Licenciatura em História
Unidade curricular: História de Portugal Contemporâneo Século XIX
“O surgimento da Companhia Carris de Ferro Lisboa no contexto da
Regeneração”
Lisboa, 21 de Dezembro de 2013
Docente: Professor Doutor Paulo Jorge Fernandes
Discente: Nuno Gonçalo Simões Martins
Nº 34570
2013/2014
1
Índice
Introdução………………………………………………………………………………..2
O crescimento da cidade de Lisboa: demografia e transportes………………………….3
O primeiro arranque do transporte em Lisboa…………………………………………...5
O surgimento da Companhia Carris de Ferro……………………………………………7
Companhia Ripert: a grande rival………………………………………………………10
O princípio do Monopólio……………………………………………………………...12
Conclusão………………………………………………………………………………14
Bibliografia……………………………………………………………………………..16
2
Introdução
No âmbito da Unidade Curricular de História Contemporânea, da Licenciatura em
História, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,
foi proposta, aos discentes, a elaboração de um trabalho de investigação que abordasse
uma matéria do século XIX português. Depois de uma cuidada ponderação e em
conjunto com o docente da respectiva cadeira, Professor Doutor Paulo Jorge Fernandes,
decidimos optar como tema a analisar, a temática dos transportes e o seu impulso na
cidade de Lisboa durante os anos da Regeneração.
Assim, o nosso trabalho designado “O surgimento da Companhia Carris de Ferro
Lisboa no contexto da Regeneração” tem por objectivo contextualizar e correlacionar a
necessidade crescente de meios de transporte na cidade capital do país, com o
desenvolvimento demográfico e com a gradual industrialização, fruto de um modelo
económico baseado no aumento de infra-estruturas e no desenvolvimento do comércio
entre os anos de 1851-1892 que constituem, grosso modo, o período do Fontismo1. De
facto, a aposta num modelo assente na deliberada construção de estradas e caminhos-de-
ferro, no desenvolvimento do comércio e da indústria e no melhoramento das colónias
teve efeitos práticos em todos os campos da sociedade, sendo que, essas medidas foram
justamente usadas, como forma e meio de desenvolver a economia e recuperar o atraso
estrutural do país.
Porém, Portugal dependia do volume de empréstimos, que eram disponibilizados pelas
praças europeias estando sujeito às suas flutuações, e dos emigrantes nacionais em
terras de Vera Cruz que investiam sistematicamente na sua terra natal através de compra
de títulos da dívida pública2. Assim, quando o Brasil entrou em guerra contra o Paraguai
e Argentina durante os anos de 1865-18703, o clima socioeconómico ficou marcado por
1 Cf. Paulo Jorge Fernandes, “A Política económica”, in História Económica de Portugal, 1700-2000,
(Organização de Pedro Lains e Álvaro Ferreira da Silva), vol. II, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais,
2005, p. 410. 2 Tal como aponta Rui Ramos, a fim de arranjar dinheiro para o implemento das vias, Fontes optou por
reduzir de forma unilateral os juros da dívida pública, deslocar capitais de outros locais para o
investimento na sua política propondo, ainda, um aumento generalizado de impostos. Cf. Rui Ramos,
História de Portugal, (Coordenação de Rui Ramos), vol. VI, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2012, p. 34. 3 Para um aprofundar deste acontecimento, veja-se entre outros: Francisco Doratioto, O conflito com o
Paraguai: a grande guerra do Brasil, São Paulo, Editora Ática, 1996; Ricardo Salles, Guerra do
Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército, São Paulo, Paz e Terra, 1990 e Roderick J.
Barman, Citizen Emperor: Pedro II and the Making of Brazil, 1825-1891, Stanford, Stanford University
Press, 1999.
3
uma enorme incerteza, fazendo com que as remessas de dinheiro abrandassem
obrigando Portugal a aderir ao padrão ouro4.
Foi só após o final da guerra sul-americana que o governo português obteve condições
financeiras para a introdução de medidas de estímulo económico5, e foi nesse clima de
relativa prosperidade que a Companhia Carris de Ferro se ousou implantar em terras
lusas.
Conquanto, para que tal viesse a acontecer, muito caminho havia ainda a talhar.
O crescimento da cidade de Lisboa: demografia e transportes
O progresso económico do estado nos anos da Regeneração6 deveu-se em grande
medida aos investimentos efectuados nos transportes e telecomunicações. A construção
de estradas, a melhoria ou edificação de portos, a implementação do telégrafo e do
telefone e a introdução das ligações ferroviárias constituíram os principais objectivos
dos governos pós 1851 tentando, dessa forma, abreviar o atraso estrutural da nação
fazendo com que as ligações internas e externas sofressem um melhoramento
substancial7. De facto, a introdução do Ministério das Obras Públicas, Comércio e
Indústria em Agosto de 18528, durante a terceira composição ministerial deste período
9,
4 Paulo Jorge Fernandes, op. cit., pp. 411- 412.
5 Jorge Alves aponta que por volta de 1851/1852 as remessas de dinheiro provindas do Brasil terão
chegado a 54.000 contos o que num contexto de grande prosperidade financeira europeia, contribuíram, e
de que maneira para o investimento no território nacional. Cf. Jorge Fernandes Alves, Os Brasileiros:
emigração e retorno no Porto oitocentista, Gráficos Reunidos, Porto, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 1993, p. 275. 6 Cujo lema era “ Justiça, Liberdade, Moralidade e Economia”. Cf. Rui Pedro Esteves, “ As pulsações
financeiras: finanças públicas, moeda e bancos”, in Nova História de Portugal: Portugal e a
Regeneração, (Coordenação de Fernando de Sousa e A. H. de Oliveira Marques), vol. X, Lisboa,
Editorial Presença, 2004, p. 111. 7 António José Telo vai ao cerne da questão. De facto, até ao implemento destas medidas, Portugal não
tinha uma estrada digna desse nome, faltavam portos modernos, e a ferrovia era apenas uma miragem.
Como comparação, 1890, a estrutura básica dos caminhos-de-ferro estava completa (que ainda hoje se
mantém), indo de apenas 218 Km em 1852 para 10.727 Km em 1890, e passou de apenas 218 Km de
estradas no início do seu ministério para 10.590 Km em 1900. Cf. António José Telo, “O modelo político
e económico da Regeneração e do Fontismo (1851-1890) ”, in História de Portugal. Portugal Liberal,
Monarquia Constitucional, (Coordenação João Medina), vol. XI, Amadora, Edita Ediclube, 2004, p. 129;
Octávio Figueiredo, “As pulsações económicas e financeiras”, in Nova História de Portugal: Portugal e a
Regeneração (1851-1900), (Coordenação de Fernando de Sousa e A. H. Oliveira Marques), vol. X,
Lisboa, Editorial Presença, 2004, p. 97. 8 Atente-se ao relatório elaborado pelo mesmo acerca da política a ser implementada aquando a
inauguração deste novo ministério: “ A facilidade das comunicações é olhada hoje entre todos os povos
como um dos grandes elementos civilizadores, que distinguem a época em que vivemos, sendo por taes
meios que as Nações se aproximam, e as relações comerciais se desenvolvem com vantagem reciproca
indisputável”. “Relatório ao Decreto de 11 Agosto de 1852”, in Diário do Governo, nº 191, de 14 de
Agosto de 1852. 9 Rui Ramos, op. cit., p. 34.
4
colocando ao leme António Maria de Fontes Pereira de Melo que acumulou com a pasta
da Fazenda, foi por certo, um enorme indicador das mudanças que se iriam verificar.
Todavia, as renovações não eram apenas políticas e económicas. Em termos
demográficos as alterações também se fizeram sentir.
No início do século XIX, um quarto da população a viver no continente residia em nos
distritos do Porto, Viseu e Lisboa10
, sendo que em termos de povoamento o país
apresentava os mesmos contrastes do passado. O norte de povoamento disperso e o sul
de vastas extensões despovoadas, separavam-se de centros de alguma importância, onde
“era evidente a tradição urbana” formada por aglomerados de pequena dimensão
directamente relacionados com as actividades marítimas11
.
Na segunda metade oitocentista as diferenças acentuam-se. Imponente face a um país
rural, pequena em comparação a outras capitais europeias, Lisboa sofre um aumento
substancial da população12
, o que nem a emigração, sobretudo masculina e em grande
medida com destino ao Brasil, atenuou13
.
De facto, durante toda a segunda metade do século XIX a cidade como que dispara em
termos populacionais indo de 199.056 habitantes em 1864 para 356.009 em 1900,
correspondendo a que mais de metade dos residentes no distrito fosse lisboeta14
.
Paralelamente ao crescimento populacional, Lisboa viu, na segunda metade da centúria,
a primeira tentativa de alargamento da sua área com a construção da Estrada da
Circunvalação que ligava a foz da Ribeira de Alcântara, do lado ocidental até à Cruz de
Santa Apolónia do lado oriental15
. Este alargamento esteve directamente conexo a dois
motivos. O primeiro prende-se com a necessidade crescente da cobrança de impostos16
10
Nesta fase, Setúbal também fazia parte do distrito alfacinha. Cf. Teresa Rodrigues Veiga, “As
realidades demográficas”, in Nova História de Portugal: Portugal e a Regeneração, (Coordenação de
Fernando de Sousa e A. H. de Oliveira Marques), vol. X, Lisboa, Editorial Presença, 2004, p. 24. 11
Ibidem, p. 24. 12
Este aumento esteve muitíssimo relacionado com os movimentos campo-cidade que já se vinham a
fazer sentir. Cf. Teresa Rodrigues Veiga, op. cit., p. 26. 13
Cf. Rui Cascão, “Demografia e Sociedade”, in História de Portugal: O Liberalismo, (Direcção José
Mattoso e coordenação de Luís Reis Torgal e João Lourenço Roque), vol. V, Lisboa, Círculo de Leitores,
1993, p. 425. 14
Cf. Teresa Rodrigues Veiga, op. cit., p. 45. 15
António Lopes Vieira, Os Transportes públicos de Lisboa entre 1830 e 1910, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1982, p. 36; Daniel Alves, A República atrás do balcão: Os lojistas de Lisboa e
o fim da monarquia (1870-1910), Chamusca, Edições Cosmos, 2012, p. 49. 16
Fontes Pereira de Melo é concreto na declaração que fez sobre o decreto de 16 de Dezembro de 1852
sobre a questão da conversão da dívida: “ A nação pode e deve pagar mais do que actualmente paga;
porém o excedente da receita que daí provier, convém que seja exclusivamente aplicado […] a todas as
medidas de fomento que tendem ao desenvolvimento da riqueza nacional.” Não foi só um discurso, foi
um programa político. Cf. Rui Pedro Esteves, op. cit., p. 112, nota 65.
5
através de barreiras alfandegárias17
, e num segundo momento esteve relacionado com o
aumento de população que se mostrou crescente durante todo o século XIX18
,
contrariando o cepticismo demostrado por Sande e Castro19
e por António Lopes
Vieira20
.
Todavia, em 1880 a cidade sofreria um novo alargamento com a construção de mais
uma estrada que cingia a urbe, desta feita, entre a circunvalação fiscal de Algés até
Benfica, e deste lugar até Sacavém pela estrada militar21
.
Assim, não é de estranhar o progressivo desenvolvimento da rede de transportes. Numa
primeira fase de forma precária, numa seguinte mais consolidada e firme, foi esta cidade
que viu nascer a Carris.
O primeiro arranque do transporte em Lisboa
Estagnado tecnologicamente e em permanente convulsão política, social e militar, o
Portugal da segunda metade da centúria de oitocentos, é um país “arcaico, aonde o
vento revolucionário da industrialização não conseguiu ainda chegar “22
, minado pela
falta de fábricas, pouco instruído e onde a Igreja detinha um poder extraordinário sobre
as populações.
Na área dos transportes nada de diferente se afigurava. A circulação interna é fraca e até
os finais da década de 50 são pouquíssimas as estradas macadamizadas, ausência de
portos de nível internacional e encontrava-se em exploração apenas, 56 Km de via-
férrea ligando Lisboa ao Carregado.
Lisboa não destoava do país. De facto, o seu isolamento face às outras localidades levou
a que em 1858 se escrevesse que “os habitantes da capital, na sua maioria, não só
ignoram o que se passa na província como também pouco sabem da situação na
17
De facto, existiam na cidade as seguintes “portas”: Alcântara, Prazeres, Alto do Carvalhão, Arcos das
Águas Livres, Campolide, Entre Muros, São Francisco Xavier, Palhavã, Rego, Guarda-mor, Picoas, Arco
do Cego, Arroios, Largo do Leão, Sacavém, Caracol da Penha, Poço dos Mouros, Baixo da Penha, Alto
de S. João, Calçada das Lajes e Cruz de Santa Apolónia. Cf. Augusto Vieira da Silva, Os limites de
Lisboa, Lisboa, Minerva, 1941, p. 15. 18
Cf. Teresa Rodrigues Veiga, op. cit., p. 34-35. 19
António Paes de Sande e Castro, A Carris e a Expansão de Lisboa. Subsídios para a História dos
Transportes Colectivos na Cidade de Lisboa, Lisboa, 1956, p. 6. 20
Cf. António Lopes Vieira, op. cit., p. 37 e 40. 21
Depois desta nova delimitação, Lisboa passou a ter uma área total de 97,2 Km2, o que correspondeu a
um aumento progressivo de território na casa dos 87,73 Km2 desde os princípios do século. Cf. Augusto
Vieira da Silva, op. cit., p. 18. 22
António Lopes Vieira, op. cit., p. 60.
6
segunda cidade do reino”23
, não correspondendo à realidade a imagem de uma cidade
paralisada24
.
Tanto as classes mais abastadas das gentes lisboetas, como as restantes, se deslocavam,
sendo que não é possível estabelecer uma real comparação com as movimentações
citadinas actuais, com as da segunda metade do século XIX. Estas actividades eram
efectuadas com outros propósitos, visto que o panorama das classes mais abastadas não
seria o mesmo das restantes. Durante este período, o trânsito a medias/longas distâncias
era feito com objectivo lúdico e durante os períodos de Verão.
Só após a Revolução de Setembro25
e a consequente implementação das pautas
proteccionistas, proveram um impulso significativo à industrialização portuguesa, e por
conseguinte lisboeta, ao ponto de ocorrerem em Lisboa várias exposições de nível
internacional com o intuito da própria promoção da indústria pátria26
. Todavia, Portugal
andava de revolução em revolução e só depois da ascensão de António Bernardo Costa
Cabral ao poder27
- através da revolução do costume28
- se deu algum impulso e uma
economia débil, fruto de umas finanças depauperadas pela guerra, pelos constantes
governos, insurreições populares e ineficácia da máquina fiscal.
Aproveitando uma fase de forte investimento do estado, fruto de uma relativa
estabilidade governamental29
, a Companhia de Carruagens Omnibus30
obteve plenos
poderes para organizar a sua rede quer em termos de serviço urbano, quer suburbano.
Fundada em 1835 durante a vigência camarária de Anselmo José Braamcamp de
23
Citação retirada do estudo de António Lopes Vieira, do relatório enviado por um emissário inglês em
Portugal. António Lopes Vieira, op. cit., p. 61, nota 4. 24
De facto, havia já uma ligação a vapor entre o Cais do Sodré para Belém e/ou para a Outra Banda
(Cacilhas e Aldeia Galega), e serviços de transporte privado que efectuavam ligações para o Dafundo,
Sintra e para o Campo Grande. 25
9/9/1836. Para um aprofundar deste tema veja-se entre outros: Rui Ramos, op. cit., pp. 28-32; Oliveira
Marques,“ A conjuntura”, in Nova história de Portugal: Portugal e a instauração do Liberalismo,
(Coordenação de A. H. de Oliveira Marques), vol. IX, Lisboa, Editorial Presença, 2002, pp. 595-601;
Victor de Sá, A Revolução de Setembro de 1836, Lisboa, Livros Horizonte, 1978. 26 Cf. Victor de Sá , Lisboa no liberalismo, Colecção Cidade de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1992, p.
59. 27
Como ministro do Reino de um governo chefiado pelo General Duque da Terceira. Cf. Rui Ramos, op.
cit., p 18. 28
Datada de 27/01/1842 depois da vitória cartista nas autárquicas na cidade do Porto onde, em concluo
com lojas maçónicas, forças socias e o exército, proclamou a Carta Constitucional de 1826. Cf. Oliveira
Marques, op. cit., p. 602. 29
O primeiro governo de Costa Cabral conseguiu completar uma legislatura inteira que à data era de três
anos (1842-45). Cf. Ibidem, p. 604. 30
Nome com origens na experiência realizada por um oficial do exército francês aquando a inauguração
de um serviço de transporte regular do centro de Nantes para o local dos banhos públicos, acabando por
trocar do nome que usava, Richebourg Baths Coach, pelo nome de um fabricante de chapéus Omnes
Omnibus, ou seja, “para todos”. Cf. John P. McKay, Tramways and Trolleys: The Rise of Urban Mass
Transport in Europe, Princeton University Press, 1976, p. 10.
7
Almeida Castelo Branco, esta companhia foi a primeira a deter exclusividade do
transporte da cidade de Lisboa em “regime de monopólio”31
e a usufruir de carreiras de
tipo urbano e suburbano32
. No entanto, fruto de uma política de investimentos, quer em
termos de oferta de serviço quer em maquinaria à disposição do utente, desajustada às
realidades do tempo, a que se juntaram problemas de ordem interna, arrastariam a
companhia a um penoso fim, encerrando portas definitivamente em 186533
. Não
obstante, a Companhia de Carruagens Omnibus ficou para a História de Lisboa como a
primeira a deter total controlo sobre o serviço de transportes sendo que, só em meados
do século XX e em condições totalmente díspares, tal voltaria a acontecer.
Assim como se entende, com o fim da Omnibus, Lisboa passou a não deter qualquer
serviço regular de transportes colectivos, vivendo às custas do serviço privado
individual e da Companhia Real dos Caminhos de Ferro que efectuava ligações entre o
Município e a estação de Santa Apolónia.
Todavia, depressa o cenário se transformaria.
O surgimento da Companhia Carris de Ferro
Se entre os anos de 1865 e 1870, Lisboa não dispôs de qualquer sistema em rede de
transportes34
, conquanto essa expressão fosse possível nesse tempo, as décadas
seguintes seriam profícuas no desenvolvimento dessa área. Na verdade, segundo
António Vieira, não houve sequer uma estratégia, bastando que “empreendimentos
individuais sem qualquer contracto assinado com a Câmara Municipal, obrigando-se
apenas os seus proprietários ao pagamento de uma taxa anual por cada carro em
circulação”35
.
31
Esta companhia teve a sua primeira prorrogação do contrato de concessão por um período de cinco
anos em 1840, sendo alargada essa exclusividade por mais dois períodos de dez anos após 1845. Cf.
António Lopes Vieira, op. cit., p. 67. 32
Com ligações a Belém, Benfica, Carnide, Cascais, Sintra, Loures e Mafra. 33
Para um conhecimento mais aprofundando da história desta empresa veja-se entre outros: Companhia
de Carruagens Omnibus, Parecer da Comissão Eleita Pela Assembleia Geral dos Accionistas D’esta
Companhia Em Sessão de 18 de Março de 1864, para conhecer os motivos que deram logar ao estado
pouco prospero da mesma companhia e avaliar se ella deve continuar ou ser dissolvida, Lisboa,
Tipografia Universal, 1865, p. 8, para além da obra sempre pertinente de António Lopes Vieira. Cf.
António Lopes Vieira, op. cit., pp. 66-82. 34
Restava apenas os Carros do Florindo que exploravam as carreiras entre S. Julião da Barra e o Largo
do Pelourinho, e entre Oeiras, Belém e Cascais. Cf. Francisco Santana, “ Lisboa e os transportes” in
História da Companhia Carris de Ferro de Lisboa em Portugal (1850-1901), vol. I, Lisboa, Companhia
Carris de Ferro de Lisboa, 2006, p. 98. 35
António Lopes Vieira, op. cit., p. 88.
8
Apesar do serviço prestado ser incomparavelmente inferior a outras cidades europeias,
esta crítica é no mínimo extemporânea. Aquilo que sobreveio foi um aproveitamento do
espaço deixado vazio pela Companhia Omnibus por outras pequenas empresas, a que
sucedeu um aumento da necessidade de transporte em relação ao crescimento
exponencial da população lisboeta, a que correspondia a uma percentagem do total da
população urbana em relação ao total dos distritos do continente de 57,5%, em 1864,
67,6%, em 1878, 68,8%, em 1890 e 94,8%, em 190036
. Na verdade, pensamos que estes
números são suficientemente elucidativos para explicar a multiplicação anormal de
empresas do mesmo sector num espaço urbano relativamente reduzido e num curto
espaço de tempo, sendo que, apesar de ter consultado os dados relativos ao Censo de
1900, António Vieira apenas tenha apontado as normais deficiências do serviço que daí
advieram e não tenha esclarecido a relação entre o vazio deixado pela carência de
qualquer transporte público e a necessidade de mobilidade da urbe37
.
O surgimento da Companhia Carris iniciou uma nova fase de transformações que a
longo prazo irão alterar a geografia física e humana da capital portuguesa. Os primeiros
passos para a sua implantação remontam ao decreto-lei de 28 de Março de 1870, pelo
qual se concedia a Francisco Maria Cordeiro de Sousa38
e a Luciano Cordeiro de Sousa,
licença para a fixação de caminhos-de-ferro para transporte de pessoas em Tramways39
.
Todavia, haveríamos que esperar até 21 de Setembro de 187240
para que no Diário
Oficial do Império do Brasil fossem aprovados e publicados os estatutos desta firma em
que se afirma como intento o “estabelecimento de um serviço regular de transportes de
passageiros e cargas puxados por animais sobre trilhos de ferro nas ruas e arrabaldes
de Lisboa”41
, tentando-se minimizar o “problema das ruas estreitas, atravessadas por
passadiços de alvenaria ou madeira [ e ] as subidas ingremes e as descidas abruptas”42
.
36
Dados relativos ao Censo de 1900. Cf. Teresa Rodrigues Veiga, op. cit., p. 39. 37
Cf. António Lopes Vieira, op. cit., p. 88. 38
Era, à data, chanceler no consulado norte-americano no Rio de Janeiro. 39
O termo refere-se às carruagens puxadas por mulas e rodando sobre carris pertencentes à Companhia
Carris de Ferro de Lisboa. A sua origem remonta às primeiras 32 carruagens terem sido compradas à
firma John Stephenson & Company com sede em Nova Iorque. Cf. Ibidem, p. 111, nota 65. 40
O que não deixou de ser normal este espaçamento de dois anos, pois ocorreria neste período mais um
golpe de estado perpetrado pelo Duque de Saldanha. 41
António Ventura, “Portugal na segunda metade do século XIX”, in História da Companhia Carris de
Ferro de Lisboa em Portugal (1850-1901), vol. I, Lisboa, Companhia Carris de Ferro de Lisboa, 2006, p.
15. 42
Maria Amélia da Motta Capitão, Subsídios para a história dos transportes terrestres em Lisboa no
século XIX, Câmara Municipal de Lisboa, 1974, pp. 13-14
9
Contudo, a fundamental licença camarária para remonta apenas a Outubro de 1872,
sendo aprovada com unanimidade durante o mandato de Francisco Manuel de
Mendonça em 23 de Janeiro do ano seguinte43
. Nela se estipulavam as condições da
implementação das linhas e exploração que, ao contrário do que assevera António
Vieira, concedia a exclusividade à sua detentora pois “os suplicantes indicaram as
linhas e as ruas em que primeiro pretendiam realizar a construção, e depois de parecer
favorável pretendiam realizar a construção” sendo que “depois do parecer favorável da
repartição técnica, a Ex.ª Câmara aprovou e registrou a prioridade do direito dos
suplicantes para a colocação dos carris nas ruas indicadas no requerimento” dando
“tudo quanto era essencial para a validade da concessão, a ponto dessa concessão não
poder ser alterada, senão por mútuo acordo, ou por meio de uso dos tribunais
competentes “
44.
Assim, a Câmara Municipal de Lisboa concedia preferência a esta firma perante um
total de doze propostas, dando início a uma união que não mais cessaria45
.
Estando decretado o uso e fruto do espaço, rapidamente a Companhia46
colocou ao
serviço da cidade os meios suficientes para colocação da via-férrea, estando a primeira
linha a funcionar a 17 de Novembro de 187347
e as restantes em 188048
e 188149
.
43
Cf. Parecer sobre os projectos pela Companhia Carris de Ferro de Lisboa em cumprimento da
concessão da licença que lhe foi feita em 23 de Janeiro de 1873, aprovado em sessão da Câmara de 8 de
Junho de 1874, 1874, p. 1. Disponível em: http://arquivomunicipal.cmlisboa.pt. (consultado a 28 de
Novembro de 2013). 44
Concessão da Ex.ª Câmara Municipal de Lisboa a Francisco Maria Cordeiro de Sousa e Luciano
Cordeiro de Sousa, Lisboa, 1872, pp. 4-5. António Lopes Vieira faz uma comparação da cidade de Lisboa
com outras cidades europeias no que à exploração dos troços concerne. Cf. António Lopes Vieira, op. cit.,
p. 112. Contudo, no nosso entender, não refere que quem implantou os carris na cidade foi a empresa que
os ia explorar, sendo que, o assunto “direito de exploração” vai ser posto em causa durante a década de 80
pela empresa Ripert, arrastando-se o imbróglio pelas varas dos tribunais. Contudo, ver-se-á que a questão
da posse de exploração está directamente relacionada com a entidade que a introduz no terreno, cabendo-
lhe o usufruto. Cf. Contracto provisório entre a Câmara Municipal e Companhia Carris de Ferro de
Lisboa acerca da construção, conservação, e exploração de linhas férreas n´esta cidade,1887, pp. 3-4. 45
O regulamento de aprovação da concessão dos irmãos Cordeiro é aprovado por despacho da CML em
16 de Janeiro de 1871. Cf. Sande e Castro, op. cit., p. 8. 46
Agora com escritório em Lisboa estando assegurado a representação através do Dr. António Ferreira da
Silva Porto, de forma a “evitar os inconvenientes de sujeitar a companhia simultaneamente às leis de dois
paizes”. Este viria a tomar com trespasse a licença concedida aos irmãos Cordeiro em 1872, tornando-se o
primeiro presidente nomeado a 28 de Maio de 1874. De notar que Luciano Cordeiro permaneceu como
secretário da empresa. Cf. Companhia Carris de Ferro de Lisboa, Actas das Assembleias Geraes em
Lisboa, nos dias 20 e 22 de Junho de 1874, Lisboa, 1874, p. 5 e 8. A Câmara Municipal reconheceu o
trespasse da concessão a 14 de Fevereiro de 1873. Cf. “Trespasse da concessão de 23 de Janeiro de 1873
para a Companhia Carris de Ferro de Lisboa”, in Contratos e Acordos celebrados entre a Companhia
Carris de Ferro de Lisboa e a Câmara Municipal de Lisboa, 1873 a 1938, Câmara Municipal de Lisboa:
Direcção dos serviços Técnicos-especiais, 1941, p. 8. 47
Ligava Santa Apolónia ao Cais Sodré com um prolongamento até às portas da cidade em Alcântara. Cf.
António Lopes Vieira, op. cit., p. 113. 48
Segunda linha ligava o Corpo Santo até Largo de São Paulo ao Rato. Cf. Ibidem, p. 113.
10
Para além da inovação técnica a que os lisboetas congratularam com “vivas e
foguetes”50
, houve uma real intenção em estabelecer ligações entre as zonas mais
industrializadas e área central da cidade. De facto, analisando o eixo Beato-Belém à
época, encontramos as fábricas de tabaco, moagem e têxteis em Xabregas; moagem e
armamento em Santa Apolónia; gás, mármores, fundição e serralharia em Santos;
faianças, produtos alimentares, curtumes e têxteis em Alcântara e gás e moagem em
Belém, o que se compreende pela proximidade do rio51
, tornando natural uma ligação
aos meios de transportes que numa primeira fase estiveram a cargo da Companhia
Omnibus, cabendo agora à Carris a sua exploração.
De facto, a novidade introduzida numa cidade despida de qualquer transporte regular,
fez com a empresa obtivesse uma taxa média de crescimento anual na ordem dos 11.8%
durante os anos de 1874-80, sendo que, nos anos de 1874-75 e 1879-80 a Companhia
cresceu 44.8% e 16% respectivamente52
.
Companhia Ripert: a grande rival
De todas as empresas de omnibus a operar em Lisboa no final da centúria oitocentista53
,
foi a Companhia Antoine Ripert, fundada a 15 de Junho de 188254
, que causou mais
problemas à Carris. Para além de possuir um confortável capital social, era a única com
dimensão bastante para oferecer regularidade do serviço, com condições mínimas de
asseio e segurança, obrigando a Carris a inovar e forçando-a a amplificar o seu raio de
exploração comercial.
A concorrência foi tal, que rapidamente o número de passageiros transportados, pela
Companhia Carris, que até aqui se tinha revelado crescente, sofreu uma enormíssima
redução em cerca de meio milhão de passageiros, como de resto, demonstram os dados
recolhidos para os anos de 1883 e 188455
.
49
Ligava o Rossio à Igreja dos Anjos. 50
Sande e Castro, op. cit., p. 14. 51
Cf. António Lopes Vieira, op. cit., p. 50. 52
Cf. Ibidem, pp.143-144. 53
E eram doze: Moita & Izidro, Florindos, Lilla, Viação Lisbonense, José Maria de Sousa, Bernardino
Pinto, Manuel da Silva Ferreira, João José dos Santos, Casimiro Freire & C.ª, Luís Augusto Avelino
Lopes, Cruz & Costa, Gatto & Irmão. Trabalhavam, muitas vezes, à margem da lei e com poucas
condições logísticas. Cf. Maria Amélia da Motta Capitão, op. cit., p. 23. 54
Os seus estatutos foram publicados no Diário Económico nº 138 do mesmo mês. Cf. Sande e Castro,
op. cit., p. 44. 55
De facto, a diferença foi relevante. Se para o ano de 1882 a companhia luso-brasileira transportou cerca
de 5.496.533 passageiros, no ano seguinte (segundo ano de efectivo desempenho da Ripert), os resultados
são francamente menores, registando-se um total de 4.814.716 passageiros. Cf. Relatórios e Contas da
Direcção e parecer do Conselho Fiscal dos anos 1883 e 1884.
11
Porém, a Ripert navegava por águas turvas56
.
Apesar de autorizada pela Edilidade a efectuar transporte em omnibus, a Companhia
Ripert rapidamente soube aproveitar o facto dos carros utilizados “terem uma largura
tal nos eixos das rodas que lhes permitia circular sobre os carris dos americanos”57
violando a exclusividade que até então caía no seu proprietário58
.
Seguindo Sande e Castro, a Ripert sem qualquer autorização transitava “sobre os carris
que não eram seus, e como elas eram muito pesadas e de rasto grosso, não só
prejudicavam o serviço da Carris como deterioravam as suas linhas”, fazendo com
que, “todos os dias [houvesse] conflitos, delongas, irregularidades e acidentes
desastrosos”59
.
Estava colocada a questão da exclusividade sobre o uso do carril.
Ao longo de onze anos, decorreram vários processos, tanto na Câmara Municipal de
Lisboa como em vários tribunais da cidade culminando num desfecho singular.
Iniciadas as hostilidades logo em 29 de Janeiro de 1883 através de um processo
entreposto na Primeira Instância Cível de Lisboa, a Carris alegou nos artigos da sua
acção, que pelo contrato e concessão de 1871, “as concessões e contractos da Comp.ª A.
[Carris], para o estabelecimento de caminhos de ferro americanos, e por tanto para o
assentamento das vias férreas, só a ella foram feitos, e não podem ser violados; e as
vias férreas são de A. e ninguém tem o direito para usar d’éllas contra a sua vontade”,
reforçando ainda que “tendo sido assentes na via pública as vias férreas da A., por
concessões e contractos regulares, não pode esse facto do assentamento das vias
públicas fazer perder a A. o direito da propriedade d’ellas, de modo que a R.
[Companhia Ripert] possa servir-se das vias férreas, e explora-las como cousa sua”60
.
56
A forma de operar da empresa Ripert levou a semelhantes questões em vários países da Europa. Cf.
Maria Amélia da Motta Capitão, op. cit., p. 52. 57
António Lopes Vieira, op. cit., p. 129. 58
Os conflitos não eram exclusivos à Carris. Logo em 1882, Maria Amélia Capitão, aponta que a
controvérsia entre “esta nova Companhia e a dos Salazar, carros que já tinham assentado arraias na
cidade e quiseram logo evitar a nova concorrência, tentando por todos os meios sombrear o caminho à
concorrente”, ao ponto de vários carros da Ripert fossem “apedrejados […] comprometendo a segurança
pública dos passageiros”. Cf. Maria Amélia da Motta Capitão, op. cit., p. 51. 59
Sande e Castro, op. cit., p. 45. 60
Acção Commercial. A Auctora a Companhia Carris de Ferro de Lisboa. Ré a Companhia de
Carruagens Ripert, Lisboa, 1884, p. 7. Refira-se que em grande medida, a postura autoritária da Carris
não residia apenas nos contratos celebrados com a Edilidade. Segundo Sande e Castro, a Companhia
Carris terá emprestado dinheiro de forma “gratuita” à Edilidade, durante o ano de 1876, para que se
pudesse concluir um aterro que permitiria ligar por via dupla Lisboa a Belém (Cf. Sande e Castro, op. cit.,
p. 25), o que em certa medida poderá ter contribuído para a existência de um apoio agora requerido.
12
É no entanto de realçar, que apesar da postura delineada na capital portuguesa ter sido
semelhante àquela usada em outras cidades europeias, a resposta da Companhia Ripert
punha em causa a questão da concorrência sendo que a autora “gosando [sic] de
vantagens que nenhum outro paiz se concedem” prejudicava os Carros Ripert com a
colocação dos carris na via pública61
.
Como se percebe o caso não iria ser facilmente resolvido.
O princípio do Monopólio
Como forma de resposta ao surgimento da Companhia Ripert, e à pressão concorrencial
por ela imposta, a Companhia dos “americanos” teve que necessariamente restruturar o
seu modo de acção.
Em 1882 foi criado o Bilhete Pessoal. Este atestado, de cariz pessoal e intransmissível
foi inovador, não apenas em Portugal mas em toda a Europa, permitia ao público
“transitar em todas as carruagens em serviço do público nas vias da companhia62
.
Concomitantemente, no decorrer deste mesmo ano, foi ainda inaugurada a estação do
Arco Cego dando a possibilidade, tanto aos funcionários como aos lisboetas de
melhores condições de serviço e acessibilidade garantido que o crescimento se fazia
com a Carris. Conquanto, o golpe final sucedeu em 1887.
Devido à situação de grande conflitualidade criada entre as empresas concorrentes a
operar na cidade de Lisboa63
, a Companhia Carris solicitou à Câmara Municipal
autorização para efectuar a redução “da largura das vias férreas de 1,42 para 0,90
metros”, sendo prontamente concedida pela autarquia64
, e a redução dos percursos das
61
Cf. Acção Commercial. A Auctora a Companhia Carris… op. cit., p. 15. De realçar que as mesmas
questões são levantadas por Maria Amélia Capitão (Cf. Maria Amélia da Motta Capitão, op. cit., p. 65 e
ss.), não referindo que o empréstimo no valor de 45 contos lavrado em 1876 nunca chegou a ser liquidado
pela C.M.L. 62
Francisco Santana, op. cit., pp. 114 e 115. Registe-se que logo no primeiro ano foram comprados cerca
de 333 bilhetes, e para os anos de 1883 e 1885, assinala-se a venda pela Companhia de 969 e 1020
bilhetes respectivamente. Este foi um processo que não se iniciou neste ano. Doze membros da C.M.L. já
dispunham de autorização para viajar gratuitamente nos carros da Carris, sendo que esse número foi
alargado para 70 aquando a assinatura do contrato de 1888. Cf. “Regularização das diversas concessões
sobre construções, conservação e exploração das linhas férreas”, in Contratos e Acordos celebrados entre
a Companhia Carris de Ferro de Lisboa e a Câmara Municipal de Lisboa, 1873 a 1938, Lisboa, Câmara
Municipal de Lisboa: Direcção dos serviços Técnicos-especiais, 1941, p. 23-38. 63
Conforme foi dito, não foi só a Companhia Ripert a usar os carris colocados nas artérias da cidade.
Sande e Castro advoga que “a Companhia […] tão pouco queria, nem podia, cercear a liberdade de
circulação de quaisquer veículos nas ruas em que estavam os seus carris” sendo que “uma coisa era
circularem acidentalmente sobre esses carris, outra muito diferente, era o aproveitamento intencional e
habitual.”. Sande e Castro, op. cit., p. 45. 64
O que levou a um investimento considerável para a Companhia Carris e à negação de parte dos lucros
previstos no acordo de 1887. “Construção, conservação e exploração de linhas férreas. Ano de 1887”, in
13
carreiras potenciando o aumento da sua assiduidade e a diminuição dos custos de
exploração65
. Para além disso, este novo acordo introduzia uma nova questão.
Estando o período de concessão relativo ao ano de 1873 a findar, a Câmara Municipal
de Lisboa em conjunto com a Carris prolongou esse período de exploração por 99 anos,
dando praticamente como garantida a sua sobrevivência e abrindo o caminho ao
domínio absoluto da cidade como, de resto, se veio a verificar66
.
Os anos seguintes foram de intensa disputa entre as empresas. Fruto de uma profícua
ligação aos órgãos camarários, a Companhia Carris de Lisboa consubstanciou o seu
poder e influência, de nada valendo as constantes reclamações de parcialidade das
empresas concorrentes que logo após a assinatura do contrato de 1887 se insurgiram de
forma veemente67
. Para além disso, a imposição camarária de pagamento anual de
500.00 Reis “sobre cada carro que explorar a indústria de viação de transportes”68
,
levou a que hipótese nenhuma houvesse de viabilidade para as firmas de menor
dimensão.
Assim, não foi de estranhar que garantida a sua posição na cidade, a Carris implementa-
se uma política agressiva de compra de parte ou da totalidade das acções das empresas
rivais levando a que, a própria Ripert se “entregue” a 19 de Abril de 189469
. Como
contributo, são elucidativas as palavras de Sande e Castro, ao asseverar que após a
compra de algumas das empresas concorrentes, a Companhia Caris ficou “proprietária
de uma pitoresca colecção de bicharada e de calhambeques de todos os feitios e
tamanhos, no geral em péssimo estado”70
.
Contratos e Acordos celebrados entre a Companhia Carris de Ferro de Lisboa e a Câmara Municipal de
Lisboa, 1873 a 1938, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa: Direcção dos serviços Técnicos-especiais,
1941, p. 18, art.º 29. 65
Cf. Sande e Castro, op. cit., p. 46. 66
Cf. “Construção, conservação e exploração…Ano de 1887”, op. cit., p. 10. 67
Esta concessão foi apenas alterada para um período de quinze anos no contrato de 1892 (art.º 14), sendo
retomada no contrato de 1897, que previa a substituição da tracção animal pela eléctrica. Cf.
“Substituição da tracção existente por eléctrica”, in Contratos e Acordos celebrados entre a Companhia
Carris de Ferro de Lisboa e a Câmara Municipal de Lisboa, 1873 a 1938, Lisboa, Câmara Municipal de
Lisboa: Direcção dos serviços Técnicos-especiais, 1941, pp. 57-61. 68
“Construção, conservação e exploração de linhas férreas. Ano de 1892”, in Contratos e Acordos
celebrados entre a Companhia Carris de Ferro de Lisboa e a Câmara Municipal de Lisboa, 1873 a 1938,
Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa: Direcção dos serviços Técnicos-especiais, 1941, p. 39, art.º1. 69
Porém, esta política teve os seus custos. Se até 1890 obteve lucros líquidos positivos, os anos de 1891 e
1892 vão ser profundamente negativos, apesar do aumento substancial do número de passageiros
transportados. Cf. António Lopes Vieira, op. cit., p. 144 e 150. 70
Cf. Sande e Castro, op. cit., p. 47.
14
Conclusão
Atendendo que é nossa opinião, que tanto o aprendiz de historiador como o historiador
mais célebre, colocam no produto do seu trabalho parte de si e das suas vivências nunca
conseguindo viver ou escrever dentro de uma tumula este nosso esforço é, por si só,
prova que a leitura sobre determinado assunto, tema ou questão podem levantar díspares
dúvidas e ter variadas conclusões. No entanto, durante a realização deste trabalho
tivemos a oportunidade de constatar quão perniciosas podem ser algumas leituras
tentando, por ventura, transmitir uma imagem (ainda que eventualmente de forma
inconsciente) de realidades que em nada terão correspondido à verdade. Referimo-nos
de forma particular ao contracto de 1892 assinando entre a Companhia Carris de Ferro
de Lisboa e a Câmara Municipal e a leitura que António Lopes Vieira faz do mesmo.
Durante boa parte da sua obra, o historiador levanta questões de parcialidade dos órgãos
camarários, em que ajudas abusivas e lesivas ao sistema concorrencial terão
correspondido a uma potenciação ao monopólio de mercado, que realmente chegou a
acontecer, agravado ao facto da burguesia industrial portuguesa não ter sabido adaptar-
se ao ataque vindo da empresa luso-brasileira71
.
Porém, António Lopes Vieira alude que tendo em conta o “escandaloso desleixo em que
o serviço dos carros está sendo consentido”, que “o público estava farto de correrias e
atropelos”, e que o transporte em Lisboa era concentrado na zona baixa e realizado em
“condições anárquicas”, “não havia outra alternativa ao contrato de 1892”72
. Para
além disso, incorre em mais um lapso que se deve registar.
À data da sua fundação, a Companhia Carris de Ferro nunca procurou deter posse
incontestável dos transportes na zona urbana de Lisboa. Consideramos mesmo, que
nunca o procurou de facto, acontecendo apenas porque, com o agravar da situação
económica da nação, culminando com a grande crise financeira de 1892 – causando em
Portugal uma bancarrota – as empresas concorrentes nunca tiveram meios
verdadeiramente eficazes de resposta à rápida propagação do sistema “americano”
obrigando os proprietários a cederem os seus meios e as suas rotas à empresa mais
competente e mais forte financeiramente tentando minimizar prejuízos 73
.
71
António Lopes Vieira, op. cit., pp. 88-89. 72
Ibidem, pp. 136-137. 73
Que ainda assim teve prejuízos avultados durante os primeiros anos da década de 90.
15
Na ponta final da centúria de oitocentos, em conjunto com a autarquia, iniciou-se o
planeamento e a construção efectiva da rede eléctrica, sendo progressivamente
eliminada a tracção animal dando início uma nova fase.
Porém, os últimos anos do século XIX seriam penosos também para a Carris fazendo
com que, devido aos sucessivos empréstimos realizados em Londres, esta Companhia
não tivesse outra hipótese do que ceder os seus direitos de exploração a novos
proprietários britânicos.
Não obstante, a análise e a discussão mais aprofundada dessas matérias ultrapassariam,
claramente, os marcos temporais propostos neste trabalho.
16
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