Interação, Discurso e Espaço Público emAmbiente Digital
Adriano D. Rodrigues (FCSH da UNL)a
Adriana A. Braga (PUC-Rio)b
Resumo:Neste artigo, a partir de uma perspectiva interacional
de Espaço Público, propomos uma leitura genealógica desta
noção, fazendo intervir o funcionamento da memória da
sociabilidade, para abordar a dicotomia público / privado a
partir de uma perspectiva etnometodológica. Buscamos, deste
modo, compreender os métodos utilizados pelas pessoas para
a Licenciado em Sociologia e doutor em Comunicação. Professor
Catedrático emérito da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa. Autor de vários livros, entre eles
Estratégias da Comunicação (Presença, 2001, 3ª ed.), Comunicação e Cultura
(Presença, 2010, 3ª ed.), A Partitura Invisível (Colibri, 2005, 2ª ed.)
e O Paradigma Comunicacional (Calouste Gulbenkian, 2011). Email:
[email protected] Doutora em Ciências da Comunicação e graduada em Psicologia.
Professora do Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da
PUC-Rio. Pesquisadora do CNPq. Autora dos livros Personas Materno-
Eletrônicas (Ed. Sulina, 2008) e CMC, Identidades e Gênero (Ed.UBI,
2005). Email: [email protected]
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constituírem a distinção do espaço público, observando como
a concretizam nos seus comportamentos na vida cotidiana,
tomando como material empírico de observação mensagens
veiculadas em ambientes de Internet. Particularmente,
assumem relevo 1. os processos referenciais pelos quais as
pessoas negociam a formação dos mundos que se convertem em
objetos de troca, de partilha e de ação coletiva; 2. os
pressupostos que formam os quadros ou as fronteiras que
delimitam, tanto os consensos, como os dissensos. A este
propósito observamos a importância do dispositivo de
categorização, dispositivo de negociação da referência que
determina de maneira evidente a constituição do espaço
público.
Palavras-chave: ambiente digital, público, privado,
etnometodologia, discurso.
Para uma abordagem genealógica do espaço
públicoNeste artigo, depois de propormos uma leitura
genealógica do espaço público, fazendo intervir o
funcionamento da memória da sociabilidade, pretendemos
abordar as noções público / privado a partir de uma
perspectiva etnometodológica. Buscamos, deste modo,
compreender os métodos utilizados pelas pessoas para
constituírem a distinção do público e do privado, observando
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como a concretizam nas suas práticas na vida cotidiana,
tomando como material empírico de observação comentários
veiculados em ambientes de Internet.
A nossa abordagem demarca-se tanto da perspectiva
estrutural-funcionalista como da teoria crítica,
nomeadamente da que é apresentada por Hannah Arendt, em
1958, e por Jürgen Habermas, em 1962, perspectivas que
costumam ser adotadas por autores/as que, nos últimos 60
anos, têm procurado compreender as categorias do público e
do privado nas ciências sociais. Na nossa perspectiva não
consideramos estas categorias de maneira substantiva, como
se referissem espaços ou esferas delimitadas por fronteiras
precisas, mas as vermos como dimensões relativas da
experiência coletiva, com as quais as pessoas lidam
constantemente, em função da natureza dos quadros em que
localmente situam suas interações. É por isso que um mesmo
comportamentoc
pode ser considerado ora público, num quadro interacional,
ora privado, noutro quadro interacional. Fazemos nossa a
distinção que John Dewey fazia entre público e privado num
texto de 1927, entre ações que provocam consequências apenas
nas pessoas envolvidas nessas ações e ações que têm
consequências indiretas, para além dessas pessoas. c Damos aqui um sentido lato ao termo comportamento, uma vez que
consideramos como comportamento tanto um gesto, a realização de
uma tarefa, como um discurso. Quando for necessário,
distinguiremos comportamento verbal e comportamento não verbal.
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Tomamos então nosso ponto de partida do fatoobjetivo que as ações humanas têm consequênciassobre os outros, que algumas dessasconsequências são percebidas e que a percepçãodelas leva a um esforço posterior para controlara ação a fim de garantir algumas consequências eevitar outras. Seguindo essa pista, somoslevados a notar que as consequências são de doistipos, aquelas que afetam as pessoas diretamenteenvolvidas em uma transação e aquelas que afetamoutras além daquelas diretamente envolvidas.Nessa distinção encontramos o germe da distinçãoentre público e privado. Quando consequênciasindiretas são reconhecidas e há um esforço pararegulá-las, algo que se assemelha a um Estadoganha existência. Quando as consequências de umaação são restringidas principalmente às pessoasdiretamente envolvidas nelas, a transação éprivada (DEWEY, 1927)
Como vemos, não podemos identificar o público com o
social, porque
o público consiste em todos aqueles que sãoafetados pelas consequências indiretas dastransações a tal ponto que se consideranecessário ter essas consequências tratadassistematicamente. Os agentes públicos sãoaqueles que cuidam dos interesses assim afetadose protegem (DEWEY, 1927).
Também não podemos identificar o público com o Estado,
uma vez que é o público que constitui o Estado como garantia
da regulação das interações públicas das pessoas entre si.
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Gostaríamos, por conseguinte, de chamar a atenção para o
fato de, ao contrário do que muitas vezes se defende, a
fundação ou a constituição do espaço público não ser da
responsabilidade das estruturas, dos sistemas sociais, do
Estado ou das mídias. Como já Gabriel Tarde sublinhava em
1901, o espaço público foi desde sempre constituído pelas
redes difusas e permanentes das interações que as pessoas
estabelecem entre si e em que se envolvem
conversacionalmente de maneira espontânea nos mais variados
quadros da vida cotidiana. Procuramos assim mostrar, a
partir do estudo de materiais oriundos de ambientes
digitais, que aquilo que hoje a internet permite realizar
não é mais do que a tecnicização dessas redes espontâneas de
interação que, desde sempre, estiveram na origem da formação
do público.
Propomos a hipótese de que as diferentes configurações
que a esfera pública foi apresentando ao longo do tempo são
cristalizações historicamente instituídas das redes
espontâneas de interação, que sobrevivem hoje entrelaçadas
umas nas outras, de maneira particularmente complexa, no
imaginário das pessoas. É por isso que achamos importante
começar por recordar a génese de algumas dessas
configurações.
A agora ateniense, a praça do mercado, é habitualmente
considerada a instituição fundadora do espaço público. A
agora era o espaço que, a partir das reformas de Sólon, no
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século V a. C., os Gregos destinavam ao exercício da
cidadania plena, definida pela livre discussão pelos
cidadãos livres, pelos eleuteroi, das questões relevantes para
a organização da vida coletiva da cidade, da polis. Enquanto
espaço de visibilidade, opunha-se aos espaços privados onde
decorria a vida doméstica, onde as mulheres, as crianças e
os escravos estavam subordinados às decisões do pai de
família, do oikodespostes. Essa configuração do espaço público
chegou até nós através da instituição romana da dicotomia
entre público e privado. Embora a agora ateniense e o forum
romano fossem os espaços públicos por excelência,
contrapostos ao espaço privado do oikos grego e da domus
romana, o domínio público estendia-se também às vias, ao
teatro e aos templos, enquanto espaços não reservados, mas
abertos a todos os cidadãos livres. Era nesses espaços de
visibilidade que cada um procurava imortalizar o seu nome
através do exercício da retórica, da lexis e da práxis, quer
das artes quer dos feitos militares.
Na baixa Idade Média, a partir do século VIII, depois
do período conturbado das invasões bárbaras, formou-se uma
nova configuração de espaço público em torno dos palácios. O
palácio era o espaço da notoriedade pública, definido
enquanto espaço da representação do poder dada em
espetáculo, em festas organizadas e apresentadas à
contemplação do povo. Esta publicidade da representação
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terá, nos séculos XVII e XVIII, no barroco e no rococó, a
sua expressão estética mais evidente.
É contra esta modalidade de espaço público que, a
partir do século XIII, assistimos ao progressivo
aparecimento de uma nova configuração de espaço público, sob
a influência crescente da burguesia, formada sobretudo por
comerciantes letrados que habitavam os burgos. É esta nova
configuração de público que está na origem daquilo a que
Jürgen Habermas vai dar o nome de esfera pública burguesa. O
público deixa de ser apenas a designação de espaços de
visibilidade e de notoriedade para passar a ser um ideal de
livre discussão e de crítica. Para o surgimento e o
desenvolvimento desta nova configuração do público
contribuiu evidentemente o aparecimento da imprensa como
dispositivo, ao mesmo tempo, de constituição e de
disseminação da crítica e de formação da opinião pública
esclarecida. As realizações históricas mais evidentes desta
configuração ocorrem, no sec. XVII, em Inglaterra, com o
Revolução Gloriosa, que culminou com a instituição da
Monarquia Constitucional, e, no final do sec. XVIII, com a
Revolução Francesa, que levou ao derrube do Antigo Regime e
à implementação das democracias parlamentares. À vontade do
soberano, a publicidade burguesa contrapunha agora os
imperativos da razão como fundamento do poder. As decisões
vinculativas passavam a ser formadas a partir dos consensos
obtidos a partir da livre discussão racional dos cidadãos
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esclarecidos. É por isso que a democracia burguesa não
compreendia o conjunto da população, mas apenas os homens
que faziam profissão de ser conduzidos pelos ditames da
razão esclarecida, sendo por isso excluídos, não só o povo
iletrado e as mulheres, mas os homens sem poder económico
nem propriedade própria, sobre a qual detivessem domínio
privado.
Importa ainda realçar que é também, no quadro da
configuração burguesa da publicidade, que surge uma nova
concepção do espaço privado, enquanto espaço de intimidade,
dando livre expressão aos sentimentos e aos impulsos do
coração de que o aparecimento dos diários íntimos e das
relações epistolares são as manifestações mais eloquentes. O
surgimento, no século XVIII, do romance enquanto literatura
destinada à exposição ficcional do sujeito representa, neste
quadro, uma nova concepção das relações amorosas. O próprio
espaço doméstico sofre profundas alterações arquitetônicas,
de maneira a subtrair aos olhares e à frequentação de
estranhos e dos convivas os quartos, espaços reservados à
intimidade do casal.
A partir da segunda metade do século XIX, à medida que
a organização industrial do trabalho ia sendo implementada e
que surgia a imprensa de massa, uma nova configuração do
público ia sendo constituída. É neste novo quadro que o
termo publicidade adquire o sentido que hoje conhecemos, de
promoção de produtos e de ideais. O público converte-se
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assim em audiência consumidora das mídias e dos produtos por
elas promovidos. Com esta viragem, é o ideal da livre
discussão e da crítica que é posto em crise. O público, de
sujeito de uma opinião esclarecida, torna-se alvo ou objeto
da publicidade. A esta transformação do público não se
vislumbram ainda hoje novas formas alternativas organizadas
de expressão da esfera pública, a não ser aquela que passam
a revelar as sondagens de opinião, embora se assista ao
ensaio de novas modalidades de irrupção da esfera pública
nas manifestações de uma multiplicidade de movimentos
sociais, mobilizados pelas mais variadas reivindicações. As
sondagens de opinião convertem-se, assim, em instrumentos de
marketing, procurando mais conhecer as tendências de consumo
do público, tendo em vista a eficácia estratégica da
publicidade para a venda de produtos e a inculcação de
ideias, do que o conhecimento das opiniões de cidadãos/ãs
com vista à obtenção de consensos e à formação de uma
vontade política esclarecida.
A partir de meados dos anos 80 do século passado, com
as novas técnicas da informação e a implementação das redes
sociais digitais, uma nova configuração da publicidade tem
vindo a ser implantada. A principal característica desta
nova configuração é a autonomia da esfera pública em relação
às fronteiras nacionais, no âmbito das quais, até então,
estava confinada. Movimentos feministas, gay, pela
despenalização e legalização do aborto, contra a
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austeridade, em favor de toda a espécie de minorias,
ecologistas, contra o G7, antiglobalização atravessam
fronteiras, constituem solidariedades e mobilizam pessoas
dos diversos continentes. Estas novas formas de
solidariedade transnacional fazem-se e desfazem-se quase
instantaneamente nas redes sociais, aparentemente fora de
qualquer enquadramento instituído. Alguns/as autores/as
consideram estarmos perante o advento de novas modalidades
de democracia participativa, enquanto outros identificam
estes movimentos como perca do sentido do território de
enraizamento da experiência, entendendo esta perca como
retorno a modalidades arcaicas de nomadismo (Meyrowitz
1985).
Uma característica das transformações ocorridas nestas
últimas décadas com a generalização dos novos dispositivos
midiáticos e dos ambientes eletrônicos, que costuma ser
indicada, se relaciona com a fragmentação da esfera pública.
Para nós, esta fragmentação não é senão a consumação técnica
de uma das características da experiência moderna. Neste
sentido, não são as redes sociais que a provocam; é antes a
natureza fragmentada da experiência moderna, a natureza
orgânica da solidariedade, que a provoca e que torna
possível tanto a invenção técnica de ambientes eletrônicos,
como a generalização do seu uso. Cada uma das configurações
da esfera pública historicamente realizadas, que acabámos de
apresentar resumidamente, também decorreram de processos de
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fragmentação da esfera pública anterior. Nos materiais que
analisámos, podemos observar hoje um novo processo de
cristalização da experiência fragmentada atual, processo que
faz antever a possibilidade de se constituírem no futuro
novas configurações. Nas interações que ocorrem na internet
podemos observar o esforço de criação de novos princípios
reguladores que enquadrem as consequências dessas
interações, ora potenciando aquilo que é entendido, ora como
positivo e favorável, ora como negativo ou nefasto ao
interesse comum.
Os materiais que analisamos foram retirados de
ambientes de Internet. A nossa intenção foi observar a
maneira como as pessoas se apropriam dos dispositivos
eletrônicos, procurando identificar os dispositivos
interacionais que mobilizam nas suas práticas e as
configurações de esfera pública que resultam destas
práticas. Mas, antes de apresentarmos a nossa análise, uma
breve apresentação da metodologia que seguimos.
Para uma abordagem interacional da esfera
públicaGostaríamos de começar por sublinhar a natureza
interacional da constituição da esfera pública, o fato de o
público resultar dos processos de formação do mundo comum
mútua e reciprocamente partilhado. Neste sentido, assumem
particular relevo 1. os processos referenciais pelos quais
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as pessoas negociam, no decurso das suas interações, a
formação dos mundos de que falam e que se convertem assim em
objetos de troca, de partilha e de ação coletiva; 2. os
pressupostos que formam os quadros ou as fronteiras que
delimitam, tanto os consensos, como os dissensos e as
discussões. Particular relevo merece a estrutura
preferencial da organização dos turnos de fala, pela qual
coordenam constantemente as suas interações.
Com esta abordagem, pretendemos levar a sério a
definição que, já em 1901, Gabriel Tarde dava de público:O público é uma multidão dispersa, em que a influência dos espíritosuns sobre os outros se tornou uma ação à distância, a distâncias cadavez maiores. Enfim, a Opinião, que resulta de todas estas ações àdistância ou em contato, está, de algum modo, para as multidões epara os públicos o que o pensamento é para o corpo. E se, entre estasações de que ela resulta, procuramos qual é a mais geral e a maisconstante, apercebemo-nos sem dificuldade que é esta relação socialelementar, a conversação, completamente negligenciada pelossociólogos (Tarde, 2006: 06)
Ao recordarmos esta definição de público proposta por
Gabriel Tarde, entendemos que a conversação é a “relação
social elementar” que constitui o público. É desta relação
social elementar que as relações sociais midiatizadas se
alimentam e nela que se consumam.
Um dispositivo importante, responsável pela
constituição da esfera pública, é o da negociação da
referência, tendo em vista a formação do mundo comum. Por
mundo comum entendemos o conjunto dos objetos, das pessoas,
dos acontecimentos, dos estados dos objetos acerca dos
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quais, não só podem concordar, discordar, mas sobretudo
discutir e formular posições divergentes. O mundo comum
forma assim todo o conjunto dos pressupostos aceites como
indiscutíveis daquilo que podem dizer e fazer, dos
enunciados e das ações que partilham e realizam em conjunto.
A este propósito, podemos formular como hipótese que o
espaço público é em grande medida constituído, não por
aquilo que as pessoas dizem e por aquilo que fazem, mas pelo
conjunto dos pressupostos que tornam possível, tanto dizer e
fazer aquilo que dizem ou fazem.
A este propósito gostaríamos de realçar a importância
de um dos dispositivos da negociação da referência porque
determinam de maneira evidente a constituição do espaço
público: o dispositivo de categorização. Por dispositivo de
categorização entendemos, na sequência de Harvey Sacks, a
escolha das categorias pelas quais são identificadas as
referências (Sacks 1992, 68-71, 597-600; Schegloff 2007). Os
títulos da imprensa oferecem excelentes exemplos do
funcionamento deste dispositivo:
(1) Sete polícias suspeitos de corrupção (Correio
da Manhã 26.6.2013).
(2) Matemática não satisfaz docentes (Ibid.)
(3) Espanhol de 53 anos usava namorada de 14 para traficar
droga (Jornal de Notícias, 9.7.2013)
13
Em (1), suspeitos de corrupção podem ser identificados por
todo um conjunto de categorias. Podem ser homens ou
mulheres, jovens ou adultos, polícias de baixa ou alta
patente, residentes na cidade ou no campo, atletas ou não
atletas, afiliados ou não afiliados a um partido político,
altos ou baixos, e assim por diante. Ao escolher identificar
como sete polícias os suspeitos de corrupção, o título desencadeia
processos inferenciais diferentes dos que desencadearia se
utilizasse qualquer das outras categorias, mobilizando os
pressupostos dos saberes que as pessoas associam à categoria
profissional “polícias”, nomeadamente o pressuposto de que
os polícias são agentes responsáveis pelo combate à
corrupção. Deste modo, o que torna notável a notícia é o
fato de serem os próprios agentes responsáveis pelo combate
à corrupção que são suspeitos de corrupção. Em (2), é
acionado o pressuposto de que os docentes, que constituem a
categoria responsável pelo ensino da matemática, para tornar
notável a notícia de que são eles próprios que estão
insatisfeitos pelos resultados dos exames de matemática dos
alunos. Em (3), é acionado o pressuposto de que um espanhol
de 53 anos deve cuidar do comportamento de uma jovem de 14
anos, para tornar notável a notícia tanto do seu
envolvimento amoroso com essa jovem como da sua utilização
para tráfico de droga. Deste modo, o dispositivo referencial
destes títulos da imprensa constitui e encena os públicos
14
dos polícias, dos corruptos, dos docentes, dos alunos de
matemática, dos adultos, dos traficantes de droga.
Uma das características da experiência moderna consiste
na diferenciação do espaço público, em função do processo de
fragmentação dos diferentes domínios da experiência numa
multiplicidade de campos e da autonomização dos diferentes
dimensões da experiência (Rodrigues, 2011). Cada uma das
pessoas pode assim assumir em diferentes situações uma
multiplicidade de identidades, de acordo com exigências
diferentes e por vezes divergentes. Por seu lado, nem sempre
os juízos positivos acerca de uma proposição são
convergentes com os juízos positivos acerca da sua bondade
ou da sua beleza, gerando-se assim uma conflitualidade
insanável na partilha do mundo comum.
No quadro da experiência moderna, ao contrário do que
podemos observar no quadro da experiência tradicional, as
relações de solidariedade ultrapassam o âmbito do território
de pertença e deixam de abranger o conjunto dos domínios da
experiência. As pessoas estabelecem relações de
solidariedade com uma grande diversidade de públicos,
consoante os domínios da experiência em que situam os seus
comportamentos. A esta multiplicidade de relações de
solidariedade dava Emile Durkheim o nome de solidariedade
orgânica (Durkheim, 1991). Cada um de nós faz parte de
públicos muito diversificados, estabelecendo com cada um
formas de solidariedade distintas decorrentes de modalidades
15
diferenciadas de reconhecimento. Podemos ser solidários com
os nossos colegas de trabalho, com as pessoas que pertencem
a um partido político, com os frequentadores de um clube
desportivo, com os membros de uma associação filantrópica,
com os cidadãos do nosso país. Cada uma destas relações de
solidariedade forma públicos distintos, porque em cada uma
delas, nos reconhecemos diferentes, adotamos comportamentos
diferentes, somos reconhecidos como parceiros de interesses
e de visões do mundo próprios que são comuns aos seus
membros, possuímos conjuntos de marcas simbólicas próprias
que partilhamos com os membros de uma grande diversidade de
públicos diferentes.
A consumação do processo de constituição da natureza
orgânica da solidariedade que vivemos hoje torna
problemática a exigência do reconhecimento mútuo e
recíproco. Antes de mais porque o reconhecimento se tornou
um valor relativo. Podemos nos reconhecer e ser
reconhecidos, por exemplo, como membros do público
académico, ser reconhecidos pelos nossos colegas e
reconhecer os que partilham conosco a mesma profissão e não
nos reconhecermos nem ser reconhecidos no mundo político, no
mundo econômico ou no mundo desportivo. A nossa opinião pode
ser escutada e respeitada por um dos públicos em que nos
envolvemos e ser completamente ignorada por outros.
A natureza fragmentária da experiência moderna
decorrente da especialização dos seus diferentes domínios
16
agudiza as dificuldades de definição do bem comum e do
interesse geral, entendidos como resultado daquilo que as
pessoas particulares ou associadas nos diferentes campos
entendem ser o bem comum e o interesse geral. A partir do
momento em que o público se torna a instância legítima,
torna-se cada vez mais difícil satisfazer os interesses de
cada um e definir aquilo que é o bem comum. Como um exemplo,
podemos citar uma pesquisa realizada pelas organizações
Globo sobre as matérias mais acessadas em seu jornal on-
line. Nenhuma das dez matérias mais procuradas era composta
por notícias sobre economia ou política, por exemplo, mas
por temas como bizarrices, futebol ou telenovelas. Os
trending topics do Twitter, em levantamento recente
(Vasconcelos, 2013), mostram tendência similar. Isto é, a
diferença entre ‘interesse público’ e ‘interesse do
público’, tão cara ao jornalismo, continua uma questão
problemática atual.
Esta dificuldade aumenta se tivermos em conta que
muitas das decisões a tomar no presente têm consequências no
futuro que, não só é impossível apreciar devidamente, mas
para as quais é difícil mobilizar os interesses atuais do
público. Uma das maneiras mais interessantes de observar a
maneira como lidamos com esta multiplicidade de públicos e,
por conseguinte, de domínios de reconhecimento é observar os
dispositivos de categorização de pertencimento que as
17
pessoas mobilizam no quadro das interações em que se
envolvem.
Um bom exemplo da utilização de categorizações de
pertencimento como mecanismos de distinção é a categoria
‘salsinha’. Criada pelo blogueiro Carlos Cardoso, trata-se
de uma categoria de acusação. Uma boa introdução ao tema
pode ser a seguinte série de definições, obtida no site
Yahoo Respostas:
O que é uma pessoa "salsinha"?
putz, ou eu tô ficando velha ou a gíria é muito nova...
1. Querida é um termo usados pelos editores do Meio Bit parachamar, ao mesmo tempo, em uma só palavra, um indivíduo de:estúpido, ignorante, imbecil, apedeuta, burro, anta, mané, baixoQI, bucéfalo e sem bom senso. Uma pessoa indigna de serconsiderada um Homo sapiens sapiens.
2. O termo salsinha, especificamente, foi cunhado por umsujeito chamado Cardoso. Ele afirmou que num EEG, 90% dos usuáriosde Internet não teriam ondas diferentes de uma salsinha.
3. Para mim é uma pessoa igual a um enfeite, sem grandeconsistência, é pouco apreciada por seu valor real. Coloca-se nocentro dos grupos, linda, novinha e só se percebe inutil ao serdeixada a um canto, jogada fora. Porém, é junto aos descartadosque tem a chance de se transformar. Pobres e famintos, osdesvalidos, disputam seu frescor.
O blog Meio Bit, referido na primeira resposta, é
mantido por Carlos Cardoso, referido na segunda. Trata-se de
um blog dedicado a assuntos de tecnologia computacional,
programação e novidades do mundo da TI. Um espaço para
experts, prestigiado na blogosfera e bastante frequentado, o
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que se reflete em um altíssimo número de acessos. (sobre
este tema, v. Figueiredo, 2013). Neste meio, Cardoso é
célebre por sua verve ferina e comentários mordazes. Um de
seus alvos preferidos é justamente a figura do “salsinha”,
um termo criado por ele para descrever o visitante ingênuo
que, ao comentar os textos publicados em blogs, manifesta
seu desconhecimento sobre tecnologia, e é sistematicamente
alvo do deboche de Cardoso e seus followers, como nos exemplos
a seguir:
1. Apareceu a maior salsinha de todos os tempos.Um tal de Eugenio D angelo, passou pelo Blog do Opera Brasil edeixou um comentário que estou até agora tentando entender ondecomeça e termina, e o que ele quer com aquele comentário.
“… Esta dificil de conviver com esses O.S. obtusos, oWindows precisa de Hard Disk ! Que porcaria ! Eu jah mandei E-mailpara aquele dinossauros da Microsoft e a atençao que eu tive delesfoi zero !
NHAAAAAC ! Comi o rabo deles e eles nao sentiram que o rabodeles perdeu a ponta, pois foi abocanhado com uma dentada eseparado do resto da cauda, e eles, o cerebro daquelaentidade/organismo primitivo ainda nao percebeu ! O que eu dissepara eles ? Que era para fazerem uma versão para celulares daquelewindows e que rodasse compativelmente com os demais… nada ! Nãoescutam ! O Cérebro desse dinossauro nao capta o estimulo ! Jahfalei para eles façam um Windows mais Leve, que nao precise deHard Disk que rode num NETBOOK …” 2. Elas estão se espalhando mesmo…
Entrei no link e realmente é impossível entender o que eleestá falando… parece que ele foi picado por um Stallman radioativoraivoso usando LSD e geneticamente manipulado…Onde podemos encontrar um herbicida adequado????Fthang! 3. WORNING! É a invasão das salsinhas assassinas radioativas doespaço, ou o Gokernel deu cria. }:)
19
4. Po, coitado do piá! Ao menos, pela foto, ele deve ter no máximo12 anos
5. Essas crianças de hoje em dia estão cada vez mais sapequinhas 6. Na hora eu ri tanto, que soltei palavrão, escrevi de qualquerjeito e quase que sai um momento salsinha meu, também.
7. meodelz… de onde sai uma criatura infernal dessas? Deve seralgum recém migrado do Konqueror. Pow… não cola(resume)/linkadireto(usa o tinyurl) essas as coisas aqui, vai atrair ele paracá. 8. Meu chute: o cara está decepcionado com peso do Vista e querque a MS faça uma coisa mais leve, que possa inclusive rodardireito em discos flash que vêm em netbooks mais baratos.
9. Só que ele precisou de mais de 1000 palavras para falar isso.
10. Só para posicioná-los… Eu parei de ler nos updates de 15 deSetembro!!! E O CARA CONTINUA LAH! :jawdrop:
Queria descobrir o mail desse cara…
No caso acima, podemos fazer algumas inferências sobre
o ‘salsinha’ em questão. Ele provavelmente é um adolescente,
que evidenciou seu desconhecimento sobre TI em uma longa
pergunta (‘mais de 1000 palavras,’ segundo o trecho 9).
Apesar de certa condescendência com sua inexperiência
juvenil, manifesta no trecho 4 (‘Pô, coitado do piá!’), o
tom geral dos comentários é de cáustica impiedade. Outro
ponto que se destaca é o uso de termos técnicos e
referências a elementos do universo da programação de
computadores, como a referências ao Konqueror, browser do
sistema Linux ou ao ataque de um “Stallman radioativo raivoso
usando LSD e geneticamente manipulado” (trecho 2),
20
referência a Robert Stallman, ativista do software livre. O
uso destes e de outros elementos de conhecimento restrito a
iniciados (como siglas e abreviaturas técnicas), além de
maneirismos como ‘meodelz’ (‘Meu Deus!’) opera como um
mecanismo de categorização de pertencimento. Quem sabe,
sabe, e pode ocupar aquele espaço com a autoridade e a
arrogância dos incluídos. Quem não sabe o que essas coisas
significam, deve permanecer calado, sob pena de ter sua
ignorância exposta publicamente, como uma ‘salsinha’.
É por isso importante dar conta dos processos que as
pessoas seguem para negociarem concretamente nas interações
em que se envolvem, no dia a dia, as fronteiras que
delimitam aquilo que entendem ser público daquilo que
entendem preservar como da esfera privada. Pela importância
que adquiriram as redes sociais, procuramos mostrar como as
pessoas se apropriam destes ambientes digitais para esta
negociação.
Processos de negociação das fronteiras da
esfera pública e privada
Nas interações discursivas ocorrentes em ambientes
digitais, existe uma ampla margem de manobra para a
deliberação e o estabelecimento de regras para organizar
aquelas interações. Essa regulamentação in statu nascendi
apresenta algumas especificidades que vale a pena destacar.
21
Devido ao pouco poder de punição ou de coerção, essas regras
só funcionam efetivamente se forem resultantes de um
processo de negociação. Desta forma, em ambientes digitais
de uso público, conflitos emergem com frequência, e no seu
arbitramento, o recurso a essas regras é essencial. Essas
regras – muitas vezes tácitas – perfazem uma espécie de
‘moralidade digital’, que obedece a imperativos
fundamentados em uma moral religiosa, civil ou simples bom
senso, como nos exemplos a seguir, retirados de um fóruns de
discussão sobre que informações pessoais seria adequado ou
não postar na internet:
1. Miguel: Rede social não é lugar para desnudar a alma, publique ideias, mas guarde o coração para quem está perto o suficiente para olhar em seus olhos... Quem joga sua alma no ventilador da internet corre o risco de nunca mais conseguir juntar seus pedaços. 'Preserve-se', intimidade não é para 'amigos do Facebook'e sim para amigos do face a face.
2. Ana Paula: as pesoal estão se deixando levar por esse mundo virtual e estão expondo exageradamente sua vida pessoal,participo de redes sociais, entretanto uso como meio de evangelização,postando mensagens,evitando fotos, enfim,como diz a palavra \”Tudo é permitido,mas nem tudo me convém\”.
3. Tatiana: Eu não publico nenhuma foto de minha filhota em rede social, nem foto minha gosta de publicar, primeiro que existem muitas pessoas mal intencionadas nessas rede social e são usada como um jeito moderno de fofocar sobre a vida dos outros. Sinceramente não gosto. 4. Téo: As pessoas fazem isso para ganhar likes.O número de likes é muito maior quando tem bebê na foto. Patético.
5. Denise: AFFFFFFFFFFFFF pode postar alguma coisa??? Quanta frescura! Concordo com o negócio de criança pelada, é muita falta de noção, mas o resto? Por favor...basta postar as coisas com
22
visualização apenas para seus amigos e realmente adicionar apenas seus amigos. Aliás, não compreendo a mente de pessoas que postam coisas com visualização pública, a menos que seja algo como campanhas e tals, e pior, pessoas que adicionam quem não conhece!
Nos comentários acima, fica evidente o entrecruzamento
de diferentes lógicas (civis, religiosas e morais),
acionadas para fundamentar o apelo à constituição de regras
para a atividade on-line. Cabe destacar nestes trechos a
crítica moral ao uso de recursos para ampliação dos ‘likes’
(como usar fotos com bebês, no trecho 4), bem como a posição
de dissenso expressa no comentário 5, em que a comentadora
denomina ‘frescura’ às sugestões cautelosas até então
expressas naquele espaço. Não obstante, ela mesma reconhece
um limite, ”o negócio de criança pelada”.
Outro ponto de intensos debates diz respeito ao manejo
da língua portuguesa por participantes. Aqui, a gramática é
convertida em uma espécie de valor moral, e erros de
português são facilmente tomados como confissões de falta de
caráter, como nos exemplos abaixo:
1. ô Spleeny, indiota. Na internet não é lugar para formalidade,
podemos ser coloquial ...ô Zé mané..?
2. Marloned
Coloquial sim mas estirpar, esquaterjar e detonar a pobre língua
portuguesa já é demais né? Existe diferença entre uma coisa e
outra.
23
Tem gente por toda internet que parece que nunca aprendeu a
escrever, seriam o que? os analfabetos informatizados? Faça-me
o favor…
3. leckka
Indiota???????????????????? O que é isso?
Não é uma questão de ser ou não formal, mas também não precisa assassinar o português, né?! E além do mais, você não precisa ficar assim tão exaltado, relaxa!Talvez o outro participante não teve a intenção de te ofender ou te deixar chateado.
A negociação de conflitos dessa ordem requer sempre uma
disposição favorável para acalmar os ânimos, como no
comentário 3, em que a participante demanda que o ofensor
‘relaxe’, mas não sem antes criticá-lo por ‘assassinar o
português’.
Um outro aspecto desta infindável disposição para
negociar presente nos ambientes digitais diz respeito às
sanções a serem aplicadas, bem como aos canais adequados
para expressar ou denunciar ações consideradas ofensivas. Na
sequência a seguir, os/as participantes debatem como agir
com relação a condutas criticadas no contexto do fórum de
discussão de um jogo on-line multiplayer:
1. Paladino Humano 90Fórum não é lugar para denuncias, inclusive teve pessoas com contas suspensas por claramente quebrar a regra, concordo com o ocorrido não, mas faça denuncia no local correto que é por ticket,
24
afinal fazendo algo da maneira errada se torna tão errado como o denunciado.
2. Sacerdotisa Morta-viva 90Olha Nit, o que escrevi não foi nenhuma denuncia, pelo menos não era o que eu pretendia, mesmo porque acredito q a maioria sabe bem... desculpa se acabei citando nomes e causando mal entendimento, mas a minha intenção continua sendo de indignação. (…)
3. Anjos do ApocalipseAcredito que não fez de proposito mas isso poderia ser consideradodenuncia, como assédio sem nome e uma discussão geral concordo atécom o ponto de vista citado aqui (…)Infelizmente se tem que vende é porque tem quem compra, bom tal pessoa é culpada sim, mas mais culpado é quem compra o gold e com isso continua incentivando o usuário a vender e com isso farmar gold para tal. Aonde faço a denúncia sobre quem vende gold? Realmente a situação tá difícil, cada vez mais dias essa mulher está controlando o servidor. Se alguem souber de algum tópico ensinando a fazer ticket que por favor me mostre.
4. HyshaPutz, no jogo, passa o mouse ali naquela interrogaçãozinha vermelha do lado do computadorzinho onde você vê se tá com lag. Clica ali e depois em Ajuda. Abre um pop-up com opções de suporte e denúncia. Ou você pode clicar no ícone do indivíduo suspeito como botão direito e denunciar.
5. Skull Educar as pessoas é o mais correto, alguém comprou e você sabe denuncie o comprador, assim a pessoa vai ficando sem mercado porque vão saber que estão banindo/suspendendo o comprador e esse não vai ter dinheiro e tempo sempre para fazer outra conta.
A maioria das pessoas que fazem isso estão é querendo atenção e não resolver o problema.
Nos exemplos acima, vemos que, no comentário 1, uma
ação de reporte (denúncia contra um/a jogador/a) feita no
fórum é criticada pela inadequação do procedimento – ao
invés de fazê-lo no lugar “correto”. A pessoa que fez o
25
reporte assume que o fez, mas justifica sua ação em nome da
indignação e pede desculpas por citar nomes. Um terceiro
comentador aceita o pedido de desculpas (“acredito não ser
de propósito”), e propõe medidas para coibir a prática
ilegítima de “comprar gold”, isto é, de obter uma vantagem
indevida no jogo por meio de recursos financeiros reais. A
síntese dessa discussão, proposta no comentário 5, enfatiza
um valor abstrato, a necessidade de educar as pessoas”, bem
como a reprovação moral de quem age movido por vaidade e não
para resolver o “problema”.
* * * * *
As interações ocorrentes em ambientes da Internet
apresentam aspectos que exigem uma caracterização
específica, a partir de uma metáfora dramatúrgica,
distinguindo o comportamento social em duas categorias
amplas a que, seguindo a proposta de Goffman, damos o nome
de bastidores (backstage) e fachada ou palco (front) (Goffman
1998: 29). Segundo essa terminologia, quando as pessoas se
encontram no palco de atuação de seus papéis sociais,
geralmente são educadas, ao passo que, na região de
bastidores elas criticam, ridicularizam ou reclamam dos
outros. A comunicação estabelecida nestes ambientes muitas
vezes trata de assuntos pessoais, mesmo íntimos, e é
expressa através de uma linguagem que é típica de
26
bastidores, aproximando-se muito da fala, apesar de seus
registros se darem através de textos escritos, gerados a
partir do número restrito de caracteres de um teclado
(Barnes, 2004). Sendo assim, os ambientes da atividade on-
line, são descritos por muitos/as pesquisadores/as como
espaços que se inscreveriam em uma indistinta fronteira
entre o privado e o público. Entretanto, a partir da
aproximação com dados empíricos, percebe-se que a distinção
entre espaços públicos e privados é feita de modo claro por
participantes da interação.
Apesar do assunto tratado muitas vezes se aproximar de
tópicos de foro íntimo, o uso que participantes fazem dos
ambientes digitais marca claramente os limites entre o que é
intimidade e o que é publicável. O ambiente dos blogs, por
exemplo, é local de encontro. Alguns participantes
frequentemente estabelecem relações para além do espaço
digital público e utilizam vários recursos técnicos de
comunicação, como ligações telefônicas, WhatsApp, listas de
discussão restritas e e-mail, todos eles meios de
comunicação de uso privado.
As atividades on-line estão inseridas em condições
práticas de uso, utilizando-se de recursos de outros
contextos comunicacionais em combinações específicas de
acordo com a demanda do caso de uso em questão. Tais
atividades não parecem substituir atividades tradicionais,
mas funcionar como seus complementos ou transformações.
27
O estatuto e os limites entre público e privado nos
ambientes digitais são alvo de grande interesse entre
pesquisadores/as das atividades on-line. Entretanto, na
abordagem desses aspectos, há muita contradição e mesmo uma
confusão de níveis. Enquanto alguns/as se reportam à
natureza e teor dos conteúdos veiculados, outros/as se
referem a aspectos técnicos destes espaços, gerando
contradições conceituais. Por parte dos/as usuários/as, é
possível haver alguma ambiguidade com relação ao caráter
público e privado desses espaços, na medida em que, na
maioria dos foros de discussão, por exemplo, um mesmo e
pequeno número de participantes escreve a maioria das
mensagens, criando a impressão de que o grupo seja menor e
mais íntimo do que de fato é. A natureza pessoal de muitas
conversações on-line também contribui para essa impressão. O
espaço de troca de e-mail pode ser considerado privado, na
medida em que envolve uma relação entre duas pessoas, mas
por outro lado, se pensarmos que as mensagens trocadas podem
ser lidas pelos administradores do sistema ou resgatadas do
disco rígido mesmo depois de terem sido deletadas, ou ainda,
podem ser salvas, encaminhadas ou distribuídas pelos/as
destinatários/as, o e-mail poderia assim ser considerado
espaço público (Barnes, 2004).
Nem todos, usuários/as ou pesquisadores/as, têm a mesma
impressão da natureza pública vs privada dos ambientes. As
mensagens introdutórias de boas-vindas dos provedores
28
geralmente oferecem informações específicas a esse respeito,
mas é a partir do uso cotidiano que os participantes desses
contextos criam suas estratégias pessoais de comportamento.
Nesse sentido, fica evidente no contato com informantes que
não há dúvidas quanto ao caráter público, sem ambiguidade,
onde afirmam regular o teor e o conteúdo do que veiculam em
suas mensagens pessoais, considerando e gerenciando a
impressão desejada frente àquele círculo de pessoas, em um
âmbito mais restrito, e às pessoas em geral, em um âmbito
mais amplo.
Os diversos meios de comunicação empregados por
participantes em suas interações comunicativas suscitam uma
questão importante acerca da especificidade de cada meio.
Acreditamos que um elemento significativo desta escolha
possa ser encontrado no caráter “público” ou “privado” de
cada meio, isto é, um fator importante na escolha desta ou
daquela mídia pode ser encontrado na restrição implícita à
participação. Assim, os blogs seriam espaços declaradamente
públicos, que exigem todo cuidado no que tange ao controle
da informação veiculada. É importante deixar claro que o
grau de publicitação/privacidade de um meio não é um
atributo inerente a ele, mas uma opção de utilização: desta
forma, uma lista de discussão tanto pode ser pública (aberta
a qualquer participante) quanto privada (regulação da
entrada de participantes por convite ou seleção do/a
moderador/a).
29
A situação demanda seu ambiente de ocorrência. Mesmo
que os/as participantes saibam, por exemplo, que o provedor
pode ter acesso aos conteúdos veiculados, interessa mais
diretamente a cada um que o amigo não vá ler, que a mãe não
tenha acesso, que participantes moralistas não indiquem
linhas de comportamento, ou ainda, nenhum/a visitante
anônimo/a irrompa no ambiente de modo agressivo. Para o
provedor, os/as participantes parecem não se importar que os
conteúdos estejam disponíveis. Para os propósitos de quem
usa, para todos os fins práticos, a lista é privada.
Nos labirintos da rede, entender os graus de
privacidade e publicidade de cada ambiente é uma competência
importantíssima. Na medida que as relações interpessoais
travadas ali se estreitam, participantes retiram-se para
ambientes mais discretos, onde possam tratar de assuntos e
conteúdos mais íntimos e pessoais. Segundo dados de
entrevista, quem frequenta sabe que o ambiente de
comentários é local público, mas essa vivência se concretiza
na forma de algum comentário que irrompa ali. Nos trechos
abaixo, de entrevistas retiradas de pesquisa preliminar
(Braga, 2008), a ambiguidade na percepção do caráter do
ambiente se dá nos seguintes termos:
Desde que comecei a frequentar blogs, sempre soubeque tudo que escrevíamos era público. Mas posso dizerque o sinal de alerta sempre toca mais forte quandoalguma "novata" chegava dizendo: "leio vocês há umtempão mas nunca comentei..." Nessas ocasiões eucomparava o número de acessos diários com a
30
quantidade de pessoas que comentava. Por aí, a gentepode se dar conta de que tem muito mais gente lendodo que escrevendo. O número de acessos diários émuitas vezes maior que o número de comentários(Luiza, em entrevista).
Com o aumento da audiência, uma estratégia observada
pelos grupos é criar um grupo de discussão restrito para
abrigar “os assuntos mais íntimos”, conforme depoimento:Quando criei o nickname, minha intenção até era podercomentar qualquer tema sem me preocupar com aexposição. Mas é claro que em poucas semanas já tinhamostrado fotos, conhecido várias das amigas digitaispessoalmente... e o tal anonimato foi pro espaço. Noinício, pensei que me sentiria à vontade para falarde assuntos mais pessoais, mas com o tempo acabeiconstatando que a internet não é o melhor ambientepara isso. Aliás, quando as "comentadoras" maisassíduas começamos a sentir necessidade de conversarsobre assuntos mais pessoais, criamos um grupo dediscussão, que não pode ser localizado pela busca enão tem os arquivos disponíveis para não-membros.Desta forma, conseguimos achar uma solução parapodermos conversar nossos assuntos mais íntimosmantendo a facilidade da internet. (Flox, ementrevista).
Participantes encontram nas facilidades das ferramentas
atuais da Web veículo para suas manobras pessoais. Nos
ambientes digitais privativos, encontram-se para “conversar
os assuntos mais íntimos,” recorrendo aos recursos
oferecidos para não serem localizados por sistemas de busca
e compartilharem arquivos apenas entre o grupo. Ou seja, a
integração crescente do grupo estabelecido demandou espaços
que ultrapassavam o limite público do site.
A palavra usada como parâmetro de busca pelo/a
31
usuário/a para chegar até ao site é um recurso disponível,
assim como o provedor de origem e o número de IP da máquina
utilizada. Não parece haver dúvidas quanto à distinção entre
público e privado com relação aos espaços da rede:
chris: ó, um dia eu conto uma podraça do aécio que cês
vão morrer de ódio, mas tem q ser em off. (...)
No comentário acima, Chris afirma saber “uma podraça do
aécio”, se dispondo a contar, “mas tem q ser em off,” na
medida em que dizer algo contra alguém sem provas em um
espaço público poderia ser enquadrado como calúnia ou
difamação, e assim configurar um crime.
Na ordem da interação digital, há um uso interessado
das diferentes estruturas da Web, a propósito de diferentes
níveis de privacidade e exposição pretendidos. Os dados
permitem relativizar as frequentes referências na literatura
da área à Internet como espaços de fronteiras indefinidas
entre os âmbitos público e privado. Se, por um lado, a
Internet oferece uma vitrine para ser visto/a pelo mundo,
elemento fulcral na constituição do chamado poder das
mídias, a desejada visibilidade midiática; por outro,
oferece recônditos esconderijos, que oferecem a privacidade
e o conforto de quatro paredes, no sentido de poder-se estar
com alguém, longe de olhos alheios. Ao exercerem as
atividades on-line, participantes demonstram plena
competência social e tecnológica na escolha e manejo de
32
diferentes meios e ambientes conforme a demanda específica
de cada situação.
Do ponto de vista interacional, a conduta em ambientes
on-line é regulada por protocolos tácitos, em processo de
elaboração. A ausência de regulação formal – por meio de
legislação específica, como no caso da TV, por exemplo – faz
com que a produção de representações culturais no contexto
digital seja autorregulada por constrangimentos
interacionais, na forma de críticas, interpelações, ou mesmo
de estratégica indiferença. Entretanto, a produção de
representações culturais para difusão na arena pública
demanda responsabilidade social. Em público, agentes ou
representantes de outros setores da sociedade demandam
negociação com relação a interesses diversos, gerando
críticas, interpelações, adesões e conflitos.
ConclusãoO percurso que seguimos aponta para uma visão da esfera
pública, não como uma realidade que possamos encontrar e de
que possamos definir os contornos, mas como um processo em
que os seres humanos se envolvem, tendo em vista encontrar a
maneira de viverem em comum ou, como dizia John Dewey
(1954), de fazerem comunidade.
Dito de outro modo: a esfera pública não existe, mas
projeta-se como um ideal que os seres humanos prosseguem
constantemente mas que nunca é completamente atingido. Em
33
cada sociedade e em cada época, este ideal foi apresentando
configurações que resultaram de processos historicamente
inventados. As pessoas hoje, tal como ontem, estão
constantemente envolvidas num processo regulado pela relação
deste ideal com as configurações que este ideal de público
vai apresentando ao longo da sua vida.
Verificamos também neste domínio, a lógica paradoxal da
vida social, dado que o ideal de esfera pública decorre, por
um lado, dos comportamentos em que as pessoas adotam por
ocasião das interações em que se envolvem, mas ao mesmo
tempo, estes comportamentos ajustam-se em permanência ao
ideal de esfera pública que eles próprios criam.
As exigências deste processo são reguladas por
princípios ambivalentes e formam princípios que se situam a
montante das regras e das normas que regulam os
comportamentos coletivosd. A estes princípios podemos dar o
nome de constrangimentos ou vínculos, no sentido que a
d Fazemos aqui a distinção entre princípios de natureza distinta,
a que damos o nome de regras, de normas e de constrangimentos. As
regras são princípios que se aplicam para executar comportamentos
que elas constituem ou fazem existir; as normas são princípios a
que se obedece para adotar os comportamentos de acordo com aquilo
que estabelecem; os constrangimentos são condicionantes dos
comportamentos e por isso não se aplicam nem se lhes obedece,
impõem-se por força das circunstâncias e o mais que se pode fazer
é procurar contorna-los.
34
Escola de Palo Alto dava à expressão bind (Watzlawick,
Beavin & Jackson 1993).
A tecnicidade dos seres humanos parece equivaler assim
a uma mera tecnicidade de uso, deste modo provocando a
generalização da identidade do sujeito ou de manipulador/a
de dispositivos técnicos. Fazemos nossa a exigência de uma
formação técnica dos cidadãos que os habilite a compreender
a natureza da tecnicidade como condição de formação plena
para a cidadania, exigência que já Gilbert Simondon
formulava, nos final dos anos 50 do século passado (Simondon
1989: 106-112).
Na constituição da esfera pública, as pessoas estão
constantemente confrontadas com situações que as obrigam a
escolher entre exigências contraditórias. É o caso, por
exemplo, das escolhas que têm que fazer entre o respeito da
igualdade e o reconhecimento das diferenças, quando estão em
jogo questões que se prendem com as decisões acerca do
direito da igualdade versus diferença de género, de
orientação sexual, de repartição dos recursos, da expressão
pública de símbolos particulares da identidade cultural e/ou
religiosa de comunidades minoritárias, numa palavra, acerca
das questões fraturantes, para as quais não é possível
encontrar soluções consensuais.
De todas as questões fraturantes, as que mais
dificuldades apresentam para a constituição de consensos são
35
as questões relativas à delimitação das fronteiras de
situações limite, tais como as que se relacionam com a
delimitação das fronteiras da vida, da morte, do universo.
Como constituir um público dos que aceitam a legitimidade do
aborto antes de determinada data de gestação, da eutanásia,
de uma fronteira da morte ou de uma fronteira delimitadora
do universo? Afinal, se observarmos com atenção cada uma das
questões em torno das quais um público pode ser constituído
descobrimos que todas se relacionam com a impossibilidade de
delimitação consensual da fronteira das realidades que dizem
respeito a essas questões. É essa impossibilidade que está
na origem dos constrangimentos a que estão sujeitas as
relações intersubjetivas responsáveis pelo processo de
institucionalização das diferentes dimensões da vida
coletiva. Por onde passa a linha delimitadora, por exemplo,
da diferença sexual, da identidade cultural, da identidade
nacional, da crença religiosa?
Neste sentido, é particularmente interessante seguir de
perto a maneira como as pessoas hoje se confrontam com estas
questões e observar os processos que utilizam e os
procedimentos que adotam para, localmente, encontrar
maneiras de contornar os princípios paradoxais que
constrangem os seus comportamentos e as suas decisões.
Com este texto, pensamos ter mostrado que as
configurações históricas da categoria do público, e da sua
conversão na categoria abstrata de esfera pública, que
36
apresentamos na primeira parte do nosso texto, não são
realidades substantivas, mas resultam de processos
interacionais que seguem a lógica ambivalente da
sociabilidade. São idênticos processos interacionais que
observamos hoje nas práticas sociais que se desenrolam nos
ambientes digitais. É provável que destes processos resultem
no futuro novas configurações do público apropriadas às
exigências e aos condicionamentos dos novos dispositivos
técnicos.
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