Universidade Estadual da Paraíba
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José Fábio Marinho de AraújoCristina de Melo Valente
Organizadores
Ator- Rede e além, no Brasil...As teorias que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá?
Campina Grande
2014
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Capa:Marta Dantas
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ....................................................................................10
PARTICIPANTES DO ATOR-REDE E ALÉM NO BRASIL 2013 .............13
AGRADECIMENTOS ...............................................................................15
CORPO, BIOPOLÍTICA E SUBJETIVIDADE ..........................................21Etno/biografias e Teoria Ator-Rede .....................................22Por um teatro anfíbio ...........................................................26O Banco de Sêmen e as Técnicas de Reprodução Assistida .32
DIREITO E SOCIEDADE .........................................................................38Aglomerado Direito e Sociedade .........................................41As leis da Balança e do FGTS: Enredando cargas pesadas e
desviando os Fenemês do seu caminho .......................................44Labordireitórios ....................................................................56
DESAFIOS TEÓRICOS DA ARTICULAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO CTS E
TEORIA ATOR REDE ..............................................................................64As Ciências da Natureza no Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM): contribuições da Teoria Ator-Rede ...............................70
INFORMÁTICA, COMPUTAÇÃO, SISTEMAS, TECNOLOGIA DA INFOR-
MAÇÃO E AFINS ...................................................................................82A abordagem TAR no campo das TIC: trilhas percorridas e
encontros necessários ....................................................................82
CONTROVÉRSIAS E CONSTRUÇÃO DA CIÊNCIA................................131Entre anti-fatos, fatos e não-fatos: a semiótica material da
história da Palaeolama (camelidae) Sul Americana.....................131
CURRÍCULOS UNIVERSITÁRIOS .........................................................157Alguns desafios especiais da Coordenação Acadêmica de um
Curso Superior de Gestão da Tecnologia da Informação fora da região metropolitana ................................................................... 159
CTS nas formações interdisciplinares..................................167A crise do software e a configuração da área de computação
como ciência exata ou interdisciplinar ........................................ 179Currículos de Computação: porque são assim?..................189
O LUGAR DOS OBJETOS TÉCNICO-CIENTÍFICOS NA EDUCAÇÃO
PARA UM MUNDO COMUM................................................................196Sobre educar para um mundo comum do ponto de vista da
teoria do ator-rede........................................................................198
POLÍTICA E LIMITES DAS VERDADES CIENTÍFICAS - OS CASOS DAS
LENR E DA MULTIMISTURA ...............................................................215A “fusão a frio”: de Fleischmann e Pons a Focardi e Rossi .. 216O programa alimentar Multimistura..................................219
POLÍTICAS DE PESQUISA E PRODUÇÃO DE TESTEMUNHOS.........224A radicalização do princípio de simetria nas ciências huma-
nas: novas questões políticas.......................................................224A produção de subjetividades em uma divisão de psicologia
aplicada: políticas na produção de testemunhos .......................227Da extorsão de testemunhos aos mal entendidos promissores:
redesenhando as fronteiras entre pesquisador e pesquisado .......234Duas vezes recalcitrância: uma situação de campo ..........239Imagem, texto, professores, alunos e a escola como rede.......242Da poesis na escrita de relatos e políticas de produção de
testemunhos: por narrativas de movimentos mínimos ................ 247Problematizando as dicotomias..........................................253Explorando novas convergências antropológicas..............258
COMUNICAÇÃO E CIÊNCIA: ENTRELAÇAMENTOS..........................266Fator de impacto e Qualis: se ganha o que se perde, a rede
esvaziada......................................................................................266
CONHECIMENTO CIENTÍFICO E AQUECIMENTO GLOBAL..............275Praticando nautimodelismo às avessas: e se o navio fosse o
aquecimento global? ...................................................................275
POLÍTICA, LIXO, RECALCITRÂNCIAS E HUMANOS, QUE VÍNCULOS
SÃO ESSES? .........................................................................................292
MATEMÁTICAS ...................................................................................308A Reação ao Teorema de Incompletude de Gödel ............ 310Matemática, abstrações e a prática matemática ................ 312
MARIA DO SOCORRO E/OU LADO B ................................................320OS AUTORES.........................................................................................322
10
APRESENTAÇÃO
O Núcleo de Estudos de Ciência & Tecnologia e Socieda-
de (NECSO), grupo de pesquisa associado à Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (UFRJ) promove desde 2002 um encontro
anual, o Ato-Rede, onde são apresentados os trabalhos em
andamento de seus participantes e são discutidos novos rumos
para as pesquisas.
Como o Ato-Rede não visa ter abrangência nacional,
seus participantes são na sua grande maioria pesquisadores
que atuam na UFRJ e em outras instituições sediadas no Rio
de Janeiro.
No último encontro Ato-Rede realizado em 24 e 25 de
novembro de 2012, na Casa da Ciência da UFRJ, os partici-
pantes sugeriram criar um evento nacional sobre a abordagem
Ator-Rede, com a finalidade de mapear outros grupos e pesqui-
sadores que também trabalham com abordagens dos estudos
das ciências e das tecnologias, especialmente a Teoria Ator-Re-
de. Nasceu aí a proposta de realização do evento “Ator-Rede e
além ... no Brasil (¿as teorias que aqui gorjeiam não gorjeiam
como lá?)”, cujos trabalhos são apresentados neste volume.
Os professores Ivan da Costa Marques, do Programa de
Pós Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epis-
temologia (HCTE) e do Instituto de Matemática (IM) da UFRJ,
Izabel Cafezeiro (HCTE/UFRJ, Instituto de Computação - UFF)
e Eduardo Paiva (HCTE e COPPE/UFRJ), ficaram responsáveis
por organizar e coordenar o evento Ator-Rede e além no Brasil,
realizado no campus Ilha do Fundão da UFRJ nos dias 6 e 7 de
junho de 2013.
Na fase de planejamento do evento, os organizadores
decidiram manter o modelo minimalista adotado nos Atos-Rede
anuais (https://sites.google.com/site/atorede/), onde breves
apresentações são seguidas de discussões rápidas com tempo
11
estritamente controlado, de modo a privilegiar a participação do
maior número de pessoas possível.
A proposta dos organizadores foi que os próprios inscri-
tos se agrupassem por temas/problemas e não por disciplinas.
Daí resultaram 18 “aglomerados” (a palavra surgiu no processo
de agrupamento) que incluíram todos os trabalhos propostos ao
evento:
1. Corpo, biopolítica e subjetividade
2. Direito e sociedade
3. Desafios teóricos da articulação entre Educação
CTS e Teoria Ator Rede
4. Prácticas curativas em México: plantas, padeci-
mientos y remedios tradicionales
5. Informática, Computação, Sistemas, Tecnologia da
Informação e afins
6. Controvérsias e construção da ciência
7. Currículos universitários
8. O lugar dos objetos técnico-científicos na educação
para um mundo comum
9. Política e limites das verdades científicas - os casos
das LENR e da multimistura
10. Políticas de pesquisa e produção de testemunhos
11. Comunicação e ciência: entrelaçamentos
12. Conhecimento científico e Aquecimento global
13. Epistemología social del cambio climático
14. Política, lixo, recalcitrâncias e humanos, que víncu-
los são esses?
15. Controvérsias sobre o aborto na grande mídia:
problemas, instrumentos e contribuições da TAR
16. Dispositivos e práticas de (co)produção de ciência e
mundos sociais
17. Matemática
18. Maria do Socorro - Lado B
12
Para a organização deste livro, foram recolhidas contri-
buições dos participantes do evento que puderam no prazo
disponível produzir textos referentes às discussões apresen-
tadas em 14 dos 18 aglomerados. Esperamos que os leitores
possam ter, através da leitura destes trabalhos, uma amostra
da riqueza e qualidade das temáticas escolhidas e das partici-
pações realizadas.
José Fabio Marinho de Araujo
Cristina de Melo Valente
Organizadores
13
PARTICIPANTES DO ATOR-REDE E ALÉM NO BRASIL 2013
Adilson da Silva Mello
Adriano Premebida
Alexandra Cleopatre Tsallis
Aline Veríssimo Monteiro
Ana Claudia Lima Monteiro
Andre Sicchieri Bailão
Antonio Arellano
Arthur Arruda Leal Ferreira
Bernardo Esteves
Camilla Marcolino
Cidoval Sousa
Claudia Wanessa Poletto
Cristina Valente
Daniela Alves
Daniela Tonelli Manica
Daniele Santos
Debora Prado
Djalma Thürler
Dolores Galindo
Edson Jacinski
Eduardo Nazareth Paiva
Elaine Sigette
Fátima Branquinho
Fátima Kzam
Felipe Lisboa
Fernando Severo
Gabriel Marcuzzo
Graciela de Souza Oliver
Gregory Chaitin
Guilherme Sá
Helena Cristina F. Machado
Heloisa Helena A. Borges Q.
Gonçalves
Henrique Cukierman
Isabel Cafezeiro
Ivan da Costa Marques
Javier Rey
João Henrique Ávila de Barros
José Alves Fernandes
José Antonio dos Santos Borges
José Fábio Marinho de Araujo
José Marcos Silveira Gonçalves
José Vargens
Larissa Mignon
Laura Morales
Lea Paiva Paula
Lucimeri Rica Dias
Luiz Antonio Joia
Luiz Arthur
Marcela Alves de Abreu
Marcelo E.K.Buzato
Marcelo Fornazin
Marcia de Oliveira Cardoso
Márcia de Oliveira Teixeira
Marcia Moraes
Márcia Regina Barros da Silva
Marcus Vinicius B. Soares
Maria Cristina Santos Pechine
Maria Eduarda Gonçalves
Maria Gilda P. Esteves
14
Maria Teresa Citeli
Marko Monteiro
Matheus Duarte
Miguel Jonathan
Natalia Barbosa Pereira
Paulo Sérgio Pinto Mendes
Rafael Wild
Raoni Rajão
Regina Dantas
Ricardo Kubrusly
Ricardo Pimentel Mello
Rodney F. Carvalho
Roseantony Rodrigues Bouhid
Thiago Novaes
Vanessa Simon
Virginia Chaitin
Viviane Fernandez
15
AGRADECIMENTOS
O evento “Ator-Rede e além... no Brasil - ¿as teorias que
aqui gorjeiam não gorjeiam como lá?” começou a ser configura-
do (inclusive com uma tempestade de sugestões de títulos) no
Ato-Rede 2012 realizado na Casa da Ciência da UFRJ no Rio de
Janeiro em 24 e 25 de novembro de 2012. Vai para os partici-
pantes do Ato-Rede 2012 o primeiro agradecimento.
E não é um agradecimento meramente protocolar porque
ali sentimos apoio para levar adiante a ideia de um encontro
ao redor da “teoria ator-rede” com chamada minimalista. Isto
é, ali sentimos apoio para enfrentar o risco de fazer um even-
to que nascesse dos próprios participantes e fosse configura-
do, ao máximo possível, pelos próprios participantes. Qual o
mínimo de estrutura que teria que ser definida? Optamos por
uma entrada por “problemas” (em oposição a uma entrada por
“temas disciplinares”) e uma limitação no tempo de cada inter-
venção. A partir daí, e nada mais, foi feita a chamada com uma
lista sugestiva, mas simplesmente exemplificadora, de proble-
mas. Sem o incentivo inicial do Ato-Rede 2012 dificilmente terí-
amos ido adiante.
No caminho recebemos diversos apoios além do entu-
siasmo contagiante que seria impossível apontar nominalmen-
te. Alessandra Tsallis posicionou o encontro nas atividades de
extensão da UERJ, o que fez com que pudéssemos contar com
o apoio eficaz e simpático de suas alunas e estagiárias. Márcia
R. Barros da Silva providenciou para que viessem da USP os
lindos e antropofágicos certificados e crachás criados por Luci-
meri Ricas Dias. Os incansáveis José Antônio Borges e Tiago
Paixão Borges se esmeraram no registro fotográfico e de todas
as falas, possibilitando que o evento se torne também um obje-
to de estudo disponibilizado na Internet. José Fábio Marinho
agarrou a oportunidade de fazer este livro, onde reaparecem,
16
mais ou menos transformados, os “aglomerados”. Finalmente, o
NCE/UFRJ, o HCTE/UFRJ e a Decania do CCMN/UFRJ foram
imprescindíveis na divulgação, reserva e cessão do espaço que
abrigou o evento.
Ivan da Costa Marques
Isabel Cafezeiro
Eduardo Nazareth Paiva
Rio de Janeiro, 5 de outubro de 2013
21
CORPO, BIOPOLÍTICA E SUBJETIVIDADEDaniela Tonelli Manica
O aglomerado “Corpo, biopolítica e subjetividade”, que
inaugurou a primeira sessão do encontro “Ator-Rede e Além...
no Brasil”, reuniu diversos trabalhos e pesquisadores em torno
da proposta de se pensar sobre as formas de captura e ressigni-
ficação dos corpos, seja em sua materialidade apropriada pelas
instituições/ discursos/ práticas/ efeitos (inclusive políticos) da
biomedicina, seja nas suas possibilidades de expressão artística
e subjetiva.
A configuração inicialmente imaginada e desejada para
apresentar o aglomerado no evento foi composta pelos trabalhos
de Ana Claudia Lima Monteiro, Corpo e subjetividade nos espa-
ços da dança; Maria Conceição da Costa, Medicalização e gênero;
Daniela Tonelli Manica, Etno/biografias e Teoria Ator-Rede; Djal-
ma Thürler, Por um teatro anfíbio; Dolores Galindo (Tina), Mate-
rialidades, Difrações e Figurações; Felipe Lisboa, O impacto das
neurociências na contemporaneidade: uma aproximação entre as
neurociências e a educação; Helena Cristina Ferreira Machado,
Aceitaria doar os seus genes para investigação criminal? Redes de
significação e Thiago Novaes, O Pós-humanismo vai às compras: o
banco de sêmen e as técnicas de reprodução assistida.
Apresentamos a seguir breves intervenções propostas
pelos autores que se dispuseram a encaminhá-las para esta
publicação, conforme sugerido pelos organizadores do livro.
22
Etno/biografias e Teoria Ator-RedeDaniela Tonelli Manica
Esse pequeno texto traz uma apresentação muito rápida
das minhas pesquisas, ambas inspiradas pelo enfoque biográfi-
co (a primeira, de coisas, a segunda, de pessoas) e pela aborda-
gem etnográfica. O objetivo é que essa minha breve intervenção
explicite o quanto uma pesquisa com uma intenção biográfica/
etnográfica está, ao contrário do que se pode acreditar, muito
além de referendar um pressuposto individualista e antropo-
cêntrico, podendo inclusive, pelo contrário, reforçar possibilida-
des de conexão teórica com uma perspectiva ator-rede.
Meus trabalhos de mestrado e doutorado tiveram como
tema comum as relações entre hormônios e contracepção.
Eu trabalhei no mestrado (Manica 2003) com as controvér-
sias acerca das formulações de contraceptivos que promovem
a supressão dos sangramentos menstruais – e o fiz pensando
em propor um estudo etnográfico de parte da trajetória de vida
desses contraceptivos – a parte correspondente à sua divulga-
ção e lançamento no mercado farmacêutico. Eu fiz pesquisa de
campo em congressos de medicina (da área da ginecologia e
obstetrícia) e analisei o material de divulgação produzido pelos
laboratórios farmacêuticos para os experts/médicos. Esse
material, para além das informações técnicas que interessariam
“mais” aos especialistas, veicula também uma série de elemen-
tos e pressupostos acerca de gênero e reprodução que procu-
rei, também, discutir na pesquisa. Propus ainda uma descrição
etnográfica de um dos congressos do qual participei, tentando
seguir alguns dos produtos que estavam sendo lançados, suas
diferentes “formas” de aparição nos congressos (estandes de
divulgação, simpósios patrocinados, sessões de debate etc.) e os
diversos deslizamentos semânticos empreendidos. Finalmente,
analisei como determinados argumentos sobre a “natureza” dos
23
sangramentos menstruais disputavam, nos meios de comunica-
ção, sua valorização simbólica e como esse embate referendava
(ou não) o uso dos produtos que estavam sendo lançados no
mercado farmacêutico para suspender a menstruação.
Na minha pesquisa de doutorado (Manica 2009), traba-
lhei com a trajetória de Elsimar Coutinho, um médico baiano,
nascido em 1930, que construiu a sua carreira científica funda-
mentando-se em pesquisas com substâncias como os hormô-
nios contraceptivos. A partir da década de 1960 em Salvador,
ele pesquisou várias alternativas de uso desses hormônios, que
provocavam a interrupção prolongada dos sangramentos mens-
truais. Suas pesquisas eram bastante polêmicas, atreladas a
programas de controle populacional e financiadas por institui-
ções que estavam preocupadas com a “explosão demográfica”
nos países em desenvolvimento. Então em minha tese, de certa
maneira, tento mapear como essas redes potencializavam a
construção da sua trajetória como cientista, com suas pesquisas
clínicas em Salvador, ao mesmo tempo em que possibilitavam
o surgimento de várias técnicas contraceptivas alternativas,
como os implantes subcutâneos de uso contínuo (com duração
de três, quatro, cinco anos); injetáveis que duram três ou seis
meses e durante esse uso promovem não somente a contracep-
ção, mas também a supressão dos sangramentos menstruais;
dispositivos intrauterinos (DIU’s), que hoje em dia possuem
também em sua composição esses hormônios que promovem
a supressão dos sangramentos; dentre várias outras técnicas.
Na tese, procurei abordar como essas técnicas alterna-
tivas, que eram um pouco subjugadas em função desse efeito
indesejado de supressão dos sangramentos, foram trabalhadas
por ele ao longo de sua trajetória, relatada em uma autobio-
grafia não publicada à qual tive acesso durante a pesquisa, e
também extensamente documentada nos meios de comunica-
ção locais. Em meados da década de 1990, Elsimar Coutinho
24
publicou um livro chamado “Menstruação – A Sangria Inútil”
(Coutinho, 1996) e começou a aparecer recorrentemente nos
meios de comunicação brasileiros.
O principal argumento dele era de que a menstrua-
ção não é algo natural ao corpo feminino, o que é natural ao
corpo das mulheres é estarem ou grávidas, ou amamentando.
Ele dizia que no estado de natureza, as fêmeas não conseguem
escapar da “ação reprodutora” dos machos. O que acontece,
segundo ele, é que acabamos criando mecanismos eficazes
de controle do processo reprodutivo e, nesse processo, que é
resultante da vida em sociedade, o que as mulheres contem-
porâneas acabam tendo são ciclos consecutivos que provocam
sangramentos frequentes, excessivos e “desnecessários”. Então
todo seu empenho como médico e pesquisador vai no sentido
de patologizar esses sangramentos, dizendo não só que eles são
inúteis, como também que eles podem acarretar uma série de
efeitos indesejáveis, de doenças como a anemia, por exemplo.
É claro que debate sobre a (in)utilidade da menstrua-
ção envolveu, e ainda envolve, controvérsias (benefícios e riscos
do uso prolongado de hormônios, essa questão da patologi-
zação da menstruação, direitos e saúde sexual e reprodutiva,
etc). Algumas discussões se atenuaram em relação à época em
que eu comecei a pesquisar - como por exemplo, a discussão
sobre a “natureza” natural ou social da menstruação. Inclusive
porque os laboratórios a partir da década de 1990 passaram a
divulgar propagandas sobre a supressão da menstruação, sobre
“viver sem menstruar” como algo libertário e moderno e lança-
ram, efetivamente, produtos com essa finalidade. Mas o que se
reafirma é a relação entre o lançamento desses contraceptivos
e um certo discurso sobre “a mulher moderna”, contemporâ-
nea – que, assim como não quer mais ter tantos filhos, pode
também não desejar esse “incômodo” frequente dos sangra-
mentos mensais. Isso tudo tem a ver, portanto, e finalmente,
25
com as formas como se agenciam corpo, reprodução e tecnoci-
ência, e como as concepções de natureza/natural/biológico e
seus opostos cultura/sociedade/artificialidade são mobilizadas
nesses processos.
Referências BibliográficasCOUTINHO, Elsimar. Menstruação, a sangria inútil.
São Paulo: Editora Gente, 1996.
MANICA, Daniela Tonelli. Supressão da Menstruação:
Ginecologistas e Laboratórios Farmacêuticos Re-apresentan-
do Natureza e Cultura. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social). IFCH, Unicamp, Campinas, 2003.
_______. Contracepção, natureza e cultura: embates e
sentidos na etnografia de uma trajetória. Tese (Doutorado em
Antropologia Social). Campinas: IFCH/Unicamp, 2009a.
26
Por um teatro anfíbioDjalma Thürler
“Não é a falta de limpeza ou saúde que causa a abjeção,
mas o que perturba a identidade, o sistema, a ordem.
O que não respeita fronteiras, posições, regras.
O meio-termo, o ambíguo, o compósito”
(The power of horror, p.4).
Começo sobre o meu “lugar de enunciação”, como diz
o jargão teórico. Desde que cheguei em 2009 para compor o
quadro de Professores do IHAC, como chamamos o nosso
Instituto Interdisciplinar, na UFBA e, desde minha entrada
no Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e
Sociedade venho trabalhando de maneira intensamente inter-
disciplinar, conjugando interesses e ações de pesquisa em torno
do subalterno, que envolve não apenas a Arte – que é o epicen-
tro desta fala –, mas todos aquelxs que, de alguma forma, fogem
da hierarquia colonial do poder global, qual seja, a do homem
branco, capitalista, heterossexual, militar, cristão e europeu
que se expandiu pelo mundo e levou consigo, e impôs, simulta-
neamente, os privilégios de sua posição racial, militar, de classe,
sexual, epistêmica, espiritual e de gênero. A homofobia, o racis-
mo, o sexismo, o heterossexismo, o classismo, o militarismo, o
cristianocentrismo, o eurocentrismo são, pois, todas ideologias
que nascem dos privilégios do novo poder colonial capitalista,
masculinizado, branqueado e heterossexualizado.
Nesses quatro anos já orientei projetos de pesquisa
sobre temas como a Etnomatemática de Quilombolas, ensino-
-aprendizagem de surdos, aculturação de tribos indígenas na
Bahia, masculinidades precárias na Revista Playboy, fábricas
de masculinidades em escola de ensino básico no interior da
Bahia, os losers do seriado Glee. Isso para falar daqueles que,
27
hoje, já são mestres e doutores.
Toda essa produção está sob um guarda chuva chama-
do “A politização dos subalternos - Fase I: Universidade, Socie-
dade, Pós-Colonialismo e Teoria Queer” que gerou, entre 2010 e
2013, a produção da “Trilogia do Cárcere”, sequência de ence-
nações composta pelas peças de O melhor do homem, Salmo 91
e O diário de Genet. Esse conjunto de peças procurou a articu-
lação interdisciplinar entre as formulações teórico-estéticas do
teatro contemporâneo e a ação dos Saberes Subalternos (onde
incluímos os Estudos Culturais, a Teoria Queer, os estudos Pós-
Coloniais, assim como algumas vertentes dos Estudos Feminis-
tas) a partir de uma investigação do lugar do subalterno e a sua
problematização no teatro contemporâneo.
Nesta fase do projeto, o que me interessa é o aprofunda-
mento da discussão sobre a dimensão política do teatro contem-
porâneo a partir da problematização da categoria de abjeção,
tendo como ponto de partida o estatuto de tal categoria, indi-
cado pelas dissidências e convergências entre as proposições
de três pensadores que fizeram do abjeto figura importante em
suas teorias: Hal Foster, Julia Kristeva e Judith Butler. Interes-
sa-nos, sobretudo, explorar e esboçar um cenário onde o abjeto
está em disputa. A intenção é a de que, ao traçá-lo, tornem-se
mais afiadas as ferramentas que nos possibilitem abordar fenô-
menos sociais, experiências subjetivas e produtos culturais a
partir do paradigma da abjeção. Nesse sentido, procuraremos
demonstrar que em produções recentes do teatro contemporâ-
neo, o recurso à abjeção aparece vinculado ao estabelecimento
dos não-limites do humano.
Assim, consideramos não apenas que a abjeção passa a
ser uma ferramenta de análise de fenômenos culturais – aqui,
da cena teatral, em particular –, mais do que categoria diagnós-
tica referida a uma semiologia identitária, mas, especialmente
que seu uso aponta para as implicações estéticas da produção
28
teatral, da cultura e da sociedade, bem como evidencia os laços
entre a produção teórica dos Saberes Subalternos e os diferen-
tes contextos sócio-históricos.
Hal Foster (atualmente professor do departamento de
Arte e Antropologia na Universidade de Princeton), no seu livro
“O retorno do real”, fala sobre o “artifício da abjeção” que, no
seu entender, construiria um elo entre muitas produções artís-
ticas contemporâneas e bebendo em Kristeva, em uma de suas
inúmeras definições do termo, dirá que o abjeto é aquilo de que
preciso me livrar no intuito de ser um Eu. O abjeto, que ainda
não é nomeado, indicado ou apontado, seria algo fantasmático,
não somente estranho ao sujeito, mas também íntimo dele. De
fato, é a superproximidade do abjeto com o sujeito que produz
o pânico neste, fazendo-o perder a noção espacial de dentro e
fora, de centro e margem.
Por isso, quero apostar que é na pós-modernidade (ou
nisso que com algum descuido chamamos de pós-modernidade)
que o “artifício da abjeção” surge como potência desestabiliza-
dora. Linda Hutcheon, num livro que gosto muito, o “Poética do
Pós-Modernismo”, diz que
“quando o centro começa a dar lugar às
margens, quando a universalização totali-
zante começa a desconstruir a si mesma, a
complexidade das contradições que existem
dentro das convenções começam a ficar visí-
veis.” (HUTCHEON, 1991, p. 86)
Abjetos, então, seriam todas as margens que, d’alguma
forma, tem papel importante na construção de subjetividades
racistas, homofóbicas, sexistas, machistas, etc.A abjeção – que
não ocorre só pela negação de direitos, como se faz com LGBT,
mas ela própria ausência de reconhecimento e de legitimidade
– é muito poderosa e um elemento central na análise do pano-
29
rama teatral contemporâneo que, dentre outras características,
apresenta produções que dialogam com estéticas repulsivas e
que colocam em cena questões ligadas ao corpo, ao desejo e à
sexualidade, espécie de atualização do que Silviano Santiago
(2004, 69) chamara de literatura anfíbia, uma peculiaridade da
literatura brasileira que era a associação íntima das essências
política e artística. O autor escreve em “O cosmopolitismo do
pobre” que
[...] ao longo do século XX, os nossos melho-
res livros apontam para a Arte, ao observar
os princípios individualizantes, libertadores
e rigorosos da vanguarda estética européia, e
ao mesmo tempo apontam para a Política, ao
querer denunciar pelos recursos literários não
só as mazelas oriundas do passado colonial
e escravocrata da sociedade brasileira, mas
também os regimes ditatoriais que assolam a
vida republicana. (SANTIAGO, 2004, p. 66)
Este, segundo o autor, é o caráter anfíbio da nossa lite-
ratura, uma somatória original de “Arte e Política” (SANTIAGO,
2004, p. 68). Por fim, na medida em que o uso político da cate-
goria de abjeção aponta para as articulações entre a cena teatral
e as problemáticas sociais, a sua abordagem crítica pode nos
servir para o aprofundamento da discussão sobre a potência de
um teatro anfíbio no enfrentamento das formas contemporâne-
as de colonialidade, disciplinamento e vigilância.
Neste sentido, projetos como “Uma flor de dama” tonam-
se potentes e viris atos de política, a força pujante de um ator
como o Silvério Pereira, que como diz o pensador francês Valère
Novarina, não executa uma cena, mas se executa em cena e, ao
se executar, desmascara, desconstrói um papel também atri-
buído ao teatro pelo centro colonizante, qual seja, o de que o
30
teatro venha a ser a ante-sala da pizzaria; o teatro-higiênico,
que afasta e protege o público e um teatro cruel e pobre, ao
mesmo tempo artaudiano e grotowiskiano.
“Uma flor de dama” é uma peça seca, implacável, não
enfeita nada, traz consigo uma “ética da crueldade”, aquela
pensada por Clément Rosset. Para o filósofo francês
cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim
como crudus (cru, não digerido, indigesto)
designa a carne escorchada e ensangüentada:
ou seja, a coisa mesma privada de seus orna-
mentos ou acompanhamentos ordinários, no
presente caso a pele, e reduzida assim à sua
única realidade, tão sangrenta como indiges-
ta. Assim, a realidade é cruel – e indigesta - a
partir do momento em que a despojamos de
tudo o que não é ela para considerá-la apenas
em si-mesma: tal como uma condenação à
morte (ROSSET, 1989, 18).
E Silvério faz isso, condena à morte, condena a invenção
do centro, metaforizado ali pela roda gigante, condena a nossa
condenação quando cria uma personagem que, descartada da
roda gigante, ultrapassa a faculdade humana da compreensão.
Uma pós-mulher-abjeta-elétrica que põe em perigo o centro,
desestabiliza as normas e qualquer tentativa de inteligibilida-
de. “Uma flor de dama” é o exemplo mais contundente de uma
produção teatral contemporânea que eleva a abjeção à categoria
política, evidencia a articulação entre teatro, saberes subalter-
nos e potências queer.
31
BibliografiaFOSTER, Hal. The return of the real. Londres: MIT
Press, 1996.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo - História - Teoria – Ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro:
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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura anfíbia. IN: O Cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2004.
32
O Banco de Sêmen e as Técnicas de Reprodução Assistida
Thiago Novaes
Muitas vezes, quando se fala em pós-humanismo, assu-
me-se como expressão correlata o chamado pós-humano, algo
como a evolução de nossa espécie mediada agora pela técnica.
Tomando o corpo desde uma perspectiva biológica, natural, a
passagem para uma nova condição tornaria o corpo humano
obsoleto, e apontaria para a emergência de um híbrido huma-
no-máquina capaz de substituir o carbono pelo silício, conectar
os corpos com novas tecnologias de comunicação, e promover
o melhoramento genético desde a formação de embriões. Um
tal conjunto de mudanças, entretanto, sugere uma crise não
apenas sobre as definições que estabeleciam uma certa condi-
ção humana, mas põe em xeque toda uma cosmologia antro-
pocêntrica, que caracterizava precisamente o pensamento
humanista.
A apresentação tem por objetivo enunciar algumas das
implicações teóricas, e também políticas desta implosão, inves-
tindo na descrição da constituição da pessoa a partir de doação
anônima e gratuita de sêmen. A proposta é combinar a pesqui-
sa sobre a possibilidade técnica de uso de patrimônio genético
congelado para Inseminação Artificial e as diferentes aplicações
das Técnicas de Reprodução Assistida – TRA para concepção1.
1 “De 219 mil a 246 mil bebês nascem a cada ano no mundo graças ao desen-volvimento das técnicas de reprodução assistida, segundo um estudo inter-nacional publicado no periódico científico Human Reproduction. A pesquisa indica um grande aumento no número de procedimentos do tipo: mais de 25% em apenas dois anos, de 2000 a 2002. Os pesquisadores usaram dados de 1.563 clínicas em 53 países, mas ressaltam a insuficiência de dados em partes da Ásia, África e Oceania.” Agência Fapesp, “Reprodução assistida tem aumento”, 1/6/2009. Disponível em: http://www.agencia.fapesp.br/materia/10576/reproducao-assistida-tem-aumento.htm acesso 10/01/2013.
33
O nascimento de filhos com parcial reconhecimento
sobre a autoria genética, como é o caso das experiências com
óvulos e sêmen anônimos, situa um conflito partilhado em vários
países, em que o valor social atribuído ao desejo de maternida-
de/paternidade, viabilizado pela condição econômica de realizá-
-lo, opõe-se ao direito da pessoa em saber sua origem genética.
Buscando compreender os papéis envolvidos na fabricação de
filhos, propomos destaque para a função da técnica que permite
alterar do modo de conceber a autoria “natural” sobre o huma-
no, assumindo como problema a mediação da racionalidade
médica que promove a seleção4 na busca dar soluções para os
anseios das pessoas que querem ter filhos.
Não nos debruçaremos, portanto, sobre a principal
justificativa médica para o uso das TRA, a saber, o combate à
infertilidade. Ao contrário, interessa-nos o debate que se volta
para análise sobre os valores que compõem as possibilidades
de procriação monoparental, de homossexuais, e do recurso
à chamada “barriga de aluguel”, atentando para as distintas
técnicas envolvidas no mapeamento genético para seleção de
embriões2.
Enunciaremos o surgimento de uma pessoa cujo patri-
mônio genético extrapola certos princípios, estabelecidos pela
família consanguínea, onde participam atores não humanos na
constituição do parentesco, forçando um questionamento no
sistema jurídico, que responde pelas garantias de dignidade da
pessoa humana, além do direito de reconhecimento da origem
genética. Como sugere Lévi-Strauss:
2 “The whole problem of our civilization is to develop an alternative to Aus-chwitz, and there isn’t one. There is no argument against Auschwitz. So if you take Auschwitz as the – well, “metaphor” is a very barbaric word – but the reality of selection. And selection is the principle of politics globally. There is not yet an alternative to Auschwitz.” MÜLLER, Heiner. Disponível em: http://muller-kluge.library.cornell.edu/en/video_transcript.php?f=109, acesso 15/01/2013.
34
“Essas são então as novas técnicas de
procriação assistida, tornadas possíveis
para o progresso da biologia, que puseram
em desordem o pensamento contemporâneo”
(2011: 73).
Partindo da oposição entre dois polos ideais, concepção
natural e fabricação da pessoa, em que esta segunda é compos-
ta de uma seleção de gametas compatíveis e da caracterização
fenotípica dos doadores, queremos contextualizar o desenvolvi-
mento de técnicas de reprodução3 que entram em choque com
os direitos de personalidade e de origem genética, pondo em
diferentes registros a dignidade da pessoa. As leis que incen-
tivam ou moderam a pesquisa na área da saúde são bastante
distintas entre vários países. Porém, em todas essas situações
de intervenção, parte-se de um novo plano de produção sobre o
“natural”. Em síntese, trata-se de renunciar ou não à necessida-
de de normatizar sobre práticas sociais atuais, onde se “desva-
nece a fronteira entre o que ‘somos’ e a disposição orgânica que
‘damos’ a nós mesmos” (Habermas 2004: 17).
O aspecto rizomático do parentesco em questão nos
sugere um deslocamento ontológico de produção de subjetivida-
de mediada pela técnica, gerando a expectativa de super-filhos,
onde os pais agora planejam sua própria cria, diferentemente do
“encontro casual”, e querem se ver atendidos em alguns desejos,
muitas vezes, como cor de olhos e cabelo do bebê. Esses desejos
autorizariam os médicos a partirem para um método racista
de seleção de doadores, bem como de gametas4, realizando um
3 Beatriz Preciado preferiria o termo técnicas de produção: “Falamos de repro-dução artificial. Você diz que não deveria se chamar reprodução, mas pro-dução artificial: fabricação de uma espécie inteiramente nova” (2008: 161).
4 “Considero que “raça” constitui-se numa noção em que características feno-típicas como cor de pele, tipo de cabelo, formato do nariz, entre outros, são
35
deslocamento da concepção “natural” mediada por instrumen-
tos e prática médica, clínicas privadas e doadores, promovendo
um tipo de conversão que transforma em informação, saudável
ou não, o patrimônio genético de uma pessoa.
ConclusãoConsiderando o conjunto de relações habilitadas com
o acesso ao Banco de Sêmen e às TRA, o texto buscou indicar
mudanças na forma habitual de conceber-se o parentesco, nota-
damente natural, onde passam a tomar parte atores não-hu-
manos, manipulando-se, especialmente, o patrimônio genético
adquirido e selecionado a partir da doação anônima e gratuita
de sêmen e óvulo. Ainda que movida por solidariedade, a doação
combina-se com um negócio altamente lucrativo, a saber, o
desenvolvimento das TRA, que tradicionalmente proviam a cura
para infertilidade, mas que compõem agora um amplo espectro
de possibilidades conceptivas. Deslocando o humano do centro
da reprodução da espécie, interessa-nos apresentar a implosão
de um certo humanismo, sem, com isso, corroborarmos com as
narrativas que assumem entusiástica ou criticamente a chega-
da de um pós-humano. Antes, voltamo-nos para a descrição de
novas relações que entram em choque com a forma com a qual
nos organizávamos socialmente, seja para estabelecimento do
parentesco, e transmissão de propriedade, seja para nos situar-
mos frente à natureza, com suas leis e acasos. Indissociado do
avanço tecnocientífico, o pós-humanismo não enxerga qualquer
limite para seu progresso, e assume como desafio uma reorga-
nização total, ontológica, onde a seleção atua como paradigma
reinante e transforma o sujeito humano mesmo seu objeto de
experimentação.
utilizadas como parâmetro para classificação.” (Costa 2004: 236).
36
BibliografiaCOSTA, Rosely Gomes [2004]. “O que a seleção de doado-
res de gametas pode nos dizer sobre noçõesde raça”. PHYSIS:
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STRATHERN, Marilyn [2006]. Kinship, Law and the
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University Press.
38
DIREITO E SOCIEDADEDaniele Martins dos Santos
Eduardo Nazareth Paiva
Ivan da Costa Marques
Este aglomerado surge, em princípio, com uma propos-
ta de uma aluna do mestrado do HCTE que, por ser formada
em Direito, sente a necessidade de buscar ligações com seus
colegas, que na sua maioria possuem formação em áreas assim
ditas “mais duras” da ciência.
A primeira grata surpresa do aglomerado foi o interes-
se de um engenheiro, pós-doutorando do mesmo programa,
que em sua tese de doutorado alcançou o tema proposto numa
abordagem muito parecida com a proposta inicial.
O passo seguinte, que foi a organização das exposições,
trouxe-nos uma experiência muito rica: o encontro de um trabalho
em fase de construção, buscando ainda portas de entrada e um
trabalho concluído, com ligações muito bem descritas. Foi nesse
Imagem extraída da Internet em 19/08/2013:
http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2013/08/129_128-alt-
justi%C3%A7a%20olho%20aberto.jpg
39
encontro entre os dois primeiros autores (Daniele e Eduardo), que
surgiu a ideia de completar aquele ciclo de co-produção do aglo-
merado com nosso orientador, que já teria trabalhado nessa
área de interesse. Depois de aceitar o convite, Ivan nos trouxe
ainda mais dois casos muito pertinentes, enriquecendo nosso
enredamento.
O aglomerado Direito e Sociedade alcançou então sua
forma final com três integrantes: Daniele, Eduardo e Ivan.
Daniele destaca de que forma o conhecimento científi-
co participa das decisões judiciais, ressaltando que as culturas
da ciência e do direito são construídas de maneira conjunta e
as fronteiras entre o que é questão de valor (prerrogativa dos
juízes) e questão de fato (reservada aos experts) são negociadas
caso a caso. Dessa maneira ela traça um ponto de partida para
uma pesquisa que está apenas começando.
Eduardo traz a pesquisa sobre a Fábrica Nacional
de Motores a Lei da Balança, o FGTS e os enredamentos de
interesses que teriam repercutido negativamente na trajetória
empresarial daquela indústria. Ele mostra de que maneira os
dispositivos legais foram utilizados como instrumentos para
o enfraquecimento da FNM. A FNM, naquela ocasião, teria se
mostrado como um elo fraco, pois não atenderia aos interesses
eminentemente liberais da época. Essa pesquisa mostra ainda
os conluios público-privados em que se articulou uma manei-
ra “legal” de tirar a FNM do quadro da indústria automotiva
nacional.
Ivan materializa a ideia de Labordireitório e traz dois
exemplos em que se pode ver com muita clareza o trabalho de
co-produção entre ciência, tecnologia e direito. O exemplo do
Juá e da Unitron, como contados pelo autor, mostra como é
possível ampliar o laboratório para os tribunais, a fim de buscar
reforços, num movimento de ir e vir, construindo assim uma
rede com laços mais fortes e resistentes.
40
Os três autores trabalham com o fluxo, usando portas
de entrada e descrevendo o ponto de confluência conformado
pelos Labordireitórios.
41
Aglomerado Direito e SociedadeDaniele Santos
Atualmente tenho me dedicado a entender a relação de
co-produção entre Direito e Ciência. Essa ideia de co-produção
é trazida pelo livro de Sheila Jasanoff – Science at the Bar. A
co-produção trabalha com a ideia de que os Tribunais condu-
zem a massa de suas investigações nas fronteiras do conheci-
mento científico, onde as questões são incertas, contestadas e
fluidas, e não sobre um pano de fundo de um conhecimento
científico largamente estabelecido. Assim, o direito não só inter-
preta os impactos sociais da tecnociência, mas também constrói
o ambiente no qual essa tecnociência adquire significado, utili-
dade e força. Nesse contexto fluido, a fronteira entre decisões
sobre valor (prerrogativas dos juízes) e questões de fato (reser-
vadas aos experts) são construídas, negociadas. Em poucas
palavras e concluindo o ciclo da co-produção, podemos dizer
que a tecnociência cria parâmetros para a aplicação da lei, e
os juízes, ao escolher o parâmetro a ser utilizado, adicionam
mais um fator a ser considerado na estabilização do conceito
em questão.
Em seguida procurei um local no sistema jurídico brasi-
leiro que mostrasse essa co-produção. Encontrei as audiências
públicas do STF. Nessas audiências públicas, a comunidade em
geral e mais especificamente a comunidade científica é chamada
para informar o tribunal sobre questões técnicas em julgamen-
tos de repercussão geral. Nessas audiências vemos o Direito
trabalhando numa zona fluida da atividade científica, onde os
fatos científicos ainda não se estabilizaram. A ciência leva aos
tribunais vários fatos que querem ser estabilizados e as frontei-
ras entre o que é direito e o que é ciência vão se reconstruindo
caso a caso. Quem consegue arregimentar mais aliados e tornar
sua história mais respeitável vence.
42
Para trazer materialidade a essa ideia, busquei o exem-
plo do julgamento referente ao aborto de anencéfalo. A discussão
desse julgamento parte da regra de que aborto é crime contra
a vida (art. 123 da CP). Então como seria possível legalizar o
aborto nos casos de fetos anencéfalos?
A questão é muito bem colocada por um dos expositores
da Audiência Pública:
“Alguém aqui sabe o significado da palavra vida, para
dizer que o feto anencéfalo não a possui? Desde quando ter ou
não ter cérebro significa ter ou não ter vida?”
Um ponto de passagem obrigatório, portanto, é a rede-
finição científica do conceito de vida. Na descrição de alguns
acontecimentos desse julgamento é possível revelar alguns elos
que receberam reforços e outros que tiveram que ceder:
1. O Supremo decidiu por 8 a 2 que aborto de feto sem
cérebro não é crime.
2. A construção utilizada pelo voto vencedor (relator
Min. Marco Aurélio) estabeleceu que o feto anencéfalo é biologi-
camente vivo, por ser formados por células vivas, e juridicamen-
te morto, não gozando de proteção estatal (...) portanto não se
cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é
incompatível com vida.
3. Restou vencida a posição de Ricardo Lewandowsk e
César Peluso, para quem o Supremo não poderia interpretar a
lei com a intenção de “inserir conteúdos”, sob pena de “usurpar”
o poder legislativo, que atua na representação direta do povo.
Para esses Ministros, o aborto de fetos sem cérebro é compará-
vel ao racismo (“extermínio de anencefálos”).
Com base nessas informações e em outras que surgi-
ram, pretendo descrever as interações entre ciência e tecnologia
nesse caso especificamente. São essas interações que mostram
que o sistema legal possui um papel vital de expor as presunções
dos experts, mostrando-os possíveis de mudar valores públicos
43
e expectativas. As culturas do direito e da ciência, dessa forma,
são construídas de maneira conjunta.
44
As leis da Balança e do FGTS: Enredando cargas pesadas e desviando os Fenemês do seu caminho
Eduardo Nazareth Paiva
Mal parafraseando um batido lema marxista, dito
plagiado do colombiano Jorge Eliécer Gaitán (1898-1948):
Vencedores unidos jamais serão vencidos.
Em sua época, dos anos 40 a 60, de alguma forma, a
Fábrica Nacional de Motores, a FNM e seus caminhões Fene-
mês, na sua tão polêmica tradução tecnológica do que era italia-
no em brasileiro e do que era brasileiro em italiano, participou
da construção da identidade nacional brasileira, no seu viés de
busca da autonomia tecnológica no setor automotivo. De ante-
mão, considero que não havia incoerência nesta mistura do que
devia ser “brasileiro” em “italiano”, e vice-versa, na medida em
que os italianos eram a maior colônia e o maior quantitativo
de descendentes diretos em nosso país. Afinal, é senso comum
que os italianos ajudaram a construir o que consideramos ser o
Brasil, ou a cara dele.
Entretanto, isso não
se fez sem controvérsias. Em
tempos de “Repórter Esso”,
a FNM e seu “João Bobo”
batiam de frente com as Leis
de Mercado de Smith, na
medida em que ela não aten-
dia, pelo menos em primeira
instância, nem à sua Lei da
Acumulação - objetivo dos
capitalistas em acumular
os ganhos (na FNM o lucro
era parte distribuído entre
Captura de trecho do Filme A CAMINHO
DA EMANCIPAÇÃO (1960?)
45
os funcionários e o restante reinvestido) e nem à sua Lei da
População - os trabalhadores, como qualquer outra mercado-
ria, podem ser produzidos de acordo com a demanda (diferente
do conceito de fábrica-escola no qual a FNM tinha como meta
formar mão-de-obra para as necessidades nacionais).
Esse contexto e os resultados do embate entre os liberais
e os desenvolvimentistas (nacionalistas ou não) propiciaram um
clima de animosidades à sua existência e aos seus produtos,
com destaque para o seu caminhão Fenemê.
Um especial destaque merece a trajetória de seu modelo
D-11000 Variante 4 (V-4). Em geral este modelo era chamado de
toco pelos caminhoneiros. Este Fenemê tinha também o apelido
de João Bobo, lendário em sua época, pela reputação de ser um
caminhão extremamente robusto, econômico e adequado à
realidade das estradas brasileiras. Sua mitificação se deu atra-
vés da lenda de ele transportava, sem que ele “reclamasse”, tudo
que lhe colocassem em cima. O João Bobo não é destaque na
literatura brasileira especializada do setor automotivo, embora
conste de publicações estrangeiras
como podemos ver em LASTWA-
GEN (2003, p.46). Sucesso de
vendas em sua época, com fila de
compradores junto às concessio-
nárias, sua trajetória não teria um
fim assim tão legal, ou melhor, de
forma quase que paradoxal as leis
acabariam determinando o fim de
seu apogeu. Mas como?
Em LATOUR (2000, p.
248-250) encontramos uma histó-
ria (uma colagem para explicar a
importância de se tornar um ponto
de passagem obrigatório nas redes
46
de C&T) que apresenta a inepta saga de um emblemático cien-
tista brasileiro de nome João da Cruz, por coincidência xará do
João Bobo, mais famoso caminhão Fenemê produzido pela FNM.
Nesta história encontraremos dramáticas analogias. Vejamos:
Essa é, realmente, uma história triste, porém mais
frequente que as histórias de sucesso [...] João não consegue criar
uma especialidade, por mais concessões que faça. Sua oficina
acaba não ficando no centro de coisa alguma [...] transformando-
se em algo obsoleto, num protótipo sem significado [...] Em vez de
ser capaz de estabelecer-se como um laboratório que se tornasse
ponto de passagem obrigatório, para um sem-número de pesso-
as, a oficina do João acaba sendo um lugar por onde ninguém
precisa mais passar, não conseguindo se colar entre os objetivos
dos outros e a realização desses objetivos; e isso significa [...] que
João não interessa a mais ninguém.
E, assim como o João da Cruz, a FNM acabou fazen-
do parte, sendo propriedade e responsabilidade do passado,
com cada vez menos conexões com a atualidade. Na lingua-
gem popular “ela é algo que não dá futuro a ninguém”. Estes
aspectos podem ser identificados e consubstanciados nos docu-
mentos que, atualmente, estão na superfície dos fatos sobre
este empreendimento industrial. Eles buscam associá-lo a uma
coisa negativa, fracassada, inconveniente para o seu país e
para o seu povo. Enfim, atualmente, o porta-voz do destino, o
presente, no seu cerne, no seu centro, no foco de sua visão críti-
ca sobre a FNM a considera como um empreendimento pífio,
como um erro, como uma coisa torta, como algo contaminado
pela política, pelo protecionismo estatal, pela falta de eficiên-
cia, pela ausência de uma missão estratégica que a justificasse
plenamente no passado, no presente e no futuro.
Neste trabalho serão destacados dois movimentos de
enredamento de interesses que tiveram efeitos bastante nega-
tivos para a viabilidade da FNM em sua trajetória empresarial.
47
Juridicamente eles se formalizaram através de leis.
Um desses movimentos será denominado aqui sucinta-
mente de “Lei da Balança”. Assim era que o Decreto-Lei nº 49,
de 18 de novembro de 1966 regulava o limite máximo de carga
por eixo para o tráfego nas vias públicas de veículos ou combi-
nações de veículos e dava outras providências. As leis dessa
natureza, que regulamentavam as cargas máximas admissíveis
por eixo para caminhões, se encontravam sossegadas e sem
grandes atualizações ou fiscalizações. Foi então que elas sofre-
ram um processo de “modernização”, visando a “proteção de
nossas estradas”. Para que a lei dessa vez fosse efetiva e “defi-
nitivamente” eficaz foram construídos e equipados postos de
pesagem espalhados pelas principais estradas brasileiras.
Cena típica, que lentamente foi se tornando rara no final dos anos 60 e início
dos 70: um caminhão superpesado fabricado pela FNM sendo fiscalizado em
uma das muitas balanças federais espalhadas pelo Brasil. Cumpra-se a lei!
48
(Revista Transporte Moderno – Julho de 1971)
(Revista Transporte Moderno – Julho de 1971)
Seguindo essa tocada modernizante, o Congresso Nacio-
nal elaborou, votou e promulgou o Decreto-Lei nº 62.127 de 16
de Janeiro de 1968, mais uma atualização da Lei da Balança.
De um lado a lei era ainda mais rígida em relação aos cami-
nhões superpesados, segmento que a FNM era líder de merca-
do. Por outro lado, a lei era adequada para os caminhões leves
e médios, nichos da Mercedes-Benz do Brasil (MBB). Coincidên-
cia? Esses números deveriam ser considerados pela fria técni-
ca? As leis e a justiça andam juntas?
Este processo de tramitação da Lei da Balança foi de
grande impacto para a FNM e para a MBB. Segundo se ouviu de
alguns fenemistas, ex-funcionários da FNM que se encontram
anualmente em almoços de confraternização (FENEMISTAS,
2002-2012), se comentava nos bastidores da política de então
que a Lei da Balança foi arquitetada por Guilherme Borghoff,
acionista majoritário de uma empresa do mesmo nome. Borgho-
ff teria sido o autor intelectual do projeto de lei.
O que o teria levado a defender esta causa?
49
Peça publicitária da Empresa Borghoff, desde então preocupada com os
grandes lucros (Extraída da Revista Automóveis de 1954. Cortesia de
Michael Swoboda).
Kairos, filho de Chronos e significado em grego de “momento oportuno”,
inclinando a balança a seu favor. Recorte da capa do livro de ATWILL(2009)
Não encontramos nenhum documento que explicasse
as razões do altruísmo deste grande cidadão brasileiro, a não
ser a sua grande preocupação com a manutenção das estradas
brasileiras. Entretanto, por uma estranha coincidência “tecno-
lógica”, o resultado final desta lei acabou sendo, absolutamen-
te adequado aos caminhões fabricados pela Mercedes-Benz e
50
bastante prejudicial a um dos principais modelos produzidos
pela FNM, o D-11000 Variante 4 (V-4, alcunhado de João Bobo
ou ainda o Fenemê toco, como era conhecido entre os caminho-
neiros um dos modelos líderes de venda).
Este processo, imaginariamente “democrático”, desen-
volvido em plena ditadura militar, teve como principais conse-
quências as seguintes materialidades:
O Brasil ganhou um “moderno” sistema de classificação
de cargas máximas admissíveis para o tráfego de caminhões
pelas suas estradas, que assim foram potencialmente preser-
vadas e equipadas quantitativa e qualitativamente com moder-
nas balanças espalhadas estrategicamente por todo o território
nacional.
O Brasil ganhou a confiança da Mercedes Benz do Brasil
que, diante das perspectivas de mercado para os seus produtos,
ampliou, em muito, a sua capacidade produtiva.
A FNM, já combalida pelas recentes crises institucionais,
recebeu mais um duro golpe na sua difícil trajetória de viabili-
dade empresarial. A partir da Lei da Balança, ela precisou rever
suas estratégias produtivas, sendo obrigada a lançar a Variante
12, o modelo D-11000 V-12, o D-11000 V-13 e posteriormente
o V10 e V17, todas com 3º eixo projetado e instalado na própria
fábrica, como uma estratégia técnica e comercial para tentar
não perder o seu, pelo menos até então, fiel consumidor de seus
produtos, que se via atemorizado pela lei em adquirir o pesado
FNM toco. Assim, o João Bobo passou a ser uma espécie de
João Visado. Alvo preferido pela Polícia Rodoviária Federal (PRF)
em suas mais de setenta balanças espalhadas pelas principais
rodovias federais brasileiras.
Efetivamente, com a Lei da Balança e as suas balan-
ças, o João Bobo que era um sucesso até então, já não pode-
ria levar tudo o que lhe colocassem em cima. Os seus donos
e seus potenciais compradores ficaram muito assustados com
51
os boatos de que o caminhão Fenemê seria, preferivelmente,
parado pela PRF e, para o bem da nação, multado em alguma
das diversas balanças espalhadas pelas estradas de todo o país.
O mercado dos consumidores de caminhões ficou “nervoso”.
Quem é brasileiro “nato”, isolado dos círculos de poder, sabe
bem o que é esta sensação de insegurança e impotência diante
das leis e das fiscalizações. Segundo o dito popular consolidado
naqueles difíceis tempos da ditadura militar: “diante de uma
autoridade é aconselhável não reagir”. Das dezenas de balan-
ças instaladas na época das controvérsias da Lei da Balança,
apenas algumas poucas unidades continuaram em operação,
fruto de crônicas crises de escassez recursos de toda a ordem.
http://www.dnit.gov.br: Última atualização: abril/2004
Postos de Pesagem Quantidade
Postos Paralisados ou Inoperantes 62
Postos em Operação 9
Postos em operacionalização 4
TOTAL 75
Situação dos Postos de Pesagem das Estradas Brasileiras
(http://www.dnit.gov.br: Última atualização: abril/2004)
Na medida em que a FNM estatal foi parando, com ela
foram parando as balanças também. Curiosamente, por outra
estranha coincidência “tecnológica”. Extinta a FNM, novos produ-
tos e novos valores de cargas máximas foram admitidos, a Merce-
des-Benz aos poucos foi conquistando a liderança do segmento dos
caminhões pesados, agora vistos como de alto valor estratégico.
52
No caso em questão, pode-se observar que a administra-
ção pública brasileira encontrava-se voltada para determinados
interesses que não se apresentavam nos planos mais visíveis,
naqueles disponíveis para o debate. O que estava disponível
para o debate era a preservação das estradas brasileiras e não
o interesse de determinadas empresas. O Brasil e suas estradas
estavam em primeiro plano.
Mas, como se conseguiu fazer estas simplificações?
Sendo mais pragmático, nos tempos das controvér-
sias da Lei da Balança, num primeiro plano, era escancarada
a modalidade efetiva defendida, ou seja, tudo deveria ser feito
pela preservação das estradas brasileiras e pela modernização
do país.
Num segundo plano, Guilherme Borghoff, conduzia o
lobby da Mercedes-Benz para que a lei, uma das mais podero-
sas não-humanas da modernidade democrática, fosse constru-
ída adequadamente. Enquanto isso, o governo Castello Branco
se encarregaria de preparar o terreno da ágora liberal para o
livre fluir destas discussões, mesmo que para isso fosse neces-
sário o uso de estratégias liberais, do tipo peso pesado.
No nível do executivo federal, o Ministro do Planejamen-
to e Coordenação Econômica, Roberto Campos, articuladamente
com o Ministro da Fazenda, Otávio Gouvêa de Bulhões criariam
o FGTS para resolver o “anacrônico” problema da estabilida-
de no emprego e os “legalistas” passivos trabalhistas da FNM,
que desinteressavam o capital privado internacional na aquisi-
ção da empresa, inviabilizando sua privatização. Para desviar
o olhar dos cidadãos brasileiros eles colaram ao FGTS o maior
plano habitacional brasileiro até então, que culminou com a
criação do Banco Nacional da Habitação (BNH), viabilizado com
os recursos do FGTS. (CAMPOS, 2001, p. 713-715).
Como não foi possível cumprir toda a agenda liberal no
governo Castello Branco, no governo seguinte, de Costa e Silva,
53
o seu Ministro da Indústria e Comércio, Edmundo Macedo se
encarregaria de afunilar o processo de venda ao capital estran-
geiro da FNM. Sua dedicação foi tal que chegou ao ponto de
abrir o Ministério num domingo, para junto com o Ministro da
Fazenda, Delfim Netto, agilizar a toque de caixa (preta) a venda
da FNM. Esse processo foi alvo de uma Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) destinada a investigar as causas da venda
da FNM (CPI, 1968). Esta CPI foi encerrada sem relatório final,
sem o seu presidente, sem o seu vice-presidente. Ambos foram
cassados pelo Ato Institucional n º 5 (AI-5). Do ponto de vista
dos vencedores, resolvida a questão da Lei da Balança, Guilher-
me Borghoff, Otávio Gouvêa de Bulhões, Roberto Campos e
Edmundo Macedo revezaram-se em altos postos na Mercedes-
-Benz do Brasil, frequentando desde o seu Conselho de Admi-
nistração até os cargos de Diretores Presidentes da montadora.
A Mercedes-Benz, depois da extinção da FNM, viria a se
tornar líder de mercado, inclusive dos caminhões pesados. De
acordo com a lei de mercado, respeitando a lei da balança e, prin-
cipalmente, graças as suas excelentes administrações, eminen-
temente privadas, ainda que constituídas de diversos homens
públicos, efetivamente, os maiores responsáveis por mais este
caso de sucesso empresarial. Já em relação às nossas estradas, o
que dizer de sua preservação? Isto passou a ser outro problema,
agora associado à necessidade de que as próprias estradas sejam
privatizadas, sob a forma de serviços concessionários privados,
pois a administração pública tem se demonstrado incompetente
para gerir nossas rodovias. Em relatório divulgado pela Confe-
deração Nacional do Transporte no dia 6 de Outubro de 2004, e
que recebeu ampla divulgação na imprensa, é apresentado um
diagnóstico que indica que 74,7% das rodovias brasileiras se
encontravam em estado deficiente, ruim ou péssimo. Parece que
então o que se encontra no primeiro plano da discussão é o mote
das chamadas Parcerias Público-Privadas (PPP) e não mais os
54
caminhões e suas cargas. Novas simplificações e novas modali-
dades em curso. Estas coexistências, no passado e no presente,
dificilmente se constituirão em algo que possa ser considerado
eminentemente documental. O trabalho não tem maiores defesas
que não o testemunho de alguns e alguns traços de evidência
desses jogos de interesses, todos configurados e descritos como
redes, repletas de alianças, de traições, de traduções, de transla-
ções, de conexões e de materialidades. A historicidade não neces-
sariamente é documental.
Caminhão Fenemê D-11000 V-12 carregando um automóvel JK, depois
FNM 2150, ambos propriedades de Miklos Stammer (Foto cortesia de José
Carlos Reinert). O caminhão mudou para preservar as estradas brasileiras e
o automóvel mudou de nome para preservar o regime militar. A FNM, seria
vendida em 1968, sairia de cena e entraria na História (VARGAS (1995,
p.371, vol. II).
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FNM produzido e dirigido por Jean Manzon (10 min), preto e
branco, português e inglês. Manzon Comunicações Visuais Ltda.
Rio de Janeiro. [1960?].
55
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press.cornell.edu/Resources/titles/80140100017060/
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CAMPOS, R. O. A lanterna na popa: memórias / Roberto
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Brasília. 1968.
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LASTWAGEN, J. Bernd Regenberg. Schilingenkamp.
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LATOUR, B. Ciência em Ação: Como seguir cientistas
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Editora UNESP. São Paulo. 2000.
VARGAS, G. Diário. 2 Volumes. Edição Leda Soares.
Siciliano e Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. 1995.
56
LabordireitóriosIvan da Costa Marques
A ideia de “labordireitório” parte de uma complexida-
de simplificada. A complexidade está na constatação de que
“rizoma” ou “mil platôs”5 são metáforas mais adequadas do que
arborescências e linearidades para entendermos a genealogia
(ou a história) dos objetos tecno-científicos. Esta complexida-
de será simplificada porque aqui focalizaremos nosso olhar nas
ligações entre laboratórios e tribunais na construção dos obje-
tos tecno-científicos. Vamos argumentar que os laboratórios e
os tribunais não são espaços tão disjuntos ou de fronteiras tão
marcadas quanto a tradição moderna quis fazer crer, mas espa-
ços que se comunicam, se interpenetram e se co-constroem.
Não vamos aqui adentrar o campo das relações entre
ciência, tecnologia e direito, ou mesmo descrever extensamente
os dois casos que traremos como exemplos, o que seria impos-
sível fazer em poucos minutos, mas temos a intenção de indicar
tipos de portas de entrada deste campo que poderão ser explo-
radas por uma comunidade instrumentalizada pela abordagem
ator-rede.
Primeiro caso: Juá6
Desde que se tem notícia o Juá é uma planta que tem
propriedades que tornam a sua utilização eficaz nos cuidados
higiênicos. Usar a casca do tronco do Juá para escovar os dentes,
por exemplo, faz (ou fazia) parte da prática popular local. Este
conhecimento popular foi provavelmente herdado dos habitan-
tes nativos anteriores da região e hoje circula na Internet. Pó de
Juá é vendido em pequenos sacos nos supermercados. Peque-
5 Ver a este respeito (Deleuze e Guattari, 1995)
6 (Bossy e Marques, 2008)
57
nas empresas locais usam o Juá como um ingrediente para
obter produtos que têm os mesmo efeitos salutares, assim elas
afirmam, que o Juá em seu estado natural. Estas empresas,
no entanto, anunciam seus produtos sem reivindicar nenhum
tipo de autoria sobre o conhecimento que legitima o uso de seus
produtos. De maneira muito semelhante aos primeiros fatos das
ciências modernas, o conhecimento popular circula na ausên-
cia de autoria ou limites legais para seu uso.
No caso do Juá, a Unilever – uma empresa com sede em
Rotterdam – inaugura uma diferença.7 Ela anuncia as proprie-
dades higiênicas de seu produto – o creme dental Sorriso – como
fatos científicos provados em laboratório. Cientistas profissio-
nais assumem tipicamente o
papel de porta-vozes do Juá. O
conhecimento sobre o Juá, agora
diferente, denominado Ziziphus
Joazeiro Mart, é expresso em
artigos científicos, classificado e
mapeado. O conhecimento cessa
de pertencer a todos e coloca-se
sob a autoridade de entidades
(pessoas ou instituições) que
pleiteiam controle e propriedade
sobre o Juá e suas “moléculas
ativas”. Os direitos de controle e
propriedade entram em cena
através do assim chamado
mecanismo secundário de reco-
nhecimento e atribuição de mérito e tornam-se cada vez mais
robustos pelos índices de citação de artigos, obtenção de paten-
7 “Confirmamos que a erva possui mesmo bom poder de limpeza”, afirma Mônica Berto, gerente de desenvolvimento de produtos da empresa. Revista Veja, 30/06/1999.
58
tes, copyrights, etc. A autoridade assim constituída inclui o
direito de decidir o que é uma cópia e o que pode ser considera-
do como invenção original legítima. Ziziphus joazeiro Mart, ao
contrário do Juá, torna-se um ingrediente de produtos que
podem adquirir qualidade certificada, proteção contra “pirata-
ria” e até retornar à população que o conhecia antes dele ter-se
tornado diferente com um “grau mais alto de confiabilidade”.
Segundo caso: UnitronNa década de 1980 a Unitron, uma empresa de São
Paulo, afirmou ter realizado a “engenharia reversa” do micro-
computador Macintosh da Apple, provocando uma contro-
vérsia que envolveu não só a Apple e a própria Unitron, mas
também outras empresas brasileiras e os governos, dos EUA e
do Brasil.8 Há duas maneiras de se produzir clones de computa-
dores. Primeiro, copiando o modelo original; e, segundo, através
da engenharia reversa. Por meio desta, é possível duplicar a
funcionalidade de um sistema de computador sem propriamen-
te copiá-lo.9 Segundo todas as evidências, a Apple não tinha
8 (Marques, 2003, 2005a; 2005b, 2008)
9 De acordo com o Comitê de Propriedade Intelectual nos EUA do IEEE (IEE-E-USA’s Intellectual Property Committee), “o termo ‘engenharia reversa’ signi-fica a descoberta, por meio de técnicas de engenharia, das ideias e princípios envolvidos no funcionamento de uma máquina, um programa de computador ou outro dispositivo tecnológico. Os engenheiros utilizam esta informação para muitos propósitos, inclusive fazendo outros produtos entrarem em inter--operação com o produto visado no processo de engenharia reversa. Os enge-nheiros também usam esta informação com o propósito de projetar produtos concorrentes que não são descritos de forma substancialmente semelhantes, assim como para descobrir assuntos e ideias patenteáveis que não são reve-ladas de outra forma na documentação fornecida com o produto pelo fabricante original. Nós acreditamos ainda que a leitura legal, análise ou decomposição da linguagem de máquina é uma técnica de engenharia reversa pela qual um engenheiro pode reconstruir as ideia de um programa de computador.”“The term “reverse engineering” means the discovery by engineering tech-niques of the underlying ideas and principles that govern how a machine,
59
protegido seus direitos no Brasil. Nestas condições, a Unitron
não havia ofendido nenhuma lei brasileira com seu clone do
Mac 512. O governo brasileiro viu-se na contingência de apro-
var o projeto Unitron. Mas este fato era inaceitável para a Apple
e para o governo americano, que em retaliação ameaçou impor
barreiras comerciais às exportações de empresas brasileiras
para os Estados Unidos.
Dado o impasse, na rede de alianças, disputas e contro-
vérsias sobre a política brasileira para a indústria de computa-
dores, algo deveria ceder. A “legislação do software” no Brasil
era o elo mais fraco nesta rede e cedeu. Em 18 de dezembro de
1987, debaixo da forte pressão política e econômica por parte
dos Estados Unidos, foi aprovada uma lei específica que passou
a regulamentar o setor de software.10 Em 22 de janeiro de 1988,
foi feito um adendo ao relatório referente à parte do projeto da
Unitron relativa ao software.11 Segundo este adendo, a aprova-
ção estaria subordinada à apresentação, por parte da Unitron,
de maiores informações e, possivelmente, de desenvolvimentos
adicionais. A rede e, junto com ela, o enquadramento legal da
Unitron modificaram-se.
Daí por diante, a Unitron começou a enfrentar cada vez
mais dificuldades. Em 21 de março de 1988, a Secretaria Espe-
computer program or other technological device works. Engineers use this information for many purposes, including making other products interoperate with the target product that is the subject of the reverse engineering. Engi-neers also use this information for the purpose of designing competing products that are not substantially similar in expression, as well as to discover paten-table subject matter and ideas not otherwise disclosed in the literature pro-vided with the product by the originator. We further believe that lawful reading, analysis, or disassembly of machine language is a reverse engineering tech-nique by which an engineer can reconstruct the ideas of a computer program.” http://www.ieeeusa.org/forum/POSITIONS/reverse.html on April 11, 2004.
10 Lei nº 7646, conhecida como Lei de Software.
11 Adendo ao Relatório Técnico de 11 de novembro de 1987, datado de 22-01-1988, relativo ao processo 07824-87-4
60
cial de informática (SEI) indeferiu o projeto da Unitron, alegan-
do que “a Unitron havia começado a comercialização do produto
antes de sua aprovação final.” Entretanto o novo referencial legal
não elevou os custos da engenharia reversa o suficiente para
que a Unitron desistisse de sua iniciativa. Ao invés de desistir, a
Unitron abandonou o modelo 512 e decidiu estudar/fazer a enge-
nharia reversa do Mac 1024, o modelo seguinte da Apple.
Pode-se dizer que a Unitron anexou um escritório de
advocacia estendendo o seu laboratório no sentido estrito. Em
29 de março de 1988, ela protocolou na SEI um novo proje-
to para a fabricação de um clone do Macintosh, denominado
Unitron 1024. Em poucos meses este laboratório estendido
havia refeito as contas, observando atentamente o enquadra-
mento legal e decidindo cuidadosamente o que deveria ser feito
com base nos custos de desenvolvimento e engenharia reversa.
Em agosto de 1988, a Unitron havia mudado tanto o gabine-
te externo quanto as características internas do novo modelo.
Após uma nova rodada de contatos, negociações e contratos
com instituições governamentais, universidades e uma compa-
nhia americana, a Unitron alegou ter completado o projeto de
um clone do Macintosh mediante o uso de técnicas de engenha-
ria reversa, tornado sua “história suficientemente ‘respeitável’
para se ir a julgamento com ela, e isto era tudo que era preciso.”12
Assim, quando em 1 de agosto de 1988, a SEI indeferiu
a aprovação do Unitron 1024 com base em “deficiências técni-
cas”, a Unitron apelou em 10 de agosto de 1988 ao CONIN13
para que revisse a decisão da SEI, afirmando que seu modelo
1024 poderia “ser legitimamente aprovado no Brasil ou em qual-
quer outro país, pois era resultado de um inestimável trabalho de
12 (Bowker, 1994:124) ênfase no original.
13 Naquela época o CONIN – Conselho Nacional de Informática – era um órgão que, além de outras atribuições, funcionava como um tribunal de apelação com relação às decisões tomadas pela SEI.
61
engenharia reversa da máquina original americana.”14 O labora-
tório estendido permitiu que a Unitron se mostrasse confiante
diante de um tribunal de recursos.
No entanto, as decisões do CONIN eram fortemente
enviesadas pelos interesses governamentais, pois a representa-
ção no CONIN era composta de oito delegados de ministros do
governo federal e oito representantes independentes da socie-
dade civil.15 Em 19 de dezembro de 1988 o CONIN manteve a
decisão da SEI em uma votação de oito a sete. Todos os sete
representantes independentes presentes à reunião votaram
a favor da Unitron.16 Todos os ministros votaram a favor da
SEI com exceção do Ministro da Aeronáutica, que se absteve.17
Geraldo Azevedo Antunes, o principal acionista da Unitron,
declarou que iria mover uma ação contra a decisão do CONIN
nos tribunais do poder judiciário, mas não fez isto. A Unitron
fechou.
ComentárioA apropriação feita pela Unilever com o apoio da ciência
pretende reforçar suas vendas, mas não só isso. Ela também
poderá ir ao laboratório como um espaço onde se fortificará
para, quem sabe, um dia sair de lá aliada à ciência para enfren-
tar e vencer seus competidores nos tribunais.
No caso da Unitron, seu loco é o tribunal e ela vai ao
laboratório na estrita medida de sua necessidade de construir e
colher os elementos de uma história suficientemente respeitável
14 Apelo ao CONIN por parte da UNITRON para reavaliação da decisão da SEI de indeferir o projeto de fabricação de um clone do Macintosh no Brasil, datado de 10 de agosto de 1988, p.11.
15 No caso de empate, o Ministro da Ciência e da Tecnologia, presidente do CONIN, tinha o voto de Minerva.
16 O representante da Associação de Profissionais de Processamento de Dados – APPD – faltou à reunião.
17 Jornal do Commercio, 20 de dezembro de 1988.
62
perante o tribunal.
Não obstante a lógica das táticas, das estratégias e
de seus possíveis caminhos diversos e até invertidos, as duas
empresas procuram estabilizar seus produtos atuando no
labordireitório.
BibliografiaBossy, M. J. e I. D. C. Marques. Sameness, differ-
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mechamism”. 4S EASST Joint Conference (Rotterdam 2013).
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a inovação tecnológica em condições de desigualdade global,
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tecnológica no Brasil. In: A. D. Costa, A. S. Fernandes, et al
(Ed.). Empresas, empresários e desenvolvimento econômico no
Brasil. São Paulo: Editora Hucitec, 2008. O caso da Unitron e
condições de inovação tecnológica no Brasil, p.156-177.
64
DESAFIOS TEÓRICOS DA ARTICULAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO CTS E TEORIA ATOR REDE
Edson Jacinski
João Henrique Ávila de Barros
André Luis Mattedi Dias
Cidoval Sousa
Ana Lúcia Lage
Este aglomerado se constitui a partir da necessidade de
buscar identificar/debater algumas aproximações e distancia-
mentos entre Educaçao Ciência Tecnologia e Sociedade(ECTS)
e Teoria Ator Rede (TAR). Tal objetivo se faz a partir do reco-
nhecimento da heterogeneidade e polissemia do campo emergen-
te Educação CTS no cenário brasileiro/latino-americano e por
outro lado a percepção de sua dificuldade/lentidão em estabele-
cer perspectivas e práticas pedagógicas que contribuam de forma
mais efetiva para superar abordagens convencionais da Educa-
ção científica e Tecnológica calcadas em visões dicotômicas ,
deterministas (determinismo social ou científico/tecnológico),
neutras, lineares das relações Ciência Tecnologia e Sociedade. De
outro lado, a TAR se apresenta como uma possibilidade teórica/
metodológica inovadora e radical no campo dos Estudos Sociais
da Ciência e Tecnologia para se pensar e problematizar as rela-
ções Ciência Tecnologia e Sociedade enquanto indissociáveis –
“tecido sem costuras”, propondo reconfigurações ontológicas,
epistemológicas, metodológicas com significativas repercussões
para a ECTS que podem potencializar outros olhares sobre ques-
tões curriculares, didático-pedagógicas, cidadania, democracia
(democracia sociotécnica) e práticas educacionais. Desse modo,
esse aglomerado intenta trazer à tona, a partir de pesquisas e
práticas singulares, alguns desses desafios mais prementes.
Palavras-chave: Educação Ciência Tecnologia e Socie-
dade, Teoria Ator-Rede, determinismo científico e tecnológico.
65
André Luis Mattedi DiasAs sociedades contemporâneas, seus atores e suas
redes, como temas da educação universitária inicial: uma expe-
riência pedagógica (mit)disciplinar em redes de produção de
conhecimento baseada em TICs.
O projeto pedagógico dos bacharelados interdisciplina-
res em Artes, C&T, Humanidades e Saúde do Instituto de Huma-
nidades, Artes e Ciências tem no componente Estudos sobre a
Contemporaneidade um dos seus destaques curriculares. Neste
componente, o programa se organiza em torno de temas das
sociedades contemporâneas, como a globalização, as culturas,
as políticas e os poderes, os conhecimentos tecnocientíficos, as
mídias, com destaque para as novas formas de organização em
rede baseadas nas TICs. Contudo, ao mesmo tempo em que são
temas, as redes e as TICs também devem ser a base da peda-
gogia adotada, da metodologia e da didática. Em outras pala-
vras, levaremos para a discussão uma experiência pedagógica
de educação universitária onde as novas TICs formam a base
para a produção de conhecimento sobre as sociedades contem-
porâneas, que também se constituem com base em redes tecno-
científicas de conhecimento em rede.
Edson JacinskiEste resumo traz à tona, a partir da tese de doutora-
do (JACINSKI, 2012), alguns desafios teóricos-metodológicos
encontrados para desenvolver uma pesquisa a partir de uma
perspectiva envolvendo a Educação CTS e a TAR. Especificamen-
te analisamos como dois cursos de Engenharia da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), através da elaboração
e implementação de seus Projetos Políticos Pedagógicos, estão
respondendo às exigências sócio-educacionais preconizadas
pelas Diretrizes Curriculares Nacionais de Engenharia – DCNs
- (Brasil, 2002b). Estas, entre outros aspectos, estabeleceram
66
a necessidade da construção de outra identidade profissional
mais sintonizada com os desafios políticos, econômicos, cultu-
rais e ambientais da realidade brasileira. Como principal hipóte-
se de trabalho, entendemos que a construção curricular de um
novo perfil profissional de engenheiro é um processo de nego-
ciação entre diferentes atores, demandando outras formas de se
compreender as relações entre Ciência Tecnologia e Sociedade
enquanto dimensões inseparáveis, a exigir cada vez mais pers-
pectivas inclusivas, participativas e dialógicas nos processos de
produção e inovação tecnológica. Para enfrentar tais questões
buscamos articular um quadro conceitual fundado nos Estudos
Sociais da Tecnologia e Estudos latino-americanos de Tecno-
logia Social com uma abordagem construtivista de currículo.
Em termos metodológicos, privilegiamos o enfoque discursivo
dos Estudos da Linguagem do Circulo de Bakhtin. Tal estu-
do, realizado a partir de fontes documentais e orais (entrevistas
com professores e alunos formandos), mostrou uma significati-
va tensão dialógica que paradoxalmente estimula a necessida-
de de uma formação integrada, interdisciplinar e relacionadas
às necessidades sociais locais e regionais e, de outro, manteve
uma significativa perspectiva determinista tecnológica, tradu-
zida em organizações curriculares dicotômicas e disciplinares
que separam aspectos técnicos e sociais da formação, priorizan-
do as primeiras.
Palavras-chave: Tecnologia e Sociedade, Educação
Tecnológica, currículo
João Henrique Ávila de BarrosEm meu trabalho de doutorado, quero compreender como
os textos do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) medeiam
a produção de sentidos sobre os conhecimentos de ciências da
natureza. Para isso tenho procurado articular contribuições da
análise de discurso de escola francesa e epistemologia. A propos-
67
ta do ENEM procura seguir as orientações curriculares oficiais
brasileiras para o ensino médio, e é possível encontrar nessa
proposta aproximações com perspectivas de educação CTS. Para
isso, a elaboração itens do exame, em geral, deve tomar como
ponto de partida uma situação-problema interdisciplinar e contex-
tualizada, em vez de um típico problema disciplinar mais restri-
to a formações discursivas das disciplinas escolares da área de
ciências da natureza (física, química e biologia). Mas, sendo um
exame de desempenho do estudante, o ENEM propõe itens de
múltipla escolha, e para decidir entre elas entram em jogo as
formações discursivas das disciplinas escolares como determi-
nantes daquilo que pode e deve ser dito, em relação à situação
problema. A TAR tem contribuído na tese no reconhecimento do
ENEM como artefato sociotécnico que traduz e desloca (translate)
os sentidos da educação em ciências da natureza, em particular,
na análise dos itens do ENEM quanto ao sentido dessas ciências
nas situações-problema. Quero mostrar que um ensino tradicio-
nal (disciplinar, descontextualizado, A Ciência) é traduzido nos
termos de uma nova proposta (interdisciplinar, contextualizada,
as ciências), permanecendo o mesmo “em outras palavras” mas
também é deslocado de onde estava estabelecido e garantido (na
disciplina) para um lugar em que está envolto em incertezas (no
contexto); no sentido inverso uma nova proposta de ensino é
traduzida nos termos de um ensino tradicional e deslocada de
onde gerava questões abertas para onde elas já estão respondi-
das. Acreditamos que é possível, por meio das compreensões que
a TAR oferece, “tirar proveito” dessa aparente contradição que
apontamos no ENEM para aprofundarmos a compreensão das
dificuldades de promover uma educação CTS na escola.
A REDE COMO ESPAÇO MULTIRREFERENCIAL DE
APRENDIZAGEM
Construção do conhecimento na produção de inovação
em TIC em um Instituto de Ciência e Tecnologia brasileiro.
68
Ana Lucia LageA presente investigação toma como objeto a dinâmica
dos processos de construção de conhecimento por uma comu-
nidade epistêmica que produz inovação. Debruça-se sobre os
aspectos contextuais subjacentes às práticas de colaboração
em rede, que se articulam no cotidiano de produção de solu-
ções de inovação para dispositivos móveis por uma equipe de
projetos em um Instituto de Ciência e Tecnologia credenciado
pelo MCT&I para atividades de P&D em TIC no escopo da Lei de
Informática brasileira. Metodologicamente, adota-se uma abor-
dagem etnográfica de 18 meses e observa-se no campo uma
dinâmica que transcende o contexto profissional e se estende
ao âmbito acadêmico e a espaços virtuais, constituindo um
lócus sociocultural onde se articulam intencionalmente ativi-
dades intensivas de aprendizagem e trabalho, de construção de
conhecimento e produção de inovação. As atividades dos parti-
cipantes se dão, simultaneamente, presencialmente e em espa-
ços virtuais na internet, e são enriquecidas mutuamente pela
interação dos sujeitos e pela circulação de idéias entre diferen-
tes espaços, em uma dinâmica que desafia as fronteiras entre
comunidades, concretas e virtuais, e entre espaços de aprendi-
zagem e trabalho. Uma cartografia e análise do campo, utilizan-
do o software Gephi, permite a identificação de sua forma de
organização como uma complexa rede de redes de colaboração
(profissional, acadêmica, de coautoria, virtual). Dentro de uma
perspectiva epistemológica de visada multirreferencial – a da
Análise Cognitiva –, se realizam múltiplas análises. Buscam-se
apreensões dos processos de construção de conhecimento desta
comunidade, de suas estratégias de interação e aprendizagem,
a partir da concepção de cognição social. Na busca de compre-
ensão do papel da mediação tecnológica nos seus processos de
construção de conhecimento, são identificadas as maquinarias
de conhecimento específicas da cultura epistêmica de produção
69
de inovação em TIC colocadas em movimento por esta comu-
nidade. Toma-se então o referencial da teoria ator-rede em um
relato de uma inovação, da sua concepção à sua consolidação
em patente e artigo científico. A análise de registros das ativi-
dades dos sujeitos e de entrevistas realizadas, permite identi-
ficar aspectos da mediação tecnológica da web emergentes do
campo. Identifica-se a web, seus espaços virtuais, seus dispo-
sitivos tecnológicos, como elementos estruturantes e poten-
cialmente constitutivos dos processos cognitivos dos membros
desta comunidade, ao tempo em que se constata que os proces-
sos de construção de conhecimento, de produção de inovação
e de constituição dos sujeitos, de suas subjetividades ocorrem
simultaneamente e se referem mutuamente. Identifica-se assim
um complexo de associações interrelacionadas que propiciam a
construção de conhecimento, que não se reduz, não é limitado a
quaisquer dos elementos em rede – ambientes, artefatos, sujei-
tos, instituições – e que se enriquece e enriquece tais elementos,
enquanto os extrapola. Enquanto esta pesquisa dá visibilida-
de a aspectos relevantes das práticas epistêmicas no campo de
P&D em TIC, a elucidação de tais processos de construção de
conhecimento delineia a rede como um espaço multirreferencial
de aprendizagem.
Aglutinação: quais são as questões consideradas desa-
fios centrais das articulações ECTS e TAR?
70
As Ciências da Natureza no Exame Nacional do Ensi-no Médio (ENEM): contribuições da Teoria Ator-Rede
João Henrique Ávila de Barros
Esse trabalho18 fez parte do aglomerado “Desafios teóri-
cos da articulação entre Educação CTS e Teoria Ator-Rede” que
se constitui a partir da necessidade de buscar identificar/deba-
ter algumas aproximações e distanciamentos entre Educação
em Ciência Tecnologia e Sociedade (ECTS) e Teoria Ator-Rede
(TAR). As reflexões aqui apresentadas são parte daquelas que
tenho desenvolvido durante a elaboração de minha tese que
tem como objetivo geral compreender o modo como os textos do
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) produzem sentidos
em um discurso da Educação em Ciências da Natureza.
O marco teórico e metodológico central da tese está
pautado em uma linha de análise de discurso de escola fran-
cesa que teve na figura de Michel Pêcheux seu maior expoente
(ORLANDI, 2003) e que vem sendo apropriada por pesquisadores
em educação em ciências há algum tempo (PINHÃO e MARTINS,
2009). Entretanto, uma série de questões emergiu das reflexões
acerca do discurso das ciências da natureza que os textos do
ENEM medeiam e trouxeram a necessidade de alguns aprofun-
damentos nos estudos CTS que, por sua vez, geraram alguns
desdobramentos.
O ENEM foi instituído pelo Estado Brasileiro em 1998
(BRASIL, 2005) articulado a uma série de propostas oficiais
de mudanças na educação desencadeadas pela promulgação
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL,
1996) e materializadas em diversas publicações do Ministé-
rio da Educação, como os Parâmetros Curriculares Nacionais
18 João Henrique Ávila de Barros, Doutorando PPGECT/UFSC. Profª Drª Suzani Cassiani, PPGECT/UFSC.
71
(BRASIL, 2000) e outros que os sucederam (BRASIL, 2002a,
2006). Um dos aspectos centrais da proposta preconiza uma
educação pautada no desenvolvimento de competências e habi-
lidades e norteada por princípios de contextualização e inter-
disciplinaridade. Particularmente no que se refere à educação
em ciências da natureza no Ensino Médio, as recomendações
enfatizam a necessidade de superação de um ensino centrado
memorização de conteúdos e repetição de procedimentos cujas
relações com uma compreensão mais rica do mundo em que
vivemos quase nunca se estabelecem. Propõem que o ensino de
ciências favoreça o desenvolvimento de competências e habili-
dades essenciais ao exercício da cidadania.
Nesse sentido, o ENEM se estabelece como um exame
elaborado para estar em sintonia com tais propostas, buscando
aferir o desenvolvimento de tais competências nos estudantes
por meio da proposição de situações-problema, interdiscipli-
nares e contextualizadas (BRASIL, 2005). De certa forma, as
propostas das quais o ENEM deve se aproximar se aproxi-
mam, por sua vez, daquilo que vem se estabelecendo como uma
proposta de Educação CTS. Ainda que com uma gama muito
grande de variações, uma proposta de Educação CTS vai esta-
belecer pelo menos o objetivo de que o ensino das ciências da
natureza busque desenvolver no estudante a capacidade de
relacionar aquilo que se aprende em ciências, com as tecnolo-
gias e a sociedade.
Esse é, portanto, o primeiro ponto em que os estudos
CTS e a TAR, particularmente por meio de leituras de Bruno
Latour (2000a, 2000b, 2004), mostraram-se relevantes para
a compreensão dos discursos sobre as ciências da natureza
mediados pelos textos do ENEM. Uma vez propostas no exame
as situações-problema nas quais o conhecimento produzido
pelas ciências da natureza estabelece relações mais explícitas
com questões sociais e tecnológicas, nos questionamos que
72
sentidos se estabelecem acerca dessas relações e, consequente-
mente, do próprio conhecimento em ciências da natureza?
Por outro lado, emergiu nesses estudos um segundo
ponto incontornável que a TAR tem nos ajudado a investigar e
compreender: o caráter de artefato sociotécnico do ENEM. Por
meio do exame, se estabelece um modo de determinar aquilo
que se considera aprendizagem em ciências da natureza. Não
se trata apenas de construir um acesso ou medida de algo que
“já está lá”, aquilo que foi aprendido, mas de estabelecer de
um modo específico o que é “aquilo que está lá” como algo que
se realiza também pelo resultado do exame. Mas, “para todos
os efeitos”, o exame se estabelece como um instrumento que
apenas compara desempenhos em habilidades pré-existentes. A
TAR tem ajudado a compreender, portanto, esse modo peculiar
por meio do qual o ENEM estabelece condições de produção de
discursos do conhecimento em ciências da natureza, a partir
de sua constituição como um artefato em rede sociotécnica que
faz a mediação entre padrões de respostas e desempenhos de
estudantes na área de ciências da natureza.
O intuito desse trabalho é apresentar algumas dessas
reflexões que a teoria ator-rede nos permitiu desenvolver.
Educação CTS no ENEM: até onde se consegue chegar? Apesar de uma dispersão de sentidos em torno da educa-
ção CTS, é possível identificar linhas gerais em torno das quais
se aproximam perspectivas dessa educação. Em particular, no
que se refere à educação em ciências da natureza, a perspec-
tiva de educação CTS se aglutina em torno de – para além da
apreensão conceitual das teorias, modelos, problemas carac-
terísticos dessas ciências – promover reflexões sobre o modo
como a produção e produtos da ciência estão articulados aos
processos sociais e tecnológicos, visando assim desenvolver nos
estudantes capacidades de compreenderem e tomarem posições
73
cada vez mais esclarecidas e bem articuladas acerca de ques-
tões sociais mais amplas, nas quais as ciências e tecnologias
desempenham um papel cada vez mais relevante. As propos-
tas oficiais da educação brasileira, em particular para o ensino
médio, incorporam, de certo modo, esses pressupostos de uma
educação CTS (SANTOS, 2007).
A dispersão dos sentidos se dá quando esse feixe de
intenções atravessa prismas epistemológicos, políticos, ideoló-
gicos, éticos, estéticos, levando a diferenciações nas propostas
acerca de quais seriam as “posições esclarecidas e bem articu-
ladas” e como se chegaria até elas. Aí se encontra uma questão
fundamental do ponto de vista educativo, qual seja, o enten-
dimento de que essa posição é um lugar que já existe e basta-
ria ensinar e aprender a encontrar o caminho para chegar até
lá ou, por lado, o entendimento de que esse lugar precisa ser
construído. Na educação, esses dois entendimentos geram uma
tensão, que, no ensino de ciências da natureza, adquire suas
singularidades.
Quando, por exemplo, ensinamos eletromagnetismo,
consideramos com certa facilidade que existem posições mais
esclarecidas e bem articuladas – lugares que os físicos já cons-
truíram – para as quais podemos ensinar um caminho. Ainda
que, nas fronteiras da física, exista o problema de construir os
lugares de onde se possa compreender ainda melhor o eletro-
magnetismo, há, para aqueles que estão distantes dessas fron-
teiras, uma série de posições esclarecidas a tomar em espaços
pré-construídos, não necessariamente por um caminho único.
Isso muda muito quando o problema não se restringe a
compreender os fenômenos eletromagnéticos “em si mesmos” e
se amplia para discutir em que mundo eletromagnético estamos
vivendo e queremos viver, reconhecendo que não há a priori um
mundo eletromagnético. Não se trata aqui de negar uma mate-
rialidade anterior à construção do nosso mundo eletromag-
74
nético, mas de reconhecer que nela ainda não se encontrava
esse mundo e que a criação dele transforma a realidade dessa
materialidade precedente. Nesse caso, todos vivemos nas fron-
teiras entre o mundo eletromagnético pré-construído e aque-
le que resultará do processo incessante de sua construção/
transformação.
Portanto, uma educação CTS se dá em uma frontei-
ra a partir da qual é preciso construir um novo lugar de onde
se possa recolocar a pergunta “em que mundo queremos viver
(lugar em que estamos mais esclarecidos) e como vamos cons-
truí-lo (lugar em que estamos mais articulados)?”.
A irredutibilidade das relações CTS e sua possível redu-ção na educação CTS
Essas considerações nos levam a pensar as relações
CTS e os problemas envolvidos nessa trama como sendo irredu-
tíveis a uma posição mais esclarecida e bem articulada. Desse
modo, uma educação CTS precisaria trabalhar com a constru-
ção do lugar em que, vindo de diversas posições, os cidadãos
discutam e decidam uma nova posição a assumir, cientes de
que será preciso, em seguida, reavaliar, renegociar, tendo em
vista as consequências da assunção daquela posição.
A dificuldade é que esse espaço educativo é também um
novo lugar a ser construído. O espaço escolar como lugar pré-
construído de práticas educativas tem um funcionamento que
dificulta essa construção de um lugar novo que favoreça o desen-
volvimento de uma educação CTS. Está bastante arraigada na
educação escolar a ideia de que é preciso que a complementa-
ridade pergunta-resposta, problema-solução, dúvida-esclareci-
mento se estabeleça de modo unívoco e determinado. Se uma
questão demanda uma tomada de posição, em geral, deve ser
de UMA posição, a mais adequada ou correta. O ensino deve
conduzir até aquela posição.
75
Essa tendência da redução das dinâmicas pergunta-res-
posta, problema-solução, dúvida - esclarecimento – que leva a
um fechamento do processo e que é tão marcante da educação
escolar – frente à irredutibilidade e abertura dos problemas de
relações CTS que estamos considerando gera uma tensão à qual
estão submetidas as propostas e realizações de uma educação
CTS. Não se trata de considerar, isso deve estar claro, que essa
tensão seja um inconveniente. Ela traz em si uma essência, qual
seja, a tomada de posição/decisão é um exercício de poder de
estabelecer aquilo que é correto e adequado, mas que imediata-
mente coloca esse poder em risco de estabelecer incorreções e
inadequações.
O ENEM como artefato sociotécnico: de processo aber-to à caixa-preta
O ENEM está evidentemente articulado com a educação
escolar e, portanto, sujeito à tensão que procuramos descrever.
Mas, além disso, o ENEM é um exame de resultado quantita-
tivo, um artefato que deve produzir uma medição por meio da
comparação das inscrições que ele produz (em primeira instân-
cia as respostas dos estudantes). Essa condição é constitutiva
desse exame que terá de ser validado como um instrumento de
medição e, portanto, além de expressar uma ideia de desem-
penho em ciências da natureza que os elaboradores procu-
ram consolidar por meio dos itens, constrói uma escala desses
desempenhos que permitirá colocar cada desempenho na sua
devida posição.
Entretanto, o processo de proposição, implementação,
desenvolvimento e consolidação do ENEM permite reconstruir
uma trajetória que vai de um processo mais aberto de diálo-
go com os envolvidos na realização da proposta de um novo
de ensino médio ao fechamento de uma caixa-preta (LATOUR,
2000b) em que entram respostas de estudantes e saem rankin-
76
gs de desempenho nesse ensino médio. No início, a proposta
do ENEM buscava oferecer uma oportunidade de auto-avalia-
ção para os estudantes (BRASIL, 2002b), apresentava por meio
de documentos sua fundamentação (BRASIL, 2005) e por meio
de relatórios seu processo de elaboração, realização, bem como
resultados obtidos e sua discussão19.
Ao longo desse processo, começaram a se alinhar
em torno do ENEM uma série de interesses, dentre os quais
se destaca o uso dos seus resultados como instrumento dos
processos seletivos de acesso ao ensino superior. O aumento
do número de participantes foi expressivo ao longo dos anos.
Em 2009, o exame passou por grandes mudanças cuja relação
com a ampliação do seu uso nos processos seletivos é consi-
derável. As provas aumentaram consideravelmente o número
de itens20 (de 63 para 180, sendo 45 por área), passaram a ser
subdivididas em 4 áreas de conhecimento e suas tecnologias
(Ciências da Natureza; Ciências Humanas; Matemática; Lingua-
gens e Códigos), mudou a matriz de referência das habilidades
avaliadas (de 21 habilidades interdisciplinares articuladas a
competências para 30 habilidades por área de conhecimento) e
os resultados passaram a ser calculados por meio da Teoria da
Resposta ao Item (TRI). Anteriormente usava-se a Teoria Clás-
sica dos Testes, (TCT) e discriminando escores por área (ante-
riormente eram discriminados por competências21) (BRASIL,
19 O Inep divulga os relatórios pedagógicos produzidos a partir da edição 2001 em http://portal.inep.gov.br/web/enem/edicoes-anteriores/relatorios-pedagogicos, acessado em 01/08/2012. Os mais antigos não se encontram mais disponíveis no portal.
20 O exame inclui uma redação desde 1998 até hoje, além das provas com itens de múltipla escolha.
21 Eram cinco competências que agrupavam as 21 habilidades (com sobrepo-sição de habilidades em mais de uma competência):I. Dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica.
77
2008). Em parte, essas mudanças se alinham com interesses de
que o exame estratifique mais e discrimine mais precisamente
os desempenhos, inclusive por área de conhecimento que são
demandas típicas dos processos seletivos para o ingresso no
curso superior, particularmente, nos cursos de maior procura.
Esses processos demandam ainda um controle mais rigoroso
das informações no sentido de evitar fraudes etc.
Outro aspecto das mudanças ao longo desses anos é
que, em razão do aumento da escala do ENEM, a rede que o
sustenta se torna mais complexa, envolvendo cada vez mais
atores/actantes e interesses, vinculados de maneira cada vez
mais estreita. Com isso, o artefato vai ficando cada vez mais
“robusto” e alguns de seus aspectos se consolidam. Nesse
caso, o ENEM vem se transformando em caixa-preta (LATOUR,
2000b), no sentido de que o processo que por meio dele se reali-
za se invisibiliza e passa a ser visível apenas aquilo que “entra”,
respostas dos estudantes, e aquilo que “sai”, as hierarquias de
desempenho. A mudança da TCT para a TRI reforça o “escure-
cimento” das paredes da caixa, por meio de um procedimento
de geração de escores extremamente complexo, muito pouco
compreensível e indiscutível para a maioria dos envolvidos e
que só se torna realizável por meio de uma associação ainda
II. Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas.III. Selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações represen-tados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema.IV. Relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhe-cimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente.V. Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural.Em 2009, passaram a ser denominadas eixos cognitivos sem estabelecer mais vínculos específicos com as habilidades da nova matriz.
78
mais estreita de todos os envolvido no processo (elaboradores
dos itens, técnicos de estatística e informática, participantes
dos pré-testes, itens, computadores, numa lista de atores/
actantes difícil de expressar completamente).
A tradução-deslocamento realizada pelo ENEMDessa forma, o ENEM se torna um mediador capaz de
realizar uma tradução-deslocamento (LATOUR, 2000b) de inte-
resses entre atores que se faz relevante na produção dos senti-
dos dos conhecimentos em ciências da natureza. Ao estabelecer
um modo de medir os desempenhos visados pelas propostas
oficiais de ensino de ciências no ensino médio, o exame dispo-
nibiliza os padrões que permitem uma verificação desses objeti-
vos e os traduz em termos dos itens e escalas que representam
o objetivos realizados. Essa tradução não se dá sem que no
processo se promova um deslocamento, uma mudança de lugar
de realização desse objetivo que, de certa maneira o transforma.
Em princípio, a realização dos objetivos da educação
não teria lugar no processo de responder a itens de testes de
múltipla escolha, seu lugar “natural” de realização seria nos
processos de resolução das demandas do exercício da cidada-
nia, na vida, por assim dizer. Ao deslocá-los para responder os
itens do teste, os sentidos dos conhecimentos das ciências da
natureza se dispersam de sua aplicabilidade em situações da
vida, da cidadania, e voltam a se condensar em torno de sua
aplicabilidade na escolha da alternativa correta de um item do
ENEM.
Em particular, as perspectivas de uma educação CTS
são traduzidas-deslocadas pelo ENEM. Nesse caso, as questões
amplas e complexas que envolvem relações CTS e implicam em
uma abertura em termos de discussões de relações problema-
solução se conformam na elaboração do item para construir a
possibilidade de que o estudante de bom desempenho tenda a
79
escolher a alternativa criada para ser o gabarito.
Temos a expectativa que as análises que a tese irá
produzir possam favorecer reflexões sobre o ENEM e, de modo
mais geral, sobre os exames de desempenho de estudantes,
que permitam uma compreensão mais ampla e consistente
dessa imbricação entre os interesses de promover uma educa-
ção adequada e verificar a adequação da educação promovida.
Desse modo, acreditamos ser possível uma redução dos efei-
tos “colaterais” dos exames, particularmente um esvaziamen-
to dos sentidos dos objetivos educacionais em torno de uma
possível supervalorização dos resultados produzidos pelos
exames. Entretanto, esperamos poder evitar também, por meio
da compreensão dos desafios/possibilidades/limites envolvidos
na construção do exame, uma rejeição mal refletida daquilo que
ele pode produzir.
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belece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996.
BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curricu-lares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 2000.
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Teixeira (INEP). Brasília: O Instituto, 2002b.
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80
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Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Brasí-
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81
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36 set./dez. 2007.
82
INFORMÁTICA, COMPUTAÇÃO, SISTEMAS, TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E AFINS
A abordagem TAR no campo das TIC: trilhas percor-ridas e encontros necessários
Gabriel Marcuzzo do Canto Cavalheiro
José Muniz da Costa Vargens
Luiz Antonio Joia
Marcelo El Khouri Buzato
Marcelo Fornazin
Marcus Vinicius Brandão Soares
Rafael Wild
IntroduçãoEste capítulo apresenta as contribuições do aglomerado
“Informática, Computação, Sistemas, Tecnologia da Informa-
ção e afins”, também chamado aglomerado dos “informáticos”,
cujos trabalhos foram apresentados no evento “Teoria Ator-Re-
de a Além...” em junho de 2013. Tal aglomerado é um tanto
amplo e heterogêneo, como é possível notar pelo seu título, o
qual é composto por quatro termos, “informática”, “computa-
ção”, “sistemas” e “tecnologia da informação”, mais o “afins”.
Ou seja, neste grupo buscamos reunir os pesquisadores que
se interessam pelas questões associadas aos usos das tecno-
logias da informação e comunicação (TIC) em diversos espaços
da sociedade, em especial a brasileira, mas também dialogando
com outros locais.
O aglomerado compreende os uso de TIC diversas áreas
como governo eletrônico, saúde, meio-ambiente, inteligência
artificial, cultura digital e computação em nuvem. De certo
modo, os diversos temas estão relacionados às diversas origens
e áreas de atuação dos pesquisadores. Pesquisadores estes
que em sua maioria são originários de escolas de engenharia
83
ou computação, mas de algum modo passaram a se interessar
e desenvolver pesquisas sobre os uso sociais das TIC. Esses
pesquisadores também se encontram em domínios diferen-
tes, como administração, engenharia, computação, educação,
linguística aplicada e saúde, contribuindo para a heterogenei-
dade do grupo.
Entretanto, a heterogeneidade observada de modo
algum enfraquece o debate, por outro lado, o fortalece. Os
trabalhos discutidos neste capítulo compartilham de uma base
comum, a abordagem da Teoria-Ator Rede e estudos correlatos
e, desse modo, buscam entender os artefatos tecnológicos para
além de seus aspectos técnicos, trazendo as dimensões políti-
cas, econômicas, culturais e sociais. Tais trabalhos, também
buscam, superar estigmas de linearidade no desenvolvimen-
to das TIC, ao olhar os processos de construção dessas TIC a
partir de suas controvérsias.
Os trabalhos abordam conceitos como redes (BIJKER e
LAW, 1992), simetria (CALLON, 1986; LATOUR, 1994), scripts
(AKRICH, 1992), política ontológica (MOL, 2002), objetos frontei-
riços (STAR e GRIESEMER, 1989), performatividade (CALLON,
1998). Tais conceitos surgiram no seio do debate dos estudos
de ciência, tecnologia e sociedade, em inglês, Science and Tech-
nology Studies, e tem sido apropriados e discutidos nos estudos
relacionados aos usos de TIC. Desse modo, busca-se apresentar
a emprego dos conceitos relacionados à abordagem da Teoria-A-
tor Rede nas diferentes perspectivas, discutindo suas possibili-
dades e limitações.
Este capítulo está organizado da seguinte maneira. Após
esta introdução, as seções de 2 a 6 apresentam as contribuições
das diferentes pesquisas que compuseram o aglomerado, sendo
elas: transferência de tecnologia entre governos, sistemas de
informação em saúde, cultura digital, agência ética e computa-
ção nas nuvens. Ao final é apresentada uma discussão sobre os
84
conceitos empregados nas pesquisas, bem como as conclusões
e perspectivas futuras para pesquisas na área.
Examinando a transferência de sistemas de informação entre escritórios de patentes
O valor de uma empresa operando na atual economia
do conhecimento é crescentemente determinado pela sua capa-
cidade de inovar. Dessa maneira, a proteção da propriedade
intelectual tornou-se um requisito absolutamente fundamental
para possibilitar a competitividade. De acordo com Bijker e Law
(1992), a tecnologia é cada vez mais onipresente. Na prática,
tecnologias afetam diretamente nossa saúde, nossa maneira
de consumir, e nossa interação com as outras pessoas. Conse-
quentemente, tendo em vista que um escritório de patentes é o
órgão do governo responsável pela concessão de patentes que
possibilitam a proteção de novas tecnologias, esta instituição
vem se tornando essencial para possibilitar a criação de valor
nas empresas inovadoras (NELSON, 2007). Desta forma, ao
longo das últimas décadas, TIC têm sido amplamente adotadas
pelos escritórios de patentes em todo o mundo.
Esta seção então apresenta os resultados de uma
pesquisa, baseada na abordagem da Teoria Ator-Rede, e que
analisou a trajetória de um programa de cooperação técnica,
que envolve a transferência de um sistema de informação (SI)
para a gestão dos pedidos de patentes. Uma apresentação deta-
lhada da pesquisa pode ser encontrada em Cavalheiro e Joia
(2013), de modo que nesta seção serão apresentados os prin-
cipais resultados da pesquisa. Em resumo a pesquisa estudou
o processo de transferência do sistema “European Patent and
Trademark Operating System” (EPTOS) do Escritório Europeu
de Patentes (EPO) para o Instituto Nacional da Propriedade
Industrial (INPI), que é o escritório brasileiro que patentes. Ou
seja, trata-se da transferência de um SI entre países desenvol-
85
vidos e um país em desenvolvimento. Por conseguinte, para a
realização desta pesquisa, foi necessário seguir os atores, a fim
de compreender as traduções ocorridas. Assim, tal pesquisa
teve por objetivo melhorar a compreensão sobre como as redes
formadas e estabilizadas para realizar a transferência de tecno-
logia do SI em questão.
Na prática, as soluções de TIC adotadas pelos escritó-
rios de patentes são comumente classificadas como soluções
de governo eletrônico. A pesquisa apresentada, utilizou-se da
definição de governo eletrônico proposta por Heeks e Stanfor-
th (2007), que definem governo eletrônico como a arena sócio-
técnica em que as TIC estão sendo aplicadas para organizar
a gestão pública, a fim de aumentar a eficiência, transparên-
cia, acessibilidade e capacidade de resposta aos cidadãos. No
entanto, variações significativas podem ser observadas em
relação aos níveis de maturidade dos escritórios de patente em
países desenvolvidos e em desenvolvimento. Como consequên-
cia desta diferença operacional, a literatura existente reconhece
o aumento do potencial de colaboração como meio para reduzir
este distanciamento (CIBORRA, 2003; HEEKS e STANFORTH,
2007). Verifica-se que diversos países em desenvolvimento já
participaram de processos de transferência de tecnologia para
fortalecer a capacidade operacional de seus escritórios de paten-
tes (e.g., Malásia, Paquistão, Colômbia, etc.)
A pesquisa adotou a abordagem da Teoria Ator-Rede
como referencial teórico para examinar o processo de transfe-
rência do SI de gestão de pedidos de patentes. Tal abordagem
vem embasando pesquisas sobre sistemas de informação desde
o ano 1990 (WALSHAM, 1997; CIBORRA e HANSETH, 1998)
e com maior intensidade a partir do ano 2000. As pesquisas
têm analisado diversos contextos, entre eles recursos humanos
(RAMILLER, 2005), governo eletrônico (HARDY e WILLIAMS,
2007; HEEKS e STANFORTH, 2007; CAVALHEIRO e JOIA, 2013)
86
geoprocessamento (SILVA, 2007; RAJAO, 2008), saúde (BRAA,
MONTEIRO e SAHAY, 2004; SHEIKH e BRAA, 2011) e inclusão
digital (ANDRADE e URQUHART, 2010; TELES e JOIA, 2011).
As pesquisas baseadas na abordagem da Teoria Ator-
-Rede, conforme observado, têm crescido nos últimos anos e
se apresentam como uma alternativa epistemológica ao método
positivista, dominante nos estudos de SI (MITEV e HOWCROFT,
2011). Este movimento não ocorre somente nos estudos de SI,
mas também, por exemplo, na linguística aplicada, como será
apresentado na seção 4. Desse modo, alguns elementos da
abordagem da Teoria Ator-Rede podem ser destacados.
Primeiramente, estudam-se ambientes heterogêneos,
com múltiplos atores cujas preferências muitas vezes diver-
gem, em situações onde inovações proliferam e a configuração
da rede de atores é dinâmica (CALLON, 1986; LATOUR, 2005).
Assim, tais estudos evidenciam a dimensão política da implan-
tação de um SI. Assim, a opção pela abordagem da Teoria Ator-
-Rede é motivada por sua ênfase na busca de padrões através da
análise conexões entre atores e o surgimento de controvérsias.
Segundo Latour (2005), um bom estudo de caso envolvendo a
abordagem da Teoria Ator-Rede é capaz de reconhecer ambos
os problemas do processo de formação de grupo e demonstram
a dinâmica da trajetória de uma rede. Além disso, Monteiro
(2002) argumenta que a abordagem da Teoria Ator-Rede ofere-
ce uma linguagem para descrever como mecanismos técnicos e
não-técnicos podem formar uma rede de atores. Optou-se pela
utilização de uma abordagem baseada na Teoria Ator-Rede, a
fim de contemplar aspectos políticos, sociais e históricos da
cooperação técnica entre o INPI e o EPO.
Ademais, a abordagem da Teoria Ator-Rede possibilita
que definições – micro ou macro, simples ou complexo – sejam
evitadas previamente, sendo obtidas durante a análise empíri-
ca (LATOUR, 1997). Como não há nenhuma distinção a priori
87
entre os níveis micro, meso, e macro, a abordagem da Teoria
Ator-Rede oferece uma estrutura uniforme, independente-
mente da unidade de análise (LAW, 1992). Essa característica
da abordagem da Teoria Ator-Rede também é ressaltada nos
estudos de linguística aplicada (BUZATO, 2008; 2012), apre-
sentados na seção 4.
Por fim, os estudos baseados na abordagem da Teoria
Ator-Rede seguem uma perspectiva longitudinal; isto é, ao
invés de coletar informações de um momento específico, anali-
sa-se o movimento, a formação de grupos ou redes (LATOUR,
1997), bem como as traduções (CALLON, 1986). Assim, abor-
dagem da Teoria Ator-Rede enfatiza a necessidade de se seguir
os atores (LATOUR, 2005). Trata-se de uma abordagem sobre
como a reconstrução de um processo de negociação pode ser
feita (WALSHAM e SAHAY, 2006). Fundamentalmente, a opção
por essa abordagem foi motivada pela necessidade de obter
uma melhor compreensão do processo de formação de grupo
associado à cooperação técnica entre o EPO e o INPI.
Para efetuar a reconstrução da rede de atores envolvida
no projeto, torna-se necessário obter os documentos para que
os eventos possam ser rastreados. Desse modo, foram realiza-
das entrevistas em profundidade com os participantes-chave
da cooperação técnica entre o INPI e o EPO. Além de revelar
a visão de mundo, posição e trajetória dos participantes do
projeto, as entrevistas tiveram o objetivo de identificar o posi-
cionamento dos atores sobre as controvérsias. As entrevistas
foram realizadas entre setembro de 2011 e outubro de 2012
com participantes do projeto
O estudo analisou como a trajetória de rede do projeto
EPTOS, traçando-a cronologicamente ao longo de um período
de nove anos. Com a finalidade de possibilitar uma melhor
compreensão da trajetória do projeto, foram selecionados três
períodos distintos (2003-2006; 2007-2010; 2011-2012) que
88
caracterizam três fases importantes desse projeto.
Fase 1 (2003-2006): Implorando por AjudaO início das discussões sobre o projeto EPTOS ocorreu
poucos meses após a publicação da política industrial brasilei-
ra, em 2004. Neste período, existia uma percepção no INPI que a
instituição carecia fortemente de recursos financeiros e de reco-
nhecimento dentro do Governo Federal brasileiro. Como conse-
quência, a compra de um sistema de informação para a gestão
de patentes não era uma opção viável. Ao mesmo tempo, vários
examinadores de patentes do INPI, que participaram de treina-
mentos em proporcionados pelo EPO, estavam cientes do siste-
ma EPTOS e da sua aplicação a diferentes estados membros da
EPO.
Tendo em vista que o EPTOS foi considerado uma solu-
ção potencial para resolver as deficiências operacionais do INPI,
a decisão foi tomada pela administração do INPI para solicitar
ao EPO autorização e suporte para implementação do EPTOS no
Brasil. As negociações sobre a assinatura final do memorando
de entendimento (MdE) avançou lentamente. Esta negociação
levantou controvérsias, pois a assinatura do MdE implicaria o
comprometimento de recursos da EPO, como help desk remo-
to e visita de um analista do EPO ao Brasil que é um estado
não-membro.
Na prática, a assinatura do MdE significaria uma trans-
ferência de recursos dos estados membros para o Brasil. Além
disso, outra controvérsia sobre o MdE foi gerada pela incerteza
sobre o nível de apoio que seria exigido a partir de EPO. Durante
esta fase, os examinadores de patentes do INPI dependiam de
um sistema de informação simples chamado SINPI para obter
informações sobre pedidos de patentes.
Adicionalmente, a dificuldade para obter a aprovação
do MdE evidenciou que a rede de atores do projeto do EPTOS
contou predominantemente com a ação de um único ator caris-
89
mático para manter a sua durabilidade. Este ator carismático
ator era o Vice-Presidente do INPI.
Fase 2 (2007-2010): Tornado-se PopularO projeto EPTOS evoluiu para uma segunda fase, que
representou a estabilização da rede de atores. O memorando de
entendimento não foi assinado nesta fase. No entanto, observa-
se que a demora na obtenção da assinatura do EPO no MdE
proporcionou à equipe do EPTOS no INPI a possibilidade de
mobilizar recursos para a compra do hardware necessário para
a implementação.
Apesar dos atrasos na obtenção da assinatura do MdE,
durante essa segunda fase, o EPO mudou a sua atitude de
negociação em relação ao INPI. Com isso, o departamento de
TI do EPO recebeu autorização para apoiar a implementação
do EPTOS no Brasil sem a formalização do MdE. A combina-
ção da crise financeira internacional de 2008, com a desco-
berta das reservas da camada pré-sal no Brasil, anunciado em
2007, melhorou a posição do Brasil, tornando o Brasil um país
economicamente estratégico na arena internacional. Assim, o
EPO disponibilizou recursos para a equipe do EPTOS no INPI,
incluindo software, consultorias e manuais.
Fase 3 (2011-2012): Implementando e Fazendo Propaganda
Durante esta fase final do projeto, as últimas etapas da
implantação foram realizadas. Esta fase foi caracterizada pela
necessidade de traduzir o design original do sistema EPTOS em
um design adaptado para possibilitar a integração com os siste-
mas legados do INPI e também com os requisitos da legislação
brasileira a respeito da propriedade intelectual.
Durante a implementação do sistema EPTOS no INPI,
um ator não-humano novo entrou na rede e ganhou poder signi-
ficativo na rede de atores. No segundo semestre de 2011, um
grupo de examinadores de patentes foi treinado, a fim de reali-
90
zar atividades de indexação dos arquivos eletrônicos contendo
os pedidos de patente digitalizados. Para apoiar a indexação,
um novo software foi desenvolvido pelo INPI, que é chamado de
e-indexador. Este software consiste em uma ferramenta simples
para organizar arquivos eletrônicos. No entanto, as atividades
de indexação geraram preocupações, pois os arquivos indexa-
dos seriam posteriormente expostos na interface web do EPTOS.
Vale a pena mencionar que esta terceira e última fase também
foi influenciada pela implementação de um novo sistema para
a gestão do controle de frequência dos funcionários do INPI
chamado SECOF. Sua implementação gerou grande resistência
em relação às novas regras para o horário flexível e justificati-
va de ausência médica. A implementação do SECOF, que ocor-
reu no início de 2012 enfrentou forte resistência por parte da
maioria dos trabalhadores e dos sindicatos que os representam.
Assim, a implementação do SECOF pode ser considerada uma
inscrição tardia para a rede que dominou a agenda interna, de
tal forma que a adoção de EPTOS por examinadores de patentes
não foi resistida.
Além disso, a implementação de EPTOS no INPI recebeu
um prêmio nacional de governo eletrônico em 2012. Portanto,
o projeto ganhou tanta visibilidade que o presidente do INPI
começou a mencionar esse ator não-humano (o prêmio) em
suas apresentações externas, tornando-se um porta-voz pode-
roso para o sistema.
Este estudo contribui para lançar luz no complexo
processo de transferência de um Sistema de Gestão de Paten-
tes dos países desenvolvidos para países em desenvolvimento,
usando a abordagem da Teoria Ator-Rede como o quadro de
análise. Após examinar a trajetória da implementação do siste-
ma EPTOS no INPI, é possível observar um conjunto de padrões
que evidenciam a dinâmica do processo de formação e esta-
bilização de uma rede de atores (CALLON, 1986; LAW, 1992;
91
LATOUR, 2005). A rede de atores do EPTOS era inicialmente
dependente de um ator principal, o Vice-Presidente do INPI que
assumiu o papel de um ator-macro na rede. Adicionalmente, a
relação de poder entre o EPO e o INPI foi altamente assimétrica.
No entanto, as duas instituições possuíam interesses conver-
gentes sobre a implementação de uma versão localizada do
EPTOS no Brasil, especialmente após a fase 2. Por um lado, o
EPO visava promover sua plataforma de gestão de patentes, a
fim de ganhar influência no Brasil, assim como na América Lati-
na. Por outro lado, o INPI necessitava implementar um sistema
de gestão integrada de patentes o mais rápido possível.
Sistemas de informação em saúde A informatização das práticas em saúde vem sendo
discutida há mais de trinta anos, contudo, até os dias de hoje,
embora diversos sistemas de informação tenham sido desenvol-
vidos, ainda existem desafios para que os sistemas de informa-
ção em saúde (SIS) possam beneficiar a área.
No Brasil, há algum tempo o Sistema Único de Saúde
(SUS) vem aumentando a importância que atribui ao papel dos
SIS para a melhoria de seus resultados para a população brasi-
leira. Diversos trabalhos (FERREIRA, 2001; SILVA e LAPREGA,
2005; BARBOSA e FORSTER, 2010) têm verificado que, além dos
gestores, os profissionais têm destacado o papel relevante dos
sistemas de informações para o dia a dia do SUS. É ressaltado
o entrelaçamento entre processos de trabalho e as TIC, alçando
os SIS a agente destacado da qualificação da atenção à saúde
prestada à população pari passu à intensificação do debate em
torno de suas limitações e possibilidades de aprimoramento.
É preciso destacar que os SIS estão imbricados aos
processos de trabalho do SUS de tal forma que não mais se
consegue alterar ou propor novos procedimentos em saúde sem
considerar o uso de recursos de TIC. Do mesmo modo, não faz
92
sentido projetar evoluções dos SIS no SUS sem levar em conta
as características dos processos de trabalhos abrangidos por
eles (TOMASI et al., 2003; CERCHIARI e ERDMANN, 2008;
VASCONCELLOS, GRIBEL e MORAES, 2008). Fonseca e Santos
(2007) notam que “Quando a tecnologia da informação se insta-
la, o cuidado [à saúde] precisa ser repensado no cotidiano do
hospital”. Esta inter-relação entre SIS e processos de trabalho
está presente não só na gestão e no fluxo operacional de uma
instituição, mas também no de acesso, na disseminação e no
uso da informações.
Com objetivo de entender a complexidade inerente ao
tema, propõe-se estudar os SIS por meio da abordagem da Teoria
Ator-Rede. Esta proposta está baseada, de um lado, assim
como a seção anterior, no contexto dos estudos de sistemas de
informação em países em desenvolvimento (HEEKS, MUNDY e
SALAZAR, 1999; BRAA, MONTEIRO e SAHAY, 2004; AVGEROU,
2010; SHEIKH e BRAA, 2011), e de outro nos estudos de infor-
mação e informática em saúde (MORAES, 1994; 2002; MORA-
ES e VASCONCELLOS, 2005; MORAES e GOMEZ, 2007).
Os estudos europeus sobre sistemas de informação (SI)
em países em desenvolvimento, primeiro campo de estudos cita-
do no parágrafo anterior, têm buscado entender como os SIS
podem alcançar sucesso nos países do hemisfério sul (HEEKS,
MUNDY e SALAZAR, 1999; BRAA, MONTEIRO e SAHAY, 2004;
SHEIKH e BRAA, 2011). Tais pesquisas chegaram ao consenso
de que o desenvolvimento de SI nesses países depende da “da
inserção das TIC no contexto social de vários cenários orga-
nizacionais” (AVGEROU, 2010, p. 4, tradução nossa). Conse-
quentemente, não existe uma formula única para desenvolver e
implantar SI. Assim, estas pesquisas entendem que o sucesso
do SI “envolve formatar e adaptar os sistemas para um dado
contexto, cultivando processos de aprendizagem local e institu-
cionalizando rotinas de uso que persistam ao longo do tempo”
93
(BRAA, MONTEIRO e SAHAY, 2004, p. 2, tradução nossa).
Contudo, para além desses estudos, no Brasil outras
pesquisas vêm discutindo com os SIS podem contribuir para
o desenvolvimento das práticas em saúde. Essas pesquisas se
agrupam sob a nomenclatura de Informação e Informática em
Saúde (IIS) e são desenvolvidas no contexto do Movimento Sani-
tarista Brasileiro (MORAES, 1994; 2002; MORAES e VASCON-
CELLOS, 2005; MORAES e GOMEZ, 2007). Tais pesquisas
apresentam um aspecto técnico e político, objetivando construir
um espaço em que as informações em saúde possam contribuir
para um “processo democrático emancipador do homem brasi-
leiro e para a gestão e melhoria da saúde” (MORAES, 2002,
p.11).
Uma discussão entre as duas perspectivas pode ser
encontrada em Fornazin e Joia (2013a), mas de uma maneira
geral, tanto a literatura sobre SI em países em desenvolvimento,
quanto a literatura sobre informação e informática em saúde,
enfatizam a mobilização de diversos atores, bem como sua
influência no desenvolvimento da informática em saúde. Alguns
conceitos desenvolvidos na IIS aproximam-se da literatura de SI
em países em desenvolvimento, por exemplo, o intercampo da
informação e informática em saúde (MORAES e GOMEZ, 2007)
se assemelha ao conceito das redes de ação, proposto por Braa,
Monteiro e Sahay (2004). Assim, observa-se que o intercâmbio
de ideias entre essas perspectivas pode contribuir para o enten-
dimento dos SIS no Brasil.
Além dessas similaridades, entende-se, assim como
apresentado na seção 2, que a Teoria Ator-Rede proporciona
abordagens alternativas para o entendimento do SIS. Ou seja,
tal abordagem aporta conceitos importantes para o entendi-
mento dos SIS, enquanto artefatos técnicos que materializam
as diferentes visões envolvidas na disputa estratégica da infor-
mática em saúde. O entendimento dos SIS a partir de suas
94
trajetórias e das controvérsias envolvidas em sua construção
permitem compreender tais sistemas para além de seus aspec-
tos técnicos, levando em consideração questões sociais, políti-
cas e institucionais.
Na América Latina e especialmente no Brasil, diver-
sas pesquisas têm se baseado na abordagem da Teoria Ator-
-Rede para entender o desenvolvimento e implantação de SI.
Essas pesquisas se desenvolvem no campo da inclusão digital
(ANDRADE e URQUHART, 2010; TELES e JOIA, 2011), geopro-
cessamento (SILVA, 2007; RAJAO, 2008); política industrial
de informática e inovação (MARQUES, 2004; RAMOS, 2009) e
governo eletrônico (BARBOSA, 2008; ADACHI, 2011; CAVALHEI-
RO e JOIA, 2013). Contudo, na área da saúde, poucos estudos
foram realizados. Assim, nos próximos parágrafos serão discuti-
dos alguns estudos e propostas de pesquisa para o entendimen-
to dos SIS baseado na abordagem da Teoria Ator-Rede.
A partir da consideração de que o sistema de saúde
brasileiro possui peculiaridades, as quais o diferenciam dos
casos até então pesquisados e baseados nos conceitos da abor-
dagem da Teoria Ator-Rede, Fornazin e Joia (2013b), analisaram
a dinâmica da implantação de um SIS em um hospital públi-
co brasileiro. Tal pesquisa buscou entender como os múltiplos
atores – políticos, analistas de sistemas, profissionais de saúde
e artefatos técnicos – interagiram, influenciando a implantação
do SIS no hospital. A pesquisa analisou a implantação do SIS
a partir das controvérsias entre os atores que, a seu tempo,
negociam a incorporação ou alteração de scripts previamen-
te definidos nos artefatos técnicos, influenciando os rumos da
implantação do SIS.
Baseada nos estudos de Akrich (1992), a pesquisa iden-
tificou que o SIS continha scripts previamente definidos, os quais
representavam a visão do sistema privado de saúde. Contudo, a
implantação do sistema, contrariando o determinismo pregado
95
nos manuais de gerenciamento de projetos, compreendeu uma
série de negociações em que os profissionais do hospital incor-
poraram alguns scripts, enquanto alteraram outros. Durante a
negociação desses scripts, os atores recorreram a outros scripts
previamente inscritos, como foi o caso dos catálogos dos siste-
mas oficiais brasileiros, aos quais foi necessário adaptar o SIS.
O estudo observa, de maneira diferente do estudo apre-
sentado na seção 2 – sobre a transferência de um sistema de
informação entre dois escritórios de patentes, em que os atores
envolvidos possuíam interesses convergentes – que a trans-
ferência de um SIS de um hospital privado para um hospital
público não ocorreu de maneira convergente. Esta transferên-
cia foi marcada por uma série de controvérsias e negociações,
muitas delas ligadas às diferentes práticas dos locais envolvi-
dos na concepção e implantação do sistema. Assim, defende-se
que projetos de SI, ao invés de disseminarem “boas práticas”,
devem considerar o contexto local na concepção e implantação
do sistema.
Contudo, conforme observa Vargens (2011), o debate
sobre as práticas de desenvolvimento de software para o SUS é
quase nulo. De um modo geral os artigos tratam dos resultados
na área da saúde e analisam os SIS sob o ponto de vista de sua
contribuição para registro, acesso à informação e seu impacto
no processo de trabalho. Nessas análises não se aventa o méto-
do escolhido para projetar e desenvolver o sistema como uma
das hipóteses explicativas para os problemas relatados.
O tema “insucessos dos sistemas de informações em
saúde” tem sido bastante debatido no Brasil. Porém, apesar dos
vultosos valores alocados para compra e desenvolvimento de
softwares, poucos estudos têm focado o processo de constru-
ção dos SIS do SUS como um fator significativo para o sucesso
dos projetos envolvendo SIS. Cabe, pois, questionar o quanto a
escolha do ‘modo de fazer’ afeta o resultado de um SIS.
96
Na área da saúde pública estudos (GALLIERS e
WHITLEY, 2007; MELLO JORGE, LAURENTI e GOTLIEB, 2007)
têm revelado consenso entre os pesquisadores sobre o papel
fundamental do contexto local e de seus atores para o sucesso
dos SIS, destacando a relevância do aspecto sociotécnico para o
processo de construção dos SIS. Propósitos próprios, processos
de transformação que não seguem a lógica matemática, frontei-
ras que envolvem relações interpessoais, modelo organizacional
próprio e atribuição de significado diferente por parte dos diver-
sos atores sociais envolvidos são características específicas que
surgem como fontes de falhas que ajudam a explicar os insu-
cessos constatados nas avaliações de diversos SIS do SUS.
Os métodos de engenharia de sistemas atualmente
adotados para projetar e desenvolver SIS são, em sua gran-
de maioria, calcados no pensamento moderno, que tem como
premissas a simplificação, a centralização e a universalidade.
Tais métodos, portanto, tendem a produzir projetos e sistemas
com modelos centralilzados e com mais ênfase na sua reprodu-
tibilidade. Dessa forma, são mais coerentes sistemas de infor-
mação cujas premissas dão menor peso ao papel do contexto
social local e dos agentes locais, reduzindo suas chances de
sucesso quando usados em SIS do SUS. Como consequência,
é um problema de Saúde Pública estudar abordagens da enge-
nharia de sistemas alternativas que viabilizem a projetação e o
desenvolvimento de SIS para o SUS que tenham maior potencial
de sucesso e, por consequência, ajudem na melhoria da saúde
da população brasileira.
Uma nova base teórica que suporte uma abordagem da
engenharia de sistemas que seja adequada aos SUS necessita
lidar com características essenciais que conformam um SIS do
SUS. Dimensões definidoras e indispensáveis de um SIS do SUS
são as da Saúde, da TIC; do modelo organizacional do SUS; dos
diversos processos Locais e dos Atores Sociais Locais.
97
Assim, vislumbra-se uma alternativa, baseada na abor-
dagem da Teoria Ator-Rede, como base para uma nova proposta
de engenharia de sistemas para projetar e desenvolver os SIS
do SUS. Estes sistemas estão imersos em contextos complexos,
por isso projetá-los como produtos e entregá-los nas mãos do
‘usuários’ para que funcionem a contento, de modo geral, tem
levado a insucessos.
As redes sociotécnicas assumem que os artefatos de
software interagem com humanos, organizações e sociedade,
influenciando e sendo influenciadas por essas relações. Em
suma, o sistema é indissociável de seu contexto. Esta constata-
ção traz novas visões para o processo de software. Cukierman e
Albuquerque (2010) propõem que novos métodos da engenharia
de software devem privilegiar: O local, o situado (resistência ao
global, ao universal), o caso a caso, a contingência; A comple-
xidade (em vez de simplificações); Conhecimentos não forma-
lizáveis; e Os transbordamentos (em vez de enquadramentos).
Essas questões também são discutidas na seção 4, que busca, no
campo da cultura digital, compreender a negociação dos atores
com os enquadramentos projetados em ambientes digitais.
Ampliar o foco da agenda proposta por Cukierman e
Albuquerque (2010), indo da engenharia de software para o
processo sistema-organização, privilegiando as ‘descrições
densas’ e a ‘desnaturalização’ dos modelos e artefatos existen-
tes é um caminho objetivo de encontrar diretrizes para a propo-
sição de métodos e artefatos que induzam à construção de SIS
do SUS com maior potencial de sucesso.
Assim, é possível que abordagens de engenharia de
sistemas calcadas na abordagem da Teoria Ator-Rede sejam
capazes de lidar simultaneamente com as cinco dimensões que
conformam os SIS do SUS. É preciso determinar que caracte-
rísticas, nesta abordagem, devam ser tomadas como premissas
para que um método de projetar e desenvolver SIS supere falhas
98
apontadas pelos pesquisadores e gestores do sistema de saúde
e torne-se uma alternativa para ser adotada pelo SUS.
Participação, subjetividade e inclusão na cultura digital: uma perspectiva atorrediana
A Linguística Aplicada se autodefine como um campo
de investigação com vocação transdisciplinar, no qual se busca
produzir condições de inteligibilidade e de encaminhamento de
propostas concretas de ação política e técnica relativas a ‘proble-
mas sociais’ nos quais a linguagem e suas tecnologias são fato-
res-chave. Uma maneira de definir o que seriam tais ‘problemas
sociais’ hoje é por meio da metáfora da ‘inclusão’ (digital, social,
etc.). Esta, por sua vez, deve ser entendida, de forma alternativa
aos determinismos e instrumentalismos tecnológicos e sociais,
como processo geral pelo qual novas formas de (des)conexão
afetam relações historicamente sedimentadas entre desigualda-
des (de poder) e diferenças (de classe, gênero, etnia, cultura,
ontológicas, etc.) (GARCIA CANCLINI, 2005; BUZATO, 2008).
São muitas, no presente cenário, as utilidades de uma ótica
atorrediana para o linguista aplicado, dentre as quais destaco
três.
Primeiro, ela permite redefinir o que seriam os tais
‘problemas sociais’ de forma ‘natural’ ao caracterizar ‘socieda-
de’ como ‘associações’, ou seja, como (des)conexões. Na práti-
ca, trata-se ultrapassar a questão de como ‘redes sociais’ (de
falantes de uma língua, ou portadores de determinada compe-
tência sociolinguística), ou ‘redes técnicas’ (como as da produ-
ção e distribuição de livros impressos ou de mídia eletrônica) se
sobrepõem para sustentar ou subverter a distribuição desigual
de bens e poder simbólicos entre grupos diferentes, de modo
a buscar-se descrever como se estabelecem os processos de
inclusão e exclusão nas maneiras pelas quais as ‘coisas’ tomam
efetivamente o lugar de parceiros e de contexto/ambiente para
99
falantes/escreventes que desistiram de ‘buscar a salvação’ no
welfare state, e passaram a adotar como estratégia o aprimora-
mento individual ‘ao longo da vida’ pela via do ciborguismo e da
autoajuda (KNORR-CETINA, 1997; 2011).
A segunda vantagem de uma ótica atorrediana para
o linguista aplicado é que ela elimina de forma radicalmente
simples os hiatos ontológicos e causais entre linguagem, tecno-
logia e sociedade que nem os métodos positivistas/naturalistas,
como explicado na seção 2, no presente capítulo, nem os enfo-
ques estruturalistas e pós-estruturalistas da linguagem, usual-
mente invocados pelos métodos qualitativos-interpretativistas
de preferência dos linguistas aplicados, puderam contornar.
Até então, qualquer “análise do discurso” seria definida
como análise de objetos simbólicos (textos) fixados, isolados a
priori dos demais tipos de objetos, e apoiados, para circular, em
alguma materialidade considerada “inerte” do ponto de vista da
significação. O trabalho do analista seria, justamente, mostrar
como as micro interações através e em torno desse material
simbólico estariam relacionadas a determinadas “estruturas”
sociais, culturais e ideológicas por “mecanismos” que podem ir
desde atos de fala performativos até a manifestação do incons-
ciente freudiano, passando por conjuntos relativamente está-
veis de enunciados ‘elaborados’ socialmente.
A Teoria Ator-Rede, por sua vez, oferece-se como uma
semiótica material (LAW, 2008) que se estende a tudo aquilo
que é “legível” numa ‘situação social’, isto é, pessoas, máqui-
nas, ideias, micróbios, textos, tudo isso como um mesmo texto
que demonstra algum tipo de coesão e coerência que se pode
desvendar interrogando um a um esses elementos quanto
a seus interesses e modos de ver o mundo. É essa manobra
aparentemente simples, ou mesmo fantasiosa, que nos permite
descrever, num mesmo plano contínuo de significação, o sujei-
to, o texto e o contexto, isto é, os três elementos fundamen-
100
tais, até então vistos como discretos entre si, das práticas e/ou
processos sociais relacionados com escrita e leitura, de textos
de qualquer tipo e do mundo propriamente dito, que chamamos
de “letramentos”.
Finalmente, uma terceira vantagem de uma ótica ator-
rediana é que ela permite ao analista, neste caso, ao linguista
aplicado, “fazer zoom” por entre diversas escalas do que seria um
mesmo letramento, sem “cortes e montagens”, isto é, mostran-
do concretamente, numa “tomada contínua”, como as referidas
escalas se conectam ao longo de percursos em que se percebe a
fusão do que outras sociologias consideram os planos distintos
do local e global (LATOUR, 2005).
Por exemplo, é possível, em tese, conectar o processo
geral de expansão da computação em nuvem abordado na seção
6 no presente capítulo, que corresponderia a uma escala macro,
que talvez possamos chamar de “mercado global de TI”, com as
negociações locais entre uma determinada ordem institucional
estabelecida antes da implantação de um sistema de TI, e a
ordem que o sistema busca impor a partir de algum sítio remoto
em que foi concebido, como no caso estudado por Fornazin e
Joia (2013b) e discutido na seção anterior, o que talvez possa-
mos identificar como sendo uma escala meso de observação, e
então com as operações discursivas e cognitivas mais sutis de
um usuário ou pequeno grupo de usuários interagindo (entre si
e com as máquinas) em diferentes eventos comunicativos, como
focalizou, em alguns momentos, a pesquisa apresentada nesta
seção, constituindo uma escala micro.
A tal liberdade de foco corresponde, em contrapartida,
uma importante questão empírica: como evidenciar, concreta-
mente, por meio de rastros e circulações, o vínculo entre as
diversas escalas atuantes sem cair-se num reducionismo causal
que a própria teoria visa desconstruir? Uma possível solução, a
que recorri na presente pesquisa, seria identificar os diversos
101
elementos tradutores/mediadores que permitem às diferentes
escalas afetarem-se e disciplinarem-se mutuamente sem que
necessitem compartilhar os mesmos significados, isto é, identi-
ficar e estudar assim chamados objetos fronteiriços (boundary
objects) (STAR e GRIESEMER, 1989). Discutirei, mais adiante,
um exemplo concreto desse tipo de análise.
Esta pesquisa, especificamente, elegeu, numa primeira
fase (BUZATO, 2012), dois jovens universitários paulistas, futu-
ros licenciados em Letras, como atores-redes conectados em
“translações subjetivas” vinculadas a diferentes letramentos,
entendidos, por sua vez, como atores-redes imensamente mais
longos e complexos do que os sujeitos, máquinas e símbolos que
o constituíam, e abarcando diversas escalas. Os dados foram
gerados com a ajuda de instrumentos etnográficos tradicionais,
e de um software de monitoramento instalado nos notebooks
dos sujeitos, com o fito de “seguir os atores em suas circula-
ções”, e também de entrevistas semiestruturadas, fundamen-
tadas no material registrado pelo software e em “histórias de
vida” dos sujeitos, para que pudessem explicar, em sua própria
linguagem, de seu ponto de vista, o que estava ocorrendo em
cada evento registrado.
A ótica atorrediana possibilitou mostrar, por exemplo,
que ambos os sujeitos produziam “autocontextos” gerados em
circulações de textos por meio de um conjunto de mídias pesso-
ais integradas. Ambos dispunham de mais de um chip e/ou
aparelho de telefonia celular e/ou de modems 3G adaptados a
notebooks, por meio dos quais faziam verdadeiros “mashups” de
serviços e contextos combinados para sustentar espaciotempo-
ralidades alternativas às do quotidiano dos sujeitos “não-digi-
tais” que os cercavam, espaciotemporalidades essas até certo
ponto desvinculadas das corporeidades que os constituíam
como indivíduos aos olhos da comunidade física circundante.
O sujeito identificado como T. (19 anos, sexo mascu-
102
lino, classe média, branco, estudante de letras), por exemplo,
tinha uma namorada na capital do Estado, e amigos em sua
cidade natal, ambas as cidades ficando distantes cerca de 100
km do seu local de moradia e estudo. Tendo poucos amigos
na cidade em que morava, T. encontrava-se frequentemente
com os amigos da cidade natal num ambiente de jogos Massi-
vely Multiplayer Online Role-Playing Game chamado World of
Warcraft, estando seu corpo situado, fisicamente, na sala de
aula ou laboratório de informática da Universidade, e utilizando
um personagem/avatar que só podia ser vinculado inequivo-
camente à sua identidade civil por esses mesmos amigos, cada
um, naquele momento, defronte à tela de alguma máquina em
casa, na escola ou na lanhouse da cidade. Essa situação típica
na vida de um bancário ou investidor na bolsa de valores era,
basicamente, a “realidade” desse graduando, embora em lugar
de produzir dinheiro, estivesse produzindo, basicamente, sua
própria identidade social. Como se vê, texto, contexto e sujeito
aparecem aí como irremediavelmente enredados em interações
que são, ao mesmo tempo, socioculturalmente situadas mas
fisicamente circuladas, atravessando escalas espaciotemporais
e institucionais.
Este mesmo sujeito da pesquisa apresentou, como
trabalho final em uma das suas disciplinas de graduação, um
projeto de ensino para ser aplicado no ensino médio em que
autores, personagens e obras da Literatura Brasileira deveriam
ser enredadas, pelo professor e alunos, em uma aventura de
RPG, um de seus hobbies prediletos. De algum modo T., assim
como os agentes de Saúde do caso estudado por Fornazin e Joia
(2013b), negociou scripts “pessoais”, ou, ao menos, scripts que
lhe faziam mais sentido pessoalmente, com scripts institucio-
nais pré-existentes, impostos de cima para baixo pela Univer-
sidade (como trabalhos finais de disciplinas) e a esta por atores
ainda mais extensos e poderosos como o Ministério da Educa-
103
ção. A “tolerância” do docente-formador que aceitou o referido
trabalho de T. e o legitimou como “projeto de ensino” pode ter
sido decisiva para a constituição do ator-rede T. como um tipo
novo de professor!
Em todos esses casos, há objetos fronteiriços que pode-
riam ser identificados e analisados aqui, como o próprio traba-
lho de curso já mencionado, mas destaco, por uma questão de
praticidade, e de espaço, uma mensagem de Gmail em que uma
professora de latim solicitou de T. que realizasse determina-
das tarefas de tradução para obter nota na disciplina. A marca
de circulação entre-escalas mais óbvia que pude detectar neste
caso era um anúncio automático inserido no final da mensa-
gem, certamente definido pelo programa de e-mail via AdSense,
e que oferecia ao usuário T., como produto, determinado brow-
ser de Internet, capaz de realizar traduções “em um só click”.
Deparamo-nos aqui não só com uma evidência empí-
rica da centralização do processamento com distribuição/
pulverização da interação com os usuários, mencionado na
seção 6, atuando num evento local, como com o interessante
fato de que T. aparece enredado por interesses contraditórios
transportados até ele desde essas diferentes escalas. O que o
provedor de e-mail lhe oferecia como possibilidade de “maior
produtividade” representaria, em verdade, uma “trapaça” ou
uma ameaça de “menor produtividade” do ponto de vista da
professora, para quem T. deveria traduzir diversas frases, uma
professora que, no entanto, escolheu as mesmas palavras da
mensagem utilizadas pelo programa AdSense para vincular T.
com o produto anunciado. Assim, caberia não apenas destacar,
complementando Fornazin e Joia (2013b), no presente capítulo,
que uma “boa prática” é um construto dependente de escala e
de contexto, como também ressaltar a necessidade de se conhe-
cer como um sujeito da cultura digital, como o é T., decide o
que é a melhor prática numa “encruzilhada de escalas”, como
104
no presente exemplo. Deveria ele ignorar o anúncio e fazer a
tradução “manualmente”, como queria a professora, ou utili-
zar o browser anunciado para fazer a tradução pedida “em um
clique”, poupando seu tempo e atenção para satisfazer algum
outro interesse ou necessidade? Em qual dos dois casos seu
próprio empreendimento subjetivo tomaria o melhor desvio?
O que ele efetivamente fez, conforme mostram os
rastros capturados pelo software de monitoramento, foi tradu-
zir as frases pedidas pela professora utilizando não um browser,
mas uma combinação de tradutores online, um deles de latim
para inglês, e, em seguida, outro, de inglês para português. Isto,
segundo ele explicou em entrevista, porque não havia, até onde
sabia, um software gratuito, aberto na WWW, que fosse “sufi-
cientemente confiável” para traduzir diretamente do latim para
o português. Salta aos olhos aqui que, ao constituir-se como
ciborgue, para tal finalidade, T. fazia algo absolutamente inacei-
tável para a professora, provavelmente, mas nada mais do que
o esperado em condições pós-sociais, dos sujeitos da cultura
digital. Não usar software algum e fazer as traduções “na unha”
seria, isto sim, participar de um engodo!
Em verdade, como explica Knorr-Cetina, os sujeitos
pós-sociais, aos quais faço equivalerem os da cultura digital,
precisam ser abordados “não apenas pela concepção mental ou
existencial” (KNORR-CETINA, 2011, s/p) , como parece ainda
fazê-lo muitos professores, mas como elementos centralizado-
res de “uma série de processos e significações”, como tenta fazer
o programa AdSense que lhe ofereceu o anúncio, e eu mesmo,
enquanto pesquisador que o concebeu como um ator-rede. Nem
um dos dois, professora ou AdSense, porém, parecem ter sido
capazes de “domesticar” o ator-rede T. por meio de suas estra-
tégias, quer seja a imposição institucional, no caso da docente,
ou a dedução lógica “descontextualizada”, no caso do software.
No entanto, T., entendido como uma cadeia de competências e
105
agentes enredados entre si, gerou um “efeito de aprendizado”
ao domesticar as falhas de visão do professor e do programa,
cada um em sua respectiva escala de circulação, para obter a
nota necessária e caminhar em sua formação. Teria feito ele algo
essencialmente diferente do que, conforme apresentado na seção
anterior, faz um profissional de saúde quando cria um “efeito de
cura” ou de “doença” reconhecível pelo sistema, ou pelo Minis-
tério, quando traduz sintomas em inscrições usando máquinas
confiáveis?
Minha hipótese é de que não, não seriam essas duas
situações essencialmente diferentes e, por isso mesmo, não há
porque limitar a investigação aos letramentos “familiares” ou
“usuais” em Linguística Aplicada. Assim sendo, a pesquisa pros-
segue, agora, numa segunda etapa, expandindo-se para outros
contextos, que não o educacional, e buscando identificar, por
meio dessa mesma ótica, estratégias de ‘responsabilização social’
dos atores humanos representados por delegados não-huma-
nos, normalmente tidos como neutros e inertes (LATOUR, 1992),
em interações locais, em situações institucionais causadoras de
sofrimento para o cidadão brasileiro em sua vida quotidiana. Tais
estratégias visariam, entre outras coisas, auxiliar projetistas de
sistemas e interfaces computacionais, legisladores, educadores e
o cidadão comum, usuário de sistemas digitais de informação e
comunicação, a elaborarem políticas de linguagem e posiciona-
rem-se em disputas ontológicas nos ambientes pós-sociais, além
de ampliar a inteligibilidade, no campo dos estudos da linguagem,
da problemática das identidades e subjetividades pós-humanas.
Trocando em miúdos, em um caso como o mencionado
acima, a investigação deveria buscar responder perguntas tais
como: se queremos que o texto “T.” seja legitimamente interpre-
tável como “professor de português”, o que é mais responsável
perante o contribuinte que financia sua formação: banir o uso
de Gmail pelos professores de latim (i.e., excluir este terceiro
106
ouvinte chamado AdSense da conversa entre T. e a professo-
ra), quer seja criando um filtro ou contra-script, ou policiando
os canais de acesso entre professores e alunos? Talvez banir
formas de avaliação da competência de um profissional em
formação que equivalham a fazê-lo passar por processos que
um agente automatizado poderia realizar com supostamente a
mesma confiabilidade? Ou talvez, ainda, imaginar pedagogias e
formas de avaliação e legitimação institucional que considerem
“saber” como demonstrar a capacidade de fazer os work arounds
necessários para obter um resultado enredando um conjunto
de agentes humanos e não humanos em diversas escalas de
forma maximamente confiável, como fez T.?
Aparente, soluções do primeiro tipo têm sido as mais
frequentes nos diversos atravessamentos de escala que o cidadão
brasileiro realiza em seu quotidiano, e, por isso, multiplicam-se
sofrimentos ao mesmo tempo em que antagonizam-se produtivi-
dades de ambos os lados. Soluções do segundo tipo, por sua vez,
requereriam que atores institucionais e pesquisadores de outras
áreas se aproximassem dos profissionais e pesquisadores de
Computação e Informática não apenas como “clientes com necessi-
dades” ou “fornecedores de conteúdos”, mas como parceiros cujas
visões se complementam para suturar a lacuna entre humano e
não-humano que suas próprias identidades profissionais pare-
cem necessitar alargar. Finalmente, “viradas” de legitimação como
a proposta na terceira opção não representam qualquer tipo de
solução, mas, ao contrário, a abertura de ‘caixas pretas’, ou seja,
a des-re-construção do problema que gera a premência de uma
nova ordenação ontológica e política. Embora sendo possivelmente
a menos desejável, talvez seja esta sempre a mais necessária.
Que significa “agência ética”?Recentemente, nas Maldivas, um coco foi detido pela
polícia (Coconut detained in Maldives over vote-rigging claims,
107
2013). O motivo da detenção do coco (descrito como “jovem”),
informa a notícia, foi a suspeita de fraudar eleições. A nota publi-
cada no site de um jornal britânico, esclarece o leitor de que nas
Maldivas, embora a população seja muçulmana sunita, crenças
mágicas continuam difundidas em áreas rurais. Um mago convo-
cado pela polícia, entretanto, atestou a inocência do coco.
O coco maldívio coloca em evidência, para nós, uma
interrogação que normalmente é apagada pela naturalidade
com que convivemos com suas respostas. A interrogação é:
“quem” age e pode ser responsabilizado, ou culpabilizado, por
sua conduta? Quem é, portanto, agente ético? Nem toda respos-
ta é igualmente legítima, o que é visível na explicação dada pelo
jornal a respeito das “crenças mágicas” da população das ilhas.
“Nós”, os leitores do jornal, não consideramos um coco passível
de ser culpado; se “eles” consideram, é preciso esclarecer por
quê.
Quando falamos de nossa sociedade, temos claramente
em mente que um coco não é passível de culpa; não achamos
que ele possa agir de maneira errada, e portanto não pode ser
responsabilizado, imputado, por consequências de seus atos.
Pessoas podem ser responsabilizadas, isso sim, e essa caracte-
rística está intimamente ligada ao estatuto de humano.
A questão sobre quem/o quê pode ser um agente ético
tem começado a preocupar também um outro grupo interessa-
do em saber o que faz humano um humano: cientistas e enge-
nheiros da Inteligência Artificial.
Máquinas, e em particular sistemas computacionais,
são usualmente pensadas em termos de funcionalidade – isto
é, se funcionam bem, e se este funcionamento atende ao que
é esperado. Considerações éticas, quando feitas, costumam
ser referidas à conformidade de seu projeto ou de sua aplica-
ção na relação entre os responsáveis pelo projeto ou aplicação
e a comunidade que os utiliza ou que sofre os efeitos de sua
108
utilização. Mesmo que a tecnologia codifique certos princípios
categorizáveis como éticos, ela não é normalmente vista como
“em si” agente ético, ou responsável pela sua própria condu-
ta; esta responsabilidade caberia às pessoas envolvidas em sua
aplicação.
Esta visão da tecnologia é posta em xeque por projetos
tais como o da Inteligência Artificial, que têm por objetivo explí-
cito recriar traços do humano em máquinas computacionais
(RUSSELL e NORVIG, 2003)22. O que estes projetos propõem
– começando pelo próprio nome Inteligência Artificial – é que é
possível, e desejável, desenvolver sistemas tecnológicos imbuí-
dos de competências próprias do humano.
Entre os traços humanos propostos para replicação
tecnológica em máquinas computacionais, a inteligência lógi-
co-matemática foi um dos primeiros a ser considerado. Outros
traços seguiram-se, como a sociabilidade e a emoção.
Neste contexto, a ética é mais um módulo para ser
adicionado às competências disponíveis para compor a perfor-
mance de uma máquina.
O problema de que agência é atribuível a objetos, isto é,
pensar como objetos também têm responsabilidade e capacida-
des para criar diferença, é levantado a partir de outras premis-
sas, por Bruno Latour e outros pesquisadores que desenvolvem
a Teoria Ator Rede (CALLON, 1986; LATOUR, 1994; 2005). O
ponto de partida da Teoria Ator-Rede para entender que tipo
de agência afinal podem ter os objetos é entender a separação
feita entre humanos, vistos como os agentes prototípicos, de um
lado, e objetos (tecnologias) sem capacidade intrínseca de ação,
dependentes dos humanos para causarem diferença no mundo.
Esta separação, alerta Latour, é resultado de um
22 Pelo menos para algumas de suas abordagens; é preciso considerar que a Inteligência Artificial é construída a partir de várias abordagens.
109
processo, um processo de purificação – em outras palavras, é
um ponto de chegada, não o ponto de partida que define a dife-
rença a priori. Ao invés de simplesmente aceitar esta divisão, o
que propõe Latour é analisar de maneira simétrica os entes que
estão envolvidos na ação, procurando não imputar a princípio
nenhum tipo de capacidade de ação especial para qualquer um
deles.
A ação humana, observa Latour (2001), é realizada
sempre por um ser que é agente composto – um ator-rede. Não
é possível ou útil tentar distinguir um “humano puro”, desvin-
culado a priori de qualquer artefato ou tecnologia, que “utiliza”
tais artefatos ou tecnologias. Para atingir objetivos, entidades
que têm estes objetivos aliam-se ou mobilizam outras; estas
entidades podem ser pessoas, ou coletivos ou instituições; ao
aliar-se ou mobilizar outras, já não são as mesmas, passam a
ser outras, algo diferente, e este ente já diferente é que então vai
proceder à ação. A ação está sempre imbricada nestes arranjos
de entidades, que por este motivo podemos chamar de atores-
-rede. A agência é, segundo propõe então a teoria ator-rede,
de todo o conjunto, de todo o ator-rede; posteriormente, o
que pode acontecer é o processo de atribuição desta agência a
algum componente, a algum actante, mas este não é o processo
fundamental.
Da mesma forma que a teoria ator-rede retoma a ques-
tão da agência para entender como ela é distribuída e atribu-
ída, a agência ética também pode ser repensada para além da
sua atribuição a agentes/atores pontuais, completos, avaliáveis
então como “éticos/não-éticos”. Margaret Walker (2007) reto-
ma o problema, através do conceito de entendimentos morais
(“moral understandings”). Walker ressalta que moralidade está
presente no tecido da vida social diária, conformando e sendo
informada por regras, papéis e premissas que constituem o
mundo social (2007, p. ix). Isto significa que o aspecto ético
110
não pode ser separado de todo o viver social (“moralidade não
é socialmente modular”), já que a forma como o que é moral é
compreendido constitui-se junto com a compreensão do social e
da expressão de papéis na sociedade. Esta postura constitui-se
em uma crítica a uma tradição de filosofia moral que opera atra-
vés da argumentação em torno de princípios e regras abstratas,
desvinculada da compreensão vivida pelos diversos sujeitos, a
qual confere significado a escolhas feitas por estes sujeitos.
Esta postura crítica não busca invalidar o propósito
da filosofia moral, mas antes colocá-la em uma nova susten-
tação, ao afirmar que falar sobre moral é uma tarefa de auto-
ridade, e esta situação deve ser lembrada ao examinar quem
propõe determinadas soluções morais. Assim como no caso da
tecnologia, os proponentes de sistemas morais possuem um
determinado lugar social – o lugar da academia, da formação
universitária, do homem branco – e ao invocar um “nós”, preten-
samente universal, para suas intuições morais, terminam por
excluir a participação de sujeitos que não possuem espaço
neste lugar. Esta situação aproxima-se da apontada por outra
autora que se debruça sobre o problema da ética a partir de um
ponto de vista feminista, Carol Gilligan. Para Gilligan (1993) o
pensamento ético que não se encaixa no formato de solucionar
um problema abstrato a partir de raciocínio sobre princípios
consistentes acaba por ser considerado “não desenvolvido”, e os
pontos levantados são desconsiderados por não caberem nesta
visão do problema.
Recentemente, um número especial de IEEE Intelli-
gent Systems (2006) foi dedicado à “ética de máquinas”, apre-
sentando vários artigos que discutem a questão. A discussão
(por exemplo, ANDERSON, ANDERSON e ARMEN, 2006) tenta
demarcar uma diferença entre o problema do uso de siste-
mas computacionais por humanos, exemplificado por invasão
de computadores, propriedade de software e privacidade, e o
111
problema da conduta de máquinas ao afetar pessoas ou outras
máquinas. Fica claro, na apresentação da discussão, o que está
em foco: a possibilidade de que – em algum tempo futuro ou
presente – sistemas computacionais sejam agentes cuja ação
mereça consideração moral, semelhante àquela dedicada aos
agentes morais prototípicos: os humanos. Mas em que termos
essa consideração é especificada?
A capacidade moral projetada para sistemas compu-
tacionais inteligentes é colocada, de forma um tanto circular,
como “decisão correta moralmente”. A pergunta de pesquisa
realizada é, “é possível desenvolver sistemas computacionais
que decidam corretamente?”, e é colocada decididamente em
termos de decisão > ação que possa ser considerada como “boa”
(WALLACH e ALLEN, 2009).
O decidir/agir correto ético encontrado nas propostas
dos proponentes da Inteligência Artificial opõe-se ao que seria
meramente uma funcionalidade correta; o limite, no entanto,
não é definível com facilidade. Ao procurar delimitar ou esclare-
cer o que poderia caracterizar estas máquinas éticas, o discurso
designa-as como aquelas que “apenas desempenham ações que
possam ser provadas eticamente permissíveis” (BRINGSJORD,
ARKOUDAS e BELLO, 2006), ou em “conformidade com as regras
da conduta correta – moral ou virtuosa – (COELHO, TRIGO e
COSTA, 2010), ou com “a habilidade de raciocinar sobre proble-
mas e dilemas éticos” (MCLAREN, 2006).
Ético neste sentido é especificado algumas vezes como
o “certo” ou “errado” (de alguma ação, ANDERSON, ANDERSON
e ARMEN, 2006), o socialmente normal, apropriado, verdadeiro,
certo ou bom (COELHO, TRIGO e COSTA, 2010); delimitando
entre “evitar possível comportamento nocivo” (das máquinas
autônomas, ANDERSON, ANDERSON e ARMEN, 2006) ou, na
versão assertiva, serem “benéficos para a humanidade” (WALLA-
CH e ALLEN, 2009). Um recurso que é aproveitado é a constru-
112
ção de exemplos fictícios, invocando a ajuda do senso moral
do leitor, buscam demonstrar a insuficiência de uma condu-
ta computacional funcionalmente correta, como ao questionar
se um robô multifuncional deve ajudar um estranho, mesmo
que em prejuízo de completar tarefas para seu dono (ALLEN,
WALLACH e SMIT, 2006); ou auxiliar um humano a decidir
sobre o direito de uma pessoa morrer, isto é, eutanásia (MCLA-
REN, 2006).
A concepção ética avançada nestas propostas é cons-
truída sobre dois elementos importantes. O primeiro elemen-
to é aquilo que é qualificado como ético, o par decisão/ação
– elemento que configura o ser agente, no sentido de que desem-
penhar esta conduta específica é o que confere ao ente o esta-
tuto moral. O segundo é o código, ou o pacote normativo que
determina a decisão/ação, visto como um conjunto de prin-
cípios abstratos. O problema de engenharia a ser resolvido é
encontrar um código que possa ser dito adequado, e em seguida
produzir uma decisão determinada por e coerente com o código,
e que por isso é a decisão correta; a decisão deve implicar – e
assim justifica – a ação.
A decisão acerca de quem pode ser pensado como agen-
te ético está relacionada à ontologia de quem responde, isto é,
sua descrição do que existe. A constituição do mundo – com o
que ele é preenchido, e quais as características – não é a mesma
para todos. No entanto, ontologias diferentes não têm todas
o mesmo valor perante nós; enquanto que a agência do coco
precisava ser explicada como crença para que pudesse figurar
na página do jornal inglês, a agência moral dos robôs é proposta
pelos cientistas como real, decorrente de capacidades intrínse-
cas a serem construídas em suas máquinas.
A linha divisória apontada pela Teoria Ator-Rede reapa-
rece aqui, em máquinas que são atribuídas de agência não por
participarem em associações (embora deveras participem), mas
113
por uma reivindicação de terem transferidas para si, em bloco,
o conjunto de peculiaridades e capacidades que identificam o
humano. É reencenada uma ontologia de humanos isolados,
agentes separados de um contexto, ao qual são ligados apenas
por canais de comunicação e ação.
A pesquisa que proponho é próxima dos casos investiga-
dos anteriormente – projetos de sistema de informação em organi-
zações governamentais na área de tecnologia e saúde, e produção
de subjetividade vinculada a tecnologias de informação emergen-
tes. Assim como estes casos, investigo como se constroem e esta-
bilizam certos entes que pretendem passar a constituir a ontologia
corrente de nosso universo tecnológico. O conceito de ator-re-
de opera aqui como uma lente de contraste que permite exami-
nar premissas embutidas sem maior discussão nesta particular
instância de construção e estabilização, desenhando alternativas
para a compreensão de noções de humano, de agência, de ética,
que por si são demasiado familiares para provocar reflexão.
O projeto de uma agência moral para máquinas, desta
forma, desvela também premissas sobre o humano, modelo
desta agência moral, vigentes na comunidade da Inteligência
Artificial e da tecnologia computacional em geral. Estas premis-
sas são colocadas como naturais e universais – o que constitui
a agência humana, o que conta como inteligência, como melhor
decidir, como corretamente agir. Examiná-las e apontar seu
caráter contingente, não universal, é tanto mais difícil quan-
to mais parecem razoáveis e verdadeiras, na medida em que o
sujeito que examina compartilha do mundo social e cultural em
que estas premissas estão fundadas (WILD et al., 2011).
O que conta como ética, definir e controlar o que conta
como bem viver, é um problema político. Discutir a versão, colo-
cá-la em disputa neste caso particular já é um desafio, na medi-
da em que a tecnologia computacional é um campo cuja versão
é solidamente construída, repousando sobre uma percepção de
114
sucesso e de essência do viver contemporâneo.
O ponto chave não é simplesmente confrontar a versão
do campo tecnológico da computação, mas trazer outras versões
para a arena, para enriquecer o debate sobre o que conta como
humano e como sua agência se constitui. Um ponto de passa-
gem é interessar, no sentido latouriano, a comunidade por esta
discussão – e, no caminho, não deixar de refletir sobre a posi-
ção de partida do pesquisador que se envolve com interroga-
ções sobre o humano: como negociar seu estatuto ético com os
grupos envolvidos e afetados por estas interrogações?
Computação em nuvens: uma tensão entre o retorno às origens oligopolistas da computação e o avanço em direção a um mercado pulverizado
O objetivo do presente texto é o de apresentar, de uma
maneira muito sucinta, algumas modificações que foram ocor-
rendo no desenrolar do grande novelo chamado Ciência da
Computação, sob a ótica da Teoria Ator-Rede, cujo marco teóri-
co apoia-se, sem sombra de dúvida, no tripé de cientistas Bruno
Latour, John Law e Michel Callon.
É importante ressaltar que cada um destes mestres foca
mais fortemente uma característica do próprio marco teórico,
fazendo com que até nisso haja uma certa heterogeneidade.
Aliás, heterogeneidade é a marca fundamental dos Estudos de
Ciência e de Tecnologia (um outro nome pelo que se refere à
Teoria Ator-Rede). Uma heterogeneidade que, por meio da leitu-
ra de (con)textos objetiva levar o leitor não uma conclusão, mas
a um processo de problematização, de reflexão.
O caso do texto a seguir, a ênfase foi no processo de
construção de um novo mercado. Neste tipo de construção, o
cientista mais atuante, isto é, o que mais os estuda, é Michel
Callon. Na sua obra “The Laws of the Markets” (CALLON,
1998), Michell Callon faz inclusive duas contraposições impor-
115
tantes: a primeira é a da teoria econômica (que ele chama de
Economics) confrontando-se com a prática econômica (que ele
chama Economy). A segunda contraposição importante é a da
visão neoclássica dos economistas, que é mais conhecida como
mainstream, e que bem poderia ser confundida com a Economi-
cs, confrontando-se com a visão institucionalista dos economis-
tas, e que bem poderia ser confundida com a Economy.
O que o texto objetiva questionar, através de uma exibi-
ção resumida do processo de desconstrução de um mercado
de TI e da construção de um novo (suposto) mercado desta
mesma tecnologia, é se, apesar de tecnologias terem passado
por ciclos de concepção/adoção/reconcepção (CALLON, 1995)
as relações de poder (produtor x consumidor, por exemplo)
mudaram ou se o que aconteceu foram apenas deslocamen-
tos/mera maquiagem.
Origens e Desmantelamento Inicial do Mercado da Computação
Na origem da computação propriamente dita, domi-
navam os mainframes (computadores ou máquinas de grande
porte) e seus terminais. As máquinas eram oriundas de poucas
empresas, como IBM, Digital e Burroughs. Os profissionais eram
devidamente enredados, com pouca mobilidade entre as redes e
estas eram muito sólidas (LAW, 1992). Um exemplo disso eram
os conhecidos “profissionais IBM”.
O tempo passou e o primeiro microcomputador IBM PC
apareceu, rumando à arquitetura aberta. As redes dos main-
frames começaram a se abrir e foi iniciado um processo de
desconstrução do ator-rede “profissional da empresa X” para
outros mais fragmentados (hardware / software / profissionais).
116
Mudam as Regras, surgem Novas Disciplinas e Novos Mercados (Já Livres)
Usando a estratégia da carona (LATOUR, 1997), o
software MS-DOS passou a trabalhar na arquitetura da IBM. O
hardware da IBM era aberto, o software da Microsoft era fecha-
do e o profissional de Informática deixou de ser exclusivo. A
Microsoft e seus artefatos começaram a ganhar força e um novo
mercado começou a ser construído: o de engenharia de software
(CALLON, 1998).
O próximo passo foi interligar os microcomputadores
em redes físicas; a Internet, que já funcionava fomentada pela
DARPA23 como uma rede acadêmica/de defesa, começa a ser
expandida por meio destas redes físicas. Esta expansão rumou
na direção comercial e outra tecnologia é adotada (CALLON,
1995) mais ostensivamente: o software livre (RAYMOND, 2001).
As redes de computadores passaram a ser organismos
vivos, verdadeiras infraestruturas de informações atuando como
atores-redes, interligam-se por meio do que (HANSETH, 2002)
chama de gateways, crescendo e se pulverizando sem controle.
Recuperando o Controle PerdidoA forma (encontrada) de recuperar o controle foi a
seguinte: as empresas/usuários focaram no seu negócio-fim e
a TI passou a ser cada vez mais empurrada para outras empre-
sas especializadas que tinham a TI como negócio-fim. O negó-
cio-fim TI passa a deixar ativos específicos como conhecimento,
computação e (interligação em) redes mais claros, revelando
serem importantes os custos de transação envolvidos (COASE,
1937; WILLIAMSON, 1985).
O que passaria a ser conhecido como “computação em
23 A sigla DARPA significa Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA). É a agência americana de desenvolvimento de projetos militares. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/DARPA
117
nuvem” começa a emergir (GEELAN, 2008). A Nuvem traba-
lha usando uma característica básica chamada virtualização
(CACERES et al., 2009; VERAS, 2012). É a virtualização que
permite a abstração de localização (BREITAMN e VITERBO,
2010) e que, por fim, facilita a pulverização do acesso.
Por fim, apesar desse processo acarretar abstração de
localização e pulverização do acesso, a aparência do resultado
que se tem hoje é semelhante ao que havia no início: centraliza-
ção do processamento com distribuição/pulverização da intera-
ção com os usuários, o que é semelhante ao que acontecia com
os mainframes, o que traz como resultado uma aparente contro-
vérsia: o avanço tecnológico remete a um status-quo-ante.
Um Breve Questionamento ...O questionamento que se coloca aqui é: será que depois
de todo este processo de criação de novas disciplinas, de novos
mercados, de expansão do uso da TI ao novos usuários, e
mesmo do nível da atividade dos usuários, que já (supostamen-
te) podem intervir no processo de construção/desconstrução,
terá tudo sido só aparência?
Uma das motivações que aparecem lado a lado com este
questionamento é o fato de grandes atores do passado, como a
Big-Blue (IBM) estarem usando seu poder de compra para adqui-
rir os três ativos específicos citados de uma só vez para manter
sua fatia no mercado24 e, provavelmente, o nível de controle que
detém sobre o mesmo, ou seja, parte de um oligopólio.
ConclusãoO presente capítulo apresentou estudos ligados ao
debate da Teoria Ator-Rede no campos das Tecnologias da
24 Fonte: “Na disputa com a Amazon, IBM vai às compras” http://convergen-ciadigital.uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=33946&sid=97#.Uj5U3rxv
118
Informação e Comunicação. Como foi possível notar, os estu-
dos brasileiros na área têm versado sobre diversos temas, como
governo eletrônico, sistemas de informação em saúde, cultu-
ra digital, inteligência artificial, computação nas nuvens, entre
outros. Os estudos apresentados no presente capítulo de forma
alguma representam a totalidade das pesquisas e temas rela-
cionados à abordagem da Teoria Ator-Rede nos estudos de TIC.
Por diversos fatores e limitações, como pode-se esperar, não
foram reunidos todos os trabalhos da área. Além dos trabalhos
e temas apresentados, existem outras pesquisas relevantes
para a área de TIC. Contudo, esperamos apresentar neste capí-
tulo uma parcela significativa do debate brasileiro em torno da
abordagem da Teoria Atore-Rede nos estudos de TIC.
Tais pesquisas buscam uma alternativa ao método
positivista que é a corrente dominante na maioria dos campos
pesquisa, inclusive nos diversos temas abordados no capítulo.
Pensamento este que tem o seu valor, mas que também é base-
ado em pressupostos, os quais muitas vezes não ficam claros
e cada vez mais dificulta o desenvolvimento de novas ideias.
Assim, a abordagem da Teoria Ator-Rede, ao superar categorias
pré-definidas, a dicotomia natureza e sociedade e lógica hipoté-
tico-dedutiva, e trazer os híbridos e as controvérsias científicas
para o centro do debate, vem trazer um suporte teórico para
pesquisas que buscam novas formas de encarar problemas até
então pouco abordados no debate acadêmico brasileiro.
Para além do debate acadêmico, as pesquisas apresen-
tadas neste capítulo também se debruçam sobre problemas da
prática em torno do desenvolvimento de TIC. Ao problematizar
os processos de construção de sistemas de informação, a inte-
ração em ambientes digitais e a ética dos híbridos, tais pesqui-
sas refletem sobre problemas da sociedade brasileira, os quais
também podem se prestar a outros locais. Indo além, buscam
alternativas para práticas que estão naturalizadas no cotidiano.
119
Embora a Teoria Ator-Rede seja muitas vezes criticada por ser
excessivamente descritiva e até mesmo amoral, as pesquisas
apresentadas, baseadas nesta abordagem, por outro lado, reve-
lam controvérsias que nos levam a refletir sobre os processos de
concepção e construção de TIC.
As pesquisas baseadas na abordagem da Teoria Ator-
-Rede, têm crescido nos últimos anos, mas também se desen-
volvem de maneira heterogênea. Observa-se que os estudos
apresentados neste capítulo se embasaram em diversos concei-
tos relacionados a abordagem da Teoria Ator-Rede, a qual vem
sendo debatida há mais de trinta anos e passou por diversas
críticas. Assim, nota-se que os estudos sobre governo eletrônico
e sistemas de informação em saúde são baseados em concei-
tos de desenvolvidos nas décadas de 1980 e 1990, enquanto
os trabalhos voltados à cultura digital, inteligência artificial e
computação nas nuvens participam de um debate mais recen-
te. Ou seja, a abordagem da Teoria Ator-Rede, coma era de se
esperar, não tem se desenvolvido de maneira igual em todos
os campos. Desse modo, abre-se uma janela de oportunidades
para a discussão dos conceitos empregados e desenvolvimento
dos estudos nas diferentes áreas.
O fato de a abordagem da Teoria Ator-Rede fornecer um
vocabulário comum e um arcabouço conceitual transdisciplinar
significa que existe, ou que deveria existir, “simetria” entre os
campos disciplinares representados no aglomerado e na área de
TIC, em geral. O debate em torno da própria Teoria Ator-Rede
evidencia isso não é possível, que cada um, de algum ponto de
vista desses, vai provavelmente tentar problematizar a coisa de
tal forma a atribuir aos outros campos algum papel, mas fazer
com que todos passem por sua própria linguagem.
Contudo, a não generalização dos conceitos não deve
ser vista como um problema, mas, na verdade, como um pres-
suposto que evita o “monologismo” próprio do positivismo que
120
tais pesquisas buscam fazer um contraponto. Como, porém, lidar
com a questão da “validação” nesse cenário de aparente “relativis-
mo”, sem o quê, não estaríamos sendo responsáveis? Um possí-
vel caminho é o que utilizamos, ou tentamos ensaiar no capítulo,
que é validar pelo diálogo, isto é, não submeter os fatos/teorias
do outro a provas de força a partir de nossas problematizações
individuais, mas validar o outro, seus fatos e teorias pela capaci-
dade que demonstrou de me fazer ampliar, fortalecer e des-re-es-
tabilizar, pelo diálogo, meus próprios fatos/teorias.
Por fim, espera-se que os trabalhos apresentados neste
capítulo permitam desenvolver o debate em torno da aborda-
gem da Teoria Ator-Rede nos estudos de sociais de TIC. Os estu-
dos debatidos neste capítulo, podem ser debatidos em outras
pesquisas, assim como outros conceitos podem ser aportados
para área.
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CONTROVÉRSIAS E CONSTRUÇÃO DA CIÊNCIA
Entre anti-fatos, fatos e não-fatos: a semiótica mate-rial da história da Palaeolama (camelidae) Sul Americana
Camilla Pires Marcolino; Raoni Rajão
ResumoO presente artigo se inspira na semiótica material para
compreender como ocorre a construção da história natural a
partir do estabelecimento de fatos científicos no campo da pale-
ontologia. Para isso são revisitados e re-significados as expe-
riências obtidas pela primeira autora desse artigo durante os
dois anos que atuou como pesquisadora em quatro Museus de
Ciências Naturais da América do Sul. Em particular, são iden-
tificados e analisados a partir da teoria Ator-Rede os pontos
de passagem obrigatórios (gestores das coleções, programas
de pós-graduação), os atores humanos (orientadores, técnicos
de laboratório) e não-humanos (fosseis, recursos financeiros).
Nesse contexto são discutidas a biografia de três entidades: um
contra-fato (uma construção que visou questionar a veracida-
de da existência de uma nova espécie de camelídeo afirmada
por um grupo rival ao submeter esse fato a um teste de força);
um fato (o estabelecimento do teor da dieta dos camelídeos a
partir das inscrições obtidas por copólitos); e um não-fato (a
incapacidade da pesquisadora de provar a existência de uma
nova espécie de camelídeo – transformando uma opinião em
um fato – em consequência da atuação de um ponto de passa-
gem obrigatório). A partir dessa análise o artigo argumenta que
os fatos científicos no campo da paleontologia são construções
sócio-materiais, que dependem da aliança intima com atores
não-humanos, como instrumentos de laboratório (inscritores)
e fósseis. Porém, esses fatos não surgem de modo natural e
neutro a partir da materialidade inerte de fósseis e coprólitos
132
de animais extintos. Ao contrário, o estudo mostra que mesmo
em campos pouco politizados a construção de fatos depende
também do alinhamento de interesses políticos, econômicos e
pessoais. Sendo assim devemos considerar a história natural
como sendo enredamentos temporários, dinâmicos e contingen-
cias, seja do ponto de vista social que material.
Palavras-chave: Teoria ator Rede; alinhamento de
interesse
Introdução Em um mundo populado por imagens de tiranosauro
Rex devoradores de homens, pterodátilos cibernéticos e mamu-
tes falantes, alguns trechos da história natural do planeta são
conhecidos com a mesma naturalidade que passagens íntimas
de suas histórias familiares. Essa visão é reforçada quando no
ensino fundamental são dados para essas crianças livros didá-
ticos com ilustrações das eras geológicas do planeta (veja Figu-
ra 1). A partir da união do ensino formal de “Ciências” (com C
maiúsculo) e das imagens midiáticas impressas nas lancheiras,
desenhos animados e filmes 3D, surge um imaginário coletivo
de um passado distante que sempre esteve presente entre nós,
mesmo tendo ocorrido centenas de milhões de anos antes da
possibilidade de haver qualquer tipo de testemunho humano.
Figura 1: Ilustração dos
períodos e eras geológicas
do planeta.
133
Porém alguma daquelas crianças, talvez inspiradas
pelas imagens de dinossauros de sua infância, quando adultas
buscam na universidade um meio para conhecer melhor aque-
les seres fantásticos. Nesse momento esses jovens se deparam
com a Paleontologia (também escrita com P maiúsculo), uma
disciplina científica que busca “descobrir” a história natural.
Aqui o imaginário de uma história que esteve sempre presente é
substituído pelo imaginário da ciência que descobre o passado
em sentido literal, ao retirar as camadas de terra que cobriram
e esconderam a realidade imanente de fosseis animais e vege-
tais. Ao recuperar os fósseis, o imaginário da ciência postula
que a disciplina é ao mesmo tempo o único meio e o único
obstáculo existente entre os fósseis, de um lado, e os fatos
que na sua coletividade formam a história natural, do outro.
A disciplina é um meio, pois através da leitura dos estudos já
realizados em determinada área é possível “avançar” a ciência
de modo incremental e constante. A disciplina também é um
obstáculo pois ela exige a adoção do método científico, o que
implica na adoção de procedimentos rígidos e sistemáticos de
modo a evitar a interferência da subjetividade e outras fraque-
zas humanas (Fourez, 1995).
No campo da historiografia, essa visão da história como
resultado de uma ciência objetiva já foi amplamente questio-
nada. A partir do movimento dos Annales, iniciada na França
no início do século XX, historiadores de diferentes especiali-
dades argumentaram que a narrativa histórica produzida na
contemporaneidade tende a ser mais o resultado das preo-
cupações atuais do que um simples reflexo de um passado
distante. Dessa forma esses autores reconhecem o papel do
historiador na seleção, interpretação e interpelação de fontes
históricas. Sendo assim, esses documentos são vistos como
meros “vestígios” e não como portadores de fatos absolutos e
auto-evidentes (Bloch, 2001). Esse ponto foi bem ilustrado por
134
Gilberto Freyre quando disse que na sua obra maior “entrara
‘leite de muitas vacas’; mas... o queijo era de seu fabrico: cria-
ção sua” (Pallares-Burke, 2005: 39). Ao incluir o historiador
nesse processo, torna-se evidente claro que própria historio-
grafia, como todas as atividades humanas, está condiciona-
da a dinâmicas políticas (White, 1982). Isso é particularmente
claro no caso do uso de narrativas históricas sobre a existên-
cia mítica de uma origem comum para dar identidade e coesão,
e assim contribuir para a governança da população (Anderson,
1983; Carvalho, 1990; Rajão & Duque, 2013; Sargent, 1988).
Porém, essa discussão na historiografia tem se limi-
tado somente a história social, feita e contada pelos huma-
nos. Sendo assim, a “história do sistema solar [...] é da alçada
da astronomia”, como todo o restante da história natural “não
pertence à história dos historiadores”. (Bloch, 2001: 53). Isso
faz com que a história sobre nosso passado pré-humano conti-
nue sendo resultado de uma ciência objetiva, longe do alcance
dos estudos sociais e das humanidades. Mas ao contrário da
historiografia, as ciências naturais não conseguiram gerar um
autoexame crítico de suas práticas. Por isso, que para levar a
compreensão da história natural para além do imaginário da
ciência moderna, temos que buscar ajuda em outras discipli-
nas que não a própria história ou as ciências naturais.
No presente artigo buscamos inspiração na antropolo-
gia da ciência, e em particular semiótica material para compre-
ender a construção da historia natural no período quaternário.
Para isso partiremos da ressignificação das observações e
memorias obtidas pela primeira autora desse artigo, obtidas
durante os seus quatro anos de graduação como bióloga e dois
anos de atuação como pesquisadora de mestrado no campo da
eco-paleontologia, uma disciplina ligada à paleontologia que
propõem descrever os ecossistemas do passado e compreender
a sua estrutura e funcionamento, permitindo assim, recolo-
135
car os organismos fósseis no contexto físico e biológico da sua
época. Nesse contexto buscou-se obter uma visão da histó-
ria natural ao mesmo tempo externa (visto o uso de conceitos
teóricos estranhos à paleontologia) e interna (visto a experiên-
cia subjetiva e vinculo da primeira autora). A partir dessa visão,
mostraremos que os mesmos argumentos desenvolvidos pelo
movimento dos Annales com relação à história humana e o ofício
do historiador, podem também ser estendidas para a compreensão
da história dos não-humanos e do ofício do paleontólogo. Além
disso, argumentaremos sobre a importância de aliar o entendi-
mento da ação humana (já evidenciada pela historiografia crítica)
a análise da ação dos não-humanos na construção da narrativa
histórica.
O restante desse artigo está organizado da seguinte forma.
Na próxima sessão será oferecida uma introdução aos Estudos
Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT), como foco nos conceitos
desenvolvidos pela Teoria Ator-Rede (TAR). Na terceira sessão será
apresentada a biografia de três entidades: um contra-fato (uma
construção que visou questionar a veracidade da existência de
uma nova espécie de camelídeo afirmada por um grupo rival ao
submeter esse fato a um teste de força); um fato (o estabelecimen-
to do teor da dieta dos camelídeos a partir das inscrições obtidas
por coprólitos); e um não-fato (a incapacidade da pesquisadora de
provar a existência de uma nova espécie de camelídeo – transfor-
mando uma opinião em um fato – em consequência da atuação de
um ponto de passagem obrigatório). Na sessão final do artigo será
discutida a relevância do mesmo para o entendimento da história
como uma construção social e material, e que envolve alinhamen-
tos contingenciais, questões políticas e redes parciais.
Da ciência normativa às redes de atores Desde a antiguidade, se discute as condições para a
obtenção de conwhecimento valido sobre a realidade. Nesse
136
campo hoje conhecido como filosofia da ciência, metafísicos e
epistemólogos de diferentes gerações ponderaram através do
método especulativo sobre o que consiste a realidade última do
mundo e como compreendê-la. Porém, ao manter-se distante
dos locais e dos atores que de fato “fazem” a ciência, a filosofia
da ciência não conseguiu ir além de uma visão normativa da
ciência. Sendo assim, nesses estudos a validade do conheci-
mento se da por construtos lógicos abstratos e pelo seguimento
de regras de conduta idealizadas onde o cientista se põe de fora
e acima do resto da sociedade. Foi somente nas últimas décadas
que o estudo da ciência deixou de ser uma atividade especu-
lativa e ganhou um corpo empírico relevante ao se voltar para
as práticas cotidianas ligadas à constituição dos fatos (Latour,
1993, 1999; Monteiro, 2012). Para isso, uma nova geração de
pesquisadores no nascente campo dos Estudos Sociais de Ciên-
cia e Tecnologia (ESCT) se inspirou na antropologia para pesqui-
sar o trabalho cotidiano dos cientistas e seus experimentos de
laboratório como o mesmo olhar que atém então se observou as
práticas dos xamãs tribais e seus rituais (Callon, 1986; Collins,
1985; Knorr-Cetina, 1981; Latour & Woolgar, 1979). A partir
daí surgiu o conceito da “ciência como prática”, ou seja, ao
contrário da visão do conhecimento científico como construtos
universais e abstratos proposto pela filosofia, surge uma visão
da ciência como resultado de performances locais dependentes
de contextos sociais específicos (Pickering, 1992).
Um desdobramento importante dos estudos da ciência
como prática dos anos 1970 e 1980 foi o surgimento da teoria
ator-rede (TAR), também conhecida como semiótica material
(Law, 2009). Como o nome sugere, a TAR compreende a forma-
ção de fatos e artefatos como sendo o resultado de redes de
atores. Um dos pontos cruciais da TAR é a afirmação ator é
tudo que age, deixa traço, produz efeito no mundo, podendo se
referir a pessoas, instituições, coisas, animais, objetos, máqui-
137
nas, etc. Ou seja, ator aqui não se refere apenas aos huma-
nos, mas também aos não-humanos. Um ator é definido pelos
efeitos de suas ações, de modo que o que não deixa traço não
pode ser considerado um ator. Somente podem ser considera-
dos atores aqueles elementos que produzem efeito na rede, que
a modificam e são modificados por ela e são estes elementos que
devem fazer parte de sua descrição. Latour enfatiza ainda que
o conceito de rede não deve ser confundido com o objeto a ser
descrito, que é sempre também um ator em relação. Uma rede
de atores não é redutível a um ator sozinho; nem a uma rede,
mas composta de séries heterogêneas de elementos, animados
e inanimados conectados, agenciados. Ela é simultaneamente
um ator, cuja atividade consiste em fazer alianças com novos
elementos, e uma rede capaz de redefinir e transformar seus
componentes (Moraes, 2002). Nesse contexto, os instrumentos
de laboratório como todos os outros atores capazes de gerar
“inscrições” tornam-se tão importantes quanto os próprios
pesquisadores, pois sem as inscrições não se pode chegar a
um resultado. Latour expõe a importância dos inscritores na
seguinte passagem:
“[...] Iremos mais precisamente designar
com este vocábulo “inscritores” todo elemen-
to de uma montagem ou toda combinação
de aparelhos capazes de transformar uma
substância material em uma figura ou em
um diagrama diretamente utilizáveis por um
daqueles que pertencem ao espaço do “escri-
tório”[...].” (Latour & Woolgar, 1979)
Ao acompanhar a ciência em ação, fica evidente que
toda construção de um fato envolve também um processo polí-
tico, vista pela TAR como um processo de alinhamento e trans-
lação de atores. Como mostrado inicialmente por Callon (1986)
138
no seu estudo da domesticação de ostras no norte da França,
as redes sócio-técnicas que dão suporte aos fatos científicos
não emergem naturalmente de modo a tornar-se reflexo de uma
realidade externa pré-existente. Ao contrário, a formação dessas
redes é resultado da agencia de alguns atores que ativamente
buscam alinhar um número crescente de atores à sua própria
rede. Para isso, é necessário haver um processo de translação
de interesses, onde os atores envolvidos (ex. pesquisadores)
atraem outros atores (ex. pescadores) ao adaptar/reinterpretar
seus próprios interesses como sendo projetos compartilhados
(ex. estudo cientifico mostrado como salvação para a indústria
pesqueira). Além disso, esses atores chave têm de lidar com
pontos de passagem obrigatórios, ou seja, conexões com atores
chave (ex. autoridades locais, agencias de fomento, chefes de
laboratório) cuja falta de colaboração inviabilizaria todo o proje-
to. Em outras situações esses atores também buscam manter-
se como pontos de passagem obrigatórios de suas próprias
redes, de modo a controlar o processo de translação e manter o
alinhamento dos demais atores (Latour, 1987, 2007).
Para a TAR somente a partir do êxito na construção de
uma rede é possível gerar um fato, sendo que um fracasso resul-
ta em um mero não-fato, uma afirmação sem validade científica.
Além disso, mesmo em caso de sucesso esses fatos científicos
são construtos temporários visto que a qualquer momento pode
surgir um contra-laboratório que consiga construir uma rede
mais forte, e com isso gerar um contra-fato capaz de tornar
inválido um fato científico até então tido como absoluto e univer-
sal. Essa consideração em consequências importantes para o
entendimento da história natural, visto que o passado deixa de
ser algo imutável para se tornar o resultado de enredamentos
temporários e dinâmicos (Latour, 1999).
Na próxima sessão examinaremos a agencia de um
conjunto de atores envolvidos no estabelecimento de um novo
139
dado científico ligado ao período quaternário (i.e. fato), ao ques-
tionamento de um fato científico até então solidificado (i.e.
contra-fato) e à tentativa sem êxito de se provar uma teoria
científica (i.e. não-fato). Temos como atores humanos a primei-
ra autora desse artigo, os curadores das coleções estudadas,
os orientadores e técnicos dos laboratórios e colaboradores. Os
atores não humanos seriam os fósseis, as laminas, os mate-
riais analisados, etc. Em particular, enfatizaremos o processo
de translação e alinhamento entre esses atores e o papel central
dos pontos de passagem obrigatórios no processo de construção
da história da Palaeolama sul-americana.
Palaeolama em ação Seguindo esses conceitos apresentados pela TAR o
presente trabalho teve como base atores humanos com forte
alinhamento de interesse. Entrem os principais atores huma-
nos estão eu, a primeira autora desse trabalho, que na época
era uma recém formada em ciências biológicas com o objeti-
vo em elaborar um projeto para desenvolver no meu mestra-
do; O curador de uma das maiores coleções paleontológicas de
mamíferos do quaternário da América do Sul (será citado nesse
trabalho com o pseudônimo de Paleocurador); Um professor de
uma universidade federal brasileira (citado nesse trabalho com
o pseudônimo de Paleoprofessor); Esses atores humanos foram
um ponto de passagem obrigatória para essa pesquisa. O Pale-
ocurador foi o acesso a coleção de pesquisa base para o estudo
e as demais coleções brasileiras e da América do Sul, uma vez
que foi ele quem me apoiou a escrever o projeto e pedir financia-
mento do mesmo junto ao CNPq. O Paleoprofessor foi um ator
fundamental ao meu desenvolvimento como pesquisadora, já
que ele me deu o acesso a uma instituição de ensino me possi-
bilitando obter o título de mestre. Ambos, Paleocurador e Pale-
oprofessor, me possibilitaram a construir uma rede com outros
140
atores humanos de fundamental importância para o desenvolvi-
mento da minha pesquisa que serão citados mais adiante. Com
o objetivo de conseguir integrar esses dois importantes atores a
rede, eu tive que fazer um forte alinhamento de interesse com
eles. O sucesso desse trabalho foi obtido graças possibilidade de
formação de um mesmo objetivo entre os três principais atores
humanos.
Durante a minha graduação no curso de Ciências Bioló-
gicas tive a oportunidade de trabalhar por três anos com pesqui-
sa. Fui orientada por bons professores nesse período, que me
ajudaram a desenvolver os meus próprios projetos e pedir finan-
ciamento para os mesmos. Como graduanda eu consegui finan-
ciamento para dois projetos de pesquisa pela FAPEMIG durante
24 meses. Nesse período eu trabalhava com comportamento de
primatas. Esses projetos renderam bons resultados, como um
prêmio de iniciação científica, apresentações em congressos e
capítulos de livros.
O sucesso que obtive na minha graduação, me deu a
certeza que eu queria continuar trabalhando com pesquisa após
minha formatura. Com o diploma em mãos, eu já não queria
mais trabalhar apenas com comportamento animal, eu almeja-
va um projeto maior que envolvesse outras áreas e que pudes-
se ser usado no meu mestrado. Para isso eu fui atrás de um
ex-professor e curador da maior coleção paleontológica de gran-
des mamíferos da América do Sul (como já mencionado ante-
riormente, o Palaeolcurador). Cheguei ao Palaeocurador com a
ideia de trabalhar com a evolução de mustelídeos, porem ele me
fez uma contra proposta falando que tinha grande interesse em
rever o material de camelídeos, uma vez que algumas recentes
publicações iam contra a sua ideia.
O Paleocurador me mostrou uma publicação que
causou-lhe além de indignação, um descontentamento pesso-
al. Nesse artigo alguns pesquisadores franceses descreveram
141
uma nova espécie de Palaeolama com o material encontrado no
Piauí, sem comparar esse material com o da coleção do Pale-
ocurador, que é a maior coleção da América do Sul (chamare-
mos aqui à coleção do Paleocurado de Museu A / coleção A). A
publicação desse artigo foi para o Paleocurador uma afronta.
Para ele tanto o material do Piauí quanto o material da coleção
dele (que é proveniente da Bahia) se referem à mesma espé-
cie de camelídeo. De acordo com o Paleocurador “...Eles não
podem descrever uma espécie no Piauí sem analisar a minha
coleção que a maior! Esse bicho que eles descreveram é mesma
Palaeolama que temos aqui! Se você medir o nosso material vai
achar a mesma coisa.” Assim o Palaeocurador deixou claro para
mim o seu interesse em fazer um teste de força ao artigo dos
franceses. O Palaeocurador me propôs escrever um projeto que
se adequasse aos interesses dele. Uma vez que eu concordasse
em realizar um trabalho com o tema proposto por ele, ele me
deixaria estudar a sua coleção e ainda enviaria o meu projeto
ao CNPq em busca de financiamento. Esse teste de força foi o
contra-fato central para o início da minha pesquisa.
Eu sabia que sem um pesquisador influente nessa área
eu jamais conseguiria financiamento para um projeto desse
porte. Sendo assim, eu alinhei o meu interesse em fazer mestra-
do ao interesse do Palaeocurador e me esforcei para escrever
um bom projeto para o Palaeocurador entrar com o pedido de
verba junto ao CNPq. O projeto feito por mim com o aval do Pala-
eocurador foi submetido ao edital Universal do CNPq. Alguns
meses depois saiu o resultado de aprovação do projeto. Pron-
to! Eu tinha um projeto de pesquisa aprovado por pesquisador
mundialmente reconhecido na sua área e com financiamento do
CNPq - o meu primeiro alinhamento de interesse estava feito.
Com o recurso financeiro e as portas abertas as cole-
ções de pesquisa, eu precisava de uma instituição acadêmica
para fazer o meu mestrado. Foi dessa necessidade que surgiu
142
o meu segundo alinhamento de interesse. Eu descobri em
uma universidade federal a existência do Paleoprofessor, que
era recém chegado ao Brasil e estava começando a sua carrei-
ra acadêmica na instituição. Fui atrás dele e apresentei o meu
projeto já financiado e com alguns dados coletados. O Paleopro-
fessor se interessou muito em mim, uma vez que além de eu ser
uma aluna que já vinha com um projeto pronto e financiado, ele
sendo meu orientador teria acesso a coleção do Paleocurador,
que é o desejo de muitos paleontólogos. Sendo assim, após ser
aprovada na prova de mestrado eu desenvolvi por dois anos a
minha dissertação com o Paleoprofessor.
Através o alinhamento de interesse com esses dois
importantes atores surgiram os outros atores da minha rede.
O Paleocurador me deu acesso aos meus principais atores não
humanos – fósseis. Através dele eu tive acesso à coleção do
Museu A que foi a minha principal coleção de estudo. Com o
dinheiro do meu projeto assinado pelo Paleocurador eu pude
visitar duas coleções argentinas e a coleção brasileira onde se
encontrava o material que seria usado no contra-fato. Chama-
remos aqui a coleção brasileira onde se encontra o material do
contra-fato Museu B. Com o dinheiro oriundo do projeto eu
também pude comprar um paquímetro digital com interface,
que foi o meu principal inscritor durante a coleta de dados nos
Museus. Já o Palaeoprofessor me deu acesso a importantes
atores humanos que foram fundamentais na para eu conseguir
as inscrições para o meu estudo de dieta através de coprólitos.
O Paleoprofessor me apresentou uma professora de anatomia
vegetal, que junto com a sua equipe e com todo suporte do seu
laboratório, me ajudou a conseguir as inscrições para o estudo
de dieta. Chamaremos a professora responsável pelo laboratório
de anatomia vegetal de pelo pseudônimo de Professoravegetal.
Para fazer a reconstrução do estudo da Palaeolama
brasileira foram discutidas a biografia de três entidades: um
143
contra-fato (uma construção que visou questionar a veracida-
de da existência de uma nova espécie de camelídeo afirmada
por um grupo rival ao submeter esse fato a um teste de força);
um não-fato (a incapacidade da pesquisadora de analisar todo
material de camelídeo – ficando com muitas opiniões que não
puderam ser confirmadas uma vez que o acesso ao material
de uma das coleções foi parcialmente negado – em consequ-
ência da atuação de um ponto de passagem obrigatório); e um
fato (o estabelecimento do teor da dieta dos camelídeos a partir
das inscrições obtidas por coprólitos). A biografia dessas três
entidades foram publicadas na minha dissertação de mestrado,
onde o resultado de cada entidade foi apresentado em um capí-
tulo da dissertação.
Contra-fato O contra – fato como mencionado anteriormente surgiu
do meu primeiro alinhamento de interesse ao do Paleocurador.
O objetivo principal (inicial) do meu projeto foi fazer um teste
de força com o artigo da nova espécie de Palaeolama publicado
pelos pesquisadores frances. Durante dois anos eu trabalhei em
cima desse contra-fato e acabei chegando a resultados muito
mais interessantes e rentáveis do que ele.
Com o objetivo de derrubar a nova espécie de Palaeola-
ma publicada pelos franceses, eu passei a estudar toda a cole-
ção do Museu A. Foram feitas mais de 70 diferentes medidas em
ossos longos e dentes. De todas as coleções estudadas o Museu
A é realmente o que apresenta a maior coleção de camelídeos do
Quaternário.
Após analisar a coleção do Museu A eu fui visitar as
coleções Argentinas. Essas coleções eram bem menos significa-
tivas, mas apresentavam espécies atuais e espécies fósseis dife-
rentes do Museu A. Nas coleções Argentinas eu pude ter acesso
a todo material de camelídeo disponível. Isso foi fundamental
144
para aumentar o meu n amostral e chegar a um bom resultado
comparativo.
A última coleção estudada foi à coleção do Museu B.
Essa era a coleção mais importante para eu conseguir alcançar
o objetivo inicial da minha pesquisa, testar força com o artigo
publicado pelos franceses. Nessa coleção se encontrava o mate-
rial utilizado pelos franceses para descrever a nova espécie de
Palaeolama considerada errônea pelo Palaeocurador. Apenas
parte do material de Palaeolama citado no artigo dos franceses
foi disponibilizado para minha consulta. A coleção do Museu B
não foi totalmente disponibilizada para o meu estudo.
Os resultados do contra-fato constaram no primeiro
capítulo da dissertação de mestrado da primeira autora. Compa-
rando o material obtido no Museu A com as coleções argentinas
e com o pouco material que foi disponibilizado pelo Museu B
pode-se corroborar com o presumido pelo Palaeocurador. Real-
mente a Palaeolama descrita pelos franceses apresentava tama-
nho e robustez muito semelhante a Palaeolama do Museu A.
Esse resultado por si só já agradou muito Palaeocurador.
Porém o contra-fato foi um dos resultados da pesquisa
que não puderam se transformar em fato (publicação acadê-
mica) devido à falta de material para estudo. Foi nesse ponto
que eu encontrei um primeiro não-fato devido a negação de um
ponto de passagem obrigatório (o acesso a coleção do museu B).
Não fato Quando fui visitar o Museu B, eles não disponibiliza-
ram para mim todo o material de camelídeo encontrado na cole-
ção. Eles me falaram que parte do material estava reservado a
alguns pesquisadores franceses. Essa é uma pratica comum nos
museus e coleções por todo mundo, mas que dificulta muito
o estudo de muitos pesquisadores, principalmente na palae-
ontologia onde o n amostral é sempre relativamente baixo e
145
cada fóssil é extremamente precioso.
O Museu B é coordenado por uma arqueóloga brasi-
leira (será citada aqui como Arqueocuradora) descendente de
franceses, que durante anos trabalhou e estudou na França.
Nos anos 70 a Arqueocuradora veio ao Brasil integra a Missão
Arqueológica Franco-Brasileira. Essa missão foi de gran-
de importância para o Brasil, uma vez que a região onde se
encontra o Museu B é muito pobre, e sem ajuda das entidades
francesas, jamais teria conseguido se desenvolver manten-
do a área de maior concentração de sítios pré-históricos do
continente americano e construir um Museu tão importan-
te quanto o Museu B. Essa parceria fundamental a ciência
brasileira também foi muito enriquecedora aos pesquisado-
res franceses, que passaram a ter acesso às coleções muito
mais fácil que os próprios pesquisadores brasileiros. Esse
tipo de parceria não é novidade na paleontologia brasilei-
ra. Por exemplo, Peter Lund, naturalista Dinamarquês, na
década de 40 levou grande parte do material encontrado em
mais de 200 cavernas de Lagoa Santa para a Dinamarca. A
retirada desse material do Brasil garantiu sua segurança e
estudo, porem privou os atuais pesquisadores brasileiros de
estudá-los. Hoje, o governo dinamarquês possui parcerias
com entidades brasileiras para garantir o estudo desse mate-
rial por pesquisadores brasileiro. Cogita-se até a hipótese de
trazer esse material de volta ao Brasil. A parceria do Museu
B com os pesquisadores franceses dificultou o meu acesso a
essa coleção e deixou de enriquecer os resultados da minha
pesquisa.
Os estudos feitos na minha principal coleção de
consulta (Museu A) me deram um grande n amostral de
Palaeolama para ser usado na comparação ao material do
Museu B. Essa comparação não pode ser feita de maneira
completa, uma vez que eu só tive acesso à parte do material
146
do Museu B uma vez que esse material estava reservado aos
pesquisadores franceses. Mesmo assim, através do pouco
material que eu tive acesso eu pude chegar a suficientes
conclusões para a minha dissertação de mestrado, porem
para conseguir transformar as minhas conclusões uma
verdade científica eu precisava de argumentos mais fortes.
Esses argumentos seriam mais facilmente alcançados se eu
tivesse conseguido estudar toda a coleção do Museu B. O
livre acesso a coleção do Museu B era um ponto de passa-
gem obrigatório para o sucesso dos meus resultados com
relação ao contra-fato. Uma vez que esse ponto de passagem
obrigatório me foi negado o contra-fato perdeu força.
Outra perda grande com a negação desse ponto de
passagem obrigatório está relacionada a uma nova espécie
de camelídeo na coleção do Museu A. Os estudos feitos na
minha principal coleção de consulta sugeriram uma nova
espécie de camelídeo. Essa nova espécie é muito semelhante
as lhamas argentinas. Estudos anteriores já tinham sugeri-
do a presença de Lama no nordeste brasileiro. Só o estudo
com a coleção do Museu A foi suficiente para eu identificar
essa espécie de Lama junto ao material de Palaeolama (Figura
2). Após descobrir essa nova espécie de camelídeo no Nordes-
te brasileiro eu acreditava ser possível encontrar material de
Lama na coleção do Museu B, uma vez o material procedente
de ambos os museus são nordestinos. Porém, como eu não tive
acesso a todo material do Museu B eu não pude descobrir se lá
também se encontra material de Lama. Essa não descoberta foi
uma perda muito grande para a paleontologia. Esse foi o segun-
do não-fato que eu consegui graças ao não acesso a um ponto
de passagem obrigatório. As minhas conclusões relacionadas à
nova espécie de Lama no nordeste brasileiro constam no segun-
do capítulo da minha dissertação de mestrado. Para descrever
essa espécie de Lama será necessária uma revisão de toda cole-
147
ção do Museu A, do Museu B e de todos os museus que apre-
sentarem camelídeos do nordeste no Brasil. Essa dificuldade ao
acesso a coleção do Museu B gerou os meus não-fato. A falta
de material comparativo dificultou as argumentações e conclu-
sões de dois pontos importantes da minha pesquisa. Impor-
tantes descobertas e conclusões ficaram apenas no “achismo”.
Eu apontei esses achismos na minha dissertação de mestrado,
mas eles só vão poder ter a chance de se tornarem fato quan-
do outras pessoas puderem ter acesso aos pontos de passagem
obrigatórios, nesse caso a coleção do Museu B.
Em uma pesquisa é extremamente importante seguir os
pontos de passagem obrigatórios. A quebra de um dos pontos
de passagem obrigatórios em uma rede, pode fazer de uma futu-
ra descoberta científica um não fato. E se, em uma pesquisa
de dois anos você só conseguir obter não-fato o desperdício de
tempo e dinheiro é muito grande, causando prejuízo a todos
os envolvidos na rede. Se a minha pesquisa tivesse dependido
apenas da comparação de matérias entre os Museus, eu não
Figura 2:
Fêmur de Palaeolama major e
Palaeolama sp. Foto comparativa
entre os materiais do Museu A
que propõem uma nova espécie de
Lama.
148
teria chegado a nenhum fato (artigo científico) graças ao acesso
que me foi negado a coleção do Museu B.
Fato Apesar das frustações e impedimentos que levaram ao
não fato descrito acima, eu consegui na minha pesquisa cons-
truir um fato científico com sucesso. Esse fato foi construído
através de uma nova rede e com diferentes pontos de interesse e
passagens obrigatórios. Na coleção do Museu A além da grande
quantidade de material fóssil de camelídeos apresentava copró-
litos, fezes fossilizadas, de Palaeolama major. O coprólito estava
associado a um esqueleto quase completo de Palaeolama major,
com ossos longos, dentes e pêlos. Só esse material era suficiente
para eu conseguir publicar um fato a respeito da paleoecologia
da Palaeolama major.
O Paleoprofessor era uma pessoa atualizada e de olho
nas novidades em torno dos estudos de paleontologia. Foi dele
quem surgiu a ideia de fazer um estudo de dieta com os copróli-
tos e dentes da Palaeolama major. O estudo poderia ser feito de
duas maneiras: a primeira e mais comum era através de isótopos
de carbono dentário e a segunda através da análise das fezes. O
estudo de carbono dentário é caro e o material deve ser enviado a
algum laboratório fora do país especializado nesse tipo de análi-
se. Já o segundo método era mais barato e inovador, uma vez que
é raro encontrar coprólito associados a esqueletos como o nosso.
Para fazer a análise anatômica desse material era necessário um
botânico com uma estrutura adequada e disposto ajudar nessa
pesquisa. Sendo assim, optamos pela segunda opção e fomos
atrás de um trabalho inovador.
O Palaeoprofessor foi de extrema importância para a
formação da rede nessa etapa do trabalho. Foi através dos conta-
tos dele que eu conseguir chegar Professoravegetal, que comprou
a nossa ideia e se dispôs da disponibilizar o seu laboratório, os
149
seus equipamentos e o seu tempo para ajudar na construção
desse fato. A Professoravegetal foi à peça chave para chegar
ao fato cientifico. Ela é professora de anatomia vegetal de uma
universidade federal e nunca tinha realizado esse tipo de traba-
lho. A Professoravegetal fez um estudo aprofundado a respeito
do tema e objetivo da nossa pesquisa. Ela desenvolveu a melhor
metodologia para reidratar o coprólito e conseguir extrair dele o
material vegetal ingerido pela Palaeolama major.
Com a definição da metodologia a ser usada, a Professo-
ravegetal me ensinou aplicar essa metodologia e disponibilizou
um técnico do seu laboratório para me auxiliar em todo processo
laboratorial. Latour em seu livro Vida de Laboratório (Latour, 1997)
descreve um novo pesquisador ao chegar em um laboratório, como
socialmente incapaz. Eu ao chegar no laboratório de anatomia vege-
tal da Professoravegetal era socialmente incapaz naquele ambiente.
A ajuda dos técnicos, dos alunos e da Professoravegetal foi funda-
mental para eu conseguir realizar a metodologia necessária para
produzir os inscritores que consumariam o fato da minha pesqui-
sa. A nova rede formada nesse ambiente foi muito importante.
Cumprir a metodologia estipulada foi uma tarefa difícil
e demorada. Os processos laboratoriais levam alguns meses da
reidratação do material até a lâmina com os restos vegetais. Chegar
às lâminas com o material vegetal foi uma conquista muito impor-
tante. Essas lâminas eram os principais inscritores para análise de
alimentação da Palaeolama major. Só foi possível chegar a lâminas
de material vegetal graças ao tecnofenômeno realizado pela intera-
ção da Professoravegetal, técnicos, alunos, equipamentos e copró-
litos. Após esse tecnofenômeno e com os inscritores em mãos, eu
pude passar passa para a etapa mais importante da construção
desse fato: a análise das lâminas (Figura 3). A análise das lâmi-
nas foi uma etapa complexa e minuciosa que contou com o conhe-
cimento e bagagem profissional da Professora vegetal. Ela foi à
responsável analisar as lâminas e chegar as conclusões de qual
150
material vegetal estava presente nos coprólitos. A Professoravege-
tal concluiu que o material presente nas lâminas era referente a
angiospermas. Com esse resultado comprovado pelos meus inscri-
tores, eu deveria chegar às conclusões.
Figura 3: Exemplo de lâmina (inscritor) obtido através da análise de
coprólitos feita com a ajuda da Professoravegetal.
A literatura dos estudos de dieta de guanacos atuais
mostra que esses animais se alimentam de gramíneas (Barba-
rena, et al. 2009). As gramíneas são monocotiledôneas da
família Poaceae (APG III, 2009). As plantas identificadas nos
coprólitos se referiam a angiospermas, que são eudicotiledô-
neas (APG III, 2009) e apresentam uma estrutura anatômica
muito diferente das Poaceaes. Essa diferença entre o resultado
esperado e o que foi encontrado enriqueceu muito a constru-
ção desse fato.
Sabemos que a vegetação no Quaternário tinha presen-
ça de gramíneas, portanto se essa não foi encontrada nas
fezes é porque esse não era o alimento preferido das Palaeola-
mas naquele período. Aprofundado mais na literatura, foram
encontrados estudos de isótopos de carbono dentário de Pala-
eolama da América do Norte que mostraram que esses animais
também se alimentavam de angiosperma e não de gramíneas.
Esse foi um resultado fantástico, pois dois diferentes tipos de
metodologia apontavam para a mesma alimentação de Pala-
151
eolama durante o Quaternário, sendo essa alimentação dife-
rente da dos camelídeos atuais. Sendo assim, as Palaeolamas
da América do Norte e da América do Sul se alimentavam de
arbustos, diferentemente dos camelídeos Americanos atuais
que se alimentam de gramíneas. Essa característica alimen-
tar pode ser comprovada com as análises anatômicas vegetais
obtidas através de coprólito desses animas da América do Sul
seguindo a rede de atores e metodologia aplicada no presente
estudo. Esse foi o fato que eu consegui construir na minha
dissertação de mestrado. Esse fato teve força suficiente para
se tornar um artigo e ser publicado na Quaternary Internatio-
nal, uma revista de alta referência na área de paleontologia.
A publicação desse artigo caracterizou o sucesso da minha
rede, dos meus atores humanos e não humanos e dos meus
inscritores.
Discussão e Conclusão A partir dessa análise é possível ver que os fatos cientí-
ficos no campo da paleontologia são construções sócio-mate-
riais, que dependem da aliança intima com atores não-humanos,
como instrumentos de laboratório (inscritores) e fósseis. Porém,
essas alianças não surgem de modo natural e neutro a partir da
materialidade inerte de fósseis e coprólitos de animais extintos.
Ao contrário, o estudo mostra que mesmo em campos pouco
politizados a construção de fatos dependem também do alinha-
mento de interesses políticos, econômicos e pessoais.
Como mostrado na figura abaixo o primeiro passo para
a construção da rede descrita nesse artigo foi possibilitado pelo
enredamento do Palaeocurador, que foi meu ponto de passagem
obrigatório para o início do projeto. Graças a ele eu conseguir
ter acesso ao recurso financeiro que me possibilitou o acesso as
outras coleções que deveriam ser consultadas e consequente-
mente aos demais atores como o Palaeoprofessor e a Professora
152
vegetal. Ao mesmo tempo, a alinhamento do Palaeocurador só
foi possível graças a minha habilidade de traduzir seu interesse
(i.e. criar um contra-fato contra os franceses) com relação ao
meu próprio interesse (i.e. obter um título de mestre). Somente
após esse (re)alinhamento foi possível obter o capital e estrutu-
ra necessários para construir a rede de maneira estruturada. É
praticamente impossível construir uma verdade científica sem
recurso financeiro, que além de abrir portas a atores huma-
nos e não humanos, garante que a pesquisa será realizada em
um determinado período de tempo. Com o capital e a estrutura
garantidos, outros atores surgiram para garantir as inscrições
que são tão importantes na obtenção de uma verdade científi-
ca quanto os pesquisadores (Latour, 1987; Latour & Woolgar,
1979).
Desse realinhamento surgiu um novo interesse: a
vontade de não só desconstruir um fato de um adversário mas
também de construir um novo fato ao descrever uma espécie
inédita de Palaeolama. Porém, essa tentativa de enredamento
não obteve êxito pois não foi possível respeitar o ponto de passa-
gem obrigatório e ter acesso à toda coleção de fósseis do Museu
B. Com isso a nova espécie ainda é um não-fato, uma opinião
defendida por mim em um campo meramente especulativo. Por
outro lado, o estudo feito com os coprólitos de Palaeolama teve
uma forte rede com atores humanos e não humanos que garan-
tiram que todas as etapas e processos para a construção desse
fato fossem cumpridas. No caso do presente trabalho o fato se
consumou no artigo “Diet of Palaeolama major (Camelidae) of
Bahia, Brazil, inferred by coprolites” publicado em 2012 na
Quaternary International.
Essa ressignificação da minha experiência como pale-
ontóloga a partir da TAR possuiu algumas implicações para o
entendimento da história natural. Em primeiro lugar, fica claro
que a todos os eventos que ocorreram nesse planeta antes da
153
presença humana, e do surgimento de sua capacidade de criar
narrativas compreensivas nos dias de hoje, são tecnofenôme-
nos. Ou seja, da mesma forma que as enzimas estudadas por
Latour e Woolgar (1979) só existem para os humanos a partir
de intermediários não-humanos como reagentes e microscó-
pios, as paleolhamas, e por extensão, mamutes, pterodátilos e
outros animais do passado só se fazem presentes por intermé-
dio de um instrumental técnico-científico reúna todas as condi-
ções necessárias para a construção da ciência. Sendo assim, é
impossível desvincular a existência desse passado pré-histórico
da trajetória tecnológica e científica que tomou a raça humana
nos últimos séculos.
Em segundo lugar e de modo mais crucial, a trajetó-
ria Palaeolama “em ação” narrada acima sugere uma imagem
muito mais provisória, contingencial e politizada da pré-história
que normalmente se tem. A historiografia já reconhece desde
o início do século que diferentes grupos buscam (re)construir
a história de seus antepassados de forma a reforçar valores
presentes (Bloch, 2001). E mesmo que nem todas as tentativas
nessa direção tenham êxito (veja, por exemplo, o negacionis-
tas do holocausto), em muitos outros casos essas atividades
fortemente politizadas ajudam a forjar a identidade nacional de
uma nação (Carvalho, 1990; Rajão & Duque, 2013). Foi por esse
motivo George Orwell que ao refletir em 1944 sobre como os
eventos recentes seriam narrados para as próximas gerações
caso os Nazistas tivessem ganho a Segunda Guerra Mundial ele
chegou a conclusão que “A história é escrita pelos vencedores”.
Mas quem são os perdedores e os vencedores no caso da Palaeo-
lama? Quem ganharia e perderia caso não fosse mantida a exis-
tência da nova espécie inicialmente descrita pelos franceses? E
se fosse comprovada a nova espécie encontrada por mim? E se
fosse demonstrado que a Palaeolama se alimentava de gramí-
neas e não de arbustos? É difícil responder essas perguntas
154
pois a história natural, ao contrário da política, não está tão
claramente vinculada a embates ideológicos e políticos. Porém,
mesmo assim, podemos ver que a agência dos atores huma-
nos descrita acima, como toda ação social, está embutida em
emaranhado de relações políticas mesmo que de menor escala.
Como consequência a nossa história natural deve ser entendida
como sendo a consequência de enredamentos politizados, e por
isso, temporários, dinâmicos e contingencias, seja do ponto de
vista social que material.
Referências bibliográficas Anderson, B. (1983). Imagined communities: reflections
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157
CURRÍCULOS UNIVERSITÁRIOSEduardo Nazareth Paiva
Graciela de Souza Oliver
Isabel Cafezeiro
Ivan da Costa Marques
Miguel Jonathan
Dentro da proposta de organização por temas (e não por
disciplinas) do encontro ATOR REDE E ALÉM … NO BRASIL,
este aglomerado se volta para a discussão sobre currículos
universitários no Brasil a partir de uma abordagem ator-rede.
A ideia é estudá-los sob uma ótica das redes sociotécnicas que
os sustentam, e que ajudam a esclarecer o processo pelo qual
contribuem para a formação de profissionais especializados e
com limitada abrangência de conhecimentos. Neste sentido, o
aglomerado abriu espaço para a formação em qualquer área de
conhecimento, embora as participações tenham sido predomi-
nantemente na área da computação.
As apresentações trouxeram relatos de experiências na
condução de cursos de graduação em computação, a partir de
um contraponto entre as realidades locais dos cursos conside-
rados e as necessidades de adaptação a padrões gerais impos-
tos por parâmetros curriculares nacionais: “Alguns desafios da
Coordenação Acadêmica em um Curso de Graduação Tecnológi-
ca em Engenharia de Computação: Um relato de (pouquíssima)
experiência na metrópole”, de Henrique Cukierman (que não se
materializou em um texto neste livro) abordou a experiência de
coordenação de curso no Rio de Janeiro, UFRJ, uma universi-
dade de referência nacional, enquanto que “Alguns desafios da
Coordenação Acadêmica em um Curso de Graduação Tecnológi-
ca em Sistemas de Informação: Um relato de experiência longe
da metrópole” enfocou o caso da pequena Paracambi, interior
do Rio de Janeiro, na FAETERJ-Paracambi.
158
O levantamento da rede sociotécnica que envolve o
processo de formação dos padrões curriculares da computação,
abordada em “Currículos de Computação, porque são assim?”,
mostrou como um núcleo “duro” de pesquisadores e profissio-
nais, com interesses centrados nas máquinas, conseguiu por
décadas estabilizar um conceito de formação de profissionais
de computação dissociada de uma perspectiva humanística, e
aderente a padrões criados os países centrais que enfatiza uma
suposta universalidade de conhecimentos em confronto com as
demandas locais.
Já “A crise do software e a configuração da área de
computação como ciência exata ou interdisciplinar” considerou
os primeiros episódios de institucionalização da área para abor-
dar a resistência com relação à caracterização da computação
como área interdisciplinar e seu consequente estabelecimento
como ciência exata.
Por fim, “CTS nas formações interdisciplinares” abordou
criticamente a experiência da Universidade do ABC no ensino
CTS em cursos interdisciplinares como Bacharelado em Ciência
e Tecnologia e Bacharelado em Ciências Humanas, uma discus-
são também pertinente à computação, uma vez compreendida
como um campo interdisciplinar.
159
Alguns desafios especiais da Coordenação Acadêmi-ca de um Curso Superior de Gestão da Tecnologia da Infor-mação fora da região metropolitana
Eduardo Nazareth Paiva
ResumoO artigo apresenta um relato de experiências vividas pelo
autor no trabalho de Coordenação Acadêmica de um Curso de
Graduação Tecnológica em Tecnologia da Informação, ministrado
fora de uma grande metrópole. Seu objetivo principal é procurar
demonstrar e registrar os desafios didático-pedagógicos enfren-
tados tanto na elaboração quanto na implantação de matrizes
curriculares destes cursos, provenientes de suas necessida-
des frequentes de adequações às realidades locais de recursos
humanos e de instalações. Espera-se compartilhar reflexões e
estratégias que envolvam as questões dos processos de interiori-
zação na formação do tecnólogo.
AbstractThe article presents an account of experiences by the
author in the work of Academic Coordination of a Technology
degree course in information technology, taught out of a large
metropolis. Its main goal is to try to demonstrate and record the
didactic-pedagogical challenges faced in both the formulation
and implementation of curriculum matrices of these courses, from
your needs frequent adjustments to human resources and local
realities. It is expected to share thoughts and strategies invol-
ving the issues of internalization processes in the formation of the
technologist.
160
O Curso de Graduação Tecnológica em Tecnologia da Informação
Os Cursos Superiores de Gestão da Tecnologia da
Informação estudam a computação como atividade-meio, ou
seja, estuda a aplicação da computação nas organizações. O
tecnólogo em Gestão da Tecnologia da Informação atua em um
segmento da área de informática que abrange a administração
dos recursos de infraestrutura física e lógica dos ambientes
informatizados.
O egresso deste curso define parâmetros de utiliza-
ção de sistemas, gerencia os recursos humanos envolvidos,
implanta e documenta rotinas, controla os níveis de serviço
de sistemas operacionais e banco de dados, gerenciando siste-
mas implantados. (http://portal.mec.gov.br/index.php?op-
tion=com_docman&task=doc_download&gid=7237&Itemid=
31/07/2013). Com uma abordagem prática, o curso visa capa-
citar seus profissionais para atuarem como profissionais Gesto-
res em Tecnologias da Informação (http://curso.ifsc.edu.br/
pagina2a.php?idcurso=41: 31/07/2013).
Estas definições são diferentes daquelas definições para
os cursos mais tradicionais da Informática como, por exem-
plo, os cursos de Ciência da Computação (http://dcc.ufrj.br/
sobre-o-curso.html: 31/07/2013) e Engenharia de Compu-
tação (http://www.poli.ufrj.br/graduacao_cursos_engenha-
ria_computacao_informacao.php: 31/07/2013), que estudam a
computação como atividade-fim.
Os Cursos Superiores de Gestão da Tecnologia da Infor-
mação formam Tecnólogos e possibilitam acesso à pós-gradua-
ção (latu-sensu e strictu-sensu). A seguir o fluxograma quanto à
formação do Sistema Nacional dos Cursos do Ensino Superior,
publicado no Portal da Secretaria do Ensino Superior do Minis-
tério da Educação – SESU-MEC.
161
O Curso de Graduação Tecnológica em Tecnologia da Informação
Os Cursos Superiores de Gestão da Tecnologia da
Informação estudam a computação como atividade-meio, ou
seja, estuda a aplicação da computação nas organizações. O
tecnólogo em Gestão da Tecnologia da Informação atua em um
segmento da área de informática que abrange a administração
dos recursos de infraestrutura física e lógica dos ambientes
informatizados.
O egresso deste curso define parâmetros de utiliza-
ção de sistemas, gerencia os recursos humanos envolvidos,
implanta e documenta rotinas, controla os níveis de serviço
de sistemas operacionais e banco de dados, gerenciando siste-
mas implantados. (http://portal.mec.gov.br/index.php?op-
tion=com_docman&task=doc_download&gid=7237&Itemid=
31/07/2013). Com uma abordagem prática, o curso visa capa-
citar seus profissionais para atuarem como profissionais Gesto-
res em Tecnologias da Informação (http://curso.ifsc.edu.br/
pagina2a.php?idcurso=41: 31/07/2013).
Estas definições são diferentes daquelas definições para
os cursos mais tradicionais da Informática como, por exem-
plo, os cursos de Ciência da Computação (http://dcc.ufrj.br/
sobre-o-curso.html: 31/07/2013) e Engenharia de Compu-
tação (http://www.poli.ufrj.br/graduacao_cursos_engenha-
ria_computacao_informacao.php: 31/07/2013), que estudam a
computação como atividade-fim.
Os Cursos Superiores de Gestão da Tecnologia da Infor-
mação formam Tecnólogos e possibilitam acesso à pós-gradua-
ção (latu-sensu e strictu-sensu). A seguir o fluxograma quanto à
formação do Sistema Nacional dos Cursos do Ensino Superior,
publicado no Portal da Secretaria do Ensino Superior do Minis-
tério da Educação – SESU-MEC.
Figura 1: Fluxograma do Sistema Nacional dos Cursos do Ensino Superior
Brasileiro (SESU-MEC)
Segundo a Secretaria de Educação Profissional e Tecno-
lógica (SETEC) do Ministério da Educação brasileiro (http://
portal.mec.gov.br/setec/: 30/03/2008) e de acordo com o seu
Catálogo Nacional dos Cursos Superiores de Tecnologia http://
portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=-
doc_download&gid=5362&Itemid=: 31/07/2013) os cursos de
formação de tecnólogos deveriam:
• Desenvolver competências profissionais tecnológicas
para a gestão de processos de produção de bens e serviços;
• Promover a capacidade de continuar aprendendo e
de acompanhar as mudanças nas condições de trabalho, bem
com propiciar o prosseguimento de estudos de pós-graduação;
• Cultivar o pensamento reflexivo, a autonomia intelec-
tual, a capacidade empreendedora e a compreensão do processo
tecnológico, em suas causas e efeitos, nas suas relações com o
desenvolvimento do espírito científico;
162
• Incentivar a produção e a inovação científico-tecnoló-
gica, a criação artística e cultural e suas respectivas aplicações
no mundo do trabalho;
• Adotar a flexibilidade, a interdisciplinaridade, a
contextualização permanente dos cursos e seus currículos;
• Garantir a identidade do perfil profissional de conclu-
são de curso e da respectiva organização curricular.
Áreas de conhecimento em um Curso de Graduação Tecnológica em Gestão da Tecnologia da Informação
Quando nos deparamos com o desafio de refletir sobre
uma grade curricular para um curso de graduação tecnológica,
somos levados a pensar no objeto principal de sua formação, no
nosso caso, a Tecnologia da Informação (TI). Partiremos do
princípio que os Cursos Superiores de Gestão da Tecnologia
da Informação se interessam por conhecimentos e práticas que
envolvem uma justaposição de elementos heterogêneos que,
ordenados, constituirão a Tecnologia da Informação. Podemos
citar alguns deles, por exemplo: software, hardware, peoplewa-
re (pessoas), regras, redes, canais de comunicação, repositórios
de dados e interfaces. Estes elementos, projetados e organiza-
dos com o objetivo de receber dados, processá-los e distribuí-los
através de suas arquiteturas perfazem a informação, dita digi-
talizada (SHITSUKA et al 2005).
Diante deste contexto, estaremos diante de áreas de
conhecimentos marcadas pela heterogeneidade, hibridez e
tecnicidade de seus componentes. Entretanto, deve também ser
relevado que estas características convivem com a necessida-
de da captura dos feedbacks necessários ao seu bom funcio-
namento. Assim, uma grade curricular típica de um curso
dessa natureza precisará abordar, fundamentalmente, áreas do
conhecimento relacionadas às questões de como se estabelecem
as comunicações entre o hardware, o software e o peopleware.
163
Consideraremos também relevante um envoltório de conheci-
mentos relacionados aos aspectos da gestão dos negócios, da
comunicação (matemática e lingüística) e da sociedade afetada
pela ação dessas tecnologias.
A distribuição dos conhecimentos pelas disciplinas na matriz curricular
Se considerarmos as disciplinas distribuídas e ordena-
das pelas áreas de conhecimento identificadas anteriormente,
poderíamos ter:
HARDWARE: Arquitetura e Redes de Computadores
SOFTWARE: Algoritmos, Linguagens de Programação,
Engenharia de Software, Estruturas e Bancos de Dados.
PEOPLEWARE: Técnicas de Relacionamento Interpessoal
GESTÃO: Administração, Gerência de Projetos,
Empreendedorismo.
COMUNICAÇÃO: Matemática (Cálculo, Álgebra, Esta-
tística), Linguística (Língua Portuguesa e Inglesa Instrumental)
e Metodologias da Pesquisa Científica.
SOCIEDADE: Desenvolvimento Humano e Qualidade de
Vida, Direito em Informática, Informática e Sociedade.
Algumas questões desafiantes nos Currículos dos Cursos de Gestão da Tecnologia da Informação quando minis-trados fora das metrópoles.
As questões relacionadas à interiorização do ensino
superior tecnológico envolvem dificuldades especiais como,
por exemplo, ter que lidar com escalas diferentes dos recur-
sos e das expectativas do público a ser atendido pelos resul-
tados desta iniciativa (PAIVA, 2010).
Destacaremos aqui, como as áreas mais desafiantes
e objetivas nos Currículos dos Cursos de Gestão da Tecnolo-
gia da Informação quando ministrados fora das metrópoles
164
aquelas relacionadas ao trinômio humanware - hardware -
software. Isto porque aspectos relacionados às escalas e às
demandas locais desses recursos indicam necessidades de
soluções especialmente diferentes nas ementas e matrizes
curriculares.
Em geral, os recursos providos, por exemplo, pelos
laboratórios dos cursos aos alunos, não necessariamen-
te espelham as realidades e as necessidades locais, mas
sim procuram mirar aquelas referências mais globais mais
metropolitanas.
Isto não acontece sem razão, na medida em que os
processos de avaliação dos cursos por parte dos consultores
e auditores especializados parecem confirmar uma tendência
de uniformização e globalização desses recursos de hardwa-
re e software, pressionando todos a perseguirem o “estado
da arte” dos mesmos num processo altamente globalizante e
que foge da contextualização local.
Se por um lado isto constitui um parâmetro importan-
te e, porque não dizer paradigmático, para o estabelecimento
de padrões de qualidade dos cursos e suas instalações, por
outro lado, parece aprofundar o distanciamento entre estas
instituições interioranas e as necessidades e vocações de
suas áreas de influência.
Exagerando, analogicamente, seria como se estivés-
semos formando pilotos de F1 (Fórmula 1) para depois enca-
minhá-los para dirigir por estradas vicinais. Não que uma
coisa seja mais importante que a outra. Mas são demandas
diferentes. Talvez a proposta mais indicada fosse algo híbri-
do. Algo como que, seguindo a analogia, a formação de pilotos
para rallies. De qualquer forma, considero razoável e impor-
tante uma reflexão sobre a necessidade de uma adequação da
formação do profissional superior em tecnologia nos proces-
sos de interiorização do ensino superior tecnológico.
165
Considerações FinaisA busca de uma reflexão, no âmbito local, do proces-
so de interiorização do ensino superior tecnológico, particular-
mente na formação do Curso Superior de Gestão da Tecnologia
da Informação, implica em questionar a tendência de busca do
atendimento automático daquelas diretrizes curriculares consi-
deradas de alto nível e globais, não só pelos avaliadores insti-
tucionais, mas também pelas suas coordenações acadêmicas.
O autor pensa que se deveria analisar mais crítica e
localmente aquelas diretrizes curriculares que ainda influenciam
demais nossos avaliadores institucionais. Estas diretrizes, em
geral exógenas no que diz respeito às realidades locais, têm suas
origens nos seguintes polos de difusão: Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica (SETEC) do Ministério da Educação
e Cultura brasileiro - MEC (http://portal.mec.gov.br/index.
php?option=com_docman&task=doc_download&gid=5362&Ite-
mid=: 31/07/2013); Sociedade Brasileira de Computação – SBC
(http://www.sbc.org.br/index.php?option=com_jdownloads&I-
temid=195&task=view.download&cid=185: 31/07/2013); Asso-
ciation for Computing Machinery - ACM (http://www.acm.org/
education/curricula/IT2008%20Curriculum.pdf: 31/07/2013).
O artigo pretendeu trazer à tona uma reflexão sobre os
processos de formação do tecnólogo através dos cursos de gradu-
ação tecnológica em Curso Superior de Gestão em Tecnologia da
Informação em instituições interiorizadas, ou seja, distantes dos
grandes centros. Esta reflexão se deu a partir do trabalho de
coordenação acadêmica desempenhada pelo autor e aqui preten-
deu compartilhá-la para assim estender o debate sobre o tema.
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– Uma nova Abordagem. Editora Pearson Education. 2005.
167
CTS nas formações interdisciplinaresGraciela de Souza Oliver
Introdução – Pontuando o local geográfico de quem enuncia.
A Universidade Federal do ABC (UFABC) foi criada
em 2005 e apresenta um Projeto Político Pedagógico inovador
com características que a distingue do modelo tradicional de
universidade e é tida como uma das referências ao Programa
de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Univer-
sidades Federais (Reuni). Por meio de Bacharelados Interdisci-
plinares, fundamentados em eixos do conhecimento, a UFABC
propõe uma valorização da interdisciplinaridade e da autono-
mia do aluno na escolha da sua formação e currículo. Os eixos
do conhecimento são: Estrutura da Matéria; Energia; Processos
de Transformação; Informação e Comunicação; Representa-
ção e Simulação; e, Humanidades e Ciências Sociais Aplicadas
(UFABC, PDI, 2010, p. 05).
Na UFABC o ingresso de alunos ocorre pelo Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) em dois Bacharelados Inter-
disciplinares, o de Ciência e Tecnologia (BCT), inciado em 2005,
e o de Ciências e Humanidades (BCH), iniciado em 2010. Após a
integralização e diplomação nestes cursos o aluno pode ingres-
sar, se desejar, em cursos de formação específica em diversas
áreas das engenharias, ciências exatas, naturais, sociais aplica-
das e humanidades, os quais têm a duração mínima de um ano.
Na prática, no decorrer da formação interdisciplinar, os alunos
já vão cursando disciplinas dos cursos específicos.
Nos Bacharelados Interdisciplinares e nos cursos espe-
cíficos existem algumas disciplinas que se vinculam em diferen-
tes graus a uma perspectiva histórico cultural da C&T, quais
sejam: Ciência, Tecnologia e Sociedade; Nascimento e Desen-
volvimento da Ciência Moderna; Educação Científica Sociedade
168
e Cultura; História da Ciência e Ensino, Cinema e Conhecimen-
to, além de outras específicas sobre História das Ciências, liga-
das a Bacharelados específicos. É importante ressaltar que não
existem pré-requisitos na UFABC e, qualquer disciplina pode
ser cursada por qualquer aluno, ainda que este esteja matricu-
lado apenas em um dos Bacharelados ou Licenciaturas. Duas
dessas disciplinas merecem destaque por serem obrigatórias a
todos os alunos ingressantes na UFABC e contribuírem para
uma perspectiva mais cultural sobre a C&T, quais sejam: Ciên-
cia, Tecnologia e Sociedade, obrigatória para o BCT e BCH, e,
Nascimento e Desenvolvimento da Ciência Moderna, obrigatória
apenas para o BCH.
Estas e todas as demais disciplinas são ministradas por
diferentes docentes, de acordo com suas respectivas formações,
trajetórias acadêmicas e área de ingresso na carreira. Não há
na UFABC concursos, para o magistério superior, que sejam
restritos a determinadas disciplinas. Ao invés disso, os concur-
sos têm se pautado por temas gerais, por eixos ou sub eixos,
por assim dizer. Assim, compreende-se que o docente contrata-
do poderá ministrar disciplinas tanto gerais como específicas.
Junto com outros docentes, que ingressaram a partir de 2010,
leciono essas disciplinas adeptas a uma perspectiva histórica e
cultural da C&T.
Problematizando o local do ponto de vista da História Cultural da C&T
No BCH, um dos sub eixos é denominado - Ciência,
Tecnologia e Inovação – ao qual se atrelam as disciplinas CTS
e NDCM, entre outras voltadas para a discussão econômica ou
política. Elas encabeçam um conjunto de outras disciplinas que
relacionam o campo de CTS aos Bacharelados específicos de
Economia, Políticas Públicas e Filosofia. É desta maneira que
se veem privilegiadas, ao menos, três aportes/perspectivas do
169
campo CTS, quais sejam: economia da inovação, políticas de
ciência, tecnologia e inovação e, por fim, filosofia e história/
historiografia das ciências e tecnologia. O projeto pedagógico do
referido curso interdisciplinar foi justificado perante a seguinte
linha de pensamento sobre a C&T:
“Enfim, Ciência e Tecnologia não são intem-
porais, não são produtos desalmados de uma
mente humana transcendental que as inven-
taria como se os homens, em carne e osso,
não existissem. São aquilo que nos organi-
zamos socialmente para fazer e que, indivi-
dualmente, julgamos, cada um com seus
motivos, crenças, medos e certezas. Por isso,
como o resto que existe socialmente, elas são
o cruzamento dos fatos de nossa vida social,
no qual se amalgamam religião, política,
economia, práticas costumeiras, moralidade,
ethos, direito e ideologias. Entender Ciência
e Tecnologia pressupõe, pois, que nos enten-
damos. Fazer Ciência e Tecnologia, sem a
crítica de nós mesmos, sem o esclarecimento
daquilo em que ela resulta, é exercício cego.”
(grifos meus - UFABC, 2011, p. 10)
O trecho acima apresenta as relações entre Ciência,
Tecnologia e Sociedade de um ponto de vista filosófico que trata
das relações entre as ciências, diversas tecnologias e socieda-
des, em seus distintos momentos históricos, de forma bastante
abstrata e generalista. Embora busque equiparar C&T ao que
“de resto” existe na sociedade e as vincule à organização/ação
social, o fazer científico é realizado apenas por indivíduos e no
uso de sua capacidade racional. Estes indivíduos seriam ainda
condicionados por diversos fatos sociais e culturais, algo de fora
170
para dentro da ciência e tecnologia.
Nesta perspectiva filosófica, ainda que se considere o
aspecto da passagem do tempo, percebe-se que o “social” é dado
pela ação de indivíduos, de fatos ou acontecimentos. Desconsi-
dera-se, portanto, nessa visão de C&T as dinâmicas sociais e
os elementos simbólicos presentes. Ignora-se, portanto, a C&T
como atividade social e cultural específicas de uma determinada
localidade, e, ainda assim, produtos e construtoras das relações
sociais em diversos níveis. Ignora também a dimensão material
da C&T, o fluxo de circulação dos conhecimentos, instrumen-
tos, materiais, os discursos que as legitimam na sociedade e,
ainda, as características sociais e culturais inerentes à C&T de
cada comunidade acadêmica específica.
Da mesma maneira, a crítica sobre “nós” “mesmos”,
seres um tanto quanto universais, é tratada de maneira genéri-
ca e parafraseando o argumento esboçado por Lakatos (1987),
qual seja: “a história da ciência sem a filosofia da ciência é cega,
a filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia”. Com
auxilio da compreensão temporal, o viés filosófico a cerca do
que somos nos conduziria ao entendimento da realidade social.
Tal adesão a essa vertente filosófica das ciências, anterior ao
surgimento do campo CTS, revitaliza a tensão entre prática (o
fazer C&T) e a teoria (teorias e filosofia da da C&T). Nessa pers-
pectiva vemos em destaque o significado do caráter histórico,
apenas como contingência, fato, ação de alguns homens, bem
como salienta-se a neutralidade e universalidade da produção
do conhecimento racional.
Tal ponto de vista, que se confronta à perspectiva de
uma História Cultural da C&T (Ferreirós, 2010), faz ignorar,
por sua vez, a própria historiografia como locus de discussão
contextual da produção do conhecimento histórico. Deste modo,
a própria prática/ofício do historiador das ciências se vê amar-
rada a uma versão positivista da C&T e do ofício do historia-
171
dor. Parece revelador que esse tipo de análise filosófica da C&T,
apareça apenas como uma crítica apaziguada à neutralidade
da C&T, com vistas a referendar um lugar acadêmico para as
Humanidades e Ciências Sociais e Aplicadas. No trecho abaixo,
percebemos, portanto, como o discurso que visa incluir as ciên-
cias humanas e sociais despolitiza o jogo entre teoria e prática
entre ciências exatas e não exatas, dando de antemão um dos
lados como prioritários:
“A necessidade da elaboração de uma inter-
pretação crítica da Ciência e da Tecnologia
é a justificativa, enfim, para que, mesmo
numa instituição voltada prioritariamen-
te à produção de Ciência e Tecnologia, uma
área bem constituída de Ciências Sociais e
Humanidades se apresente. […] A criação de
uma graduação em Ciências e Humanida-
des, com forte formação em Ciências Natu-
rais e Formais e ênfase especial em Ciências
Sociais e em Filosofia, é mais uma estratégia,
dentre as necessárias, no sentido de fazer do
Projeto Pedagógico da UFABC uma realidade”
(Idem, p. 14)
Uma pergunta fica no ar: Quais outras estratégias
seriam necessárias para que o Projeto Pedagógico da UFABC
se consolide? No discurso acima, reforça-se a ideia de que as
ciências humanas e sociais são complementares às ciências
propriamente ditas, estabelecendo locais privilegiados da fala
em diversas instâncias de poder da referida instituição. Assim,
subentende-se que qualquer tentativa de propor uma crítica
empírica ou de outra natureza à C&T, incorreria no risco de
instaurar o relativismo, tido como inconsequente, pois sem a
razão a história é vazia, e, eu completo, poderíamos repetir os
172
erros do passado, não formaríamos os novos gênios do século
XXI. Fiquemos, então, na condição de complemento erudito ao
que interessa. A quem interessa essa visão? Por que?
Por essa leitura, entende-se que outra característica
atribuída ao passado histórico seria a linearidade, ou ciclicida-
de, quando processos e momentos se alternam. A UFABC como
universidade do século XXI, instaura uma relação de positivi-
dade para com o futuro e de negatividade com o passado, refor-
çando a ideia de que ela poderá mudar a realidade, trazendo
melhorias e benfeitorias adiante. Endossa, portanto, um discur-
so progressista já bem conhecido nas instituições de C&T brasi-
leiras desde o início do século XX. A quem interessaria saber
das idas e vindas da História das Ciências no país, sem gênios,
nem heróis, lutando à favor e contra as medidas emergenciais
de desenvolvimento econômico, afeita a soluções de compromis-
so de determinados grupos, que não fez um esforço de divulga-
ção sistemático para além dos grandes centros urbanos e da
reprodução das notícias que vem prontas de fora?
De acordo com esse posicionamento e referencial teóri-
co, as ciências humanas e sociais e seu alunado teriam uma
posição privilegiada para a análise do “outro” - da C&T. O que
muitas vezes não implicaria necessariamente em estranhar a
própria prática, contraditoriamente. Tal postura distanciada
permitiria uma isenção das Humanidades e Ciências Sociais e
aplicadas, igualando-as às ciências naturais e formais. Deste
ponto de vista, o ensino de disciplinas do Eixo Ciência, Tecno-
logia e Inovação visariam nada mais do que ratificar uma forma
de produção da C&T, uma determinada hierarquia entre os
saberes, uma fala hierarquizada entre profissionais e uma ideia
já dada sobre o que é C&T. Esta leitura feita aqui, pouco ou
quase nada se assemelha aos objetivos específicos do projeto
pedagógico do BCH:
“1. Valorizar a cultura geral, sem prejuízo do conheci-
173
mento especializado;
2. Formar habilidades para identificar o conhecimento
no meio da massa informacional;
3. Estimular a reinvenção do pensamento e da realidade;
4. Valorizar o risco e a busca por formas de participação
no processo de construção coletiva de novos conhecimentos;
5. Formar para a comunicação, a resolução de conflitos
e a flexibilidade na atuação científica e profissional;
6. Priorizar a formação de capacidades para participar
de trabalhos coletivos e projetos cooperativos;
7. Contribuir para a identificação, nos alunos, das suas
próprias potencialidades e para que estes possam se desenvol-
ver integralmente, auto-gerindo sua formação educacional e
científica;
8.Valorizar a busca interdisciplinar de soluções para os
problemas;
9. Formar capacidades para que se perceba os limites
das soluções eventualmente encontradas para os problemas
investigados ou sobre os quais se atua;
11. Recusar a informação irrefletida, a mentira e propi-
ciar a busca pela sabedoria.” (Idem, p.15)
Tais objetivos recorrem novamente na enunciação de
práticas, valores e ações profissionais que se concretizariam
num futuro, independente do contexto em que esse alunado
está inserido, ou da reflexão que ele mesmo faça sobre este. Já
no Projeto Pedagógico do BCT, podemos ler o seguinte sobre o
eixo de Humanidades e Ciências Sociais e Aplicadas:
“O sexto grupo de disciplinas obrigatórias:
Humanidades, procura quebrar essa descon-
tinuidade [ causada pelos novos paradigmas
científicos e tecnológicos] trazendo inclusive
exemplos de grandes cientistas e pensado-
174
res que reconheceram a importância de uma
educação integral e não se furtaram a expor
seus pensamentos relativos a áreas fora de
suas especializações, mas que compõem
o conjunto das preocupações inerentes
à pessoa humana e suas relações com o
transcendente, o social, e consigo mesma.”
(UFABC, PPBCT, 2009, p.09)
No trecho acima o que salta aos olhos é justamente a
ideia de história apenas como passado, de uma reflexão trans-
cendente ao mundo, de um social incógnito, cujo ato de conhecer
tais elementos permite o conhecimento de si, do bom exemplo
e a reprodução de casos de sucesso. Contraditoriamente a esta
leitura, lemos nos objetivos específicos do eixo Humanidades,
o seguinte: “Incorporar disciplinas como a História da Ciência,
História da Tecnologia e História do Pensamento Contemporâneo
com o intuito de desenvolver a capacidade crítica no exercício da
atividade profissional e da cidadania” (Idem, p.06). De maneira,
muito breve e sem o amparo referencial necessário, este único
trecho aborda que o ensino destes conteúdos em detalhe são
relevantes para a autocrítica, para a inserção no mundo e em
geral. Ainda que voltada apenas para a ação profissional e, em
consequência disso - cidadã, seria uma maneira alternativa de
estabelecer relações do alunado ao seu próprio contexto e da
produção de C&T atual.
Certamente, os projetos políticos pedagógicos refletem
a diversidade de trajetórias docentes, perspectivas teóricas, no
momento de sua confecção, e também, interesses e disputas
em jogo. Tal como uma fotografia, os projetos pedagógicos são
o retrato de um momento, sobre o qual podemos identificar
os pontos mais evidentes e outros nem tanto, uma trama de
conceitos e contextos que são interligados. Por exemplo, o que
175
se entende por ciência, tecnologia, sociedade, cultura, profissio-
nal, cidadania, CTS, etc.
Querendo concluir sobre como proceder em relação ao ensino de CTS em cursos interdisciplinares
Entende-se que apenas por esta análise simplificada
não é possível discernir o que representou para esta proposta
de instituição o ingresso massivo de docentes das humanidades
e ciências sociais, com toda a sua gama de diferenças, locais
de fala e posicionamentos perante a C&T e ao “social”. Pare-
ce relevante que em face da necessidade da conquista de um
lugar de fala para esse grupo, como um todo, acabou-se por
reafirmar posições tradicionalíssimas. Isso ocorreu ainda que
brechas anteriores existissem junto ao BCT.
Na vida institucional, nas margens do rio Tamandua-
teí com suas enchentes e trânsito, repleta de seus artefatos e
mecanismos de poder, isso significa que os projetos políticos
pedagógicos vão se tornando eles próprios artefatos em si, inde-
pendentes de toda a rede que mantém essa instituição. Tais
documentos muitas vezes elencados e postos a falar, ora ratifi-
cam conceitos como dados e incontestáveis ora como guias e/
ou referências iniciais. Temos, então, uma consonância ao que
ocorre quando uma rede sociotécnica se estabiliza:
“Sempre que uma rede age como um único
bloco, então ela [a heterogeneidade] desa-
parece, sendo substituída pela própria ação
e pelo autor, aparentemente único desta
ação. Ao mesmo tempo, a forma pela qual o
efeito é produzido é também apagada: nas
circunstâncias ela não é visível e nem rele-
vante. Ocorre, então, que algo muito mais
simples surge – uma televisão (funcionando),
um banco bem administrado, ou um corpo
176
saudável –, por um tempo, para cobrir as
redes que o produziram.” (Law, 2013).
Assim, para entender sobre o ensino de CTS nessa
instituição e em seus cursos podemos começar compreenden-
do os significados tidos como dados e aqueles implementados
nas práticas institucionais e suas dinâmicas de hierarquização,
composição, adesão, ordenamento, significação, reprodução,
etc. Na prática, significa ler a ementa25 da disciplina de CTS
como um conhecimento em disputa sobre o que é interdiscipli-
naridade, o que são as ciências, as tecnologias, as sociedades
e as ciências humanas e sociais. Some-se a isso o contexto,
imaginário e conhecimentos que os alunos trazem para a sala
de aula, em grande parte consoante com as recentes pesquisas
sobre opinião pública da C&T para o Brasil. É notório como o
alunado traz as seguintes compreensões:
1. a tecnologia apenas como aplicação das teorias
científicas;
2. a ciência como conjunto de teorias;
3. sobre o histórico atraso brasileiro em relação à C&T;
4. sobre a disciplina de CTS ser um aglomerado de
visões sobre a C&T sem coesão específica;
5. sobre a disciplina de CTS ser uma forma de entender
como “melhorar” a C&T brasileiras;
6. que existem as duas culturas;
7. que a C&T impacta na sociedade e a sociedade
influencia a C&T.
Mediante este contexto fica então a questão: por que não
25 Ementa de CTS: Evolução bio-cultural do ser humano: técnicas e tecno-logias como dimensões da humanidade; Metodologia, racionalidade e relati-vismo; Ciência, tecnologia e inovação como fato social; Indivíduo, Estado e sociedade; Política científica e tecnológica; Valores e ética na prática científica; Controvérsias científicas;
177
construir um programa de ensino de CTS em sala de aula que
busque problematizar esses conhecimentos prévios? Que efeti-
vamente os integre ao corpo teórico-metodológico que o próprio
campo de estudos sobre as relações entre Ciência, Tecnologia
e Sociedade têm desenvolvido aqui mesmo no Brasil, com seus
inúmeros casos e problematizações?
Documentos institucionaisUFABC, PDI, 2010. disponível em :
http://pdi.ufabc.edu.br/wp-content/uploads/2011/09/PDI_
UFABC_2008_2012.pdf (acessado em 20/05/2013)
UFABC, PPPBCT, 2009. disponível em: http://prograd.
ufabc.edu.br/images/pdf/27-01-10_projeto-pedagogico_bct.
pdf (acessado em 20/05/2013)
UFABC, PPPBCH, 2011. Disponível em: http://www.ufabc.
edu.br/images/stories/pdfs/administracao/ConsEP/anexo-
da-resolucao-122-consepe-aprovacao-da-revisao-do-ppbch.pdf
(acessado em 20/05/2013)
Bibliografia CitadaFerreirós, José. Reflexiones sobre História, Ciencia y
Cultura. ARBOR. Ciência, pensamento y Cultura. CLXXVI, 743,
mayo-junio (2010), 425-433. doi: 10.3989/arbor.2010.743n1207
Lakatos, I. Historia de las ciencias y sus reconstruccio-
nes racionales. Madrid : Tecnos, 1987.
Law, John. Notas sobre a Teoria do Ator-REde: Orde-
namento, Estratégia e heterogeneidade. Reprodução livre, em
Português Brasileiro, do texto original de John Law (LAW, J.
Notes on the Theory of the Actor Network: Ordering, Stra-
178
tegy and Heterogeneity. Centre for Science Studies, Lancaster
University, Lancaster LA1 4YN. 1992 ), disponível em http://
www.necso.ufrj.br/Trads/Notas%20sobre%20a%20teoria%20
Ator-Rede.htm (acessado em 23/05/2013)
179
A crise do software e a configuração da área de computação como ciência exata ou interdisciplinar
Isabel Cafezeiro
Ivan da Costa Marques
Crises do software, desvios e traduçõesEste estudo tem como ponto de partida a chamada
“crise do software”. São eventos que se repetem desde a década
de 70, em resposta a previsões catastróficas de acidentes que
seriam decorrentes de erros de programação. Cada um destes
episódios envolve poder e dinheiro.
A última ocorrência da crise do software foi na virada dos
séculos XX para o XXI, o chamado “Bug do Milênio”. Apelidado
de Y2K (Y, do inglês Year e 2K, de 2 * 1000) o bug do milênio
decorreu da representação de datas com apenas os dois últimos
dígitos no ano, o que fez confundir por exemplo 1900 e 2000,
prometendo gerar graves problemas nas comparações de datas.
O pesadelo anunciado chegou a servir de enredo para o filme de
terror: “The milenium bug” (2011) cuja sinopse dá uma ideia do
clima fantasioso em torno do assunto: “When the Haskin family
seeks refuge from Y2K hysteria in the isolated forests of the Sier-
ra Diablos mountains, madness and terror find them there”.
Em meio a alarmantes comentários que circulavam nos
jornais, governos de vários países investiram vultuosas somas
em medidas estratégicas para evitar desastres. Nos Estados
Unidos, o Senado formou um comitê especial para estudar o
problema e seus impactos no país e no mundo. No Brasil, a
Rede Nacional de Pesquisa (RNP) mobilizou esforços, preocupa-
da com a percepção tardia do perigo iminente (1998): “O tempo
que resta é curto - todos os levantamentos e ações corretivas
devem ser realizados o mais rapidamente possível.”26.
26 Os slides “O Bug do Milênio” divulgados na página da Rede Nacional de
180
A próxima ocorrência da crise do software está prevista
para o ano de 2038, e será também decorrente de uma limita-
ção no espaço de armazenamento de datas. O último registro de
tempo que pode ser representado em computadores que execu-
tam o sistema Unix, seguindo o padrão POSIX, é 03:14:07 de
19 de Janeiro de 2038. Após isto, as representações de data se
tornarão negativas, gerando a confusão. Assim como o “bug do
milênio”, o “bug de 2038”, será um evento de data marcada. É
possível, portanto, que ainda na madrugada de 19 de Janeiro de
2038 observemos comentários como o divulgado pela BBC News
em 1 de Janeiro de 2000: “The remarkable lack of problems
amazed even those who were confident of a successful date
rollover into the new millennium. ‘I would say I’m pleasantly
surprised’, said US Y2K trouble-shooter, John Koskinen”.27
Um olhar cuidadoso denuncia, nas entrelinhas dos
depoimentos, questões paralelas que parecem aderir a estes
episódios e se fortalecer com eles. A percepção de há uma rede
instável de relacionamentos que se configura pela movimen-
tação de pessoas, mercado, computadores, governos, mídia,
pânico, dentre outros actantes, tem nos ajudado a identificar e
acompanhar estas questões, que não se explicitam, ou se colo-
cam como secundárias, subjacentes, de pouca importância. A
percepção de que esta rede se estabiliza apenas provisional-
mente, conforme a configuração de poder que se estabelece a
cada momento, bem como os conceitos de enquadramentos e
transbordamentos, traduções e desvios, são ferramentas ofere-
cidas pela Teoria Ator-Rede, que nos levam a suspeitar que são
Ensino e Pesquisa (RNP) foi um material preparado para o IV Seminário de capacitação Interna RNP. Autoria de Ana Carolina A. T. Murgel. Novembro de 1998. Disponível em www.rnp.br/_arquivo/documentos/pal0098.pdf . Con-sultado em janeiro de 2012. A RNP é um programa do Governo Federal vincu-lado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (Sepin/MCT).
27 BBCNews, 1/1/2000, http://news.bbc.co.uk/2/hi/science/nature/585013.stm. Consultado em Janeiro de 2013.
181
estas questões paralelas que justificam e sustentam as crises
do software, e não o oposto.
Um exemplo: William Dowell, correspondente america-
no da revista TIME, descreveu, irônico, em 1999, as previsões
do relatório do Senado dos Estados Unidos para os efeitos do
“bug do milênio” em países estrangeiros:
“Third World countries are the most likely to
be resistant to the Y2K bug” because they
still largely operate in a computerless envi-
ronment. Technologically advanced coun-
tries, meanwhile, are the most likely to stay
atop of the problem. “It is the middle level
countries -- those starting to use automated
systems -- that will be the most vulnerable,”
says Dowell. That includes a huge swath of
the world -- places like China and Russia,
Eastern Europe and the Arab world. What’s
more, says Dowell, because some of these
countries such as China, have been active in
the software piracy front, they are the least
likely to own up to their activities and seek
help in keeping their systems running come
January 1.28
Em contraste com o tom “brando” empregado de modo
a evitar o pânico no próprio país, para países em desenvolvi-
mento, como o Brasil, o relatório norte americano situou o Y2K
quase em tom de castigo, principalmente à China, deixando
claro que a repressão à pirataria traduziu-se, naquele momen-
to, na prevenção do Y2K. Outro exemplo:
28 Time, 1999, http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,20801,00.html#ixzz2QISXdLAt Consultado em Janeiro de 2013.
182
Finally, the cost of error in certain types of
program may be almost incalculable – a lost
spacecraft, a collapsed building, a crashed
aeroplane, or a world war. Thus the practice
of program proving is not only a theoretical
pursuit, followed in the interests of academic
respectability, but a serious recommendation
for the reduction of the costs associated with
programming error.29
No trecho acima, o importante cientista da computa-
ção Tony Hoare faz referência à crise do software da década de
1970, ressaltando suas possíveis catástrofes. Em seguida traz
à tona elementos como “respeitabilidade acadêmica” e defen-
de a prática da prova formal da corretude de programas. Esta
citação ocorreu em meio a um intenso debate onde a comuni-
dade de teóricos da computação buscava fortalecer e ampliar a
abrangência de sua abordagem. Como vemos a seguir, a crise
do software protagonizou um intenso debate, cujo nó górdio era
a caracterização da computação como ciência exata ou como
área interdisciplinar.
Computação, ciência exata ou interdisciplinar?Ao final da década de 60 os programas computacio-
nais vinham se tornando muito extensos e complexos, e como,
naquela época, em função do alto custo, computadores eram
adotados essencialmente para resolver problemas de risco e
situações de segurança nacional (dos países ricos), a presen-
ça de erros nos sistemas computacionais era anunciada como
uma grande ameaça e risco de colapso total. O termo “crise do
29 C.A.R. Hoare, “An Axiomatic Basis for Computer Programming” Commun. ACM 12, 10 (1969), 576-583
183
software” surgiu e se solidificou nas discussões de uma impor-
tante conferência convocada pela aliança militar Organização
do Tratado do Atlântico Norte, OTAN (Conference on Software
Engineering, Garmisch, Outubro de 1968). Analisando as falas
registradas no relatório da conferência se pode perceber a confi-
guração de dois grupos, que ao longo da década de 70 foram
se consolidando. Um grupo concebia a computação como um
campo híbrido: “[W]e can see coming the need for systems which
permit cooperation, e.g., between engineering and management
information.”30
A frase acima é de Alan Perlis, na conferência da OTAN
de 1968. No ano seguinte, na segunda edição da mesma confe-
rência, Perlis se manteve na contra-mão do domínio da matema-
tização sobre a qual se sustentava a abordagem da computação
como ciência exata. O olhar híbrido de Perlis à computação se
manifestava por exemplo na dependência simbiótica que enxer-
gava na relação entre humanos e computador: “To unders-
tand a program you must become both the machine and the
program.”31
É uma abordagem que ainda hoje causa indignação
entre os pesquisadores da área:
This view is a mistake, and it is this wide-
spread and virulent mistake that keeps
programming a difficult and obscure art. A
person is not a machine, and should not be
forced to think like one.32
Outro grupo enxergava a computação como ciência
30 Relatário da conferência da OTAN, 1968, p.135
31 Alan J. Perlis. Epigrams on Programming. SIGPLAN Notices Vol. 17, No. 9, September 1982, pages 7 – 13
32 Learnable Programming. Designing a programming system for undertan-ding programs. Brad Victor, 2012. http://worrydream.com/LearnablePro-gramming/. Consultado em janeiro 2013.
184
exata, ressaltando suas basas matemáticas. Ilustramos com a
afirmação de Edsjer Djkstra, alguns anos depois (1988) defen-
dendo a matematização no ensino da computação :
Needless to say, this vision of what computing
science is about is not universally applaud-
ed. On the contrary, it has met widespread –
and sometimes even violent – opposition from
all sorts of directions. I mention as examples:
(0) …, (1) ..., (5) all soft sciences for which
computing now acts as some sort of interdis-
ciplinary haven.33
A computação lida com o dilema constante de repre-
sentar formalmente (em programas) uma situação do mundo.
Então o programador fixa um único olhar, que passa a servir
como baliza: o programa estará certo se estiver de acordo com
aquela visão fixada. E aí, diante da impossibilidade de se esta-
belecer uma correspondência direta entre o real e a compu-
tação, o profissional da computação passa a buscar métodos
(metodologias, diretrizes) que disciplinem a atividade de progra-
mação, conduzindo ao desenvolvimento de programas corretos.
Teixeira (2006) comenta:
O status de engenharia conferido ao desenvol-
vimento de software faz com que o vejamos,
ordinariamente, como disciplina técnica.
Parece natural que a ES se dedique, sobre-
maneira, às ferramentas, métodos, modelos
e princípios técnicos. A própria denomina-
ção pela negativa – “não técnico” – revela
que os problemas “técnicos” têm status mais
33 Manuscrito de Edsjer Djkistra registrado por ele com rótulo EWD1036. http://www.cs.utexas.edu/users/EWD/ Consultado em janeiro 2013.
185
importante e prioritário para a ES. (…) Veja-
mos a modelagem de informação, ferramen-
ta chave com presença muito forte nos ciclos
de desenvolvimento de sistemas. Ela denota
“uma posição realista ingênua”, que pres-
supõe bastar existir um método adequado
para que o mundo real, objetivo, possa ser
descoberto.34
Se esta busca por diretrizes que reafirmem o status
da técnica e portanto que conduzam à “representação correta
da realidade” é forte na Engenharia de Software, a Teoria da
Computação vem colocar o ponto final neste processo: a prova
de corretude obtida pelos mecanismos de correção formal. Se
está provada a corretude de um programa, não há mais o que
discutir. Quem garante a verdade já não é mais o programa-
dor, é a matemática! Neste processo de prova (sobre o qual se
baseiam hoje os certificados de corretude pleiteados por siste-
mas que operam com situações de risco ou que necessitam um
diferencial no mercado) convém omitir as escolhas (subjetivida-
des) que acompanham todo o processo:
(i) O desenvolvedor escolhe e formaliza as propriedades
que ele considera fundamentais.
(ii) O desenvolvedor apresenta a especificação formal do
sistema, ou apenas das partes que ele considera que são pontos
críticos.
(iii) O desenvolvedor fornece a prova de que a especi-
ficação formal (de partes) do sistema satisfaz as propriedades
escolhidas.
34 TEIXEIRA, C. A. N., 2006, “Algumas observações sobre os vínculos entre a Engenharia de Software e o pensamento moderno.”, In: Workshop Um Olhar Sociotécnico sobre a Engenharia de Software (WOSES), 2., Vila Velha. Anais. pp. 39-50.
186
(iv) O desenvolvedor fornece a prova de que o sistema
é realmente um refinamento (uma implementação) da especifi-
cação dada, e portanto, também satisfaz as mesmas proprieda-
des que foram provadas no nível formal. Incapaz de eliminar as
escolhas, o método formal acaba por, subrepticiamente, propa-
gá-las ao longo de todo o processo.35
Soma-se a isto o fato de que as provas formais tomam
o texto (do programa ou de sua especificação) como uma enti-
dade que age isolada, afastando do resultado teórico as intera-
ções e situações imprevistas da realidade, conforme constatou
Hoare, em seu artigo de 1969 “An Axiomatic Basis for Computer
Programming”:
Computer programming is an exact science
in that all the properties of a program and all
the consequences of executing it in any given
environment can, in principle, be found out
from the text of the program itself by means
of purely deductive reasoning.4
Hoje a computação é ciência exata. É o que diz a tabe-
la de áreas de conhecimento do CNPq36. Uma comparação nas
propostas curriculares da ACM37 também indica que os argu-
mentos em favor do método e matematização disseminados ao
35 Cafezeiro & Marques. Da corte suprema, a matemática, à matemática nos tribunais. In: Scientiarum Historia IV: 4º Congresso de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, 2011, Rio de Janeiro. Anais do Scientiarum Historia IV: 4º Congresso de História das Ciências e das Técnicas e Epistemo-logia, 2011.
36 http://www.capes.gov.br/images/stories/download/avaliacao/TabelaA-reasConhecimento_072012.pdf Consultado em Janeiro 2013.
37 ACM, Association for Computing Machinery é uma organização sem fins lucrativos, fundada Estados Unidos em 1947, visando o desenvolvimento científico e educacional da computação. Vem sendo por muitos anos a socie-dade de maior prestígio da área no âmbito mundial (http://www.acm.org/).
187
final da década de 60 geraram os resultados previstos de carac-
terizar a computação como ciência exata. No currículo de 1968,
concebido antes da conferência da OTAN, lê-se:
In addition to the areas of computer science
listed under the three divisions above, there
are many related areas of mathematics,
statistics, electrical engineering, philosophy,
linguistics, and industrial engineering or
management which are essential to balanced
computer science programs. Suitable cours-
es in these areas should be developed coop-
eratively with the appropriate departments,
although it may occasionally be desirable
to develop some of these courses within the
computer science program.38
Em comparação, no currículo de 1978, o tom é subs-
tancialmente diferente:
[C]ertain topics contain political overtones
which should be discussed, but which, if not
done carefully, can give the material a politi-
cal science flavor it does not deserve. 39
Porém, os recentes avanços tecnológicos advindos com
a Internet que tendem a valorizar os mecanismos colaborativos
e as organizações em rede parecem indicar o caminho híbri-
do para a computação, uma vez que evidenciam a participação
38 Curriculum 68: Recommendations for academic programs in computer science: a report of the ACM curriculum committee on computer science. Commun. ACM 11, 3 (March 1968), 151-197.
39 Curriculum ‘78: recommendations for the undergraduate program in computer science— a report of the ACM curriculum committee on computer science. Commun. ACM 22, 3 (March 1979), 147-166.
188
de múltiplos agentes; algo que Perlis e outros cientistas insis-
tiam em afirmar não somente com relação à computação, como
também à própria matemática:
Mathematical proofs increase our confidence
in the truth of mathematical statements only
after they have been subjected to the social
mechanisms of the mathematical commu-
nity. These same mechanisms doom the
so-called proofs of software, the long formal
verifications that correspond, not to the work-
ing mathematical proof, but to the imaginary
logical structure that the mathematician
conjures up to describe his feeling of belief.
(…) As for ourselves, we will continue to
argue that programming is like mathematics,
and that the same social processes that work
in mathematical proofs doom verifications.40
A conformação da matemática, suas entidades abstra-
tas e as configurações de poder que se estabelecem em nome
da dita “objetividade matemática” foi assunto abordado neste
encontro Ator-Rede, no tema “matemática”.
40 Millo, Lipton e Perlis, Social Process and Proofs of Theorems and Programs. Commun. ACM 22, 5 (1979), 271-280
189
Currículos de Computação: porque são assim?Miguel Jonathan
O foco dos currículos de computaçãoHistoricamente, a formação universitária em Compu-
tação nas principais universidades tem sido focada em mate-mática, física, tecnologia eletrônica e digital, e ciência da computação. Conteúdos destinados a preparar o egresso
para refletir sobre a interação dessa tecnologia com a sociedade
compreendem, quando existem, menos de 5% do total (tipica-
mente 1 a 2 disciplinas em 50).
Em contraste com essa situação, a grande maioria das
oportunidades de trabalho em Computação no Brasil está na
aplicação de computadores em atividades que afetam direta ou
indiretamente a vida das pessoas, individual e em sociedade.
Porque então os nossos jovens tem recebido uma forma-
ção tão restrita e especializada? É o que este trabalho tenta
responder.
Como tudo começou… Uma profissão centrada na máquina
Computadores foram introduzidos no Brasil no início
da década de 1960 por multinacionais dos países centrais
(especialmente a IBM). Durante mais de uma década, a gran-
de maioria dos profissionais foram formados pelas empresas
fabricantes.
O fascínio pela nova tecnologia atraía as mentes mais
brilhantes entre os egressos de cursos como engenharia eletrô-
nica, física e matemática, estimulados ainda mais pelos altos
salários da época. O centro das atenções, a razão de ser da
profissão, foi desde o início a máquina e a tecnologia de sua
utilização, incluídos a arte de programar, armazenar e recupe-
rar dados com rapidez e segurança.
190
A outra ponta interessada, os clientes com suas apli-
cações a serem atendidas pela máquina, representavam uma
área pouco familiar e distante da formação e do interesse dos
analistas e programadores.
Estimulando a formação tecnológicaO governo militar que assumiu o País em 1964 inves-
tiu fortemente no desenvolvimento da pesquisa tecnológica e de
programas de pós-graduação em tecnologia nas universidades.
Bolsas de estudo no exterior e contratação em tempo
integral estimularam a busca por doutoramento em computa-
ção nas melhores universidades americanas e europeias.
A Reforma Universitária de 1968 reorganiza as univer-
sidades federais em departamentos especializados e homogê-
neos. Muitos cursos universitários passam a ser controlados
por apenas um departamento, desestimulando a formação
multidisciplinar.
Na década de 1970 jovens recém-doutores em ciência
da computação retornam ao Brasil e organizam nas universida-
des departamentos de computação.
São criados os primeiros cursos de graduação e pós-
graduação na área, com ênfase na ciência e na tecnologia.
Grupos de pesquisa investem na busca pelo domínio da tecno-
logia, visando capacitar o país a ser auto-suficiente em um setor
considerado estratégico.
Um novo ator: a Sociedade Brasileira de ComputaçãoEm 1972 a Universidade Federal do Rio Grande do Sul
promove o primeiro encontro nacional de pesquisa em computa-
ção, com o nome de “Seminário sobre o Desenvolvimento Integra-
do de Software e Hardware”. O nome já evidencia que a prioridade
era a tecnologia, e não o que os atores sociais fariam com ela.
A Sociedade Brasileira de Computação (SBC) é criada
191
em 1978, reunindo os pesquisadores de todo o país.
Em 1991 a Comissão de Ensino da SBC produz o primei-
ro Currículo de Referência - CR91, com apoio da SESu/MEC,
que é aprovado formalmente pela Assembleia Geral da socieda-
de. O CR91 foi fortemente influenciado pelas recomendações da
ACM e IEEE-Computer Society americanas, e consolidou a ideia
de uma formação essencialmente voltada para a tecnociência.
O CR91 tornou-se efetivamente uma caixa-preta no
sentido atribuído por Bruno Latour: fato plenamente aceito ou
objeto não problemático, um todo que pode ser usado para contro-
lar o comportamento de grupos alistados. [Latour, 2000].
A partir de 1993, a SBC organiza encontros nacionais
reunindo coordenadores de cursos e professores de todo o Brasil
- os WEI - Workshop de Educação em Informática, atualmente
denominados Workshop de Educação em Computação.
Em 1994 a SBC assume “de fato” a Comissão de Espe-
cialistas de Ensino de Informática (CEEInf), criada pela Secre-
taria do Ensino Superior do MEC. A ela caberá determinar os
padrões de qualidade para os cursos da área de Computação e
Informática e os procedimentos de autorização e reconhecimen-
to de cursos em todo o país.
Formação profissional: novos atores em cenaAlém das formações em Ciência e Engenharia de
Computação, o espectro de currículos vem aumentado, com a
inclusão de Sistemas de Informação e Engenharia de Software.
A formação em Sistemas de Informação, originalmen-
te denominada Análise de Sistemas, foi historicamente relega-
da a uma “computação de segunda linha”, por ser de natureza
multidisciplinar. Popularizou-se como cursos de “curta dura-
ção”, formando tecnólogos, e pouquíssimas universidades
ofereciam formação plena na graduação. Essa situação tem-se
revertido recentemente, especialmente após a recomendação da
192
ACM-AIS-AITP: IS 2002 Guidelines for Undergraduate Degree
Programs in Information Systems [IS2002].
Uma outra modalidade de formação, Engenharia de
Software, é o nome “moderno” para a antiga arte de progra-
mar, testar e implementar sistemas computacionais confiáveis
no mundo real, especialmente depois que o software torou-
se muito mais complexo. A Engenharia de Sotware passou a
adquirir vida própria a partir da publicação do relatório Softwa-
re Engineering 2004- Curriculum Guidelines for Undergraduate
Degree Programs in Software Engineering [SE2004].
Computing Curricula 2005 [CC2005]: A cooperative project of Association
for Computing Machinery (ACM), Association for Information Systems (AIS)
and IEEE Computer Society (IEEE-CS).
O CR 2005 da SBC avança, e dá algum espaço para matérias não técnicas.
O currículo de referência proposto pela SBC em 2005
[cr2005] para cursos voltados para a atividade fim da computa-
ção, ou seja, Ciência da Computação e Engenharia da Computa-
ção, realizou avanços na medida em que afirmou a necessidade
do egresso de um curso de computação ser sensibilizado para
também considerar as questões éticas, sociais e específicas de
193
outras áreas do conhecimento que são afetadas pelo desenvol-
vimento da computação e de seus artefatos.
No capítulo 4, “Perfil Profissional”, a proposta introduz
a seção 4.3, sobre Aspectos Ético-Sociais, cujo texto é reprodu-
zido abaixo:
4.3 Aspectos Ético-SociaisOs egressos de um curso de computação
devem conhecer e respeitar os princípios
éticos que regem a sociedade, em particular
os da área de computação. Para isso devem:
• Respeitar os princípios éticos da área de
computação;
• Implementar sistemas que visem melhorar
as condições de trabalho dos usuários, sem
causar danos ao meio-ambiente;
• Facilitar o acesso e a disseminação do conhe-
cimento na área de computação; e
• Ter uma visão humanística crítica e consis-
tente sobre o impacto de sua atuação profis-
sional na sociedade.
O capítulo 8 dessa mesma proposta apresenta a relação
de matérias do currículo de referência. Ressalte-se o grupo 6,
“Contexto Social e Profissional”, que inclui um conjunto de maté-
rias destinadas a dar ao egresso uma abertura para as questões
humanas relacionadas com a aplicação de computadores:
6. Contexto Social e Profissional (P) P1. Administração, P2.Computadores e Socie-
dade, P3.Comunicação e Expressão, P4.Con-
tabilidade e Custos, P5.Direito e Legislação,
P6.Economia, P7.Empreendedorismo, P8.Es-
tágio, P9.Filosofia, P10.Informática na Educa-
ção, P11.Inglês, P12.Métodos Quantitativos
194
Aplicados à Administração de Empresas, P13.
Sociologia e P14.Psicologia.
Essa abordagem, no entanto, recebe críticas. Como afir-
ma Izabel Cabral em [Cabral, 2008]:
Note-se que a formação de um profissional
especializado numa combinação particular da
Computação com outra área do conhecimento
pode não ser obtida com uma simples inclu-
são de algumas disciplinas da área de apli-
cação dentro de um currículo tradicional de
Computação.
Forma-se uma rede sociotécnicaDesse esforço articulado os atores da universidade e do
governo resultaram os currículos de referência de 1996, 1999 e
2005, as Diretrizes Curriculares Nacionais de 1999 e de 2012,
e a organização dos “Cursos de Qualidade”, eventos integrados
aos WEIs visando a troca de experiências em torno de conteú-
dos e metodologias de ensino.
Formou-se assim uma rede sociotécnica que articula um
núcleo “duro” de pesquisadores nas universidades e na SBC, a
SESu/ MEC, departamentos, cursos, coordenadores, currícu-
los de referência e diretrizes curriculares, criando pontos de passagem obrigatória para todos que desejem realizar cursos
de graduação na área.
Referências[CC2005] ACM/AIS/IEEE-CS Computing Curricula
2005 - The Overview Report, disponível em http://www.acm.
org/education/education/curric_vols/CC2005-March06Final.
pdf, acesso em 25/7/2013.
195
[IS2002] ACM/AIS/AITP IS 2002 Model Curriculum
and Guidelines for Undergraduate Degree Programs in Informa-
tion Systems, disponível em http://www.acm.org/education/
is2002.pdf, acesso em 25/7/2013.
[Cabral2008] CABRAL, M.I.C. et al. A Trajetória dos
Cursos de Graduação da Área de Computação e Informática:
1969-2006. Rio de Janeiro: Editora SBC 2008.
[Latour2000] LATOUR, B. Ciência em Ação: como seguir
cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora
UNESP 2000.
[cr2005] SBC, Currículo de Referência da SBC para
Cursos de Graduação em Bacharelado em Ciência da Compu-
tação e Engenharia de Computação, Proposta versão 2005.
Disponível em http://www.sbc.org.br/index.php?option=-
com_jdownloads&Itemid=195&task=finish&cid=183&catid=36,
acesso em 25/7/2013.
[SE2004] ACM e IEEE-CS, Software Engineering 2004
Curriculum Guidelines for Undergraduate Degree Programs
in Software Engineering, disponível em http://sites.computer.
org/ccse/SE2004Volume.pdf, acesso em 25/7/2013.
196
O LUGAR DOS OBJETOS TÉCNICO-CIENTÍFICOS NA EDUCAÇÃO PARA UM MUNDO COMUM
O aglomerado nasceu como resultado de um diálo-
go entre os campos da sociologia das associações - que tem a
teoria do ator rede como ponto de vista para compreensão da
realidade - e a educação. Os integrantes desse aglomerado são
pesquisadores que militam no campo da educação e possuem
formação híbrida, com origem em algum campo das ciências
da natureza somada, ao longo dos anos, a outro das ciências
humanas e sociais. Alguns vieram da indústria ou da banca-
da de um laboratório e outros, da sala de aula ou da gestão e
planejamento acadêmico, mas todos encontraram na teoria do
ator rede uma luz para desenvolver suas pesquisas e, porque
não dizer, a docência. A preocupação com o ambiente e, sobre-
tudo, com uma educação ambiental que considere a possibili-
dade de incorporar tecnologias da informação nas atividades
pedagógicas é outro ponto de articulação entre os participantes
desse aglomerado. O capítulo tem como base a noção inspira-
da em Latour, quando apresenta o “parlamento das coisas”, no
ensaio Jamais Fomos Modernos, segundo a qual vivemos em um
mundo mais que plural: vivemos em um mundo comum. Assim,
buscar-se-á a contribuição do campo da sociologia das asso-
ciações para a educação ambiental comum, considerando os
processos de construção de conhecimento em uma comunidade
epistêmica, os fóruns híbridos no ambiente educativo escolar e
os não humanos na prática educativa. Afinal, educar para uso
de recursos de um ambiente comum a todos é cada vez mais
relevante em face da necessidade de equacionamento de ques-
tões socioambientais geradas pelo consumo de bens, diferencia-
do por sociedades e classes. O caráter emergencial dessa ação
é reconhecido por diversos seguimentos sociais que defendem
a definição de responsabilidades e assumpção de compromis-
197
sos com o coletivo. A noção segundo a qual o mundo além de
plural é comum compõe um paradigma social onde a noção de
hierarquia entre os saberes sobre a natureza e a saúde deve ser
questionada e substituída. O objetivo do capítulo é o de reunir
elementos para discussão de uma proposta educativa que
contribua para garantir a qualidade plena da vida e não apenas
a sua dimensão econômica. Mas, como garantir que isso ocorra
se não for considerado na formulação dos currículos, os interes-
ses e saberes de todos os envolvidos? É possível pensarmos em
pressupostos relacionais – associações – que reagrupam atores
diversos? De acordo com Branquinho e Teixeira (2011), a contri-
buição da teoria do ator rede nas discussões sobre a relação
entre produção de fatos científicos e valores sociais em diferen-
tes comunidades epistêmicas pode ajudar a pensar essas ques-
tões. Relacionando política e epistemologia, as autoras afirmam
que a deterioração da qualidade de vida propriamente dita tem
relação com a postura epistemológica adotada pelos modernos
que pensam conseguir separar, de um lado, as ‘coisas-em-si’
e, de outro, os ‘homens-entre-eles’, separando assim, os que
têm a ciência como instrumento de leitura do mundo e os que
não têm. Considerar a diversidade e exercitar a tolerância são
atitudes que exigem aprendizado dependendo, portanto, de
processos educativos que explorem a dimensão epistemológica
dessas atitudes para garantir sua dimensão política: exercício
que torna comum, de todos, o que é plural, de muitos. Nesse
capítulo, portanto, discutir-se-á com base na teoria do ator rede
a concepção de ciência que deve fundamentar propostas educa-
tivas uma vez que ela é responsável pela hierarquia entre os
saberes que dificulta a possibilidade de participação equânime
de todos, no momento de conceber e aplicar decisões comuns.
198
Sobre educar para um mundo comum do ponto de vista da teoria do ator-rede
Fátima Teresa Braga Branquinho
Fatima Kzam Damasceno de Lacerda
Rejane Peres Costa
IntroduçãoEste trabalho foi apresentado, originalmente, no VII
Seminário Internacional As Redes Educativas e As Tecnologias:
transformações e subversões na atualidade, em junho de 2013
e tem como coautora a graduanda Rejane Peres Costa. Trata-se
do conhecimento reunido com a pesquisa realizada por gradu-
andos de um curso de pedagogia que relaciona o saber constru-
ído socialmente no cotidiano de ceramistas fluminenses com o
saber sobre a cerâmica, forjado no campo disciplinar da arte.
Tal pesquisa reúne, do ponto de vista da teoria do ator-rede,
elementos próprios a um conhecimento produzido em uma rede
social. Essa rede explicita a indissociabilidade entre as dimen-
sões cognitiva e sensível do conhecimento, revelando que não é
evidente a hierarquia estabelecida entre elas pelo pensamento
qualificado como moderno. Tal noção contribui para a formação
do educador que almeja superar abismos dualistas tais como
natureza/cultura, objeto/sujeito, conceito/contexto, fato/valor
que se interpõem à realização de práticas educativas interdisci-
plinares, multiculturais, inclusivas e democráticas.
Há, por certo, produção bibliográfica que fala sobre
reconhecer associações entre o conhecimento científico sobre o
mundo real e o conhecimento vivido, por cada um de nós, em
nosso cotidiano (MORIN, 2008; SANTOS, 2001, 2004, 2007).
De acordo com esta, a concepção de educação deve traduzir
uma concepção sobre a produção do conhecimento: aquela que
considera a importância, para a sociedade humana, em reli-
gar mentes e corpos, razão e sensibilidade, saberes científicos e
199
tradicionais/populares. São novos pressupostos sobre a cons-
trução do conhecimento sobre a realidade em diálogo com o
campo da educação, com a formação do educador e com o coti-
diano escolar (OLIVEIRA, 2012; ALVES, BERINO e SOARES,
2012). Assim, este escrito é resultado de um trabalho coleti-
vo41, realizado por estudantes de um curso de pedagogia, que
pretende descrever como tem sido participar dessa experiência
de formação do educador-pesquisador42, numa reflexão sobre
o que ora foi reunido sobre os saberes e fazeres de ceramistas
fluminenses e a possível contribuição desse conhecimento para
a educação. Afinal, tanto a produção do conhecimento científico
quanto sua sistematização na escola reproduzem a lógica da
hierarquia socioeconômica presente nas sociedades capitalistas
(BOURDIE e PASSERON, 1970).
Então, como, a partir da pesquisa, é possível pensar
uma educação cidadã? É possível educar para pensar dife-
rente da lógica hegemônica? Lacerda (2012) utiliza o conceito
de rede sociotécnica para discutir a crise do paradigma hege-
mônico e abordar uma outra lógica possível na formação de
professores. Este será o nosso desafio: colocar esta ideia em
prática, com o auxílio da teoria ator-rede.
A base da pesquisa e a teoria do ator-redeO sociólogo francês Bruno Latour (1994), em sua obra
Jamais Fomos Modernos, propõe a superação do conceito
moderno de separação entre humanos e não-humanos, defen-
dendo uma igualdade de importância aos dois entes, uma vez
41 Esta pesquisa faz parte do projeto Saberes e Fazeres de Ceramistas: um estudo sobre a indissociabilidade entre conhecimento, ambiente e arte que é coordenado pela professora Fátima Teresa Braga Branquinho (FE/UERJ, PPGMA/ Doutorado Multidisciplinar/ Uerj). O desafio posto aos componentes da equipe é o de fazer ciência e, ao mesmo tempo, formar-se educador.
42 Sobre esta temática, cf. Esteban e Zaccur (2002), Geraldi, Fiorentini e Pereira (1998) .
200
que os humanos interagem cotidianamente com os objetos, e
que estes moldam os humanos e suas formas de agir e de se
relacionarem no mundo, formando desse modo uma rede social
que integra os humanos e os não-humanos de forma hetero-
gênea e interligada. Nosso trabalho está filiado a esta linha de
estudo da antropologia da ciência e das técnicas e, portanto, se
utiliza da abordagem e das contribuições da teoria do ator-rede.
Tal teoria busca explicitar as associações entre conhecimento e
sociedade, objeto e sujeito. A principal pergunta que norteia o
trabalho de antropólogos e sociólogos das ciências e das técni-
cas, em suas diferentes formulações, pode ser expressa do
seguinte modo: como o objeto, que não tem a mesma natureza
da sociedade é produzido por essa sociedade e, tal como ela,
tem a capacidade de recompor laços sociais?43 Nesse cenário
epistemológico, onde o objeto “fala”, desconsiderando a concep-
ção hegemônica de objeto - passivo e a espera das revelações
que o sujeito é capaz de fazer - são formuladas as questões
que atravessam o trabalho da pesquisa. Tais estudos buscam
analisar a relação entre conhecimentos científicos que estejam
sendo construídos e a construção simultânea da natureza e
da sociedade. Essa perspectiva considera que o conhecimen-
to não é linear nem unidirecional, ao contrário, ele circula e
sua construção realiza-se em vários espaços e com atores cien-
tíficos e não-científicos (BRANQUINHO e TEIXEIRA, 2011). A
possibilidade de (des)hierarquização dos saberes por meio desse
entendimento sobre a natureza híbrida do objeto, do sujeito e
do conhecimento científico sobre uma realidade particular é o
que instiga o grupo da pesquisa44.
43 Sobre isso, cf. Blandin (2002), Callon, Lascoumes e Barthe (2001), Latour (1994, 2000, 2001, 2001), Law (2002), Stengers e Bensaud-Vincent (2003), Arriscado (1997).
44 Dentre as graduandas que participam estão Rejane Peres Costa,(bolsista de extensão/Uerj), Nathalia Araújo e Silva (bolsista IC/CNPq), Liliane Machado
201
Dentre os princípios norteadores da pesquisa, como
apresenta Branquinho (2011), está a consideração de que a
cerâmica é um híbrido de natureza e cultura45 que participa de
redes sociotécnicas, produzindo conhecimento sobre a realida-
de (LATOUR, 1994). O estudo valida os princípios de simetria
sobre o modo como são concebidas as noções de natureza e de
sociedade no âmbito da teoria do ator-rede (LATOUR, 2012). De
acordo com tal teoria, os atores – humanos e não-humanos –
da rede formulam e praticam ações associadas à produção do
conhecimento sobre uma dada realidade social e, desse modo,
agenciam novos atores e a transformam. Desse ponto de vista,
humanos e não-humanos participam da disputa por poder e
afetividade, negociações e conflitos. Essa noção possibilita fazer
etnografia de objetos – principal procedimento de pesquisa utili-
zado – já que, à luz da referida teoria, tais não-humanos dão
sentido a processos vividos em sociedade. Podem, assim, ser
estudados, compreendidos e explicados pelas ciências sociais.
Interessa ao estudo apresentado, um exame de como se
relacionam ceramistas e profissionais das artes plásticas com a
cerâmica tomada como objeto de estudo, produtor de conheci-
mento sobre a realidade tal e qual o ceramista o é.
Segundo Branquinho e Teixeira (2011):
Os estudos aqui descritos pretendem contri-
buir com a explicação sobre o modo como
objetos podem agir como se fossem sujei-
tos, modificando a realidade. O tema focal
é a superação da separação entre produção
Vieira (bolsista IC/FAPERJ), Nathalia Porto (voluntária), Emília Madalena de Sena Martins, Ana Paula Santos Silva (bolsista IC/Uerj), Danielle Gomes Rodrigues, Priscila Primo Nascimento, Juliana Linhares de Oliveira, Flávia Mesquita Bernardo da Silva. Todas são alunas da disciplina Pesquisa e Prá-tica Pedagógica ministrada pela coordenadora da pesquisa.
45 Questão trazida pelos antropólogos das ciências e das técnicas. Sobre isso cf. Branquinho e Santos (2007) e Branquinho e Teixeira (2011).
202
mental e estrutura social, ambiente e ativida-
de simbólica, mostrando a construção simul-
tânea do objeto e do universo socioambiental
dentro do qual esse objeto funciona. (BRAN-
QUINHO e TEIXEIRA, 2011, p. 5).
Questionar como dialogam os conceitos, os fatos próprios
ao campo de conhecimento denominado como “campo da arte”
e os valores sociais, o contexto social, os artistas, a definição
que têm de si mesmos é a postura teórico-metodológica mais
marcante da referida pesquisa e que traz originalidade à contri-
buição que tal pesquisa confere ao campo da antropologia das
ciências e das técnicas, que a circunscreve ao campo da educa-
ção, com o qual almeja dialogar a partir da noção de (des)hierar-
quização de saberes, sem contudo, intentar homogeneiza-los.
A ciência do ceramista não é evidente e não está descrita:
Tal ciência se constitui num sistema de conhe-
cimento heterogêneo, e merece ser investigado
[...] não está sendo construído de modo linear,
apartado do mundo natural, da sociedade ou
apenas por atores acadêmicos e especialistas
em arte. (BRANQUINHO, 2011, p. 14).
Com esse estudo, é possível aperfeiçoar o conhecimento
social sobre uma realidade particular: a cerâmica no Estado do
Rio de Janeiro, “a primeira manifestação da técnica nas socie-
dades humanas, recriação constante de tradições e modos de se
relacionar com a natureza.” (BRANQUINHO, 2011, p.3).
São bem diversas as regiões fluminenses visitadas pelo
grupo da pesquisa: do litoral às serras, do sul ao norte do estado
do Rio de Janeiro. As principais cidades visitadas na fase atual
da pesquisa são: Rio de Janeiro, Barra do Piraí, Itaguaí, Macaé,
Miguel Pereira, Paty do Alferes, Quissamã, Carapebus, Macaé,
203
Bom Jesus de Itabapuana, Valença, Vassouras. O procedimento
de pesquisa básico é encontrar e conversar com aquelas pesso-
as que trabalham com a cerâmica e se autodenominam artis-
tas, estudiosos ou ceramistas, oleiros, artesãos, dentre outra
denominações como, por exemplo, professores de cerâmica. Os
ceramistas estão situados em pontos diversos das localidades
visitadas, como museus, universidades, ateliês de artes distri-
buídos do centro até as periferias, onde possuem seus peque-
nos negócios, em local próximo ou, até mesmo, no quintal de
suas casas. Na diversidade de regiões visitadas, encontramos
situação socioeconômica igualmente múltipla, desde aqueles
que utilizam o fazer cerâmica como arte ou terapia até aqueles
que têm nesse labor o próprio sustento e de sua família (BRAN-
QUINHO e TEIXEIRA, 2011).
A fase atual da pesquisa vem sendo realizada desde
2011. Durante o trabalho de campo - as entrevistas com os cera-
mistas - foram também realizadas conversas e observações com
os pesquisadores do staff do Museu do Folclore Edson Carnei-
ro46. A partir desse grupo, surgiram sugestões e indicações dos
próprios ceramistas sobre outros ceramistas a serem visitados
em seus ateliês. Neste exercício de busca, de indicações, sobre
onde a cerâmica está, surgiram diversos atores envolvidos: a
tarefa de coleta de dados. O ambiente, o barro, os instrumentos
e ferramentas utilizados, a fala do ceramista, tudo isso possibi-
lita “ouvir” a cerâmica. A escuta revela que ela tem querer, que
ela determina a sua própria forma no diálogo com o calor do
forno, com os pigmentos coloridos, com a mão guiada no torno,
no contato, na sensibilidade e na disponibilidade de interagir
com ela e reconhecê-la sujeito. Ela organiza um modo de vida
46 A participação dos pesquisadores do museu do folclore é especialmente importante para esta investigação por discutirem o diálogo entre artes erudita e popular, tema que é polêmico no campo disciplinar da Arte (BRANQUINHO, 2011, p.3).
204
e trabalho. Cabe então perguntar: a cerâmica agrupa ceramis-
tas ou dissipa limites entre artistas, artesãos, oleiros, professo-
res, curadores, pesquisadores do campo das artes, amantes da
cerâmica?
Alguns resultados da pesquisa sobre a cerâmica e o ceramista: a cerâmica como método
O universo variado que compõe o grupo de ceramistas
fluminenses demonstra a premissa de Freire (1987, p.39) segun-
do a qual “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se
educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediati-
zados pelo mundo”. A cerâmica protagoniza uma rede sociotécni-
ca que envolve muitos atores em interação permanente: gerações
de pessoas, que fazem desta atividade seu sustento e estética
da vida, labor e arte. São pessoas que aprendem e ensinam nas
atividades cotidianas, em ateliês domésticos ou que procuram
por cursos e professores de cerâmica ou, ainda que, através da
autoobservação, percebem potencialidades e enfrentam desafios
instigados pela inventividade e a imaginação. Na fala de um cera-
mista de Barra do Piraí vem a confirmação da presença híbrida
da cerâmica, na vida de quem ela habita, como laborarte:
“porque já vem de família, meu pai já traba-
lhava com isso, meus irmãos também....
então, foi uma coisa de família mesmo, nós
conhecemos, e aí gostamos. E hoje, esta-
mos fazendo desse trabalho nossa profissão
mesmo. É uma arte, mas também é uma
profissão.” (novembro de 2012).
A utilização de recursos naturais para produção de uten-
sílios e/ou ferramentas que facilitam a vida humana remonta a
origem das sociedades. Fazer de uma pedra instrumento de caça
prolongando braços é apenas um, dentre os exemplos, de como
205
objetos, a partir de sua própria natureza, indicam modos de utili-
zação e transformam modos de vida, garantem a sobrevivência.
Os ceramistas falam muito desse aprendizado a partir
da interação e compreensão da natureza mesma do barro, do
que ele “pede” para que se transforme no que se pensou para
ele. Sobre isso, ceramista diz:
“a gente aprende com a cerâmica algumas
coisas: primeiro são os limites, quando você
faz cerâmica, você tem algumas imposições
colocadas pela massa”. (abril de 2012).
É muito comum o relato de que o barro tem vontade
e nem sempre é possível contrariá-lo, que ele se transforma
naquilo que quer e, quando teimam, a peça quebra na queima.
É a experiência concreta, o conhecimento sensível que indica
como fazer, capacita e emancipa:
“eu vou pegar o barro e ele vai se expres-
sar naturalmente, a forma [...] vou ver qual
a pressão que vai surgir aqui do torno e a
forma que ela for tomando é o curso que eu
quero seguir. Então, essa coisa das pessoas
mexerem com a água, com os elementos em
contato com o barro, essa paciência que tem
que ser exercida ali [...].” (novembro de 2011).
O barro que ensina, o tempo que fala, o ambiente que
dimensiona o fazer e o modo de fazer, sujeitos e objetos dispu-
tando espaço: a transformação não é somente do barro pelo
homem, mas também do homem que aprende a partir desse
objeto – quase-sujeito, como nos diz Latour (1994), numa refe-
rência a Serres – tal como aparece na fala do ceramista:
“Você não tem controle do material, você faz
um teste com uma cor e sai uma cor total-
206
mente diferente. Toda argila tem minerais,
os óxidos, esses óxidos migram, e interferem
no esmalte, dão um problema, isto é, pode
contrariar o projeto inicial...”. (maio, 2012).
Fica evidente como aprendem e se constituem como
sujeito-objetos, igualmente híbridos, a partir e com estas peças
e a interação que mantêm com a natureza:
“O barro, às vezes, demora um pouquinho
mais pra ser manuseado [...] tem também
esse problema do tempo, a gente depende
muito do tempo [...] e essa peça, que não
pode voltar pro sol, ela fica aqui em cima,
pra poder pegar somente o calorzinho, não o
calor do sol, mas só o calorzinho, o vento, pra
ela poder secar”. (novembro, 2012).
A cerâmica fala numa interação silenciosa, transfazen-
do o ceramista. Para interpretar e dialogar com o barro, é neces-
sário estar disponível. Essa noção aparece em Manoel de Barros
(2007), quando em seu Livro de pré-coisas, ele diz:
De repente um homem derruba folhas. Sapo
nu tem voz de arauto. Algumas ruínas enfru-
tam. Passam louros crepúsculos por dentro
dos caramujos. E há pregos primaveris.....
(Atribuir-se natureza vegetal aos pregos para
que eles brotem nas primaveras....Isso é fazer
natureza. Transfazer.). (BARROS, 2007, p.9).
O favorecimento do processo de aprendizagem com a
cerâmica tem estímulo variado: o transfazimento ocorre em
diferentes situações. Mas, seja no âmbito familiar - em que
todos estão envolvidos de alguma forma - ou num observar que
207
desperta a curiosidade, ou ainda na possibilidade de expres-
são de uma emoção, todas as situações emergem da reunião da
sensibilidade com a razão. Sobre isso, um ceramista diz:
“O risco, aprendi com um colega meu, traba-
lhamos juntos numa fábrica, eu fabricando,
e ele riscava [...] ele até mesmo não gosta-
va de ensinar não, entendeu? Mas graças a
Deus, eu sempre tive essa vontade de apren-
der, querer algo... aí, ficava olhando na hora
do almoço, ficava olhando assim, olhando...
aí não aguentava não, fui aprender! Aprendi
olhando.” (fevereiro de 2012).
A transformação do barro em objetos de arte e uten-
sílios, pelas mãos dos ceramistas, evidencia a capacidade que
possuem de intervenção no mundo, sua potencialidade de cria-
ção e de aprendizagem. A cerâmica os empodera e possibili-
ta que se autodenominem como artesãos e/ou como artistas.
Porém, muitos hesitam em se afirmarem como artistas.
O trabalho de campo parece, a princípio, reiterar uma
controvérsia presente no campo da arte sobre o que é arte? Há
uma separação e hierarquização do saber/fazer dos ceramistas
que, ao se descreverem, fazem menção a uma possível distinção
entre artista, artesão e oleiro. Na fala de um deles aparece o
critério utilizado para tal distinção:
“O ceramista ele expõe uma ideia e até
mesmo patenteia essa ideia dele, pra que
outros não venham copiando, fazendo igual.
Trabalha muito assim, o ceramista trabalha
assim, mais pro lado de peças pra exposições,
o ceramista é um verdadeiro artista mesmo, é
o voltado pra arte. O artesão ele cria um deter-
minado modelo e ele mais ou menos vai repe-
208
tindo aquele modelo.” (Dezembro de 2011).
A principal categoria diferenciadora desses ceramistas é
a capacidade de criar. Aqueles que não o fazem tem sua atividade
tida como menor, menos valorizada. Esse exemplo parece repro-
duzir a hierarquia social estabelecida entre trabalho manual e
intelectual privilegiando a razão frente a sensibilidade.
Porém, constantemente, entram em contradição sobre
o que é ser artista:
“No nosso caso nós fazemos aqui as duas
partes: tanto do ceramista e quanto do olei-
ro. Por exemplo, se eu fosse ceramista, eu
teria que ter um atelier pra trabalhar somen-
te com produtos assim diferenciados, eu não
poderia estar fazendo vasos. Um ceramista,
na verdade, trabalha num atelier e ele faz
peças diferenciadas.” (outubro de 2012).
Nesta mesma entrevista, este ceramista fala do trabalho
manual e, de apesar de estar reproduzindo um mesmo modelo,
cada peça é única, possuindo sua singularidade porque é fruto
da imaginação e da ação humana; uma a uma cada peça é simi-
lar, mas guarda sua diferença:
“[...] então quando você faz aquilo que você
imagina e alcança praticamente a perfeição
daquilo que você imaginou [...] um vaso não é
igual ao outro, mas se você olhar dentre esses
vasos que estão ali, um ali você vai achar que
se identificou mais com ele.” (outubro de 2012).
O saber-fazer do ceramista é sensível e cognitivo, mesmo
para os ceramistas cujos ateliês estão nos museus, nas univer-
sidades, nas escolas de arte. Não é um saber apartado do corpo,
mas que se confunde com ele. Sobre isso, Saramago (2005), ao
209
falar sobre um grupo de ceramistas em A Caverna, diz:
Ia medir-se com o barro, levantar os pesos
e os alteres de um reaprender novo, refazer
a mão entorpecida, modelar umas quan-
tas figuras de ensaio que não sejam decla-
radamente, nem bobos nem palhaços, nem
esquimós, nem enfermeiras, nem assírios
nem mandarins, figuras de qualquer pessoa,
homem ou mulher, jovem ou velha, olhan-
do-as pudesse dizer, Parecem-se comigo. E
talvez que uma dessas pessoas, mulher ou
homem, velha ou jovem, pelo gosto e talvez a
vaidade de levar para casa uma representa-
ção tão fiel da imagem que de si própria tem,
venha à olaria e pergunte a Cipriano Algor
quanto custa aquela figura de além, e Cipria-
no Algor dirá que essa não está para venda, e
a pessoa perguntará o porquê, e ele respon-
derá, Porque sou eu. (SARAMAGO, 2000, p.
152-53).
Os ceramistas são proprietários de técnicas comuns,
trabalham a mesma matéria-prima, narram sensações e
emoções recorrentes, aprendem com o barro, o transformam e
são transformados: será que possuem critérios de distinção que
estabelecem hierarquia entre grupos de ceramistas? Isso ainda
merece investigação47. E qual a contribuição desta pesquisa para
a educação e, mais especificamente, para a formação docente?
47 Compreender a construção da identidade dos diferentes atores que compõe a rede de saberes e fazeres de ceramistas fluminenses, bem como as con-trovérsias suscitadas nos seus espaços de discussão, constitui-se num dos objetivos do projeto, cujo término está previsto para final do ano de 2014. (BRANQUINHO, 2011).
210
A hierarquia entre os saberes e a educação para a democracia
Percebemos que para apreender, interpretar e dialogar
com a realidade, é necessário estar disponível para os obje-
tos: essa é uma noção advinda desta pesquisa realizada à luz
da teoria do ator-rede e que inspira uma proposta de educa-
ção para a democracia. A formulação dessa proposta implica
perguntar: quem sabe se, a realidade – opaca para os empiristas
e infinita, para os racionalistas – não pode estar povoada por
objetos-atores? Transfeitos, objetos-atores – tais como molécu-
las de DNA cheias de paternidade – evidenciam a indissociabi-
lidade entre natureza e cultura. Quem sabe, tal evidência não
nos obriga a rever a noção hegemônica segundo a qual a ciência
separa natureza e cultura, reagregando o social (Latour, 1994,
2012)? Afinal, tal revisão poderá trazer benefícios minimizando
conflitos advindos do preconceito que separa, de um lado, os
que têm a ciência como instrumento de leitura do mundo e, de
outro, os que não têm. Não é evidente que uma dessas formas
de conhecer é mais verdadeira que a outra, subjugando-a numa
hierarquia entre saberes e entre sociedades. Portanto, este
entendimento pode trazer implicações importantes na forma-
ção de futuros professores, pois trás em seu bojo a discussão
sobre a (des)hierarquização entre o saber popular e o científico.
Como ressaltam Branquinho e Teixeira (2011, p. 8), afirmar a
não hierarquiazação dos saberes implica em última instância,
na revisão do que é sujeito e do que é objeto.
Verificamos que algo próprio ao saber científico ressoa
nos saberes populares/tradicionais no fazer cerâmica, numa
rede sociotécnica que liga diferentes atores e possibilita a refle-
xão sobre as potencialidades e limites da teoria do ator-re-
de. Desta forma, essa pesquisa pode contribuir na aceitação
211
e ampliação da noção de produção de conhecimentos sobre a
realidade em espaços marginais e pouco valorizados socialmen-
te, numa perspectiva mais democrática e que contribua para a
diminuição das desigualdades sociais. Não podemos desconsi-
derar que esta democracia também deve levar em conta o lugar e
o papel social dos objetos técnico-científicos que invadem nosso
cotidiano, não importando a “complexidade” de tais objetos.
A constante reflexão sobre a produção de conhecimen-
to deve ser muito cara aos educadores. Questionar processos,
atores sociais envolvidos, espaços que são propícios para tal
intento, a indissociabilidade entre o saber e do fazer: todas
essas inquietações auxiliam na relativização de antigas certezas.
Auxiliam, ainda, a pensar a interdisciplinaridade, as práticas
educacionais multiculturais e a inclusivas que não acontecem
se há apego a conhecimentos eleitos como “saberes válidos” em
detrimento aos saberes vividos pelos grupos culturais em seus
modos de vida e trabalho. Estes são cheios de sentido, partes
do ser.
Consideramos que a antropologia das ciências e das
técnicas tem uma importante contribuição a dar as pesquisas
no campo da educação, pois amplia a possibilidade de pensar
as diferentes redes educativas; a subverter o entendimento da
hierarquia dos processos formativos, a ressignificar a importân-
cia dos objetos que nos rodeiam e a colocar em jogo as dispu-
tas/conquistas de poder, dando visibilidade às controvérsias.
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215
POLÍTICA E LIMITES DAS VERDADES CIENTÍ-FICAS - OS CASOS DAS LENR E DA MULTIMISTURA48
Gregory J. Chaitin, Bolsista
Ivan da Costa Marques
Nossa motivação para falar de reações nucleares a baixa
energia (LENR) ou da “fusão a frio”, como era referenciada em
linguagem mais popular, e da “multimistura” no evento “Ator-
-Rede e além... no Brasil (¿as teorias que aqui gorjeiam não
gorjeiam como lá?)” está em nossa sensação de que, algumas
vezes, tecnologias que seriam de grande benefício para a huma-
nidade são suprimidas por razões de falta de diálogos dentro e
fora da comunidade científica, diálogos entre o mundo cientí-
fico e o mundo da vida (fenomenológico). (Husserl 1954/1970;
Husserl 1954/1991)
Acreditamos que os mecanismos detalhados dessa
supressão possam ser bem explicados pelas teorias ator-rede,
embora temamos não termos ainda desenvolvido estas teorias
(ou abordagens) tão robustamente quanto necessário para abrir
construir / mostrar as controvérsias que julgamos importantes.
Não pretendemos aqui fazer apresentações exaustivas,
o que seria impossível, mas temos, sim, o objetivo de aguçar
a curiosidade de vocês, como professores e pesquisadores do
campo CTS, para esses dois casos. Um tanto intuitivamente
estamos convencidos de que a melhor compreensão dos casos
da fusão a frio e da multimistura auxiliará a criação e o fortale-
cimento de novos atores e redes para contrabalançar interesses
mesquinhos ou excessivamente minoritários.
48 Este texto resultou do aglomerado “Política e limites das verdades cientí-ficas - os casos das LENR (Reações Nucleares de Baixa Energia) e da MULTI-MISTURA (complemento alimentar)” apresentado em 10 minutos (5 minutos para cada caso) no evento “Ator-Rede e além... no Brasil”.
216
A “fusão a frio”: de Fleischmann e Pons a Focardi e Rossi
Gregory J. Chaitin
(Traduzido por Virginia M. F. Gonçalves Chaitin)
Em 1989 dois eletroquímicos na Universidade de Utah,
Martin Fleischmann e Stanley Pons, anunciaram que haviam
descoberto uma surpreendente nova fonte de energia, uma
reação nuclear simples realizável num tubo de ensaio que
produz uma imensa quantidade de calor a partir de uma reação
eletroquímica envolvendo paládio e deutério (hidrogênio pesa-
do). Eles acreditavam que a saturação do reticulado de paládio
por deutério provocava a fusão de alguns átomos de deutério
em hélio liberando calor. Fleischmann e Pons foram amplamen-
te ridicularizados e em semanas renunciaram a seus cargos
universitários e deixaram os Estados Unidos para nunca mais
voltar. A reação que eles denominaram “fusão a frio” imediata-
mente se converteu num clássico exemplo de pseudo-ciência.
Isto se deveu em parte porque a Universidade de Utah
está situada no centro da comunidade religiosa mórmon, não
sendo considerada uma universidade de ponta nos EEUU; em
parte porque o prestígio profissional dos físicos nucleares – que
em sua maioria não conseguia reproduzir o experimento – é
muito maior que o dos eletroquímicos; em parte devido à forca
do lobby para a pesquisa e desenvolvimento de reatores de fusão
nuclear “tokamak”, o que até o presente não chegou a produ-
zir resultados significativos na prática porém vem sustentando
centenas de cientistas e engenheiros por décadas ao custo de
literalmente bilhões de dólares americanos; e, finalmente, devi-
do à imensa força política do lobby da indústria petrolífera.
Para o público geral, este parecia ser o final da estória.
Porém, Martin Fleischmann era um dos mais destacados eletro-
químicos de sua época então, discretamente, sem atrair atenção
217
e quase sem apoio, pequenos grupos de cientistas ao redor do
mundo conseguiram reproduzir o experimento e continuaram
trabalhando com o objetivo de compreender este novo tipo de
reação nuclear. Tinha que ser uma reação nuclear porque a
quantidade de calor desprendida era imensa, claramente incom-
patível com reações químicas convencionais.
Em particular, na Itália, uma série de pesquisadores
dentre os quais se destacam Piantelli, Focardi e Rossi, produziu
outra reação anômala com desprendimento de calor em escala
ainda mais elevada, utilizando níquel e hidrogênio leve ao invés
de paládio e deutério (hidrogênio pesado). Empregado desta
maneira, um único barril de níquel, substância abundante e de
baixo custo, contém tanta energia quanto um super-petrolei-
ro totalmente carregado. Afortunadamente, este processo não
gera sub-produtos radioativos. Além disso, para esta reação de
níquel com hidrogênio, não mais se emprega a expressão “fusão
a frio”. Agora se fala de LENR = reações nucleares de baixa ener-
gia (em oposição à fusão em plasma a altas temperaturas como
ocorre no sol e nos reatores do
tipo “tokamak”) ou, então, se
fala de um novo campo da físi-
ca denominado CMNS = ciência
nuclear de matéria condensada.
A física de matéria condensada é
um termo mais geral para o que
se denominava física de estado
solido.
Atualmente, ao invés de
tratar de convencer a comunida-
de científica, diversas pequenas
empresas novas estão fazendo
demonstrações de protótipos de
unidades industriais desenvol-
218
vidos para geração de calor empregando níquel e hidrogênio.
As duas lideranças nesse esforço empresarial são a Leonardo
Corporation de Rossi nos EEUU (http://ecat.com) e a Defkalion
Green Technologies no Canadá (http://defkalion-energy.com).
É possível que desta vez essa maravilhosa tecnologia
nova não seja suprimida. Se assim for, a humanidade estará em
breve ingressando numa nova era, a era do “fogo novo”.
219
O programa alimentar MultimisturaIvan da Costa Marques 49
Trago a história da multimistura para ilustrar a dificul-
dade de diálogo entre as ciências e outros tipos de conhecimento,
entre o mundo cientificizado e o mundo-da-vida fenomenológi-
co. Vou argumentar que o caso da multimistura aponta uma
possibilidade mais dialógica para as relações entre o saber cien-
tífico e outros tipos de saberes.
A multimistura é um complemento alimentar usado na
alimentação de milhares de crianças pobres no Brasil. Pode-
se situar sua origem na década de 1970, no tratamento que a
pediatra Clara Brandão dispensou a crianças em situação de
extrema penúria em creches no interior do Pará. Ela lançou mão
de ingredientes localmente disponíveis que em outras situações
não são consumidos, são de muito baixo valor ou são mesmo
descartados, tais como a casca da abóbora, a palha do arroz, e
folhas escuras. Com eles, triturando-os, ela compôs uma mistu-
ra que em pó ela adicionava ao que mais poderia arranjar para
dar de comer às crianças. Não foi totalmente sem surpresa que
ela verificou que as crianças deixavam de apresentar os sinto-
mas agudos de suas condições de extrema penúria alimentar.
A partir daí Clara Brandão tornou-se uma ativista na difusão
da multimistura – como veio a ser chamada em diversas regi-
ões – como um recurso no tratamento da subnutrição infantil
no Brasil. Ao longo da década de 1980 a multimistura atingiu a
escala de milhões de crianças, após um relatório favorável feito
pela UNESCO e sua adoção pela Pastoral da Criança, vincula-
da à CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. No
começo da década de 1990 Clara Brandão havia se transferido
49 Ivan da Costa Marques agradece a Lucimeri Ricas Dias o compartilha-mento do material obtido em trabalho de campo realizado para esta pesquisa.
220
para Brasília e buscava configurar a possibilidade da multimis-
tura ser adotada na merenda escolar. No entanto, foi também
nessa ocasião que nutricionistas – cientistas estabelecidos em
universidades brasileiras – colocaram amostras da multimis-
tura em equipamentos de análise e medição de seus compo-
nentes, concluindo que a multimistura não contém nutrientes
em qualidade e quantidade para provocar os efeitos relatados e
apregoados. Não havendo controvérsias significativas entre os
nutricionistas sobre estes resultados laboratoriais, “a multimis-
tura não alimenta” passou a ser um fato científico.
A partir daí a expansão do uso da mistura encontrou
dificuldades. A receptividade do Governo Brasileiro esvane-
ceu-se e mesmo a CNBB deixou de apoiar oficialmente a multi-
mistura. O Conselho Federal de Nutrição publicou um folheto
atacando a multimistura, colocando em cena um mundo radi-
calmente dividido entre fato X ficção, conhecimento X ignorân-
cia, verdade X fraude.
Mostramos que os estudiosos do campo CTS (Estudos
Sociais das Ciências e das Tecnologias) colocam, ou pelo menos
221
podem colocar em cena um segundo mundo, um mundo mais
relacional e mais dialógico, um mundo que nega a neutralidade
dos cientistas e exige que o acerto e o erro, “conhecimento” e
a “ignorância” sejam explicados nos mesmos termos. Mas as
correntes mais influentes dos Estudos CTS colocam um limi-
te para a problematização dos fatos científicos. “Quando todos
os cientistas estão de acordo”, diz essa corrente mais influente
estre os Estudos CTS, “o estudioso do campo CTS não tem mais
do que discordar. Ela/e não deve ser mais relativista do que os
próprios cientistas”.
Mas os ativistas, mães, pais, parentes, amigos das
crianças e demais voluntários colocam um cena um terceiro
mundo. Sem dispor da escolaridade que lhes abririam as portas
para engajarem-se em discussões teóricas com os outros dois
mundos, essas pessoas colocam em cena a possibilidade de
diálogo com o mundo científico, ao agirem considerando que
qualquer fato científico tem como sustentação um conjunto fini-
to de inscrições, e o mundo da vida acontece em um leque infini-
to de possibilidades. Essas pessoas intuem, para fins práticos,
que o “teste de realidade” das ciências não teste a realidade
mas sim noções preconcebidas da realidade. Ver (Marques and
Dias 2008), (Marques 2009), (Marques 2011), (Marques 2012;
Marques 2012).
Comentário finalApesar de sabermos que ainda há muito trabalho a ser
feito até que novas relações entre política e ciência sejam esta-
belecidas, sentimos que os Estudos CTS (ciências-tecnologias-
sociedades) podem dar uma grande e necessária contribuição à
compreensão de como funciona o desenvolvimento e a divulga-
ção da ciência, bem como o acesso à tecnologia resultante.
Uma vez colocados no campo dos Estudos CTS, em certo
sentido os dois casos acima apresentam relações inversas no
222
emaranhado política-ciência. No caso das reações nucleares de
baixa energia temos uma promessa científica que enfrenta difi-
culdades políticas no mundo da vida. Já a multimistura é uma
promessa que ganhou escala no mundo da vida mas enfrenta
dificuldades políticas no mundo científico.
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alimentar multimistura e limites do relativismo. 11º Seminário
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Federal Fluminense, SBHC.
224
POLÍTICAS DE PESQUISA E PRODUÇÃO DE TESTEMUNHOS
A radicalização do princípio de simetria nas ciências humanas: novas questões políticas
Arthur Arruda Leal Ferreira
Os Estudos em Ciência Tecnologia e Sociedade (CTS),
surgidos na virada para os anos 1970 puderam dar conta de
uma ampla gama de temas (estudos de laboratório, constitui-
ção de dispositivos técnicos, dentre outros), por meio de diver-
sas abordagens (programa forte, teoria ator-rede, abordagens
pós-fenomenológicas, teoria crítica, etc.) e envolvendo diversas
áreas academicamente constituídas. As facilidades e dificulda-
des na constituição destes campos de pesquisa são antes de
tudo produtos de contingências locais.
Mesmo que não haja uma regra estrita, talvez algumas
áreas ofereçam campos de estudo mais difíceis ao pesquisador
CTS, como os que envolvem a presença de testemunhos huma-
nos (ou predominantemente humano), especialmente quando
estes humanos (ou quase humanos) estão envolvidos em proces-
sos de produção e delimitação de saberes sobre humanos.
Nossa abordagem parte da Teoria Ator-Rede (TAR) de
autores como Bruno Latour e John Law e da Epistemologia Polí-
tica de Isabelle Stengers e Vinciane Despret. A marca comum
destas duas abordagens estaria na ampliação do princípio de
simetria entre verdade e erro proposto por David Bloor (da Esco-
la de Edimburgo), como marca de um programa forte em Socio-
logia da Ciência em que não há qualquer concessão de privilégio
à ciência estabelecida e reconhecida (conferir Latour, 1997a).
Pois entre estas duas abordagens, a ampliação deste princípio
de simetria se dá justamente na superação de qualquer duali-
dade entre modernos e pré-modernos (na posse da verdadeira
225
ciência) e entre entes humanos (ou sociais) ou naturais (evitan-
do qualquer reducionismo prévio). É por meio deste princípio
de simetria e da busca de sua radicalização que buscaremos
apontar para problemas específicos que envolvem as redes de
investigação com atores mais humanos (demasiado humanos
em seu complexo sócio-técnico).
Para tal, é necessário apresentar o que é conhecimen-
to para estas perspectivas. Aqui o conhecimento científico se
daria sempre como articulação e co-afetação entre entidades
(humanas e não humanas), na produção inesperada de efeitos
objetivantes e subjetivantes, e não neste salto representacional
dado na identidade entre uma sentença ou hipótese prévia e um
estado de coisas previamente demarcado. Enquanto articula-
ção, o conhecimento científico não se distinguiria mais entre má
e boa representação de um estado de coisas, mas entre modos
de articulação forte ou fraca na produção de diversas entida-
des e saberes delimitados. No primeiro caso, temos uma situa-
ção em que a articulação conduz entidades estabilizadas. Mais
especificamente a Epistemologia Política vincula esta força dos
modos de articulação ao poder de risco em que os testemunhos
das entidades é produzido. Assim, se o testemunho é extorquido
ou condicionado a uma resposta pontual, temos uma relação de
“docilidade”. Por outro lado, teríamos uma articulação na qual
o testemunho iria além da mera resposta, abrindo-se ao risco
de invalidação das questões e proposições do pesquisador e a
colocação de novas questões pelos seres pesquisados. Aqui terí-
amos uma relação de recalcitrância.
Ao contrário do que supõe certos pensadores como
Herbert Marcuse (1978), para o qual a possibilidade de negação
ou resistência seria marca dos seres humanos, estes autores
vão opor a recalcitrância dos seres não-humanos à docilidade e
obediência à autoridade científica dos seres humanos:
Contrário aos não-humanos, humanos tem
226
uma grande tendência, quando colocados em
presença de uma autoridade científica, a aban-
donar qualquer recalcitrância e se compor-
tar como objetos obedientes oferecendo aos
investigadores apenas declarações redundan-
tes, confortando então estes investigadores na
crença de que eles produzem fatos ‘científicos’
robustos e imitam a grande solidez das ciên-
cias naturais (Latour, 2004, p. 217).
Para Latour (1997b, p.301), as ciências humanas só se
tornariam realmente ciências não se imitassem a objetividade
das ciências naturais, mas sua possibilidade de recalcitrância.
Como esta questão se propõe em nossas pesquisas e discus-
sões quanto aos nossos saberes humanos (quase ou demasiado
humanos)? Como podemos tomar de modo radical o princípio
de simetria em novos modos mais isonômicos na produção de
testemunhos, na relação entre saberes (ou destes com a arte) e
nos meandros da agência entre entidades mais e menos huma-
nas? São estes os temas de nossos breves escritos.
227
A produção de subjetividades em uma divisão de psicologia aplicada: políticas na produção de testemunhos
Arthur Arruda Leal Ferreira
Natalia Barbosa Pereira
Bruno Foureaux
Karoline Ruthes Sodré
Marcus Vinicius Barbosa Verly Miguel
O tema da docilidade e da recalcitrância é crucial nesta
pesquisa. O objetivo desta é a descrição das redes sócio-técni-
cas presentes em um local específico, a Divisão de Psicolo-
gia Aplicada (DPA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Diferente de outros dispositivos psicológicos clínicos,
a DPA oferece serviços terapêuticos à comunidade extra-uni-
versitária como parte de formação de alunos seus em estágio
curricular. Neste sentido, abarca as principais orientações
terapêuticas presentes nos programas do curso de psicologia
da universidade e outras desenvolvidas por seus técnicos. De
modo mais específico desejamos estudar como estas práticas
clínicas são performadas, como elas se articulam entre si (ou
não), que controvérsias surgem de seus modos de atuação e
que mundos e modos de subjetivação são aí produzidos entre
pacientes, estagiários, coordenadores, setting clínicos e grades
curriculares.
De início, tentaremos demarcar algumas questões do
campo clínico a partir do que nos aponta a Epistemologia Polí-
tica de Vinciane Despret. Esta autora (2004, p. 97) estabelece
que a possibilidade da recalcitrância nos testemunhos psico-
lógicos em pesquisas, bastante rara, se torna mais difícil ao
lado dos dispositivos que trabalham com participantes coloca-
dos na posição de “ingênuos”, daqueles que desconhecem o que
se encontra em questão. Sujeitos sem a excelência da expertise
não trazem risco de tomar posição nas investigações (p. 97).
228
Isto ocorre também muitos dispositivos clínicos, impermeabili-
zados pela posição de autoridade científica do pesquisador e por
certas concepções, como o de resistência, na qual cabe sempre
ao analista a possibilidade de avaliar a enunciação da verdade,
mesmo sob discordância do analisado. Neste caso, a recusa do
paciente aponta apenas para uma confirmação mais forte da
interpretação do terapeuta, não havendo possibilidade de por
em risco o dispositivo clínico.
Este mecanismo de docilização no campo clínico (devi-
do à autoridade do terapeuta) se reforça na dupla política do
segredo descrita por Despret (2011). Segundo ela, essa política
na prática clínica operaria de duas formas: a) na transformação
em segredo íntimo de tudo que se possa oferecer como gerador
de sintoma por parte do paciente; b) na intervenção do tera-
peuta de acordo com este mesmo modo sigiloso, tornando-se
o modo mesmo com que este protege sua competência profis-
sional. Despret faz ainda um exame mais detido do que este
duplo mecanismo segredante pode produzir. A autora retoma a
origem etimológica da palavra segredo, como particípio passado
(secretus) do verbo latino scenere (separar). Assim, as práticas
segredantes são de igual modo “secretantes”, e “segregantes”,
separando como construção subjetiva, o domínio privado do
público. Domínio privado onde se construiria a verdade íntima
da doença a ser tratada somente como sigilo pelos terapeutas.
Que alternativa seria possível diante da atuação destes
efeitos de docilização micropolíticos? Despret (2004, p. 102)
aponta uma possibilidade para os dispositivos psicológicos:
estes podem ser “o lugar de exploração e de criação disso que os
humanos podem ser capazes quando se os trata com a confian-
ça que buscaria a produção de novas versões nas formas em
que podemos nos produzir sujeitos por meio do protagonismo
dos pesquisados”.
229
Estudo de campo: seguindo as pistas de uma divisão de psicologia aplicada
Como aponta Law (2004, p. 10), os métodos não são
simples dispositivos seguros de representação de uma realida-
de dada, mas englobam modos políticos de produção de reali-
dades (políticas ontológicas). Neste caso, torna-se importante,
uma série de escolhas em termos de estratégias de investiga-
ção, como por exemplo, o alcance deste estudo. Nesta pesquisa,
a opção foi por uma entidade ao mesmo tempo mais extensa e
mais delimitada do que os diversos dispositivos ligados a uma
orientação específica: a Divisão de Psicologia Aplicada (DPA)
do Instituto de Psicologia da UFRJ. Mais extensa, pois envolve
um campo plural com práticas clínicas de diferentes aborda-
gens (Psicanálise; Psicologia Humanista-Existencial; Terapia
Cognitiva-comportamental, Gestalt-Terapia, e Análise Institu-
cional Francesa) sendo realizadas por estudantes de psicologia
em formação, em um serviço oferecido à comunidade, sob a
supervisão de coordenadores (professores e técnicos do referi-
do instituto). Mas por outro lado, esta seria uma entidade mais
delimitada, pois ela se circunscreve em um serviço específico e
com conexões distribuídas a agentes outros: a grade curricular
e às normativas do Instituto de Psicologia e da Universidade,
além, é claro, das tramas conduzidas por seus pacientes.
Delimitado o campo, quais seriam os seus agentes por
excelência? Basicamente esta pesquisa se faz no acompanha-
mento em campo destes diversos atores (pacientes, estagiá-
rios e coordenadores) quanto aos seus modos de articulação e
produção recíproca com os diversos serviços psi50. Tal acom-
panhamento seguiria alguns parâmetros políticos da Teoria
Ator-Rede e da Epistemologia Política:
50 Contudo, poderíamos contar com outros atores: as normativas que regem o funcionamento da DPA, a disposição de seu prédio, a sua relação com o Instituto de Psicologia
230
A) Os participantes da pesquisa foram tomados como
experts no tema, sem qualquer divisão prévia entre saber
comum e científico;
B) Enquanto experts, ou participantes ativos da pesqui-
sa, foram demandadas definições sobre suas experiências,
práticas, e expectativas quanto ao próprio tratamento, numa
posição em que suas abordagens possam redefinir o próprio
sentido da investigação, definindo uma pesquisa com e não
sobre seus atores.
Contudo, como a busca de simetria e recalcitrância pode
se produzir em um campo marcado pelas práticas segredantes
(Despret 2011)? Na impossibilidade de poder se acompanhar
as atividades terapêuticas, a abordagem, por excelência, tem
sido feita por meio de entrevistas abertas. Todavia, há o uso de
um caderno de notas para as observações de campo. Este tem
como função propiciar o acesso ao próprio processo em que os
relatos dos diversos atores envolvidos na pesquisa são forneci-
dos, tal como aponta o método etnográfico (Caiafa, 2007). Esta
estratégia tem servido como fonte de reflexão sobre a manei-
ra como nos articulamos com os entrevistados, abarcando a
própria processualidade do encontro, no esforço de sustentar
uma articulação marcada pela simetria e pela recalcitrância.
Quanto às entrevistas, elas foram elaboradas a partir
de um conjunto de roteiros prévios, visando mapear as práti-
cas e as experiências às diversas práticas clínicas. Para evitar
que as questões ganhassem uma conotação assimétrica e doci-
lizantes de testagem de conhecimento, tentamos encaminha-
-las buscando a descrição de processos simples, contornando
a produção de abstrações e de respostas canônicas. Latour
(1997a, p. 28) definiu este problema como produção de uma
metalinguagem, em que os participantes apenas forneceriam
versões legitimadas de suas práticas.
Apesar de estar sendo entrevistados os estagiários
231
responsáveis pelos casos e pelas triagens, nosso interesse está
justamente na abordagem aos pacientes em início de terapia.
Para tal, apresentamos a primeira e a última questão do nosso
roteiro.
a) Vamos supor que você estivesse no nosso lugar de
pesquisar sobre a presença da Psicologia na vida das pesso-
as, tendo como base esse trajeto que vocês percorrem aqui na
DPA, o que você acharia interessante perguntar? Como você
conduziria a pesquisa? Como você responderia a essa questão?
Você teria algum palpite sobre os resultados dessa pesquisa?
b) Partindo da reflexão que nós fizemos até aqui, como
você responderia à pergunta “o que é a psicologia”?
Entre a docilidade e a recalcitrânciaA questão da docilidade e da recalcitrância, como uma
questão referente aos modos de articulação e de produção de
subjetividades, foi fonte constante de reflexões ao longo de nosso
trabalho. No caso de nossa pesquisa, mais do que classificar
as práticas de uma determinada orientação como extorsivas
ou favorecedoras da recalcitrância, observamos uma série de
pistas nos usos que os pacientes faziam das diversas terapias
que apontavam ora para uma maior docilidade ora para uma
maior recalcitrância nos seus modos de articulação e co-produ-
ção. A docilidade se revelava frequentemente na fé no suposto
saber dos terapeutas ou da psicologia. Mas ao mesmo tempo
esta fé vinha junto a uma série de posturas de problematiza-
ção de si e das instâncias de vida coletiva (preconceitos, este-
reótipos e mensagens subliminares). Conduzindo a exercícios
muito peculiares de questionamento cotidiano e de apropriação
de técnicas de si (como a constituição de diários). Entendemos
este modo de apropriação das técnicas psi como técnicas de si
(conferir Foucault, 1984), um modo de subjetivação com tempe-
ro recalcitrante.
232
Contudo, mais do que a dificuldade de classificar as
práticas clínicas em docilizantes ou abertas para recalcitrân-
cia (registrando uma mescla destes modos de articulação), nós
tentamos mais utilizar estes conceitos para avaliar a abertura
que nós, como pesquisadores, pudemos propiciar para acolher
(ou não) discursos recalcitrantes, atuando em certos modos
de produção de subjetividades. Foi, portanto, ao nos deparar
com ocorrências de discursos padronizados, que indicavam
certa docilidade em relação às nossas questões, que pudemos
enxergar alguns constrangimentos bem peculiares do campo
em questão. Estes, além de nos ajudarem a reformular nossas
próprias questões, apontaram para discussões importantes
tanto da relação dos participantes com o nosso tema quanto
das nossas próprias implicações na pesquisa.
Percebemos, por exemplo, que ao colocar por último em
nosso roteiro a questão que nos é sugerida por Despret (em
comunicação pessoal), de perguntar quais questões o sujeito
acharia importantes de fazer se estivesse em nosso lugar de
pesquisador, quase nunca gerávamos respostas interessan-
tes. Depois de ter respondido a todo um roteiro com as nossas
perguntas ficava mais difícil para o entrevistado colocar ques-
tões próprias. A solução que vimos para isso foi colocar esta
questão em primeiro lugar, dando assim maior importância a
este momento de co-expertise dos entrevistados. Além disso,
para garantir que este lugar simétrico de expertise fosse ofere-
cido, com reais possibilidades de ser produzido, percebemos a
importância de explicar mais detidamente e em termos os mais
claros quanto possível, a trajetória e os objetivos da pesquisa.
Outra intervenção que gerava uma atitude dócil nos entrevista-
dos eram as questões a respeito de “o que é a psicologia?” que
ganhavam conotação de testagem de conhecimentos e geravam,
muitas vezes, respostas padronizadas. Colocamos, então, estas
perguntas no fim do roteiro com um acréscimo: o de que estas
233
questões deveriam ser respondidas com base nas reflexões que
foram geradas ao longo de nosso encontro, sem se remeter a
uma resposta “certa”.
Ainda neste movimento, perguntas que continham
termos como “ato, gesto, intervenção” foram igualmente modifi-
cadas para se tornarem mais simples e se referirem de maneira
mais direta à experiência dos entrevistados. Pensamos que por
nosso grupo de pesquisa estar imerso no universo e no voca-
bulário psi provavelmente deixamos passar, sem nos darmos
conta, termos que eram demasiadamente psicologizados e isso
produzia um duplo problema. Por um lado tais termos faziam
referência a algo que pessoas externas a nossa área (os pacien-
tes) poderiam não compreender. Por outro lado isto conduz ao
risco de metalinguagem no diálogo com os estagiários e futu-
ramente com os coordenadores. A naturalização dos termos
consagrados em uma determinada área pode quebrar o princí-
pio de simetria e barrar descrições menos canônicas do campo,
gerando modos de produção de realidades psicológicas de modo
mais extorsivo.
São estes apenas alguns dos pequenos cuidados que
devemos nos ater no arriscado caminho da pesquisa-com (e
não sobre os atores) na busca de modos de testemunhos mais
recalcitrantes, ampliando nossas versões sobre modos de
psicologização.
234
Da extorsão de testemunhos aos mal entendidos promissores: redesenhando as fronteiras entre pesquisador e pesquisado
Marcia Moraes
A cena:Nos primeiros encontros com o campo da deficiência
visual, um mal entendido mudou o rumo da pesquisa. A um
jovem cego congênito, com idade em torno de 18 anos, a pesqui-
sadora-ansiosa-por-respostas, perguntava: cego sonha? Sim,
dizia jovem, sonho. Sonho com o metrô, estou no metrô, sei
quando ele chega. E a pesquisadora-ansiosa-por-resposta: mas
sonha como? o que está no sonho? E o jovem: o metrô, as esca-
das, eu desço as escadas, espero o metrô...
Fazer falar?Discutindo a produção de conhecimento na ciência,
Stengers (1990) escolhe a palavra testemunha no lugar de obje-
to do conhecimento. Diz a autora:
Empregarei o termo ‘testemunha’, pois contra-
riamente ao termo objeto, não há diferença
entre as ciências que tratam de seres falantes,
ou as que tratam de seres que não falam. A
ciência faz falar sujeitos. O essencial aqui será
o ‘fazer falar’: os objetos e sujeitos devem dar
testemunho da legitimidade da maneira pela
qual os fazem falar. As controvérsias científi-
cas têm como problema a legitimidade desses
testemunhos (controvérsias experimentais)
e o seu alcance (controvérsias teóricas ou
conceituais). (Stengers, 1990, p. 84).
De que modo fazemos falar? Quais são os dispositivos
235
que utilizamos para fazer falar? Nas ciências experimentais -
e Galileu neste sentido é um caso exemplar - o fazer falar é
sempre uma questão de controle e de purificação. “Um bom fato
experimental só aceita falar uma língua” (Stengers, 1990, p. 85).
Controlar e purificar implica retirar do fato tudo o que obscure-
ce o sentido do testemunho, tudo o que produz opacidade. Da
precisão destas estratégias de controle e purificação resulta a
distinção entre um fato e um artefato, isto é, um testemunho
extorquido.
Se podemos dizer que ele [o cientista] confundiu um fato
com um artefato, podemos dizer que ele extorquiu um testemu-
nho. Ao invés de fazer falar, no sentido de purificar, de controlar
de tal maneira que o testemunho se livre de seus parasitas,
ele impôs uma relação de força unilateral. (Stengers, 1990, p.
85-86).
Em nosso trabalho de pesquisa não nos movíamos no
referencial da pesquisa experimental. Ao contrário, situávamos
nosso trabalho na esteira das pesquisas participantes, herdeira
das importantes contribuições de Kurt Lewin para a psicologia.
No entanto, flagramos em nossa prática, em nosso cotidiano de
pesquisa, marcas e tradições de um fazer ciência do qual preten-
díamos nos afastar. Dizíamos que estávamos fazendo pesquisa
de campo - entendendo que o campo estava lá, no IBC, enquan-
to nós pesquisadores estávamos na academia, nos congressos,
falando em nome dos sujeitos investigados. Coletávamos dados,
como se os dados estivessem no campo esperando para ser reco-
lhidos e organizados num quadro de referência feito, pensado e
elaborado por nós, pesquisadores. Assim, embora estivéssemos
encharcados de leituras que passavam ao largo da modernida-
de, nossa prática era moderna.
A cena:Ao entrevistar o jovem cego a pesquisadora-ansiosa-
236
-por-resposta tinha uma hipótese: os cegos não têm imagens
visuais, logo eles não devem sonhar. As perguntas ao jovem
eram incisivas porque estavam orientadas por este hipótese.
Rumos: mudar de direção no encontro com o outroNesse cenário de pesquisa, a recalcitrância se fez presen-
te, isto é, o jovem resistia e não nos oferecia a resposta esperada,
ao contrário, ele dizia “eu sonho como todo mundo sonha, ué!”.
Ao mesmo tempo, esta recalcitrância produzia deslocamentos
em nosso modo de pesquisar. O que fazer com a recalcitrância?
Tomar como variável estranha? Classificar como margem de
erro da pesquisa? Estávamos nos dando conta de que extorquí-
amos um testemunho, queríamos transformá-lo num fato. Esse
mal entendido foi um ponto decisivo, um ponto de bifurcação
em nosso trabalho de pesquisa. Foi para nós um mal entendido
promissor, isto é, um mal entendido: “que produz novas versões
disto que o outro pode fazer existir... O mal entendido promis-
sor, em outros termos, é uma proposição que, da maneira pela
qual ela se propõe, cria a ocasião para uma nova versão possível
do acontecimento” (Despret, 1999, p. 328-330).
Desse modo, o sujeito interrogado não é mais um simples
objeto de investigação, ele é quem fornece ao pesquisador as
suas questões. Perguntar se o cego sonha, como ele sonha, se
ele tem ou não imagens visuais era uma questão para nós, mas
não para o jovem. O mal entendido é promissor quando coloca
em risco a nossa observação, os nossos modos de interrogar o
outro. Estávamos, portanto, na iminência de transformar tanto
os nossos modos de conhecer, quanto as versões sobre o que
é a cegueira, o que é intervir num grupo de jovens deficientes
visuais.
Despret (2004b) nos fazia lembrar o que define a singu-
laridade (e os riscos) da experiência de interrogar os vivos: a
interrogação é uma situação de partilha onde jamais é anódino
237
o engajamento daqueles que dela participam.
Dito de outro modo, aqueles que observamos também
nos observam e isso não é de modo algum sem importância. A
observação implica riscos, implica, conforme Despret (2004b)
um processo de afetação recíproco que algumas versões da
história da psicologia experimental quiseram esquecer. Atuali-
zamos esta versão de psicologia quando extorquimos o testemu-
nho do jovem cego.
No entanto, a partir daquele mal entendido retificamos
nossos modos de agir e de intervir naquele grupo. A recalci-
trância do jovem fez com que nos déssemos conta de que talvez
não estivéssemos fazendo as boas perguntas, isto é, aquelas
perguntas nas quais aquele jovem - e o grupo - podia se arti-
cular. Nas palavras de Despret (2004b) “uma das formas de
resistir a um aparato é levar o experimentador a transformar
suas questões em novas questões de tal modo que elas sejam
as questões apropriadas de se fazer para aquele individuo em
particular” (p. 124). Desse modo, o dispositivo de conhecimento
é um processo simétrico de transformação recíproca, do pesqui-
sador e do pesquisado. O conhecer é, neste sentido, um proces-
so de afetação recíproca. Conhecer é interessar - estar entre,
fazer link (Despret, 2004b) Era uma outra versão de pesquisa
que se tornava presente em nosso trabalho. Uma outra versão
do que é produzir conhecimento.
Redesenhar fronteiras Em um de seus textos, Haraway (1995) afirma que a
objetividade é um projeto de fronteiras e não a afirmação de
alguma coisa já dada, em si, no mundo lá fora. Pois que nos
parece que fazer pesquisa com dispositivos que possam acolher
e fomentar a recalcitrância é um dos modos - talvez não o único
- de redesenhar as fronteiras entre pesquisador e pesquisado,
entre o que conta ou não no mundo em que vivemos. É interes-
238
sante notar que o termo fronteira, etimologicamente, não tem
o mesmo sentido que o de limite. Enquanto este último guarda
um sentido de separação ou fim de um território, o primeiro
afirma o que está à frente, no front, como espaço de negociação,
de embates e de luta. A fronteira é porosa, há que se negociar o
que por ela passará, o que dela ficará de fora. É aí neste jogo -
ao mesmo tempo político e epistemológico - que se trava o senti-
do da recalcitrância nos dispositivos de pesquisa.
A interpelação que nos faz o jovem - “claro que sonho,
ué!!” - coloca em risco nosso modo de interrogar e abre a possi-
bilidade de que o mundo seja povoado com outros sonhos: os
sonhos com o vento do metrô que se aproxima, com o barulho
da estação, o calor do subsolo que se toca a pele lentamen-
te, mais intenso a cada degrau da escada que se desce, com o
vruuuummmm que anuncia a chegada do trem e faz a casa e o
jantar ficarem mais próximos.
É desta objetividade que fala Haraway. Foi o que apren-
demos com o jovem cego.
239
Duas vezes recalcitrância: uma situação de campo Alexandra Tsallis
Era nosso primeiro encontro com as pessoas que seriam
atendidas no Dispositivo Clínico-institucional (DCI) que aconte-
ce no Instituo Benjamin Constant, centro de referencia nacional
para pessoas com cegueira e baixa-visão, estávamos sentados
em roda e já havíamos nos apresentado. Inicialmente, eu, como
coordenadora do projeto, expliquei que o DCI se tratava de uma
pesquisa-intervenção, cujo objetivo era implementar e investigar
um atendimento psicológico de grupo. Tudo isso era dito com
muitas palavras e acompanhado de explicações secundárias
que assegurassem o entendimento do que estava acontecendo
naquela situação. Falei sobre o formato da equipe, o tempo de
duração dos encontros, bem como do atendimento, as ques-
tões que poderiam ser trabalhadas ali, a existência de anota-
ções escritas dos encontros, o tratamento sigiloso que seria
dispensado ao material seguindo o código de ética do psicólogo.
Tudo que cercava o projeto de modo a colocar em ação a opção
metodológico-política de pesquisar COM aquelas pessoas e não
SOBRE elas (Kastrup e Moraes, 2010)
Muitas coisas já haviam sido ditas e era a hora de falar
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE): “O TCLE
é um documento que precisa ser lido e assinado por vocês, caso
julguem que gostariam de participar da pesquisa. Essa pesquisa
foi aprovada no Comitê de Ética da Escola Ana Nery da UFRJ. Eles
exigem que as pessoas que participam da pesquisa assinem esse
documento. Fiquem a vontade para leva-lo para casa e decidirem
sobre a aceitação. A participação ou não de vocês em nada preju-
dicará o atendimento psicológico que está sendo oferecido. Além
disso, vocês podem retirar sua concordância a qualquer tempo, sem
prejuízo algum. Isso não implica na perda do atendimento. Enfim...
vou ler para todos o documento...” Procedi a leitura do TCLE.
240
Posteriormente entendi que esse preâmbulo era uma
forma de dizer que estava ali cumprindo uma exigência do Comi-
tê de Ética, mas que considerava que aquele documento não
teria nenhuma informação nova em relação a conversa inicial
que tínhamos tido. Embora não estivesse explícito, tratava-se
de uma pesquisadora cumprindo uma formalidade exigida. Ali
estavam colocadas implicitamente todas as questões críticas
que, desde meu lugar de pesquisadora, entendia que compu-
nham o coletivo articulado ao TCLE, qual seja: comitês de ética,
exigências de revistas, formatação das pesquisas segundo um
modelo específico, Plataforma Brasil, professores, pessoas da
comunidade em geral, políticas universitárias, resolução 196.
Nada disso foi falado no dispositivo, contudo agora esses actan-
tes faziam o prenuncio do TCLE naquela conversa.
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
“O atendimento será realizado em grupo de pesso-
as atendidas no Instituto Benjamin Constant. Os encontros
acontecerão uma vez por semana, com duração aproximada de
uma hora e meia, no próprio Instituto Benjamin Constant.[...]
A equipe de atendimento será composta por quatro ou cinco
estagiários supervisionados pela Professora Doutora Alexandra
Cleopatre Tsallis (CRP 05/23496), sendo que três ou quatro
terão como função participar ativamente do encontro, enquanto
um (sistema de rodízio, a cada semana um diferente) observará
o encontro com o objetivo de produzir material escrito que será
utilizado na pesquisa
Os participantes poderão trazer para o grupo questões
de sua vida que julgarem pertinentes ao atendimento psicoló-
gico em grupo. Elas serão tratadas segundo o Código de Ética
do Psicólogo, que garante absoluto sigilo sobre todos os dados.
Além disso, todas as informações que redundarem em artigos
científicos serão tratadas com sigilo quanto ao nome do partici-
241
pante e serão analisadas em conjunto.
Está garantido seu anonimato e também o acesso aos
resultados da pesquisa, que será realizado através de uma
reunião de devolução, ao final da pesquisa. Os resultados serão
apresentados em congressos científicos e publicados em revis-
tas especializadas. Não haverá pagamento ou qualquer tipo de
compensação financeira por sua participação na pesquisa. “[...]
Concordo voluntariamente em participar deste estudo e pode-
rei retirar o meu consentimento a qualquer momento, antes ou
durante o mesmo, sem penalidades, prejuízo ou perda de qual-
quer benefício que eu possa ter adquirido, ou para meu atendi-
mento no grupo”.
Ao término da leitura, do TCLE uma das participantes
do dispositivo toma a palavra e diz: “Gente isso é muito legal,
adorei esse documento. Ele é muito interessante. Estamos em
uma pesquisa. É para valer. Temos que aproveitar esse momen-
to.” Como assim, começo a me interrogar silenciosamente. Por
que ela está me falando do documento? Ela estava respondendo
a minha recalcitrância de que a formalidade não valia a pena.
O TCLE era de fato capaz de articular a pesquisa e ela toma-
va as rédeas da situação para me fazer entender isso. Ainda
que possamos pensar na materialidade ali colocada ou mesmo
na chancela dada pelo TCLE a pesquisa, o que estava em jogo
era algo distinto. Ela me convidava, assim como a toda minha
equipe, a valorizar esse documento não como uma mera buro-
cracia, mas como uma possibilidade concreta de fazer valer o
COM dessa pesquisa. Ela estava assinando um papel e mais
que isso ela estava em condição de nos explicar a importância
desse actante dentro daquele cenário. Será que se tratava de
uma reposta docilizada frente ao TCLE ou ela recalcitrava frente
a nossa recalcitrância? Creio que ela estava nos apontando a
lua, já não podíamos seguir apenas olhando o dedo.
242
Imagem, texto, professores, alunos e a escola como rede
Aline Veríssimo Monteiro
Esta pesquisa integra um projeto de pesquisa e exten-
são desenvolvido pelo grupo ITEC51 da Faculdade de Educação
da UFRJ e acontece em escolas públicas do Rio de Janeiro.
O trabalho consiste no acompanhamento do trabalho de um
professor com sua turma em sala de aula e na reflexão e expe-
rimentação das possibilidades de uso pedagógico em sala das
tecnologias digitais que suportam, transmitem e produzem
imagens e textos. As questões que mobilizam o trabalho se refe-
rem às transformações que a proliferação de circulação e produ-
ção de imagens tem produzido na sociedade contemporânea, às
possibilidades que essas imagens trazem para o trabalho esco-
lar, para a produção de conhecimento na escola e para o sentido
e as características do uso do texto na educação.
Um primeiro ponto que podemos destacar no modo
como os estudos em CTS e a Teoria ator-rede se articulam no
modo desta pesquisa acontecer na direção de uma articulação
entre agentes, de uma pesquisa com a escola, é o fato de eles
nos apresentarem a possibilidade de nos aproximarmos da
escola considerando as ideias de simetria e de rede. O princípio
de simetria no que se refere aos atores da rede e aos modos
51 O grupo ITEC – Imagem, texto e educação contemporânea faz parte do LISE – Laboratório do imaginário social e educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto de pesquisa e extensão “O trabalho com imagem e texto na educação contemporânea” envolve diferentes ações, sendo o trabalho com professores na escola uma delas. Além de Aline Monteiro, coordena o projeto a professora Angela Santi, professora de Filo-sofia da Educação da FE/UFRJ. Participaram como bolsistas da experiência aquí apresentada as alunas Carolina Nóbrega de Lima, Patricia Reis Ferreira da Silva (na época, licenciandas em Educação Artística / Artes Plásticas), Beatriz Paola Oliveira Reis (licencianda em Filosofia) e o aluno Michael Batista Lima (licenciando em Ciências Sociais). http://imagemetexto.blogspot.com.br
243
de conhecer e aos tipos de conhecimento nos fazem traba-
lhar em parceria com os professores e os alunos e não sobre
aquele professor e aquela turma ou aquela escola. Organizada
entorno de questões de interesse e não de questões a serem
respondidas de forma absoluta, a pesquisa desloca a questão
dos testemunhos do plano da representação da verdade para o
plano da articulação de interesses. Acompanhamos na escola
professores que têm interesse pela temática e que percebem no
seu cotidiano uma tensão entre a cada vez maior presença das
tecnologias e da imagem no cotidiano deles e de seus alunos e
a quase ausência e mesmo rejeição desses elementos na escola.
Somos convidados pelos professores a trabalhar com eles, de
modo que eles se apresentam já como pesquisadores interessa-
dos em produzir um conhecimento com a sua turma e conosco.
Assim, vamos junto com os professores e suas turmas enten-
dendo como esses elementos vão aparecendo e não aparecendo
na turma, que dificuldades ou oportunidades são vividas na
relação dessas turmas com esses professores nessas escolas.
E vamos construindo com eles soluções, alternativas e expe-
riências entendendo e articulando tecnologia, imagem, texto e
escola. Não tendo uma pergunta a ser respondida de modo a
comprovar ou refutar uma hipótese, não buscamos testemu-
nhos do que pensamos ou queremos, mas partimos da articu-
lação de interesses partilhados entre atores que estão diante de
desafios e realidades comuns, vividos por todos ali reunidos. O
que se vai conhecendo e descobrindo na pesquisa é produzido
na ação de todos, com as especificidades dos estudos e expe-
riências diferentes de cada um, professores e alunos, tanto da
escola, quanto da universidade. Ambos, escola e universidade
sabem e não sabem, e construímos um conhecimento no encon-
tro desses saberes e desses não saberes.
A questão da simetria dentro da Teoria Ator-Rede (TAR)
pode ser entendida associada à própria ideia de rede. Quan-
244
do Latour descreve a rede como um coletivo sócio-técnico de
humanos e não-humanos que se agenciam e são ambos actan-
tes, ele coloca ação no encontro dos atores, nas mediações e
traduções que acontecem nos agenciamentos. Todos agem, mas
agem no encontro, realizam ações que diferem de ações que
seriam suas, isoladas e individuais. Em uma conferência onde
analisava os quase trinta anos de seus trabalhos com o conceito
de rede, buscando uma definição do que seria o essencial para
podermos utilizar a noção de rede, Latour nos diz que sempre
que a ação for redistribuída podemos falar de rede52.
Esta visão do social como rede implica que, por exem-
plo, em nossa pesquisa com psicologia na escola, não buscamos
nessa escola um sujeito objetivado ou uma categoria objetiva-
da pré-definida, universalizada a ser estudada: o professor, o
alunos, a inteligência, a atenção, a aprendizagem, o desem-
penho, o desenvolvimento. Soluções e problemas não estão
definidos previamente em enfoques teóricos e categorias pré-
concebidas. Uma escolarede tem as ações distribuídas, concebi-
das nos encontros. Os alunos, os professores, as aprendizagens,
as políticas, os currículos, as indisciplinas, as salas são resul-
tantes de agenciamentos entre diversos atores, em uma rede
que ultrapassa o espaço da sala e os muros da escola. Assim,
tanto problemas, questões e tensões, quanto soluções e estraté-
gias são produzidos nesses encontros.
Neste processo, por exemplo, em uma escola vivemos a
seguinte experiência. Estávamos com uma professora de biolo-
gia que lecionava para uma turma de nono do Projeto Acelera,
na qual ela lecionava todas as disciplinas. A professora tinha a
seguinte questão: precisava de um trabalho para apresentar na
feira cultural da escola e queria permitir aos alunos produzir
52 “In its simplest but also in its deepest sense, the notion of network is of use whenever action is to be redistributed” (Latour, 2011, p.797).
245
algo significativo para sua despedida da escola. Também queria
que a turma desenvolvesse maior compromisso e concentração
nas tarefas escolares e trabalhasse melhor em grupo. A turma
queria produzir algo mais autoral e estava mobilizada com a
organização de sua formatura, buscando deixar sua marca
na escola e entender que marcas a escola deixou neles. Nesse
contexto, após estudos e conversas com a professora, sugeri-
mos e desenvolvemos com ela e a turma a produção em grupos
de filmes em stop motion. A técnica do stop motion é bastante
artesanal e simples, exigindo poucos recursos materiais, por
um lado, mas muito trabalho de arte, de criação, de concen-
tração e parceria, por outro. Assim, mobilizaríamos as compe-
tências identificadas pela professora como necessária de serem
desenvolvidas. Tendo os filmes o tema livre, os alunos pude-
ram criar livremente, e fizeram alguns filmes bem significativos
sobre a escola. Além disso, produziram dois trabalhos para a
feira cultural: exibiram os filmes da turma durante e expuse-
ram seus cenários, personagens e as fotos do making of dos
filmes. Além disso, nós do projeto fizemos um DVD editado com
todos os filmes e fotos para cada aluno, para ser entregue pela
professora na formatura como lembrança da turma e da esco-
la. A professora e os alunos aprenderam a fazer filmes em stop
motion e a utilizá-los como ferramenta pedagógica, de estudo,
de expressão e construção narrativa. Nós exploramos o poten-
cial pedagógico do stop motion e temos desenvolvido uma análi-
se conceitual rica partir do mesmo. Ouvimos da professora que
os alunos mais inquietos a surpreenderam, pois foram os mais
concentrados e que produziram os filmes mais criativos e capri-
chados. Vimos professores que tinham uma impressão algo
negativa da turma, devido as repetências, aplaudirem os filmes
feitos por esses alunos. E vimos os alunos surpresos ao saberem
que seus filmes tinham sido aplaudidos pelos professores. Arti-
cular teórica e conceitualmente essas experiências só é possível
246
a partir da e na experiência. Nem nós, nem a professora, nem
os alunos, sabíamos ou pensávamos em filmes de stop motion,
mas eles surgiram como aquilo que máquinas fotográficas digi-
tais, material escolar simples, lápis, papel, canetinha, cartolina,
cola, massinha, e software gratuito e fácil podiam produzir no
encontro com Acelera, formatura, Feira Cultural, professora,
desinteresse, desatenção, despedida, individualismo, o grupo,
a atenção, o interesse e a saudade. Os filmes foram o resultado
de tudo isso e resultou em tudo isso. Como diz Latour, os atores
são a rede e a rede são os atores, há uma completa reversibili-
dade entre eles53.
53 “It is in the complete reversibility – an actor is nothing but a network, except that a network is nothing but actors –that resides the maim originality of this theory. Here again, network is the concept that helps you redistribute and relocate action” (Latour, 2011, p. 800).
247
Da poesis na escrita de relatos e políticas de produ-ção de testemunhos: por narrativas de movimentos mínimos
Dolores Galindo
As pesquisas que realizamos no Laboratório Tecnolo-
gias, Ciências e Criação, alocado num programa de pós-gradu-
ação em estudos de cultura contemporânea, tem nos levado a
problematizar o estatuto da poesis na escrita de relatos e nas
políticas de produção de testemunhos em TAR. Anualmente,
o laboratório recebe estudantes em nível de graduação e pós-
graduação, provenientes de diferentes formações disciplinares,
para o desenvolvimento de práticas de pesquisa na interface
entre arte e ciência cujos relatos são interpelados por políticas
de veridicção, características das ciências modernas, a atuarem
como testemunhos da aplicação de métodos cujo registro possa
ser atribuído ao domínio particionado como factual, delegando-
se aos exercícios particionados como ficcionais e/ou poéticos,
no mais das vezes, um estatuto ilustrativo.
Na linha de investigação voltada à criação em arte e
ciência que desenvolvemos no nosso laboratório, destaque-
mos os experimentos em dança contemporânea que vem sendo
mobilizados para pesquisar processos de co-constiuição dos
corpos nas relações entre humanos e não humanos. Ao longo
dessas pesquisas, os chamados não humanos são caracteriza-
dos por uma ampla gama de modos de existência que variam
do animal ao técnico, bem como por misturas que assumem
modos de existência inusitados. Para os espetáculos que foram
apresentados e para os processos de criação em curso, adota-
mos o princípio de simetria generalizada que agrega a proposta
de estudar humanos e não humanos sem distinções substan-
cialistas, de maneira que as distinções entre ambos são sempre
locais e situadas em práticas de composição de movimentos.
Com a finalidade de ilustrar o que desenvolvemos nesta linha
248
de trabalho, citemos duas práticas de pesquisa realizadas no
laboratório.
A artista da dança e psicóloga Danielle Milioli, pesqui-
sadora do laboratório, vem se dedicando a criar um espetáculo
a partir da relação com cavalos com quem se propõe a conviver
num rancho dirigido à equitação. O processo de doma constitui
o cerne da pesquisa por permitir visualizar simultaneamente
práticas desiguais entre humanos e não humanos e práticas
de troca e reciprocidade entre ambos. Durante o período de
convivência nos estábulos, a artista dedica-se a conviver com os
tratadores de animais responsáveis pelo cuidado cotidiano divi-
dindo com estes atividades cotidianas (lavagem, escovação etc.),
com os profissionais conhecidos como domadores de cavalos
(pessoas que são habilitadas em técnicas de aproximação com
os animais, ajuste de passadas, preparação para receber a sela,
montaria etc.) e com os cavalos com quem se propõe a conviver
nos chamados momentos de descanso dos animais nos quais
repousam nas baias. A fim de trabalhar na dança a variação
das posições reservadas aos humanos e aos cavalos adultos na
doma para a equitação, a artista se propõe a vestir os equipa-
mentos de montaria usados nos cavalos durante a sua estadia
no local e na sala de dança. São os equipamentos usados nos
cavalos para doma – cordas, arreios e selas - os mediadores
entre as práticas acompanhadas durante a estadia no estábulo
e a sala de dança54. Para orientar o espetáculo, duas perguntas
surgem como centrais: quais cavalos interessa co-constituir na
sala de dança? Como reconfigurar a doma de maneira a desta-
car a partilha ao invés de práticas desiguais? Guiada por estas
questões, a doma na dança varia com relação à doma no Hipis-
54 O Laboratório Tecnologias, Ciências e Criação integra o projeto de implan-tação do Centro de Equoterapia da Universidade Federal de Mato Grosso por entender que as pesquisas poéticas podem subsidiar as práticas desenvol-vidas por outros profissionais neste espaço de convivência.
249
mo, devendo ser pensada como um exercício ativo de ficciona-
lização política55 que reposiciona desigualdades acionadas nos
dispositivos de domesticação dos cavalos.
Passando à criação com aparatos técnicos, citemos a
pesquisa, que derivou no espetáculo de dança contemporânea
Móvel, sendo também desenvolvida pela artista Danielle Milio-
li. O espetáculo envolveu aparatos obsoletos – cabos, placas
de computadores e fios de telefone. Neste trabalho, a artista
buscou recursos para criação nas técnicas de Contato de Impro-
visação, efetuando uma releitura destas técnicas no sentido de
estendê-la ao contato com não humanos. Na dança, o conta-
to de improvisação ocorre, em geral, com duplas de dançari-
nos humanos que exercitam a pressão do peso dos corpos,
apoios e suspensões (são, portanto, técnicas de improviso entre
humanos que podem arregimentar não humanos, porém não
como dançarinos), já no espetáculo Móvel a pesquisa deu-se
com os aparatos técnicos posicionados como dançarinos com
os quais se improvisava e se colocava em prática a com-po-
sição de corpos interessantes. A execução do trabalho requeria
ampliar a recalcitrância daqueles com quem dançava a fim de
que não se desse uma dominância da dançarina humana. Para
ampliar a recalcitrância, a artista dedicou-se a colocar o corpo
em posições com os aparatos de modo que os movimentos se
dessem no limite de ações que poderiam causar dor limitando a
55 Nos trabalhos de Donna Haraway (1989, 2004), encontramos, pelo menos, dois desenvolvimentos potentes do recuso à ficcionalização na escrita em TAR. Um primeiro que reside na mobilização da ficção como teoria política capaz de propor mundos alternativos interessantes, porém nem sempre atualizáveis (ilustração pode ser encontrada no recuso a figuras possíveis na ficção como a personagem macho/fêmea que foge à heteronorma) e um segundo, que con-siste na leitura da ciência como ficção e é empregado para mobilizar narrativas cientificas realocando-as em novos contextos não previstos (exemplo pode ser encontrado na leitura da Primatologia entremeada às narrativas de Asimov).
250
dominância da dançarina humana. É assim que, por exemplo,
no contato com dois teclados de computadores amarrados aos
pés, trabalhou-se a pressão exercida pelas teclas que limitava a
extensão possível dos passos, pois cada movimento supunha a
dor das teclas na planta dos pés e, nesta limitação, produziu-se
um pé que não existia até então. Da improvisação entre pés e
teclados emergiu um híbrido, pés-teclados, cujo modo de exis-
tência é característico da sala de dança, que talvez não exista
para além dela, mas que permite colocar em cena corpos afetá-
veis e práticas de redistribuição de agência entre os dançarinos
humanos e não humanos.
Nos relatos que escrevemos como parte dos processos de
dança-pesquisa, narramos movimentos de humanos posiciona-
dos como efeitos de relacionalidades “situadas com organismos,
ferramentas e muito mais”, de modo que este redunda numa
“bela multidão, em todas as nossas temporalidades e materiali-
dades (que não se apresentam umas às outras como containers,
mas como verbos co-constitutivos), incluindo as que falam da
história da terra e da evolução” (Gane, 2009, p. 2). Para contem-
plar esta proposta, ao longo das narrativas buscamos trazer
movimentos mínimos que poderiam ser considerados meras
legendas de práticas, ou ainda, descartáveis à descrição de um
espetáculo de dança, mas que interessam por tornarem visíveis
processos de com-posição e re-com-posição da distribuição de
agência entre humanos e não humanos, bem como os corpos
interessantes produzidos nestas práticas. Quando iniciamos os
primeiros trabalhos de pesquisa imaginávamos que o foco esta-
ria em “dançar com não humanos”, no decorrer das práticas
de dança e do estudo de outros artistas entendemos que, sim,
dançávamos com não humanos, mas que, igualmente, o que
estava colocado era também uma “o humano em dança” reposi-
cionado como uma bela multidão feita e refeita cotidianamente.
Uma ilustração de narrativa dedicada aos movimen-
251
tos mínimos pode ser encontrada na relevância que a troca de
propriedades entre uma placa mãe de computador e uma pele
humana pode adquirir. Durante a narrativa do espetáculo Móvel
já comentado anteriormente, por exemplo, levamos em conta os
arrepios que a placa mãe de computador, ainda contendo ener-
gia eletroestática nos seus capacitores, provocava na pele da
artista. As placas ao provocarem quase imperceptíveis arrepios
ativam um determinado modo de afetar-se da pele que, ao invés
de um atributo inerente ao corpo, é reposicionada como efeito
dos movimentos ontológicos da dança e da escrita. Trata-se de
um movimento mínimo – o arrepio na pele -, movimento que
não é visível para o público que assiste ao espetáculo de dança.
Movimento mínimo que ao ser mobilizado na narrativa coloca em
cena a pele-placa que passou a existir na dança. Observe-se que
as narrativas de movimentos mínimos circunscrevem modos de
montagem que se movem nos planos epistêmico, ontológico e
político, provocando reordenações nas distinções entre ficcional
e factual já que acionam modos de existência nem sempre atua-
lizáveis fora das salas de dança (Law, 2004).
Stengers (2002) nos lembra de que uma das invenções
primeiras das ciências modernas foi a de haver conjugado e
particionado a poesis radicada na paixão por fazer existir deter-
minada realidade até então inexistente e o juízo que advoga a
necessidade de que a realidade criada poeticamente seja um
testemunho de sua própria existência. Desta emergência bifur-
cada derivaria a autoria científica situada como um estranho
híbrido que mescla a poesis na paixão por fazer existir e o juízo
ao colocar em cena o ônus de provar que a realidade produzida é
capaz de prestar um testemunho fidedigno de uma realidade que,
pouco ou quase nada, guarda do movimento poético preceden-
te. Retomando essa imagem cindida do cientista-poeta-que-cria
e do cientista-juiz-que-testemunha, pode-se argumentar que os
relatos e a produção de testemunhos na dança-pesquisa em
252
TAR, conforme proposto nas narrativas de movimentos mínimos,
dão provas de existência estranhas aos regimes que orientam o
juízo factual. Levar em conta que os relatos que produzimos são
passíveis de testemunhar movimentos e modos de ser ainda não
atualizados, ou sequer atualizáveis, coloca em primeiro plano
a dimensão poética da produção cientifica que passa a respon-
der menos ao juízo factual e mais às indagações cosmopolíticas
acerca dos mundos e corpos que co-constituímos.
253
Problematizando as dicotomiasAna Cláudia Lima Monteiro
Um dos pontos relevantes para se pensar as pesquisas
produzidas com humanos diz respeito à utilização dos conceitos
trazidos por Latour para pensar a distribuição de agências em
relação à produção de nossos coletivos. Já em 1991, em Jamais
fomos modernos (Latour, 1994), o autor nos apresenta esta
problematização do que ele denomina de Constituição Moder-
na: a negação e proliferação dos híbridos e o processo de puri-
ficação, que busca estancar tais híbridos em polos distintos:
natureza ou cultura, polos estes, já determinados. Tal processo
privilegia os polos ontológicos em detrimento das misturas, das
hibridações. Neste contexto, o autor forja aquilo que seria a base
de muitos outros estudos posteriores: a argumentação de que
humanos e não-humanos, possuem agência, ou seja, ambos são
fundamentais para a constituição de nossos coletivos, povoado
de híbridos. A Constituição moderna, ao mesmo tempo em que
nega lugar a estes híbridos, os faz proliferar indefinidamente.
Porém, mesmo que esta compreensão seja fundamental
para o desenvolvimento de sua proposta e de seus argumentos,
devemos frisar que esta separação ainda se apresenta de forma
superficial, uma vez que, ao mesmo tempo em que constituímos
tal separação, os processos de hibridação não cessam de mistu-
rar estes mesmos humanos e não-humanos, como dissemos
acima. Neste sentido, podemos pensar no impasse que tal distin-
ção nos proporciona: se, por um lado, abre-se a possibilidade de
constituição de um mundo comum, no qual podemos considerar
as coisas como pertencentes e agentes de nossas escolhas, sejam
estas as mais cotidianas, ou até mesmo aquelas mais íntimas;
por outro lado podemos continuar presos na armadilha de ainda
vermos nossos mundos de maneira purificada, ao nos remeter-
mos sempre à distinção em nossos trabalhos acadêmicos.
254
No decorrer de nossas pesquisas e na possibilidade de
escrever o que ocorre nelas, utilizamos, para frisar a importân-
cia dos agenciamentos, os termos humanos e não-humanos.
Cremos que não há nenhum problema nisso, desde que esta
utilização venha acompanhada de uma prática que, no fim das
contas, não privilegia nenhum dos agentes para a composição
dos coletivos. O desafio então seria, ao mesmo tempo, saber
que os processos de purificação agem em nosso mundo, mas,
antes disso, o que ocorre são sempre negociações do que se
apresentará como humano e do que podemos distinguir como
não-humanos. Portanto, a aposta de nossas pesquisas recai
sobre a própria possibilidade do que chamamos anteriormente
de processos de objetivação e de subjetivação.
A proposta de uma “ontologia de geometria variável”
(conferir Latour, 1994), torna possível, para nós que pesqui-
samos a produção de testemunhos nas ciências humanas, um
deslocamento de nossas questões. Portanto, nossa aposta não
está pautada na distinção e esclarecimento dos efeitos que os
não-humanos produzem em nós, humanos. Deste ponto de
vista, a distinção já estaria dada, e a nós, só nos caberia o lugar
de juízes, que determinam o que importa e o que não importa
contar em nossos trabalhos “humanos”, como se os não-huma-
nos ainda contassem como acessórios. Por outro lado, afirmar o
processo de hibridação implica em arriscar este lugar de confor-
to, e também, em colocar em risco nossas próprias distinções.
Trazemos para a esta discussão, o exemplo de pesqui-
sa realizada em conjunto com a Companhia de Dança Corpo
em Cena, no processo de construção de um espetáculo sobre o
suicídio, denominado Volver. Este espetáculo foi montado por
dois coreógrafos: um advindo da dança flamenca e outro com
experiência em dança contemporânea, como a própria compa-
nhia. No processo de produção deste espetáculo, pudemos
acompanhar a constituição dos corpos destes bailarinos, que
255
não podem ser desvinculados do espaço físico, de suas roupas,
do clima de Petrópolis, da madeira, dos sapatos, dos cabelos,
do cansaço, uns dos outros, enfim, de todos os agentes que
compuseram este processo. Podemos incluir aí também as
afecções, nossos olhares, as limitações e potências dos encon-
tros múltiplos que ocorreram neste espaço-tempo. Porém, não
buscamos ampliar esta lista apenas para cumprir com o dever
de acrescentar os não-humanos em nossa pesquisa. Ao contrá-
rio, buscamos construir uma narrativa na qual não haja efeti-
vamente, privilégio entre os agentes. Assim, uma bailarina que
se articula com a dança contemporânea, não possui um corpo
que dança de sapato alto – como acontece com as bailarinas de
dança flamenca. Neste sentido, não se trata apenas de incluir o
sapato como não-humano, mas de apostar na produção de um
corpo que dança em conjunto com todas as articulações que o
fazem dançar.
A aposta que fazemos, ao considerar que quanto mais
articulações, mais adquirimos um corpo (conferir Latour, 2007),
implica num posicionamento que considera este corpo com algo
que se constrói permanentemente. Não é possível pensar o corpo
como estabilidade, mas apontar para a instabilidade necessá-
ria, até mesmo para que um corpo se mantenha. Este aparente
paradoxo é um ponto crucial para que possamos compreender
o que está em jogo em nossas pesquisas: uma compreensão
de mundo que é sempre negociável e negociada. No exemplo
citado acima, o que deve ser enfatizado é a construção de um
mundo conjunto, são as articulações sempre negociadas local-
mente que constituem a aposta e a potência deste trabalho de
pesquisa. Desta perspectiva, não é possível pensar um corpo,
que pertence a um bailarino e que, num determinado momen-
to, será articulado com um sapato, que já está ali, previamente
delimitado. Bailarino-dança-sapato (talvez sem hífen) não são
elementos distintos, com essências prévias, prontos para serem
256
ligados desta ou daquela maneira. Os agentes só podem ser
agentes porque já são conectados e não o contrário.
O conceito de quase-objeto de Michel Serres (conferir,
Serres, 2001) nos ajuda aqui, pois este quase-objeto só se apre-
senta na relação. No primeiro capítulo do livro Os Cinco Senti-
dos, intitulado Véus, o autor nos convida a percorrer a narrativa
de Cinderela tendo como fio condutor justamente a sapatinha
de veiro. Para ele, o sapato de Cinderela não poderia ser de
cristal, rígido, quebradiço, frio e transparente, que a impossibi-
litaria de dançar, mas de veiro, macio, quente e suave. O sapato
então não enrijece o pé, mas se amolda a ele, lhe dá movimento.
Esta sapatinha ocupa o lugar de quase-objeto porque ela
(...) envolve o pé na medida do pé. O pé desig-
na a unidade da medida. A unidade, bem
entendido, não deve variar, a sapatinha, que
envolve na medida exata marca a variação.
A sapatinha de veiro, parâmetro, torna-se
variável. (...) A variação exige que se pense
ao mesmo tempo o estável e o instável, não o
instável puro que não poderia ser verdadei-
ramente compreendido, mas o invariante na
variação (Serres, 2001, p. 62).
Note-se que o que varia e o que permanece invariável só
pode ser definido a partir do encontro, desta relação que ocorre
somente neste lugar. Portanto, não é nem do pé, como “sujeito”,
nem mesmo da sapatinha como “objeto” que estamos falando,
mas do processo de objetivação e de subjetivação que ocorre
deste encontro. Da mesma forma, ao dizermos que a bailari-
na se constrói junto com seu sapato não se apresenta como
forma de apresentar o sapato e a bailarina como coisas dadas.
Ao contrário, só se constrói uma bailarina de dança flamenca
porque existe a relação entre seu pé e o sapato, sem esta relação
257
não há bailarina de dança flamenca.
Nossas pesquisas em ciências humanas, portanto, ao
considerar os conceitos de humanos e não-humanos, deve
sempre ter como perspectiva a possibilidade de abrir mão
destes conceitos toda vez que for necessário pensar os proces-
sos de hibridação, de misturas. Tal proposta tem consequências
importantes para nossas pesquisas, pois, de outro modo, corre-
mos o risco de repetir a proposta de distinção a priori dos polos
ontológicos. Caímos na tentação de colocar os agentes numa
hierarquia prévia, na qual somos nós, humanos, que determina-
mos os caminhos percorridos pelos não-humanos, pois já sabe-
mos de antemão suas possibilidades. Desta forma, o conceito de
agência tem fundamental importância, pois põe em risco nossas
delimitações prévias, abrindo espaço para os agenciamentos.
258
Explorando novas convergências antropológicasGuilherme José da Silva e Sá
“A ciência é a totalidade das lendas do mundo.” Michel
Serres. “Jouvences”
Apesar de recente, a antropologia da ciência e da tecno-
logia constitui hoje um campo em franca expansão da antropo-
logia praticada no Brasil. O ônus deste sucesso é algo que tem
sido localizado com certa frequência em estudos recentes da
área: a hiper-essencialização de nosso objeto, a Ciência, e sua
sobreposição ao nosso instrumental analítico, conduzindo-nos
a um possível enrijecimento da prática antropológica.
Como resposta a esse movimento proponho uma apro-
ximação entre duas abordagens que atualmente parecem ter
sido separadas por uma distância intangível, uma antropologia
do conhecimento científico e dos conhecimentos tradicionais.
Onde termina a antropologia das formas de conhecer? Onde
se inicia a antropologia da ciência? Onde termina a antropo-
logia da ciência? Onde se inicia a antropologia das formas de
conhecer?
Tecendo sua apreciação sobre a ironia de jamais termos
sido modernos, configurada na utopia do projeto de separação
que proliferou, ao fim e ao cabo, um sem número de híbridos,
Latour (1994) lança mão de uma “antropologia simétrica”, que
pretende reparar o interesse dos antropólogos para os estudos
de chamados “sistemas centrais”: a Ciência, o legislativo, as
políticas e religiões de Estado etc. Para isso chama a atenção
dos desvios de interesse antropológico que remetem a um vício
de “ciência de periferia, onde não se ataca operadores ontoló-
gicos centrais, mas sim, reminiscências exóticas de alhures
em nosso próprio mundo.” Ora, a crítica, muito bem alicerça-
da na experiência prévia de antropólogos do hemisfério norte,
259
não parece encontrar um respaldo equivalente no trabalho feito
no Brasil, ou mesmo em outras regiões do sul global. Outras
teorias, outros mundos, outros mundos, outras teorias. Dito
de outra forma, a oposição entre centro e periferia, tal como
vista da Europa, não parece repercutir da mesma forma quando
nos posicionamos de forma autoral. Assim, Latour revela uma
percepção impressionista da própria antropologia que buscaria
em diferentes contextos preservar seu interesse por sistemas
centrais e não por objetos “periféricos” oriundos de processos de
tradução cultural assimétricos.
Ainda que concordemos com a crítica ao empreendi-
mento purificador imposto pelos modernos há que se pensar
se a forma como Latour entende a própria antropologia não se
encontra embebida no próprio veneno moderno. Mais do que
isolar sistemas, instituições ou projetos como centrais ou não,
a antropologia mostra-se interessada nas articulações que se
verificam entre elementos modernos e não modernos, racionais
e “irracionalistas”.
A fim de demonstrar sua questão, Latour evoca a céle-
bre relação entre “xamanismo” e “ciência”, instituições centrais
de ontologias distintas. Agrega ainda em outro texto (“O culto
moderno dos deuses fe(i)tiches”) um total desinteresse pelo que
chama de “paraciências”, taxando-as de perspectivas irracio-
nalistas. Embora, não se trate da mesma categoria de eventos,
os objetos de uma “antropologia periférica” e das “paraciências”
repousam em um lócus bem definido, fora dos sistemas ditos
“centrais”.
“O único exemplo de crença ingênua que possuímos,
viria, portanto, da crença ingênua dos estudiosos no fato de
que os ignorantes acreditam ingenuamente? Não completamen-
te, pois existem, de fato, ignorantes que reproduzem bastante
bem a imagem que os estudiosos gostariam que eles fizessem
de si próprios. O fotógrafos de discos voadores, os arqueólogos
260
de cidades espaciais perdidas, os zoólogos que buscam vestígios
do yeti, aqueles que mantiveram contato com pequenos homens
verdes, os criacionistas em luta contra Darwin, (...) procuram
efetivamente fixar entidades que teriam aparentemente as
mesmas propriedades de existência, o mesmo cadernos de encar-
gos, que as entidades que, seguindo os epistemólogos, saem dos
laboratórios. Coisa curiosa, eles são chamados de “irracionalis-
tas”, quando seu maior defeito provém antes da confiança apai-
xonada que manifestam em um método científico que data do
século XIX, na exploração do único modo de existência que eles
conseguem imaginar: o da coisa já lá, presente, esperando ser
fixada, conhecida, inflexível. Ninguém é mais positivista que os
criacionistas ou os ufólogos, visto que só conseguem imaginar
outras maneiras de ser e de falar descrevendo matters of fact.
Nenhum cientista é tão ingênuo, ao menos no laboratório. De
modo que, paradoxalmente, o único exemplo de crença ingênua
que possuímos parece vir dos irracionalistas, que pretendem
constantemente derrubar a ciência oficial com fatos obstinados,
encobertos por um complô.”(Latour, 2002:82-3)
A dedução lógica a partir do jogo proposto pelo esquema
latouriano seria a existência de algo do lado de lá denominado
“para-xamanismo”, equivalente simétrico ao que nós, por aqui,
chamamos de argumentos, narrativas e experiências “para-
científicas”. Não há, entretanto, qualquer evidência etnográfica
da existência de algo equivalente.
Nesse sentido, sou levado a crer que para compreender-
mos nossa própria cosmologia científica é necessário, igualmen-
te, estudar aquilo a que a ciência antagoniza, consagrando-se
como uma espécie de “duplo” eficaz. Os discursos paracientífi-
cos passam a ser, portanto, igualmente determinantes do nosso
projeto de modernidade atuando como verdadeiros “anti-heróis”.
Se isso pode ser verdadeiro, estaríamos diante de um
dilema. Como fazer antropologia simétrica considerando aspec-
261
tos não tão centrais assim? Como ainda tornar legítimo o estudo
de temas que não encontram equivalências em outras ontolo-
gias? Como tornar relevante um “método científico que data do
século XIX”, como diz Latour, e que se refere basicamente à
coleta e comparação de relatos experienciais, muitas vezes em
forma de narrativas orais? Em outras palavras, se trata de dar
maior ênfase às experiências do que aos experimentos, maior
credibilidade à inventividade que à reprodutibilidade, à criativi-
dade que o controle. E sendo assim é possível fazer antropolo-
gia, mas será ainda possível fazer Ciência?
Creio fortemente que sim. A antropologia não é uma
paraciência, ainda que por muitas vezes razões políticas oriun-
das de certos modelos de cientificidade a vejam como tal, mas
como proponho aqui, a antropologia constitui-se como uma
“ciência-para”. Uma expertise que para produzir conhecimento
necessita fundamentalmente de um complemento de intencio-
nalidade, de motivação, ou melhor, de comprometimento. Ou
seja, a antropologia prevê em sua própria composição a lógi-
ca de um terceiro incluído e essa especificidade, evidentemen-
te, nos causa problemas de reprodutibilidade (experimento)
ao optarmos por lidarmos com relatos e testemunhos (experi-
ências). Dito de outra maneira, vivemos o dilema da falta de
controle científico, pois regularmente lidamos com narrativas
egressas de situações onde não se está no controle. Por isso, a
meu ver, e, felizmente, a antropologia ainda é uma ciência “fora
de controle”.
Olhando para a questão por outro ângulo talvez seja
salutar admitirmos que possuímos uma certa vizinhança com
as paraciências. Afinal, ambos já nos interessamos pelo que
genericamente chamamos “lendas”. Seja irracionalizando-as,
como diz Latour, por aqueles que almejam para elas o status
científico, ou metaforizando-as como fazem os cientistas sociais
representacionalistas.
262
Há algum tempo banida do vocabulário corrente da
antropologia, o termo “lenda” nos permite pensar este tipo de
narrativa sem excluir de antemão relatos científicos e não-cien-
tíficos, como avalia Michel Serres em livro sobre Julio Verne,
que nos remete à aproximação entre “lenda” e “legenda”, onde
ambas fazem menção ao “deve ser lido” e “como é preciso ler”
(Serres, 2007). Segundo ele, em Verne, “a associação mito/
ciência forma a “legenda” que permite ler o mundo.” (Serres,
2007:23). Será possível dizer o mesmo sobre a Antropologia?
Será possível pensar em novas narrativas etnográficas que coli-
gando mito e ciência nos propiciem novas visões sobre mundos?
Proponho então para a ampliação de uma “antropologia
da ciência” ou de uma “Antropologia do conhecimento” a relei-
tura de narrativas tradicionais - que constituem mecanismos de
justificação de experiências reais - indo além das apropriações
metafóricas historicamente datadas e das chaves interpretati-
vas predispostas pelas ciências sociais a seu respeito.
Pois, se a antropologia moderna se interessou pelas
cosmologias de outrem (não-modernos), ela antecipou, inver-
samente, a discussão contemporânea acerca de um olhar não-
moderno (igualmente antropológico) sobre as ciências modernas.
Neste caso, a antropologia da ciência define-se não como um
sub-campo dedicado ao estudo de um objeto em específico (a
“Ciência moderna” propriamente dita), mas como uma disposi-
ção transepistêmica de apropriar-se de explicações ontológicas
do “outro” pondo as em relação com as nossas.
Assumindo que tanto as narrativas científicas como as
paracientíficas postulam percepções coerentes acerca de reali-
dades que as envolvem; e, ao construir seus enunciados de
justificação, tanto uma quanto a outra, acionam formas racio-
nais distintas de evidenciação. Ou seja, cabe a uma antropo-
logia, que se pretende simétrica, explorar também o potencial
convergente entre essas narrativas. Mais do que reificar a cisão
263
ou buscar enunciações da Verdade, o interesse está em apro-
fundar-se na construção destes enunciados que acionam, antes
de qualquer coisa, experiências concretas de fatos e fenôme-
nos naturais ou sobrenaturais. Deve-se buscar isso sem recair
em explicações de cunho metafórico-representacionalista, que
ao fetichizar as narrativas terminaram por erigir um “edifício
simbólico” que torna impossível ao pesquisador ter acesso à vida
dos próprios narradores. Desta forma, o que está em jogo não
é mais o resultado constituído em um “objeto verdadeiro”, seja
na ciência ou na cultura pop(ular), mas a primazia em elaborar
discursos associativos de enunciação do real. Na expertise de
forjar novas lendas.
Não se deve, portanto, isolar de antemão as fronteiras
entre o conhecimento científico e outras formas de conhecimen-
to a fim de caracterizarmos a ciência como um objeto circunscri-
to. Tratando-a desta forma, como um complemento regulador,
acabaremos praticando uma antropologia simétrica que saberá
localizar precisamente a ciência, mas não saberá onde encon-
trar a antropologia.
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266
COMUNICAÇÃO E CIÊNCIA:ENTRELAÇAMENTOS
Fator de impacto e Qualis: se ganha o que se perde, a rede esvaziada
Márcia Regina Barros da Silva
A magia dos números encantadores concebe o fator de
impacto como um espelho do que acontece com as publicações
periódicas nacionais, mas quem se interessa pela escrita cien-
tífica e pelos conteúdos das publicações atuais pode entender
a estratégia que os números impõem ás revistas científicas:
funcionar como moeda no circuito de troca em que as ciências
operam. Lanço mão de uma informação escolhida apenas pelo
seu valor de “espanto” ante a intenção de “Qualis(ficar)” periódi-
cos científicos nacionais. Exatamente o que deveria ser o mais
importante, o valor dos conteúdos dos artigos produzidos no
Brasil, não é o caráter central do ato de construir indicadores
de impacto científico.
A proposição de que é preciso melhorar a qualidade das
publicações periódicas brasileiras é apresentada como um dado
de senso comum. Mas só é assim porque é uma proposição que
carrega certa mais valia ‘científica’ ao fazer do veículo revista
‘científica’ o cerne do capitalismo ‘científico’, como descreveu
Pierre Bourdieu. Isso acontece somente porque se supõe que
é ali, nas revistas indexadas, sob parâmetros não nacionais,
que se alcançaria a repercussão pública dos trabalhos originais
produzidos pelos cientistas brasileiros.
Em geral essa repercussão é buscada tendo por hori-
zonte imagens de uma ciência que deve ser colaborativa, inter-
nacionalizada e de índices de citação crescentes. Embora não
se pergunte o porquê desses parâmetros, eles são claramente
resultado da crença arcaica nos quatro princípios Mertonianos
267
de um ethos científico transcendente, quais sejam “o universa-
lismo, o comunalismo, o desinteresse e o ceticismo organizado”.
As perspectivas abertas pelos estudos CTS (Latour,
2012) contabilizam como simples crença a noção de que a ciên-
cia seja realmente o resultado de uma identidade ontológica,
com um e somente um modo de ser, ciência conformada por
normas idealizadas. Pode se dizer que tal caracterização é em
essência transcendental porque insiste em desconhecer a loca-
lidade, a contingência, a especificidade, enfim a historicidade de
toda ciência.
Não há, portanto, como admitir aquele “senso comum”
apontado acima. Não há critérios impessoais universais para
o trabalho cotidiano de produzir conhecimento localizado. Não
há divulgação descentralizada fora do centralismo das agências
noticiosas das ciências, que são os periódicos e seus indexa-
dores. Não há busca desinteressada onde há interesses explí-
citos de busca de superioridade acadêmica, já que essa tem
que se dar em relação a parâmetros estabelecidos por algum
grupo, instituição, nação, agente. E por fim, não há algo como
um juízo de pares garantido fora de todos os pressupostos indi-
cados acima, fora dos interesses e dos critérios pessoais, locais
e localizáveis.
Buscando no nosso principal repositório de revistas
científicas que é o SciELO podemos apontar como a adoção do
Fator de Impacto(FI) é pretendida como um modo de identifica-
ção da qualidade de uma revista, que deveria ser consequência
da mesma qualidade dos artigos ali incluídos. Para esclareci-
mentos temos que o cálculo do FI é resultado do número de
citações recebidas por uma revista em determinado ano pelo
número total de artigos publicados na mesma revista.
Sobre a implantação do Projeto SciELO se encontram
artigos que discutem os parâmetros de criação desse indicador
no Brasil desde 1998, ano em que ocorreu no país o ‘Seminá-
268
rio sobre Avaliação da Produção Científica’ (Meneghini, 1998;
Parker, 1998; Parker & Biojone & Antonio, 1998).
Financiado pela FAPESP o Projeto visava construir um
quadro da produção científica brasileira, como apontam seus
participantes e coordenadores:
Em primeiro lugar, o Seminário situou o
projeto no âmbito do sistema de comuni-
cação científica e da avaliação da produção
de ciência no país, enquanto instrumento
capaz de aperfeiçoar os meios de divulgação,
aumentar a visibilidade e a acessibilidade
das publicações, bem como fornecer indica-
dores consistentes e atualizados sobre o uso
e o impacto da literatura científica. (Antonio
& Parker, 1998, p. 236)
O exemplo de “espanto” pode ser acompanhado no caso
da Revista Brasileira de Farmacognosia (RBF), que alcançou em
todo tempo de existência do SciELO crescentes índices de FI até
culminar e se diferenciar com o maior índice de Fator de Impacto
do SciELO em 2009. Para discussão foi trazido aqui não o quadro
total, mas apenas o ano do maior índice obtido pela revista.
Segundo as próprias normas de descrição do SciELO, e
pensando apenas na composição do índice, o Fator de Impacto é um:
Indicador de impactoO indicador de impacto de cada periódico,
medido com base nas citações que recebeu,
é avaliado, sempre que possível, em conjunto
com os periódicos da mesma área.
O aumento no fator de impacto ou a sua esta-
bilização na distribuição relativa dos periódicos
da mesma área são considerados resultados
de desempenho positivo e, portanto, garan-
269
tia de permanência do título na coleção. Na
avaliação dos valores do fator de impacto no
desempenho dos periódicos, o Comitê Consul-
tivo analisará também a porcentagem de auto-
citação. Elevados índices de auto-citação são
prejudiciais à avaliação do periódico e o Comitê
Consultivo poderá solicitar esclarecimentos ao
editor responsável, emitir advertência e decidir
pela exclusão do periódico da Coleção SciELO
Brasil. (Critérios SciELO Brasil: critérios, política
e procedimentos para a admissão e a perma-
nência de periódicos científicos na Coleção SciE-
LO Brasil. Disponível em http://www.scielo.
br/avaliacao/criterio/scielo_brasil_pt.htm)
Como visto acima está caracterizado nas normas do
SciELO o prejuízo da auto-citação para a avaliação de um perió-
dico. Podemos ver como funciona a construção de auto-citações
no exemplo abaixo.
A Revista Brasileira de Farmacognosia foi a revista brasi-
leira com maior fator de impacto no SciELO em 2009. Sendo o
FI o número de citações recebidas em um ano, vemos que a
revista que concedeu o maior número de citações para a Revista
Brasileira de Farmacognosia naquele ano foi a própria Revista
Brasileira de Farmacognosia. O número do Fator de Impacto
alcançado em 2009 foi de 2.7971, por um total de 76 citações.
Dessas 76 citações, a totalidade, foi recebida de artigos publi-
cados na própria RBF. O Fator de Impacto da RBF em 2013,
contudo, caiu para 0.0514 e o seu Qualis na CAPES atualmente
é apenas B4.56
56 Fonte: Sobre o SciELO home. Indicadores Bibliométricos. Indicadores de Publicação. Disponível em http://www.scielo.org/php/level.php?lang=pt&-component=56& item=28.
270
O alto FI em 2009 não garantiu à revista um número
Qualis máximo, pois o Qualis CAPES leva outras informações
em conta com o fim de indicar a qualidade do periódico em rela-
ção às demais revistas, tais como os níveis de endogenía dos
artigos, de autores e de revisores, número de acessos, índices
de rejeição a artigos, índices de tempo de retorno a autores e
dos autores, etc. Esse baixo índice no Qualis resultou na “revol-
ta” da RBF e na tentativa de buscar melhorar seus números.
Em editorial de 2009 o editor aponta modos de tentar atingir
esse objetivo, indicando aspectos formais que colaborariam
para tanto. A principal atitude dos editores à época foi passar a
publicar a revista em inglês e a exigir certas regras de escrita e
de exposição dos dados para os artigos veiculados no periódico.
Surpreendente é o fato da Revista Brasileira de
Farmacognosia, apesar de estar indexada em
todas as grandes bases de dados mundiais,
ter sido estratificada como B4 pelo Novo
Qualis. Melhorar nossa posição no Qualis da
Capes na área da Farmácia é de fundamental
importância para o crescimento da Revista.
De nossa parte, precisamos estabelecer metas
arrojadas de crescimento e trabalhar ardua-
mente para atingi-las. Para isso, o Conselho
Editorial decidiu que, a partir de janeiro de
2010, todos os manuscritos submetidos para
publicação deverão estar na língua inglesa.
Reafirmando decisões anteriores, trabalhos
que relatam atividades antimicrobianas e
antioxidantes de extratos sem a devida identi-
ficação dos constituintes promotores da ação
não serão considerados. (...) Por outro lado,
esperamos que, em breve, o nosso “fator h”
no SCImago (http://www.scimagojr.com/)
271
seja, de fato, observado e que nossa estratifi-
cação seja reconsiderada pela Capes, a fim de
valorizar os periódicos da área que cumprem
com sua função de divulgar de parte do que
é produzido pela própria pós-graduação da
ciência farmacêutica brasileira.” (Editorial,
s/p, 2009)
A tentativa de recorrer ao inglês como idioma de visi-
bilidade internacional é altamente estimulada pelos indexado-
res, como se apreende do texto do coordenador operacional do
SciELO até 2011, “No futuro, a tendência dos periódicos brasi-
leiros recém-indexados de receber mais citações internacionais
dependerá da visibilidade internacional que venham a acumu-
lar, do nível de colaboração internacional, de área temática e do
idioma de publicação”(Parker, 2011, p. 46).
A busca pelo crescimento dos índices de impacto se
relaciona precipuamente ao acúmulo de “moedas” científicas,
e é possível supor que hoje essa função é dada simplesmente
pelo numerário amealhado, ou seja, pela quantidade de arti-
gos publicados que cada autor possui e pelo número de cita-
ções que determinado artigo, em determinada revista recebe.
Somente em uma segunda situação o que está escrito no artigo
pode chegar a ser considerado já que o motivo da citação não
pode ser inferido pelos números, não sendo possível inferir que
a citação sempre signifique acordo com o autor original ou que
sempre é uma citação adequada ao seu contexto a partir do
artigo de origem.
Um exemplo da inadequação em se basear a qualidade
no número de citações, principalmente durante os primeiros
anos de circulação de um artigo, pode ser seguido se pensarmos
num outro dado, o da discrepância entre publicações nacionais
e internacionais:
272
(...) o número de citações por artigo que os
autores brasileiros obtêm quando publicam
nos periódicos nacionais é muito inferior aos
dos periódicos internacionais. Vale notar que
mesmo cientistas brasileiros com alto desem-
penho internacional recebem menos citações
quando publicam em periódico nacional.
(Apud, Parker, 2011, p. 49).
A concentração de renda ‘científica’ também inclina á
outra inadequação, o vício da elitização das revistas no caso
brasileiro, o que certamente também acontece no restante do
mundo:
No SciELO, durante o ano de 2009, 23% dos
periódicos receberam 80% das citações dos
artigos publicados em 2007 e 2008 (Parker,
2011, p. 53).
Encerrando aqui gostaria de destacar uma das possí-
veis consequências dessa esquizofrenia “qualifera impactiva”
que é o surgimento das redes esvaziadas, aquelas onde existem
Fatores de Impacto que não impactam; onde existe um ‘Qualis’
que não sabe-se muito bem o que qualifica; onde o crescente
encanto, e ao mesmo tempo desencanto, com os próprios índi-
ces implantados é conhecido; onde a existência de conjuntos
de autores e revistas que não se comunicam é impressionante;
onde existe um enorme contingente de artigos que não são lidos
por outros autores.
Concluindo penso que somente por meio das avaliações
históricas destes processos poderá ser possível empreender
análises que encontrem respostas para as seguintes perguntas:
quem fez esses parâmetros de internacionalização serem consi-
derados os melhores? Como incentivar uma produção nacional
273
com parâmetros nacionais se os parâmetros de publicação tive-
rem que ser internacionais? Onde buscar as referências desse
pretenso melhoramento dentro do país? Quais devem ser os
parâmetros utilizados para desenhar o planejamento de futu-
ro que envolve a noção de aperfeiçoamento da qualidade dos
periódicos nacionais? Isso tudo é apenas uma questão de verba
ou o incentivo á busca de altos valores nos índices de impacto
compromete o próprio esforço em produzir pesquisa “desinte-
ressada” da corrida capitalista?
Já que “(...) explicar não é um feito cognitivo misterio-
so, mas um empreendimento de construção de mundo muito
prático que consiste em ligar entidades a outras entidades, ou
seja, em traçar uma rede.” (Latour, 2012, p. 152), podemos indi-
car que as resposta a essas perguntas não se encontram na
reprodução de índices esvaziados. Talvez as respostas possam
ser encontradas no acompanhamento dos objetivos e interesses
que sustentam a construção desses índices e fatores. Talvez na
transformação das propostas para serem contrapostas a uma
função social, pública, da ciência universalizada de dentro para
dentro, e depois, só muito depois, de dentro para fora. Já que as
redes daqui não gorjeiam como lá, que tal construirmos nossas
próprias redes?
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275
CONHECIMENTO CIENTÍFICO E AQUECIMENTO GLOBAL
Praticando nautimodelismo às avessas: e se o navio fosse o aquecimento global?
Viviane Fernandez
Daniela Alves
Ivan Marques
Adriano Premebida
Bernardo Esteves
Propomos pensar as entidades dos conhecimentos cien-
tíficos e tecnológicos, particularmente as entidades relaciona-
das às mudanças climáticas globais e às estratégias para sua
mitigação, como o navio dentro da garrafa. Estamos acostuma-
dos a ver o conhecimento pronto, assim como vemos o navio
pronto dentro da garrafa. Esta metáfora de Harry Collins nos
ajuda a perceber que, assim como o navio dentro da garrafa
foi em algum momento antes um conjunto de materiais hete-
rogêneo como madeira, tinta, barbante, cola, vidro que foram
cuidadosamente justapostos, também as entidades dos conhe-
cimentos científicos (fatos, objetos, teorias) são configurações
de elementos heterogêneos, e estes elementos são o que chama-
mos de inscrições. Vamos nos deter um pouco mais na noção
de inscrição e na outra noção que é indissociável dela, a noção
de instrumento.
276
Na imagem ao lado
vemos cientistas em um
laboratório onde se corta, se
torce, se filtra, se aquece e
se resfria, se pesa e se mede.
Aí se produzem narrativas,
números, gráficos, tabe-
las, inscrições que podem
ser chamadas de diversas
ordens, pois um conjunto de medidas (inscrições, digamos, de
primeira ordem) pode ser ordenado em uma tabela (uma inscri-
ção de segunda ordem) que por sua vez pode ser justaposta a
outra tabela e das duas ser extraída uma terceira tabela ou
mesmo uma teoria, inscrições de terceira ou quarta ordem, a
assim por diante. As inscrições são comparáveis aos materiais
heterogêneos que em um momento estão fora da garrafa e depois
estão lá justapostos, configurando o navio. Mas onde estão as
inscrições? As inscrições estão no encontro de algo ainda sem
forma com um instrumento. Um instrumento pode ser um
termômetro, um microscópio, um telescópio ou o próprio olho
humano que produz inscrições na retina. Podemos notar que as
inscrições são como rastros, são marcas de algo que não tem
ainda forma, assim como os dinossauros também só têm forma
após os paleontólogos juntarem as inscrições de suas pegadas,
seus fósseis, em um todo coerente. Antes dessa estabilização os
dinossauros não têm forma. Estamos acostumados a associar
instrumentos a equipamentos “físicos” de limites e dimensões
aparentemente claras, e muitas vezes deixamos de perceber
que o que os instrumentos produzem já está em parte contido
neles mesmos. A música não está só no CD ou no arquivo que
baixamos para ouvir, mas também no leitor, no decodificador,
no amplificador, nos alto-falantes, em toda a aparelhagem sem
a qual a música não se conformaria, não adquiriria sua forma
277
(além de estar também em nossa capacidade de ouvir – hetero-
geneidade dos elementos). A música adquire forma, se dá, acon-
tece na relação. Este mesmo processo que facilmente vemos na
música ocorre para as entidades de conhecimento das ciências,
os fatos, objetos e teorias tanto das ciências sociais e humanas
quanto das ciências naturais. Por exemplo, o Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística (IBGE) é totalmente comparável
a um microscópio, um telescópio, um termômetro, um medi-
dor de ressonância magnética, no sentido de que ele produz
inscrições — formulários preenchidos podem ser considera-
dos como inscrições de primeira ordem, suas tabelas e gráficos
como inscrições de segunda ordem, etc. Mas lembremos que
as perguntas que estão no formulário fazem parte da inscrição
resultante, elas são o que o IBGE leva para o encontro com
algo ainda sem forma como a população brasileira, cuja forma
surgirá justamente desse encontro dela, ainda sem forma, com
o instrumento IBGE que a conformará por meio de classifica-
ções e por meio das combinações dessas inscrições em múlti-
plos níveis que estabelecem os fatos, as teorias e os objetos que
“são” a população brasileira.
Tudo o que pode constituir ou ser levado em conta em
uma teoria, uma verdade ou um fato científico terá necessaria-
mente de estar presente nas inscrições. E as inscrições levam
em conta necessariamente um número finito de fatores. Reco-
nhecemos que há, portanto, necessariamente, um enquadra-
mento (e também externalidades) em toda teoria, verdade ou
fato científico.
Assim sendo, reunimos neste ensaio uma série de
inscrições presentes no fato tecnocientífico chamado mudanças
climáticas. Texto de várias vozes, buscamos praticar o mode-
lismo às avessas e, exercitando a desmontagem artesanal peça
por peça do navio dentro da garrafa, nos deparamos com uma
série de materialidades que poderia ter dado origem a navios
278
diferentes ou quiçá a outro objeto.
Os autores aqui reunidos, provenientes de várias áreas
do saber, engenharia, sociologia, história, oceanografia e comu-
nicação começaram este diálogo no aglomerado “Conhecimen-
to Científico e Aquecimento Global”57, durante e após o evento
“Ator-Rede e além no Brasil”, realizado no HCTE/UFRJ, apre-
sentando, montando e desmontando as materialidades do que
se convenciona chamar de mudanças climáticas.
Seguindo a introdução conceitual desenvolvida por Ivan
Marques, Daniela Alves e Adriano Premebida observam as nego-
ciações em curso para a construção de molduras, como o barco
vai sendo montado com elementos tão heterogêneos e híbridos,
cujas formas se arranjam e rearranjam, se estabilizam ou não ao
longo da própria agência, como é o caso das redes e programas
de pesquisa internacionais na Amazônia. O exercício proposto
pelos autores requer acompanhar o fluxo dos acontecimentos,
das negociações políticas e científicas entre agentes naturais e
sociais, conhecimentos e instituições.
Viviane Fernandez e Bernardo Esteves realizam mais
propriamente a desmontagem dos barcos, tornando as moldu-
ras rígidas mais flexíveis percebendo as controvérsias do fato
supostamente estabilizado das mudanças climáticas e da miti-
gação. Se o trabalho minucioso de produzir o clima requer todas
as inscrições em um mesmo lugar, os autores propõem iluminar
o maior número possível das inscrições do carbono, na natu-
reza, nas modelagens, nos contadores. Ao enfatizar as vozes
destoantes provenientes tanto dos movimentos sociais afetados
57 Por questões estilísticas, neste artigo empregamos indistintamente os termos “aquecimento global” e “mudança climática” para designar o aumento da temperatura média do planeta nos últimos 150 anos devido ao aumento da concentração de gases-estufa na atmosfera e os impactos a ele associados. Para uma discussão das diferenças entre esses termos, ver WHITMARSH (2009).
279
pelos mecanismos de mercantilização do carbono, como dos
cientistas céticos destoantes da origem antrópica das mudan-
ças climáticas, os autores demonstram o quão frágil é a produ-
ção de hegemonia, ou a estabilização do conhecimento sobre as
mudanças climáticas.
Conjunto de tarefas para análise da produção de conhecimento
Para Daniela Alves, investigar a produção de conheci-
mento sobre as mudanças climáticas sob a ótica da teoria ator
rede é um desafio, ao mesmo tempo, científico e político. Fatos
científicos produzidos em várias áreas do conhecimento confor-
mam prognósticos sobre o aquecimento global e as suas possí-
veis formas de mitigação, reforçando a dimensão dos riscos
naturais e sociais gerados pelas práticas humanas. Na visão do
sociólogo Ulrich Beck (2010), na modernidade tardia vivemos a
potencialização e a globalização dos riscos nas diversas dimen-
sões da vida social. A relevância do tema, a amplitude dos estu-
dos que compõem o campo ‘mudanças climáticas’ e a dimensão
de riscos atuais e futuros mobilizam um conjunto vasto de
atores, de grupos de interesse e de arranjos sociotécnicos, cujo
alinhamento é simultaneamente científico e político. A produ-
ção do conhecimento é feita na associação coletiva de sujeitos e
objetos, sociedade e natureza (LATOUR, 2004), que frequente-
mente se arranja em fóruns híbridos, espaços de debate entre
grupos de interesse e de atores, cientistas e leigos, humanos
e não humanos, onde se expressam publicamente as contro-
vérsias (CALLON, LASCOUMES E BARTHE, 2009). A produção
de conhecimento requer, portanto, negociação entre fenômenos
da natureza, abundantemente produzidos no que se refere às
mudanças climáticas, e fenômenos sociais.
Estamos diante de uma rede extensa de áreas distintas
do conhecimento, produzindo em seus laboratórios dados e fatos
280
científicos a serem amarrados posteriormente, especialmente
no campo dos tratados internacionais e das políticas locais. Há
inúmeras agências enredadas neste objeto complexo, híbrido e
global. Este enredamento pode ser observado desde dentro do
ambiente micro do laboratório, como fazem os estudos de labo-
ratório, sem desconsiderar que as fronteiras entre o interior do
laboratório e o exterior são porosas, como nos sugere Latour
(2000), o que torna minuciosa e arriscada a tarefa de interrogar
o ambiente micro. Os laboratórios de pesquisa jogam o pesqui-
sador frequentemente para fora do laboratório, na trilha das
inscrições “externas”.
Uma das tarefas metodológicas para os estudos sobre
produção de conhecimento em mudanças climáticas é fazer uma
lista das inscrições, grupos de interesses, controvérsias cientí-
ficas e agentes envolvidos no trabalho científico de um deter-
minado laboratório ou instituto de pesquisa. Tomando como
exemplo a atividade cotidiana de produção de conhecimento em
um instituto de pesquisa em mudanças climáticas, sediado na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, encontramos a ele liga-
dos, com maior ou menor força, ministérios de governo; políti-
cas públicas nacionais como o Plano Nacional sobre Mudança
no Clima e seus planos setoriais; acordos internacionais entre
nações; comissões parlamentares, movimentos sociais, empre-
sas, petróleo, mestrandos e doutorandos, técnicos, um grupo
de pesquisadores estrangeiros. Enquanto alguns pesquisado-
res estão em suas bancadas, os mais experientes e renoma-
dos pesquisadores do instituto circulam por entre reuniões e
fóruns de discussão onde se negociam convênios internacio-
nais, metodologias e tecnologias a serem utilizadas na pesquisa
e desenvolvimento de resultados, se captam recursos públicos
e privados e se apresentam relatórios técnicos que reforçam as
ligações das redes sociotécnicas em movimento.
Esta é uma breve descrição das diversas tarefas que
281
estão postas no trabalho da produção de conhecimento sobre
um objeto global e complexo por excelência. Aos pesquisadores
brasileiros coloca-se um conjunto de tarefas para a análise da
produção de conhecimento sobre mudanças climáticas: Quais
grupos e agentes interessados são mobilizados na formação das
redes de conhecimento? Quais os pontos de cruzamento entre
os agentes do desenvolvimento nacional e os agentes da miti-
gação do aquecimento global? Qual a relação entre os interes-
ses das agências globais e os interesses da tropicalização do
conhecimento? Como os movimentos do carbono e do petró-
leo, enquanto materiais de disputa e de mercado interferem na
rede?
Uma sociologia simétrica útil sobre a produção de
conhecimento sobre as mudanças climáticas, em um país histo-
ricamente ligado à abundância de recursos naturais e ao mesmo
tempo à periferia do campo científico, deve fazer um caminho
que possa se deslocar entre as esferas micro e macro, percor-
rendo do laboratório às instâncias de poder político, reunindo
as inscrições que perpassam a produção do que denominamos
natureza.
Limites e reforços às redes de grandes projetos na Amazônia
A proposta de Adriano Premebida busca compreender a
formação, caracterização e consolidação de redes sociotécnicas
no Estado do Amazonas e, de forma mais geral, na Amazônia,
voltadas ao monitoramento de clima e biodiversidade, mudan-
ças climáticas, uso de solo e água e simulação computacional.
Além das questões que caracterizam o nível de institucionali-
zação dessas redes de pesquisa, existe, também, o interesse
em explicar como a comunidade regional integra-se a grandes
programas de pesquisa de caráter internacional. A noção de rede
sociotécnica e, em alguns casos, rede tecnoeconômica, utiliza-
282
das por Bruno Latour (2005) e Michel Callon (2001; 2003) subsi-
diam as análises de como os diversos atores regionais conectam
pontos do tecido social para operar a estruturação e consoli-
dação de tais programas de pesquisa: Experimento de Grande
Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), Green Ocean
Amazon (GOAmazon), Rede Temática de Pesquisa em Modela-
gem Ambiental da Amazônia (GEOMA), Cenários para a Amazô-
nia: Uso da terra, Biodiversidade e Clima (CENÁRIOS), Torre
Alta de Observação da Amazônia (ATTO), Green Ocean Amazon
Terrestrial Ecosystem Project (GECO), Programa de Pesquisa
em Biodiversidade (PPBio), INCT Estudos Integrados da Biodi-
versidade Amazônica (CENBAM) e INCT Serviços Ambientais da
Amazônia (SERVAMB).
Sabe-se que projetos em ciência e tecnologia se consoli-
dam não apenas pela sofisticação de seu corpo técnico e quali-
dade de equipamentos, mas principalmente, pelas influências
do contexto social na definição de desenvolvimento científico/
tecnológico regional e na própria maneira como tais instituições
de pesquisa e desenvolvimento exercem efeitos e reviravoltas no
contexto social em que estão imersas. Programas de pesquisa
dependem imensamente de articulações entre instituições, de
redes complexas de interesses — improváveis inicialmente — e
de cooperação local/nacional/internacional. Assim, a questão
principal desta proposta é entender por que certos tipos de inte-
ração entre programas de pesquisa conseguem se reproduzir e
estabilizar mais do que outros. Quais os processos de susten-
tação e resistência de redes sociotécnicas na Amazônia? Por
que os projetos mais capacitados giram em torno do tema das
mudanças climáticas (WEITZMAN, 2009)? Como a diversidade
e heterogeneidade de atores, por vezes contraditórios em seus
objetivos e interesses, conseguem equacionar (ou não) a institu-
cionalização de redes de pesquisa tidas como estratégicas para a
região amazônica? Como tais programas de pesquisa se desen-
283
volveram em meio à multiplicidade de negociações (PETERSON;
BROAD, 2009) e interesses regionais visando compromissos
de longo prazo para o desenvolvimento científico, tecnológi-
co e produtivo local? O que estes projetos têm em comum e o
que podem ajudar em suas experiências de consolidação em
cenários futuros de trajetória institucional (como a definição
do melhor perfil de cooperação e suas relações com os demais
usuários, provenientes de órgãos privados e públicos, nacionais
e internacionais), principalmente em meio aos compromissos
políticos e econômicos de desenvolvimento regional?
Para qualquer uso que se queira fazer do conhecimen-
to científico, precisa-se levar em conta um saber-fazer incor-
porado por um grupo de cientistas treinados, um sistema de
educação científica adequado e consolidado, e a expertise no
manuseio de um conjunto de dispositivos técnicos e equipa-
mentos especializados. Para poder replicar um conhecimento,
ou fazê-lo circular, não basta livros-textos e conhecimento de
enunciados científicos, é necessário esta rede de instrumentos
e competências tecnocientíficas, projetos, programas e siste-
mas de investimentos, objetivos institucionais claros, redes de
interesses regionais articulados a estratégias de inserção em
contextos nacionais e internacionais de produção de conheci-
mento, quadro urbano e cultural com alto grau de interação
entre pesquisadores, gestores e empreendores, base econômica
— ao menos local — que cubra parte da demanda de conheci-
mento da instituição de pesquisa. Um fato científico emerge, e
tem sentido prático, somente com esta organização de disposi-
tivos experimentais, e todo seu suporte institucional (financei-
ro e educacional, por exemplo). Os dados que emergem destas
redes de pesquisa podem ser vistos como o efeito de uma rede
de materiais heterogêneos: agentes, conhecimentos, artefatos
técnicos, máquinas, organizações diversas.
284
Uma nova ontologia para o sequestro de carbono florestal
Viviane Fernandez tem percebido que, partindo da afir-
mativa óbvia de que a conservação das florestas e do carbono esto-
cado nas mesmas contribui para mitigação do aquecimento global,
e dos recursos disponíveis para tanto, muitos pesquisadores das
áreas das ciências naturais (Biologia, Engenharia florestal, Ecolo-
gia, Oceanografia) investem esforços nos estudos dos processos de
absorção de CO2 pelas plantas, de acúmulo C na biomassa aérea,
nas raízes e no solo, de ciclagem da matéria orgânica, entre outros.
Tais estudos visam quantificar os fluxos de C de modo a “opera-
cionalizar” a mitigação do aquecimento global. Contudo, apesar
dos estudos estarem cada vez mais atrelados àquela afirmativa, o
distanciamento entre a quantificação e a mitigação persistem no
que Bruno Latour caracteriza como a “constituição moderna” de
nossa forma de conhecer a realidade (LATOUR, 2004). Enquanto
os pesquisadores limitam-se aos fatos naturais, resolvendo essa
parte do problema, os chefes de estado discutem sobre o que não
é considerado estático: a construção da história da humanida-
de frente à mudança climática. Nessa configuração, a ética do
pesquisador é garantida pela qualidade (precisão) da informação
fornecida à sociedade em suas inscrições e, em geral, sua crítica
restringe-se ao mau uso destas. Os pesquisadores se esquecem,
entretanto, de que as próprias inscrições contêm previamente a
solução pensada e decidida na sociedade e que, por esse motivo,
qualquer crítica aos mecanismos de mitigação pensados, deve-
ria ser antes uma autocrítica. Na “constituição moderna”, porém,
só é possível desenvolver estudos científicos que contemplem, ao
mesmo tempo, a quantificação do sequestro de carbono em flores-
tas naturais e a crítica ao mecanismo de mitigação pensado inter-
nacionalmente para conservá-las, se ciência e política, natureza
e sociedade, árvore e homem, fotossíntese e mercado de carbono,
forem vistos como entidades distintas.
285
O mecanismo de Redução de Emissões causadas por
Desmatamento e Degradação de florestas (REDD+) fundamenta-
se na quantidade de emissões que deixam de ser emitidas para
atmosfera quando as florestas naturais deixam de ser substituí-
das por outros usos da terra e pretende gerar recursos financei-
ros para beneficiar, principalmente, a vida das pessoas que vivem
diretamente delas — sejam os povos das florestas, em escala
local, ou se pensarmos em escala mundial, toda população dos
países que ainda possuem grandes áreas de florestas naturais em
seu território. Ocorre que, na prática, movimentos sociais locais
(GRUPO CARTA DE BELÉM, 2012), e governos de países como a
Bolívia (GRUBB, 2011), expressam fortemente sua posição contrá-
ria ao mecanismo, que os coloca como reféns do mercado, da ciên-
cia e do carbono sequestrado por suas florestas, ao transformá-lo
em mercadoria a ser negociada para “salvar a humanidade” da
mudança climática global.
Mas por que tais lados (o da quantificação que leva ao
mercado e o dos movimentos contrários ao mecanismo) excluem-
se mutuamente no contexto científico? Não deveria a ciência ter
como premissa investigar a realidade tal qual ela acontece? Latour
propõe que a saída para esse impasse deve vir de uma “nova cons-
tituição” da forma de construção do conhecimento sobre a reali-
dade (LATOUR, 2004). Como no caso dos estudos científicos em
questão — se prevalecer nos pesquisadores a intenção de contri-
buir para a redução da desigualdade sociambiental utilizando o
mesmo espaço científico da quantificação do sequestro de carbono
— a realidade não poderá mais ser dividida nos pares dicotômicos
natureza/ sociedade, ciência/ política, conteúdo/contexto. Há que
se perceber que nada na sociedade independe dos fatos científi-
cos e que nenhum fato científico se distingue da sociedade; que
nenhum objeto de estudo é natural ou social; que não é necessário
esforço para criticar, mas sim empenho para conciliar.
É a partir da descrição da realidade em movimento,
286
como uma única história de homens e coisas, que encontraremos
semelhança com aqueles que não utilizam a “Ciência moderna”
como forma de leitura do mundo, haja visto que compartilhamos
da mesma indissociabilidade entre natureza e cultura (LATOUR,
1994). A quantificação do sequestro de carbono passa a confi-
gurar-se, então, como oportunidade para realizar esse exercício
descritivo, que vem substituir a mitigação do aquecimento global
como justificativa dos estudos. Isso nos leva a encontrar um
sequestro de carbono que não é mais produto de um processo
biológico das plantas, mas um híbrido de natureza e cultura, que
adquire mais realidade quanto maior o número de atores humanos
e não-humanos que agencia. O sequestro de carbono é: a balan-
ça, as tabelas, as equações alométricas, os artigos científicos, os
documentos nacionais, as decisões das Partes da Convenção do
Clima, os projetos de REDD, as organizações não governamen-
tais, os orgãos governamentais de meio ambiente, a legislação, o
mercado de carbono, os contratos de REDD etc. Esse será o novo
todo coerente apresentado pela ciência e, a pesquisa, uma contri-
buição para além da “guerra dos mundos” presente na dinâmica
dos acordos de REDD (SHANKLAND; HASENCLEVER, 2011).
A construção do clima global e a controvérsia sobre a origem do aquecimento
Para Bernardo Esteves, se hoje podemos falar em
mudança climática ou aquecimento global, é porque o clima
planetário se consolidou como uma entidade passível de estudo
pelos cientistas. Esse processo se deu ao longo dos últimos dois
séculos, quando os pesquisadores traduziram o clima da Terra
em parâmetros que podem ser mensurados, avaliados e compa-
rados – ou móveis imutáveis, para usar o termo consagrado por
Bruno Latour (2000).
No século XIX, o trabalho de cientistas como Jean-Bap-
tiste Fourier e Svante Arrhenius trouxe à cena o efeito-estu-
287
fa, que ajuda a reter na atmosfera parte do calor que a Terra
recebe do Sol, e uniu definitivamente o destino do clima global
ao da composição da atmosfera. Com isso, dióxido de carbono,
metano e outros gases-estufa passaram a fazer parte da rede de
atores que configuram as temperaturas do planeta.
Em paralelo, criou-se um aparato global de instrumen-
tos de medição de parâmetros do clima que envolve estações
meteorológicas ao redor do globo e satélites na órbita da Terra.
As inscrições geradas por eles mostraram que a temperatura
média global na superfície vem aumentando desde a Revolução
Industrial. Instrumentos que medem a concentração atmosféri-
ca dos gases-estufa mostraram que ela também vem aumentan-
do desde então, e que eles têm papel decisivo sobre o aumento
da temperatura, que não pode ser explicado apenas por fatores
naturais como os ciclos da atividade solar ou as oscilações peri-
ódicas na temperatura dos oceanos.
A rede de atores que configura o clima global – e a
influência humana sobre este – foi adensada com a criação de
métodos que permitem inferir como variaram a temperatura
global e a concentração atmosférica de gases-estufa nos últi-
mos milênios. Agora o clima da Terra também é configurado
por elementos como colunas de gelo antártico, anéis de árvores,
corais e outros indicadores usados nos estudos paleoclimáticos.
Da mesma forma, a rede foi reforçada com a entrada em cena
dos supercomputadores que rodam os modelos climáticos que
calculam como o clima deve se comportar nas próximas déca-
das nos diferentes cenários de emissões.
A influência humana sobre o clima global foi reforçada
no final do século XX com a entrada em cena de atores insti-
tucionais de peso: em 1988, foi instituído o Painel Internacio-
nal sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, criado para avaliar
o conhecimento da ciência sobre a questão. Em 1992, a ONU
criou a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, que
288
reuniu os países em torno do objetivo de estabilizar a emissão
de gases-estufa a fim de minimizar os impactos do aquecimen-
to global. Em 1997, foi assinado o Protocolo de Kyoto, primei-
ro tratado internacional que estabeleceu metas de redução de
emissões para os países industrializados, com maior responsa-
bilidade histórica pelo aumento da temperatura. Com o reforço
desse aparato institucional, a mudança do clima deixou de ser
um problema tratado apenas no âmbito científico e ambiental e
se tornou uma questão política e econômica e foco de disputas
diplomáticas.
Com o adensamento da rede sociotécnica que configu-
ra o aquecimento global, ficou cada vez mais custoso contes-
tar a influência antrópica sobre o clima. Quem quiser contestar
o papel dos gases emitidos pelas atividades humanas sobre o
clima do planeta terá que desafiar também as reconstituições
do clima passado, a rede de medições da temperatura global,
os modelos computacionais do clima global, os relatórios de
avaliação do IPCC e os representantes dos países reunidos sob
a Convenção do Clima, mas também os ursos polares, recifes de
corais e outros organismos ameaçados pela mudança do clima.
Isso não impediu que vozes contrárias à visão consen-
sual se manifestassem pelo menos desde os anos 1980. Os
céticos do clima ou negacionistas, como às vezes são chama-
dos, contestam aspectos variados dessa visão – negam que as
temperaturas estejam aumentando, que as atividades huma-
nas estejam por trás do aquecimento ou que haja algo a nosso
alcance para limitar seus impactos. Em países como os Estados
Unidos, algumas vozes contrárias ao consenso estão ligadas a
políticos e grupos de pressão financiados por empresas do setor
de energia, que têm seus interesses ameaçados pelas medidas
de redução das emissões de gases-estufa. O Brasil também tem
céticos do clima, embora não estejam claramente vinculados a
grupos de interesse. Além das alegações dos seus pares estran-
289
geiros, defendem também que a imposição das metas de redu-
ção é uma forma de imperialismo que quer impor tecnologias
verdes para limitar o desenvolvimento das nações de industria-
lização tardia (ESTEVES; CUKIERMAN, 2013).
Essas alegações, no entanto, não vão parar na literatu-
ra técnica, onde os fatos científicos são propostos e consolida-
dos. Dos artigos sobre mudança climática que se pronunciaram
sobre as causas do fenômeno, 97% afirmam que ela é deter-
minada ao menos em parte pela ação humana (COOK et al.,
2013). Os cientistas falam em uníssono, mas seu consenso não
se traduz em ações governamentais para combater o proble-
ma – talvez porque eles ainda não tenham convencido a indús-
tria, condição necessária para seu sucesso, conforme apontou
Latour (2000).
Considerações finaisOs caminhos aqui propostos para desvendar a ‘mágica’
do processo de ‘engarrafar’ as entidades científicas relacionadas
ao aquecimento global, parece nos permitir maior aproximação do
que acreditamos ser o principal problema a ser enfrentado pela
humanidade: a ideia de que natureza e sociedade foram separadas
pela ciência moderna e que daí decorrem os problemas ambien-
tais pelos quais devemos nos responsabilizar e resolver, também
via conhecimento científico. Para nós, natureza e sociedade nunca
estiveram separadas e não são separáveis concretamente.
Este problema epistemológico subjaz a mudança climá-
tica global, a perda de biodiversidade, a desigualdade social,
a fome, a poluição e todas as outras questões colocadas hoje
de forma fragmentada, temerosa, ou muito complexa para ser
resolvida. Nossa intenção é tornar a ciência mais real, mais
viva, mais fomentadora de discussão, mais próxima de um
caminho comum onde poderemos encontrar soluções comuns e
que façam sentido para todos.
290
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differences in public understanding of “climate change” and
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292
POLÍTICA, LIXO, RECALCITRÂNCIAS E HUMANOS, QUE VÍNCULOS SÃO ESSES?
Heloisa Helena Albuquerque Borges Quaresma Gonçalves
Elaine Ribeiro Sigette
Alexandra Cleopatre Tsallis
Roseantony Rodrigues Bouhid
Este artigo descreve a construção metodológica do
Aglomerado não ortodoxo apresentado no evento “Ator-Rede e
Além... no Brasil” (¿ as teorias que aqui gorjeiam não gorjeiam
como lá?). Ressalta como os interesses primeiros nem sempre
podem ser alcançados imediatamente, e algumas vezes podem
ser tomados atalhos que tratam de outros interesses sem perder
o objetivo comum. Alerta que contribuições de diferentes pesso-
as podem mascarar ou deformar a contribuição individual,
desfavorecendo os objetivos individuais. Todavia, as singulari-
dades como situações de risco ao mesmo tempo podem oferecer
oportunidades de praticar a diferença como caminho. Por fim
como resultado aponta que a rede de bens relacionais que foi
construída entre as autoras, segue. Foi fruto de uma aposta da
organização do Ator-Rede não direcionada que os tradicionais
eventos acadêmicos (quase) não costumam promover.
Palavra-chave: educação ambiental, instituições de
educação, Decreto 5940/06
IntroduçãoConstruir um aglomerado para o evento “Ator-Rede e
Além... no Brasil” (¿ as teorias que aqui gorjeiam não gorjeiam
como lá?)”, utilizando a livre adesão, metodologia participante,
redação coletiva continuada e inserção de pesquisadores que
anteriormente não se conheciam foi um desafio metodológico.
A partir da aposta na dinâmica de intenções e proble-
mas sem direcionamentos da coordenação do evento recor-
293
remos a intuição, buscamos vincular as não conformidades
existentes nas instituições de educação superior (I.E.S) referen-
tes às demandas das políticas ambientais, o lixo, recalcitrân-
cias, humanos com a abordagem ator-rede e nos indagamos,
que vínculos são esses?
Após a leitura das palavras-chaves apresentadas nas
propostas autogestionárias dos aglomerados em construção,
escolhemos intuitivamente realizar um aglomerado diferente,
não ortodoxo, enredando o teatro musical, corpo e subjetividade,
com as cartesianas questões referentes ao meio ambiente, cole-
ta seletiva solidaria, educação ambiental, catadores de mate-
riais recicláveis dos resíduos, que são descartados de qualquer
jeito nas I.E, sinalizando que talvez Jamais Fomos Modernos
nos campi das instituições de educação superior sejam federais,
estaduais, confessionais e de ensino médio e fundamental.
A linguagem teatral escolhida, com base na ideia de
Latour (2001) “essência é existência e existência é ação” propi-
ciou apresentar o problema e objetivo do aglomerado “Políticas,
lixo, recalcitrâncias, humanos, que vínculos são esses?” Além
de ressaltar as recalcitrâncias no gerenciamento dos resíduos
produzidos nas I.E.
Na construção dos personagens levamos em considera-
ção Latour (2004), “ter um corpo é ser afetado, movido e efetu-
ado por conexões com outros homens e com não-humanos”. O
corpo pode ser visto como o efeito de redes de articulação que
ligam humanos e dispositivos técnicos os mais heterogêneos e
díspares (MORAES, 2005).
Os não humanos - o marco legal da política ambiental,
o lixo e a gestão do patrimônio - atravessam a vida daqueles que
vivenciam a rotina das IES. Contudo, há evidências empíricas
de que existe uma recalcitrância que atrapalha atitudes proati-
vas esperadas, em se tratando de instituições que são locus de
educação e formação profissional.
294
A cenarização da dinâmica do aglomerado sugeriu “a
construção de um espaço que pode ser entendido para além da
ideia de uma infraestrutura por onde passam coisas e ser apre-
endido em sua dinâmica móvel e associativa. Foi constituído
pelo atravessamento de fluxos e por dinâmicas que vão além de
uma ação do micro no macro e vice-versa” (LEMOS, 2013).
Um espaço que pode contribuir (ou não) para a consti-
tuição de um ambiente hígido e evitar medidas punitivas como o
Termo de Ajuste de Conduta - TAC, que causam vergonha (que
está sempre mascarada), mas que funciona como vínculo, bem
como o tempo, que segundo Bruno Latour, é a passagem para o
mais complicado, onde mais e novos/antigos entes participam
da rede sociotécnica.
A construção do enredamento do AglomeradoAs autoras que se enredaram no aglomerado colocaram
para os organizadores as palavras chave recalcitrância, palha-
ço, deficiência visual, vínculos, coletivo, campi da IFES, lixo,
Decreto 5940/06, educação profissional e meio ambiente.
Os organizadores disponibilizaram essas palavras chave
em um grupo na internet e todos os inscritos tiveram acesso a
essas informações. O contato inicial se deu pela afinidade de
interesses e pelas trocas de e-mails.
Segundo Latour (2000) o interesse é aquilo que esta
entre os atores e os seus objetivos, pode colaborar para que os
objetivos sejam alcançados. Numa ação coletiva, os interesses
podem ser somados, modificados, utilizados ou abandonados.
No aglomerado construído os interesses eram diversos
e não antagônicos. O objetivo do trabalho desenvolvido por uma
das autoras era elucidar procedimentos enraizados nos servi-
dores públicos e estudantes de instituições de ensino superior,
que não estavam em conformidade com as novas leis ambien-
tais. Sua pretensão era colaborar para que ocorresse mudan-
295
ças nos hábitos nas pessoas presentes. Com a apropriação
dos argumentos e constructos de outra autora, participante do
aglomerado, que tem como problema a inserção da temática
meio ambiente na educação profissional técnica e tecnológica,
pode-se ganhar força e legitimidade com argumentos novos e,
ao mesmo tempo, divulgar e fortalecer o estudo que envolve a
educação profissional. Os interesses foram somados, mas se
mantendo no seu rumo inicial, em uma relação simbiótica.
Uma terceira autora tem por interesse a recalcitrância,
os palhaços, os vínculos e o coletivo e, ao entrar no aglomerado,
o fez juntando argumentos e experiências que contribuíssem
para o fortalecimento da sua Tese, visto que o estudo das temá-
ticas educação, meio ambiente ou leis ambientais não eram seu
objetivo.
As quatro optaram por trabalhar com o lúdico, por
meio de uma esquete teatral, a essência do palhaço que expõe
suas fragilidades para seu público, foi, em parte, explorada. Da
mesma forma, o material produzido por essa autora, principal-
mente no referente às recalcitrâncias, serviu de argumentação
para fortalecer o estudo realizado pelas outras participantes.
Como os interesses primeiros nem sempre podem ser
alcançados imediatamente, algumas vezes puderam ser toma-
dos atalhos que tratavam de outros interesses, mas que pude-
ram, em algum momento, chegar no ponto, pois os argumentos
coletados favoreciam ao próprio objetivo (LATOUR, 2000).
Nesse sentido a quarta autora participou do coletivo,
atraída principalmente, pela forma que seria apresentado, como
uma esquete teatral. Essa participante teve experiência como
atriz em outras peças teatrais, bem como no desenvolvimento
de roteiros e contribuiu com essas habilidades ao colaborar no
procedimento metodológico adotado pelo aglomerado.
Segundo Latour (2000, p. 184) a construção do fato,
com tantas contribuições de diferentes pessoas, pode mascarar
296
ou deformar a contribuição individual, desfavorecendo os obje-
tivos individuais.
Foram realizadas cinco reuniões presenciais para a
construção do aglomerado. Nas reuniões entraram, em cena
emoções, apegos, troca de saberes sobre experiências de ensi-
no, pesquisa, extensão, gestão universitária e conhecimentos
da TAR.
A questão do patrimônio, a cultura no Brasil de que “há
leis que pegam e outras que não pegam”, a rede sociotécnica
foram entes de discussão.
A primeira reunião foi realizada na Universidade Esta-
dual do Rio de Janeiro - UERJ, a segunda no Instituto Federal
do Rio de Janeiro - IFRJ, a terceira na casa de uma das autoras,
a quarta na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
- UNIRIO, e a quinta no Museu da República na Rua do Catete
- Rio de Janeiro. Em cada reunião aconteceu uma construção
de vínculos.
Na primeira reunião destacamos o interesse pelo tema e
a pretensão de usar o lúdico no aglomerado.
Figura 1: Campo de
referência.
Fonte. Memória da primeira
reunião, maio de 2013.
Na segunda delinearam-se o enredo e os personagens,
na terceira e quarta procedeu-se a continuidade do roteiro da
performance cênica. Na quinta realizou-se a (quase) finalização.
Cabe ressaltar que esse movimento não foi trivial e
causou desconforto momentâneo devido a recorrente tendência
297
ou deformar a contribuição individual, desfavorecendo os obje-
tivos individuais.
Foram realizadas cinco reuniões presenciais para a
construção do aglomerado. Nas reuniões entraram, em cena
emoções, apegos, troca de saberes sobre experiências de ensi-
no, pesquisa, extensão, gestão universitária e conhecimentos
da TAR.
A questão do patrimônio, a cultura no Brasil de que “há
leis que pegam e outras que não pegam”, a rede sociotécnica
foram entes de discussão.
A primeira reunião foi realizada na Universidade Esta-
dual do Rio de Janeiro - UERJ, a segunda no Instituto Federal
do Rio de Janeiro - IFRJ, a terceira na casa de uma das autoras,
a quarta na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
- UNIRIO, e a quinta no Museu da República na Rua do Catete
- Rio de Janeiro. Em cada reunião aconteceu uma construção
de vínculos.
Na primeira reunião destacamos o interesse pelo tema e
a pretensão de usar o lúdico no aglomerado.
Figura 1: Campo de
referência.
Fonte. Memória da primeira
reunião, maio de 2013.
Na segunda delinearam-se o enredo e os personagens,
na terceira e quarta procedeu-se a continuidade do roteiro da
performance cênica. Na quinta realizou-se a (quase) finalização.
Cabe ressaltar que esse movimento não foi trivial e
causou desconforto momentâneo devido a recorrente tendência
cartesiana de manter aquilo que havia sido consensuado ante-
riormente para o roteiro cênico.
Após a quinta reunião, e por meio de e-mails, ocorre-
ram alterações na estrutura e foi definido o roteiro que seria
apresentado no dia do evento. A princípio, desenhou-se a rede
sociotécnica do lixo eletrônico numa I.E.
FIGURA2: Rede sociotécnica do Lixo.
Fonte: Extraído da memória da terceira reunião, maio de 2013.
Argumentação teóricaRecalcitrância: uma aposta teórico-metodológica do
aglomerado
A noção de recalcitrância tão discutida na Teoria Ator-
-rede nos colocou frente ao desafio de situarmos a pesquisa
naquilo que ela oferece como abertura e não como fechamento.
Nesse sentido, o trabalho aqui apresentado buscou mais opor-
tunizar perguntas do que oferecer respostas. Fizemos uma apos-
ta na possibilidade de construção de vínculos, ainda que estes
tivessem como território disponível algo tão movediço quanto a
recalcitrância.
Cabe, primeiramente, tomar o que Latour (2004) esta-
298
beleceu no tocante à recalcitrância. Embora Latour não chegue
a sistematizar essa noção, esta recebe um papel de relevância
ao procurar se alinhar os actantes.
“Para convencer totalmente o leitor, é suficien-
te, parece-nos, que ele leve a sério o qualifica-
tivo de ator introduzido na seção precedente.
Os atores se definem antes de tudo como
obstáculos escândalos, como aquilo que
suspende a superioridade, que incomoda
a dominação, que interrompe o fechamento e
a composição do coletivo. Para falar de manei-
ra popular, os atores humanos e não-huma-
nos aparecem, então, como importunos. É pela
noção de recalcitrância que convém, de modo
especial, definir sua ação” (p. 150).
Latour continua as notas, agora esclarecendo a diferen-
ça que a recalcitrância produz quando se trata de humanos e
não-humanos.
“Crer que os não-humanos se definem pela
estrita obediência às leis da causalidade, é
não ter nunca seguido a lenta montagem
de uma experiência de laboratório. Crer, ao
inverso, que os humanos se de f inem
logo pela liberdade, é não ter jamais medido a
facilidade com que eles se calam e obedecem
e a convivência que eles têm com este papel
de objeto ao qual queremos, tão frequente-
mente, reduzi-los (nota 31). Repartir logo os
papéis entre o objeto dominável e obediente
de um lado, o humano livre e renitente do
outro, é impedir de procurar em que condi-
ção, por que prova, em que arena, ao preço de
299
que labor, pode-se, deve-se fazer-lhes mudar
as descomunais capacidades de aparecer em
cena, como atores, completamente à parte,
isto é, como aqueles que impedem a trans-
ferência indiscutível (da força ou da razão),
como mediadores, com quem é preciso contar
como agentes, cujas virtualidades são ainda
desconhecidas.” (p.150)
Ainda na nota 31, esclarece:
“É uma das contribuições da filosofia de
Isabelle Stengers foi ter mostrado que as
ciências sociais se tornariam enfim científi-
cas se aceitassem tratar os humanos como
‘coisa’ - quer dizer, paradoxalmente, com todo
o respeito com que o investigador de ciências
ditas ´duras´ chega a se deixar surpreender
pela resistência do objeto de pesquisa de
Stengers (1996). A indiferença dos não-hu-
manos os protege contra a objetivação ,consi-
derando que os humanos, sempre ansiosos
por fazer bem (especialmente quando um
cientista lhes pede que imitem um objeto),
mal sabem se defender contra o alinhamen-
to na objetivação, provando, aliás, pela sua
imitação perfeita, o papel antropomórfico e
polêmico da objetividade!” (Latour, 2004,
nota 31, p.150).
Contudo, é importante lembrar que a recalcitrância se
remete ao vínculo, pois não se pode resistir, desobedecer, se não
frente a alguma coisa ou alguém. Portanto, ela ajuda a localizar
as estabilizações feitas na rede.
300
Nessa direção, o próprio processo de enredar-se / aglo-
merar-se nos exigiu o confronto direto com os vínculos que
desejávamos cultivar, bem como com aqueles que nos faziam
devir outros. A cada vez que a recalcitrância se apresentava, ela
nos fazia promover um fazer distinto do previsível.
A nuance do trabalho enredado que foi se estabelecendo
entre nós, colocava a recalcitrância como uma opção mais que
teórica, metodológica.
Foi a partir dessa aposta que a recalcitrância nos tornou
possível perceber as singularidades ali presentes. Isso fazia
com que as reuniões exigissem ações diplomáticas, que tives-
sem como fim, parafraseando Latour, construir não um mundo
plural, mas um mundo comum a todos.
A sucessivas situações em que nos deparamos com
os obstáculos colocados pela diferença (uma pedagoga, uma
psicóloga, uma quimica e uma engenheira), nos faziam rede-
senhar as bordas de nosso enredado.
É possível dizer que a recalcitrância funcionou como
uma espécie de trava do actante a um certo fluxo ininterrupto
do aglomerar-se. Em outras palavras, através desses acontec-
imentos as singularidades puderam ser vistas como situações
de risco ao mesmo tempo em que ofereciam oportunidades de
praticar a diferença como caminho.
Negociações do espaço e do tempo e o limbo no descar-te do lixo eletrônico e afins pelas IES.
O ator principal da cenarização do aglomerado foi o
setor chamado “Patrimônio”, que é o setor responsável dentre
outras atividades, por incluir e excluir um bem material dentro
do âmbito Institucional.
Os equipamentos e mobiliários são catalogados e rece-
bem um número em uma plaquinha (Tombo) - o que significa
que esses bens foram tombados. Quando os equipamentos e
301
mobiliários precisam ser descartados, o órgão/departamento
envia um pedido ao setor de Patrimônio, documento chamado
também de expediente ou memorando, para dar baixa.
Esse é um processo que pode levar em torno de cinco
anos e quiça pode nunca ter sido realizado em I.E. O mobiliário
ou equipamento eletrônico que não é mais útil, ganha o status
de “lixo inservível”, porém não poderá ser descartado até a baixa
do seu número de tombamento.
Os bens inservíveis passam a ocupar um espaço próprio
na Instituição até que possam ser descartados. O tempo dos
processos e trâmites administrativos e burocráticos afetam
desse modo, o uso dos espaços. O espaço Institucional escasso
que poderia estar sendo utilizado para as atividades de ensino,
pesquisa e extensão vira uma “sala de entulhos a espera” ou
uma espécie de limbo – nem uso e nem destruição - para os
bens inutilizados.
O Decreto 5940/06 e a Lei 12305 – Política Nacional de
Resíduos Sólidos regulamentam o gerenciamento dos resídu-
os produzidos no âmbito das Instituições. O primeiro ressalta
que o material reciclável deve ser destinado às cooperativas de
catadores devidamente formalizadas. O segundo dentre outras
diretrizes destaca a logística reversa que poderia evitar acúmulo
de resíduos inservíveis eletroetrônicos. Caso não sejam cumpri-
das, o Ministério Público pode aplicar um Termo de Ajuste de
Conduta ou TAC e depois puni-las.
A dinâmica teatral e a ANT – pretensões e alucinações do aglomerado
“A ação é emprestada, distribuída, sugerida, influen-
ciada, dominada, traída, traduzida” (LATOUR, 2005, p. 46).
O formato teatral, não ortodoxo, escolhido pelo aglo-
merado para a apresentação do trabalho, trouxe um entre os
possíveis recortes do assunto tratado, e levou em consideração
302
a inevitabilidade de traduções e traições advindas desta escolha.
Entre as traduções e traições identificadas podemos
apontar: as sequências de apresentação dos atores em detri-
mento da abordagem da controvérsia; a criação de vínculos e
sua importância que passa por materialidades representativas
e figurativas; uma certa hierarquia e ordenamentos do texto e
ideias vinculados unicamente ao formato cênico; a construção
de falas e personificações inexistentes (não-humanos); Tradu-
ções construídas a partir do formato teatral e da percepção
dos papeis de “escritores”, “narradores”, “diretores”, “atrizes”...
papeis desemprenhados pelas participantes do aglomerado - os
porta-vozes da história - para atender ao tipo de formato não
ortodoxo de apresentação do aglomerado.
Uma superação deste formato de apresentação em rela-
ção ao formato de apresentação descritivo, usado pela maio-
ria dos participantes do evento, diz respeito ao espaço-tempo
cênico e a interatividade com a plateia. A partir da personifica-
ção dos atores, falas e ações, o aglomerado procurou criar um
espaço cênico estendido onde a interatividade com a plateia, a
chamava a participar da narrativa.
A dinâmica da “Brincadeira da Bola” foi um exemplo
de um dos momentos de interatividade que consistiu em um
jogo de bola onde, após a fala das narradoras, a bola era passa-
da para alguém da plateia e retornada a um dos atores, que a
passava em seguida para outra pessoa.
No entanto, a percepção desta dinâmica por parte da plateia
e das autoras foi controversa. De um lado pode-se apontar que foi
(ou pode ter sido) confusa, ao mesmo tempo, que reações demons-
travam divertimento e estranhamento. Por conta do espaço, nem
todos puderam participar. Por outro lado, contudo, a vinculação
com a realidade das não conformidades existentes em I.E no que
tange ao “lixo”, puderam ser sentidas, identificadas e provocaram
uma certa cumplicidade cênica, travestida de confusão.
303
A passagem da bola, a “batata-quente” que representa-
va na história: “o patrimônio”, não foi entendida (ou foi) como
tal, por conta do tempo curto para assimilação da dinâmica por
parte da plateia.
Os registros fonográficos também foram inadequados
por conta da falta de adaptação da tecnologia ao formato da
apresentação. Os microfones utilizados no auditório eram indi-
viduais e capturam a fala dos atores enquanto esses se movi-
mentam. No caso das apresentações tradicionais, o microfone é
fixo assim como as pessoas.
O “corpo” como efeito de redes que liga humanos e
dispositivos técnicos foi um elo fraco neste sentido. Outro elo
fraco foi que as autoras não se vincularam ao apoio logístico
com antecedência, o que pode ter (ou não) acionado as alucina-
ções do tipo “fora de controle” dos humanos e dos não humanos
presentes na cena.
A ação pretensiosa foi coletivamente composta e a caixa
preta, que era o roteiro e personagens criados, foi constante-
mente aberta. Logo, ocasionava inquietações nas autoras, que
consideravam que suas contribuições e interesses, estavam,
em parte, sendo satisfeitas, mas como nem sempre estavam
presentes nas alterações do roteiro para defender seus pontos
de vista, houve desconfortos e recalcitrâncias, porque o que foi
construído numa reunião foi se desfeito na seguinte. Porém,
nada que colocasse em risco os vínculos afetivos na cena.
Contudo, o apego existiu. O trabalho produzido nos
encontros anteriores parecia ser abandonado ou até mesmo
perdido nas alterações dos roteiros. Essa dinâmica poderia, a
princípio, gerar conflitos, e gerou, por se entender, precipitada-
mente que houve perda de tempo e de recursos, ou que os inte-
resses primários de cada autora estavam sendo descartados.
Essa ideia de tempo linear que ruma sempre ao melhor,
ultrapassando um passado arcaico, rumo ao sentido mais
304
profundo e stricto das coisas e pessoas, leva à racionalização
contínua, e não permite antever que aquilo que era levado em
consideração ontem, amanhã poderá não ser, mas existe, não
está ultrapassado, foi apenas provisoriamente excluído e contri-
buiu para a construção do fato, da realidade tal qual ela é cole-
tivamente fabricada (LATOUR, 2004).
As diferentes formações das autoras deste aglomera-
do, diferenciadas58 mas com vínculos de risco não explicita-
dos, contribuíram, de diferentes formas, para a composição
progressiva da esquete teatral e para a escolha do tema que foi
abordado.
Não se tratava de abordar objetos definidos com proprie-
dades conhecidas e apresentá-los oralmente com o apoio da
tecnologia, fomos mais, fomos além do tradicional e desafiamos
a lógica das comunicações científicas, onde os demais parti-
cipantes do evento apresentaram o que sabiam, estudaram e
desenvolveram, dentro da sua zona de conforto.
Na esquete teatral produzida foram apresentadas as
inquietações, o problema e o coletivo observado. As autoras
representaram personagens humanos e não-humanos, o que
causou inquietação, preparo prévio, divertimento, bem como a
exposição pessoal e vivência da fragilidade, do ridículo, ou seja,
do palhaço que existia em cada uma.
A Figura 3, a seguir, representa uma das possíveis visu-
alizações da rede sociotécnica do aglomerado.
58 As diferentes formações das participantes desse aglomerado: Engenheira e Administradora de empresas, atuando em ciências exatas e da terra, em ciên-cias da computação; professora de química ambiental e ensino de química, atuando nas áreas multidisciplinar, em ensino e ciências ambientais; profes-sora de matemática e pedagoga, atuando em educação em engenharia de pro-dução, professora de psicologia atuando em ciências humanas em psicologia.
305
profundo e stricto das coisas e pessoas, leva à racionalização
contínua, e não permite antever que aquilo que era levado em
consideração ontem, amanhã poderá não ser, mas existe, não
está ultrapassado, foi apenas provisoriamente excluído e contri-
buiu para a construção do fato, da realidade tal qual ela é cole-
tivamente fabricada (LATOUR, 2004).
As diferentes formações das autoras deste aglomera-
do, diferenciadas58 mas com vínculos de risco não explicita-
dos, contribuíram, de diferentes formas, para a composição
progressiva da esquete teatral e para a escolha do tema que foi
abordado.
Não se tratava de abordar objetos definidos com proprie-
dades conhecidas e apresentá-los oralmente com o apoio da
tecnologia, fomos mais, fomos além do tradicional e desafiamos
a lógica das comunicações científicas, onde os demais parti-
cipantes do evento apresentaram o que sabiam, estudaram e
desenvolveram, dentro da sua zona de conforto.
Na esquete teatral produzida foram apresentadas as
inquietações, o problema e o coletivo observado. As autoras
representaram personagens humanos e não-humanos, o que
causou inquietação, preparo prévio, divertimento, bem como a
exposição pessoal e vivência da fragilidade, do ridículo, ou seja,
do palhaço que existia em cada uma.
A Figura 3, a seguir, representa uma das possíveis visu-
alizações da rede sociotécnica do aglomerado.
58 As diferentes formações das participantes desse aglomerado: Engenheira e Administradora de empresas, atuando em ciências exatas e da terra, em ciên-cias da computação; professora de química ambiental e ensino de química, atuando nas áreas multidisciplinar, em ensino e ciências ambientais; profes-sora de matemática e pedagoga, atuando em educação em engenharia de pro-dução, professora de psicologia atuando em ciências humanas em psicologia.
Figura 3- Rede sociotécnica do Aglomerado
Fonte: Elaborado por Roseantony Rodrigues Bouhid ( maio de 2013)
InconclusõesInconclusões porque o trabalho se posicionou na dire-
ção de oportunizar perguntas do que oferecer respostas.
A subversão, a fuga do modelo tradicional de apresen-
tação foi provavelmente um dos interesses latentes que uniu
as autoras e os participantes do evento. Em outras palavras,
através desses acontecimentos as singularidades puderam ser
vistas como situações de risco ao mesmo tempo em que ofere-
ciam oportunidades de praticar a diferença como caminho.
O trabalho de construção realizado foi a sua trajetória
rumo ao mais implicado, ao mais enredado. Quanto mais propo-
sições foram levadas em consideração pelo coletivo que estava
presente, maior foi o exercício de democracia que experimentamos.
No fim do processo, ou seja, após a apresentação pública
da esquete, da caixa preta produzida, foi possível observar que a
própria construção da peça teatral foi o desvio que todas tomamos
para que a experiência, de aplicação da ANT nessa ação coletiva,
306
agregasse argumentos e veracidade aos nossos objetivos primários.
Ao buscarmos transformar em realidade a ideia de apre-
sentar um trabalho científico na linguagem teatral, apesar do
evento abordar as aplicações da Teoria Ator Rede e permitir uma
certa liberdade de criação e expressão e ao fugirmos do conven-
cional, a cenarização não foi uma tarefa trivial porque preci-
sou enredar a recalcitrância, vínculos humanos, não humanos
como as políticas ambientais e patrimônio na mesma rede.
A rede de bens relacionais que foi construída entre as
autoras, segue. Foi fruto de uma aposta da organização do Ator-
-Rede não direcionada que os tradicionais eventos acadêmicos
(quase) não costumam promover.
Por fim, tal qual a última cena do aglomerado temos
curiosidade e indagamos:
“Como vai você?” assim como nós pessoas comuns...
nessa canoa furada...remando contra a maré...
Fonte: Internet
Disponível em: www.
materiaincognita.com.br
Acessado em:
16 de Agosto de 2013
Fonte: Internet
Disponível em: www.
bruxaguinever.blogspost.com
Acessado em:
16 de Agosto de 2013
307
Referências bibliográficasLATOUR, B. Ciência em Ação: como seguir cientistas e
engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
________. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
LATOUR, B. (2004). How to talk about the body? The
normative dimension of science studies. Body & Society, 10(2–
3): 205–229.
__________. A Esperança de Pandora. Bauru:
Edusc,2001.
_______.Reassembling the Social: an introduction to
actor-network-theory. NewYork: OUP, 2005.
LEMOS, A. Espaço, mídia locativa e teoria ator-rede.
Galaxia (São Paulo, Online), n. 25, p. 52-65, jun. 2013.
MORAIS, Márcia. Cegueira e Cognição: Sobre o corpo
e suas redes. Publicado in AIBR. Revista de Antropología Ibero-
americana, Ed. Electrónica Núm. Especial. Noviembre-Diciem-
bre 2005. Madrid: Antropólogos Iberoamericanos en Red. ISSN:
1578-9705.
308
MATEMÁTICASIsabel Cafezeiro
Ivan da Costa Marques
Gregory J. Chaitin
Virginia M. F. Gonçalves Chaitin
Neste encontro Ator-Rede de 2013, cujo propósito é
fomentar uma rede de conversas entrelaçando diversas pesqui-
sas e abordagens dos Estudos das Ciências e das Tecnologias,
este aglomerado coloca em discussão as Matemáticas, trazendo
questões do início do século XX, suas traduções e desdobra-
mentos aos dias atuais.
São abordagens que vêm sendo amadurecidas ao longo
dos últimos anos dentre estudos, discussões e seminários reali-
zados no programa de pós graduação em História das Ciências e
das Técnicas e Epistemologia. No HCTE a convivência de diver-
sas especialidades dá vazão à constante necessidade de ultra-
passar as usuais fronteiras e categorizações do conhecimento,
o que permite que a matemática possa ser contada nas suas
diversas formas, seja em números, fórmulas, versos, prosa,
história, biologia, imagens, cafés, canetas, computadores, bate-
-papos. Assim, os dois textos apresentados aqui mostram afini-
dades entre si e encontram suporte na Teoria Ator-rede sob
diversos aspectos. Por exemplo:
- A matemática é abordada como um corpo transdisci-
plinar que, assim como qualquer outro tipo de conhecimento, se
estabelece no encontro de áreas diversas.
- Coloca-se em questão a configuração da própria
matemática no sentido de verificar que elementos usualmente
deixados de fora dos textos matemáticos (considerados subjeti-
vos) têm participação na constituição da matemática, ou seja,
das entidades que os matemáticos assumem como puramente
formais.
309
- Certas configurações de poder e autoridade se estabe-
lecem e se sustentam em torno da matemática, ora colocando
em cena, ora tirando de cena, alguns temas ou abordagens.
Estas configurações determinam o rumo dos esforços empre-
endidos pelos matemáticos bem como os investimentos finan-
ceiros, e portanto, são também elementos conformadores da
própria matemática.
Tais questões aproximam também estes textos da
chamada matemática quasi-empírica, ou seja, aquela que está
constantemente em fluxo, em permanente construção como
resposta às diversas e inevitáveis interações com as coisas do
mundo da vida.
Junto aos psicólogos, historiadores, sociólogos, educa-
dores, informáticos, ambientalistas, dentre outras especiali-
dades que participaram do Ator-Rede e além... no Brasil, este
aglomerado propõe dialogar com e sobre a matemática, uma vez
que a matemática não é assunto só pra matemáticos.
Seguem-se os textos!
310
A Reação ao Teorema de Incompletude de GödelGregory J. Chaitin
(Traduzido por Virginia M. F. Gonçalves Chaitin)
O estranho destino de Gödel é ser universalmente admi-
rado e também universalmente incompreendido. Permitam-me
explicar por quê.
Gödel emergiu do ambiente intelectual do mundo germâ-
nico no início do século XX, o qual incluía pensadores como
David Hilbert, Hermann Weyl e John von Neumann, matemáti-
cos com uma profunda cultura filosófica, interessados tanto em
física teórica quanto em matemática pura.
O teorema de Gödel mostra que não pode haver uma
“teoria de tudo” axiomática formal para a matemática pura, e
constitui um reductio ad absurdum da idéia da lógica formal ser
a “toda poderosa” na matemática.
Após a Segunda Guerra Mundial, as questões filosófi-
cas fundamentais que inspiraram Gödel foram esquecidas, uma
vez que o universalismo idealista da cultura filosófica alemã foi
substituído pelo estreito tecnicismo norte-americano. Os lógi-
cos norte-americanos estavam diante de um dilema: Gödel era
o único lógico contemporâneo mundialmente conhecido, mas
seu trabalho mostra que as teorias formais são quase sempre
incompletas e, portanto, não podem garantir certeza. Isto, se
fosse amplamente compreendido, implicaria no fim do campo
da lógica, ou, pelo menos, na redução significativa em seu
prestígio.
A ascendência mundial do estilo intelectual dos lógi-
cos norte-americanos resultou na proibição àqueles que não
sejam lógicos de discutir Gödel, afirmando que seu trabalho
possui uma natureza extremamente técnica e que não pode ser
compreendido por pessoas além da comunidade formada por
eles mesmos.
311
Dessa maneira, a comunidade de lógicos gerou uma
blindagem intelectual para as ideias de Gödel, formando um
excelente cordão de isolamento que as protege, mas que impede
a devida compreensão de sua importância revolucionária.Em
continuidade a essa história de ideias, permitam-me comentar
o caminho percorrido por meus esforços em estender a linha de
raciocínio proposta por Gödel utilizando dois conceitos da físi-
ca, a saber: aleatoriedade e complexidade. Previsivelmente, esse
trabalho foi rejeitado pela comunidade dos lógicos, mas bem
vindo e visivelmente apoiado pela comunidade dos físicos teóri-
cos durante o período em que os estudos sobre sistemas comple-
xos estavam muito em voga. Neste momento, em que a
computação quântica tomou o lugar dos sistemas complexos, o
foco da física teórica se deslocou para outros temas. Dessa
maneira, a rede de interesse pelos desdobramentos da incom-
pletude de Gödel entre os físicos, enfraqueceu.
Afortunadamente, no ambiente interdisciplinar do
HCTE, formou-se uma bolha de interesse no teorema de Gödel,
que permite o seu merecido desdobramento nas mais variadas
direções, devido à sua estreita ligação com o mistério da cria-
tividade e da inovação tanto na matemática quanto em outros
campos.
312
Matemática, abstrações e a prática matemáticaIsabel Cafezeiro
Ivan da Costa Marques
A Matemática - existência autônomaVamos propor aqui um diálogo com uma concepção de
que as entidades matemáticas têm uma existência independen-
te. Muitas vezes, esta concepção toma como sustentação um
artigo de Paul Bernays59, de 1935, em que ele sugeriu ver os
objetos matemáticos desconectados de quaisquer vínculos com
a realidade em questão:
[T]he tendency of which we are speaking
consists in viewing the objects as cut off from
all links with the reflecting subject. Since
this tendency asserted itself especially in
the philosophy of Plato, allow me to call it
‘platonism’.
Bernays deixou claro um certo sentido utilitário desta
concepção, ou seja, ele argumentou que esta maneira de conceber
a matemática atende bem ao propósito da construção de abstra-
ções uma vez que permite extrapolar a experiência imediata:
The value of platonistically inspired mathe-
matical conceptions is that they furnish
models of abstract imagination. These stand
out by their simplicity and logical strength.
They form representations which extrapo-
late from certain regions of experience and
intuition.
Oswaldo Chateaubriand, filósofo brasileiro, trouxe
59 BERNAYS, P. “On Platonism in Mathematics”. In: BENACERRAF, P & PUTNAM, H, ed. Philosophy of Mathematics. Selected Readings. Cambridge University Press, [1985],
313
a discussão para os dias atuais reafirmando o argumento de
Bernays ao mostrar que a prática matemática tem indicado
uma resistência em abordar os objetos matemáticos sob o ponto
de vista ontológico60:
Although I am not a practicing mathemati-
cian, or a historian of mathematics, I think
we can characterize present day mathema-
tical practice as a form of platonism uncom-
mitted to a philosophical analysis as to what
one is talking about. It is sometimes said
that mathematicians are more formalist than
platonist, but this does not seem to be true. I
think the basic intuitions are the platonistic
intuitions, although, in fact, mathematicians
do not want to dwell on the philosophical
questions. They do not want to ask what an
object is, or what a property is, or what other
mathematical entities are from an ontologi-
cal viewpoint. They only want to ask these
questions with respect to mathematics itself,
not in terms of some prior philosophical
conception.
Porém, de forma aparentemente inconciliável, esta mesma
prática de se desconsiderar vínculos entre objetos e mundo, ao
mesmo tempo em que busca extrapolar a experiência e intuição
acarreta também o esquecimento do processo de formação do
pensamento matemático. Como Ludwick Fleck, filósofo e histo-
riador da ciência, explicou na década de 1930 através do concei-
to de “pensamento coletivo”, no âmbito do coletivo onde se dá
60 CHATEAUBRIAND, O. The Ontology of Mathematical Practice . Em Notae Philosophicae Scientiae Formalis, vol. 1, n. 1, p. 80 - 88, maio 201
314
um pensamento comunicável, os vínculos com as materialidades
não são expostos, são evidentes para aquele coletivo e não preci-
sam ser ressaltados. O pensamento esquemático vai assumindo o
caráter daquilo que não precisa ser explicado, e por força do uso,
naturaliza-se. Daí então surgem as entidades autônomas:
Não existe nenhuma pura isenção de senti-
mentos em si ou uma pura conformidade ao
entendimento em si – de que modo poderiam
ser constatadas? Existe apenas congruência
ou diferença de sentimentos, e a congruência
homogênea de sentimentos numa sociedade
se chama, no âmbito dela, isenção de senti-
mentos. É ela que possibilita um pensamen-
to comunicável, sem maiores deformações,
isto é, um pensamento formal, esquemático,
e concebível em palavras e frases ao qual se
atribui emocionalmente o poder de constatar
existências autônomas.61
A investigação da matemáti-
ca através de seu aprendizado ou do
processo de formação do pensamen-
to matemático tende a ser uma via
muito rejeitada pelos matemáticos,
já que, como se vê como no argu-
mento de Fleck, coloca no mesmo
patamar a dita objetividade mate-
mática e questões subjetivas, psico-
lógicas e sociais. Frege combateu
fortemente esta aproximação, insis-
61 FLECK, L. Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico. Editora Fabre-factum, 1935/2010
315
tindo em uma visão purificada da lógica como um expoente do
pensamento exato e objetivo. Hoje considerado o pai da lógi-
ca moderna, suas palavras têm ainda forte impacto na práti-
ca matemática. Vejamos alguns exemplos desta demarcação de
fronteiras nos textos de Frege: Em Os Fundamentos da Arit-
mética62, página 34, Frege afirmou: “É necessário separar com
nitidez o que é psicológico do que é lógico, o que é subjetivo do
que é objetivo.” No mesmo texto, página 61: “Seria extraordi-
nário se a mais exata de todas as ciências se devesse apoiar na
Psicologia.” E também, no Prólogo das Leis Básicas da Aritmé-
tica63: “a lógica atual parece estar completamente infectada de
psicologia. (…) Trata-se da perniciosa ingerência da psicologia
na lógica. ”
A Matemática - fluxo, materialidades e heterogeneidade em co-construção
A Teoria Ator-Rede nos oferece um caminho para anali-
sar estas questões através do conceito de “tradução”. “Traduc-
tion is also a trahison”64: Ao desconsiderar a possibilidade de
uma representação definitiva, que seria completamente aderen-
te à uma dada realidade, a Teoria Ator-Rede nos leva a lidar com
a instabilidade resultante da interação de elementos heterogê-
neos, e é nesta instabilidade que se verifica uma matemática
em constante negociação, refazendo-se como resposta às inter-
ferências diversas. Esta rede de interferências, da qual parti-
cipam não somente as abstrações matemáticas, mas também
62 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmética. Uma investigação logico--matemática acerca do conceito de número. Trad Antônio Zilhão, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Lisboa, Portugal
63 Em BRAIDA, C., (Org) Três Aberturas em Ontologia: Frege, Twardowski e Meinong . Rocca Brayde, Florianópolis, 2005. O trecho citado está na página 26.
64 LAW, J., Traduction/Trahison: Notes On ANT published by the Department of Sociology Lancaster University at: http://www.lan-caster.ac.uk/sociology/stslaw2.html
316
o próprio matemático, suas materialidades, instituições, cartas,
cafezinhos, corredores, etc, se torna visível quando se considera
o desenrolar de casos particulares, pois eles trazem a riqueza
de detalhes, rastros, registros, localidades, afastando as análises
ditas neutras e universais. Assim, contrariando Frege, optamos
por acompanhar o processo de construção do pensamento mate-
mático, através das cartas, relatos, desabafos, oposições, etc.
Acompanhamos o trabalho de Alan Turing, na busca
pela formalização do conceito intuitivo de “mecânico” ou “compu-
tável” ou ainda “máquina”65. Na mesma época que Turing (1936)
vários matemáticos estavam envolvidos com o mesmo problema
e fizeram propostas. Apesar de terem trabalhado separadamen-
te, foi provada a equivalência entre estas propostas, mostrando
que eles concordavam no que achavam ser “mecânico”. O que
não foi provado é se qualquer uma destas propostas “de fato”
formalizava o conceito: o embate entre a realidade e a represen-
tação. Enquanto que muitos matemáticos adotaram caminhos
abstratos, lançando mão de uma matemática muito elabora-
da, Turing resolveu optar pelo caminho de observar a ação do
homem ao computar, com todas as materialidades envolvidas
neste processo: o papel, o lápis, a necessidade de interromper o
cálculo e retomar mais tarde, as limitações do olhar ao analisar
uma sequência de símbolos. Daí, Turing construiu uma repre-
sentação abstrata: uma caixa com um cabeçote de leitura por
onde passava uma fita com símbolos. O cabeçote podia ler e
escrever símbolos na fita obedecendo a regras pré-definidas.
Com base neste modelo abstrato, Turing propôs que “mecâni-
co” seria tudo o que pudesse ser computado pela máquina. É
surpreendente o fato de que Turing tenha optado pelo cami-
nho da observação e registro porque o meio em que ele habi-
65 TURING, A. “On computable numbers, with an application to the Entschei-dungsproblem”. In: Proceedings of the London Mathematical Society, Series 2, n.42, p 230-265.1936.
317
tava enaltecia a supostamente pura racionalidade dedutiva.
Mais surpreendente ainda é o fato de que a proposta de Turing
tenha convencido de imediato aos matemáticos, enquanto que
os outros modelos abstratos não lograram êxito.
O trabalho de Alan Turing, fortemente aderente às
materialidades e à experiência do cálculo nos leva a argumentar
que é apenas aparente a inconciliação entre abstração e expe-
riência ou seja, a prática proposta por Bernays de desconside-
rar vínculos entre objetos e mundo buscando a construção de
abstrações se estabelece em co-construção com os vínculos com
as materialidades do local onde a matemática se desenvolve.
Um outro estudo de caso que reforça estes argumen-
tos foi publicado em 2011 pelo matemático Fernando Gouvêa66.
Analisando correspondências entre Frege e Cantor, ele apresen-
tou evidências de que Cantor estava por demais convencido de
que seus resultados estavam corretos, e portanto a expressão
“Vejo, mas não acredito” deveu-se muito provavelmente a irri-
tação devido a resistência de Dedekind, e não à surpresa em
face à suas novas ideias, tão inesperadas que teriam surpreen-
dido a si próprio. A conclusão de Gouvêa ressalta o forte víncu-
lo das provas matemáticas com a dinâmica social da prática
matemática:
Is the real story more interesting than the
story of Cantor’s surprise? Perhaps it is, since
it highlights the social dynamic that under-
lies mathematical work. It does not render the
theorem any less surprising, but shifts the
focus from the result itself to its proof. The
record of the extended mathematical conver-
sation between Cantor and Dedekind reminds
66 GOUVÊA, F. Was Cantor surprised? The American Mathematical Monthly V. 118, No. 3 (March 2011), pp. 198-209
318
us of the importance of such interaction in the
development of mathematics. A mathematical
proof is, after all, a kind of challenge thrown at
an idealized opponent, a skeptical adversary
that is reluctant to be convinced. Often, this
adversary is actually a colleague or collabo-
rator, the first reader and first critic. A proof
is not a proof until some reader, preferably a
competent one, says it is. Until then we may
see, but we should not believe.
A Matemática - permanente negociaçãoO processo de construção do pensamento matemático,
assim como qualquer outro tipo de conhecimento, se faz em
pequenas etapas. A cada etapa, o que foi tomado inicialmente
como matéria se transforma em forma. Esta transformação se
realiza em um pequeno vazio material, uma pequena descon-
tinuidade. A partir daí, aquilo que então virou forma passa
a servir de matéria para a etapa seguinte, e assim prossegue
formando uma cadeia que Latour chama de Referência Circu-
lante67. Estas pequenas descontinuidades que existem ao longo
desta cadeia são algo que o matemático diz alcançar, mas que
não alcança efetivamente. Ele faz induções. Em 1910, o filó-
sofo matemático Bertrand Russell explicou as induções e seus
vínculos materiais68:
Mas a verdadeira questão é esta: um número
qualquer de casos em que se cumpriu uma lei
no passado proporciona evidência de que se
cumprirá o mesmo no futuro? Em caso nega-
67 LATOUR, B.: A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos de ciências. EDUSC. 2001. 372 p.
68 RUSSELL, B. Os problemas da filosofia. Trad. Jaimir Conte. Florianópolis: 2005. Disponível em http://www.cfh.ufsc.br/~conte/russell06.html
319
tivo, é evidente que não temos base alguma
para esperar que o sol nasça amanhã, nem
para esperar que o pão que comermos em
nossa próxima refeição não nos envenene,
nem para nenhuma das outras expectativas
apenas conscientes que regulam nossa vida
cotidiana. Pode-se observar que todas estas
expectativas são apenas prováveis; assim
não temos que procurar uma prova de que
elas devem ser cumpridas, mas apenas algu-
ma razão a favor da opinião segundo a qual é
provável que se cumpram.
Russell faz menção ao pensamento coletivo. Quando se
refere a “apenas alguma razão a favor da opinião segundo a
qual ...” ele indica que a matemática divide a cena com questões
subjetivas, psicológicas e sociais, tal qual argumentou Fleck.
Assim, a matemática de Russell se afasta da matemática puri-
ficada de Frege já que carrega em suas bases de sustentação
a permanente negociação com as coisas da vida. Frege diria
“Seria extraordinário se a mais exata de todas as ciências se
devesse apoiar no social. Trata-se da perniciosa ingerência do
social na lógica”!
320
MARIA DO SOCORRO E/OU LADO BEduardo Nazareth Paiva
Lucimeri Ricas
aulo Sérgio Mendes
Marcia de Oliveira Cardoso
BRutalismos - Fluxos de ConsCIÊNCIAe/ou
ANTROPOFAGIAS - SEMIÓTICAS DAS MATERIALIDADES
Não é preciso navegar pelo mar dos conhecimentos e, ao
mesmo tempo, também não é preciso tentar se comunicar com
seus distintos marinheiros.
Em suas intervenções, Maria do Socorro e seu Lado B
procuram se misturar de tal forma com os atores locais, que
chegam a acreditar que suas diferenças são imperceptíveis aos
321
membros daqueles grupos. No entanto ocorre o oposto. Suas
presenças causam reações inesperadas: espanto, surpresa,
alegria, raiva, desconforto.
Nós, aqui desse LADO B, argumentamos que é neces-
sário pensar ciência, arte e demais como um tecido inconsútil,
constituído de elementos heterogêneos.
Não há fronteiras na construção de conhecimentos. E
todas as formas de expressão e comunicação são importantes
neste percurso.
Consideramos que as usuais tentativas de conceituar o
que seja “ciência”, “arte”, “tecnologia”, etc, terminam por delimitar
espaços, estabelecendo fronteiras que se materializam, por exem-
plo, nas divisões dos campi acadêmicos, dentre outros espaços.
Esta separação empobrece a construção de conhecimen-
tos porque discrimina a presença de qualquer tipo de expressão
de conhecimentos no local que não lhe é destinado.
Como encontrar Maria do Socorro e perguntar pelo Lado B?
Facebook:
https://www.facebook.com/soumariadosocorro
Twitter:
https://twitter.com/soumariasocorro
Blog:
http://sramariadosocorro.wordpress.com/
Email:
Canal Youtube:
Maria do Socorro - Caixa Preta
http://www.youtube.com/watch?v=Pm3Yfe6jA-4
Maria do Socorro - Cabeça (Walter Franco)
http://www.youtube.com/watch?v=qfEk8zNYDGc
Maria do Socorro - Scientiarium V - Momentos
http://www.youtube.com/watch?v=wffDj_stT9E
322
OS AUTORES
Adriano Premebida
Pesquisador | Fundação Amazônica de defesa da Biosfera
Alexandra Cleopatre Tsallis
Professora | Dep. Psicologia Social e Institucional/UERJ
Aline Veríssimo Monteiro
Professora | Dep. Fundamentos da Educação/Faculdade de Educação/UFRJ
Ana Cláudia Lima Monteiro
Professora | Dep. Psicologia/UFF
Ana Lúcia Lage
Professora | IHAC - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton
Santos/UFBA
André Luis Mattedi Dias
Professor | UFBJ - Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e
História das Ciências – PPGEFHC
Arthur Arruda Leal Ferreira
Professor | Instituto de Psicologia /UFRJ
Bernardo Esteves
Doutorando | HCTE/UFRJ
Bruno Foureaux
Graduando | Instituto de Psicologia /UFRJ
Camilla Pires Marcolino
Doutoranda | Dep. Engenharia de Produção /UFMG
323
Cidoval M. Souza
Professor | UEPB - Programas de Pós-graduação em Des. Regional e Ensino
de Ciências e Matemática
Daniela Alves
Professora | Universidade Federal de Viçosa - Departamento de Ciências
Sociais
Daniela Tonelli Manica
Professora | Dep. de Antropologia Cultural, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas / UERJ
Daniele Santos
Mestranda | HCTE/UFRJ
Djalma Thurler
Professor | IHAC/UFBA
Dolores Galindo
Professora | Dep. Psicologia/ UFMT
Edson Jacinski
Professor | UNIV. TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ
Campus Ponta Grossa
Eduardo Nazareth Paiva
Pós-Doutorando | HCTE/UFRJ
Elaine Ribeiro Sigette
Professora / Doutoranda | UFF dep. Administração polo de Volta Redonda
COPPE-UFRJ
324
Fátima Kzam Damaceno de Lacerda
Instituto de Química/UERJ
Fátima Teresa Braga Branquinho
Professora | PPGMA/ Doutorado Multidisciplinar/ UERJ
Gabriel Marcuzzo do Canto Cavalheiro
Doutorando | Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas /FGV
Graciela de Souza Oliver
Professora | Centro de Ciências Naturais e Humanidades/UFABC
Gregory J. Chaitin
Pesquisador Visitante | HCTE/UFRJ
Guilherme José da Silva e Sá
Professor | Dep. Antropologia/UnB
Heloisa Helena A. Borges Q. Gonçalves
Professora | Dep. Engenharia de Produção /UNIRIO
Isabel Cafezeiro
Professora | HCTE/UFRJ, UFF - Instituto de Computação
Ivan da Costa Marques
Professor | HCTE/UFRJ
João Henrique Ávila de Barros
Doutorando | PPGECT/UFSC
José Muniz da Costa Vargens
Pesquisador Visitante | Fundação Oswaldo Cruz
325
Karoline Ruthes Sodré
Graduanda | Instituto de Psicologia /UFRJ
Lucimeri Ricas
Doutoranda | HCTE/UFRJ
Luiz Antonio Joia
Professor | Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas /FGV
Marcelo El Khouri Buzato
Instituto de Estudos da Linguagem/UNICAMP
Marcelo Fornazin
Doutorando | Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas /FGV
Marcia de Oliveira Cardoso
Técnico de TI | NECSO, Instituto Tercio Pacitti
Marcia Moraes
Professora | Dep. de Psicologia/UFF
Márcia Regina Barros da Silva
Professora | Dep. Historia/USP
Marcus Vinicius Barbosa Verly Miguel
Graduando | Instituto de Psicologia /UFRJ
Marcus Vinicius Brandão Soares
Doutorando | COPPE/UFRJ
Miguel Jonathan
Doutorando | HCTE/UFRJ
326
Natalia Barbosa Pereira
Mestranda | Instituto de Psicologia /UFRJ
Paulo Sérgio Mendes
Professor | Secretaria Municipal de Educação de Casimiro de Abreu
Rafael Wild
Professor | Universidade Federal Tecnológica do Paraná
Rejane Peres Costa
Graduanda | UERJ
Raoni Rajão
Professor | Dep. Engenharia de Produção /UFMG
Roseantony Rodrigues Bouhid
Professora /Doutoranda | IFRJ /Programa de Pós-Graduação em Meio
Ambiente/UERJ
Suzani Cassiani
Professora | PPGECT/UFSC
Thiago Novaes
Doutorando | Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, UnB
Virginia M. F. Gonçalves Chaitin
Professora | HCTE/UFRJ
Viviane Fernandez
Doutoranda | Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente /UERJ
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