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A CARTA DE CANTINO E A REPRESENTAÇÃO OCEÂNICA NO ÚLTIMO QUARTEL DO SÉCULO XV Luís Adão da Fonseca* 1. Esta comunicação tem como objectivo propor uma chave de com- preensão da mundividência espacial que se encontra subjacente ao mapa de Cantino, sobretudo em função da evolução conceptual oceânica que tem lugar no decorrer do último quartel do século XV. O ponto de partida assenta na proposta, apresentada em trabalhos anteriores, onde defino - a partir da herança medieval do Atlântico - o processo de construção do espaço oceânico, organizado em três fases (marroquina até à Guiné; "grande Guiné"; para além da Guiné até ao Cabo da Boa Esperança), e onde explico, finalmente, a razão pela qual a Guiné pode ser considerada como cadinho matricial do Atlântico moder- no: ponto de partida para a diversificação dos dois Atlânticos, o lusitano e o castelhano 1 . Esta periodização foi posteriormente articulada com uma reflexão sobre o papel que as ilhas (enquanto referência cultural) tiveram nesta primeira expansão atlântica 2 . De facto, este tema pode ser conside- rado, sucessivamente, através de três perspectivas. A saber: * Universidade do Porto. 1 V.g. Os Descobrimentos e a formação do Oceano Atlântico, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999. 2 O horizonte insular na experiência cultural da primeira expansão portuguesa, Actas do Congresso Internacional Comemorativo do Regresso de Vasco da Gama a Portugal - Por- tos, Escalas e Ilhéus no relacionamento entre o Ocidente e o Oriente — (Angra do Heroís- mo e Ponta Delgada, 1999), [Lisboa], Universidade dos Açores e Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, volume 1, pp. 57-93. As Novidades do Mundo: conhecimento e representação na Época Moderna, Lisboa, Edições Colibri, 2003, pp. 365-377.

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A CARTA DE CANTINO E A REPRESENTAÇÃOOCEÂNICA NO ÚLTIMO QUARTEL DO SÉCULO XV

Luís Adão da Fonseca*

1. Esta comunicação tem como objectivo propor uma chave de com-preensão da mundividência espacial que se encontra subjacente ao mapade Cantino, sobretudo em função da evolução conceptual oceânica quetem lugar no decorrer do último quartel do século XV.

O ponto de partida assenta na proposta, apresentada em trabalhosanteriores, onde defino - a partir da herança medieval do Atlântico - oprocesso de construção do espaço oceânico, organizado em três fases(marroquina até à Guiné; "grande Guiné"; para além da Guiné até aoCabo da Boa Esperança), e onde explico, finalmente, a razão pela qual aGuiné pode ser considerada como cadinho matricial do Atlântico moder-no: ponto de partida para a diversificação dos dois Atlânticos, o lusitanoe o castelhano1. Esta periodização foi posteriormente articulada com umareflexão sobre o papel que as ilhas (enquanto referência cultural) tiveramnesta primeira expansão atlântica2. De facto, este tema pode ser conside-rado, sucessivamente, através de três perspectivas. A saber:

* Universidade do Porto.1 V.g. Os Descobrimentos e a formação do Oceano Atlântico, Lisboa, Comissão Nacional

para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.2 O horizonte insular na experiência cultural da primeira expansão portuguesa, Actas do

Congresso Internacional Comemorativo do Regresso de Vasco da Gama a Portugal - Por-tos, Escalas e Ilhéus no relacionamento entre o Ocidente e o Oriente — (Angra do Heroís-mo e Ponta Delgada, 1999), [Lisboa], Universidade dos Açores e Comissão Nacional paraas Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, volume 1, pp. 57-93.

As Novidades do Mundo: conhecimento e representação na Época Moderna, Lisboa,Edições Colibri, 2003, pp. 365-377.

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Para começar, a importância das ilhas na doutrina medieval acercados mares, em que o oceano começa por se definir pela negativa: é oespaço do desconhecido e mar aberto, no que se opõe ao Mediterrâneo,espaço do conhecido e mar fechado. Assim, à semelhança de um qual-quer mediterrâneo, o imaginário do Atlântico concebe-o inicialmentecomo um oceano horizontal povoado de ilhas. São elas que, imagináriasou reais, povoam esse espaço sem limites, transformando-o em espaçonavegável, apetecível. Por outro lado, associando-lhe uma outra dimen-são - espaço do maravilhoso - , o mar é também a rota da navegaçãoimaginária que dá acesso ao Éden. Nesta geografia tradicional, em que osmares rodeiam os continentes, a terra dos homens é, de facto, uma ilha.

Depois, a necessidade de considerar a função da referência insularnas rotas marítimas do Atlântico central e meridional. Através da análisedas fontes, procurei mostrar como, até aos anos 80 do século XV, domina(embora com intensidade menor a partir da Guiné) a visão tradicional.Como escrevi, há, nestes anos, uma tal confluência de eventos significa-tivos (v.g. tratado das Alcáçovas de 1479-1480, subida ao poder deD. João II, em Agosto de 1481, construção do forte de S. Jorge da Mina,em 1482) que é difícil não os considerar determinantes de uma nova faseda história da exploração atlântica. Em certa medida, esta confluênciaconstitui um bom exemplo do que JERRY H. BENTLEY considera seremas consequências culturais dos processos de sincronia3. Julgo que é evi-dente o peso das condições objectivas em que historicamente este proces-so tem lugar. A partir dos mares da Guiné, navegando cada vez mais numespaço desconhecido - espaço a descobrir - , os protagonistas tendem aprivilegiar a posição, em detrimento da valorização dos lugares. Ou seja,é neste contexto que a ilha surge como referência necessária de um espaçomarítimo aberto, funcionando como coordenada topológica de um hori-zonte que apenas dispõe de um indicador abstracto qual seja a latitude.

Finalmente, a partir da articulação entre a primeira experiênciaatlântica e a génese da noção de espaço oceânico, sublinho fundamen-talmente duas questões: o papel das ilhas na sua ligação à doutrina deretaguarda marítima, bem como a sua importância na diplomacia portu-guesa quatrocentista.

2. Tudo isto porquê? Os textos que normalmente se citam veiculamum determinado universo sociológico: a visão dos homens do mar,

3 BENTLEY, Jerry H. - Old World Encounters: cross-cultural contacts and exchanges inPremodern times, Oxford, Oxford University Press, 1993.

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daqueles que viveram directamente a experiência atlântica. Mas há outrasfontes que não podem ser descuradas, na medida em que evidenciamoutra visão, o olhar dos políticos e diplomatas que têm de tomar decisõessobre o mesmo Oceano. E, entre a escrita que narra e a escrita queplasma a decisão, há necessariamente um intervalo.

Para explicar melhor este aspecto, importaria fazer uma abordagemhistórica sobre o imaginário estratégico da doutrina naval lusitana, nosséculos XIV e XV, o que não poderei fazer agora4. Mas é importante terpresente este aspecto, na medida em que a elaboração estratégica, desen-volvida no seio dos centros do poder, tem significativas implicações con-ceptuais. É o caso da articulação entre a noção de espaços marítimos e oconceito de retaguarda estratégica, tal como - julgo que por influênciaitaliana - é desenvolvida em Portugal, entre os séculos XIV e XV. Empoucas palavras, penso que a doutrina defendida pelos responsáveis por-tugueses, ao longo do século XIV, e que o Portugal do século XV vaidirectamente herdar - e desenvolver - assenta na conjugação de duasideias-força: só é possível desenvolver uma política de âmbito europeu(continental ou peninsular) a partir do domínio das articulações de umespaço marítimo delimitado, em função de estreitos (neste caso, o deGibraltar), por um lado; e, por outro lado, o domínio de tais articulaçõespressupõe a definição de novos horizontes, em função do papel funda-mental da retaguarda marítima, que, no caso português, terá de ter umaindispensável dimensão oceânica.

É neste ponto que se situa a ligação directa entre a ilha - como refe-rência no pensar quatrocentista do espaço oceânico - e a doutrina deretaguarda marítima. Com efeito, não se trata apenas de chamar a atençãopara o papel que a colonização dos arquipélagos atlânticos teve no desen-volvimento histórico do processo de expansão marítima, como a biblio-grafia tem repetida e acertadamente sublinhado. É fundamental com-preender como a realidade das ilhas sucessivamente descobertas e colo-nizadas, ao longo do século XV, constitui o suporte histórico da simultâ-

4 Tive oportunidade de o fazer, de forma sintética, em: "Portugal na Península Ibérica.Horizontes marítimos, articulação política e relações diplomáticas (séc. XII-XVI)", emLas Espanas Medievales (coordenação de JÚLIO VALDEÓN BARUQUE), Valladolid,Universidad de Valladolid, 1999, pp. 83-93; "Horizonte castelhano no debate políticoem Portugal no final da Idade Média", em Jornadas de Cultura Hispano-Portuguesa(coordenação VICENTE A. ÁLVAREZ PALENZUELA), Madrid, Universidad Autó-noma de Madrid, 1999, pp. 147-161; "O regresso de Vasco da Gama e a definição daestratégia marítima portuguesa em finais do século XV", em Sessão Solene do Lança-mento do 3." volume da História da Marinha Portuguesa. 19 de Maio de 1999, Lisboa,Academia de Marinha, 1999, pp. 13-20.

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nea construção ideológica do pensamento estratégico insular, desenvol-vido pelos responsáveis portugueses, a respeito desse mar que eles tinhamde alguma forma de entender, para o poder defender em termos de diplo-macia internacional. Dito por outras palavras, a dimensão insular permi-tirá, a esses mesmos responsáveis, construir a noção de Oceano Atlântico,quando logram superar a noção medieval de rotas, típica dos séculosXIII-XIV e de grande parte do XV. E, repetindo o que já disse, tal trans-formação só se torna possível mediante a associação da dimensão insularà noção de retaguarda marítima, na medida em que é a referência insularque lhes permitirá dar o salto para a noção de espaço.

Estamos, assim, perante um processo que supera a visão medievaldo Oceano como rota, provocando uma mutação tornada possível pelaassociação da dimensão insular à herança da estratégia marítima tradi-cional da monarquia portuguesa que assentava numa outra noção, a demar como retaguarda. A meu ver, será muito interessante verificar que,também neste domínio, a mutação tem lugar nos mesmos anos aos quaishá pouco fazia referência; está documentada entre 1480 e 1494. É o saltoque vai do tratado das Alcáçovas ao de Tordesilhas, para o qual tantasvezes tenho chamado a atenção, ou, se quisermos trazer à colação as res-pectivas referências insulares, o salto que vai das Canárias a Cabo Verde.

É nesta conjuntura que se situa o que se pode chamar o imagináriooceânico plasmado em Tordesilhas e que se encontra no mapa de Cantino.

3. Este problema exige, em ordem ao seu adequado esclarecimento,o ter em conta uma questão de fundo que, através de uma análise compa-rativa, valorize a fonte cartográfica como um texto, considerando-o noconjunto dos demais textos relativos à expansão portuguesa quatrocen-tista. O objectivo será, deste modo, o de estabelecer uma nexo lógiccentre os textos narrativos e a representação cartográfica, admitindo queambas as fontes (textos e mapas), porque elaborados em idênticos con-textos, podem ser lidas como diferentes explicitações de um mesmo substrato. O desafio será, assim, o da identificação desse substrato comumque, deste modo, funcionaria como um modelo padrão. Na verdade, secomo já se sublinhou, as fontes narrativas revelam a existência de váriasfases no processo de conceptualização oceânica, fases semelhantes seencontram na carta de Cantino.

Neste mapa, aparecem pela primeira vez em cartas geográficas aílinhas do equador e dos trópicos, o que implica já o registo de latitudes.Deixa-se, assim, de usar exclusivamente o processo grosseiro de locali-zação através dos rumos e distâncias. Este mapa estabelece, pois, a tran-sição entre o portulano e as cartas modernas, processo de representação

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tanto mais significativo, tanto mais quanto são usados dois processos,conforme as regiões da terra cartografadas. Enquanto o Mediterrâneo,as regiões do Atlântico Norte, as Antilhas do rei de Castela e a regiãocentral do continente africano são tratados com a técnica dos portulanospor navegação estimada, as regiões do Atlântico Sul e todo o litoral docontinente africano são cartografados com o conhecimento mais rigo-roso que os Portugueses deles tinham através da navegação por latitu-des5. Isto, no cpe diz respeito ao espaço ocidental, ou seja, atlântico. Mas,no mundo do Indico, os critérios de representação são diferentes: por umlado, denotam-se reflexos da influência das informações e das técnicasmuçulmanas de navegação nesse espaço (assim como dos mercadoreslocais), ao lado de um enquadramento global de inspiração ptolemaica.De qualquer modo, as notícias sobre as partes orientais veiculadas pelomapa são deficientes6.

5 Citações de: AMADO, Maria Teresa - "Cantino, Planisfério de", em Dicionário deHistória dos Descobrimentos Portugueses (ALBUQUERQUE, Luís de [direcção;coordenação de FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES]), volume 1, Lisboa, Círculode Leitores, 1994, p. 191.

6 Sobre esta carta, a bibliografia é muito numerosa. Sem a preocupação de indicar toda,vejam-se: AMADO, Maria Teresa - "Cantino, Planisfério de" (ob. cit.), pp. 191-192;ALBUQUERQUE, Luís de - "Informações do planisfério dito de Cantino", emCrónicas da História de Portugal, Lisboa, Presença, 1987, pp. 64-69; e em colaboraçãocom TAVARES, José Lopes - "Algumas observações sobre o planisfério "Cantino"(1502)", reimpresso em em Estudos de História do mesmo autor, volume 4, Coimbra,Acta Universitatis Conimbrigensis, 1976, pp. 181-221, e em Actas do SeminárioCiência Náutica e Técnicas de Navegação nos Séculos XV e XVI, Macau, InstitutoCultural de Macau, 1988, pp. 183-212; CORTESÃO, Armando; MOTA, AvelinoTeixeira da - Portugaliae Monumenta Cartographica, volume 1, Lisboa, ImprensaNacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 7-13 (reprodução da edição de 1960); CORTESÃO,Jaime - História do Brasil nos velhos mapas, volume 1, Rio de Janeiro, Ministério dasRelações Exteriores, Instituto Rio Branco, s.d., p. 200 e seguintes, e Os DescobrimentosPortugueses, volume 2, Lisboa, Arcádia, s.d., pp. 87-111; LAGOA, Visconde da -Achegas para o estudo do planisfério dito de Cantino e das primeiras exploraçõesportuguesas do litoral brasileiro, Anais da Junta de Investigação do Ultramar, volume8, tomo 1, 1953, pp. 35-105 (cfr. o comentário de SOUSA, Tomaz Oscar Marcondes de- "Algumas considerações em torno de um estudo do Visconde da Lagoa sobre ahistória da geografia da expansão portuguesa", em Algumas achegas à história dosdescobrimentos marítimos (críticas e controvérsias), São Paulo, Ed. Herder, 1958,pp. 63-104); LEITE, Duarte - "O mais antigo mapa do Brasil", em História dacolonização portuguesa do Brasil (dir. DIAS, Carlos Malheiro), volume 2, Porto,Litografia Nacional, 1923, pp. 225-281 (reeditado em História dos Descobrimentos.Colectânea de esparsos, volume 2, Lisboa, Edições Cosmos, 1962, pp. 11-123);MILANO, Ernesto - "Charta del navicare per le isole novamente trovate in Ia parte de1'índia... Carta del Cantino. Esegesi storico-artistica", em La carta del Cantino e Iarappresentazione delia Terra nei codici e nei libri a stampa delle Biblioteca Estense e

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Creio que, das observações anteriores, se podem extrair algumasconclusões interessantes. Por exemplo, no Atlântico, são evidentes osreflexos da dialéctica entre duas formas diferentes de perspectivar oespaço, ou seja, para recorrer a palavras já utilizadas, a diferença quesepara a noção de lugar da noção de posição. Há duas fontes da épocaatravés das quais esta divergência é claramente apontada. Por exemplo,na Carta do Mestre João, evidencia-se algo muito importante: aqui, nomar, o espaço é substituído pela posição, em relação à qual a carta revelaexistir algum debate. Lê-se: todos os pilotos vão tanto adiante de mim,

que Pero Escolar vai adiante 150 léguas, e outros mais, e outros menos,

mas quem diz a verdade não se pode certificar até que em boa hora che-

guemos ao cabo da Boa Esperança e ali saberemos quam vai mais certo:

eles com a carta, ou eu com a carta e com o astrolábio1. Poucos anosdepois, DUARTE PACHECO PEREIRA expressará o mesmo numa pas-sagem do seu Esmeraldo:

Muitas opiniões houve nestes reinos de Portugal, nos tempos passados,entre alguns letrados, acerca do descobrimento das Etiópias de Guiné edas índias; porque uns diziam que não curassem de descobrir ao longo dacosta do mar, e que melhor seria irem pelo pego, atravessando o golfão,até topar em alguma terra ou vizinha dela, e per esta via se encurtaria ocaminho; outros disseram que melhor seria descobrirem ao longo da terra,sabendo pouco e pouco o que nela ia, e assim suas rotas e conhecenças, ecada provinda de que gente era, pera verdadeiramente saberem o lugarem que estavam, por onde podiam ser certos da terra que iam buscar, por-que de outra guisa não podiam saber a região em que estavam8.

Universitária, Modena, Ed. Il Bulino, 1991, pp. 87-156; MOTA, Avelino Teixeira da -"A África no planisfério português anónimo de Cantino", Revista da Universidade deCoimbra, volume 26, 1978, pp. 1-12; PEREIRA, Moacyr Soares - "O Novo Mundo noPlanisfério da Casa de Este, o «Cantino»", Revista da Universidade de Coimbra,volume 35, 1989, pp. 271-308, e "A ilha brasileira do planisfério da Casa d'Este",Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, volume 309, 1975, 7-157;ROUKEMA, E. - Brazil in the Cantino map, Imago Mundi, volume 17, 1963, pp. 7-26;VARELA, Consuelo - "Política y propaganda en el mapa de Cantino", Limites do Mar eda Terra. Actas da VIII Reunião Internacional de História da Náutica e Hidrografia(1994), Cascais, Patrimonia, 1998, pp. 181-183; NUNN, George E. - "The identity of«Florida» on the Cantino Map of 1502", em The geographical conceptions ofColumbus. A criticai consideration of four problems, N. York, American GeographicalSociety, 1924, pp. 91-141.

7 GARCIA, José Manuel (ed.) - Viagens dos descobrimentos, Lisboa, Presença, 1983,p. 279.

8 Esmeraldo de situ orbis (ed. PERES, Damião), Lisboa, Academia Portuguesa da Histó-ria, 1988, pp. 175-176.

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Na verdade, trata-se de um processo que ultrapassa a pura dialécticade ideias ou a diferença entre meras técnicas de navegação, já que o queestá em jogo se enraiza na vida política e social da época. Dito por outraspalavras, não foi, então, pacífica esta transformação do modo de olharpara o mar. A mutação intelectual foi acompanhada por profundo debate,o qual - pelos problemas subjacentes à discussão - significou acesa lutapolítica... Dito por outras palavras, o problema de fundo levantado pelanavegação do Atlântico Sul, começa por se apresentar como um debate arespeito das formas de navegação; entre a descoberta da costa e a nave-gação no mar alto, é o debate entre duas formas de singrar o Oceano,entre a que valoriza os lugares e a que privilegia a posição. Mas, pres-supõe, simultaneamente, o debate político entre os dois modos deorganizar a viagem para além do mar (basta recordar as discussões levan-tadas por ocasião das negociações que conduziram à assinatura do tra-tado de Tordesilhas9).

Quando o autor do Esmeraldo escreve - imediatamente a seguir aocomentário atrás transcrito - que opta pela sucessão de lugares, evidenciaem que posição se encontra, e revela bem como, no fundo, é um homemda navegação do golfo da Guiné: E a mim me parece que a segunda opi-nião foi mais certa; e assim se fez. E porque este descobrimento seguiuao longo da costa do mar, por isso levaremos nosso caminho do caboNegro em diante...10. Sublinhe-se que o próprio DUARTE PACHECOPEREIRA acaba por se contradizer um pouco, quando, mais adiante, des-creve a rota do Golfão, e afirma: costumamos fazer outra via pera a Índia,partindo do cabo Verde pelo golfão, per onde se encurta mais a viagem enos fica em mor proveito...11. Pelo contrário, atendendo ao comentário deMestre João, também já citado, este situar-se-ia na posição oposta...

9 Tive oportunidade de chamar a atenção para este aspecto em vários trabalhos: O Trata-do de Tordesilhas e a diplomacia luso-castelhana no século XV, Lisboa, Edições Inapa,1991, pp. 37-59; Portugal entre dos mares, Madrid, Editorial Mapfre, 1993, pp 271--294; "El Tratado de Tordesillas: antecedentes y significado", em El Tratado de Torde-sillas, [s.l.], Banco Bilbao Vizcaya, 1993, pp. 133-182 (edição portuguesa- "O Tratadode Tordesilhas: Antecedentes e significado" - em O Tratado de Tordesilhas, Lisboa,Banco Bilbao Viscaya [Portugal], 1994, pp. 129-173; "O Tratado de Tordesilhas: algu-mas reflexões sobre o seu significado", em Actas do congresso "El Tratado deTordesillas y su época", organizado pela Comissão Nacional para as Comemorações dosDescobrimentos Portugueses e pela Sociedad V Centenario del Tratado de Tordesillas(Setúbal.Salamanca.Tordesilhas, 1994.06.2-6), Valhadolid, 1995, vol. 2.°, pp. 1187--1205; Os Descobrimentos e a formação do Oceano Atlântico (ob. cit.), pp. 104-125.

10 Esmeraldo de situ orbis (ob. cit), p. 176.11 Esmeraldo de situ orbis (ob. cit), pp. 203-204.

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4. Regressando ao mapa de Cantino, e ponderando o que se apontousobre os dois modelos de representação do Atlântico, à luz do que acabode referir sobre o debate a respeito da navegação no mesmo Oceano,parece ser legítimo considerar que o mapa em causa espelha grafica-mente duas coisas, ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, uma autênticagenealogia cultural dos espaços marítimos, delimitando a projecção geo-gráfica correspondente a cada uma das fases da referida genealogia. Emsegundo lugar, uma visão do oceano como espaço de enquadramentocontinental projectado meridianamente. Deste modo, a importância gráfi-ca dada à linha de Tordesilhas tem um duplo significado: por um lado,aponta para um tratado que, por si, constitui o ponto terminal de um pro-cesso náutico que remonta a Bartolomeu Dias, a Vasco da Gama e aPedro Álvares Cabral; e, por outro lado, plasma o que, em termos depolítica internacional, nesse momento - no Verão de 1502 - está emjogo12. Em certa medida, a relevância dada no mapa ao meridiano funcio-na como elemento criador de expectativas implícitas que apontam para afutura explicitação da continentalidade americana13.

Assim, este mapa, desenhado numas circunstâncias muito concretas(em Lisboa, no final do Verão de 1502, incorporando certamente já asrecentes informações aportadas pelas armadas de Pedro Álvares Cabral ede João da Nova), plasma perfeitamente o esforço de conceptualizaçãoda globalidade das geografias incorporadas pelas últimas navegaçõesportuguesas na América e no Oriente, em face da necessidade - sentidaagora pela primeira vez pelos europeus - de organizar, articulando deforma coerente num único espaço de dimensão mundial, continentes eoceanos que, na experiência histórica europeia, correspondiam a civiliza-ções e, portanto, a tempos diferentes. Trata-se de um mapa onde apareceo mundo representado na sua globalidade, de forma tal que, à primeira

12 Cfr. sobre este tema o que escrevi em: Vasco da Gama. O homem, a viagem, a época,Lisboa, Expo 98 e Comissão de Coordenação da Região do Alentejo, 1997, pp. 236 eseguintes (nomeadamente pp. 280-302); "O significado político em Portugal das duasprimeiras viagens à índia de Vasco da Gama", em Actas da Conferência InternacionalVasco da Gama e a índia, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian e aChancellerie des Universités de Paris, em colaboração com a Fundação Oriente (Paris.1998.05.11-13.), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, volume 1, pp. 69-100;"O regresso de Vasco da Gama" (ob. cit.); Pedro Álvares Cabral. Uma viagem, Lisboa,Inapa, 1999, pp. 101-115; "Dois anos na vida de Pedro Álvares Cabral", em Actas docolóquio "Dos mares de Cabral ao Oceano da Língua Portuguesa", organizado pelaEscola Naval (Lisboa, 2000.11. 20), Lisboa, Escola Naval, 2001 (sempag.).

13 Sobre esta capacidade do mapa de Cantino de gerar expectativas implícitas, vejam-se os in-teressantes comentários de CHRISTIAN JACOB, em L'Empire des cartes. Approchethéorique de la cartographie à travers l'histoire, Paris, Albin Michel, 1992, pp. 212-214.

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vista - e em comparação com as cartas europeias anteriores - , nos sur-preende pela razoável adequação à realidade por nós conhecida. Daí, asensação de modernidade que temos quando o contemplamos. No entan-to, analisado com um pouco mais de cuidado, verifica-se que não esta-mos perante um mapa, mas sim perante três, subtilmente articulados, detal modo que a imagem de conjunto é aparentemente una. Explico-me.

Recorde-se que a latitude - elemento gráfico, naquela altura, indi-ciador de novidade - não se aplica a toda a geografia da terra, mas apenas àrepresentação de um espaço concreto, qual seja o do Atlântico central emeridional, ou seja, ao mundo novo. Mas, por sua vez, o espaço do Atlânti-co horizontal (que do Mediterrâneo atravessa todo o Atlântico Norte até àsAntilhas, assim como o centro de África) é representado segundo a técnicatradicional dos portulanos medievais, em que as distâncias são medidas porestima. Finalmente, no interior africano e no Oriente para além da Índia,espaço ainda não conhecido directamente em 1502, portanto, espaço nemnovo nem velho, mas espaço desconhecido, o modelo de representação uti-lilizado dual, em que está subjacente o ptolemaico, transformado assim ogeógrafo antigo em instrumento de representação do onírico espacial.

Ao mesmo tempo, o mapa de Cantino mostra-nos o Atlântico (e, atra-vés dele, os demais oceanos) como espaço definido verticalmente, de acor-do com parâmetros de pólo a pólo, apoiado em termos geográficos por umenquadramento continental. Neste sentido, tem uma primeira dimensão,descritiva. Mas, no tratamento gráfico dado a essa descrição, a diversidadede critérios utilizada mostra que o produto (perdoe-se-me a expressão) nãonasceu de um só golpe, é fruto de um processo histórico, pelo que, nestesentido, tem uma segunda dimensão, genealógica. Finalmente, pela explí-cita alusão a Tordesilhas, não só se situa numa conjuntura determinada,como, através de tal destaque, acaba por simultaneamente aludir à proble-mática condição política desse preciso momento, pelo que, neste sentido,tem uma terceira dimensão, político-ideológica.

A referência que acabo de fazer a este mapa tem, assim, o interessede mostrar, de forma concreta, de que modo se processou esta primeiraglobalização no espírito dos que, em terra, tiveram de conceptualizar,pela primeira vez, a experiência de contactos globais protagonizada poraqueles que, no mar, demandaram regiões cada vez mais longínquas. É,no fundo, a resposta dada à necessidade de identificação do espaço, pro-blema extremamente urgente nessa conjuntura, e objecto de calorosodebate em Lisboa, nesses meses14.

14 Vd. nota 12.

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5. Salvo melhor opinião, julgo que o colocar o significado da cartade Cantino nestes termos apresenta uma interessante virtualidade; permi-te-nos melhor compreender o que ele, de facto, representa enquantoexpressão de uma determinada conjuntura. Não tenho a possibilidade deo fazer aqui pormenorizadamente15, pelo que me limitarei a apontar algu-mas ideias fundamentais: nesse momento (estamos na segunda metade doano de 1502, Vasco da Gama tinha partido poucos meses antes para a suasegunda viagem ao Oriente, depois de as opiniões se terem dividido nacorte portuguesa sobre a forma adequada para dar sequência ao regressode Pedro Álvares Cabral), caracterizada a conjuntura pela confluência dediferentes problemas (qual o reconhecimento internacional [entenda-se,por parte da vizinha monarquia castelhana] do espaço reservado a Portu-gal pelo tratado de Tordesilhas?, quais os contornos do estatuto de legiti-midade do poder lusitano, já no contexto europeu, já em face dos novospoderes ultramarinos com os quais os portugueses entram em contacto?,qual a estratégia política, e sobretudo militar, a utilizar no Oriente?),levanta-se a questão axial - e transversal porque subjacente em todas asoutras - de conceptualizar globalmente o enorme espaço em que o poderlusitano, em relativamente pouco tempo, actua.

O cronista João de Barros descreve muito bem estas dificuldadesquando relata as discussões realizadas, em Lisboa, no interior doconselho real:

E ainda a muitos, vendo somente na carta de marear uma tão grande costa deterra pintada, e tantas voltas de rumo que parecia rodearem as nossas nausduas vezes o mundo sabido, por entrar no caminho doutro novo quequeríamos descobrir, fazia neles esta pintura uma tão espantosa imaginaçãoque lhe assombrava o juízo. E se esta pintura fazia nojo à vista, ao modo quefaz ver sobre os ombros de Hércules o mundo que lhe os poetas puseram,que quase a nossa natureza se move com afectos a se condoer dos ombrosdaquela imagem pintada, como se não condoeria um prudente homem emsua consideração ver este reino (de que ele era membro) tomar sobre osombros de sua obrigação um mundo, não pintado mas verdadeiro, que àsvezes o podia fazer curvar com o grão peso da terra, do mar, do vento eardor do sol que em si continha, e o que era muito mais grave e pesado queestes elementos, a variedade de tantas gentes como nele habitavam?16.

15 Faço-o num trabalho intitulado "Globalização antes da globalização? A expansão euro-peia no século XV. O caso português", apresentado no congresso Die IberischeHalbinsel und das Heilige Romische Reich: vom 14. Jahrhundert bis zum Beginn deshabsburgischen Grossreiches - Konstruktionen des Eigenen und des Fremden(Erlangen-Nurnberg, 26-29-09.2002) (próxima publicação).

16 Ásia. Década 1.ª. Utilizo a edição de CIDADE, Hernâni; MÚRIAS, Manuel - volume1, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1945, p. 224.

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Como se vê, o processo, no que diz respeito à sua consciencializa-ção, não foi assumido nem de forma pacífica nem de forma natural.Aliás, a Carta de Pedro Vaz de Caminha, missiva escrita ao rei D.Manuel, em 1500, e onde se relata o primeiro contacto dos portuguesescom o Brasil, por outras palavras, acaba por manifestar a mesma incomo-didade intelectual pela novidade da situação. Como tive a oportunidadede chamar a atenção num trabalho especialmente dedicado a este texto,subjacente ao relato, aparentemente jornalístico, da semana de VeraCruz, está presente o problema da compreensão das formas de articula-ção dos diferentes espaços desvendados pelas expedições marítimas dosportugueses17. Quando se pensa que esta dialéctica de unificação/diversi-ficação espacial, actuante em múltiplos níveis nem sempre coerentesentre si, teve, como aspecto mais relevante, a curto prazo, a concepção deum projecto de poder político e naval organizado à escala global18, não édifícil admitir que, no fundo, a carta de Cantino represente, no plano daconstrução gráfica, a racionalização de uma paralela conceptualização.Aplicam-se aqui as palavras gerais com que CHRISTIAN JACOB se refereaos mapas como construção racional, entendendo esta expressão commeespace de savoir régi par la géométrie, la symétrie, les exigences d' unchamp de connaissances, la géographie, la carte comme modéleintelligible, comme dispositif à lire, à interpréter, à interroger autant ávoire19. Neste sentido, e continuando a seguir o mesmo autor, [l]a carteest impensable indépendamment d'un processus de communication

17 "O sentido da novidade na Carta de Pero Vaz de Caminha", Revista USP (S. Paulo),n.° 45, Março-Maio de 2000, pp. 38-47.

18 MODELSKI, George - Portuguese Seapower and the evolution of global politics inthe XV and XVII centuries. Texto apresentado na Academia de Marinha. Lisboa(Outubro de 1996) [http://faculty.washington.edU/modelski/2003.01.05.l]. Editado emTwo lectures on world politics, Lisboa, Academia de Marinha e Fundação Luso--Americana para o Desenvolvimento, 1996, pp. 13-23; MODELSKI, George,THOMPSON, William R. - Seapower in global politics, 1494-1993, Houndmills,Macmillam Press, 1988 (para o presente caso, interessam especialmente o capítulo 7desta obra, intitulado "The world powers: was Portugal the first?" [pp. 151-185]).Sobre a aplicabilidade do conceito de poder naval ao caso português, vejam-se asjudiciosas observações de DOMINGUES, Francisco Contente - Os navios daExpansão. O "Livro da Fabrica das Naos" de Fernando Oliveira e a arquitecturanaval portuguesa dos séculos XVI e XVII, volume 1, Lisboa, 2000, pp. 617-644[dissertação de doutoramento, dactilografada], assim como TELO, António José - Opoder naval nas teorias dos sistemas mundiais, Lisboa, Academia de Marinha, 1995.

19 L'Empire des cartes. Approche théorique de la cartographie á travers l'histoire (ob.cit.), p. 16.

376 Luís Adão da Fonseca

humaine qui, seul, peut justifier le projet de réduire l'environnementspacial à un modèle intelligible en même temps qu' il est visible20.

Na realidade, na carta de Cantino, há, como em qualquer outra, umacapacidade de sedução imaginária21 que, para o caso presente, tem umaespecial importância. Com efeito, o imaginário é algo que tem umaessencial ambiguidade. Sendo dificilmente objectivável, impregna de talmodo todas as formulações possíveis de cada conceito que a evoluçãodessas formulações é em si a sua própria história. Isto é, se o imagináriovive necessariamente através dos seus conteúdos lógicos - em si, nãoexiste, porque são os conteúdos que lhe dão corpo - , esses mesmos con-teúdos não o esgotam. Se o esgotassem, o imaginário, como tal, perdia-seidentificado com a explicitação dos conceitos; seria uma história cultu-ral22. Sendo assim, há uma faixa de inadequação entre o conteúdo doimaginário, por um lado, e, por outro lado, os conceitos que, ao seremverbalizados nas fontes, o tornam acessível à compreensão do historia-dor. O imaginário funciona, deste modo, como princípio activo que,actuando no interior dos conceitos, torna visíveis os respectivos conteú-dos lógicos. Ou, dito por outras palavras, é o imaginário que conferesentido a esses conteúdos.

Esta ideia pode ser explicitada nos termos seguintes: os conteúdosexpressam o que numa determinada conjuntura a sociedade pensa o quesão as realidades; o imaginário permite-nos perceber como são essas rea-lidades. A história cultural, assim entendida, corresponde mais a umaabordagem externa à realidade histórica objecto de estudo, enquanto ahistória do imaginário vai mais além, realizando uma abordagem interna.A história cultural tende, por isso, a ser descrição estática (descreve osresultados), enquanto a história do imaginário aponta para a evocaçãodinâmica (evoca os elementos motores). O imaginário reforça, enfim, adimensão de interioridade que se pretende ressaltar, evitando equívocoscom a dimensão de expressividade que as culturas, em si, têm. E, alémdisso, permite uma mais fácil aplicação desta mesma distinção a outros

2 0 Idem, ibidem.

2 1 Idem, ibidem.

2 2 Um exemplo interessante desta permamente inadequação entre o imaginário (entendidonos termos indicados no texto) e a sua explicitação nas fontes é o do tema do mundonovo situado para além do mar, desde a sua origem africana até à concretização ameri-cana (elementos com interesse em CARACCI, Ilaria Luzzana - "Columbus' OtroMundo. The genesis of a geographical concept", reimpresso em The Puzzling Hero.Studies on Christopher Columbus and the culture of his age, Roma, Carocci editore,2002, pp. 183-201).

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domínios que não o cultural, como o social, o político, etc. Neste sentido,o imaginário, na sua relação com a realidade, funciona simultaneamentecomo registo e como factor de evolução social; exprime tanto horizontesde experiências reais como os limites de compreensibilidade dessasmesmas experiências.

Em suma, o mapa de Cantino, pela expressão heterogénea dosmodelos de representação cartográfica a que recorre, mas também pelacapacidade revelada de os integrar numa globalidade, plasma uma dinâ-mica de compreensão dessa mesma globalidade, a meu ver, bastante inte-ressante. Sendo certo que descreve um espaço de âmbito mundial (nestesentido é todo o oposto de uma carta regional), consegue diferenciar osestratos temporais que caracterizam cada uma das áreas regionais. Isto é,consegue enquadrar, de modo aparentemente coerente, as diferentes taxio-nomias espaciais, através de uma articulação temporal, ou seja, histórica;por isso, lhe reconheci uma dimensão genealógica. Tudo isto, finalmente,reportando-se, pelos elementos ideológicos que comporta (a referênciacentral a Tordesilhas), aponta para uma determinada conjuntura políticado Portugal dos inícios do século XVI. Neste sentido, este mapa podemuito bem ser visto como uma explicitação mediatizadora de um com-plexo imaginativo que, plasmado numa representação visual, mas sem aesgotar, tem uma função quase de tipo metafórico. Cumprindo aqui o seupapel comunicativo, é fundamentalmente uma fonte explicitadora, mascom uma capacidade de expressividade muito superior à dos textos nar-rativos seus contemporâneos.

Com efeito, neste caso concreto, a valoração da fonte cartográficareveste-se de inegáveis virtualidades; por um lado, explicita, o que ostextos narrativos dificilmente poderiam fazer, o carácter polissémico(uma polissemia a nível de ideias que, em termos sociais, é policéfala) doimaginário marítimo na transição do século XV para o XVI; e, por outrolado, como resultado do esforço feito no sentido de o integrar numa dadaconjuntura histórica - a portuguesa, no rescaldo das primeiras viagens daCarreira das Índias (1499-1502) - , constitui um bom exemplo de como osignificado das ideias (neste caso, a ideia da globalidade do mundo) difi-cilmente é compreensível sem a consideração do uso de que dela faz asociedade. Em resumo, o mapa de Cantino é susceptível de uma leiturabivalente; funciona como suporte de um complexo imaginativo e, simul-taneamente, como indício da dinâmica que orienta as transformaçõeshistóricas num dado momento.