Transgressão como operador de consumo e moda na comunicação visual da contemporaneidade

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Transgressão como operador de consumo e moda na comunicação visual da contemporaneidade Fábio Parode – Phd., Unisinos Paula Visoná – Me., Unisinos Resumo: O advento da contracultura em meados do século XX permitiu a configuração de novas formas de representação embasadas na necessidade dos indivíduos transgredirem o contexto vigente. Com o avanço da indústria cultural, configurou-se a transgressão como operador para incremento ou inovação na comunicação visual a fim de estimular o consumo. Esse procedimento foi extensamente utilizado no mundo artístico das vanguardas. O nível de transgressão operante nessas representações possibilitou a quebra de paradigmas instituídos, vinculando a ampliação dos limites dos sujeitos à insatisfação com os meios de geração de cultura operantes. Ir além das imposições engendradas pelas esferas dominantes acabou tornando-se o modus operandi na dinâmica de movimentos considerados contra-culturais, transgressores. Entretanto, a necessidade de renovação dos bens culturais operados pelos sistemas institucionalizadores, acabou por elevar essas linguagens transgressivas ao status de inovação de códigos, potencializando ressignificações conforme o impacto das mesmas nas percepções coletivas. Foi assim com o movimento Punk ressignificado pelo sistema da moda através das criações de Vivienne Westwood. Se antes esse movimento pretendia falar sobre a insatisfação social, promovendo a ruptura da estética hegemônica, de forma subjacente ele engendrou incrementos e inovação que foram operantes em nível da comunicação visual e do consumo. Hoje essas linguagens já fazem parte do conjunto das representações da cultura pop. Dessa forma a espetacularização da transgressão, tornou-se uma constante na operação das mídias que veiculam estéticas na contemporaneidade. Tem sido assim com a moda, com as artes e com o design, todos prontos a inovar nos padrões estéticos, a fim de dar conta de uma indústria da imagem que se alimenta da transgressão programada. Lançamentos espetaculares tal como o da cantora Lady Gaga ilustram essa tese. O presente artigo busca, de forma especulativa, apoiando-se na Estética, Comunicação e Arte, fazer uma análise teórico- crítica dos imperativos da indústria midiática da transgressão como dispositivo de ressignificação, inovação e incremento na comunicação visual no mercado da cultura pop. Palavras-chave: comunicação visual, design, moda, transgressão Design e clausura

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Transgressão como operador de consumo e moda na comunicação

visual da contemporaneidade

Fábio Parode – Phd., UnisinosPaula Visoná – Me., Unisinos

Resumo:

O advento da contracultura em meados do século XX permitiu a configuração de novas formasde representação embasadas na necessidade dos indivíduos transgredirem o contexto vigente.

Com o avanço da indústria cultural, configurou-se a transgressão como operador paraincremento ou inovação na comunicação visual a fim de estimular o consumo. Esse

procedimento foi extensamente utilizado no mundo artístico das vanguardas. O nível detransgressão operante nessas representações possibilitou a quebra de paradigmas instituídos,

vinculando a ampliação dos limites dos sujeitos à insatisfação com os meios de geração decultura operantes. Ir além das imposições engendradas pelas esferas dominantes acabou

tornando-se o modus operandi na dinâmica de movimentos considerados contra-culturais,transgressores. Entretanto, a necessidade de renovação dos bens culturais operados pelos

sistemas institucionalizadores, acabou por elevar essas linguagens transgressivas ao status deinovação de códigos, potencializando ressignificações conforme o impacto das mesmas naspercepções coletivas. Foi assim com o movimento Punk ressignificado pelo sistema da modaatravés das criações de Vivienne Westwood. Se antes esse movimento pretendia falar sobre ainsatisfação social, promovendo a ruptura da estética hegemônica, de forma subjacente ele

engendrou incrementos e inovação que foram operantes em nível da comunicação visual e doconsumo. Hoje essas linguagens já fazem parte do conjunto das representações da cultura pop.Dessa forma a espetacularização da transgressão, tornou-se uma constante na operação dasmídias que veiculam estéticas na contemporaneidade. Tem sido assim com a moda, com as

artes e com o design, todos prontos a inovar nos padrões estéticos, a fim de dar conta de umaindústria da imagem que se alimenta da transgressão programada. Lançamentos

espetaculares tal como o da cantora Lady Gaga ilustram essa tese. O presente artigo busca, deforma especulativa, apoiando-se na Estética, Comunicação e Arte, fazer uma análise teórico-

crítica dos imperativos da indústria midiática da transgressão como dispositivo deressignificação, inovação e incremento na comunicação visual no mercado da cultura pop.

Palavras-chave: comunicação visual, design, moda, transgressão

Design e clausura

O sistema industrial e a sociedade do consumo vêm

passando por um momento de confronto com seus limites. As

tecnologias midiáticas são motores capitais nesse processo,

particularmente àquelas que produzem imagens ou que

veiculam imagens. O modelo contemporâneo de produção e

consumo, em uma perspectiva mais geral, revela-nos como uma

de suas lógicas intrínsecas a produção de substituições e

transferências na ordem do corpo e do imaginário em ritmo

acelerado, produzindo um constante esvaziamento e

recomposição de sentidos, gerando um eterno corpo

consumidor, a ser preenchido por objetos-signos efêmeros. O

autor de La monnaie vivante, Pierre Klossowsky (1997) afirma

que há relação de exploração de consumo entre o fantasma

(fantasia) e a indústria. De acordo com esse autor, nós

possuímos por natureza instinto de propagação (de fusão),

estado de pulsão que, ao invés de nos levar à

individualidade, nos leva ao seu estado oposto, ao

múltiplo, ao coletivo.

Essa lógica evidencia uma dinâmica perversa de

produção sistêmica de confinamento e aberturas,

transformando cada nova possibilidade de abertura em uma

mercadoria (material ou imaterial), no espaço e no tempo da

satisfação. O acesso a essa satisfação, constitui-se como

um sistema de filtragem de estratos sócio-econômicos,

revelador de uma dinâmica entre forças e interesses, entre

a abundância e a carência dos corpos, projetando, no

limite, a arquitetura hierarquizada da sociedade. Assim,

resgatar a dimensão social do design e consequentemente da

moda, seja pelo questionamento sobre a construção da imagem

e sua operacionalização, ou ainda, pelo questionamento dos

objetos como agentes midiáticos, é fundamental na

perspectiva da construção de conhecimento sobre processos

comunicacionais e a dimensão coletiva.

Os modos contemporâneos de percepção e relação com os

objetos e fenômenos de massa, expandidos particularmente

pelas tecnologias midiáticas, nos possibilitam identificar

alguns campos e estratégias que potencializam a afecção da

consciência e dos comportamentos coletivos. Percebemos que

a cultura atua nesse processo como campo privilegiado das

ações midiáticas e a construção de imagens é uma das

estratégias fundamentais adotadas nesse contexto. A partir

da cultura consegue-se interferir em outras dimensões

importantes da sociedade, tais como a política e a

economia.

A cultura, e dentro dela, Arte, Moda ou Design, por

preencher nosso imaginário e alterar nossa percepção de

mundo, nos leva à definição de novos modelos, padrões e,

evidentemente, novos modos de comportamento, produção e

consumo. Ora, no caso da cultura pós-moderna, percebe-se

que há de um lado os efeitos gerados pela crise do sistema

industrial, diga-se, efeitos entrópicos de valores,

saturação dos mercados; de outro, a necessidade do próprio

sistema econômico continuar a desenvolver-se, ou seja, a

criar, produzir novos mercados. Entre esses dois pólos

estão os consumidores e cidadãos que, em última instância,

são os que detêm o poder de decidir o que irão consumir e

selecionar como valor-produto.

Esse quadro define uma batalha permanente para

construir novos referenciais simbólicos e pragmáticos que

possam promover novos modos de consumo e também de

produção. É nessa perspectiva que percebemos o problema da

imagem, da comunicação visual e sua dinâmica na moda e no

design: a comunicação visual como meio gerador de sentidos

afetando as esferas mediadoras entre o homem e o mundo.

Diga-se, uma dimensão fundamental e que é de ordem

simbólica gerativa de modulações de sentido em instâncias

mais profundas e sutis do individuo. De modo geral a

comunicação visual nos oferece a própria imagem que nos

serve de referência para definirmos a pós-modernidade.

O modelo cultural da sociedade de consumo de massa

resgata valores que evidenciam uma ordenação social onde os

ídolos da mídia se transformam em seres fantasmáticos,

portadores de uma natureza simbólica facilmente

mercadologizada, permitindo aos mesmos, um modelo de vida

que se replica como uma perspectiva atrativa, funcionando

como um dispositivo produtor de ilusões e catarses ao

conjunto dos consumidores. A devoração permanente, espécie

de movimento antropofágico, desses ídolos, imagens e

modelos, pelo consumo e sua substituição por novas imagens,

recuperadas nos interditos e nas ordens inovadoras da

transgressão, fazem parte de uma dinâmica que instaura uma

permanente sensação de movimento possível, de trocas e

realizações encadeadas em processo de reconhecimento

escalonado de aptidões, talentos e competências. Esse

processo, na sua perspectiva mais profunda resguarda uma

ordem perversa de continua submissão a um modelo específico

de consumo e produção de valores característicos de uma

ordem afirmativa das estruturas subjacentes do capitalismo.

O objetivo principal desse artigo é investigar os

processos imanentes de uma ordem que perpassa estruturas

entre o econômico e o simbólico, particularmente através da

comunicação visual, afetando a cultura como um todo, ora

transgredindo, ora assimilando. Dessa forma, buscamos

questionar e revelar evidências sobre os devires de uma

nova relação sujeito/objeto na contemporaneidade, efeito

das mídias e da comunicação de massa, fazendo emergir as

problemáticas dos valores e as crenças que alimentam e

sustentam a ordem das formas produzidas e consumidas na

sociedade do espetáculo. Um tipo de orquestração imagética

e visual, satisfazendo dessa forma as dinâmicas mais

profundas do capitalismo: estratificação social, acúmulo de

capital, e permanência de uma tensão controlada “uma paz

permanente” como diria Foucault (1997).

Dessa forma, a imagem, codificando valores simbólicos

no objeto a ser consumido, diga-se uma mercadoria, seja ela

arte ou objeto de design, renasce a cada deslocamento

intensivo numa dada ordem desejante. Nesse deslocamento vai

revelando possíveis dobras nos valores estabelecidos,

expandindo ou contraindo, enfim, projetando para além de um

cotidiano banal a condição existencial de um público em

permanente transformação e em busca de sua satisfação.

Dispositivos de construção simbólica: as heranças do

espetáculo

Cada época e sua devida cultura desenvolve seu

conjunto de dispositivos de construção e legitimação

simbólica. A moda por si só, em particular na nossa cultura

ocidental, faz parte desse conjunto de dispositivos. Seu

propósito é fundamentalmente a instauração de novos

significados, tornando visível e registrando outras

possíveis formas de representações, ativando dessa forma, a

dinâmica do consumo através de uma identidade que possa ser

significante através dos objetos e em permanente processo

de afirmação e ruptura.

Seja na obra de Duchamp, Philippe Starck ou Lady Gaga,

podemos identificar uma dinâmica fortemente associada ao

espetáculo. Aquilo que na arte estava associado ao ato

transgressor e efêmero, diga-se, um desejo de ruptura e

inovação, percebemo-lo hoje replicado no horizonte dos

produtos da indústria cultural. Indústria cultural,

conforme Adorno confere a tudo um ar de semelhança. Os

critérios de seleção são definidos “a partir do peso

especifico do aparelho técnico e do pessoal, que devem

todavia ser compreendidos, em seus menores detalhes, como

partes do mecanismo econômico de seleção” (ADORNO,

1985,p.115). Em particular as instituições da arte, mesmo

que por pressão dos agentes internos ao próprio sistema, na

mesma medida que acolheram e legitimaram como objeto de arte um

Urinol1, explicitaram a possibilidade de transformação dos

limites de concepção dos artefatos patrimoniais da

instituição, e, consequentemente, garantiram sua

continuidade no poder hierarquizado dos agentes definidores

daquilo que é arte e daquilo que não é arte. Revelou-se

nessa dinâmica a capacidade de integração pela máquina

institucional através de seus operadores, do diferente, do

transgressor, do elemento exógeno. Possibilitando-lhe, no

limite, uma atualização com relação aos valores emergentes

na sociedade. Assim como as instituições da arte

transformaram-se e acolheram as transgressões de Duchamp, o

sistema industrial hoje está pronto para acolher as

transgressões de Lady Gaga alargando nosso espectro de

esteriótipos a serem consumidos.

A inovação, mas ao mesmo tempo a permanência de uma

dada ordem – produção de riqueza e controle - , talvez seja

o motor privilegiado que permite, tanto na dinâmica de uma

instituição de arte como do sistema industrial essa busca

pelo diferente e captura do novo. Buscando novas estéticas,

que no limite, são como mercadorias, esteriótipos prêt-à-

porter, máscaras de representação, a serem consumidas por

determinado grupo de consumidores. Revela-se nessa dinâmica

tanto uma lógica que incorpora o novo, o diferente, o

agente possível “desestabilizador”, provocador de

intensidades novas e deslocamentos de sentido, quanto a

possibilidade de permanência no lugar ativo daquele que

atribui o valor, daquele que estabelece uma definição, um

1 No original em francês: La Fontaine de Marcel Duchamp, 1917.

recorte e afirma uma dada ordem, daquele que produz e lança

um sentido. Revela-se dessa forma, a dinâmica do processo

de inovação cultural.

De fato, as possíveis membranas do sistema de criação,

seja ele moda, arte ou design, apresentam espessuras

variadas e definidas por uma complexidade de agentes, entre

eles, os identificados e selecionados pelos interesses de

capital e produção simbólica. A estabilidade dessas

membranas e seu equilíbrio, sua permanência ou ruptura

depende de sua plasticidade e capacidade em incorporar,

selecionar, filtrar os novos antígenos que emergem das

tensões sociais e das produções imanentes entre novas

tecnologias e o potencial transgressor, enfim, das

dinâmicas de ruptura de uma cultura emergente em permanente

processo de produção de satisfação.

A fim de analisarmos a incorporação do ato transgressivo

como dispositivo que opera na produção de sentido para o

novo, devemos nos reportar ao sistema da arte e à lógica

fundamentada pelos grandes Salões do século XVIII e XIX. A

dinâmica proposta pelos grandes salões de arte, sendo nessa

época os de Paris os mais reconhecidos pelo seu poder

legitimador ou de recusa operam na tensão entre o novo e o

tradicional, entre os velhos cânones e as novas e

surpreendentes estéticas. É notório o caso dos

Impressionistas que realizaram uma exposição com as obras

dos recusados do Salão Oficial no final do século XIX e

conseguiram afirmar-se enquanto movimento estético cujo

valor hoje é facilmente reconhecido pelo público. Mas na

época, o grau de ferocidade e de crítica gerou a reação dos

artistas em sentido não conformista. Eles afirmaram o valor

estético de suas obras, no Salão dos Rejeitados, uma mostra

independente e transgressiva expondo aquilo que o

meanstream da arte recusou. O sucesso desse empreendimento

deveu-se particularmente a estrutura da ação em forma de

rede entre os artistas e outros agentes promotores de

informação e conhecimento, diga-se, agentes midiáticos, tal

como o fotógrafo Nadar. Esse acontecimento gerou fissuras

na dinâmica hegemônica dos dispositivos oficiais para

legitimar os valores das obras. Evidenciou-se que a efetiva

mobilização dos artistas faz história independente dos valores

estéticos hegemônicos e normas de academias, em um sentido

bastante revelador no campo da arte de micropolíticas, tal

como observa Foucault (2008). Essa experiência revelou que

o cenário (o mercado) é um campo bem mais maleável e

passível de transformação, do que se supunha, revelando no

seu interior luta de forças, confronto de valores e

interesses, expondo o espectro do poder em toda a dimensão

da cadeia de produção do valor do objeto de arte.

De forma mais ampla, podemos perceber que essa lógica

de produção de bens culturais não é isenta de ideologia,

definindo uma dada relação com o patrimônio, com a

soberania e o território, enfim com as relações sócio-

econômicas que ali se estabelecem. De fato a estrutura

processual com relação aos poderes simbólicos continua

sendo a mesma: a instauração de um “dentro” e um “fora”,

recuperando um modelo de poder bastante conhecido que é o

do rei e de sua corte, no sentido colocado por Louis Marin em Le

portrait du roi (1981).

O processo de legitimação não é simples, envolve

disputa e relações de força chegando a um estágio de

recorte final necessário, de definição de um seleto grupo,

de um logo-artista, de seus objetos-signos validados

através da chancela da instituição, seja ela na figura do

rei, do marchand, da empresa, enfim, do agente mecenas

patrocinador. É preciso considerar essa lógica envolvendo

artista - instituição – poder instituído, como um todo

sistêmico, resultando em ação definidora de um estado de

representação a ser experimentado e consumido esteticamente

pelo público em geral.

Entende-se que o espetáculo não se produz sozinho, ao

contrário, traz consigo uma complexa rede que potencializa,

do ponto de vista simbólico e também econômico, não apenas

os objetos expostos, mas o seu universo de relações

sociais. É nesse sentido que podemos perceber que grandes

Bienais tais como as de Veneza, ou mega-shows, como os de

Lady Gaga tendem a produzir ad hoc um conjunto de elementos

favoráveis não apenas aos artistas e atores implicados, mas

a todos que fazem parte da rede sócio-econômica e simbólica

daquela empresa, daquele território existencial. A lógica que se

desvela nesses eventos não diz respeito apenas à expressão

do humano, de suas idéias, mas também à de suas condições

materiais de existência.

O processo de legitimação de um artista e de sua obra

é bastante complexo, envolvendo critérios e estratégias

regulares e evidentes em alguns aspectos, porém, de difícil

definição em outros, tangenciando com freqüência o universo

das paixões e das relações pessoais. Recorrendo à lógica

das paixões tristes e das paixões alegres do Tratado Político

de Espinosa, ressaltamos que um corpo realiza esforço para

atingir um estado de prazer em sua existência – conatus -, e

esse corpo na sua relação com outros corpos, pode tanto

produzir composição ou aniquilamento. Um objeto qualquer,

uma imagem, em toda sua complexidade, incluindo seus

dispositivos de legitimação, metaforicamente tal como um

corpo, estará permanentemente numa relação de força com

outros corpos. Então a questão de fundo que se origina a

partir do pensamento espinosista é: o que pode esse corpo,

ou seja, o que pode esse objeto da cultura, seja ele,

originalmente da moda, do espetáculo, etc.? Responder a

essa questão implica na percepção do grau de potência desse

corpo tanto no sentido de objeto que sofre afecções como no

sentido de objeto que produz afecções sobre outros corpos.

Um objeto posto no mundo produz efeitos estéticos que geram

uma gama de deslocamentos nas sensações e percepções,

podendo rasgar ou recompor o principio dominante de

realidade. Podendo, nesse sentido, instaurar uma inovação

cultural.

A experiência de consumo de um objeto, de uma imagem

transgressiva, seja pela moda, pela arte ou pelo design,

deixa suas marcas, nos afeta, possibilitando-nos um

reposicionamento frente à realidade com a qual interagimos.

Grosso modo, é capaz de produzir novas lógicas que

desencadeiam novos estratos sensíveis podendo alterar nossa

relação com o tempo e espaço, com os objetos e os corpos. A

experiência transgressiva nos permite a experimentação de

uma nova temporalidade estético-espacial, e nessa outra

ordem de materialidade pode-se agenciar sensações para além

dos limites estabelecidos socialmente, nos estimulando

novas afecções, interferindo consequentemente na geração de

novos sentidos e identidades. Desse modo, podemos afirmar

que arte, moda ou design, no horizonte da comunicação

visual, permite-nos tensionar ou acomodar sentidos, podendo

produzir deslocamentos das sensações dos indivíduos,

permitindo com isso, novas experiências e inovações

culturais.

A transgressão como mecanismo de ressignificação

A transgressão, no universo dos bens simbólicos,

caracteriza-se como um mecanismo de ressignificação de

linguagens, atuando na implementação de novos padrões

estético-formais conforme movimentos de ruptura que podem

ser pré-orquestrados. Nota-se essa operação principalmente

a partir da segunda metade do século XX, com o advento da

contracultura e a quebra de paradigmas sociais, culturais e

comportamentais, fundamentando um status quo que parte da

legitimação das diferenças como meio de evidenciar a

contestação de limites. O dispositivo de ressignificação,

então, acabou por legitimar linguagens representativas que

foram rapidamente assimiladas pelas esferas do consumo,

proporcionando aos sistemas – da Moda e da Arte,

principalmente – formas de aceleração e renovação.

Acompanhando o agenciamento das novas tecnologias

produtoras de bens industriais e a abertura de novos

mercados a partir dos anos 50, houve uma nova geração de

público consumidor, evidenciando necessidades relativas à

caracterização do indivíduo, em sociedade e em grupos

circunscritos a coletivos específicos, apresentando novos

caminhos para a oferta de bens culturais.

Segundo Foucault, a ideia que se faz acerca de limite

e transgressão (portanto, a geração de uma dicotomia), não

é a prerrogativa central da transgressão. Existe sim uma

relação entre esses princípios, mas, essa é uma relação que

se fundamenta pela complementação. Assim, a transgressão

não se trata “de uma negação generalizada, mas de uma

afirmação que não afirma nada: em plena ruptura de

transitividade. A contestação não é o esforço do pensamento

de negar existências ou valores, é o gesto que reconduz

cada um deles aos seus limites [...]. Ali, no limite

transgredido, repercute o sim da contestação.” (FOUCAULT,

2006,p.34)

Conforme o autor, a transgressão gera a contestação

dos padrões simbólicos instituídos e, por fim, rompe com

limites potenciais, atuando no sentido de estabelecer novos

limites a partir do ato transgressivo em si. Assim, pode-se

entender que as tensões geradas pela existência de limites

e a transgressão dos mesmos, visa reacomodar as

perspectivas, partindo do fundamento que a ruptura de

limites existentes inaugurará novos códigos, passíveis de

gerar significações até então não conhecidas, ou avaliadas.

Desse modo, uma das funções do ato transgressivo reside no

estabelecimento de novos signos – ou, de rearranjos de

códigos – correspondendo à dinâmica de rompimento com o

discurso vigente, estabelecendo, a partir disso,

perspectivas de configuração de discursos até então

desconhecidos: “O novo não está no arranjo discursivo, mas

no acontecimento de sua volta.” (FOUCAULT, 2008,p. 28).

Para exemplificar essa perspectiva, pode-se citar um

exemplo pertinente aos campos da Moda e da Arte: a Anti-Arte,

relativa ao movimento dadaísta, e a Anti-Moda, relativa ao

movimento Punk. Em ambos os casos, os signos constitutivos

de representação – obras de arte para os dadaístas, e

indumentária, para os punks – serviram para comunicar o

teor de subversão que embasava tanto preceitos estéticos,

quanto morais e comportamentais. Cada um dos movimentos

buscou, a seu modo, promover rupturas com aspectos

socioculturais diversos, partindo do escândalo para operar

tal perspectiva. Esse escândalo, segundo Benjamin (1994)

pode ser associado ao fator de distração, que acabou por

tornar-se lógica operante no campo da Arte com o advento da

reprodutibilidade técnica. A distração, assim, foi

incorporada de modo pontual pelos dadaístas, e sua prática

é passível de ser reconhecível entre os princípios

fundamentais do movimento Punk. Benjamin, com relação ao

movimento dadaísta, dizia que “de espetáculo atraente para

o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num

tiro. Atingia, pela agressão, o espectador.” (BENJAMIN,

1994,p.191)

Entretanto, a Anti-Moda, relativa ao Movimento Punk,

acabou também servindo como forma de suscitar a indignação

entre aqueles que não se reconheciam através dos signos de

contestação do movimento. Um dos mecanismos mais eficazes,

para tal prática, foi caracterizado pela indumentária

criada por indivíduos punks. Os objetos de indumentária –

mais tarde, artefatos incorporados ao campo da moda –

foram, na sua maioria, compostos por materiais oriundos do

lixo industrial e urbano. Essa forma de unir elementos

demonstrou a necessidade desses indivíduos em subverter

valores estéticos, formais e morais vigentes, provocando o

choque pela força contestatória dos elementos utilizados

para compor objetos dentro de um contexto social.

Porém, a forma de representação simbólica que tornou o

movimento Punk conhecido no mundo ocidental foi a música,

sendo a estética caracterizada pela indumentária algo

assumido a posteriori. Segundo Galvão e Kastilhos “pretendendo

inverter os valores das elites dominantes, os punks ao

invés de se apresentarem no palco [...] misturavam-se à

audiência, e ao invés de tocar e cantar, gritavam, cuspiam

e profanavam imagens religiosas daquela cultura.” (GALVÃO

& KASTILHOS, 2003,p.185)

Seis décadas separam os movimentos, porém, o princípio

da transgressão, operado através da perspectiva de

subversão de alguns valores vigentes, seja no campo das

artes, seja no meio social para, por fim, atingir a moda,

se manifesta com mesma força. Nesse sentido, o caráter

transgressor de cada movimento possui seu cerne em questões

sociais, ligando fatores macro e micro- ambientais que

modificaram padrões culturais admitidos, levando ao

entendimento da importância da transgressão como princípio

de transformação e agregação entre indivíduos.

Transgressão como fator de agregação

Ora, se a transgressão pode operar como um fator de

associação entre indivíduos, significa que seu caráter

operativo permite o entendimento de quais aspectos

socioculturais contribuem para a necessidade de romper

limites. Nesse sentido, permite-nos questionar a

importância dessa dinâmica para os campos do design e

consumo de bens simbólicos.

No caso dos dadaístas, portanto, o fator de

transgressão operado a partir da subversão estava embasado

na perspectiva de tornar tangível o descontentamento com as

políticas sociais, econômicas e governamentais do período

pós 1° Guerra Mundial, privilegiando a luta contra os

estertores e delírios morais daquele período. As

instituições políticas, religiosas e artísticas foram

questionadas quanto ao seu papel sociocultural e econômico.

Já os punks buscaram materializar sua indignação com o

sistema político, econômico e social vigentes na década de

1970, primeiramente, em alguns países do hemisfério Norte,

mais precisamente, em solo britânico. Desse modo, a

estética assumida através da indumentária e de elementos

como maquiagem, corte de cabelo, etc., possibilitava o

reconhecimento das condições precárias a que uma

determinada classe social estava submetida. Segundo Morais

e Portinari:

“A ausência de futuro, a desesperança, odesemprego, as condições inóspitas de vida, apolítica de desestatização de Thatcher, entre outrosfatores que os destituíram de boa parte dosserviços públicos que dispunham, fizeram dessesjovens, em sua maioria oriundos de classestrabalhadoras do subúrbio, estabelecessem nosarredores de uma loja de artigos sadomasoquistas,situada numa região que não dispunha daprosperidade que as demais regiões de Chelseaofereciam, lugares de sociabilidade, onde poderiamsubverter, exteriorizar sua sensação de estagnaçãoe exílio social.” (MORAIS e PORTINARI, 2006,p.81)

Portanto, as transformações e condições inerentes ao

meio social em ambos os períodos acabou gerando artefatos

que visavam expressar o teor de insatisfação com aspectos

socioculturais diversos – relativos, pois, ao ambiente que

os envolvia em cada período. Transgredir os limites

instituídos mostrou-se um mecanismo de contestação desses

aspectos, materializando a perspectiva de subversão em

diferentes plataformas de expressão de subjetividades. A

quebra de paradigmas, instituída a partir dessa dinâmica,

possibilitou reorganizações sígnicas, permitindo a

assimilação dos códigos inaugurados por cada movimento,

seja no campo da arte ou da moda.

Nesse sentido, no campo da moda essa prática permitiu

a configuração de interpretações inéditas, visando

recodificar os códigos de subversão relativos à linguagem

punk com o intuito de oferecer outras formalizações

destituídas do sentido original. O ato transgressivo

encontrou limites, e os limites possibilitaram rearranjos

em função da difusão de linguagens representativas,

proporcionada pelo sistema da moda em nome da sobrevivência

do mesmo.

Ilustração 1: Coleção Seditioners de Vivienne Westwood, 1976 e Ilustração 2: Look deZandra Rodhes lançado em 19772

2 Fonte: MENDES e DE LA HAYE, 2003 – págs: 225 e 227

A imagem relacionada a Coleção Seditioners (1976), um

design de moda de autoria da estilista inglesa Vivienne

Westwood, mostra as primeiras representações da subversão

punk em artefatos de moda. Já a imagem de Zandra Rodhes,

ilustra como os códigos que comunicavam a subversão

circunscrita ao movimento punk foram sendo reinterpretados,

servindo para ressignificar artefatos direcionados ao

seleto círculo de usuários de alta-costura internacional. O

exemplo serve para evidenciar a utilização e apropriação da

transgressão como mecanismo operativo de renovação sígnica

no campo da moda. Nesse contexto, é possível perceber que o

sistema utiliza-se da perspectiva de rompimento de limites

no intuito de potencializar novos arranjos interpretativos,

servindo de mecanismos para a renovação das práticas

inerentes ao campo.

A transgressão como distração

Por aproximação, a transgressão, que funciona como

dispositivo operador para o consumo de bens simbólico na

moda, também pode funcionar como fator de distração, no

sentido proposto por Benjamin (1994). Segundo o autor, a

distração trata-se de uma postura de entretenimento frente a

obra de arte. Ora, por analogia às obras de arte, assumir

uma postura de entretenimento frente a artefatos supostamente

transgressivos, mostra-se, no limite, como a emulação da

dimensão contestatória inerente ao ato transgressivo.

Entretanto, na sua radicalidade, tal contestação é

inexistente, visto que o resultado – codificado como

distração – socialmente já é esperado, sendo associado às

dinâmicas de espetacularização da expressão individual.

A distração, assim, atua a partir do escândalo,

confundindo-se com o ato de transgredir limites. Espera-se,

a partir dessa prática, obter a renovação de linguagens de

modo cíclico, e esses ciclos correspondem – na lógica atual

– a momentos mercadológicos cada vez mais curtos. Nesse

sentido, a espetacularização atua no sistema da moda e por

contingência na sociedade, por distrações produzidas também

de modo cíclico. Ora, a expressão assumida por algumas

figuras icônicas contemporâneas ilustra bem essa prática,

como o caso exemplar da cantora e performer Lady Gaga. A

estética associada a essa cantora nos oferece substrato

para questionar a matriz comunicacional subjacente,

possivelmente conceitualizada como um bricolage cultural

anacrônico, típico das imagens kitsch da pós-modernidade.

Apresentando meios para emulação de sentidos de

transgressão, que são da ordem do imaginário undergroud, a

personagem funciona como imagem construída para a agregação

simbólica e emulação de desejos e fantasias coletivas.

Alimentando com suas imagens uma dinâmica sociocultural de

renovação constante de códigos subversivos, Lady Gaga acaba

por satisfazer, dessa forma, a indústria produtora

tecnologicamente preparada em associar essas imagens à

produtos que serão consumidos pela cultura visual, pela

moda, pelas artes, pelo design num gênero de transgressão

prét-à-porter.

De fato, a cantora Lady Gaga3 com suas imagens

provocativas e eróticas, produz efeitos de sentido da ordem

da distração. Replicando, desse modo, a perspectiva

operacional das indústrias culturais, cuja dinâmica é

articulada com dispositivos de difusão, mídias capazes de

projetar modelos e ícones, imagens fantasmáticas

construídas no imaginário dos coletivos sociais. A tese

sustentada é que a Persona Gaga, essa imagem fantasmática e

midiatizada por dispositivos de comunicação de massa,

funciona como campo atrator de imaginários desejantes. Cada

qual buscando nos esteriótipos dessa Persona a possibilidade

de transpor os limites instituídos pela formalização do

cotidiano, de modo a agregar à sua performance pessoal

índices de transgressividade passíveis de serem

reconhecidos como identidade em ressonância com os

coletivos urbanos.

Essa perspectiva encontra fundamento nas argumentações

tecidas pelo sociólogo Mafesolli, que entende que a

construção de uma Persona acaba por unificar vontades

diversas, de modo a permitir a vivência de ações e

retroações entre indivíduos no campo social. Segundo o

sociólogo:

3 Cantora americana de música pop, cujo nome original é Stefani Joanne Angelina Germanotta (Lady Gaga) nasceu em 28 de março de 1986 na cidade de Nova York. No ano de 2009, foi a contora que mais vendeu discos nos Estados Unidos, chegando aos 9 milhões deunidades.

O homem não é mais considerado isoladamente. Emesmo quando admitimos [...], a preponderância doimaginário, não devemos esquecer que ele resulta deum corpo social e que, de retorno, volta amaterializar-se nele. Não se trata, exatamente, deauto-suficiência, mas de constante retroação. Todaa vida mental nasce de uma relação e de seu jogo deações e retroações. (MAFESOLLI, 2002,p.104)

Desse modo a Persona Lady Gaga é capaz de agregar,

atrair para seu campo atrator, a necessidade latente de

transgressão de uma multiplicidade de indivíduos anônimos

na sociedade. Ela contribui com seu conjunto de imagens,

todas passíveis de serem operadas pela indústria e pelo

mercado, para a construção de identidades no coletivo

urbano, possibilitando formalizações estéticas através de

indumentárias.

Essa perspectiva acaba por servir aos sistemas da

indústria cultural instituídos, tal como o musical, que

reconhecem a importância desse agente agregador de vontades

coletivas – Lady Gaga – e transformam essa Persona em uma

ampla plataforma de geração de estratégias mercadológicas,

visando a distração em massa.

Considerações finais

A indústria cultural, e consequentemente a moda, com

sua permanente necessidade do novo, a fim de buscar sair dos

esgotamentos de mercado, fronteiras e clausuras do próprio

sistema, cria dispositivos de inovação cuja dinâmica, por

analogia, identifica-se com a ação performática e

transgressiva conhecida na arte. De fato a transgressão foi

adotada como meio de operar rupturas na conformidade dos

modos instituídos.

Nesse sentido, objetiva-se com a criação e

disponibilização midiática de imagens que possam funcionar

como campos atratores, agregadores de sentido em contextos

de formalização específicos. Gerando, através do consumo

dessas imagens, emulações de sentidos e sublimação do

desejo, abrindo condições para agregação de valor no

imaginário coletivo aos objetos produzidos pela indústria.

Assim, nas projeções fantasmáticas de um coletivo sobre uma

dada forma, a indústria cultural encontra um modus operandi,

permitindo a posterior manipulação e assimilação de

valores. Essa perspectiva contribuiu para a configuração da

Persona Lady Gaga, cuja imagem geral constitui-se por

fragmentos culturais diversos, satisfazendo amplamente o

imaginário de um coletivo urbano de consumidores,

permitindo-nos questionar sobre o devir da estética na

cultura pós-moderna. Estaríamos presenciando, através da

transgressão como operador para o consumo imagens que

refletem uma afirmação do dionisíaco, do grotesco, no

limite, do barroco pós-industrial, na cultura

contemporânea?

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