Transgressão como operador de consumo e moda na comunicação visual da contemporaneidade
Transcript of Transgressão como operador de consumo e moda na comunicação visual da contemporaneidade
Transgressão como operador de consumo e moda na comunicação
visual da contemporaneidade
Fábio Parode – Phd., UnisinosPaula Visoná – Me., Unisinos
Resumo:
O advento da contracultura em meados do século XX permitiu a configuração de novas formasde representação embasadas na necessidade dos indivíduos transgredirem o contexto vigente.
Com o avanço da indústria cultural, configurou-se a transgressão como operador paraincremento ou inovação na comunicação visual a fim de estimular o consumo. Esse
procedimento foi extensamente utilizado no mundo artístico das vanguardas. O nível detransgressão operante nessas representações possibilitou a quebra de paradigmas instituídos,
vinculando a ampliação dos limites dos sujeitos à insatisfação com os meios de geração decultura operantes. Ir além das imposições engendradas pelas esferas dominantes acabou
tornando-se o modus operandi na dinâmica de movimentos considerados contra-culturais,transgressores. Entretanto, a necessidade de renovação dos bens culturais operados pelos
sistemas institucionalizadores, acabou por elevar essas linguagens transgressivas ao status deinovação de códigos, potencializando ressignificações conforme o impacto das mesmas naspercepções coletivas. Foi assim com o movimento Punk ressignificado pelo sistema da modaatravés das criações de Vivienne Westwood. Se antes esse movimento pretendia falar sobre ainsatisfação social, promovendo a ruptura da estética hegemônica, de forma subjacente ele
engendrou incrementos e inovação que foram operantes em nível da comunicação visual e doconsumo. Hoje essas linguagens já fazem parte do conjunto das representações da cultura pop.Dessa forma a espetacularização da transgressão, tornou-se uma constante na operação dasmídias que veiculam estéticas na contemporaneidade. Tem sido assim com a moda, com as
artes e com o design, todos prontos a inovar nos padrões estéticos, a fim de dar conta de umaindústria da imagem que se alimenta da transgressão programada. Lançamentos
espetaculares tal como o da cantora Lady Gaga ilustram essa tese. O presente artigo busca, deforma especulativa, apoiando-se na Estética, Comunicação e Arte, fazer uma análise teórico-
crítica dos imperativos da indústria midiática da transgressão como dispositivo deressignificação, inovação e incremento na comunicação visual no mercado da cultura pop.
Palavras-chave: comunicação visual, design, moda, transgressão
Design e clausura
O sistema industrial e a sociedade do consumo vêm
passando por um momento de confronto com seus limites. As
tecnologias midiáticas são motores capitais nesse processo,
particularmente àquelas que produzem imagens ou que
veiculam imagens. O modelo contemporâneo de produção e
consumo, em uma perspectiva mais geral, revela-nos como uma
de suas lógicas intrínsecas a produção de substituições e
transferências na ordem do corpo e do imaginário em ritmo
acelerado, produzindo um constante esvaziamento e
recomposição de sentidos, gerando um eterno corpo
consumidor, a ser preenchido por objetos-signos efêmeros. O
autor de La monnaie vivante, Pierre Klossowsky (1997) afirma
que há relação de exploração de consumo entre o fantasma
(fantasia) e a indústria. De acordo com esse autor, nós
possuímos por natureza instinto de propagação (de fusão),
estado de pulsão que, ao invés de nos levar à
individualidade, nos leva ao seu estado oposto, ao
múltiplo, ao coletivo.
Essa lógica evidencia uma dinâmica perversa de
produção sistêmica de confinamento e aberturas,
transformando cada nova possibilidade de abertura em uma
mercadoria (material ou imaterial), no espaço e no tempo da
satisfação. O acesso a essa satisfação, constitui-se como
um sistema de filtragem de estratos sócio-econômicos,
revelador de uma dinâmica entre forças e interesses, entre
a abundância e a carência dos corpos, projetando, no
limite, a arquitetura hierarquizada da sociedade. Assim,
resgatar a dimensão social do design e consequentemente da
moda, seja pelo questionamento sobre a construção da imagem
e sua operacionalização, ou ainda, pelo questionamento dos
objetos como agentes midiáticos, é fundamental na
perspectiva da construção de conhecimento sobre processos
comunicacionais e a dimensão coletiva.
Os modos contemporâneos de percepção e relação com os
objetos e fenômenos de massa, expandidos particularmente
pelas tecnologias midiáticas, nos possibilitam identificar
alguns campos e estratégias que potencializam a afecção da
consciência e dos comportamentos coletivos. Percebemos que
a cultura atua nesse processo como campo privilegiado das
ações midiáticas e a construção de imagens é uma das
estratégias fundamentais adotadas nesse contexto. A partir
da cultura consegue-se interferir em outras dimensões
importantes da sociedade, tais como a política e a
economia.
A cultura, e dentro dela, Arte, Moda ou Design, por
preencher nosso imaginário e alterar nossa percepção de
mundo, nos leva à definição de novos modelos, padrões e,
evidentemente, novos modos de comportamento, produção e
consumo. Ora, no caso da cultura pós-moderna, percebe-se
que há de um lado os efeitos gerados pela crise do sistema
industrial, diga-se, efeitos entrópicos de valores,
saturação dos mercados; de outro, a necessidade do próprio
sistema econômico continuar a desenvolver-se, ou seja, a
criar, produzir novos mercados. Entre esses dois pólos
estão os consumidores e cidadãos que, em última instância,
são os que detêm o poder de decidir o que irão consumir e
selecionar como valor-produto.
Esse quadro define uma batalha permanente para
construir novos referenciais simbólicos e pragmáticos que
possam promover novos modos de consumo e também de
produção. É nessa perspectiva que percebemos o problema da
imagem, da comunicação visual e sua dinâmica na moda e no
design: a comunicação visual como meio gerador de sentidos
afetando as esferas mediadoras entre o homem e o mundo.
Diga-se, uma dimensão fundamental e que é de ordem
simbólica gerativa de modulações de sentido em instâncias
mais profundas e sutis do individuo. De modo geral a
comunicação visual nos oferece a própria imagem que nos
serve de referência para definirmos a pós-modernidade.
O modelo cultural da sociedade de consumo de massa
resgata valores que evidenciam uma ordenação social onde os
ídolos da mídia se transformam em seres fantasmáticos,
portadores de uma natureza simbólica facilmente
mercadologizada, permitindo aos mesmos, um modelo de vida
que se replica como uma perspectiva atrativa, funcionando
como um dispositivo produtor de ilusões e catarses ao
conjunto dos consumidores. A devoração permanente, espécie
de movimento antropofágico, desses ídolos, imagens e
modelos, pelo consumo e sua substituição por novas imagens,
recuperadas nos interditos e nas ordens inovadoras da
transgressão, fazem parte de uma dinâmica que instaura uma
permanente sensação de movimento possível, de trocas e
realizações encadeadas em processo de reconhecimento
escalonado de aptidões, talentos e competências. Esse
processo, na sua perspectiva mais profunda resguarda uma
ordem perversa de continua submissão a um modelo específico
de consumo e produção de valores característicos de uma
ordem afirmativa das estruturas subjacentes do capitalismo.
O objetivo principal desse artigo é investigar os
processos imanentes de uma ordem que perpassa estruturas
entre o econômico e o simbólico, particularmente através da
comunicação visual, afetando a cultura como um todo, ora
transgredindo, ora assimilando. Dessa forma, buscamos
questionar e revelar evidências sobre os devires de uma
nova relação sujeito/objeto na contemporaneidade, efeito
das mídias e da comunicação de massa, fazendo emergir as
problemáticas dos valores e as crenças que alimentam e
sustentam a ordem das formas produzidas e consumidas na
sociedade do espetáculo. Um tipo de orquestração imagética
e visual, satisfazendo dessa forma as dinâmicas mais
profundas do capitalismo: estratificação social, acúmulo de
capital, e permanência de uma tensão controlada “uma paz
permanente” como diria Foucault (1997).
Dessa forma, a imagem, codificando valores simbólicos
no objeto a ser consumido, diga-se uma mercadoria, seja ela
arte ou objeto de design, renasce a cada deslocamento
intensivo numa dada ordem desejante. Nesse deslocamento vai
revelando possíveis dobras nos valores estabelecidos,
expandindo ou contraindo, enfim, projetando para além de um
cotidiano banal a condição existencial de um público em
permanente transformação e em busca de sua satisfação.
Dispositivos de construção simbólica: as heranças do
espetáculo
Cada época e sua devida cultura desenvolve seu
conjunto de dispositivos de construção e legitimação
simbólica. A moda por si só, em particular na nossa cultura
ocidental, faz parte desse conjunto de dispositivos. Seu
propósito é fundamentalmente a instauração de novos
significados, tornando visível e registrando outras
possíveis formas de representações, ativando dessa forma, a
dinâmica do consumo através de uma identidade que possa ser
significante através dos objetos e em permanente processo
de afirmação e ruptura.
Seja na obra de Duchamp, Philippe Starck ou Lady Gaga,
podemos identificar uma dinâmica fortemente associada ao
espetáculo. Aquilo que na arte estava associado ao ato
transgressor e efêmero, diga-se, um desejo de ruptura e
inovação, percebemo-lo hoje replicado no horizonte dos
produtos da indústria cultural. Indústria cultural,
conforme Adorno confere a tudo um ar de semelhança. Os
critérios de seleção são definidos “a partir do peso
especifico do aparelho técnico e do pessoal, que devem
todavia ser compreendidos, em seus menores detalhes, como
partes do mecanismo econômico de seleção” (ADORNO,
1985,p.115). Em particular as instituições da arte, mesmo
que por pressão dos agentes internos ao próprio sistema, na
mesma medida que acolheram e legitimaram como objeto de arte um
Urinol1, explicitaram a possibilidade de transformação dos
limites de concepção dos artefatos patrimoniais da
instituição, e, consequentemente, garantiram sua
continuidade no poder hierarquizado dos agentes definidores
daquilo que é arte e daquilo que não é arte. Revelou-se
nessa dinâmica a capacidade de integração pela máquina
institucional através de seus operadores, do diferente, do
transgressor, do elemento exógeno. Possibilitando-lhe, no
limite, uma atualização com relação aos valores emergentes
na sociedade. Assim como as instituições da arte
transformaram-se e acolheram as transgressões de Duchamp, o
sistema industrial hoje está pronto para acolher as
transgressões de Lady Gaga alargando nosso espectro de
esteriótipos a serem consumidos.
A inovação, mas ao mesmo tempo a permanência de uma
dada ordem – produção de riqueza e controle - , talvez seja
o motor privilegiado que permite, tanto na dinâmica de uma
instituição de arte como do sistema industrial essa busca
pelo diferente e captura do novo. Buscando novas estéticas,
que no limite, são como mercadorias, esteriótipos prêt-à-
porter, máscaras de representação, a serem consumidas por
determinado grupo de consumidores. Revela-se nessa dinâmica
tanto uma lógica que incorpora o novo, o diferente, o
agente possível “desestabilizador”, provocador de
intensidades novas e deslocamentos de sentido, quanto a
possibilidade de permanência no lugar ativo daquele que
atribui o valor, daquele que estabelece uma definição, um
1 No original em francês: La Fontaine de Marcel Duchamp, 1917.
recorte e afirma uma dada ordem, daquele que produz e lança
um sentido. Revela-se dessa forma, a dinâmica do processo
de inovação cultural.
De fato, as possíveis membranas do sistema de criação,
seja ele moda, arte ou design, apresentam espessuras
variadas e definidas por uma complexidade de agentes, entre
eles, os identificados e selecionados pelos interesses de
capital e produção simbólica. A estabilidade dessas
membranas e seu equilíbrio, sua permanência ou ruptura
depende de sua plasticidade e capacidade em incorporar,
selecionar, filtrar os novos antígenos que emergem das
tensões sociais e das produções imanentes entre novas
tecnologias e o potencial transgressor, enfim, das
dinâmicas de ruptura de uma cultura emergente em permanente
processo de produção de satisfação.
A fim de analisarmos a incorporação do ato transgressivo
como dispositivo que opera na produção de sentido para o
novo, devemos nos reportar ao sistema da arte e à lógica
fundamentada pelos grandes Salões do século XVIII e XIX. A
dinâmica proposta pelos grandes salões de arte, sendo nessa
época os de Paris os mais reconhecidos pelo seu poder
legitimador ou de recusa operam na tensão entre o novo e o
tradicional, entre os velhos cânones e as novas e
surpreendentes estéticas. É notório o caso dos
Impressionistas que realizaram uma exposição com as obras
dos recusados do Salão Oficial no final do século XIX e
conseguiram afirmar-se enquanto movimento estético cujo
valor hoje é facilmente reconhecido pelo público. Mas na
época, o grau de ferocidade e de crítica gerou a reação dos
artistas em sentido não conformista. Eles afirmaram o valor
estético de suas obras, no Salão dos Rejeitados, uma mostra
independente e transgressiva expondo aquilo que o
meanstream da arte recusou. O sucesso desse empreendimento
deveu-se particularmente a estrutura da ação em forma de
rede entre os artistas e outros agentes promotores de
informação e conhecimento, diga-se, agentes midiáticos, tal
como o fotógrafo Nadar. Esse acontecimento gerou fissuras
na dinâmica hegemônica dos dispositivos oficiais para
legitimar os valores das obras. Evidenciou-se que a efetiva
mobilização dos artistas faz história independente dos valores
estéticos hegemônicos e normas de academias, em um sentido
bastante revelador no campo da arte de micropolíticas, tal
como observa Foucault (2008). Essa experiência revelou que
o cenário (o mercado) é um campo bem mais maleável e
passível de transformação, do que se supunha, revelando no
seu interior luta de forças, confronto de valores e
interesses, expondo o espectro do poder em toda a dimensão
da cadeia de produção do valor do objeto de arte.
De forma mais ampla, podemos perceber que essa lógica
de produção de bens culturais não é isenta de ideologia,
definindo uma dada relação com o patrimônio, com a
soberania e o território, enfim com as relações sócio-
econômicas que ali se estabelecem. De fato a estrutura
processual com relação aos poderes simbólicos continua
sendo a mesma: a instauração de um “dentro” e um “fora”,
recuperando um modelo de poder bastante conhecido que é o
do rei e de sua corte, no sentido colocado por Louis Marin em Le
portrait du roi (1981).
O processo de legitimação não é simples, envolve
disputa e relações de força chegando a um estágio de
recorte final necessário, de definição de um seleto grupo,
de um logo-artista, de seus objetos-signos validados
através da chancela da instituição, seja ela na figura do
rei, do marchand, da empresa, enfim, do agente mecenas
patrocinador. É preciso considerar essa lógica envolvendo
artista - instituição – poder instituído, como um todo
sistêmico, resultando em ação definidora de um estado de
representação a ser experimentado e consumido esteticamente
pelo público em geral.
Entende-se que o espetáculo não se produz sozinho, ao
contrário, traz consigo uma complexa rede que potencializa,
do ponto de vista simbólico e também econômico, não apenas
os objetos expostos, mas o seu universo de relações
sociais. É nesse sentido que podemos perceber que grandes
Bienais tais como as de Veneza, ou mega-shows, como os de
Lady Gaga tendem a produzir ad hoc um conjunto de elementos
favoráveis não apenas aos artistas e atores implicados, mas
a todos que fazem parte da rede sócio-econômica e simbólica
daquela empresa, daquele território existencial. A lógica que se
desvela nesses eventos não diz respeito apenas à expressão
do humano, de suas idéias, mas também à de suas condições
materiais de existência.
O processo de legitimação de um artista e de sua obra
é bastante complexo, envolvendo critérios e estratégias
regulares e evidentes em alguns aspectos, porém, de difícil
definição em outros, tangenciando com freqüência o universo
das paixões e das relações pessoais. Recorrendo à lógica
das paixões tristes e das paixões alegres do Tratado Político
de Espinosa, ressaltamos que um corpo realiza esforço para
atingir um estado de prazer em sua existência – conatus -, e
esse corpo na sua relação com outros corpos, pode tanto
produzir composição ou aniquilamento. Um objeto qualquer,
uma imagem, em toda sua complexidade, incluindo seus
dispositivos de legitimação, metaforicamente tal como um
corpo, estará permanentemente numa relação de força com
outros corpos. Então a questão de fundo que se origina a
partir do pensamento espinosista é: o que pode esse corpo,
ou seja, o que pode esse objeto da cultura, seja ele,
originalmente da moda, do espetáculo, etc.? Responder a
essa questão implica na percepção do grau de potência desse
corpo tanto no sentido de objeto que sofre afecções como no
sentido de objeto que produz afecções sobre outros corpos.
Um objeto posto no mundo produz efeitos estéticos que geram
uma gama de deslocamentos nas sensações e percepções,
podendo rasgar ou recompor o principio dominante de
realidade. Podendo, nesse sentido, instaurar uma inovação
cultural.
A experiência de consumo de um objeto, de uma imagem
transgressiva, seja pela moda, pela arte ou pelo design,
deixa suas marcas, nos afeta, possibilitando-nos um
reposicionamento frente à realidade com a qual interagimos.
Grosso modo, é capaz de produzir novas lógicas que
desencadeiam novos estratos sensíveis podendo alterar nossa
relação com o tempo e espaço, com os objetos e os corpos. A
experiência transgressiva nos permite a experimentação de
uma nova temporalidade estético-espacial, e nessa outra
ordem de materialidade pode-se agenciar sensações para além
dos limites estabelecidos socialmente, nos estimulando
novas afecções, interferindo consequentemente na geração de
novos sentidos e identidades. Desse modo, podemos afirmar
que arte, moda ou design, no horizonte da comunicação
visual, permite-nos tensionar ou acomodar sentidos, podendo
produzir deslocamentos das sensações dos indivíduos,
permitindo com isso, novas experiências e inovações
culturais.
A transgressão como mecanismo de ressignificação
A transgressão, no universo dos bens simbólicos,
caracteriza-se como um mecanismo de ressignificação de
linguagens, atuando na implementação de novos padrões
estético-formais conforme movimentos de ruptura que podem
ser pré-orquestrados. Nota-se essa operação principalmente
a partir da segunda metade do século XX, com o advento da
contracultura e a quebra de paradigmas sociais, culturais e
comportamentais, fundamentando um status quo que parte da
legitimação das diferenças como meio de evidenciar a
contestação de limites. O dispositivo de ressignificação,
então, acabou por legitimar linguagens representativas que
foram rapidamente assimiladas pelas esferas do consumo,
proporcionando aos sistemas – da Moda e da Arte,
principalmente – formas de aceleração e renovação.
Acompanhando o agenciamento das novas tecnologias
produtoras de bens industriais e a abertura de novos
mercados a partir dos anos 50, houve uma nova geração de
público consumidor, evidenciando necessidades relativas à
caracterização do indivíduo, em sociedade e em grupos
circunscritos a coletivos específicos, apresentando novos
caminhos para a oferta de bens culturais.
Segundo Foucault, a ideia que se faz acerca de limite
e transgressão (portanto, a geração de uma dicotomia), não
é a prerrogativa central da transgressão. Existe sim uma
relação entre esses princípios, mas, essa é uma relação que
se fundamenta pela complementação. Assim, a transgressão
não se trata “de uma negação generalizada, mas de uma
afirmação que não afirma nada: em plena ruptura de
transitividade. A contestação não é o esforço do pensamento
de negar existências ou valores, é o gesto que reconduz
cada um deles aos seus limites [...]. Ali, no limite
transgredido, repercute o sim da contestação.” (FOUCAULT,
2006,p.34)
Conforme o autor, a transgressão gera a contestação
dos padrões simbólicos instituídos e, por fim, rompe com
limites potenciais, atuando no sentido de estabelecer novos
limites a partir do ato transgressivo em si. Assim, pode-se
entender que as tensões geradas pela existência de limites
e a transgressão dos mesmos, visa reacomodar as
perspectivas, partindo do fundamento que a ruptura de
limites existentes inaugurará novos códigos, passíveis de
gerar significações até então não conhecidas, ou avaliadas.
Desse modo, uma das funções do ato transgressivo reside no
estabelecimento de novos signos – ou, de rearranjos de
códigos – correspondendo à dinâmica de rompimento com o
discurso vigente, estabelecendo, a partir disso,
perspectivas de configuração de discursos até então
desconhecidos: “O novo não está no arranjo discursivo, mas
no acontecimento de sua volta.” (FOUCAULT, 2008,p. 28).
Para exemplificar essa perspectiva, pode-se citar um
exemplo pertinente aos campos da Moda e da Arte: a Anti-Arte,
relativa ao movimento dadaísta, e a Anti-Moda, relativa ao
movimento Punk. Em ambos os casos, os signos constitutivos
de representação – obras de arte para os dadaístas, e
indumentária, para os punks – serviram para comunicar o
teor de subversão que embasava tanto preceitos estéticos,
quanto morais e comportamentais. Cada um dos movimentos
buscou, a seu modo, promover rupturas com aspectos
socioculturais diversos, partindo do escândalo para operar
tal perspectiva. Esse escândalo, segundo Benjamin (1994)
pode ser associado ao fator de distração, que acabou por
tornar-se lógica operante no campo da Arte com o advento da
reprodutibilidade técnica. A distração, assim, foi
incorporada de modo pontual pelos dadaístas, e sua prática
é passível de ser reconhecível entre os princípios
fundamentais do movimento Punk. Benjamin, com relação ao
movimento dadaísta, dizia que “de espetáculo atraente para
o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num
tiro. Atingia, pela agressão, o espectador.” (BENJAMIN,
1994,p.191)
Entretanto, a Anti-Moda, relativa ao Movimento Punk,
acabou também servindo como forma de suscitar a indignação
entre aqueles que não se reconheciam através dos signos de
contestação do movimento. Um dos mecanismos mais eficazes,
para tal prática, foi caracterizado pela indumentária
criada por indivíduos punks. Os objetos de indumentária –
mais tarde, artefatos incorporados ao campo da moda –
foram, na sua maioria, compostos por materiais oriundos do
lixo industrial e urbano. Essa forma de unir elementos
demonstrou a necessidade desses indivíduos em subverter
valores estéticos, formais e morais vigentes, provocando o
choque pela força contestatória dos elementos utilizados
para compor objetos dentro de um contexto social.
Porém, a forma de representação simbólica que tornou o
movimento Punk conhecido no mundo ocidental foi a música,
sendo a estética caracterizada pela indumentária algo
assumido a posteriori. Segundo Galvão e Kastilhos “pretendendo
inverter os valores das elites dominantes, os punks ao
invés de se apresentarem no palco [...] misturavam-se à
audiência, e ao invés de tocar e cantar, gritavam, cuspiam
e profanavam imagens religiosas daquela cultura.” (GALVÃO
& KASTILHOS, 2003,p.185)
Seis décadas separam os movimentos, porém, o princípio
da transgressão, operado através da perspectiva de
subversão de alguns valores vigentes, seja no campo das
artes, seja no meio social para, por fim, atingir a moda,
se manifesta com mesma força. Nesse sentido, o caráter
transgressor de cada movimento possui seu cerne em questões
sociais, ligando fatores macro e micro- ambientais que
modificaram padrões culturais admitidos, levando ao
entendimento da importância da transgressão como princípio
de transformação e agregação entre indivíduos.
Transgressão como fator de agregação
Ora, se a transgressão pode operar como um fator de
associação entre indivíduos, significa que seu caráter
operativo permite o entendimento de quais aspectos
socioculturais contribuem para a necessidade de romper
limites. Nesse sentido, permite-nos questionar a
importância dessa dinâmica para os campos do design e
consumo de bens simbólicos.
No caso dos dadaístas, portanto, o fator de
transgressão operado a partir da subversão estava embasado
na perspectiva de tornar tangível o descontentamento com as
políticas sociais, econômicas e governamentais do período
pós 1° Guerra Mundial, privilegiando a luta contra os
estertores e delírios morais daquele período. As
instituições políticas, religiosas e artísticas foram
questionadas quanto ao seu papel sociocultural e econômico.
Já os punks buscaram materializar sua indignação com o
sistema político, econômico e social vigentes na década de
1970, primeiramente, em alguns países do hemisfério Norte,
mais precisamente, em solo britânico. Desse modo, a
estética assumida através da indumentária e de elementos
como maquiagem, corte de cabelo, etc., possibilitava o
reconhecimento das condições precárias a que uma
determinada classe social estava submetida. Segundo Morais
e Portinari:
“A ausência de futuro, a desesperança, odesemprego, as condições inóspitas de vida, apolítica de desestatização de Thatcher, entre outrosfatores que os destituíram de boa parte dosserviços públicos que dispunham, fizeram dessesjovens, em sua maioria oriundos de classestrabalhadoras do subúrbio, estabelecessem nosarredores de uma loja de artigos sadomasoquistas,situada numa região que não dispunha daprosperidade que as demais regiões de Chelseaofereciam, lugares de sociabilidade, onde poderiamsubverter, exteriorizar sua sensação de estagnaçãoe exílio social.” (MORAIS e PORTINARI, 2006,p.81)
Portanto, as transformações e condições inerentes ao
meio social em ambos os períodos acabou gerando artefatos
que visavam expressar o teor de insatisfação com aspectos
socioculturais diversos – relativos, pois, ao ambiente que
os envolvia em cada período. Transgredir os limites
instituídos mostrou-se um mecanismo de contestação desses
aspectos, materializando a perspectiva de subversão em
diferentes plataformas de expressão de subjetividades. A
quebra de paradigmas, instituída a partir dessa dinâmica,
possibilitou reorganizações sígnicas, permitindo a
assimilação dos códigos inaugurados por cada movimento,
seja no campo da arte ou da moda.
Nesse sentido, no campo da moda essa prática permitiu
a configuração de interpretações inéditas, visando
recodificar os códigos de subversão relativos à linguagem
punk com o intuito de oferecer outras formalizações
destituídas do sentido original. O ato transgressivo
encontrou limites, e os limites possibilitaram rearranjos
em função da difusão de linguagens representativas,
proporcionada pelo sistema da moda em nome da sobrevivência
do mesmo.
Ilustração 1: Coleção Seditioners de Vivienne Westwood, 1976 e Ilustração 2: Look deZandra Rodhes lançado em 19772
2 Fonte: MENDES e DE LA HAYE, 2003 – págs: 225 e 227
A imagem relacionada a Coleção Seditioners (1976), um
design de moda de autoria da estilista inglesa Vivienne
Westwood, mostra as primeiras representações da subversão
punk em artefatos de moda. Já a imagem de Zandra Rodhes,
ilustra como os códigos que comunicavam a subversão
circunscrita ao movimento punk foram sendo reinterpretados,
servindo para ressignificar artefatos direcionados ao
seleto círculo de usuários de alta-costura internacional. O
exemplo serve para evidenciar a utilização e apropriação da
transgressão como mecanismo operativo de renovação sígnica
no campo da moda. Nesse contexto, é possível perceber que o
sistema utiliza-se da perspectiva de rompimento de limites
no intuito de potencializar novos arranjos interpretativos,
servindo de mecanismos para a renovação das práticas
inerentes ao campo.
A transgressão como distração
Por aproximação, a transgressão, que funciona como
dispositivo operador para o consumo de bens simbólico na
moda, também pode funcionar como fator de distração, no
sentido proposto por Benjamin (1994). Segundo o autor, a
distração trata-se de uma postura de entretenimento frente a
obra de arte. Ora, por analogia às obras de arte, assumir
uma postura de entretenimento frente a artefatos supostamente
transgressivos, mostra-se, no limite, como a emulação da
dimensão contestatória inerente ao ato transgressivo.
Entretanto, na sua radicalidade, tal contestação é
inexistente, visto que o resultado – codificado como
distração – socialmente já é esperado, sendo associado às
dinâmicas de espetacularização da expressão individual.
A distração, assim, atua a partir do escândalo,
confundindo-se com o ato de transgredir limites. Espera-se,
a partir dessa prática, obter a renovação de linguagens de
modo cíclico, e esses ciclos correspondem – na lógica atual
– a momentos mercadológicos cada vez mais curtos. Nesse
sentido, a espetacularização atua no sistema da moda e por
contingência na sociedade, por distrações produzidas também
de modo cíclico. Ora, a expressão assumida por algumas
figuras icônicas contemporâneas ilustra bem essa prática,
como o caso exemplar da cantora e performer Lady Gaga. A
estética associada a essa cantora nos oferece substrato
para questionar a matriz comunicacional subjacente,
possivelmente conceitualizada como um bricolage cultural
anacrônico, típico das imagens kitsch da pós-modernidade.
Apresentando meios para emulação de sentidos de
transgressão, que são da ordem do imaginário undergroud, a
personagem funciona como imagem construída para a agregação
simbólica e emulação de desejos e fantasias coletivas.
Alimentando com suas imagens uma dinâmica sociocultural de
renovação constante de códigos subversivos, Lady Gaga acaba
por satisfazer, dessa forma, a indústria produtora
tecnologicamente preparada em associar essas imagens à
produtos que serão consumidos pela cultura visual, pela
moda, pelas artes, pelo design num gênero de transgressão
prét-à-porter.
De fato, a cantora Lady Gaga3 com suas imagens
provocativas e eróticas, produz efeitos de sentido da ordem
da distração. Replicando, desse modo, a perspectiva
operacional das indústrias culturais, cuja dinâmica é
articulada com dispositivos de difusão, mídias capazes de
projetar modelos e ícones, imagens fantasmáticas
construídas no imaginário dos coletivos sociais. A tese
sustentada é que a Persona Gaga, essa imagem fantasmática e
midiatizada por dispositivos de comunicação de massa,
funciona como campo atrator de imaginários desejantes. Cada
qual buscando nos esteriótipos dessa Persona a possibilidade
de transpor os limites instituídos pela formalização do
cotidiano, de modo a agregar à sua performance pessoal
índices de transgressividade passíveis de serem
reconhecidos como identidade em ressonância com os
coletivos urbanos.
Essa perspectiva encontra fundamento nas argumentações
tecidas pelo sociólogo Mafesolli, que entende que a
construção de uma Persona acaba por unificar vontades
diversas, de modo a permitir a vivência de ações e
retroações entre indivíduos no campo social. Segundo o
sociólogo:
3 Cantora americana de música pop, cujo nome original é Stefani Joanne Angelina Germanotta (Lady Gaga) nasceu em 28 de março de 1986 na cidade de Nova York. No ano de 2009, foi a contora que mais vendeu discos nos Estados Unidos, chegando aos 9 milhões deunidades.
O homem não é mais considerado isoladamente. Emesmo quando admitimos [...], a preponderância doimaginário, não devemos esquecer que ele resulta deum corpo social e que, de retorno, volta amaterializar-se nele. Não se trata, exatamente, deauto-suficiência, mas de constante retroação. Todaa vida mental nasce de uma relação e de seu jogo deações e retroações. (MAFESOLLI, 2002,p.104)
Desse modo a Persona Lady Gaga é capaz de agregar,
atrair para seu campo atrator, a necessidade latente de
transgressão de uma multiplicidade de indivíduos anônimos
na sociedade. Ela contribui com seu conjunto de imagens,
todas passíveis de serem operadas pela indústria e pelo
mercado, para a construção de identidades no coletivo
urbano, possibilitando formalizações estéticas através de
indumentárias.
Essa perspectiva acaba por servir aos sistemas da
indústria cultural instituídos, tal como o musical, que
reconhecem a importância desse agente agregador de vontades
coletivas – Lady Gaga – e transformam essa Persona em uma
ampla plataforma de geração de estratégias mercadológicas,
visando a distração em massa.
Considerações finais
A indústria cultural, e consequentemente a moda, com
sua permanente necessidade do novo, a fim de buscar sair dos
esgotamentos de mercado, fronteiras e clausuras do próprio
sistema, cria dispositivos de inovação cuja dinâmica, por
analogia, identifica-se com a ação performática e
transgressiva conhecida na arte. De fato a transgressão foi
adotada como meio de operar rupturas na conformidade dos
modos instituídos.
Nesse sentido, objetiva-se com a criação e
disponibilização midiática de imagens que possam funcionar
como campos atratores, agregadores de sentido em contextos
de formalização específicos. Gerando, através do consumo
dessas imagens, emulações de sentidos e sublimação do
desejo, abrindo condições para agregação de valor no
imaginário coletivo aos objetos produzidos pela indústria.
Assim, nas projeções fantasmáticas de um coletivo sobre uma
dada forma, a indústria cultural encontra um modus operandi,
permitindo a posterior manipulação e assimilação de
valores. Essa perspectiva contribuiu para a configuração da
Persona Lady Gaga, cuja imagem geral constitui-se por
fragmentos culturais diversos, satisfazendo amplamente o
imaginário de um coletivo urbano de consumidores,
permitindo-nos questionar sobre o devir da estética na
cultura pós-moderna. Estaríamos presenciando, através da
transgressão como operador para o consumo imagens que
refletem uma afirmação do dionisíaco, do grotesco, no
limite, do barroco pós-industrial, na cultura
contemporânea?
Referências bibliográficas
ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CASTILHOS, k. & GALVAO, D. A moda do corpo, o corpo da moda. Rio de
Janeiro: Esfera, 2003.
FOUCAULT, M. Microfisica do Poder. São Paulo: Graal, 2008.
. Il faut défendre la société. Cours au
College de France, 1976. Paris : Gallimard/Seuil, 1997.
. Estética : literatura e pintura, música e
cinema. 2ed. Rio de Janeiro : Forense Univesitária, 2006.
KLOSSOVSKY, P. La monnaie vivante. Paris : Payot & Rivages, 1997.
MAFESOLLI, M. O tempo das tribos. 3ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002.
MARIN, L. Le protrait du roi. Paris: Les Editiions de Minuit, 1981.
MENDES, V. DE LA HAYE, A. A moda do século XX. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
MORAES, M. & PORTINARI, D. Moda aberta, cultura juvenil e movimento
punk. Revista estudos em design, Rio de Janeiro, V.13, n°. 2, p. 75-87,
jun. 2006.
SPINOZA, B. Tratado Politico. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.