A caricatura em Lourenço Mutarelli
The caricature in Lourenço Mutarelli
Guilherme Mariano Martins da SILVA
Mestre em Letras, área de Teoria Literária, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho, UNESP, campus de São José do Rio Preto-SP. Atualmente, é orientador
educacional online do curso de Pós-graduação a distância da Unesp, programa REDEFOR
(Rede São Paulo de Formação Docente), curso de especialização em língua inglesa. Atua
também como professor do Programa de Graduação em Letras da Faculdade de José
Bonifácio-SP, área de concentração: Literaturas de Língua Portuguesa;
E-mail: [email protected]
RESUMO
O presente trabalho pretende explanar a relação entre o traço de Lourenço Mutarelli e a
estética caricatural, como conceitualizada por Charles Baudelaire em Escritos sobre arte
(1998), assim como a estética grotesca, como teorizada por Bakhtin (1987) ao estudar a
presença do grotesco na cultura medieval. A partir de uma pesquisa diacrônica da evolução
etimológica e tipológica dos termos caricatura, grotesco e belo, realizar-se-á uma análise
sincrônica da composição do desenho “carregado” desse estilo/gênero nas composições
gráficas do artista, assim como o emprego desta estética grotesca nos romances estritamente
textuais do autor. Especificamente, uma comparação do uso desta estética no romance gráfico
Transubstanciação (1990) e no romance O cheiro do ralo (2011), de modo que fique claro
como o procedimento estético transita tanto na característica visual quanto textual, tornando-
se um elemento estrutural que se impregna na superestrutura das obras, demarcando um traço
estilístico do autor. Neste sentido, o foco do trabalho é buscar estabelecer um paralelo entre
forma e conteúdo como proposto por Fedric Jameson em Political unconscious (1995).
PALAVRAS-CHAVE: Lourenço Mutarelli. Inter-estruturas. Caricatura. Grotesco.
Estética.
ABSTRACT
The present work intends to explain the relationship between Lourenço Mutarelli’s lines and
the caricature aesthetic as conceived by Charles Baudelaire in Escritos sobre arte (1998), as
also the grotesque aesthetic theorized by Bakhtin (1987) in his studies about medieval culture.
From a diachronic research of the typological and etymological evolution of terms as
“caricature”, “grotesque” and “beauty”, it will be made a synchronous analysis of the “heavy”
drawing composition of this style/genre in the graphic narratives of the artist, as also the use
of this grotesque and caricature aesthetic in the strictly textual novels of the author. Thus, it
will be made a comparative analysis of this aesthetic use in the graphic novel
Transubstanciação (1990) and in the novel O cheiro do ralo (2011) to demonstrate how this
aesthetic procedure permeates as much the visual characteristic as the textual, becoming a
structural element that pervades the works’ superstructure and delimiting an author’s stylistic
trace. In this sense, it will try to establish a parallel between form and content as proposed by
Fedric Jameson in Political unconscious (1995).
KEYWORDS: Lourenço Mutarelli. Inter-structures. Caricature. Grotesque. Aesthectics.
Da Caricatura
O termo caricatura tem sua origem etimológica mais aproximada no termo italiano
caricare, cujo significado, “carregar”, descreve uma importante característica deste estilo, ou
gênero, como estabelecido por Baudelaire em Escritos Sobre Arte (1998). Este gênero aparece
primeiramente na Itália sobre a alcunha de caracaturas, cujo traço pesado, carregado em sua
estrutura , assim como os motivos e as “situações” representadas também são deformadas ou
extremadas em si, produzindo uma crítica por meio do riso, da pantomima, do absurdo.
Como mostrado nas obras de Bakhtin (1987) e de Bergson (1983), o riso apresenta um
poder de crítica e de superação inerentes à natureza humana. O riso é, portanto, naturalmente
crítico e contêm em sua realização a potência da superação das adversidades e desigualdades
que regem as relações humanas. O riso proveniente do comico é a superação do ser humano
sobre sua própria humanidade. Neste aspecto, Bergson aponta que as situações, paisagens e
animais que provocam o riso cômico, não o fazem por sua qualidade inata, mas por uma
projeção e personificação do ridente sobre os mesmos, pois o inanimado e o inumano são não
cômicos por natureza. Ressalte-se aqui que é uma recorrência do homem à projeção, não
somente no cômico, mas em todas as situações cotidianas e artísticas. O homem projeta-se em
objetos e em animais a todo momento e isso ocorre tanto nas artes pictóricas quanto nas artes
das letras. O desenhista e teórico Scott McCloud reforça essa visão ao teorizar sobre o cartum:
Contudo há outra coisa em ação nas nossas mentes quando vemos um
cartum -- sobretudo, de um rosto humano -- que merece mais investigação.
(...) O fato de sua mente conseguir pegar um círculo, dois pontos, uma linha
e transformar isso num rosto é, no mínimo, incrível! Mais incrível ainda é
ser impossível você deixar de ver um rosto aqui. Sua mente não permite!i
(McCloud, 2005, p.31)
Tal projeção humana é facilmente encontrada na literatura sob a égide da
antropomorfização. É reconhecível a atribuição de sentimentos humanos aos animais fictícios,
como a personagem Baleia de Vidas Secas (2002), ou aos seres inanimados, tais quais a
agulha e a linha do conto Um Apólogo, de Machado de Assis. Esses artifícios literários são
usados para causar diversos efeitos nas narrativas: para se criar uma alegoria, para produzir
um sentimento de afetividade do público leitor, etc.. Exemplo deste último é as linhas de
filmes que têm cães e baleias como protagonistas antroporfomizados. No entanto, outros
exemplos menos exagerados podem ser facilmente encontrados na vida cotidiana, seja no
modo como lidamos e nos relacionamos com animais ou mesmo com nossos objetos (carros,
computadores, celulares, etc).
Retomando o aspecto do riso cômico, Baudelaire filosofa sobre a profanidade do riso
derivado da caricatura, o que seria para poeta simultaneamente um momento máximo de
elevação e queda do homem civilizado e cristão, visto que para ele:
O riso é satânico, é, portanto, profundamente humano. Ele é no homem a
consequência da idéia de sua própria superioridade; e, com efeito, como o
riso é essencialmente humano, é essencialmente contraditório, quer dizer, é
ao mesmo tempo sinal de uma grandeza infinita e de uma miséria infinita,
miséria infinita em relação ao Ser Absoluto do qual ele possui a concepção,
grandeza infinita em relação aos animais. É do choque perpétuo desses dois
elementos que o riso se libera. (1998. p.16)
O artista cuja obra pode ser considerada como marco definidor do gênero caricatura é o
pintor e gravurista inglês William Hogarth. Suas obras são importantes não apenas por
instaurar um gênero, mas por estabelecer uma nova concepção estética na Inglaterra de sua
época, concepção esta que rompeu fronteiras e se espalhou pelo mundo. Hogarth foge à
concepção do belo clássico ao estabelecer o estilo/gênero caricaturesco. Dessa forma, segundo
Pevsner (1956), ele tanto evitou à sua obra uma atribuição estética claramente estrangeira
(italiana), o traço clássico, que havia definido a elaboração da pintura na Inglaterra durante
anos, quanto desenvolveu uma arte que poderia ser um produto de consumo em seu país, pois,
apesar da predominância do traço clássico na formação estética dos pintores ingleses de sua
época, o maior consumidor e financiador destas obras, a Igreja, não realizava tal papel na
sociedade inglesa. A igreja Anglicana e o próprio gosto inglês, para Pevsner, não
comportavam as iluminuras clássicas. Dessa forma, Hogarth com suas gravuras críticas
desenvolveu um gênero que se tornou popular e que redefiniu a concepção do traço artístico
na pintura de sua época.
Por possui uma variação equivalente no francês, “Charge”, o termo caricatura nos leva a
uma problemática na definição de gênero ou de tipo literário, visto que as duas palavras
(caricatura e charge) são utilizadas para objetos estéticos diferentes na cultura brasileira. Hoje,
o termo caricatura expressa o retrato caricatural, ou em literatura, a caracterização de uma
personagem ou sociedade carregadas. O termo charge, em seu turno, carrega o valor do
gênero propriamente dito, comumente divulgado pela mídia jornalística, do desenho não
sequencial que produz uma crítica ao cenário político-social atual. É um dado curioso que o
termo caricatura tenha se desenvolvido popularmente para o retrato de uma pessoa, cujos
aspectos determinados (nariz, bochechas, lábios) são destacados, carregados para se criar o
cômico e o grotesco. E que o termo francês tenha sido atribuído a um gênero propriamente
dito, que emprega, geralmente, a mistura de imagem e texto em sua composição. Portanto, o
uso comum das duas palavras foi seccionado e passou-se a definir objetos distintos com
nominações distintas: A caricatura como um retrato e a charge como uma paisagem-situação
de cunho notadamente político e contemporâneo.
Destacam-se como chargistas de suas épocas: James Gillray na Inglaterra, que
introduziu os balões de fala na arte pictórica popular, e Honoré Daumier em França. Gillray
fez graves e ácidas críticas ao cenário político de seu tempo, tendo como alvo mais recorrente
de suas charges a figura de Napoleão Bonaparte. O artista desenvolveu um traço mais
agressivo e carregado do que o de seu antecessor, Hogarth. Enquanto isso na França, Daumier
é reconhecido historicamente como um caricaturista, litografista, pintor e chargista. Seu
talento não passou despercebido por Baudelaire no ensaio O pintor da Vida Moderna (1996)
que o denomina como um “Homem do Mundo” em conjunto com Constantin Guy. Percebe-se
aqui um ponto de convergência importante entre as caricaturas de Daumier e os croquis de
Constantin Guy: a habilidade de ambas as artes pictóricas de capturar o instante de sua época,
seja com a acidez do carregar ou com a leveza do croqui, ambos refletem o que Jauss (1996)
denominará como “Autoconsciência da modernidade”.
Não é por acaso que as caricaturas que possuem essa autoconsciência de sua
modernidade, de sua historicização, tenham sido congregadas por Baudelaire (1998) no
conjunto que ele denominou como um gênero em si. Entre tais artistas caricaturistas o poeta
inclui os pintores Goya e Brueghel (conhecido sob a alcunha de “o velho”). Ao analisar as
séries Os Caprichos de Goya (1799), a Tauromaquia (1815) e Desastres da Guerra impressas
apenas em 1863, assim como alguns quadros de Brueghel, entre eles Peixe Grande comendo
peixe pequeno (1557), A Bunda na Escola (1556), Cocanha (1567), etc, pode-se observar que
ambos possuem nos seus motivos e no seu traço uma incorporação do grotesco em sua
composição. Os quadros de Brueghel não só incorporam o aspecto grotesco, como são
repletos daquilo que Bakhtin conceitualizou como carnavalização (1987).
Do Grotesco
O termo grotesco também possui raiz histórica na língua italiana, pois advém do termo
Grotta (gruta). Tal adjetivo é criado em decorrência da descoberta das pinturas encontradas
nos escombros da escavação de Pompéia em 1480. Os motivos e os traços causaram um
choque na concepção que os renascentistas possuíam sobre a estética clássica, no caso, de
pintura. Este fato originou diversas polêmicas sobre o uso e a reprodução da estética grotesca,
pois a mesma apresentava um contraste com a leveza e simetria objetivada pelo classicismo.
Como podemos ver no excerto abaixo, retirado do artigo Grotesco de Selma Calazans, no
qual o arquiteto Vitrúvio tece críticas à estética grotesca:
[...] todos esses motivos, que se originam na realidade são hoje repudiados
por uma voga iníqua. Pois aos retratos do mundo real, prefere-se agora pintar
monstros nas paredes. Em vez das colunas, pintam-se talos canelados, com
folhas crespas e volutas, em vez de ornamentação dos tímpanos, brotam das
raízes flores delicadas que se enrolam e desenrolam, sobre as quais assentam
figurinhas sem o menor sentido. Finalmente os pedúnculos sustentam meias
figuras, umas com a cabeça de homem, outras com a cabeça de animal […]
(Kayser, p. 18, in Calazans, Dicionário de Termos Literários).
Ao observar as similaridades entre o Grotesco, como escola de pintura marginal, e o
realismo grotesco, como estilo de composição, como conceito, nota-se que essa relação pode
ser transposta para uma concepção da caricatura e do realismo grotesco neste mesmo sentido,
como um conceito de composição artística. Tais pensamentos são compartilhados por João
Ferreira Duarte em seu ensaio:
A escola de pintura grotesca assume um papel marginal na História da
Arte na época de sua descoberta, contudo essa marginalização apenas
aumenta sua potência de expressão, visto que é pela oposição entre o
centro e a margem que se pode evidenciar a realidade social da época.
Faço aqui, portanto, uma relação entre a escola grotesca e o conceito
de realismo grotesco de Bakhtin (1987), criado em decorrência da
análise da obra de François Rabelais, como integrante do conceito de
carnavalização. A carnavalização seria a alegorização literária das
festividades medievais e renascentistas, cujo decorrer estaria marcado
pela inversão dos valores sociais e por um período de igualdade entre
as diferentes classes sociais durante as festividades. O carnaval estaria
ligado às festas saturninas e de homenagem aos mortos, estando,
portanto, numa relação de fertilização, de libertação pelo cômico, de
morte corporal, de alimentação e de exagero do animalesco humano.
Percebe-se, então, que o realismo grotesco seria uma parte intrínseca
da carnavalização, visto sua relação com o baixo corporal, com o que
é profano. A representação carnavalesca do corpo, a que Bakhtine chama
realismo grotesco, é centrada nas imagens deformadas e exageradas do
"baixo corporal": a boca, a barriga, os órgãos genitais. Trata-se de um corpo
em processo, em metamorfose, em permanente relação com a natureza e com
a incessante dinâmica de morte e rejuvenescimento, representado nos actos
de comer, defecar, urinar, copular, dar à luz, privilegiando, por um lado, os
orifícios com que o corpo se liga ao exterior e, por outro, a representação da
infância e da velhice. Muito da tradição da caricatura radica nas imagens
grotescas do corpo carnavalizado. (DUARTE, Dicionário de Termos
Literários).
Na relação entre o realismo grotesco e a escola grotesca, nota-se que o baixo corporal já
está representado nessa escola de pintura pela presença dos ornamentos em homenagem à
Príapo, como os enormes falos vermelhos. Além disso, a adornação excessiva dos motivos
contrastava com o minimalismo clássico e se encaixa no excessivo, no carregado da
caricatura, do traço que surge com as caracaturas e se desenvolve nas mãos de Hogarth,
Gillray e Daumier. Dessa forma, pensando na definição de gênero proposta por Baudelaire
(1998) como estilo, proponho então um olhar sobre este gênero enquanto um estilo de
composição, seja do quadro, seja da narrativa textual seja do filme.
Ainda seguindo as proposições baudelairianas, existe uma relação de intercambiação
entre o caricatural e o grotesco no que tange à uma hierarquia do cômico. O grotesco para o
poeta seria uma parte essencial do que ele denominou de cômico feroz ou cômico absoluto.
Para Baudelaire (1998, p.21), o grotesco estaria acima da comédia de costumes representada
pela caricatura básica e seria, portanto, mais complexo e avassalador, pois o riso grotesco “é a
expressão da idéia de superioridade, não mais do homem sobre o homem, mas do homem
sobre a natureza” (BAUDELAIRE 1998, p21).
A obra de Lourenço Mutarelli possui essa característica caricatural e grotesca que
Baudelaire caracteriza como cômico absoluto. Ela aparece nas críticas mordazes à condição
humana na sociedade moderna, como a decadência completa vivida pela personagem
homônima de Diomedes (2012) que se satisfaz na mediocridade, na psicose escondida do
Agente de O Natimorto (2009), na degradação sexual e fetichização humana em O cheiro do
Ralo (2011), etc. Mas mais do que tudo, em todas as obras de Mutarelli, rimos do absurdo que
é o homem enquanto produto da sociedade e, mais do que tudo, perfeitamente encaixado na
concepção de Baudelaire, vemos o que é o homem enquanto produto de uma metrópole, de
um mundo desenvolvido, civilizado. Pois quanto mais desenvolvido, mais recalque se
apresenta na formação dessa identidade e quanto mais recalque, maior é a explosão
carnavalesca e grotesca. Destacarei alguns elementos desta estética que perpassam tanto o
traço quanto os motivos e os diálogos das obras de Lourenço Mutarelli abaixo.
A primeira obra do autor a ser reconhecida com uma premiação, o romance gráfico
Transubstanciação (2001), possui em sua composição estrutural muito do exagero e da carga
inerentes ao traço caricatural. Ele é a primeira grande obra de Lourenço Mutarelli a ser
reconhecida pela sociedade, o que nos traz a imagem de narciso na beira do lago, encantado
com seu próprio reflexo.
A deformação e o carregamento do traço de Mutarelli são reforçados em
Transubstanciação (2001) pelo uso do Nanquim, de uma coloração em preto e branco que
destaca as sombras e o escuro da imagem e que, ao fazê-lo, destaca as sombras da própria
sociedade contida em sua narrativa, revelando previamente, dessa forma, ao leitor, o conteúdo
do interior do próprio protagonista, Thiago.
Outro dado de interesse neste romance gráfico são os motivos apresentados nas cenas,
pois estas flertam com o realismo grotesco, exagerando o aspecto carnal das imagens, muito
bem aproveitado pelo traço do autor que reproduz com perfeição a imperfeição do corpo,
como se pode observar nas páginas 21 e 52 de Transubstanciação.
Na página 21 vemos um diabo-deus centralizado, cujo aspecto é simulacro da
personagem principal, Thiago, diferindo apenas as pernas de bode e o tamanho assombroso.
Na mesma cena encontram-se o protagonista e diversos demônios-anjos. Aqui é perceptível a
criação de duas importantes discussões e inversões produzidas: 1) A projeção do homem no
ser divino (Deus criou o homem a sua semelhança ou o Homem criou seu deus à sua
semelhança?); 2) A inversão da imagem divina pela imagem profana e o amálgama entre as
duas. A segunda inversão pode também ser percebida nas figuras dos anjos-demônios e na
relação imagem-texto, pois Thiago se refere a uma imagem profana como sendo sacra.
A figura ao centro, sentado em um trono ósseo, cujo topo possui um adorno irônico
em forma de coração (símbolo), com a mão direita segura a corda da coleira que prende o
pescoço do protagonista, o que remete a uma ferrenha crítica na relação entre sujeito e fé. Há
um adorno curioso na cabeça de Thiago, um chapéu de ponta com uma estrela decorativa que
nos remete ao bispo, ao mago e, ao mesmo tempo, ao tolo da corte. A figura central está
completamente nua e o falo é evidenciado em sua crueza, sem atenuantes, uma vez que é
ressaltado pelo traço carregado. Os anjos demônios aumentam o aspecto grotesco da imagem,
por sua completa deformação que os contrapõe à imagem comumente esperada das figuras
angelicais. Apenas a auréola sob a cabeça representa a angelização das figuras, pois sua
deformação é tal que remetem à série Caprichos, de Goya, mais especificamente, o quadro Ya
van deplumados, o qual apresenta figuras amalgâmicas entre homem e galináceo sendo
empurrados por vassouras.
Nota-se, portanto, uma atribuição do traço caricatural ao desenho carregado, deformado,
exagerado, com o intuito de reforçar a sensação do grotesco presente nos motivos e na
história. A presença do falo e da animalização do ser divino-profano e sua própria natureza
dupla, natureza esta também representada nos anjos-demônios, evidenciam a elaboração do
realismo grotesco na obra:
Uma das tendências fundamentais da imagem grotesca do corpo consiste em
exibir dois corpos em um: um que dá a vida e desaparece e outro que é
concebido, produzido e lançado ao mundo. É sempre um corpo em estado de
prenhez e parto, ou pelo menos pronto para conceber e ser fecundado, com
um falo ou órgãos genitais exagerados. (BAKHTIN, 1987, p.23).
Essa confusão entre profano e sacro é uma discussão referente à concepção humana,
pois o ser é dividido nestes dois aspectos, um transcendente e o outro imanente. O grande falo
e o baixo demoníaco, representado pelas pernas de bode, são a perversão da nossa concepção
de divino (cujo aspecto é pressuposto como ideal, uno e superior), portanto a animalização do
divino perverte a nossa concepção de transcendência, de sacro. Logo, esta perversão revela
um ser divinal não mais perfeito, não mais unoii. Ao corporificar o ser divinal ela o torna
sujeito aos dilemas do corpo e como vemos em sua concepção na narrativa, este é um corpo
duplo, bipartido, tal qual o homem entre alma e corpo, entre sagrado e profano.
Essa composição do ser divinal demonstra um aprofundamento do realismo grotesco e
uma dupla configuração do divino enquanto corpo. Ou seja, apresenta-se aqui o ser divino
como transubstanciação em potência, como matéria que é, em si, espírito, ou melhor posto,
como espírito que é tornado matéria, numa transubstanciação inversa, perversa, profana.
A discussão que se dá na página 23, entre Thiago e seu deus-demônio-cópia, reforça a
humanização e profanação do Simulacro divino, cujo escarro cobre o rosto enquanto divaga
sobre tampinhas de coca cola. O descuido e a sujeira unem-se ao absurdo do diálogo entre as
duas personagens, apresentando outro elemento importante da carnavalização, a presença do
louco, do tolo, cujo chapéu Thiago veste, transvestindo-se, dessa forma por sinédoque e
posse, no louco/tolo em si. O aspecto grotesco da cena se reforça pelo motivo escatológico, o
qual, por sua vez, cria o universo da loucura e do profano na narração gráfica.
A página 52 é outro exemplo de fusão entre o caricato e o grotesco em suas estruturas
estéticas: a cena da execução de Thiago pela polícia-exército, por sinal, completamente
caricata em sua conceitualização e representação na narrativa, mostra o corpo destruído do
protagonista, cujos órgãos preenchem a cena como se flutuassem, enquanto ao fundo há a
simbolização da sonoridade onomatopaica das armas que preenchem todo o background. A
representação do som das metralhadoras caricaturiza a cena do extermínio em seu exagero,
mas o tom da narrativa transforma esse exagero no cômico absoluto da civilização. A
representação orgânica do corpo em sua destruição apresenta ao leitor o grotesco da morte e
do morrer ao contrário de uma sublimação ou de uma transcendência, fazendo com que a
morte se torne orgânica, profana, crua.
É interessante atentar aqui para a transformação da onomatopeia em imagem ao compor
o fundo do quadro. Ela não apenas passa o sentido de ensurdecimento causado pelas armas,
como carrega a cena, provocando um efeito de escurecimento e preenchimento do quadro que
o aproxima de uma estética barroca, no caso específico, grotesca.
Nas obras estritamente textuais do autor, também há um flerte com o cômico absoluto e
com o caricato enquanto composição. A personagem “A Bunda”, de O cheiro do ralo (2011),
mesmo como alegoria do desejo, é concebida como uma caricatura da mulher brasileira, um
dado importante é a sua designação pelo narrador protagonista, durante todo o romance, como
a sua parte física e não como um nome próprio ou outra caracterização:
(...) Quando me dei conta contemplava uma bunda enorme.
Farta. Quase disforme.
Era da moça. Pensei que no fundo ela era boa. (...)
Tentei lembrar sua cara.
Sorri para ela. (...)
Pedi outro refrigerante.
Ela se virou para apanhar.
Pensei que poderia passar uma semana só olhando para o seu rabo. (...)
(MUTARELLI, 2011, p.11)
A bunda é, em si, disforme, exagerada. O rosto melancólico da mulher à qual pertence
não possui importância e deixa de existir frente à parte de seu corpo, o elemento da sinédoque
assume a composição da personagem, assim como na caricatura os detalhes sobrepõem o todo
para formar um novo todo, a bunda torna-se a personagem para o narrador protagonista,
formando um novo ser, ignorando-se a face em prol da baixeza corporal, dessa forma, uma
clara manifestação do realismo grotesco, ou posto por Baudelaire, o cômico absoluto.
Similarmente ao que ocorre na transubstanciação perversa e na profanação do sacro em
Transubstanciação, em O cheiro do Ralo, a oposição entre o ralo do banheiro do escritório,
que metaforicamente assume a função de divindade profana e demoníaca, e a personagem
Bunda, cuja função tende à busca do protagonista pelo paraíso e pela salvação, ao firmamento
profano, é muito mais complexa do que uma função meramente dicotômica, como podemos
ver no excerto:
(...) Talvez o cheiro seja meu.
Esse cheiro tem história.
Foi o cheiro que me trouxe a bunda.
É um presente do inferno. (...)
(MUTARELLI, 2011, p. 80-81).
Nesse ponto, existe uma fusão entre o elemento demoníaco (Ralo) e o elemento divinal
(Bunda) em uma situação de causa e efeito, porque na divagação do protagonista, ele associa
o fato temporal do surgimento do cheiro fétido no banheiro conjugado ao escritório, com o
momento do encontro com a personagem bunda, que passa a representar o desejo e a
salvação. Essa relação de causa e efeito associada pelo personagem representa o processo
inverso da ordem carnal e prática, visto que nessa, a parte corporal bunda e seus respectivos
canais, são os produtores do cheiro do ralo, ao invés da associação produzida, na qual o ralo
produz a bunda.
Outro ponto de associação importante com o romance gráfico Transubstanciação é a
disposição desses dois elementos Ralo e Bunda na composição do campo sacro e profano. O
ralo assume uma metaforização mais literal do infernal e do baixo, literalmente relacionado ao
baixo corporal e aos excrementos, dessa forma, sua disposição alegórica como “portal do
inferno” é facilmente aceita na leitura do romance. A bunda, por outro lado, enquanto busca
de salvação e elemento sacro, cria uma quebra epistemológica na relação, normalmente
dicotômica, entre sacro e profano. Visto que, a bunda é, em si, o baixo corporal e é ela a
produtora dos elementos fétidos armazenados no ralo. Dessa forma, há uma inversão do
sentido do sagrado e, na associação apresentada acima, da ordem hierárquica, pois a bunda se
apresenta como um presente do ralo. Em uma visão, apresenta-se outra crítica na concepção
de sacro e profano ainda, pois a bunda, enquanto produtora dos excrementos e metáfora do
firmamento, apresenta ao leitor uma visão peculiar e caricatural do inferno (ralo do banheiro)
como os restos descartados pelo firmamento.
Há outros elementos da estética do cômico absoluto na obra de Mutarelli: o caricatural
perpassa todo o romance Jesus Kid (2005), no qual posso destacar as personagens dos
cineastas “Gargantas Profundas” e do próprio Jesus, que representa um estereótipo do
cowboy de western. O efeito em Jesus Kid apresenta um teor mais caricaturesco do que
grotesco propriamente dito, sendo utilizado muito mais para a provocação do riso do que para
o choque. Dessa forma, os elementos do grotesco aparecem em pequenos pontos de
carnavalização, mas não se formam em estética como ocorre em O cheiro do Ralo. Destacam-
se as cenas em que o surgir da personagem “A Cadela de Pink” na televisão provoca o
onanismo ou, ao menos, a intenção do ato.
O traço caricatural também pode ser observado na obra Mundo Pet (2002), obra
composta de várias pequenas narrativas gráficas, que forma uma espécie de conjunto de
contos gráficos. Em Mundo Pet (2000), o realismo grotesco e o cômico absoluto predominam
nas histórias “Estampa Forjada”, “Eu acordava chorando” “Dói Story” e “Meu Primeiro
Amor”, cujas narrativas tendem para uma evidenciação do animalesco humano, de nossa
condição de carne, ou seja, para nossa existência profana, na qual a transcendência está
esquecida devido a distancia que a perversão da matéria à coloca.
É por meio do grotesco e do caricatural que Mutarelli explora a deformação do ser
humano, evidenciando na pele exterior os demônios que escondemos com máscaras sociais. A
caricatura evidencia a barbárie da civilização e provoca, com isso, o riso, como ressaltado por
Baudelaire, o riso de uma “caricatura bem atraente para nós, densa de fel e rancor, como sabe
fazê-las uma civilização perspicaz e enfadada” (BAUDELAIRE, 1998, p.13).
Logo, a caricatura é um objeto de arte que provoca o riso pela perversão, pela
profanação. Essa profanação não é gratuita, ela é o produto do fel e do rancor que a
civilização possui e impõe ao indivíduo. Destarte, não é de se admirar que as caricaturas
tenham justamente surgido enquanto retratos individuais de aristocratas e burgueses, uma vez
que a caricatura evidencia as deformações singulares e as coloca em primeiro plano. Dessa
maneira ela transforma a parte deformada no quadro completo a ser mostrado, assim como a
bunda torna-se a mulher, o chapéu torna-se o homem, a mônada torna-se o sistema.
O grotesco, por sua vez, reverte a hierarquia do belo ideal, destrói a concepção da
transcendência e da sublimação ao escancarar nossa materialidade, uma materialidade que
tentamos esconder, mas que está explícita na própria civilidade. Desse modo, podemos pensar
que a caricatura é, em si, uma transubstanciação pervertida, ao transformar o que é sacro em
profano, ao que é reto em torto, sem, no entanto que as qualidades inerentes da matéria
transubstanciada se percam.
REFERÊNCIAS:
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2012
ANEXO
Figura 1: Transubstanciação página 21
Figura 2: Transubstanciação página 52
Figura 3: Caprichos 20, Ya Van Desplumados (N/A) Goya
Figura 4: Peixe Grande comendo peixe pequeno (1557) Brueghel
Figura 5: Tauromaquia, 12 (N/A) Goya
Figura 6: Bunda na escola (1556) Brueghel
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