamos moradores e seus relatos de vida sobre a relação dos mesmos com o Ribeirão. Pretende-se fazer um relato histórico oral, do que aconteceu na vida de algumas dessas pessoas impactadas pelas mudanças ocorridas nas ultimas décadas.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 140 de 145

Resultados e discussão História oral: o resgate das vivencias de antigos moradores do entorno do Ribeirão São João

A preferencia do uso da historia oral para este trabalho foi devido a possibilitar uma melhor

compreensão das mudanças que aconteceram sobre o olhar e com as palavras daqueles que vivenciaram os acontecimentos ou ouviram relatos de outras pessoas sobre esses acontecimentos. Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade, descolar as camadas de memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta. (THOMSON, 2005. p. 197).

“Frequentemente, os narradores são capazes de reconstruir suas atitudes passadas mesmo

quando não mais coincidem com as atuais” (PORTELLI, 1997 p. 32) “A importância do testemunho oral pode-se situar não em sua aderência ao fato, mas de preferencia em seu afastamento dele, como imaginação simbólica e desejo de emergir. Por isso, não há “falsas” fontes orais ”(PORTELLI, 1997. p. 33)

As vezes os historiadores orais ouvem as narrativas, mas descuidam-se desses significados. Assim como as historias baseadas em reminiscências revelam a maneira especifica como uma pessoa compôs seu passado, esses significados ocultos podem revelar experiências e sentimentos que foram silenciados porque não se ajustavam às normas usuais ou a própria identidade da pessoa. (THOMSON, 1997. p. 58)

O território brasileiro devido a sua grande extensão e a miscigenação de raças fez com que

surgisse aqui uma grande diversidade sociocultural, de norte a sul de leste a oeste em todos os lugares que se vai, há culturas diferentes e ricas em detalhes que faz com que cada historiador se encante e se deslumbre com tanta diversidade e beleza. E dentro dessas riquezas históricas do Brasil está à cidade de Porto Nacional no Estado do Tocantins que com sua miscigenação étnica entre índios, brancos e negros e parte dessa população negra deu origem aos quilombolas, essa mistura de raças produzem histórias boas para serem contadas. Muitas dessas histórias, a maioria contada de forma singelas e talvez sem significado para quem não as viveu, cairiam no esquecimento se não fossem resgatadas pelo historiador e transcritas em definitivo em materiais que podem ser grafadas, nos quais poderão ser lidos por todos aqueles que se interessarem por fatos históricos emergidos das memorias simples na sua essência, mas de grande valor cultural. Essas histórias orais podem ser definidas “Como o gênero de discurso no qual a palavra oral e a escrita se desenvolvem conjuntamente, de forma a cada uma falar para outra sobre o passado” (PORTELLI, et al 2001, p. 13)

A população da cidade de Porto Nacional tem uma ligação muito forte com a cultura por

se tratar de uma cidade antiga, que antes foi um porto fluvial, que por sinal era um dos portos mais importantes do Rio Tocantins, transportava passageiros e cargas como o sal, que vinha de Belém para o então povoado de Porto Real e região, que depois passou a vila e finalmente, ganhou o seu titulo de município em 1861 segundo a SEDUC, TO. Ela também possui uma ligação histórica e culturalmente ao Rio Tocantins. A história de sua fundação, foi marcada por vários acontecimentos que muitas vezes possuía um víeis alegre, mas também triste, pois naquele tempo a vida era muito difícil, além das barreiras geográficas, havia o risco constante de conflitos com os índios. E com o passar do tempo o desenvolvimento e crescimento urbano, aliado a falta de gerenciamento ambiental do entorno do Ribeirão, vem causando ao longo do tempo grandes danos ambientais e sociais. De acordo com um dos entrevistados que reside à muito tempo nas proximidades do Ribeirão São João, em seu relato ele enfoca muito bem, o quanto foram significativas às mudanças no decorrer de seus anos com a convivência com o Ribeirão.

Naquela epica pra bem dizê o riberão era tudo... purque... se ocê pur exempro era fraco asvêis, num tinha condição di abri um pôço, mais tinha a agua dele que

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 141 de 145

ocê pudia usá. néra? Principarmente pra mim que moro aqui perto, intão... qué dizê pra mim que o riberão era tudo. Hoje é diferença dimais... eu faço eu comparo ele assim como... igualmente eu vejo falá nesses rio nessas capitar igual São Paulo... igual Rio... né?... que eles fala muito no Tietê que antigamente era muito pexe, e hoje in dia cadê?... Era a mema diferença desse rio aqui. Logo... ota coisa naquele tempo parece qui o povo tinha mais asseio, ocê num via essa porqueira na bera do rio, hoje sê chega im quarquer lugá.. o cara vai pescá e leva aquele orrô di trém e lá memo ele dexa aquela sacola todo trém. (relato de entrevista A. C. S. 72 anos)

Além da grande importância biológica de uma drenagem como a do Ribeirão São João para

a manutenção de um ecossistema saudável, ele também teve uma grande utilidade e um valor inestimável para os moradores próximos as sua margens. Pelo fato de sua proximidade com a cidade, as pessoas desenvolveram um laço afetivo ao longo do tempo muito forte com este corpo d’agua, devido a sua importância como fornecedor de alimento e de agua para beber, recreação para as crianças, bom local para as pessoas tomarem banho e lavar as roupas do dia a dia. Este local onde moram os entrevistados, era conhecido como “lavandera” esta alcunha era devido ao local onde as mulheres lavavam suas trochas de roupas, algumas lavavam as roupas de suas casas, outras além de lavarem roupas de suas famílias, também lavavam roupas para fora, para ajudar o marido no sustento de suas famílias, onde era a “lavandera” este nome ainda hoje é conhecido por muita gente. Onde era a “lavandera” hoje chama-se Bairro Jardim Municipal. Quando os entrevistados foram indagados sobre a importância do Ribeirão em suas vidas? Alguns entrevistados dentre outras memorias, eles lembraram, sobre a utilidade do Ribeirão para lavar roupas.

Era a agua puque, pá lavá ropa, agua pá bêbê tudo vinha de lá. (do Ribeirão) puque era tudo mais fácil uma mulé e lá com a trocha de ropa e lavá, du que ela puchá agua in poço ne? Todo mundo já se dizia qui ali chama, chamava lavandera, puque era, sê via aqui era dez, doze, quinze (mulheres) assim chega fazia aquela fila desceno. (para o Ribeirão) Cinco (da manhã) era nego pá bica pegano agua e ai quando dava mei dia era as trocha de ropa. (relato de entrevista A. C. S 72 anos) “As pessoa usava o riberão... prá tudo, pra gora, o riberão não tá valeno nada, não uso ele prá nada. Naquele tempo eu gostava, puque agente ia lavá ropa, banhava... lá o corgo assim agente banhava a vontade. Antis era bão prá banhá, pescá, lavá ropa. (relato de entrevista R. M. S. 82 anos) E adonde tinha as bicas pras muié pegá agua, as muié ia lavá ropa. Eu era criança ia com minha mãe ela ia lavá ropa, eu via aquelas pexona, piau via... aquela papa terra e piabanha, pexe de flô. O riberão era um corgão muito bão um afuente... ele num era esse corguino que ficou por ai, era um corgão, eu vi muito pexe dento desse riberão. J. (relato de entrevista A. C. 68 anos).

Impactos socioambientais causados pela barragem e poluição do Ribeirão São João

O crescimento das cidades o progresso as tecnologias são coisas inevitáveis, e para o

funcionamento de toda essa maquinaria humana é necessário cada vez mais produzir energia elétrica, e a melhor saída para essa demanda atualmente para aumentar a produção de energia é construir mais represas para instalar usinas hidrelétricas, que por sua vez causam grandes danos ao meio ambiente e transformações no social e cultural na vida das pessoas atingidas. Sabe-se que as mudanças ambientais causadas pelas represas são praticamente irreversíveis, onde antes os rios fluíam em corredeiras, alternando com grandes remansos, esses tipos de ambientes lóticos, eram habitats de varias espécies, dentre elas os grandes bagres migradores, como; O Surubim (Pseudoplatystoma fasciatum), Filhote (Brachyplathystoma filamentosum), Jaú (Zungaro zungaro) Barbado (Pinirampus pinirampu), hoje esses ambientes não existem mais, essas espécies migraram para os tributários onde ainda existem corredeiras. As matas ciliares que sombreavam as margens e forneciam alimentos para a fauna aquática e terrestre também desapareceram.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 142 de 145

Atualmente, a construção de barragens, e a consequente formação dos reservatórios, podem ser consideradas algumas das principais causas da diminuição populacional de peixes em diversas partes do mundo. Consequentemente, a natureza e a intensidade de impactos ambientais decorrentes das modificações hidrológicas impostas pelos represamentos interferem nas peculiaridades da fauna local, tais como nas estratégias reprodutivas, nos padrões de migração, nas especializações tróficas, no grau máximo. (SOUSA e COSTA, 2011, p. 30)

Dentre as degradações causadas pela urbanização às margens do Ribeirão e pelo

represamento da Usina Hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães, conhecida como UHE do Lajeado que atingiu o Município de Porto Nacional que fez desaparecer os canal do rio Tocantins e parte do canal do Ribeirão São João, essa antropização, fez desaparecer também a paisagem ribeirinha onde os moradores de seu entorno podiam contar com vários tipos de frutas muitas eram plantadas de forma randômica como; cajueiros, mangueiras, goiabeiras e tinha outros tipos de vegetação nativa como jenipapo, ingá, figueiras e outras espécies que faziam parte da mata ciliar do Ribeirão, e também do Rio Tocantins onde as pessoas usavam algumas partes mortas dessa vegetação como lenha para alimentar o fogão “caipira” e, além disso, eles pescavam alguns peixes para auxiliar em sua alimentação. Hoje tudo aquilo que tinha significado e valor para essa gente, o lago encobriu, só ficou as lembranças com aqueles que viram e viveram em décadas atrás. Como relembra a entrevistada.

Panhava quiria cuzinhá no fugão caipira ia lá trazia cortava pau trazia prá fazê o boião prá cumê. Puque o povo qui tinha ai, um bucado de tempo era tudo gente Tudo agente fazia no riberão... na bera do riberão tinha pé di manga di jinipapo hoje in dia num têm mais nada. Tinha pexe, tinha jacaré, sucuriú... tinha tudo. Antis desse dismatamento.. Antigamente o riberão erá muito mió hoje in dia num é mais... mais anti como antigamente. nesse riberão, tinha o piau, a ladina o pacu, piabalha, o corgo era piqueno mais era fundo. (relato de entrevista R. M. S. 82 anos) nota coisa. dias que asveis seu quiria cumê um pexe... um piau assim pexinho assim. abastava eu chegá nele que eu pegava, netempo ainda via piabanha, hoje in dia é coisa quo ocê num vê mais. (relato de entrevista A. C. S. 72 anos)

Os moradores próximos do Ribeirão eram pessoas simples, de modo de vida também

simples e de prosa fácil, e todos sem exceção tinham um sentimento saudoso dos locais onde um dia eles viveram, e de tudo aquilo que um dia fez parte de suas vidas. Notamos através das entrevistas, que todo aquele ambiente que existia mais ou menos ainda natural, e que apesar de não pertencer a nenhum deles, mas era como pertencesse, como se toda aquela área que margeava o Ribeirão fossem seus quintais, por isso em todos eles dava para notar um sentimento de pertencer aquele lugar. O que mais tarde com as mudanças ocorridas, caracterizou uma sensação de perda, para todos eles, depois que o lago invadiu essas áreas e desapareceu com boa parte do Ribeirão. Esses impactos ambientais não afetaram somente a natureza em seus estados físicos, químicos e biológicos, mas também o sociocultural das pessoas, tanto é que a maioria dos entrevistados afirmou que a vida em relação ao ambiente de décadas atrás era muito melhor. E quase todos se queixaram não só da degradação do ribeirão São João, mas também enfatizaram, que depois do barramento do rio Tocantins os problemas da poluição do Ribeirão aumentaram e muito, pois com o represamento da UHE de Lajeado, boa parte do Ribeirão também ficou represado, o que atrapalhou totalmente o sua fluidez o que provocou assoreamento e o acumulo de detritos em suas margens.

É necessária se ter em conta que, em muitas vezes, faz-se referencia á hidroelétrica como sendo uma fonte de energia limpa e de pouco impacto ambiental, na verdade, embora a construção de reservatórios, grandes ou pequenos trouxera enormes benefícios para o país, ajudando a regularizar as cheias, promover a irrigação e navegabilidade de rios, elas também trazem

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 143 de 145

impactos irreversíveis ao meio ambiente e em especial, impacto na cultura local. (PARRIÃO, 2012 p. 19)

Notou-se que as interações dessas pessoas com o Ribeirão, eram intensas, isto talvez seja

devido ao fato de que a maior parte dessas pessoas terem nascidas às margens desta drenagem. Foram crianças, usufruíram do Ribeirão, assim como seus pais o fizerem, tiveram uma vida toda neste mesmo local, sem presenciar nenhuma mudança significativa durante a maior parte de suas vidas. Até que de repente o progresso bate à sua porta, e com ele as mudanças, e tudo aquilo que por décadas ficou praticamente do mesmo jeito, do jeito que as pessoas gostavam e estavam acostumados, todos os dias a olhar para aquela paisagem, na qual eles tinham a noção exata, onde se encontrava cada árvore, curva, poço e cada corredeira do Ribeirão, tudo isso fazia parte de suas vidas, e agora só na memoria. De repente tudo muda aquela paisagem que por anos a fio permanecia praticamente igual, se transforma em outra, aquela paisagem antes diversificada que tinha varias utilidades, hoje após as mudanças não serve para quase nada.

A possibilidade de leitura da historia e identidade local pelos que passaram pelas represas, estas se assemelham a não-lugares . Os lugares são frutos da ação humana, de uma forma identitária de apropriação para a vida. A identidade do cotidiano está ligada ao conhecido e reconhecido; aos lugares habitados, onde se percebem as marcas e os resíduos de outros tempos. Através dessa identidade os moradores são capazes de reconhecer a paisagem e “ler” tudo o que nela se mostra com coerência, pois diz respeito às suas vidas, aos sentido por eles atribuídos por práticas sociais advindas de uma acumulação cultural que se inscreve no espaço. (LEME, 2007. p. 72)

Antes do represamento, as margens do Ribeirão havia muitas casas, e com a criação da

represa, essas pessoas foram obrigadas a sair de suas casas, foram indenizadas, mas aquelas que ficaram próximas às construções e as obras de terraplenagens, onde é hoje a Avenida Beira Rio, sofreram prejuízos materiais como rachaduras nas paredes de suas casas devido às vibrações que as maquinas pesadas provocavam, e esses prejuízos muitos deles nunca foram ressarcidos, como relata esta entrevistada.

A mudança foi muito grande, muito grande... e prejuízo também, com essa dismatação, prejuízo puque, eu tinha uma casa di adobi... quando passo os tratô ai ismoranô tudo. Rachô as paredis tudo, foi prisiso derribà a casa pá cumedo da parede cai puriba de mim, eis mintirum que ia me denizá, até hoje... podi sê que amanhã parece. Foi a disvantage que achei tudim e efeito do riberão foi isso que deu prejuízo pá muita gente. (relato de entrevista R. M. S. 82 anos)

Algumas dessas pessoas impactadas foram obrigadas a saírem do local onde moravam, elas

receberam indenização para comprar outra moradia, mas mesmo assim, este fato afetou muito o social dessas pessoas, muito delas não conseguiram comprar novas casas, algumas se enveredaram no alcoolismo, drogas e outras mazelas. Como uma boa parcela do Ribeirão São João foi submergido pelo represamento, o qual intensificou os problemas socioculturais, este trabalho não teria um respaldo se não fossem mencionados esses problemas. “Entrevistas sempre revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos: elas sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária das classes não hegemônicas” (PORTELLI, 1997.p. 31).

Considerações finais

Este trabalho foi desenvolvido, para mostrar os efeitos da degradação ambiental do

Ribeirão São João sobre o social da população, que viveu ou ainda vive em seu entorno. Os efeitos desses impactos ambientais vão muito além do que foram aqui discutidos. Percebe-se a importância das narrativas orais das pessoas que foram entrevistadas para o processo de reconstituição da memoria. Com esse trabalho de entrevistas ficou claro, que a historia pode ter forma contada ou

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 144 de 145

escrita, a historia oral é fundamental para recuperar a memoria coletiva, que por vezes se perdem com aquelas pessoas que às vivenciaram. O problema da degradação dos rios urbanos é a falta de um planejamento eficaz e efetivo que tem contribuído com danos ambientais, muitos deles difíceis de serem revertidos, esses danos, que além de afetar drasticamente a natureza, afeta também a parte social com a perda da qualidade de vida, principalmente daqueles que moram próximos as suas margens. Isso requer ações da sociedade e do poder publico, para encontrar soluções sustentáveis.

Os entrevistados falam, como se os tempos passados deles, fossem tempos áureos de suas

vidas o que não deixa de ter um fundo de verdade nessas afirmações, pois a maioria gostava do tipo de vida que tinham. Outros acham que a vida melhorou em alguns quesitos e piorou em outros. Percebe-se que apesar de tudo o que eles passaram eles seguem firmes, e lúcidos. Após analisarmos as entrevista notou que mesmo com os percalços das mudanças sociais e ambientais pelos quais as pessoas passaram os entrevistados demonstraram certo saudosismo com lembranças vivas do seu passado. As coisas mudaram e eles se adaptaram sem tirarem o pé do passado. Referências bibliográficas ALENCAR, G. de. J. Poluição de rios em áreas urbanas. Ateliê Geográfico. v. 5, n. 2, p. 212-213. 2011. ART, H. W.; BOTKIN, D.; GRANT, W.. Dicionário de ecologia e ciências ambientais. Melhoramentos/UNESP, São Paulo, 2001. 583, p. Ilus. BIERREGAARD, R. O.; JR. LOVEJOY, T. E.: KAPOS, V.; DOS SANTOS, A. A.; HUTCHINGS, R. W. The biological dinamics of tropical rainforest fragments. BioScience, 1992. n. 42, p. 859-886. BORGES, K.P. BERTOLIN, A.O. Avaliação microbiológica da qualidade da água do córrego São Joao, Porto Nacional - TO, Brasil. Holos Environment, v.2, n.2. 174-184, 2002. BRANCO, S. M. Poluição: a morte de nossos rios. Rio de Janeiro, 1972. Editora. Ao Livro Técnico SA; 157p. BRASIL, Atos institucionais de 1964 a 1967 Atos Institucionais - Presidência da República <www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/_AITs_CF1967.htm> Acesso dia 12 nov 2014. CERQUEIRA, W. Brasil escola. A Agua. Disponível em<www.brasilescola.com/geografia/agua> Acesso em 10 ou 2014. CONSTITUIÇÃO. DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Texto consolidado até a Emenda Constitucional nº 20 de 15 de dezembro de 1998. Brasília. Disponível em: <www.senado.gov.br/legislacao/.../con1988/CON1988_15.../CON1988.pd> Acesso dia 25/11/2014. Acesso em 11 fev 2015. GIRALDIN, Odair. Pontal e Porto Real: dois arraiais do norte de Goiás e os conflitos com os Xerente nos séculos XVIII e XIX. Revista Amazonense de História, v. 1, n. 1, p. 131-146, 2002. GODINHO, D. Historia de Porto Nacional. Goiânia, Gráfica Editora Líder, 1988. 322p. GOOGLE EARTH, Cidades, Mapas. Localização do Município de Porto Nacional. Acesso em 27/12/2014. IBGE- Evolução Populacional de 1970 /2012 em Portal nacional. Disponível em: <cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil. php? codmun=171820> Acesso em 16 out 2014. LEITE, E. F.; ROSA, R. Uso e ocupação da Terra na Bacia Hidrográfica do Ribeirão São João, Porto Nacional- T O. Uma análise espaço-temporal. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE SENSORIAMENTO REMOTO, 15., 2011, Curitiba. Anais... Curitiba: INPE p. 63,65. LEME, F. B. M. As represas como lugares turísticos: Novas significações e valorizações de uma paisagem sem memória. Cultura: 2007. v. 1, p. 66-178. MINISTERIO DO EXERCITO, Diretoria de serviços geográficos, 1968, do Ast-10/usaf – Região Centro Oeste do Brasil – Porto Nacional – Estado de Goiás.. OLIVEIRA, M. F. Um Porto no Sertão: Goiânia: UFG, 1997. Cultura e Cotidiano em Porto Nacional 1880/1910. p. 19-20. PARRIÃO, D. M. S.. Impactos sociais: construção da usina hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães. Monografia (graduação)—Universidade de Brasília, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Departamento de Administração, 2011. p.19.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 13 Nº32 vol. 03 – 2017 ISSN 1809-3264

Página 145 de 145

POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil: ed. 03. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976. p. 228. PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. Revista Projeto História. São Paulo: EDUSC. n. 15, p. 31-33. 1997. PORTELLI, A. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de Historia. Historia oral como gênero. São Paulo, v. 22, p.13. Jun. 2001. SEDUC. Secretaria da Educação e Cultura do Estado do Tocantins. Historia de Felix Camoa-TECNOLOGIAS–LINGUAGENS, CIÊNCIAS HUMANAS. Disponível em: <Seduc.to.gov.br> Acesso em 10 out 2014. SOUSA, C. C.; CARNEIRO, M. C.; MARTO, V. C. O. de. Dados Ecológicos e Protocolo de Avaliação Rápida como Método de Diagnose Ambiental. UNICIÊNCIAS, v. 18, n. 1, p. 67-74, 2014. SOUZA, E. A. de.; COSTA, A. C da. Medidas mitigadoras dos impactos ambientais causados por usinas hidrelétricas sobre peixes. REDVET. Revista Electrónica de Veterinária, v. 12, n. 3, p. 1-30. Mar. 2001. THOMSON, A. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre história oral e as memórias. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. São Paulo, p. 58. Abr. 1997. THOMSON, A. Sistemas Especialistas: Lógica Fuzzy Aplicada na Análise de Portfólios. Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro. 2005. p.197. Enviado em 30/04/2017 Avaliado em 15/06/2017