"Um Sotaque Disfarçado": a recepção de referências americanas na Escola Nacional de Belas Artes

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Um Sotaque Disfarçado: A recepção de referências americanas no curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes Fernando Atique * ATIQUE, Fernando. Um Sotaque Disfarçado: A recepção de referências americanas no curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes. 19&20 , Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_atique.htm>. * * * Curiosamente, podese dizer que foi com a chegada, em 1816, de um navio de bandeira norteamericana, chamado Calpe, que se preparou o terreno para a criação da primeira escola de arquitetura, no Brasil. Este navio trouxe ao Rio de Janeiro artistas que ficariam conhecidos como membros da Missão Artística Francesa. Alguns desses artistas se envolveram, dez anos mais tarde, na constituição da Academia Imperial de Belas Artes, na mesma cidade, dando origem ao primeiro curso oficial de arquitetura do país. A Academia Imperial de Belas Artes passou a ministrar o curso de arquitetura em 1827, ano em que seu funcionamento foi oficialmente autorizado. Este ensino tinha como um dos lentes principais Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny , arquiteto laureado pela École de Beaux Arts de Paris, em 1799, e ganhador do GrandPrix de Rome, um dos mais altos reconhecimentos artísticos para a sociedade francesa de fins do século XVIII e início do XIX (CONDURU, 2003: 143). O que vários autores sustentam é que, durante o Período Imperial, a repercussão da escola e a qualidade do trabalho de seus formandos eram deficientes, pois a instituição não abordava, especificamente, aspectos de base tecnológica na formação dos alunos. Com isso, priorizavase uma formação mais artística, a qual se dava de forma conjunta com os candidatos a escultores, gravuristas e pintores, até o terceiro ano do curso, quando, então, os arquitetos eram submetidos a aulas de Pequenas e Grandes Composições para obtenção do título específico (SOUSA, 2001: 60). De fato, a carreira arquitetônica não atraía muita atenção do público brasileiro apto a procurar um curso superior. Alberto Souza apresenta algumas razões para a pouca repercussão dessa formação, ainda nos primeiros anos da Academia, e comenta que, em vinte e três anos ininterruptos de atuação docente, Montigny preparou somente treze arquitetos, na fase que se seguiu à instalação do curso, e três, nos últimos anos de sua vida (SOUSA, 2001: 57).[1] Uma das causas

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Um Sotaque Disfarçado: A recepção de referênciasamericanas no curso de Arquitetura da Escola Nacional

de Belas Artes

Fernando Atique *

ATIQUE, Fernando. Um Sotaque Disfarçado: A recepção de referências americanas nocurso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n.2, abr. 2008. Disponível em:<http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_atique.htm>.

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Curiosamente, pode­se dizer que foi com a chegada, em 1816, de um navio debandeira norte­americana, chamado Calpe, que se preparou o terreno para acriação da primeira escola de arquitetura, no Brasil. Este navio trouxe ao Riode Janeiro artistas que ficariam conhecidos como membros da MissãoArtística Francesa. Alguns desses artistas se envolveram, dez anos mais tarde,na constituição da Academia Imperial de Belas Artes, na mesma cidade, dandoorigem ao primeiro curso oficial de arquitetura do país.

A Academia Imperial de Belas Artes passou a ministrar o curso de arquiteturaem 1827, ano em que seu funcionamento foi oficialmente autorizado. Esteensino tinha como um dos lentes principais Auguste Henri Victor Grandjeande Montigny, arquiteto laureado pela École de Beaux­ Arts de Paris, em 1799,e ganhador do Grand­Prix de Rome, um dos mais altos reconhecimentosartísticos para a sociedade francesa de fins do século XVIII e início do XIX(CONDURU, 2003: 143).

O que vários autores sustentam é que, durante o Período Imperial, arepercussão da escola e a qualidade do trabalho de seus formandos eramdeficientes, pois a instituição não abordava, especificamente, aspectos de basetecnológica na formação dos alunos. Com isso, priorizava­se uma formaçãomais artística, a qual se dava de forma conjunta com os candidatos aescultores, gravuristas e pintores, até o terceiro ano do curso, quando, então,os arquitetos eram submetidos a aulas de Pequenas e Grandes Composiçõespara obtenção do título específico (SOUSA, 2001: 60). De fato, a carreiraarquitetônica não atraía muita atenção do público brasileiro apto a procurar umcurso superior. Alberto Souza apresenta algumas razões para a poucarepercussão dessa formação, ainda nos primeiros anos da Academia, ecomenta que, em vinte e três anos ininterruptos de atuação docente, Montignypreparou somente treze arquitetos, na fase que se seguiu à instalação do curso,e três, nos últimos anos de sua vida (SOUSA, 2001: 57).[1] Uma das causas

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dessa pouca atração de alunos era o descrédito alcançado pela Academia, queera julgada, socialmente, por educar arquitetos incapazes de construírem o quedesenhavam.

Sabe­se que com a Proclamação da República o curso sofreu alteraçãosignificativa recebendo, inclusive, no começo do século XX, uma nova sede,construída na Avenida Central. Também sob a República, a denominação daAcademia Imperial foi alterada para Escola Nacional de Belas Artes – ENBA ­, e a separação dos cursos artísticos (pintura, desenho, escultura) do curso“aplicado” (arquitetura) se tornou mais nítida, chegando a estipular exameadmissional específico para a carreira arquitetônica. Todavia, a ENBAcontinuou conhecida como formadora de “arquitetos­artistas”.

Após o período republicano notou­se que havia por parte dos docentes eadministradores dessa escola, uma atenção significativa pelo universo norte­americano de publicações. Sabe­se, por exemplo, que Adolfo Morales de losRios,[2] em concurso para provimento do cargo de professor de estereotomiana ENBA, em 1897, explicitou a necessidade de se adotar o modelo de ensinosuperior da Stanford University, nos Estados Unidos. Embora possa soarestranho que uma escola que foi criada e mantida, pelo menos durante seusprimeiros anos, vinculada ao modelo das Écoles de Beaux­Arts, procurassereferenciais estadunidenses para suas classes, deve­se ter em mente quãodiversa foi a trajetória da ENBA ao longo de toda a sua existência. Umaexplicação para tal ação deve­se ao fato de muitos docentes terem buscadoqualificação profissional no estrangeiro, sobretudo na Europa. Mas, como senota, também as publicações norte­americanas favoreceram esse aumento derepertório. Mais uma vez, deve­se apontar que Morales de los Rios era leitor earticulista, nos primeiros anos do século XX, do periódico The AmericanArchitect and Building News.

O significado do interesse de docentes, como Morales de los Rios, pelosEstados Unidos, expressa que a ENBA passou a abrigar profissionais deorigem social bem diversa daquela dos pintores e escultores dos períodosanteriores. Com a mudança do perfil dos docentes, houve a necessidade de seampliar as fontes repertoriais para a produção e para o pensamentoarquitetônico. Como a aquisição de livros em inglês era, em certo sentido,fácil, no Rio de Janeiro, ainda no século XIX, por conta dos diversos acordoscomerciais com a Grã­Bretanha, a descoberta do mundo editorial norte­americano, após a década de 1870, também não causa nenhum espanto. Pormeio de livrarias e das casas exportadoras, como a Nathanael Sands,facilmente se conseguia publicações que dirigiam o olhar dos intelectuais e

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dos acadêmicos para os Estados Unidos.

Com o prenúncio de alteração do perfil dos docentes após os primeiros anosda década de 1900, também o dos alunos de arquitetura da ENBA se alterou,atraindo filhos da elite econômica e intelectual para o curso de Arquitetura,enquanto as demais carreiras oferecidas pela escola ainda recebiam membrosdos extratos mais pobres da República, tal qual na época imperial (DURAND,1989). Se, neste período, o arquiteto encontrava campo crescente para suasobras na sociedade, sobretudo na construção de palacetes, edifícios comerciaise institucionais, na administração da ENBA ocorria o mesmo.

De fato, na ENBA, predominou, até por volta dos anos 1920, a matrizeuropéia. Contudo, isto não significa que não houvesse, desde os tempos deAdolfo Morales de los Rios, nos primeiros anos de República, material norte­americano na instituição. A pesquisa revelou que, em 1897, já havia o livro deHenry A. Reed, intitulado Topographical Drawing and Sketching, IncludingApplications of Photography, publicado em New York por John Willey &Sons. Este era livro de referência no cenário estadunidense de estudostopográficos. Dos primeiros anos do século XX foram localizados o livro deRussell Sturgis, de nome A Dictionary of Architecture and Building:biographical, historical, and descriptive by and many Architects, Painters,Engineers, and other expert writers, American and Foreign, publicado emNew York pela MacMillan, em 1901.

Com relação às revistas voltadas à arquitetura foram localizados exemplaresda Architectural Record, editada em Boston, desde 1876, primeiramente sob onome The American Architect and Architecture e, depois de 1910, já com estadesignação. O acervo desta revista na biblioteca da antiga ENBA iniciou­seem 1912, no número 31, e está completo até os dias de hoje. A ArchitecturalRecord foi porta­voz dos estilos historicistas e do modernismo, dedicandoreportagens inteiras ao movimento de construção de edifícios dentro dorepertório do Mission Style. Em 1922, por exemplo, o periódico de janeirotrouxe reportagem sobre a residência J. P. Jefferson, em Montecito, California,projetada pelo arquiteto Reginald D. Johnston, de feições tipicamente missões(ARCHITECTURAL RECORD, Jan, 1922: 8­15). O número de julho dedicou21 páginas para abordar os projetos recentes do escritório de Marston & VanPelt, atuante no sul da California, e mostrou 4 projetos completos vinculadosao Mission Style (ARCHITECTURAL RECORD, Jul, 1922: 17­38). Emoutubro, foram publicadas mais sete residências concebidas dentro do mesmoprincípio arquitetônico (ARCHITECTURAL RECORD, 1922, Oct: 318 –340), para citar apenas um ano da revista, além dos precedentes e,

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principalmente, dos sucessivos, nos quais esta temática foi abundante.

Além da Architectural Record, localizaram­se números da revistaArchitectural Digest, no entanto, sem volumes seqüenciais. A edição maisantiga remonta a 1920. Esta revista é publicada, até os dias de hoje, mesclandoreportagens sociais com projetos de arquitetura. A Architectural Digest,produzida, desde 1914, em Los Angeles, pela California KnappCommunications Corporation, também abordou projetos de formas hispânicas,em diversos números, ao longo dos anos.

Junto dessas revistas estão os livros técnicos estadunidenses, estes, sim, maisnumerosos. Extremamente importante é a presença dos já citados livros dePaul Harbeson, professor na University of Pennsylvania, nos Estados Unidos,no acervo da ENBA: The Study of Architectural Design, with SpecialReference to the Program of the Beaux­Arts institute of Design, publicadoem New York pela Pencil Points, em 1927, e Winning Designs, 1904­1927,Paris Prize in Architecture, editado pela mesma companhia, em 1928, no qualsão expostos projetos criados dentro das regras “beauxartianas”, mas comvárias referências hispânicas, aos moldes do Pan­American Union Building,de Paul Cret e Albert Kelsey, de 1907 (ATIQUE, 2007).

Embora os livros de Harbeson sejam importantes, não são comparáveis aosproduzidos por Rexford Newcomb, o principal divulgador da história e dosedifícios criados dentro do vocabulário hispânico, nos Estados Unidos. NaENBA foi possível encontrar volumes do Spanish House for America. Estelivro, publicado pela editora J. B. Lippincott, da Philadelphia, foi muitopopular no Brasil, nos anos 1920 e 1930, e foi, sem sombra de dúvida, umadas principais referências para o projeto de edificações dentro dos princípioscoloniais hispano­americanos, em todo o continente.[3] Sua presença nabiblioteca da instituição revela o porquê de muitos projetos realizados pelosegressos da ENBA mostrarem um apurado senso compositivo e dedetalhamento. Crê­se, todavia, que o rigor projetual dos alunos foi tambémalcançado pela consulta a outro título importante, o Architectural Details ofSouthern Spain: One Hundred Measured Drawings, One Hundred andThirteen Photographs, trabalho de Thomas Gibson e Gerstle Mack,publicado, em New York, em 1928, que apresenta um verdadeiro arsenal demodelos para detalhamento da arquitetura missões. Na mesma linha,localizou­se outro livro, de nome Measured Drawings of Early AmericanFurniture, da lavra de Burl N. Osburn, de 1926, que trazia, dentre muitosdesenhos ligados a outros estilos arquitetônicos, referências ao mobiliário decaráter hispânico.

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Outro título digno de nota, encontrado no acervo da ENBA, é AmericanPublic Buildings of Today, de 1931, escrito por Randolph Sexton, que mostraquase uma centena de projetos executados dentro dos referentes hispano­americanos de escolas, hospitais, creches, além de outros programas deedifícios institucionais.

Se havia fontes para apreensão da arquitetura missões, dentro da ENBA, nãose deve deixar passar, despercebidamente, os projetos publicados por alunos eex­alunos da instituição, no órgão oficial de seu grêmio: a Revista deArquitetura da ENBA. Fundada em 1934, por Levi Autran e Paulo Motta, edirigida por Sebastião de Almeida, a revista surgiu após a passagem de LucioCosta pela diretoria da Instituição. Entretanto, mesmo contando comcolaboradores ligados ao modernismo, como Álvaro Vital Brazil e AffonsoEduardo Reidy, foi possível identificar muitas reportagens sobre a temática daarquitetura neocolonial. Por vezes, foi possível encontrar projetos vinculados àarquitetura missões trazidos a público em propagandas de escritórios dearquitetura, mas, também, como artigos da própria revista. Na edição denúmero 11, de maio de 1935, o escritório Galo, Barata e Fonseca publicouuma proposta de residência assobradada que misturava as referênciashispânicas de forma bem livre, mostrando uma das variantes do neocolonialpraticado no Rio de Janeiro. (REVISTA DE ARQUITETURA DA ENBA,1935, n.11, mai: 10­12).[4]

Com relação aos textos nos quais a defesa do neocolonial era praticada, há umde autoria de Adolfo Morales de los Rios Filho,[5] de nome “Arquitetura nãoé Standard”, publicado em março de 1935, que comenta abertamente odesenvolvimento da arquitetura nos Estados Unidos. Para ele, a arquiteturapredominante na costa leste, calcada no modelo do arranha­céu, não era tãoproeminente na costa oeste, pelo fato de “o espírito espanhol e luzitano” nãoter desaparecido de seus antigos territórios, como “os sobrenomes ilustres e aheraldica recordam aos presentes”. Mas, para além desta constatação, umtanto quanto simplória, Rios Filho agrega suas considerações arquitetônicas,dizendo que “onde abundam os edifícios das ‘Missões’ espanholas dosSeculos XVII e XVIII, verdadeiros nucleos arquitetônicos – a arquitetura éoutra. ‘El rancho’, ‘la casona’, ‘el solar’, são os tipos representativos dessaarquitetura néo­colonial norte­americana” (REVISTA DE ARQUITETURADA ENBA, 1935, n.9, mar: 11).

A conclusão deste autor se baseava no fato de que o desenvolvimento “dessaarquitetura hoje denominada ‘Mission Style’ ou ‘Mediterranean Style’” sepautava pelo entendimento de que “Arquitetura não é Standard”, já que “ela

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sempre deverá corresponder ao material, aos usos e costumes, aos fatoresmesológicos, ás condições econômicas e á mão de obra” (REVISTA DEARQUITETURA DA ENBA, 1935, n.9, mar: 11).

Pelo exposto, nota­se que o debate acerca das proposições norte­americanas deentendimento do lugar, de desenvolvimento de uma arquitetura quetrabalhasse a questão das heranças culturais encontrou abrigo dentro daENBA. Cabe, então, abrir espaço para abordar de que forma houve atransmissão dessas referências entre professores e alunos, e entre os antigosalunos e a sociedade. Para tanto, torna­se importante a transcrição de trechosda obra Arquitetura no Brasil: depoimentos, do arquiteto Abelardo Reidy deSouza. Formado pela Escola Nacional de Belas Artes, em 1932, Souzaacompanhou todo o processo de mudança acontecido com a chegada, à direçãoda Escola, de Lucio Costa, que manteve o corpo docente tradicionallecionando nos últimos anos do curso, enquanto implantou cadeiras novas nosanos iniciais, voltados à valorização técnico­construtiva, ministradas porprofessores afinados com o ideário moderno. Tentando demonstrar suavinculação à matriz modernista, Abelardo de Souza expôs o ambiente deensino­aprendizado dentro da ENBA, de maneira depreciativa, mas importantede ser analisado:

Antes dos anos trinta, a arquitetura brasileira era uma constantecópia de vários estilos que imperavam na época, vindos todos deoutras terras. Para a arquitetura residencial, que era o que maisse fazia, copiava­se o ‘espanhol’; com seus avarandados emarcos, suas janelas protegidas por grades de ferro retorcidoformando desenhos os mais variados, seus pátios internospavimentados com lages de pedra e um poço no meio,geralmente, sem água. Copiava­se, também, o ‘mexicano’, umespanhol transportado para o Brasil via Hollywood, sem passarpelo México. [...] Todos esses estilos, menos o nosso ‘colonial’,chegavam por aqui por meio de revistas ou livros de arquitetura.Duas revistas que eram, na época, muito difundidas entre osestudantes, [...] eram a Mi Casita, que se não nos enganamos,era de origem Argentina e uma outra, bem brasileira, feita porum então aluno da ENBA, seu proprietário, seu editor, seuredator, autor da maioria dos projetos apresentados e, também,seu distribuidora (SOUZA, 1978: 15­17).

Souza se referia à popular Architectura: Mensário de Arte, preparada porMoacyr Fraga [Figura 1]. Este aluno lançou o primeiro número da revista em8 de junho de 1929, trazendo, já na capa, um projeto com elementosmissiones. Apesar de apresentar algumas referências ao que Paulo Santoschamou de “casinhas em pan­de­bois”, o carro­chefe da publicação foram ascasas de arquitetura vinculada ao Mission Style. Durante aproximadamente umano – a revista desapareceu precocemente – Fraga projetou muitos edifíciosresidenciais dentro das referências missões. Seu objetivo era atrair clientes

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para si próprio e para seus colegas da ENBA, muito embora ainda fosse umgraduando.

ENBA parece não ter se oposto à revista, uma vez que vários projetosproduzidos em suas classes foram divulgados pela publicação que, por sinal,sempre colocava subtítulos indicativos da condição de alunos doscolaboradores do periódico. Logo em seu número 1 foi publicado o exercíciodestinado a sondar o repertório mobilizado na execução de uma “Casa paraMilionário”. O projeto desenvolvido pelo aluno Gerson Pompeu Pinheiro,batizado de “Pinturesco Colonial”, era uma típica solução de arquiteturaneocolonial onde ficava explícita a fusão dos estilemas luso­brasileiros com oshispânicos (ARCHITECTURA: MENSÁRIO DE ARTE, 1929, n.1: 21). Nomesmo número também foi exibido o projeto realizado por Pinheiro emconjunto com Affonso Eduardo Reidy, para outra residência de um milionário[Figura 2]. Neste projeto, a fusão dos elementos hispânicos se dava em menorgrau com os de fundo luso­brasileiro, apesar de a implantação ser tipicamentebaseada nos princípios emanados das lições “beauxartianas” francesas(ARCHITECTURA: MENSÁRIO DE ARTE, 1929, n.1: 28).

Abelardo de Souza expôs, mesmo que de maneira combativa, não só adisponibilidade de encontrar livros e revistas que mostravam a arquiteturaespanhola, californiana, missioneira, enfim, “colonial”, dentro da ENBA,como o fato de que os docentes da casa sabiam e aceitavam os modelosneocoloniais advindos dos Estados Unidos. Este treinamento em sala de aulaera completado, entretanto, pelas atividades de estágio, processadas emimportantes escritórios do cenário carioca de então. É importante informar,neste sentido, que a familiaridade de Abelardo de Souza com as questõesatreladas à difusão do Mission Style, no Rio de Janeiro, deve­se,principalmente, ao fato de ele ter sido estagiário do escritório de EdgardVianna e de Raphael Galvão, em princípio dos anos 1930. Estes doisarquitetos, que, nesse período, trabalhavam juntos, empreenderam muitasobras dentro da imagética hispânica [6] (CONSTANTINO, 2004: 44).

A revista Architectura no Brasil, em 1925, também publicou projetosrealizados pelos ex­alunos da ENBA expostos no Salão de Belas Artesdaquele ano. Um que chama muito a atenção é o do arquiteto Attilio CorreiaLima, que expôs o projeto de uma residência vazada dentro dos princípiosvolumétricos e ornamentais do missões [Figura 3]. Projetos semelhantestambém foram expostos por Paulo Antunes Ribeiro e por Raphael Galvão,todos para residências missões (ARCHITECTURA NO BRASIL, 1925, n.25:27 ­ 28). Em vários números dessa publicação seriam verificados projetos

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neocoloniais, mas, talvez pelo fato de ser um periódico mais ligado àsentidades de classe do Rio de Janeiro, onde estavam os mentores doMovimento Neocolonial, foi difícil encontrar as variantes hispânicas em suaspáginas.

Embora a Escola Nacional de Belas Artes tenha sido taxada de “arcaica”,“equivocada”, “atrasada”, por várias gerações de arquitetos, ela foi, de fato,uma escola com repertório internacional, afinada com as discussões emprocesso em todo o continente americano. Defende­se a tese de que mais doque enxergar a ENBA como uma escola pró­ecletismo ela foi, especialmentenas décadas de 1920 e 1930, uma instituição que soube se comunicar com suascongêneres de norte a sul das Américas e que teve um projeto de ensinoarquitetônico [Figura 4]. Assim, pode­se dizer que ela foi uma Escola“Internacional” de Belas Artes.

Referências Bibliográficas

ATIQUE, Fernando. Arquitetando a “Boa Vizinhança”: a sociedade urbana doBrasil e a recepção do mundo norte­americano. (Tese de Doutorado). São Paulo:Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2007.

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CONSTANTINO, Regina Adorno. A obra de Abelardo de Souza. (Dissertação demestrado). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de SãoPaulo, 2004.

DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura eclasse dirigente no Brasil, 1855 / 1985. São Paulo: Perspectiva, 1989.

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GIBSON, Thomas; MACK, Gerstle. Architectural details of Southern Spain: onehundred measured drawings, one hundred and thirteen photographs. NewYork: W. Helburn, 1928.

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HARBESON, Paul. The study of architectural design, with special reference tothe program of the Beaux­Arts Institute of Design. New York: Pencil Points,1927.

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SEXTON, Randolph. American public buildings of today. New York:Architectural Book Publishing, 1931.

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SOUZA, Abelardo de. Arquitetura no Brasil: depoimentos. São Paulo: LivrariaDiadorim Editora, 1978.

* Arquiteto e urbanista, Mestre em História da Arquitetura e Doutor em História eFundamentos Sociais da Arquitetura e do Urbanismo, todos os títulos obtidos na USP.

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Docente e Pesquisador da Universidade São Francisco, campus Itatiba / SP, desde 2003.

[1] Após a morte do mestre francês, em 1850, a Academia foi conduzida pelo professor JobJustino d’Alcântara, um dos primeiros arquitetos por ele formados (SOUSA, 2001: 54).

[2] Adolfo Morales de los Rios nasceu na Espanha em 1858, onde também se formouarquiteto. Radicou­se no Brasil, no ano de 1890. Extremamente produtivo, Morales de losRios teve uma atuação ímpar no meio intelectual carioca, tornando­se, inclusive, professor daENBA, nos últimos anos do século XIX, possivelmente com a referida tese citada por CarlosComas, em 1896. Teve ativo escritório, o qual, dentre várias obras, projetou a sede da ENBAna Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, local onde, atualmente, funciona o MuseuNacional de Belas Artes. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1928. Seu Filho, Adolfo Morales delos Rios Filho também foi arquiteto e docente na ENBA.

[3] Logo no início desta pesquisa de doutoramento, em 2003, foi possível adquirir, num seboespecializado em arquitetura, em São Paulo, um exemplar desse livro, que pertencera aoescritório carioca MM Roberto, o que mostra como os arquitetos egressos da ENBA tinhamciência das publicações estadunidenses.

[4] No número 13, publicado em julho de 1935, era possível ver outro projeto da mesmaGalo, Barata e Fonseca, dentro da linguagem arquitetônica do missões.

[5] Morales de los Rios Filho era espanhol, assim como seu pai. Matriculou­se na EscolaPolitécnica do Rio de Janeiro e no curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes,por volta de 1910. Em 1914, formou­se engenheiro­arquiteto pela ENBA.

[6] Edgard Vianna, graduado na University of Pennsylvania teve, pelo menos, dois sócios aolongo de sua curta trajetória profissional. Morto em 1936, no auge de sua produção, ele foiassociado, em momentos não­precisados, mas não concomitantemente, de Roberto Lacombee de Raphael Galvão, entre 1920 e 1936.