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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO THIAGO GOMES MARCILIO A EFICÁCIA JURÍDICA DOS DEVERES NO CONTEXTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO MESTRADO EM FILOSOFIA DO DIREITO SÃO PAULO 2020

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

THIAGO GOMES MARCILIO

A EFICÁCIA JURÍDICA DOS DEVERES NO CONTEXTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

MESTRADO EM FILOSOFIA DO DIREITO

SÃO PAULO 2020

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

THIAGO GOMES MARCILIO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia do Direito, sob a orientação da Professor Doutor Álvaro Travassos de Azevedo Gonzaga

SÃO PAULO 2020

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

____________________________________

_____________________________________

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução parcial

desta Tese de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura _____________________________________

Data__________________________________________

E-mail_________________________________________

FICHA CATALOGRAFICA

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MARCILIO, THIAGO GOMES

A EFICÁCIA JURÍDICA DOS DEVERES NO CONTEXTO DO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO / THIAGO GOMES

MARCILIO. -- São Paulo: [s.n.], 2020.

157p ; cm.

Orientador: Álvaro Travassos de Azevedo

Gonzaga.

Dissertação (Mestrado em Direito) -- Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, Programa de

Estudos Pós-Graduados em Direito, 2020.

1. Deveres; Abandono histórico dos deveres. 2.

Estado Democrático de Direito; . 3. Regramentos

constitucionais . 4. infraconstitucionais. I. de

Azevedo Gonzaga, Álvaro Travassos . II. Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, Programa de

Estudos Pós-Graduados em Direito. III. Título.

CDD

DEDICATÓRIA

Dedico esta pesquisa aos meus avós, Ademar, Aurelina, Lucia, Benedicto, aos meus

pais e aos meus tios Fernando e Narezia.

Dedico aos que, bons cumpridores de seus deveres, o são por vontade e consciência,

e não por imposição.

Dedico ainda aos meus professores e professoras, mestres que me guiaram pelos

caminhos da Academia, do primeiro passo até esta pesquisa.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 01-

processo: 0188887.161-456/2017-00.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 01 – process number:

0188887.161-456/2017-00.

AGRADECIMENTOS

Como todo ser vivente deve sê-lo, sou grato a pelas possibilidades de vida as

quais foram concedidas a mim.

Agradeço a Deus, à Nossa Senhora Aparecida e à Nossa Senhora de Fátima

pelas bênçãos recebidas.

Agradeço à minha mãe, Fátima Aparecida Gomes da Silva, pelo carinho,

atenção e compreensão.

Agradeço ao meu pai, Marcos Antônio Marcilio, o qual até quando foi possível

colaborou para que eu desse meus passos.

Ao meu orientador e amigo, Livre-docente Alvaro de Azevedo Travassos

Gonzaga, cuja sabedoria tornou o trajeto percorrido pela pesquisa mais iluminado.

Agradeço aos meus mecenas, Fernando Bissollatti e Narezia Bissollatti, os

quais confiaram em mim.

Ao professor Dr. André Luiz Freire e a Dra. Ritinha Stevenson pela colaboração

na pesquisa, pela amizade construída e pelos imensos ensinamentos passados

durante suas aulas e.

Aos professores Jackson Passos e Fernanda Macedo pela compreensão e

votos de sucesso.

Aos meus amigos e amigas, Denise Pereira de Oliveira, Jorge Luis Iglesias

Pascual, Rosana de Macedo Borges, Renan Soares Lima, Vanessa Gomes Diniz e

Mauricio Gabriel Monzani pelo carinho e amizade.

RESUMO

A presente dissertação predispõe-se a analisar o abandono histórico dos deveres, tomando como ponto de início a Revolução Francesa e percorrendo a trajetória destes no século XX, já no contexto do Estado Social de Direito, através de uma abordagem histórico-bibliográfica. Num segundo momento, fazendo uso de uma metodologia zetética, buscar-se-á a formulação de uma categorização dos deveres, de modo que sua estrutura reste operacional, incluindo a análise sobre a possibilidade de fixação de um Dever Originário, o qual poderia servir de guião à estruturação de tais deveres. Para tanto, serão delineados ainda os sujeitos de dever e a relativização no cumprimento destes mesmos deveres de um sujeito para outro. A pesquisa ainda se propõe a dialogar com os regramentos constitucionais e infraconstitucionais na busca pela eficácia dos deveres.

Palavras-chave: Deveres; Abandono histórico dos deveres; Estado Democrático de Direito; Regramentos constitucionais e infraconstitucionais

ABSTRACT

This dissertation predisposes to analyze the historical abandonment of duties, taking as its starting point the French Revolution and following the trajectory of these in the twentieth century, already in the context of the Social Rule of Law, through a historical-bibliographical approach. Secondly, using a zetetic methodology, we will seek to formulate a categorization of duties, so that its operational structure, including the analysis of the possibility of setting an Original Duty, which could serve as a guide to the structuring of such duties. To this end, the subjects of duty and the relativization in the fulfillment of these same duties from one subject to another will be delineated. The research also proposes to dialogue with constitutional and infraconstitutional rules in the search for the effectiveness of duties.

Keywords: Duties; Historical abandonment of duties; Democratic State of Law; Constitutional and infraconstitutional rules

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: ________________________________________________________ 103

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

1. CAPÍTULO 1 - RETOMADA HISTÓRICA DOS DEVERES 17

1.1 DEVERES DO HOMEM NO SÉCULO XVIII 17

1.2 OS DEVERES NO CONTEXTO LIBERAL 20

1.3 DEVERES NO SÉCULO XX 25

1.4 OS DEVERES E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 32

1.5 DISTINÇÕES TERMINOLÓGICAS 34

2. CAPÍTULO 2 - DEVER: NATURAL, CULTURAL E JURÍDICO 43

2.1 ÔNUS NATURAL 43

2.2 DOS DEVERES CULTURAIS 52

2.3 DOS DEVERES ARTIFICIAIS 61

2.4 DOS DEVERES JURÍDICOS 68

2.4.1 NORMA CONSTITUCIONAL - TEXTO VERSUS NORMA 71

2.4.2 ORDENAMENTO JURÍDICO 75

2.5 DAS SANÇÕES DOS DEVERES 77

3. CAPÍTULO 3 - EFICÁCIA DA NORMA 81

3.1 DO TERMO EFICÁCIA: DISTINÇÕES 81

3.2 CLASSIFICAÇÕES DOUTRINÁRIAS DA NORMAS COM BASE NA APLICABILIDADE E

EFICÁCIA 85

4. CAPÍTULO 4 - DOS DEVERES FUNDAMENTAIS 97

4.1 FUNDAMENTO JURÍDICO 97

4.2 TIPOLOGIA 106

4.3 DIÁLOGO DIREITO-DEVER 110

4.4 SUJEITOS DE DEVER 113

4.5 DEVERES (IN)DELEGÁVEIS 117

4.5.1 RELATIVIZAÇÃO 117

5. CAPÍTULO 5 - EFICÁCIA DOS DEVERES 123

5.1 EXPLÍCITOS 123

5.2 IMPLÍCITOS - UMA QUESTÃO INTERPRETATIVA 130

REFERENCIAS 151

SITES ACESSADOS 157

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INTRODUÇÃO

A relevância da presente pesquisa reside no fato de que o tema dos deveres

foi por longo período prescindido pela literatura jurídica, em especial na segunda

metade do século XX em favor de uma prevalência dos direitos.

A proposta desta dissertação é resgatar o tema dos deveres a partir da

Revolução Francesa, analisando as causas históricas para o afastamento deste

elemento jurídico, bem como trazer à tona uma proposta de reconstrução da trajetória

dos deveres.

Pretende-se ainda, considerar as possibilidades para a operacionalização

destes mesmos deveres, através dos estudos de uma provável delimitação de um

dever originário e da atuação dos sujeitos no cumprimento dos deveres que forem

fixados.

A presente pesquisa faz uso da metodologia zetética, conforme Tércio Sampaio

Ferraz Junior. Embora haja literatura sobre os deveres, sua sistematização não foi

consolidada, o que, embora dificulte sua aplicação numa perspectiva dogmática,

possibilita a exploração de novas vertentes numa perspectiva zetética, que busca

perquirir determinada problemática, questionando-lhe os pressupostos e abrindo-a ao

processo de pesquisa, ao passo que a segunda tende a buscar fundamentos que

facilitem a aplicação pragmática de dado conhecimento.

A ênfase da presente pesquisa, seguindo os ensinamentos de Tércio Sampaio

Ferraz Junior, estará na construção de questionamentos que permitam o

desenvolvimento do estudo sobre Deveres, bem como a retomada da literatura sobre

o mesmo tema, através de um método dialético, num segundo momento. Aponta o

autor:

A dogmática – do grego dokéin, ensinar, doutrinar – cumpre uma função informativa combinada com uma função diretiva, ao acentuar o aspecto resposta de uma investigação. A zetética – do grego zetéin, procurar, inquirir – cumpre uma função informativo--especulativa ao acentuar o aspecto pergunta de uma investigação mantendo, dessa maneira, abertos à dúvida

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as premissas e os princípios que ensejam respostas (FERRAZ JR, 2018, prefácio)

Questões têm uma função especulativa explícita e são infinitas, enquanto

questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e são finitas. O enfoque

zetético visa saber o que é uma coisa enquanto o enfoque dogmático visa facilitar ou

possibilitar uma decisão e orientar aquele que interpreta a determinada situação a

uma ação.

O enfoque dogmático revela o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões. O zetético, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões, pondo-as em dúvida. Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado como ser (que é algo?). Nas segundas, a situação nelas captada se configura como um dever-ser (como dever-ser algo?). Por isso o enfoque zetético visa a saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático se preocupa em possibilitar uma decisão e orientar a ação (FERRAZ JR p. 45, 2018).

Os termos que serão definidos no Capítulo I mesmo fundamentando os

capítulos seguintes poderão ser reanalisados e repensados. Tércio Sampaio Ferraz

Júnior indica que embora haja considerável diferenciação entre ambos os métodos,

não há uma linha divisória clara entre estas, visto que à zetética faz-se necessário ao

menos uma pureza terminológica para que o processo exploratório reste coerente e

compreensível, de modo que a definição de termos afaste ambiguidade.

Ademais, a mutabilidade das pesquisas zetéticas também é uma possibilidade

para que esta possa adaptar-se e restar aberta a novas interpretações: “Pela própria

natureza da metodologia zetética, esta será sempre construída sobre constatações

cuja evidência, em dada época indique um alto grau de verdade,” (FERRAZ JR p. 45,

2018). Esta é, portanto, uma pesquisa de caráter qualitativo.

O objetivo principal da presente pesquisa é analisar a noção de eficácia

atrelada aos deveres, em especial a duas categorias, as dos deveres explícitos e

implícitos.

Por sua vez, dentre os objetivos específicos figuram: (i) a retomada da trajetória

histórica dos deveres no século XVIII no pós Revolução Francesa, no Pós-Segunda

Guerra e no século XXI, no contexto do Estado Democrático de Direito; (ii) a distinção

entre terminologias que geram ambiguidades com o termo dever; (iii) a fixação de uma

hipótese para as categorias de deveres; (iv) a submissão destes deveres a uma

correlação entre si; (v) a análise do conceito e da estrutura de um dever originário, no

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contexto reserva de lei constitucional, e seu paralelismo com a norma hipotética

fundamental de Hans Kelsen e o Trilema de Munchausen, proposto por Hans Albert;

(vi) seguida da delimitação dos sujeitos de dever; (vii) a análise da possibilidade de

relativização do cumprimento de um dever de um sujeito para outro; (viii) as noções

voltadas para a eficácia da norma, bem como as suas classificações; (ix) a indicação

do grau de eficácia do dever enquanto norma, segundo a classificação de José Afonso

da Silva..

O capítulo I da presente obra prestar-se-á a repisar os passos das doutrinas de

Direito do período Iluminista até o surgimento do Estado Democrático de DIreito, já

inserido no contexto do século XXI, passando pelo contexto liberal que levou à

prevalência de direitos sobre os deveres no séc XVIII, pela República de Weimar, o

pós-segunda guerra e o ressurgimento desta prevalência dos direitos na segunda

metade do século XX, com o advento dos Direitos Humanos.

Desde logo, para que os objetos de estudo - o dever e os conjuntos de deveres

- -- o dever e os conjuntos de deveres - restem bem definidos a pesquisa procederá

com a distinção terminológica entre dever, obrigação, responsabilidade, sujeição e

ônus, O objetivo principal da pesquisa versará sobre a eficácia jurídica dos deveres.

No capítulo II, das Categorias de Deveres Categorias de Deveres, buscar-se-

á, através da construção de um homem abstrato, apresentar o conceito de ônus

natural, e recriar os deveres mais elementares do homem, enquanto ser em seu

estado físico; além da distinção entre este ônus e os Deveres Culturais, aqueles que

surgem da interpretação que o homem promove sobre a Lei Natural, oriundos do

caráter gregário do homem; bem como os Deveres Jurídicos.

No Capítulo III será feita a distinção entre os conceitos ligados a eficácia da

norma, bem como a apresentação das teses doutrinárias do Direito brasileiro que

versam sobre a temática.

O capítulo IV apresentará o fundamento, conceito, tipologia, sujeitos de dever

e o diálogo entre direito-dever, além da possibilidade de relativização dos deveres. Ao

menos três sujeitos são identificados, (i) o indivíduo, (ii) as comunidades de indivíduos,

privadas ou públicas, positivadas ou não e as difusas, bem como o próprio (iii) Estado-

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nação institucional, cabendo a pesquisa indicar a existência de outros que através de

interpretação atuam com sujeitos.

No capítulo V, e final, far-se-á a análise dos deveres em duas vertentes, a da

eficácia dos deveres jurídicos explícitos, que possuam texto legal e a eficácia dos

deveres jurídicos implícitos, que não possuem texto legal. Proceder-se-á com a

aplicação da Hermenêutica.

Neste mesmo capítulo lançar-se-á o questionamento sobre a reserva de lei

constitucional para os deveres jurídicos e seria necessário um dever originário à

estrutura destes deveres.

Este último capítulo propõe a constitucionalização dos deveres com uma

redação genérica e ampla, uma norma livre, nas palavras de Norberto Bobbio, cuja

forma de cumprimento seja lata, seguida da fixação de normas infraconstitucionais,

as quais poderão prever sanções. Enquanto normas, estarão sujeitas à interpretação

e poderão representar o espírito do dever declarado constitucional, sem no entanto

possuir uma estrutura gramatical de dever ou seja, poderão ser um direito ou norma

programática, uma ferramenta garantística do cumprimento do dever.

Por fim a Conclusão apresenta os resultados finais, a contextualização destes

e a análise sobre o atingimento dos objetivos ora propostos.

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1. CAPÍTULO 1 - RETOMADA HISTÓRICA DOS DEVERES

1.1 DEVERES DO HOMEM NO SÉCULO XVIII

O tema dos deveres é um dos reconhecidamente mais esquecidos (NABAIS,

2015, p. 15). Houve historicamente a construção de uma noção de que o Estado

possui um poder de dominação sobre seus membros e que esta mesma dominação

rivaliza com um rol de liberdades, às quais caberia o papel de fixar fronteiras entre a

vida privada dos indivíduos e a atuação do Estado sobre estes.

La vida actual del Derecho discurre en su casi totalidad, por el cauce de los derechos. Derechos subjetivos: facultades, potestades, prerrogativas. En suma, acerca de “mi” derecho, “lo mío en derecho, meum juris”, como anotaba Kant. Lor derechos ocupan, bajo los focos, el centro del escenario jurídico. En cambio, los deberes permanecen más bien en las sombras, como ya señalaba en el primer tercio del siglo pasado el jurista siciliano Santi Romano (BANDIERI, 2015, p. 223).

Há a interpretação histórica de que com o advento da Declaração Universal dos

Direitos do Homem houve uma inversão radical de perspectiva na relação

súdito/Estado, de modo que passou a prevalecer os direitos dos homens como

cidadãos, não mais súditos, sobre os direitos do soberano.

Surge um direito do cidadão que afirma sua possibilidade de resistência contra

a opressão, através do uso de seus direitos fundamentais, que são fundamentais por

são entendidos como naturais e naturais porque não dependem do “beneplácito” de

qualquer soberano (BOBBIO, 2004, p. 24)

Não somente o Estado deixaria de ser aquele que concede os direitos, de

maneira que passaria a reconhecê-los na natureza do próprio homem, como

tampouco o comando de Deus e os costumes da história seriam fonte das Leis dos

Homens, fossem estas jurídicas ou morais. A Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão (DDHC) era a amostra de que o homem se libertava de toda espécie de

tutela, “um prenúncio de que já havia atingido a maioridade.” (ARENDT, 2011, p. 395).

Se por um lado havia a noção de que era necessária a afirmação dos direitos

do homem, para que estes vissem na DDHC uma fonte de proteção aos indivíduos

que estavam ou não a salvo no Estado em que haviam nascido (ARENDT, 2011, p.

395), o mesmo não ocorria em relação aos deveres.

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Havia a conclusão de que os deveres, por decorrerem diretamente dos poderes

públicos não necessitariam de uma afirmação específica, o que resultou na

priorização das liberdades individuais em detrimento das responsabilidades

comunitárias sendo que essa liberdade goza de um Prius lógico, ontológico, ético e

político em face da responsabilidade. (Op. cit., 2015, p. 16).

Num quadro geral os deveres foram malvistos, uma posição de desvantagem

em relação ao direito, uma postura penosa e dotada de inconveniência.

[...] los deberes gozan de mala prensa: cuando no se los considera próximos de la incorrección política, se los asocia a lo penoso e inconveniente. La doctrina lo pone de manifesto se suele entender el “derecho” com una posición jurídica de ventaja y el “deber” como una posición jurídica de desventaja (BANDIERI, 2011, p. 222)

Sobressai ainda o fato de que os deveres não apenas não foram alvo de uma

enumeração ou sistematização. (NABAIS, 2015, p. 23). Tal sistematização referir-se-

ia à uma série de aspectos, dentre os quais a ora analisada eficácia, bem como outros:

a sua aplicabilidade; a eficácia imediata relativamente às entidades privadas - mesmo

quando estas atuam dentro da sua autonomia privada-; as intervenções dos poderes

públicos nos direitos; além da expressão constitucional do tema (Ibidem).

A discussão sobre um conjunto de deveres foi delineada no início dos debates

sobre a DDHC pela Assembleia Nacional francesa, de modo que havia inclusive um

setor da Assembleia que protestava contra não proclamar Direitos e Deveres em um

só documento1.

Comencemos por hacer una Declaración de Derechos y de Deberes del Hombre - exhortaba Dupont, diputado por Bigorre - para que en el momento en pueda conocerlos sepa el uso que debe darles y los límites que debe imponerles.”. El abate Grégoire agregaba: “los deberes y los derechos son correlactivos y marchan sobre dos líneas paralelas. El hombre, en general, es más propicio a reclamar sus derechos que a cumplir sus deberes: hace falta un contrapeso y la Declaración debe contener los unos y los otros” (BANDIERI, 2011, p. 223).

Seguindo a mesma linha o deputado Mounier apresentou proposta em que

cada artigo de direito corresponderia a um artigo de dever, de modo que duas colunas,

1 Trecho original: “La discusión sobre una declaración de los deberes del hombre aparece en los trabajos

preparatorios a la Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano de la Asamblea Nacional. En la

Asamblea había un sector importante dispuesto a protestar contra toda declaración que no proclamase, a la vez,

los derechos y los deberes del hombre y del ciudadano.”

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dispostas paralelamente levariam o leitor a restar esclarecido quanto aos direitos e

deveres. (BANDIERI, 2011, p. 223)

Aos fisiocratas tratava-se de um princípio de justiça natural, das leis de ordem

natural. Os homens, afirmava Quesnay, tem direitos e deveres de uma justiça absoluta

porque resultam de uma necessidade física e consequentemente, absoluta para sua

existência: nenhum direito sem dever, nenhum dever sem direito. (QUESNAY apud

BANDIERI, 2011, p.223).

A proposta de proclamar Direito e Deveres acabou por derrotada, embora tenha

tido uma numerosa minoria de 370 deputados contra 438 em 04 de agosto de 1789,

sob o argumento de que era:

inútil enunciar deberes que están compreendidos en los derechos por correlación” enquanto outro deputador respondeu “los derechos nacen porque los hombres tienen deberes entre ellos, de modo que los unos necesitan de los otros (BANDIERI, 2011, p.224).

Entre os presentes aflorou ainda o espírito de que aquele era o momento em

que os deputados congregados estariam no estado de natureza, para que ali fosse

edificado o Novo Regime. Via-se, portanto, relevância apenas nos direitos, de modo

que ao Estado que nasceria caberia fixar os deveres. O episódio demonstra a

tendência a proclamar direitos e ignorar deveres, ou ao menos fingir ignorá-los, o que

levou à tímida redação do preâmbulo da DDHC de 1789 (Ibidem, p.225).

Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres[...]2 (ASSEMBLEIA NACIONAL FRANCESA, 1789, s/n)

Em 22 de agosto de 1795, a Constituição Francesa do Ano III fixa que os

deveres derivam de dois princípios “gravados pela natureza em todos os corações:

não faça aos outros o que não gostarias que fizessem contigo E faça constantemente

aos outros o bem que gostaria que fizessem a ti.” somado a outros tantos deveres

2Disponível em:<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-

cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-

do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acessado em 20 de agosto de 2019.

20

explicitados pela Constituição, incluindo obrigações individuais. (BANDIERI, 2011,

p.225).

A partir deste ponto, fica claro que situações pendulares surgem: houve uma

afirmação extremada dos direitos, como resultado da Revolução Francesa de 1789,

seguida de reações moderadoras pela afirmação dos deveres, evidenciando uma

dicotomia entre direitos e deveres, individualismo e solidariedade (Ibidem, p.226).

Ocorre então um giro político produzido pelas decepções que se acumularam

desde o início da Revolução e que até então haviam estimulado um individualismo

exagerado, supondo que a sociedade seria reiniciada desde o seu marco zero.

(Ibidem) Passa-se a caminhar em direção aos laços interindividuais. A semente do

caráter empático e solidário do dever na Era Moderna surge neste episódio.

1.2 OS DEVERES NO CONTEXTO LIBERAL

A doutrina liberal clássica, construída por John Locke e corroborada por Adam

Smith, funda-se na primazia da individualidade, da liberdade individual e opõe-se a

instituições que objetivem uma planificação ainda que mínima da sociedade. Neste

contexto, o laissez-faire e a mão invisível3 de Adam Smith encontrariam sentido pleno.

John Locke aponta a existência de um poder político monárquico absoluto, um

absolutismo herdado da religião e do poder espiritual atemporal desta. O monarca

seria a representação temporal deste poder.

Na obra o Segundo Tratado sobre o Governo Civil, John Locke aponta de

maneira direta a existência de direitos fundamentais que não poderiam ser violados

sob nenhuma justificativa pelas instituições, pois estariam presentes num estado de

natureza originário (LOCKE, 2005, 188).

Tais direitos, em sua concepção estariam na base da formação destas

instituições, de modo que violá-los justificaria a derrubada destas entidades (Ibidem,

2005. pp. 213-234). Todavia, mesmo a aceitação da existência de uma instituição

3 A mão invisível de que Adam Smith fala operaria socialmente na distribuição das riquezas a materiais de uma

sociedade e no atingimento do bem-estar coletivo. O termo é muito debatido entre os estudiosos, sendo que

múltiplas interpretações são atribuídas. Evensky e Martin compreendem com expressão do divino, uma herança

teológica escocesa na obra do autor.

21

pública como o Estado, não afasta o aspecto negativo de que este é dotado dentro da

doutrina liberal.

[...] Do ponto de vista do indivíduo, do qual se põe o liberalismo, o Estado é concebido como um mal necessário; e enquanto tal, embora necessário (e nisso o liberalismo se distingue do anarquismo), o Estado deve se intrometer o menos possível na esfera de ação dos indivíduos. [...] (BOBBIO, 2005, p.21).

É possível concluir que na teoria lockeana os pressupostos necessários à

fundamentação do liberalismo são de caráter jusnatural, pois os elementos primeiros

encontram-se no estado de natureza e atuam como limitadores do exercício do poder

do Estado. Estes pressupostos jusnaturais existiriam sem a manifesta vontade

humana e precederiam a formação dos grupos sociais.

Indica Norberto Bobbio, tanto em relação ao jusnaturalismo, quanto ao advento

de direitos e deveres naturais derivados deste que:

[...] o jusnaturalismo é a doutrina segundo a qual existem leis não postas pela vontade humana – que por isso mesmo precedem à formação de todo grupo social e são reconhecíveis através da pesquisa racional – das quais derivam, como em toda e qualquer lei moral ou jurídica, direitos e deveres que são, pelo próprio fato de serem derivados de uma lei natural, direitos e deveres naturais (Ibidem, p.12).

Mesmo diante da possibilidade de delinear deveres interindividuais dentro de

um grupo social, fundado na liberdade individual e nos elementos apriorísticos

desejados, John Locke apresenta o receio que levaria ao estigma dos deveres fixados

pelo Estado fundado no consenso: o estigma do potestas superiorem nom

recognoscens, de modo que o Estado passa a origem de “[...] todas as fontes de

produção jurídica da lei” (Ibidem, 1997, p.12)

Tal elemento manteria no Estado, ainda que erguido sobre o consenso, o

caráter absoluto de fixação da norma, mesma característica do Estado Absoluto.

Todos os ordenamentos jurídicos seriam submetidos à essa entidade coletiva

superior, formando o elemento necessário para a legitimação do monopólio da força

pelo Estado para “[...] produzir normas vinculatórias para os membros da sociedade

[...]” (Ibidem, p.13)

Daí surge, a necessidade de controle do poder deste Estado que herda

tendências absolutistas. Norberto Bobbio indica então três grupos de teóricos os do

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direito natural; os teóricos da separação dos poderes; e, os teóricos da soberania

popular (BOBBIO, 1997, p.15-6).

No primeiro grupo encontrar ia-se a teoria lockeana os direitos naturais seriam

reconhecidos pelo Estado, que não poderia ofendê-los. O controle estaria nos

pressupostos e seria endógeno. No segundo grupo, a exemplo de Montesquieu o

controle seria exógeno e exercido através da tripartição dos poderes. O último grupo

de teóricos, representado por Jean Jacque Rousseau, considera que a participação

popular seria a ferramenta correta à tal exercício limitador. (Ibidem)

Em Rousseau, a vontade geral guia o Estado e a sua formação. Se a vontade

geral prevalece esta pode distanciar-se em termos pragmáticos daquilo que é natural,

uma vez que o povo pode ansiar pelo o que a natureza não lhe deu. Isto levaria a

edição de normas que diferindo das leis e das liberdades naturais criariam a liberdade

civil.

Enquanto ao Estado liberal sua pouca ação, em vistas a salvaguardar os

direitos naturais, é o aspecto mais relevante, na teoria de Rousseau, que traceja um

modelo democrático, a atuação do Estado conforme a vontade geral é que torna o

Estado exitoso. (Ibidem, p.48).

Há no liberalismo uma estruturação que visa conflitar e derrubar o excesso de

poder inerente ao modelo absolutista até então vigente. Daí a necessidade de

utilização de pressupostos que, por serem naturais anulariam qualquer justificativa

lógica do Absolutismo.

Ainda assim, em termos de deveres, pela própria impossibilidade de fixação de

direitos sem deveres, para a ordem liberal alguns deveres são considerados centrais,

já que se tratariam do próprio dever de não intervenção estatal e dos deveres mínimos

que os indivíduos teriam entre si.

Exemplos são o dever de não impedir os outros de se conservar, de

enriquecerem, de estarem a serviço de seus semelhantes, de não ofender à

propriedade alheia, de cumprir as promessas. Todos aspectos que formarão o modelo

contratualista moderno. Um dever geral de não causar dano a outrem, um limitador

da ação contrária a um direito (NABAIS, 2015, 42.)

23

Na Assembleia Nacional Francesa, em agosto de 1789, além da

desnecessidade de indicar deveres, pois estes seriam equivalente aos direitos, surgiu

o argumento de que nas comunidades liberais os deveres se identificavam com os

direitos. Isto garantiria a sobreposição destes sobre aqueles, uma verdadeira "era dos

direitos.” (Ibidem, p.43).

Todavia, em 1795, como onda de caráter comunitário. Dentre os 22 artigos, 9

são dedicados aos deveres que definem o "homem de bem". deveres do cidadão

pensados como “como obrigações positivas face à comunidade”. (Ibidem, 2007, p.

228) Encontram-se no texto as obrigações dos legisladores, o conhecimento e o bom

cumprimento igualitário dos deveres, no artigo primeiro; os deveres que derivam do

princípio de não fazer aos outros o que não queremos que nos façam e de uma

convivência seja baseada na subordinação às leis, no artigo terceiro; e de defender e

servir a pátria, a liberdade, a igualdade, a propriedade sempre que chamado, no artigo

nono; declarações de caráter platônico, contra o individualismo da declaração de 1789

(Ibidem, 2015, p.45)

Dentre os deveres aceitos pelo contexto Liberal encontram-se outros três de

destaque, a saber: o dever de obediência, no artigo sétimo na DDHC de 1789; o

dever de pagar impostos constante do Artigo 13 e o dever de suportar a privação

da propriedade em caso de utilidade pública, comentado no artigo 174. (Ibidem,

p.43)

Todavia, no quadro geral os deveres constitucionais adotados pelos Estados

liberais conduzem aos pressupostos de existência e funcionamento do Estado

enquanto instituição (Ibidem, p.48).

Tal cenário muda com o tempo, pois novos direitos como o de votar, farão

emanar deveres, como o dever de votar, que é fundamentalmente típico do Estado

4 ASSEMBLEIA NACIONAL FRANCESA, 1789, destaque do pesquisador:

“Artigo 7º- Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela Lei e de acordo com

as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem

ser castigados; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da Lei deve obedecer imediatamente, senão

torna-se culpado de resistência.”

Artigo 13º- Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma

contribuição comum, que deve ser repartida entre os cidadãos de acordo com as suas possibilidades.

Artigo 17º- Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando

a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia

indemnização.

24

Democrático e de caráter instrumental (NABAIS, 2015, p.51), isto exigiu da ordem

liberal a absorção de posturas que tenham caráter coletivista e solidário, apresentando

o germe dos Estados Sociais, contra os quais o modelo liberal se contrapõe5.

Destaca-se ainda que, o desenvolvimento dos aspectos democráticos levou à

uma progressiva crise no Estado liberal burguês, justamente por universalizar direitos

que até então eram das classes possuidoras de bens, a exemplo do choque entre o

sufrágio universal e o sufrágio censitário.

Um Estado liberal não é necessariamente democrático: ao contrário, realiza-se historicamente em sociedades nas quais a participação no governo é bastante restrita, limitada às classes possuidoras. Um governo democrático não dá vida necessariamente a um Estado liberal: ao contrário, o Estado liberal clássico foi posto em crise pelo progressivo processo de democratização produzido pela gradual ampliação do sufrágio até o sufrágio universal (BOBBIO, 2005, p.08).

Mas é preciso compreender que tais mudanças não correspondiam mais às

origens do liberalismo. Somente então será possível compreender as razões para que

a teoria não visasse uma abordagem comunitarista em seu tempo.

Fica claro o caráter atomista da sociedade desenhada pelos liberais, de modo

que o grupo se formaria após o consenso das partes. Todavia, o estado de natureza

originário dos direitos e deveres em que se fundou o liberalismo. são hipotéticos6. O

momento de transição, ou da assinatura do Contrato Social, ou ainda de suas razões,

não é relevante a esta pesquisa, pois o que se analisa é que há um momento pré-

social hipotético ou de natureza e um momento de fato social. Naquele os homens

são indivíduos desagregados e neste são agregados.

Do primeiro momento pode-se supor aspectos naturais que serão percebidos e

absorvidos pelo grupo social; enquanto que do segundo momento, novos direitos-

deveres serão deduzidos, desenhados e absorvidos pelo grupo social, que entende

5 BOBBIO, 2005, p.08: “Na acepção mais comum dos dois termos, por “liberalismo” entende-se uma determinada

concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e como tal se contrapõe tanto ao Estado

absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de social.” 6 Ibidem, p. 89: em termo de direitos aponta o autor "A doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia

jusnaturalista, a qual — para justificar a existência de direitos pertencentes ao homem enquanto tal,

independentemente do Estado — partira da hipótese de um estado de natureza, onde os direitos do homem são

poucos e essenciais [...] O estado de natureza era uma mera ficção doutrinária, que devia servir para justificar,

como direitos inerentes à própria natureza do homem (e, como tais, invioláveis por parte dos detentores do poder

público, inalienáveis pelos seus próprios titulares e imprescritíveis por mais longa que fosse a duração de sua

violação ou alienação), exigências de liberdade provenientes dos que lutavam contra o dogmatismo das Igrejas e

contra o autoritarismo dos Estados."

25

os fatos naturais, mas acima de tudo passa a delinear deveres de acordo com a(s)

vontade(s) dos indivíduo(s) que o compõem.

Destaca-se que tal processo histórico estará imbuído dos anseios do grupo

social que os observa, de modo que os elementos historicamente perseguidos por

dado momento histórico tornam-se os pressupostos doutrinários do grupo social. O

posterius se torna o prius.

O que se analisa é a origem, dentro da teoria liberal para o distanciamento dos

deveres visto que emanados do Estado são uma clara ferramenta de cerceamento

das liberdades. Num quadro geral, o que se sobreleva é o fato de que o espírito liberal

vê no Estado uma forma necessária, porém incômoda.

Essa possibilidade de centralizar a edição de normas precisa ser controlada e

até mesmo rechaçada em termos de fixação de deveres. Trata-se de uma constante

deliberação sobre formas e métodos de diminuição do poder do Estado o qual é, em

conteúdo e forma, absoluto.

1.3 DEVERES NO SÉCULO XX

Esse esquecimento dos deveres intensificou-se no século XX, por parte da

teoria jurídica e de sua dogmática, como resultado do momento histórico em que as

novas constituições da Europa Ocidental foram elaboradas, via de regra após a queda

de regimes totalitários ou autoritários7 e do pós-segunda guerra.

[...] como reação a tais regimes desse tipo viessem a se instalar de futuro com o Beneplácito de alguma abertura ou pretexto constitucional suscetível de interpretação nesse sentido tanto as constituições aprovadas logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, de que são paradigma constituição italiana de 1947 e a Lei fundamental da República Federal da Alemanha de 1949, como, mais recentemente, as constituições da década de 70, 80 em que se sobressaem a Constituição Portuguesa de 1976 e a Constituição Espanhola de 1978, preocuparam-se de uma maneira dominante, ou mesmo praticamente exclusiva, com os direitos fundamentais ou com os limites aos poderes em que estes se traduzem, deixando por conseguinte, ao menos aparentemente, na sombra os deveres fundamentais, esquecendo assim a responsabilidade Comunitária e de

7 Sobre a distinção entre os regimes autoritário e totalitário fixa Hannah Arendt. “A distinção decisiva entre o

domínio totalitário, baseado no terror, e as tiranias e ditaduras, impostas pela violência, é que o primeiro se volta

não apenas contra os seus inimigos, mas também contra os amigos e correligionários, pois teme todo o poder, até

mesmo o poder dos amigos. O clímax do terror é alcançado quando o Estado policial começa a devorar os seus

próprios filhos, quando o carrasco de ontem torna-se a vítima de hoje. É este o momento quando o poder desaparece

inteiramente” (ARENDT, Hannah. Da violência. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985. p. 30).

26

fazerem os indivíduos serem simultaneamente livres e responsáveis, ou seja, pessoas. " (NABAIS, 2015, p. 17) (grifo nosso).

Destaca ainda José Afonso da Silva que o pós-guerra também alterou as

noções expostas pelo jurista Ruy Barbosa, cuja obra, pertinente aos estudos da

eficácia normativa, será analisado. Indica José Afonso da Silva.

A doutrina atual sobre a aplicabilidade das normas constitucionais opõe sérios reparos à teoria exposta e procura reelaborar a matéria, sob outras perspectivas e segundo exigência do conteúdo sócio ideológico das constituições do após-guerra (SILVA, 1982, p. 75).

A Constituição Alemã do período de Weimar, que precedeu a ascensão do

governo nazista8 na década de 1930, e a qual manteve-se aplicável durante o regime,

tampouco debruçou-se em demasia sobre o tema dos deveres. Um afastamento pré-

segunda-guerra fundado em motivações diferentes.

Em 1932 Carl Schmitt expôs seu desinteresse pela temática no texto intitulado

“Direitos e deveres fundamentais” (Grundrechte un Grundpflichten), analisando a

questão no contexto da Constituição da República de Weimar em 48 páginas das

quais apenas um foi dedicada aos deveres fundamentais (DIMOULIS & MARTINS,

2011, p. 325-326).

Resumindo-o em quatro pontos principais que, em grande parte, retomaram os

argumentos proclamados pelo Liberalismo Clássico.

a) o Estado capitalista liberal não pode estabelecer deveres fundamentais que teriam a mesma estrutura dos direitos fundamentais, que sua finalidade é garantir espaços de livre atuação dos indivíduos, limitando o Estado; b) A Constituição de Weimar limitou-se a estabelecer deveres aos órgãos estatais, o único dever explícito dos cidadãos era o serviço militar; c) As referências abstratas a deveres só podem ser implementadas mediante lei que os concretizar d) O dever de cumprir as leis é uma determinação vazia de conteúdo, pois o conteúdo das obrigações não depende da Constituição, mas das variações da legislação ordinária. (PIEROTH & SCHLINK apud DIMOULIS, 2011, p. 325-326) (grifo nosso). 9;

8 A ideologia nazista tinha como fundamentos, dentre vários elementos a) o racismo, fundado na construção de

um arquétipo do antepassado germânico de raça superior as demais raças classificáveis; b) o antissemitismo; c) o

revanchismo político com as potências europeias, resultante da primeira grande guerra e (Hannah ARENDT, A

imagem do inferno, in:_______ Compreender, p. 232 apud Mark ROSEMAN, Os nazistas e a solução final, p.

13.); d) a doutrina do espaço vital ao desenvolvimento desta apontada raça superior. 9 No trecho “c) As referências abstratas a deveres só podem ser implementadas mediante lei que os concretizar”

fica evidenciada a necessidade de fixação de texto normativo para que os deveres tenham eficácia jurídica e

eficácia social (termo concretizar).

27

Décadas após essa publicação, Bodo Peiroth e Bernhard Schlink adotaram

postura próxima a de Carl Schmitt. Do seu manual de direitos fundamentais, com 300

páginas, apenas uma destas possui referência aos deveres.

Seus argumentos são semelhantes, conforme apresentado, ao referirem-se à

Constituição de Bonn (outro nome atribuído à Constituição Alemã que sucedeu a

Constituição de Weimar). “Esse dever fundamental nada mais é do que a outra face

de um direito ou garantia fundamental [...]” um reflexo no espelho (DIMOULIS &

MARTINS, 2011, p. 326).

A Constituição de Bonn desprezou os deveres em sua redação. O termo dever

não foi empregado uma única vez ao longo de todo o texto, o que evidencia um

radicalismo compreensivo para o período, uma reação contra tudo o que o regime

nazista representava.

Afirmar que a cada direito ou garantia fundamental corresponde um dever fundamental do Estado e eventualmente, dos particulares é uma afirmação óbvia e também redundante. Com efeito, esse dever fundamental nada mais é do que a outra face de um direito ou garantia fundamental, segundo a expressão de Pieroth e Schlink, é tão somente o reflexo do direito fundamental no espelho (seitenverkehrt gespieglet). (Op. cit., p. 326).

Para ambos os autores seria inútil discutir determinada questão partindo de um

dever como origem do problema, pois questionar se um cientista possui o direito de

fazer experiências com células-tronco seria o mesmo que perguntar se o Estado tem

o dever de permitir que o cientista faça tais experiências, numa situação em que

indivíduo (cientista) e Estado estariam sujeitos de deveres.

Entretanto, a exemplo da obra, “O valor do Estado e o significado do indivíduo”,

de 1914, Carl Schmitt prescreveu que caberia ao Estado estabelecer o direito e que

este não poderia admitir oposição, tampouco a autonomia do indivíduo (MACEDO JR,

2001, p. 26).

Tal posição do autor justifica-se em muito pelo contexto histórico do Império

Austro-Húngaro, que até o início da Primeira Guerra Mundial, sofria com divisões

internas. Carl Schmitt promove ainda a defesa do uso de poderes de exceção pelo

governante, a fim de que sua capacidade de decisão seja retomada (ibidem, p. 27).

28

Fixa ainda:

O pensamento que se deduz da relação soberano, direitos e deveres é a de que a fixação de direitos levaria automaticamente à indicação de deveres,

não cabendo à ordem liberal nem ao Estado soberano indicar deveres.

Enquanto na teoria liberal haveria uma incompatibilidade principiológica, uma

vez que se visa preservar os direitos fundamentais naturais em detrimento da ação do

Estado, na Teoria do Soberano de Carl Schmitt, a própria fixação de direitos pelo

Estado seria um embaraço ao exercício deste poder do soberano, fosse o soberano

um monarca ou um ditador. Deste modo fixa que:

[...] todo e qualquer direito, todas as interpretações das leis, todos os ordenamentos são para ele decisões do soberano e o soberano não é um monarca legitimo ou uma instancia competente, mas justamente aquele que decide soberanamente (SCHMITT, 2001, 170-171).

Tal pensamento era a norma fundamental para Carl Schmitt10 e, em certa

medida esta concessão ilimitada de poderes ao chefe do Estado fundamentou o

governo de Adolf Hitler na Alemanha Nazista.

A preparação para o conflito que levaria à Segunda Guerra Mundial afastou

muitos dos aspectos inerentes ao modelo liberal, como a individualidade, a autonomia

e a não intervenção estatal.

Em 1942, em meio ao conflito, o regime nazista iniciou a Solução Final

(Endlössung), que no contexto do Holocausto ampliava o potencial genocida dos

campos de concentração, de modo a agilizar o processo de extermínio das raças tidas

como inferiores pelo regime11.

10 Sobre o tema, Carl Schmitt retoma a obra de Thomas Hobbes, indicando que este cita a existência de uma lei

fundamental: “En un pasaje justamente célebre, Hobbes considera esta operación de individualizar al soberano

y a sus irrevocables poderes como la única y verdadera gran necesidad de la asociación política, la única y

verdadera ley fundamental: [...] ley fundamental es en todo Estado aquella que, si anula, el Estado se derrumba

y disuelve por completo, lo mismo que un edificio cuyos cimientos son destruidos. Por tanto, una ley fundamental

es aquella en virtud de la cual los súbditos están obligados a mantener todo poder dado al soberano, ya se éste

monarca o una asamblea soberana, sin e cual el Estado no puede subsistir” FIORAVANTI, Maurizio.

Constitución: De la Antigüedad a nuestros días. Traducción de Manuel Martínez Neira. Madrid: Trotta, 2001, p.

78. 11 "O termo "Solução Final" foi empregado para se referir ao plano de aniquilação total do povo judeu, e não se

sabe ao certo quando os líderes da Alemanha nazista decidiram implementa-la. O genocídio, ou extermínio em

massa dos judeus, foi o ápice de uma década de graves medidas discriminatórias contra”. DIsponível em:UNITED

STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM (USHMM) <https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-

br/article/final-solution-overview>.Acesso em 18 de outubro de 2019.

29

Otto Adolf Eichmann, que mais tarde seria julgado pelo Estado de Israel, insere-

se nesse contexto. Sua função dentro da máquina do Holocausto era a de execução

da tarefa e não propriamente de responsabilização (CORREIA, 2004, p. 93). A tarefa

de Eichmann era a organização das deportações dos judeus para os campos e este,

imbuído do espírito de bom cumprimento de seus deveres, era o padrão de homem

perfeito à execução da tarefa.

O homem Eichmann era o perfeito instrumento para levar a cabo a solução final: organizado, regular e eficiente tal qual a empreitada de que ele estava encarregado. Na sua função de encarregado de transporte, ele era normal e medíocre e, no entanto, perfeitamente adaptado ao trabalho que consistia em fazer as rodas deslizarem suavemente, no sentido literal e figurativo. Sua função era tornar a solução final normal. [...] Eichmann representava o melhor exemplo de um assassino de massa que era, ao mesmo tempo, um perfeito homem de família. (SOUKI, 1998, p. 92)

No contexto internacional, a Declaração Universal dos Direitos do Homem

(DUDH), enumerou os direitos, mas incorreu novamente na mesma postura da DDHC

de 1789, ao não enumerar os deveres, os quais restaram genericamente referidos, no

art. 2912, nº , o qual dispõe que “toda a pessoa tem deveres para com a comunidade,

pois só nela pode desenvolver livre e plenamente a sua personalidade” (NABAIS,

2015, p. 23).

Optou-se por um regresso ao entendimento das cartas e declarações

revolucionárias de Direitos do Homem e do Cidadão do século 19 as quais não

conheciam deveres senão aqueles relativos a direitos e os quais acompanhavam o

homem na sua transição do Estado de natureza para o estado civil. (Ibidem, p. 18).

A Lei Fundamental Alemã (Grundgesetz) também não conheceu Capítulo, título

ou parte intitulada "direitos e deveres", optou tão somente por um capítulo intitulado

"direitos fundamentais".

Talvez não tenha havido a pretensão de ignorar os deveres ou acreditar que

um texto constitucional pode existir sendo puramente voltado aos direitos, pois a

12 Declaração Universal dos Direito Humanos, 1948. “Art XXIX: Todo ser humano tem deveres para com a

comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 2. No exercício de seus

direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente

com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as

justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 3. Esses direitos e

liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações

Unidas.”

30

organização de deveres, neste mesmo texto constitucional, é uma exigência estrutural

de qualquer Carta Magna.

O receio que surge, e em certa medida de forma fundada, é de que os deveres

por dependerem do reconhecimento dos poderes públicos por parte do povo, estariam

dispensados de qualquer afirmação específica. Ao mesmo tempo constitui uma

legitimidade estatal, em termos de intervenção dos no âmbito da Autonomia pessoal

dos cidadãos, de modo que não existiria uma intenção em trazer à tona os princípios

liberais, mas sim uma dedução de que uma vez existindo o Estado poderia impor

deveres (KLEIN, H. H. apud NABAIS, 2015, p. 19).

O resgate dos deveres ocorrerá apenas na década de 1970, isso no contexto

alemão, quando então surge a noção de que são necessários a fixação e o estímulo

a uma "democracia militante" que deveria promover a manutenção da própria

estrutura democrática através das decisões jurídicas. (Ibidem).

Especial expressão dessa jurisprudência são as decisões do BVerG de 22 de maio de 1975 e de 29 de outubro de 1981. Na primeira decisão foi considerada compatível com a Lei Fundamental uma norma que recusava a admissão ao serviço de estágio (Vorbereitungsdienst) de quem não oferecesse a garantia a actuar a favor da ordem fundamental livre e democrática, assim confirmando a recusa de as missões ao serviço de estágio do referido Land, de uma pessoa porque, durante os seus tempos de estudante, havia tomado parte nas actividades da “Célula Vermelha de Direito’. Por seu turno, na segunda decisão, o Tribunal veio sancionar a demissão de um funcionário (Peters seu nome) com o fundamento no desrespeito do dever fundamental de fidelidade à constituição implicado no facto desse funcionário ser membro do Partido Comunista Alemão (DKP). (NATOLI, U, apud NABAIS, 2015, p. 19, destaque do pesquisador)

Nesta mesma passagem histórica fica clara ainda a temerária interpretação

promovida que, impregnada pelo espírito belicoso da Guerra Fria, impulsionou o

Tribunal alemão a promover uma interpretação ampla e que foi aplicada com uma

verdadeira “caça às bruxas” (NATOLI, apud, NABAIS, 2015, p. 19).

Daí um claro exemplo do receio relativo a fixação, aplicação e reflexos

perversos que podem advir de um dado conjunto de deveres quando interpretados em

tempos históricos que podem desvirtuá-los das reais intenções do legislador ou

interpretá-lo conforme a intenção perversa do próprio legislador ou do órgão

legiferante.

31

Em 1992, no contexto da Comunidade Econômica Europeia (CEE), o Tratado

de Maastricht consagrou uma cidadania europeia, sem que, no entanto, especificasse

os deveres integrantes dessa cidadania, entre os artigos 8º a 8º D. (NABAIS, 2015,

23)13.

Embora a análise supra recaia sobre o contexto europeu, José Casalta Nabais

ainda destaca que houve uma omissão geral por parte de outras constituições em

relação aos deveres, sendo que estes aparecem ao lado de direitos fundamentais,

não sendo despendida tanta dedicação aos deveres fundamentais como aos direitos

fundamentais.

Não houve uma enumeração, sistematização ou o estabelecimento de um

regime constitucional minimamente parecido com o previsto para os direitos. mas tão

somente a indicação e previsão de deveres genéricos. Por exemplo de solidariedade

política, econômica e social a exemplo da Constituição italiana, ou alguns poucos

deveres específicos a exemplo da Constituição alemã.

Seguindo a mesma linha a Constituição Brasileira de 1988 evitou o uso

abrangente dos deveres. A opção também é resultado de um período de consolidação

democrática pós-governo ditatorial militar14 de modo que a prevalência pelas

liberdades e pelos direitos em suas mais diversas esferas foi destacado.

A Constituição Brasileira de 88 também possui deveres sem que, no entanto,

tenha sido indicado um capítulo específico para estes. Direitos e deveres dividem o

mesmo Título, “dos direitos e garantias fundamentais ", cujo capítulo 1 trata "dos

direitos e deveres individuais e coletivos". Dentre os deveres constam na Constituição

13 Tratado da União Europeia, 1992 “Artigo 8°- 1. É instituída a cidadania da União.

É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-membro.

2. Os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos no presente Tratado. (Disponível

em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:11992M/TXT) 14 Para Netto (2014, p. 74): “O regime derivado do golpe do 1º de abril sempre haverá de contar, ao longo da sua

vigência, com a tutela militar; mas constitui um grave erro caracterizá-la tão somente como uma ditadura militar

— se esta tutela é indiscutível, constituindo mesmo um de seus traços peculiares, é inegavelmente indiscutível que

a ditadura instaurada no 1º de abril foi o regime político que melhor atendia os interesses do grande capital: por

isto, deve ser entendido como uma forma de autocracia burguesa (na interpretação de Florestan Fernandes) ou,

ainda, como ditadura do grande capital (conforme a análise de Octávio Ianni). O golpe não foi puramente um golpe

militar, à moda de tantas quarteladas latino-americanas [...] — foi um golpe civil-militar e o regime dele derivado,

com a instrumentalização das Forças Armadas pelo grande capital e pelo latifúndio, conferiu a solução que, para

a crise do capitalismo no Brasil à época, interessava aos maiores empresários e banqueiros, aos latifundiários e às

empresas estrangeiras (e seus agentes, ‘gringos’ e brasileiros)”

32

Federal de 1988, o dever de voto e o dever e Prestação de serviço militar no artigo

14, § 1º15, dentre outros, ainda que constem na redação o termo obrigatório.

1.4 OS DEVERES E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Da relevância da presente pesquisa reside no fato de que o tema dos deveres

foi por longo período prescindido pela literatura jurídica, em especial na segunda

metade do século XX em favor de uma prevalência dos direitos

O Estado Social nasce após o surgimento dos deveres sociais, que conexos

aos direitos sociais são caracterizados pela prestação dos poderes públicos em

relação aos cidadãos (CANOTILHO apud NABAIS, 2015, p.51). Neste impera o

Estado de Direito16, afeito às formas de Estado e não apenas as liberais.

Quando o Estado estende sua influência a quase todos os domínios que anteriormente pertenciam, e m grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante, o Estado pode, c o m justiça, receber a denominação de Estado Social (BONAVIDES, 1996, p. 186)

O primeiro espaço ocupado por estes foi a Constituição de Weimar, que fixava

os deveres de escolaridade, educação dos filhos, exploração do solo.

Como facilmente se vê, trata-se de deveres que exprimem o comprometimento dos indivíduos na existência, não do estado como os deveres clássicos (liberais), nem do estado democráticos como os deveres políticos, mas do Estado empenhado numa dada sociedade que assim é, em larga medida, fruto da sua acção e intervenção (NABAIS, 2015, p. 52).

Existe portanto (i) um distanciamento histórico dos deveres no século XVIII,

quando do advento da DDHC ; (ii) após a consolidação da lógica liberal burguesa e

de mercado; (iii) e no século XX o derradeiro ostracismo dos deveres em decorrência

15 BRASIL, 1988: Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto,

com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

§ 1º O alistamento eleitoral e o voto são:

I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos;

II - facultativos para:

a) os analfabetos;

b) os maiores de setenta anos;

c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.

§ 2º - Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os

conscritos.” 16 BOBBIO, 2005, p.18-9: “Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos

são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das

leis que os regulam, salvo o direito do cidadão recorrer a um juiz independente para fazer com que seja reconhecido

e refutado o abuso ou excesso de poder. [...] Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação

dos poderes públicos de qualquer grau às leis do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação

das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais. [...].”

33

do receio de que, na esfera jurídica poderiam ser convertidos em ferramentas que

facilitariam o surgimento e a manutenção de Estados totalitários e autoritários, os

quais reduziriam as liberdades e garantias individuais.

A democracia, como realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, é conceito mais abrangente que o de Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica da democracia liberal. [...] Chega-se agora ao Estado democrático de Direito, que a Constituição acolhe no art. 1º como um conceito-chave do regime adotado, tanto quanto o são o conceito de Estado de Direito democrático da Constituição da República portuguesa (art. 2º) e o de Estado social e democrático de Direito da Constituição espanhola (art. 1º) (SILVA, 2014, p. 114).

O Estado Democrático de Direito é caracterizado pela união da noção de

Estado de Democrático e de Estado Direito, criando um novo conceito. Deste advém

a generalidade da aplicação igualitária da lei e daquele uma estrutura que incorpore o

povo nos mecanismos de controle e decisão, de sua real participação. (Ibidem, p.

121)17.

É um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor de justiça social. [...] Talvez um novo tipo de socialismo, que não seja uma nova forma de estatismo, já que o difícil no socialismo marxista consiste em resolver que organismo administra os bens de produção, uma vez que o Estado falhou nesse desidério. (Op.cit., p. 122)

A Constituição Federal de 1988 não tem a pretensão de criar um Estado

socialista, mas abre, através da organização de um Estado Democrático e Direito,

“perspectivas de relação social profunda” pelo exercício dos instrumentos que oferece

a possibilidade de concretizar a justiça social fundada na dignidade humana. (SILVA,

2014, p. 122)

Por sua vez, o princípio da legalidade é basilar. Existe a sujeição ao império da

lei. A lei, na sua acepção genérica funciona como elemento formal e de

regulamentação. Emanada da atuação popular ela guiará, de forma predeterminada,

os modos de atuar em sociedade18.

17 José Afonso da Silva (2014, p. 124) rememora ainda as lições de José Gomes Canotilho, indicando que os

princípios do Estado Democrático de Direito são: a) princípio da constitucionalidade; b) princípio democrático; c)

sistema de direitos fundamentais; d) princípio da justiça social; e) princípio da igualdade; f) princípio da divisão

de poderes; g) princípio da legalidade; h) princípio da segurança jurídica. 18 Insta destacar que (FERRAZ, 2013, p. 164) “O que explica, no direito moderno, a preponderância do padrão

constitucional, fundado no princípio da legalidade, e que conduz a dogmática a pensar o ordenamento como um

sistema unitário, é uma razão de ordem ideológica: a forte presença do Estado e a concepção liberal do direito.”

34

É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta a relevância da lei, pois ele não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que imperou no Estado de Direito clássico. Pois ele tem que estar em condições de realizar, mediante a lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação das comunidades. (Ibidem, p. 123).

Daqui advém a problemática da eficácia de uma norma, seja direito

fundamental ou dever, de modo que em dadas hipóteses far-se-ia necessária a

fixação de norma infraconstitucional. Para a criação de uma compulsoriedade sobre

os indivíduos seria necessária a fixação de uma lei ordinária e não apenas de uma lei

constitucional.

Isso ocorre, pois, o texto constitucional não apenas não é específico como

também, para sua operacionalização e para sua sobrevivência numa linha temporal

não podem ser tão específicos a ponto de considerar os mínimos nuances nas

relações sociais. Seu texto em certa medida é genérico, de redação aberta e de

permissividade até mais intensa do que as leis ordinárias.

A mera indicação de texto legal que fixe deveres numa esfera constitucional

pode não ser suficiente à sua efetivação material, impregnando os deveres tão

somente de aura principiológica e valorativa, não exprimindo-os de modo prático e

efetivo no corpo social.

Trata-se de uma problemática voltada para a permissividade do texto e de sua

densidade, do grau de acuidade que este desenvolve em termos de especificação da

conduta, das formas de cumprimento e das respectivas sanções (DIMOULIS, 2007, p.

67). Este aspecto também será abordado na presente pesquisa, a fim de que a

eficácia de um conjunto de deveres reste possível.

1.5 DISTINÇÕES TERMINOLÓGICAS

Há uma necessidade, por parte do jurista e daqueles afeitos a pesquisa jurídica, de

analisar os conceitos que são abertos, indeterminados ou de plurissignificados, de modo que

as normas, as quais em geral são permeadas de linguagem de textura aberta, possam ser

compreendidas (GRAU, 1980, p. 177).

De que modo, portanto e em que medida é possível diferenciar os deveres de

conceitos como obrigação, responsabilidade, sujeição, ônus e direito? Tal corte é

35

importante para que cada um dos termos reste utilizado de maneira uniforme na

presente a pesquisa sem, entretanto, pretender fixar definições dogmáticas.

Neste ponto Robert Alexy tem uma contribuição relevante a apresentar, na

medida em que estabelece a noção de relação jurídica simples (una ou ainda

singular), “[...] aquela na qual se colocam em destaque apenas um direito subjetivo

(em sentido amplo) atribuído a uma pessoa e o correspondente dever ou sujeição do

sujeito passivo (PINTO, 1999, p. 178). Naturalmente, existe ainda a possibilidade de

que surjam múltiplas relações, o que constituiria uma relação jurídica complexa, a

qual, ao menos para este momento da pesquisa deve ser apartado19.

Há portanto, na relação jurídica entre dois sujeitos de direito, uma simetria, de

modo que tal relação se dá entre x e y, e também se dá entre y e x, de maneira que

existirão posições jurídicas, o ter direito a algo, a pretensão, o poder exigir uma ação

ou omissão de outrem, próprio do sujeito ativo e a posição daquele que é exigido, o

sujeito passivo, de modo que “Não há um direito a algo, uma liberdade ou uma

competência que não seja relacional. Haverá sempre um sujeito passivo, ainda que

este seja indeterminado (FREIRE, 2013, p. 145-146)20.

Daí a necessidade de compreensão dos termos supracitados.

Although Hohfeld did not define the legal positions “right” and “duty”, he correctly described the phenomenon. Right (or claim) is the legal position in which the subject may demand from another a conduct (positive or negative). It is a legal norm that permits a conduct (of demanding other’s behavior), seen from the perspective of the active subject. On the other hand, in the converse relation, duty (or obligation) is a legal position in which the subject is obliged to perform, in the face of another, a conduct (positive or negative). From the perspective of the passive subject, it is a legal norm that establishes the

19 Por outro lado, relações jurídicas complexas são aquelas em que se verifica uma série de direitos subjetivos

(direitos a algo, poderes/direitos potestativos, liberdades), deveres e sujeições, isto é, uma série de relações

jurídicas singulares “conexiadas ou unificadas por um qualquer aspecto. ) (Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria

Geral do Direito Civil, 3ª ed. Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 178. Em igual sentido: Manuel A. Domingues

de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, cit. vol. *, p. 4).

20 Importante destacar que fora do Estado de Direito é possível a existência de relação que não a de direito-dever.

BOBBIO, 2008, p. 172: "O que importa, sobretudo a Kant, ao colocar o direito como relação entre dois sujeitos, é

afastar a tese de que ele possa consistir também em uma relação entre um sujeito e uma coisa. Para Kant, há quatro

tipos possíveis de relações entre um sujeito e outros: 1) a relação entre um sujeito que tem direitos e deveres com

outro que tem apenas direitos e não deveres (Deus); 2) a relação de um sujeito que tem direitos e deveres com

outro que tem apenas deveres e não direitos (o escravo); 3) a relação de um sujeito que tem direitos e deveres com

outro que não tem nem direitos nem deveres (os animais, as coisas inanimadas); 4) a relação de um sujeito que

tem direitos e deveres com outro que tem direitos e deveres (o homem). Destas quatro relações, somente a última

é relação jurídica."

36

obligation to perform a given conduct. Notice that the norm that “confer” the right and the duty is the same one; a difference in modals is just from the perspective, since the three deontic modals can be defined by each other. (FREIRE, 2019, p. 115, destaque do pesquisador)

Eros Grau por sua vez apresenta de forma breve a distinção entre termo

comumente utilizados pela linguagem jurídica. Este indica, citando Manuel A.

Domingues de Andrade, que a o termo obrigação, é usado de forma ampla e como

sinonímia da expressão dever jurídico, carregando ainda a noção de sujeição (GRAU,

1980, p. 178).

A obrigação seria uma subárea do dever, de modo que o Direito das

Obrigações de que fala a doutrina dos juristas brasileiros seria menos ampla do que

o estudo dos deveres, podendo inclusive haver deveres que não abrangeriam

obrigações (Ibidem). Em sentido amplo designa o elemento passivo de uma relação

jurídica e no seu sentido estrito designa uma classe de relações jurídicas, que se

colocaria em paralelo com a dos direitos reais, de família, de personalidades dentre

outros (ANDRADE apud GRAU, 1980, p. 179). Em linhas gerais, a obrigação é o ato

de dever (enquanto verbo) uma certa prestação à outra pessoa, sendo uma

modalidade específica do dever jurídico (GRAU, 1980, p. 179). Fica evidente o caráter

bilateral necessário.

O termo obrigação, pois, como vimos, é em sentido amplo usado para designar o elemento passivo de qualquer relação jurídica [...] há de ser ela entendida como modalidade específica de dever jurídico. [...] Neste sentido, estrito, a obrigação consubstancia' um vínculo em razão do qual uma pessoa (devedor) deve a outra (credor) o cumprimento de uma certa prestação.

E aqui o autor distingue a obrigação do direito real pois segundo este a

obrigação seria um direito relativo, pois o crédito que advém do cumprimento desta

obrigação, somente poderia ser exigido pela pessoa ou pluralidade de pessoas

titulares deste direito de exigir, as quais seriam credoras da pessoa na situação de

devedora, enquanto que o direito real seria exigível erga omnes. (Ibidem)

O autor prossegue indicando no mesmo texto que enquanto obrigação e dever

têm caráter bilateral, o ônus tratar-se-ia do exercício de uma condição necessária para

a obtenção de uma certa vantagem; “para tanto, o ônus é uma faculdade cujo exercício

é necessário para a realização de um interesse. (Ibidem, p. 180) Para ambos há

compulsoriedade em seu cumprimento, sob pena de sanção jurídica, pois o seu não

cumprimento configuraria comportamento ilícito (Ibidem, p. 178). Esclarece ainda que:

37

dever e ônus têm em comum o elemento formal, consistente no vínculo à vontade, mas diverso o elemento substancial, porque o vínculo é imposto, quando se trata de dever, no interesse alheio, e, tratando-se de ônus, para a tutela deum interesse próprio. (Ibidem, p. 181).

E prossegue indicando que:

O ônus, destarte, é um vínculo imposto à vontade do sujeito em razão do seu próprio interesse. Nisto se distingue do dever — e da obrigação — que consubstancia vínculo imposto àquela mesma vontade, porém no interesse de outrem. Por isso que o não-cumprimento do ônus não acarreta, para o sujeito, sanção jurídica, mas tão-somente uma certa desvantagem econômica: a não obtenção da vantagem, a não satisfação do interesse ou a não realização do direito pretendido. (GRAU, 1980, p. 181).

O ônus será, portanto, em relação a si mesmo e necessário à obtenção de um

direito ou a manutenção deste. Trata-se de relação consigo mesmo, sem terceiros ou

intermediação. Como já citado o dever e obrigação seriam bilaterais e enquanto nas

hipóteses de não cumprimento de um ônus não haveria prejuízo, no descumprimento

(de dever ou obrigação), acarretaria a aplicação de uma sanção jurídica. (Ibidem).

Descreve-se o ônus, assim, como o instrumento através do qual o ordenamento jurídico impõe ao sujeito um determinado comportamento, que deverá ser adotado se não pretender ele arcar com consequências que lhe serão prejudiciais. Ou como um comportamento que o sujeito deve adotar para alcançar uma determinada vantagem, que consiste na aquisição ou na conservação de um direito. (Ibidem).

Deste modo é possível distinguir, segundo Eros Grau obrigação e dever de um

ônus do seguinte modo: (i) enquanto os primeiros tutelam interesse alheio ao do

sujeito devedor, que cumpre o dever ou a obrigação e cujo descumprimento implica

em uma sanção; (ii) o ônus seria um vínculo imposto a vontade do sujeito para que

este possa satisfazer um interesse próprio, inexistindo sanção, mas podendo haver

efeito econômico sobre si21.

21 Um exemplo aplicável a este caso seria, no Direito brasileiro o ônus de manter-se fixado em dado terreno, por

dado período e ainda juntar provas testemunhais e documentais de que ali se reside para que então haja o gozo do

direito de usucapir aquele quinhão, conforme prevê o artigo 1.238 do Código Civil, destacadas as especificidades

de cada forma de usucapir: “Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir

como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz

que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no

imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.” Fonte:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm, acesso em 18 de junho de 2019.

Um segundo exemplo, na esfera processual civil do Direito brasileiro é o ônus em que incorre o Autor ao

jurisdicionar dado pedido, cabendo a este o ônus de elencar provas que constituam seu direito para que possa

prosseguir com seu pleito, conforme art. 373 do Código de Processo Civil de 2015: “Art. 373. O ônus da prova

incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito”; Fonte:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. acesso em 19 de junho de 2019.

38

A sujeição seria por sua vez a “necessidade de obedecer (CARNELUTTI apud

GRAU, 1980, p. 178) e se contrapõe a noção de poder, enquanto poder jurídico,

enquanto possibilidade de exigir algo de outrem. “nela se situa, por exemplo, o

mandatário, quando decida o mandante revogar a outorga expedida. O mandatário,

em situação de sujeição, há de obedecer, suportando os efeitos da revogação”.

(GRAU, 1980, p. 178) É o exercício de direito sem a anuência ou mesmo contra a

vontade da outra parte. Há portanto uma relação de bilateralidade ou multilateralidade.

Logo é possível expor uma conclusão parcial na relação dever, obrigação, ônus

e sujeição conforme o autor. Há sujeição no cumprimento de uma obrigação de um

dever, na medida em que em ambos os institutos há um sujeito ativo (credor) e um

passivo (devedor), dentro da lógica expressa por Eros Grau que cita Carnelutti, pois

há uma necessidade de obediência nesta relação, ao passo que não haveria sujeição

na hipótese de ônus, pois aquele que sujeita-se, o é em relação a outro e não a si

mesmo.

Para Bandieri faz-se necessária a compreensão do termo dever jurídico na

medida em que a expressão “tenho direito a” conecta-se a noção de se “ter o dever a”

(BANDIERI, 2011, p. 216). Apresenta então a etimologia do termo dever:

La palabra deber se origina en el verbo latino debere que a su vez proviene de de y el verbo habere, siendo de una preposición que aquí significa procedencia, “de otros”, y habere es “tener como dueño”. Debere expresa, entonces, tener una cosa de otro. (BANDIERI, 2011, p. 216).

O uso do termo, através da construção etimológica delinear a necessidade de

existência de ao menos dois sujeitos, duas personas, entre as quais há uma relação

na qual um possui em suas mãos algo que pertence de fato a outrem.

Destaca ainda que o vocábulo dever como verbo não possui significado moral

e,

Establece una relación jurídica por la cual una persona, en cuanto tiene una cosa de otro, tiene que pagarle o ser compelido en su caso a ello por una actio in personam; en otras palabras, tiene un debitum” (Ibidem enquanto que “El vocablo obligatio es tardío, y también referido exclusivamente al ámbito jurídico, sin resonancias morales (Ibidem).

Os chamados deveres morais seriam ainda expressos pelo termo officia (termo

em latim, plural de officio) que encerrava em si uma lei moral abstrata e imperativa,

sem que no entanto fossem enumerados catálogos de deveres, uma moral fundada

39

no consenso, exortativa e que dava conselhos ao invés de ordens (BANDIERI, 2011,

p. 216) (incluir original no rodapé). Deste modo afasta a carga moral que possa ser

atribuída ao termo dever. A Bandieri portanto, (i) dever não possui carga moral e (ii) o

termo obligatio, obrigação restringe-se ao âmbito jurídico, conforme apresenta Michel

Villey.

A noção de obrigação e dever, como bem expresso por essa pesquisa mostra-

se central para a ciência do direito, visto que a vincular condutas humanas (um direito

a e um ter de fazer) são fenômenos essenciais à estrutura do fenômenos jurídico, pois

“Onde há direito )law), diz ele (Hart), a conduta humana torna-se de algum modo, não

opcional, obrigatória.” (FERRAZ JR, 2013, p. 131).

Tomando como parâmetro a obra de Hart, Tercio Sampaio prossegue,

indicando que haveria duas asserções, um estar obrigado ai, que carrega em si

elementos de crenças e motivos, ao mesmo tempo em que a segunda asserção,

prescindindo este dado psicológico de motivação, possui um caráter de permanência,

de modo que embora alguém não compartilhe da motivação da obrigação tem a

obrigação de fazê-la. (Ibidem)22.

Quanto ao termo dever, o autor, em posição contrária a de Bandieri, indica que

dever carrega em si uma carga ideológica maior, em termos de uma força moral, como

aquela que nos liga a promessas feitas ou a aprovação social23. “Toda obrigação

envolve assim um vínculo, expressão de um dever. Ou ainda, o dever expressa, na

obrigação, essa força vinculante que nos faz estar ligados” (Idem) Tal posição dialoga

com o exposto por Eros Grau, na medida em que a obrigação (enquanto elemento

jurídico) é uma variação do dever, um semanticamente equivalente a este, mas com

carga moral reduzida.

Ainda indicando que o dever estaria imbuído de um caráter moral e subjetivo,

para o autor “A ideia de dever atua assim como um motivo para o comportamento

22 Ferraz Jr, 2013, p. 131: “Assim, por exemplo, quando um assaltante diz ao caixa do banco que lhe entregue o

dinheiro sob ameaça de matá-lo, o senso comum dirá que o caixa está obrigado a atender à exigência do assaltante,

mas não diz que tem a obrigação de fazê-lo.” 23 Embora presente nos deveres jurídicos, expressa-se com maior intensidade nos deveres culturais, uma vez que

estes são cogentes, mas dependem em certas ocasiões da oralidade ou da motivação estes deveres geram nos entes

de uma comunidade para que seja perpetrado qualquer rechaço em relação a posturas que contrariem este dever

cultura.

40

lícito que se cumpre, primeiramente, não por temor de sanções, mas por respeito

desinteressado ao direito.” (FERRAZ JR., 2013, p. 131)

Todavia, Hans Kelsen vai além e sugere que haveria uma distinção em relação

a dever, responsabilidade e obrigação quanto a sanção. A ideia de sanção para

Kelsen tem papel fundamental dentro do seu construto da norma, pois toda norma

imputa uma sanção a um conduta, sendo que a ação ilícita (prevista na norma ou fruto

do contrário sensu) seria a condição de provocação da sanção. (Ibidem, p. 132).

E perceba-se que a Kelsen não há ação contra o direito, mas sim uma ação

que é ilícita porque prevista na norma, “Não há, pois, ações a favor ou contra o direito,

apenas juridicamente lícitas (as que evitam a sanção) e ilícitas (que provocam a

sanção).” Tal hipótese, afastaria qualquer à sanção de qualquer hipótese contrária

aos costumes, moral ou princípios que não estivesse também prevista

normativamente24. Repisa-se que Kelsen considera a lei como única fonte da norma.

Deste modo nem todo sujeito que tem um dever tem ao mesmo tempo

responsabilidade, pois aquele refere-se à conduta do sujeito, que pode evitar ou

provocar a sanção, enquanto esta referir-se-ia ao objeto da sanção e a quem a

suporta. (Ibidem)25.

Embora a doutrina não tenha absorvido integralmente tal noção, cria-se nesta

hipótese uma construção dualista de modo que se deduz que:

Obrigação envolve o fato vínculo (o que os alemães chama de Schuld que também significa culpa) e o fator prestação (que em alemão corresponde a Haftung, responsabilidade). Assim, a obrigação define-se como vínculo objetivo em que ocorre a exigência de uma prestação sob pena de sanção.

24 Sobre o tema indica Mara Helena Diniz, 2017, s/p, disponível em Enciclopédia Jurídica da PUC-SP:

https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/157/edicao-1/fontes-do-direito, acessado em 26 de janeiro de 2019.

“Emprega-se também o termo “fonte do direito” como equivalente ao fundamento de validade da ordem jurídica.

A teoria kelseniana, por postular a pureza metódica da ciência jurídica, libera-a da análise de aspectos fáticos,

teleológicos, morais ou políticos que, porventura, estejam ligados ao direito.” e prossegue ao indicar que tal

necessidade de fonte normativa afeta inclusive a fonte das próprias normas “Com isso essa doutrina designa como

“fonte” o fundamento de validade jurídico-positiva da norma jurídica, confundindo a problemática das fontes

jurídicas com a noção de validez das normas de direito. O fundamento de validade de uma norma, como assevera

Kelsen, apenas pode ser a validez de uma outra, figurativamente denominada norma superior, por confronto com

uma norma que é, em relação a ela, inferior. Logo, é fonte jurídica a norma superior que regula a produção da

norma inferior.” 25 Na mesma passagem o autor exemplifica com a hipótese de um acidente de carro. O dever de evitar a sanção é

do motorista, mas a responsabilidade pela reparação de um dano, na eventualidade de um acidente pode ser

transferida à seguradora contratada pelo motorista. A responsabilidade é ressarcir, o objeto da sanção. Evitar a

sanção é o dever do sujeito (motorista).

41

O dever localiza-se naquele vínculo; a responsabilidade, na exigência da prestação. (FERRAZ JR., 2013, 132)

Para que o cumprimento de tal vínculo possa ser exigido, faz-se necessária a

construção de normas, ao menos uma norma preceptiva, que imporá uma prestação

e uma norma preceptiva, que prescreverá a sanção quando do descumprimento. A

origem normativa poderá ser variada, seja a lei, o contrato (fundado na autonomia da

vontade) ou um costume. Há ainda, destaca o autor, as obrigações extracontratuais,

aquelas que embora não previstas pela autonomia da vontade, irão operar sobre a

relação em decorrência da força de lei, como a obrigação de reparação de dano26.

(Ibidem, p.133)

A ilicitude, que é o ato contrário a norma e leva à aplicação da sanção é uma

quebra de expectativa que “dá-se pela realização do ato sancionável (delito)” ou “pela

ação fora do âmbito de competência (ilegalidade)”. Pode ser o furto (delito) ou a

autenticação de documento por funcionário de cartório incompetente para tanto

(ilegalidade). (Ibidem, p. 134).

Por último, ainda sobre a responsabilidade, relevante a distinção entre a

subjetiva e a objetiva. Enquanto aquela relaciona-se com os atos do sujeito, esta

vincula-se a uma presunção de risco que emerge da situação, de maneira que a

responsabilidade surge, não por causa do dano, mas sim porque há um risco potencial

na situação27.

Considerações Sobre as Definições

Isto posto os conceitos podem ser assim determinados: (i) dever trata-se de

uma conduta necessária, seja de abstenção ou de ação; (ii) por obrigação entenda-se

uma categoria dos deveres, de aplicação mais apropriada ao contexto jurídico, fala-

se pois em obrigação jurídica, sem no entanto descaracterizar sua forma e natureza

26 Em certa medida, pode-se indicar que este caráter extracontratual também está presente nos deveres

constitucionais, pois embora não previstos em contratos privados ou públicos, parte-se do pressuposto de que os

deveres são pressupostos contra os quais o contrato não pode se voltar. Todavia, destaca-se que ainda que se voltem

o contrato pode não ser invalidado no todo, mas apenas em parte, a depender do caso concreto. 27 Ferraz JR., 2013, 134, sobre o tema da responsabilidade objetiva: “[...] no direito ambiental há hoje a

possibilidade de estabelecer a responsabilidade objetiva, isto é, a responsabilidade que cabe à empresa, quando de

um dano ecológico, pelo simples risco do empreendimento e não apenas por uma ação subjetivamente culposa ou

dolosa do empresário, entendendo-se por doloso o ato ou omissão que estava na intenção do sujeito e por culposo

o ato ou omissão em que o resultado não estava na intenção do agente, mas que seria evitável se tivesse agido com

a diligência devida[...]”

42

de dever contraposto a um direito exigível por outrem; (iii) responsabilidade, elemento

que precede a fixação de um dever e delinea um munus comunitário, distinto da culpa,

e que age sobre um grupo; (iv) sujeição enquanto a necessidade de obediência,

contraposto a um poder de exigir algo, de modo que a relação direito/dever está

envolta em poder e sujeição, cada um deste dois elementos partindo de um dos

sujeitos a depender de sua posição jurídica; (v) ônus, por sua vez trata de um ter de

fazer em relação a si mesmo para que se possa então gozar um dado direito, de modo

que uma vez não exercido que foi fixado o ônus o gozo do direito ou poder resta

frustrado, não havendo bilateralidade ou multilateralidade neste caso, tampouco a

aplicação da noção de posição jurídica; (vi) e por fim direito como um poder exigir algo

de outrem, uma vez que se encontra em posição ativa, de modo que cabe ao sujeito

passivo atender tal pretensão.

43

2. CAPÍTULO 2 - DEVER: NATURAL, CULTURAL E JURÍDICO

2.1 ÔNUS NATURAL

Lei Natural e Leis Descritivas

Por Lei natural, não se deve entender na presente pesquisa as definições de

Thomas Hobbes, que toma a lei natural como oriunda do divino, tampouco a de

Samuel Pufendorf, que toma como pressuposto das Leis Naturais o convívio em

sociedade.

A definição que se herda aqui, vem das Ciências Naturais, de modo que a Lei

Natural a que se faz referência é de caráter Físico, sem carga axiológica ou moral, o

conjunto de leis entendidas como descritivas. As leis da gravidade, da troca de

energias, como a alimentação, a necessidade de dormir e outras que afetam o

homem.

Entre o mundo físico e aquele que é cultural é uma distinção de caráter material.

Todos os elementos dotados de conteúdo material podem ser estudados por uma ciência que procura levar em conta a realidade do tipo normativa ou valorativa. Não há negar-se que entre o mundo cultural e o material há um verdadeiro abismo. (BASTOS, 2002, p. 19).

Por lei natural seria possível compreender um postulado (i) cuja recorrência é

contínua, beirando o infinito; (ii) imutável na ocorrência, no rol de elementos

compositivos e nas condições em que ocorre OU cujas condições não influem sobre

a ocorrência nem sobre os citados elementos; (iii) é desprovida de vontade autônoma

das partes que a compõem; e (iv) tem efeitos/resultados previsíveis e minimamente

delineados. O mundo material "é formado por relações necessárias entre as coisas,

que passam por experimentações, negações, teste de causa e efeito, até chegarem à

formulação de leis próprias" (Ibidem).

44

A distinção entre as leis normativas28 e as descritivas pode ser assim fixada:

Leis normativas e leis descritivas Como se vê, em suas origens, a palavra "lei"

está ligada ao conceito de norma do comportamento humano, isto é, à lei ética, moral

ou humana e, especialmente, à lei jurídica.' Nesse sentido falamos da Lei das 12

Tábuas, na Áurea, na Lei do Inquilinato ou na Lei de Defesa do Consumidor. Mas há

outra acepção do vocábulo. Quando falamos na lei da gravidade, nas leis da

propagação do som, nas leis da química, da biologia, da psicologia, o termo "lei" tem

outra significação. Refere-se a fórmulas gerais, não "imperativas" ou "normativas",

"descritivas", "constatativas" e "indicativas" de uma certa ordem que se verifica em

qualquer setor da natureza. São as leis físicas ou naturais. Geny chamou às primeiras

leis normativas ou de fim, e às outras, leis indicativas ou casuais. (MONTORO, 2000,

s/n).

André Franco Montoro ainda vai além e indica que estas leis em sentido

universal cósmico, aplicáveis a todos os setores da natureza, podem ser entendidas

como leis de sentido latíssimo (Ibidem)

A diferença entre lei natural e dever natural que poderia surgir, pode ser bem

ilustrado pelo exemplo a seguir: o homem, para sobreviver, precisa alimentar-se,

portanto constitui-se aí um dever de alimentar-se para viver.

Um dever praticado por um homem todavia, não atenderia os três primeiros

requisitos, pois em relação ao (i) ainda que seja necessária a relevância de um dado

fato no ambiente social para que seja gerada uma norma, a recorrência continuada,

beirando o infinito, tornaria impraticável a manutenção de um estilo de vida

28 Em Roma, os mestres da jurisprudência ensinavam que, além do direito próprio de cada Estado, existe um direito

Roma decorrente da natureza humana: "O direito civil e o das gentes distinguem-se deste modo: todos os povos

que se regem por leis e por costumes usam em parte de um direito exclusivamente seu, e em parte do comum;

portanto, o direito, que cada povo constitui para si mesmo, é exclusivo de uma cidade. O direito, porém, que a

razão natural constitui entre todos os homens é observado do mesmo modo por todos os povos e chamasse direito

das gentes, isto é, direito de que usam todos os povos. Semelhantemente o povo romano usa em parte de um direito

exclusivamente seu e em parte do comum a todos os homens".32 Cícero traduz o mesmo pensamento em sua

famosa definição descritiva da lei natural, que assim pode ser sintetizada: há uma lei verdadeira, norma racional,

conforme à natureza, inscrita em todos os corações, constante e eterna, a mesma em Roma e em Atenas; tem Deus

por autor; não pode, por isso, ser revogada nem pelo senado nem pelo povo; e o homem não a podem violar sem

negar a si mesmo e à sua natureza, e receber o maior castigo." (MONTORO, 2000, s/n)

45

minimamente coerente, e vez ainda, que a infinitude não poderia ser atribuída ao

homem. Este é finito e bem se sabe isso, o que é de fácil e indubitável constatação.

O elemento (ii), os deveres são aplicáveis a uma multiplicidade de indivíduos

(multiplicidade e não infinidade), de modo que os elementos que compõem a

execução do dever e as condições de encontro dos elementos com os indivíduos é

múltipla e extremamente abrangente, sendo que as hipóteses são incontáveis,

afastando assim a imutabilidade na ocorrência.

Quanto ao elemento (iii), resta, por consenso, a noção de que o homem tem

autonomia, não no sentido político, mas no sentido mais simplificado e auto evidente

possível, como por exemplo escolher qual caminho seguir num trajeto de poucos

metros em terras ermas, o que afastaria, ao menos no exemplo, o dever natural, pois

a lei natural não abarca a autonomia de seus componentes.

Um exemplo que se contrapõe às características humanas e que comporia uma

lei natural, e não um dever natural é o que segue. Sabe-se que a cada 24 horas a

terra terá um mesmo ponto voltado para o sol. Neste exemplo os elementos, as

condições, a recorrência e a inexistência de vontade autônoma dos elementos

naturais terra e sol e o resultado previsível, levam à existência (e porque não dizer)

permanência de uma lei natural.

Estas leis físicas: "[...] indicam relações ou movimentos que ocorrem

regularmente na realidade física. Vigoram num mundo sem liberdade. Enunciam uma

relação de causalidade eficiente: havendo tal causa, seguir-se-á tal efeito."

(MONTORO, 2000, s/n)

Muito embora tenha sido o resgate de uma abordagem política e jurídica

relevantes à conceituação e à compreensão do distanciamento tomado em relação

aos deveres, a presente pesquisa almeja repisar os passos do conceito de dever, não

apenas pela bibliografia existente sobre o tema, mas também através de

questionamentos que levem à uma reconstrução das possíveis origens dos conjuntos

de Deveres. Voltemo-nos, portanto, à origem dos deveres.

O homem encontra-se condenado a viver dentro de si mesmo. Não sabe como

é ser ou estar na posição de outro. Mesmo por um processo de abstração ou empático

46

a completude da experiência resta prejudicada, pois a sensação que atinge alguém

não é resultado de uma ação imediata, mas da mistura desta ação com o eu desta

pessoa que foi alvo da ação. Ninguém, portanto, consegue ser alvo de uma ação e

carregar dentro de si a visão de mundo e as experiências de outrem ao mesmo tempo.

Pode-se inicialmente indicar que (i) a existência de deveres é importante pois

equilibra relações. Seria possível ainda indicar que, (ii) em virtude das relações

mantidas entre os sujeitos, algumas ações ou comportamentos precisariam ser

efetivados, garantidos ou obrigatoriamente realizados, mas ainda assim esta

necessidade de equilíbrio não bastaria à uma compreensão da existência dos

deveres. É preciso proceder com a visualização de um cenário em que se encontra

um homem abstrato, que “como tal, subtraídos ao fluxo da história, a um homem

essencial e eterno, de cuja contemplação derivaríamos o conhecimento infalível dos

seus direitos e deveres.” (BOBBIO, 2004, p. 20)

Imagine-se, pois, um humano que sozinho, em terras ermas, sem qualquer

contato humano, nem mesmo com seus genitores ou consanguíneos (pois estes

inexistem), que cumpre com suas necessidades elementares, dormir, alimentar-se e

outras, que vivendo só, desconhece a política dos homens e qualquer forma de

relações entre estes. Este não é, portanto, um homem que se encontra no estágio

político-aristotélico. Se este é essencialmente político está essência ainda não

encontrou pares para ser aflorada.

Este possui a possibilidade de deslocar-se para diferentes pontos destas terras

ermas, limitando suas viagens apenas às possibilidades de suas forças mentais e

físicas, de seus suprimentos alimentares e de suas necessidades fisiológicas, como o

sono. Este ser está só, limitado por suas necessidades, as quais, se descumpridas,

lhe gerarão danos que poderão encerrar sua existência material nestas terras ermas.

Caso não durma, morrerá de cansaço; caso não coma, morrerá de fome. Este

ser, que (i) vive num momento hipotético pré-sócio-civilizatório; e (ii) que goza de

liberdades (iii) limitadas por leis de ordem natural é o ponto de partida para

compreensão dos deveres. É um ser abstrato cujos deveres mais elementares

continuarão inscritos nos humanos que o sucederem em qualquer tempo e lugar.

47

No cenário apresentado, não há que se falar em uma relação entre outros

humanos. Inexistem outros com os quais poderia haver comparações em termos de

liberdade ou de igualdade. Ninguém possui mais ou menos terra, ninguém a cercou

ainda, portanto não se fala do estado de natureza de John Locke. Não há prestação

de contas para outros, tampouco.

O termo dever, pressupõe a existência de uma relação interindividual, deste

modo, no cenário que será desenhado, o termo mais correto é ônus natural, pois trata-

se de um ônus, a prática de um dado ato em relação a si mesmo para que se goze de

uma liberdade. Ex: alimentar-se para poder continuar a própria vida29.

Não há códigos de conduta impostos sobre este ser, senão aqueles que este,

através de sua própria construção mental puder pressupor, aceitar e praticar. Neste

primeiro momento, não existe fim para si, pois há apenas o existir. Este é um humano

que vive só, mas que nem por isso deixaria de utilizar a razão ou absorver

conhecimentos mesmo sem ter instrução de outros. É um ser cuja fôrma, em termos

de deveres aplicar-se-ia a todo ser, reitera-se, em qualquer tempo e lugar.

Passa-se então a um segundo momento. Distante da localização deste primeiro

humano, daqui em diante denominado humano 01, há outro humano, denominado 02.

Ambos sem saber sobre a existência um do outro vivem de modo igual. Humano 02 e

01 existem da mesma forma. Neste momento, o leitor, que conhece a existência de

ambos, pode então notar que ambos possuem liberdades iguais, estão sujeitos às

mesmas limitações e se veem obrigados a respeitar comandos naturais e a exercer a

sua liberdade dentro dos limites das determinações naturais impostas por leis naturais

físicas.

Existem liberdades, mas não direitos, pois estes nascem do convívio entre os

seres, enquanto aquelas são inerentes à existência do homem. Entendendo-se que

humano 01 e 02 não se conheceram, neste hipotético cenário, há liberdades limitadas

por lei naturais e há comportamentos que precisam ser mantidos, de forma necessária

29 Estes são essencialmente físicos não se confundindo com a noção de deveres naturais expressa por John Rawls,

o qual aceita que dentre os Deveres Naturais figuraria o dever de justiça e outros, apreensíveis na posição originária

(original position), equiparável ao estado de natureza. (RAWLS, 1993)

48

para a sobrevivência de ambos, conclui-se que estas necessidades naturais, consigo

mesmo, de si para si, precedem os surgimentos dos direitos.

O cenário descrito, não serve à construção de um ideário de que houve um

conjunto de seres que primeiro andou pelo mundo, mas serve à apresentação do ser

humano em qualquer uma de suas eras, como um ser que apesar de viver em sua

individualidade física e mental, dotado de condutas necessárias naturalmente em

relação a si mesmo, construiu relações sociais das quais então originaram-se direitos

e deveres em outras categorias. A primeira categoria cognoscível ao homem é a dos

chamados Ônus Naturais. Hume repudia a tese do estado de natureza, a qual

classifica como:

[...] a ficção filosófica de um estado de natureza. Pode-se com razão duvidar de que uma tal condição da natureza humana tenha jamais existido, ou, se existiu, que tenha durado por tanto tempo a ponto de merecer a denominação de um Estado. Os homens nascem necessariamente pelo menos em uma sociedade familiar e são instruídos pelos pais em alguma regra de conduta e comportamento (HUME, 2004, p. 250).

Assim esta é a categoria cognoscível ao homem, a qual sem a exigência da

existência de relações humanas e sem a influência destas agirá sobre os seres

humanos concretos, aqueles que convivendo em sociedade terão novos deveres

(culturais, jurídicos e outros).

O primeiro passo a ser reconhecido aqui é que tal premissa, da existência

destes Ônus Naturais, como medida de igualdade, vez que são aplicados

indistintamente a todos os homens, é pensamento próprio de uma teoria

universalizante do Jusnaturalismo. A todo e qualquer humano, os mesmos ônus sem

distinção alguma.

A historieta é uma alegoria para a individualidade que encontra no cumprimento

de tais ônus sua medida de igualdade30. Não há a pretensão de reviver o estado de

natureza, até porque tratar-se-ia de uma ficção, uma vez que tal condição pode jamais

ter existido já que “Os homens nascem necessariamente pelo menos em uma

30 Tal perspectiva, pode ser abertamente criticada, pois trata-se de uma prerrogativa que tenta al perspectiva, pode

ser abertamente criticada, pois trata-se de uma prerrogativa que tenta delinear uma metanarrativa, a de que a

natureza é uma natureza física, que não é divina, não é moral e não toma como pressuposto a convivência em

sociedade, tampouco busca a justiça. Trata-se da medida de individualidade compartilhada por todos os humanos.

A noção de justiça não teria por base a natureza, porque esta busca o bem da coletividade e não apenas de si

próprio, o que é uma exigência contratual, segundo Leo Strauss na obra Direito Natural e História.

49

sociedade familiar e são instruídos pelos pais em alguma regra de conduta e

comportamento.” (HUME, 2004, p. 438)31.

O que se pretende, e isto restará mais claro adiante, é indicar a importância

destes ônus naturais para os deveres culturais e jurídicos, muito embora tais ônus

tenham uma aura de trivialidade.32 Uma vez que os deveres, assim como aos direitos,

existem limites imanentes. Utiliza-se aqui de uma dedução de ônus naturais que apela

à evidência, que evidencia aspectos que existem per se, em si mesmos. (BOBBIO,

2004, p. 17)

Trata-se de uma compreensão cientificada, que demonstra as necessidades

humanas físicas e aceita as leis físicas, mas as distingue das leis culturais e jurídicas.

O espírito científico é o zeitgeist de nossa era.

Os ônus naturais, inerentes ao homem, dialogam com os deveres em suas

variadas formas, sendo não apenas um ponto de partida de uma lógica dos deveres

a partir de uma perspectiva natural, mas também seus próprios limites imanentes33,

aplicados aos homens sem considerar nossos atos voluntários.

Deveres não podem impedir, embaraçar ou ferir a prática destes ônus naturais.

31 Embora esta pesquisa aceite a existência de Leis Naturais, que através de elucubrações que excedem o texto

aqui anotado podem levar à conclusão de que os ônus naturais provém de uma natureza divina, a presente pesquisa

não assumirá tal pressuposto, pois se assim o fosse, a noção de multiculturalismo proposta pelos Deveres Culturais

e pelos Deveres Artificiais, de estruturação e aplicação de Deveres distintos de um grupo social para outro, ver-

se-ia inaplicável diante da proposição de que todos os Deveres originam-se de uma só fonte divina, levando a

modalidade dos Deveres à uma pretensa Universalidade, já que esta divindade ao ditar os Deveres Naturais por

consequência o faria também com as demais modalidades ou ao menos levaria à forçosa tendência de que aqueles

devem guiar estes integralmente. Leo Strauss rememora que em a República, no Livro I o diálogo acerca do direito

natural inicia-se depois que o personagem Céfalo, o pai e chefe da casa, sai de cena para realizar oferendas aos

deuses: a ausência deste (Céfalo) e daquilo que ele representa, constitui-se como uma condição indispensável para

a busca do direito natural, já que homens como Céfalo não têm necessidade de conhecer o Direito Natural, pois já

conhecem pela revelação divina e consideram um esforço desnecessário descobrir o mundo pelo esforço próprio

(STRAUSS, 2014, p. 103). A grande função da Filosofia, isso remetendo-se à Filosofia grega da Antiguidade é a

contestação da autoridade das leis divinas, não de modo a destruí-los, mas de modo a permitir a análise e a

descoberta da natureza do homem pelo esforço próprio. 32 FERRAZ JR., 2013, p. 140: “Uma coisa se torna trivial quando perdemos a capacidade de diferenciá-la e valia-

la, quando ela se torna tão comum que passamos a conviver com ela sem nos apercebermos disso, gerando,

portanto, alta indiferença em face das diferenças.” 33 Sobre a relação entre Direito Natural e Positivo, uma dicotomia que segundo Tercio Sampaio Ferraz Junior

(2013, p. 140) perdeu força: “Sua importância mantém-se mais nas discussões sobre a política jurídica, na defesa

dos direitos fundamentais do homem, como meio de argumentação contra a ingerência avassaladora do Estado na

vida privada ou como freio às diferentes formas de totalitarismo.”

50

Da Relação com a autonomia

Há, entretanto, uma situação que pode, assim como outras tantas, elucidar

cenários nos quais o homem se veja como títere de uma lei natural, o já mencionado

exemplo do processo de alimentação humano. O homem se alimenta por que é seu

ônus ou por que tal processo é uma lei natural?34 O elemento principal desta relação

é a autonomia.35

É preciso destacar que ignorar esta lei natural é prejudicar até mesmo a

possibilidade de autonomia, elementar à noção dos deveres e do ônus natural, pois

deveres e até o ônus são dever-se. A lei natural no caso em tela está revestida de

uma aura de essencialidade, que necessita ser apreciada por um ônus que será

tomado pelo homem(individualizado) para si e do qual não pode esquivar-se. Que se

refere a si mesmo num primeiro momento e aos demais ao seu redor ou sob seus

cuidados num segundo. Surgem então dois quesitos a serem apreciados.

(i) É preciso ainda entender que em considerável medida o homem possui

elementos constituintes de seu corpo que são limitantes à sua autonomia (a

respiração, os batimentos, o gasto de suas energias no transcorrer de um dia).

Conclui-se, pois, que o homem compreende que opera sobre si o ônus de se

alimentar, porque a alimentação é essencial à sua existência, em respeito à lei

natural que lhe é aplicável por uma arbitrariedade natural não eliminável.

Um postulado aplicado sobre humanos ou a que estes sujeitam-se e que não

pode ser alterado sem que prejudique a formação conferida pela Natureza a/sobre

nós.

(ii) Se estes deveres naturais vêm de leis naturais, que se descumpridas serão

prejudiciais ao estado humano, conclui-se que na hipótese de descumprimento haverá

também prejuízo à autonomia (capacidade autônoma) humana, por via reflexa. Logo,

34 Perceba-se que na segunda parte do questionamento (por que tal processo é uma lei natural?) não se utilizou

verbo que leve à noção de autonomia por parte do humano, pois se o fizesse, a pergunta por si só já fugiria dos

elementos constituidores de uma lei listados anteriormente, qual seja o item (iii). 35 A autonomia na presente pesquisa, até por conta do objeto de estudo, deve ser compreendida no contexto

jurídico, sem reflexos de caráter moral. Não há que se falar nos imperativos de Immanuel Kant (cujo pressuposto

é o fato de que apesar de existir a autonomia, os deveres morais devem ser seguidos, pelas fundamentações

metafísicas expressas pelo autor). A autonomia deve ser encaixada como resultado da limitação natural do homem,

que, não tendo plena liberdade, senão dentro dos limites de suas forças e possibilidades, vê-se um ser autônomo e,

não como é exortado, livre em sua plenitude.

51

os ônus naturais são fonte de uma relativização da liberdade, pois um elemento

externo a natureza do homem e sobre a qual este não tem controle lhe tolhe esta

liberdade e cria um cenário no qual esta tende a ser minorada.

Logo prejuízo pode ser entendido como um fato que influi no processo decisório

que rege o cumprimento ou não de um dever. O que se deve destacar é que os

ônus naturais (derivados de leis naturais) são essencialmente minoradores da

liberdade do homem, num primeiro momento logo que são criados pela lei natural e

num segundo, quando são descumpridos e afetam a, agora atuante, autonomia (o que

pode ser entendido como uma sanção).

E destaca-se que este processo decisório, que compõe a citada autonomia é

importante pois um ônus e, até mesmo, o dever, quando enunciado baseia-se em uma

noção de dever-se. Impõe-se determinada forma de comportamento, talvez até a

execução seja bem delimitada, mas se este (cumprimento) dar-se-á ou não, apenas

o caso concreto e o executor da ação poderão definir. Este elemento fica claro na

possibilidade que a pessoa tem de jejuar.

Chega-se então a um ponto em que é possível (i) distinguir ônus naturais de

uma lei natural; delimitar (ii) se apenas a lei natural que afeta o homem leva a um ônus

natural; e (iii) se apenas os ônus naturais derivados de uma lei natural deveriam ser

absorvidos pelo homem. Sendo que este último ponto constituir-se-ia como um 2º

complicante problema: Deve então o homem aceitar como ônus para si apenas aquilo

que for entendido como lei natural?

Entenda-se um dever, como um ter-que-fazer positivo/ativo. A inação seria a

infração contra o enunciado de dever, se este for positivo36. Deste modo, seria dever

apenas aquilo que é lei natural.

O filtro seria analisar todo fato sob uma lei natural logicamente comprovável e

daí deduzir a existência ou não do dever que deva ser seguido. Numa abordagem

pragmática isso exigiria, por exemplo que o pagamento de tributos passasse por este

filtro, formado por uma rigorosa pergunta, ou um conjunto de perguntas que fossem o

36 Tal cenário não exclui a existência de um não-ter-quer-fazer, um dever negativo.

52

mínimo enviesadas possível para que se pudesse deduzir se é um dever natural ou

não.

Além disso, um 3º problema surgiria, pois se (i) o homem não pode

experimentar a vivência de outrem em sua completude; (ii) se essa vivência não é

uma lei natural a que o homem se sujeita, ou seja, se este não é obrigado por uma lei

natural a ver-se na pessoa do outro; (iii) ou se tal lei existe o homem não é capaz de

apreendê-la, então porque haveriam de ser fixados deveres não ligados a leis

naturais, num nível equivalente ao do exemplo da alimentação?37

A fixação de deveres que não estejam nessa esfera dos deveres naturais

derivados de uma lei natural seria, portanto, arbitrária e artificial, fabricada pelo

homem. Ao menos nesta análise seria precipitado demais indicar que seriam deveres

distantes de sua natureza, mas o ponto é que seriam deveres derivados das

necessidades do homem, resultantes de sua interação enquanto ser gregário.

2.2 DOS DEVERES CULTURAIS

Por se entender que o homem é um ser dotado de capacidade racional, e que

não apenas responde ao mundo que o cerca, mas também o questiona e molda, já

dentro de relações de convivência com outros seres é que não podes crer que existam

apenas os Deveres Naturais.

No campo cultural não existem relações necessárias entre as coisas, é dizer, um elemento é vinculado ao outro tão-somente por força de uma atividade humana. Os bens culturais trazem em si a marca do homem (BASTOS, 2002, p. 19).

Trata-se de uma descrição de algo que não é inexoravelmente imutável, que

não tem necessariamente um nexo causal, como leis físicas, mas sim uma relação

de imputação e que, ao contrário das naturais aceita revogação e derrogação.

(BASTOS, 2002, p. 25)

37 Talvez seja razoável, por respeito à uma concatenação lógica, considerar a possibilidade de um encadeamento,

não limitado por dado número de elementos, que pudesse justificar a existência de um certo dever por uma ligação

indireta e até mesmo distante com uma lei natural. Daí caberia a distinção entre ligação auto-evidente e direta e

ligação não auto-evidente e indireta. O ônus de se alimentar seria auto-evidente e direta enquanto que uma

justificativa para o pagamento de imposto (se fundada numa lei natural) seria indireta.

53

Há uma segunda categoria, que pode ser delineada e que, ao menos na lógica

da presente pesquisa pode ser tida como posterior aos Deveres Naturais, a categoria

dos já citados Deveres Culturais.

Entenda-se como cultural, todo elemento ou fato que interpretado pelo homem

ganha novos contornos. Sejam os insumos de uma obra de arte, os eventos naturais

interpretados pela sociedade primevas, os espaços urbanos e as tecnologias de

disseminação dos conhecimentos.

Esta categoria funda-se portanto, justamente na interpretação de uma Lei

Natural.

No campo cultural a interpretação vem a ser a designação, a compreensão de um determinado fenômeno. A revelação do significado de um bem cultural acaba por levar a compreensão do próprio homem, eis que a natureza humana busca expressar-se através de valores pelos quais ela pugna e que são, na maioria das vezes, representados por meio da arte. [...] Os bens culturais, por expressarem a essência da natureza humana de uma dada época e civilização e serem dotados de valores, através da interpretação podem ser aplicados para explicar determinados fenômenos (Ibidem, p. 20) (grifo nosso).

Se por um lado é factível que a morte virá para todos os homens, por outro será

sempre possível a interpretação38 de que cabe aos entes de uma sociedade o dever

seguir um dado ritual, o funerário. Na cultura brasileira, cujo espectro religioso

predomina, indica Oswaldo Rodrigues Cabral. Fica claro o caráter prescritivo do dever

cultural.

Ninguém era enterrado sem ser lavado, não na cama, no leito, com esponja ou pano molhado, mas na banheira, banho geral, de corpo inteiro. Era horrível de assistir – e, neste século, por volta de 1912 ou 13, tive a oportunidade de espiar, sendo garoto, uma cerimônia destas – o pobre defunto, todo mole, a cabeça pendendo para cá e para lá, para a frente e para os lados, os braços caídos, as pernas largadas, cercado por três ou quatro almas caridosas, de ambos os sexos, que se incumbiam da tarefa – agarra aqui, segura lá – um horror! À família poupava-se o espetáculo, tão chocante era – mas era preciso ser feito, os costumes o exigiam… (CABRAL, 1972).

38 Wroblewski apud Bastos, 2002. p. 22 “La interpretación sensu largissimo se define como la comprensión de un

objeto en tanto que fenômeno cultural. Si no encontramos, por ejemplo, com una piedra de una forma particular

nos podríamos preguntar si es resultado de fuerzas naturales com el viento o el agua, o producto del trabajo

humano como instrumento u obra de arte. En el primer caso sólo nos interesamos por el proceso natural

relacionado com la geología, perto en el segundo caso atribuimos a la piedra algún valor (sentido, significado),

tratándolo como resultado de una actividad humana. En otras palabras, atribuimos algún valor (sentido,

significado) al substrato material interpretándolo como resultado de la actividad del hombre. Y ésta es una

‘interpretación cultural’ utilizada en las ciencias humanas y que requiere una base filosófica apropiada.

54

Nas culturas antigas39 , como a egípcia, a marajoara e na grega tal tema

também era relevante. Na obra Antígona, Sófocles apresenta o choque entre a

personagem principal e o rei de Tebas, Creonte, o qual, após um ataque contra a

cidade, desferido por Polinice, proíbe o enterro deste último. Antígona opta por

proceder com o enterro, mesmo em face de sua provável condenação e execução. A

postura da personagem possui um fundo que senão religioso, ao menos moral, mas

que sobretudo evidencia a hipótese da categorização dos deveres de caráter cultural.

Toda interpretação é produto de uma época, de uma conjuntura que abrange os fatos, as circunstâncias do intérprete e, evidentemente, o imaginário de cada um, ao longo dos séculos, o homem tem recorrido à mitologia, aos sobrenatural, ao panteísmo, à fé monoteísta de diversos credos e à obsessão do racionalismo. Não necessariamente nesta ordem (BARROSO, 1996, p. 1.)

Ritos identificáveis em diferentes grupos sociais e em tempos históricos

distintos40, na comunidade brasileira como apontado, no século XVII, conforme o

quadro o Sepultamento de Cristo, de Caravaggio; no quadro Enterro em Ornans, de

Gustave Courbet, retratando o ritual na França do século XVIII; nas obras de Pedro

Figari, como Enterro, que retratam a vida da comunidade negra no Uruguai ou de

Cândido Portinari, na obra de mesmo título, ambas nos séculos XIX e XX.

O homem sempre buscou superar a consciência da morte, que gera angústia, seja através da integração do indivíduo, do ser que morre, no grupo a que pertence e que é considerado imortal, seja através da crença religiosa na imortalidade ou na reencarnação (BOBBIO, 2004, p. 68) (grifo nosso).

Outro dever, de caráter cultural, extremamente relevante é o dever de fala. Tal

elemento, que dialoga mais com a Antropologia, é essencial à transferência de

conhecimentos e normas entre os povos que não optaram pelo costume da escrita.

A comparação pode ainda ser feita com o direito de fala e o direito da sociedade

moderna que construíram Estados e o dever de falar nas sociedades primevas. resta

mais interessante nas palavras de Pierre Clastres.

Essa diferença radical em que se nas sociedades com Estado, a palavra é o direito do poder, nas sociedades sem Estado, pelo contrário, a palavra é o

39 Conjunto de peças em cerâmica, arte marajoara, 400 a 1350 a.C., terracota expostas no acervo fixo do Museu

da Arte Moderna de São Paulo. 40 Assevera Celso Ribeiro Bastos sobre a relação entre leis naturais e leis culturais. (2002, p. 25) “Talvez só para

o jusnaturalista a leis dessas duas realidades poderia ter eventualmente a mesma natureza de imutabilidade (como

quando se defende a ideia de que existiria uma lista imutável e eterna de direitos humanos, decorrentes da própria

natureza do Homem enquanto tal”.

55

dever do poder (estatal). Ou melhor, pra falar de outra forma, as sociedades indígenas não reconhecem a seu chefe o direito à palavra pelo fato de ser seu chefe: Exige do homem destinado a ser seu chefe que prove seu domínio sobre as palavras. Falar é para o chefe uma obrigação imperativa, a tribo quer ouvi-lo: um chefe silencioso já não é um chefe. (CLASTRES, 1974, s/n) (grifo nosso).

Aquele que comandará a tribo terá a arte das palavras sob seu domínio e terá

o dever de falar àqueles que comanda.

É, em primeiro lugar, um ato ritualizado. Quase sempre o líder se dirige ao grupo cotidianamente, à aurora ou ao crepúsculo. Estendido em sua rede ou sentado ao redor do fogo, ele pronuncia com voz forte o discurso esperado. E sua voz, por certo, necessita de potência para se fazer ouvir. (Ibidem) (grifo nosso).

O discurso deste, cumprindo o dever cultural que lhe foi imposto, consiste numa

celebração, numa repetição incessante das “normas da vida tradicional.” Sua função

é guardar e rememorar a história da tribo, e cumprir com o dever que possui, o de dar

ao grupo a palavra quem este é o real detentor.

A esse conjunto de esforços que o homem faz para transformar o mundo que o circunda e torná-lo menos hostil, pertencem tanto as técnicas produtoras de instrumentos, que se voltam para a transformação do mundo material, quanto as regras de conduta, que se voltam para a modificação das relações interindividuais, no sentido de tornar possível uma convivência pacífica e a própria sobrevivência do grupo. Instrumentos e regras de conduta formam o mundo da “cultura”, contraposto ao da “natureza”. (BOBBIO, 2004, p. 68) (grifo nosso).

Os mesmos dois graus de afetação ainda estarão presentes nos Deveres

Naturais interpretados de uma lei natural, os denominados Deveres Culturais.

Levando em consideração a prática do ritual funerário41, comum às várias culturas,

o primeiro grau de afetação seria aquele que exige a dedicação de tempo ao

cumprimento desse dever, a prática propriamente dita, enquanto que o segundo grau

de afetação seria a não prática deste dever, pois não cumpri-lo seria prejudicial ao

aspecto gregário42 e atentatória contra a responsabilidade projetada sobre o grupo.

41 Tal ritual pode ser tomado como exemplo pois o fator morte é indissociável da existência do homem. Nas mais

diferentes culturas o ato funerário é relevante, tanto como o rito derradeiro como o rito iniciático de uma nova fase

da existência do ser. O rito é identificável em diversos grupos, com fundo religioso ou não. 42 É possível percebermos em Platão, por exemplo, a ideia de que os males sociais advêm da injustiça política –

portanto, de que os déficits das instituições levariam à injustiça na sociedade (é interessante se perceber que, n’A

República, a noção de uma cidade boa, justa, é colocada como fundamental e como condição para a estabilidade

da sociabilidade e mesmo da própria formação humana; e de Aristóteles se pode perceber exatamente essa primazia

ontológica da sociedade, que é concebida como comunidade natural, em relação aos indivíduos, que somente

podem ser entendidos a partir daquela – o homem não poderia ser pensado como um ser isolado dos demais, fora

da sociedade, nem poderia subsistir sozinho. Cf., respectivamente: PLATÃO. A república, livro IV e V, p. 112-

178; ARISTÓTELES. Política, livro I, p. 141-142.

56

E neste ponto é importante notar que enquanto opção religiosa ou moral, tal

aspecto está fora do corte da pesquisa, pois deveres morais e/ou de ordem religiosas

podem ambos ser classificados como culturais.

Deste modo, entendam-se os deveres naturais como aqueles atinentes aos

aspectos físicos do homem e os culturais como aqueles que passam pela razão do

homem e resultantes da alteração da matéria e da interpretação que os seres têm

desta, então os deveres, de cunho moral estariam nesta categoria, pois cada tempo

terá sua moral e cada homem, filósofo ou não, formulará uma moral distinta.

Immanuel Kant fixa princípios e deveres basilares, partindo de um pressuposto

divino, mas abre ao homem, que é responsável a possibilidade de escolhas que, não

ofendendo aos fundamentos primeiros são infinitas. Ronald Dworkin, de linha liberal,

lança mão de uma moralidade aberta, de princípios primeiros indeterminados.

Deste modo, a moralidade, não sendo única, indestrutível, atemporal ou

onipresente não pode ser universal. Os Deveres Culturais são portanto, originados e

mantidos, por fundamentos culturais locais e temporais, o verdadeiro

multiculturalismo.

O multiculturalismo democrático valoriza a diversidade enquanto uma forma de interação entre culturas diferentes e operacionalização dos direitos humanos através de políticas públicas de reconhecimento da diferença (MELO, 2015, p. 1495)43.

Na hipótese dos deveres artificiais, no primeiro grau de afetação existe a

necessidade de dedicação ao cumprimento do dever, o que minaria a autonomia do

indivíduo enquanto no segundo grau de afetação, que é a hipótese de

descumprimento, haverá uma sanção propriamente dita. Como os deveres jurídicos

entram nesta hipótese, então aqui é possível falar em sanção.

O Aspecto gregário

Enquanto fenômeno cultural, as Ciências Jurídicas, seu sistema seu repertório

são construtos oriundos do aspecto gregário que, inerente ou não ao ser humano, é

parte de sua realidade.

43 Disponível em:<https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2015/16058_10161.pdf>. Acesso em 12/12/2019.

57

O homem individual abstrato serve para elucidar que o momento de solidão

absoluta do indivíduo, em que este via-se descolado da realidade de grupo é uma

noção apreensível, mas que serve apenas para elucidações.

Não se sabe se houve o primeiro ser humano, e nem se pretende saber. Busca-

se apenas mostrar a individualidade a que o ser humano encontra-se sujeito e que -

dentro dos limites que os direito fixam e dos limites próprios dos deveres, quais sejam

os ônus naturais - deve ser sempre respeitada.

Daí deriva a necessidade de entender os ônus naturais como atinentes a

individualidade e os deveres culturais e os artificiais como atinentes às relações

humanas. Há a certeza de que o homem é gregário, porque o é, não havendo

interesse em tratar da origem deste aspecto. É uma constatação que converte-se em

pressuposto, inclusive à noção de relações jurídicas

O pressuposto zetético da discussão está, na verdade, no modo como concebemos a sociedade. Para a tradução clássica das ciências sociais, a sociedade sempre foi vista como união de homens concretos, donde a expressão corpo social. Se a sociedade era o conjunto de seres humanos, seu mundo circundante era a natureza, donde a distinção, entre ciências humanas e naturais. Para definir a sociedade, era preciso, assim, determinar um fator de agregação capaz de distinguir entre a mera junção de seres humanos - uma multidão - e um corpo social, por exemplo, o que os antigos chamavam de affectio societatis. (FERRAZ JR, 2013, p. 136)

É o affectio societatis, o ânimo de manter-se associado é o que possibilita a

indicação de deveres de todas as ordens, culturais ou jurídico. O fato agregação, seja

natural ou não, existe e é constatado como pressuposto para a compreensão dos

deveres.

Deveres Morais

Embora não seja o principal aspecto da presente pesquisa, já que não nos

atemos a noções metafísicas cabe aqui a devida localização dos deveres morais,

tanto para apreciação do tema, quando para o corte do objeto principal, qual seja a

eficácia jurídica dos deveres no Estado Democrático de Direito.

Os deveres morais inserem-se no grupo dos deveres culturais, pois este

apresentam uma certa perspectiva interpretativa sobre o mundo ou sobre as Leis

Naturais supracitadas, decorrente de um local-momento histórico específico. Aponta

Norberto Bobbio

58

Desde o ensaio sobre o direito natural, para não falar dos escritos juvenis, o ponto de partida das reflexões de Hegel sobre a vida prática não são mais os indivíduos isolados, isto é, o objeto específico em que se detiveram até então juristas, economistas, moralistas, mas aquele todo organicamente articulado de indivíduos que é o povo historicamente determinado, com sua religião, sua arte, suas técnicas, suas leis e seus costumes; numa palavra, com seu ethos. Um povo não é uma soma de indivíduos, mas uma totalidade orgânica caracterizada por um modo particular de viver e de pensar, por um sistema determinado de eticidade. O povo é uma “totalidade ética”. Enquanto totalidade ética, não é mais um artefato, o produto artificial de indivíduos esparsos e separados que se reúnem em sociedade por vontade deliberada, mas um fato natural, um produto da história ou, se se quiser, do espírito universal, cujos obscuros e muitas vezes inconscientes executores são os indivíduos. (BOBBIO, 1989, p. 71) (grifo nosso).

O mundo moral surge como ferramenta primeira para obter dados

comportamentos e evitar os não desejados e faz uso de regras essencialmente

imperativas e sanções celestes ou terrenas, a exemplo dos Dez Mandamentos, da Lei

das doze tábuas ou do Código de Hamurabi. Quando, já no contexto de um grupo

social fala-se em moral, está-se tratando de uma deôntica originária: o dever, e não o

direito.

De todas essas citações (mas infinitas outras poderiam ser aduzidas), resulta que a função primária da lei é a de comprimir, não a de liberar; a de restringir, não a de ampliar, os espaços de liberdade; a de corrigir a árvore torta, não a de deixá-la crescer selvagemente (Ibidem, p. 29).

Em virtude do fato de que a temática dos deveres morais adentram a

perspectiva ética do ser, fugindo a elementos objetivos próprios da norma e da

interação desta com o ambiente social, constituindo ainda elemento intangível pela

perspectiva da Teoria Geral da Norma é que o que aqui consta é bastante para

referenciar o tema. Este resta caracterizado como classificável como um grupo de

deveres absorvido pelos deveres culturais.

O jurídico como fenômeno cultural

O que deve ser entendido é que as Ciências Jurídicas encontram-se no campo

da realidade cultural e que as leis jurídicas serão fruto desse universo, na medida em

que tentam impor determinada norma de conduta sobre um grupo localizado espacial

e temporalmente, com tradições, costumes e necessidade legais diversas. As

relações culturais não respeitam um rigorismo científico e não podem ser confrontadas

com experiências laboratoriais. (BASTOS, 2002, p. 20-1)

59

Neste campo cultural, os elementos valem tanto quanto a possibilidade de

serem interpretados, de deixarem sua essência e verdadeiro significado serem

apanhados. O direito, como já comentado é um subsistema da realidade e a este

aplicam-se regras diferentes, pois este é o mundo do dever-ser. (Ibidem, p. 21).

As leis jurídicas tratam de imputação, regulam a vida em sociedade e impõe

sanções para punir o comportamento indesejado, mas que dependem da escolha

humana para serem fixados (Ibidem, p. 25-6).

Há neste aspecto um desenvolvimento que não apenas é (multi)cultural, mas

também histórico, de modo que as Ciências Jurídicas em movimentos cíclicos faz-se

renovar quando o poder de alguns homens aumenta em relação ao de outros, ou

quando ameaças às liberdades exigem uma limitação desse mesmo poder, obtendo

assim benefícios deste ou evitando-lhe a prática de males. (BOBBIO, 2004, p.9)

[...] essa fragmentação da imagem do homem na pluralidade dos universos culturais nos quais ele se socializa e se politiza afetivamente - o universo da família, do trabalho, do bem-estar, da realização profissional, da política, da fruição cultural e do lazer - torna problemática e difícil a adequação das convicções do indivíduo e de sua liberdade a ideias e valores universalmente reconhecidos e legitimados num sistema de normas e fins aceito pela sociedade (FERRAZ JR., 2013, p. 143).

A importância de tal característica afeta não apenas a fixação de direitos e

deveres como a sua fundamentação última, de modo que mesmo que sejam

apontados direitos e deveres fundamentais à uma ordem social, estes somente o são

em dado momento histórico. Trata-se de uma questão de relativismo.

O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas. Não se concebe como seja possível atribuir um fundamento absoluto a direitos historicamente relativos. De resto, não há por que ter medo do relativismo. A constatada pluralidade das concepções religiosas e morais é um fato histórico, também ele sujeito a modificação. O relativismo que deriva dessa pluralidade é também relativo. E, além do mais, é precisamente esse relativismo o mais forte argumento em favor de alguns direitos do homem, dos mais celebrados, como a liberdade de religião e, em geral, a liberdade de pensamento. (op.cit., 2004, p. 13)

Uma multiplicidade de deveres pode surgir de determinados conceitos que

foram aceitos por certa comunidade e que são definidores desta e de suas

características. Daí outro aspecto que precisa ser levado em alta consideração: a

adaptabilidade dos deveres de um grupo para outro, de modo que enquanto produtos

de determinadas circunstâncias e dinâmicas.

60

Estes tenderão a se diversificar e a se ramificar e, muito provavelmente, terão

origens completamente diferentes, de modo que não serão universais, nem

atemporais, afirmação esta que confronta a Teoria da Virtude de Immanuel Kant,

quando este refere-se aos conjuntos de direitos e deveres em sua obra e cria um

pretensa universalidade atemporal digna de levar à Paz Perpétua.

Direitos e deveres emergem de lutas travadas pelo homem em nome de sua

emancipação e das transformação de suas vidas. O desenvolvimento de técnicas, as

mudanças econômicas e sociais levarão a novos carecimentos e portanto a “novas

demandas de liberdade e de poderes”. A exemplo dessa mudanças dos tempos,

ocasionada por novas ferramentas, é o surgimento do possível direito à verdade das

informações, necessário diante da quantidade e intensidade das informações a que

os indivíduos estão involuntariamente submetidos. (Ibidem, p. 20).

Destas ondas históricas é preciso que se entenda que haverá de prevalecer,

enquanto limite imanente a liberdade do ser e dos povos para fixarem suas leis, a

autodeterminação dos povos, defendida pela CF/88 em seu artigo 4º, III44 e a Carta

da ONU, de 1945 (BOBBIO, 2004, p. 22).45 O consenso dos membros de um povo.

Consenso este que pode ser momentâneo, duradouro, principiológico, sobre

temas pontuais ou ainda pretensamente universal, como ocorreu com a DUDH de

1948.

Não sei se se tem consciência de até que ponto a Declaração Universal representa um fato novo na história, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vive na Terra.[...] Com essa declaração, um sistema de valores é — pela primeira vez na história — universal, não em princípio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre sua validade e sua

44 BRASIL, 1988: “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos

seguintes princípios: III - autodeterminação dos povos;” 45 ONU, 1942, Carta da Organização das Nações Unidas.

Capítulo I

PROPÓSITOS E PRINCÍPIOS

Artigo 1

Os propósitos das Nações unidas são:

[...]

2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de

autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;

[...] Disponível em: https://nacoesunidas.org/carta/cap1/. acessado em 18 de setembro de 2019

61

capacidade para reger os destinos da comunidade futura de todos os homens foi explicitamente declarado. (Ibidem, p. 18) (grifo nosso)46.

O direito é uma ciência inserida numa realidade social e sofre influências de

elementos exteriores, o que leva à conclusão de que não está apartado do mundo que

o circunda. Trata-se porém de uma realidade diferente, um subsistema, "integrante de

uma sistema social mais genérico" (BASTOS, 2002, p. 19)47.

Trata-se de uma dinâmica de poderes48 , arraigados a teoria política, mas da

qual o direito não pode se deslocar inteiramente. Se a lei é objeto das Ciências

Jurídicas e esta última vê-se inserida no meio social, sujeita-se a essa dinâmica de

poderes, de modo que mais ou menos o resultado jurídico das interações poderá ser

uma diagonal resultante de forças com inclinações distintas, não tanto pelo consenso

pleno e absoluto, mas pela combate civilizado e político.

2.3 DOS DEVERES ARTIFICIAIS

O termo artificial pode ser aplicado para demonstrar um certo distanciamento

em relação ao natural. Embora todos os deveres possam ser positivados, seja para

rememorar ou fixar uma dada conduta, cabe uma observação: os ônus naturais

operarão, pois não precisando de positivação; o cultural operará, embora seja

recorrente sua positivação49; enquanto os artificiais exigirão, no mais das vezes, que

sejam positivados.

46 Para efeito de comparação isso ainda não ocorreu com os deveres. É provável que ocorra, todavia em cenário

que imediatamente internacionais, voltado a questões tecnológicas ou em escala de blocos econômicos, o que ainda

se mostraria satisfatório à obtenção de padrões de deveres genéricos e de texto permissivo. 47 BOBBIO, 2004, p. 58: “[...] a teoria política distingue hoje, substancialmente, duas formas de controle social,

a influência e o poder (entendendo-se por ‘influência’ o modo de controle que determina a ação do outro incidindo

sobre sua escolha, e poder ‘poder’ o modo de controle que determina o comportamento do outro pondo-o na

impossibilidade de agir diferentemente)” 48. Cabe uma observação pertinente. A positivação dos deveres culturais é recorrente, mas não uma exigência, uma

vez que a oralidade é uma ferramenta muito utilizada por povos que não trabalham com a escrita, a exemplo do

dever de fala, comentado no tópico 2.2 Dos Deveres Culturais. 49 FERRAZ JR., 2013, 137: “[...] embora homem e sociedade estejam estruturados para coexistir, um é para o

outro uma complexidade a ser enfrentada, ou seja, reduzida. Segue a sociedade é um sistema de ações cuja estrutura

reduz a complexidade indeterminada do ser humano concreto. Ao nascer, o homem concreto é um mundo

indeterminado de possibilidades de ação, mas, ao viver socialmente, estas ações veem-se qualificadas e

combinadas de modo que limite aquelas possibilidades. Por exemplo, o ser humano concreto está capacitado a

procura, mas socialmente, procriação é a ação estruturada como paternidade ou maternidade. As duas

concepções de sociedade têm consequências diferentes para a noção de relação jurídica. Se sociedade é

concebida como conjunto de seres humanos concretos, relações jurídicas serão relações entre indivíduos.”

(destaque do pesquisador)

62

A artificialidade de determinados deveres, reside na origem destes, no ponto

do qual estes surgem e também na estrutura que os legitima. Aqui, assume-se o

pressuposto de que a formação de uma entidade, seja o Estado ou qualquer outra

detentora da prerrogativa de edição de leis, é uma instituição que foge a natureza do

homem e portanto artificial.

Nesta passagem serão definidos terminologicamente e contextualizados os

deveres jurídicos, constitucionais e infraconstitucionais, bem como apresentadas as

classificações elencadas por José Casalta Nabais, José Canotilho, Ingo Sarlet e a

literatura alemã referenciada por estes.

Relação jurídica

Ao nos referirmos ao ônus natural, trata-se de uma relação do indivíduo consigo

mesmo. A necessidade de se praticar dada ação, para que se possa gozar de um

direito.

Mas ao tratar de deveres, culturais ou jurídicos (de ordem artificial) fala-se em

relações interpessoais. O indivíduo X tem direito a algo ou dever de realizar realizar

algo. Trata-se pois, de uma relação, e no contexto das Ciências Jurídicas de uma

relação jurídica.

Na perspectiva de Kelsen pode-se entender a relação jurídica a partir da fixação

de normas, as quais definirão os sujeitos que podem demandar algo ou que podem

ser demandados, ou qual é a norma de conduta que se deseja, de modo que “[...] o

que chamamos de relação jurídica, nada mais é do que relação entre normas (normas

que qualificam os sujeitos, ativo e passivo, normas que lhes prescrevem condutas.)”

Essas relações jurídicas implicam normas e devem ser definidas com a ajuda delas.

(FERRAZ JR., 2013, p. 135).

Notam-se pois duas realidades, uma jurídica e outra social. Aquela fala da

realidade e esta é a realidade das relações jurídicas dispostas nas normas. Para

Kelsen, à norma cabe a criação de determinadas figuras e não ao reconhecimento

delas na realidade. Se existe a posição do credor e do devedor é porque ambas foram

descritas, definidas pela norma, e não porque a norma as reconheceu na realidade. A

norma cria ao delinear o sujeito ou o objeto de que fala. (Ibidem, p. 136)

63

Tal definição é dogmática, mas esta pode variar a depender dos pressupostos

que forem tomados numa abordagem zetética. Se trata-se de uma relação entre

indivíduos enquanto pessoas físicas , jurídicas, instituições públicas ou privadas, se

são relações impostas, como as definidoras de condutas pelo direito penal ou as de

traçadas pelo direito civil na esfera familiar.

Esta relação jurídica, desde já dota de um lado um indivíduo como detentor de

um direito e o outro indivíduo como praticante de um dever. “Estou de acordo com os

que consideram o “direito” como uma figura deôntica, que tem um sentido preciso

somente na linguagem normativa. Não há direito sem obrigação; e não há nem

direito nem obrigação sem uma norma de conduta.” (BOBBIO, 2004, p. 10) (grifo

nosso).

Destaca ainda Tércio Sampaio Ferraz Junior que:

O problema é saber se toda relação jurídica é sempre entre direito e dever ou se há também relações jurídicas entre direito e dever ou se há também relações jurídicas entre direito e direito, entre dever e dever, e assim por diante. (FERRAZ JR., 2013, p. 136)

Se num primeiro momento o aspecto gregário podia ser entendido enquanto a

junção de homens concretos, que por variadas motivações uniam-se, desta união

surgiram relações cada vez mais capilarizadas e específicas em decorrência das

necessidades e das dinâmicas sociais.

Tal especificidade leva à concepção de um espaço social, de uma sociedade,

formada por um conjunto de ações, de papeis exercidos pelos membros sociais. As

normas de condutas estabelecerão obrigações, proibições, faculdades e

imporão sanções, relações de coordenação entre os agentes (Ibidem, p. 138)50.

As relações de coordenação são, sistematicamente, entre o dever de A e a faculdade de B (dever de A de pagar o empréstimo e a faculdade de B de exigi-lo), entre a liberdade de A e a não faculdade de B (relação entre a permissão conferida a de gozar e usar de sua propriedade e a proibição

50 FERRAZ JR., 2013, 137: “[...] embora homem e sociedade estejam estruturados para coexistir, um é para o

outro uma complexidade a ser enfrentada, ou seja, reduzida. Segue a sociedade é um sistema de ações cuja estrutura

reduz a complexidade indeterminada do ser humano concreto. Ao nascer, o homem concreto é um mundo

indeterminado de possibilidades de ação, mas, ao viver socialmente, estas ações veem-se qualificadas e

combinadas de modo que limite aquelas possibilidades. Por exemplo, o ser humano concreto está capacitado a

procura, mas socialmente, procriação é a ação estruturada como paternidade ou maternidade. As duas

concepções de sociedade têm consequências diferentes para a noção de relação jurídica. Se sociedade é

concebida como conjunto de seres humanos concretos, relações jurídicas serão relações entre indivíduos.”

(grifo nosso).

64

genérica de qualquer um interferir em seu agir). Essas relações são logicamente condenáveis entre si. (op. cit.., 2013, p. 138).

E vai além ao rememorar que a identificação das relações jurídicas, em termos

de posição constituídas ou disciplinadas, é importante em vista da característica de

decidibilidade de que a norma está imbuída.

Através desta restam determinados os agentes e as posições que estes

ocupam, “quem manda, quem obedece, quem prescreve, quem cumpre.” Uma relação

de bilateralidade. A um dever é necessária uma norma de obrigação “que impõe a

conduta e que estabelece uma sanção para a conduta contrária” (Ibidem, p. 135-9).

Em suma, ao direito e ao dever- na visão purista de Kelsen far-se-á necessária norma

que indique sujeito, conduta e sanção.

A esta pesquisa, no que diz respeito aos deveres, tomar-se á que tal relação

jurídica pode ser uma relação (i) entre indivíduos, pessoas; (ii) entre o Estado e seus

entes e os indivíduos; (iii) entre os anteriores e a comunidades difusa (sociedade). De

um lado haverá um direito e do outro um dever, sendo que um ou outro estará mais

ou menos evidenciado, de modo que nem sempre a linha de conexão entre direito e

dever estará clara, podendo ser fosca51. À norma (interpretada)52 caberia o

pressuposto de legitimação destes deveres.

Norma e suas modalidades

Dentro do Direito, que é o “conjunto de normas coativas válidas num Estado” e

operantes mediante a definição de uma norma e a sua realização através da coação,

quando necessário, “[...] O conteúdo da norma é um pensamento, uma proposição

(proposição jurídica), mas uma proposição de natureza prática, isto é, uma orientação

para a ação humana”, um guião para o comportamento humano (JHERING apud

FERRAZ, 2013, p. 74). Tem-se então a modalidade de norma propositiva.

Os juristas, de modo geral, veem a norma, primeiramente, como proposição, independentemente de quem a estabeleça ou para quem ela é dirigida. [...] Trata-se de uma proposição que diz como deve ser o comportamento, isto é, uma proposição de dever-ser. Como se trata de uma proposição que determina como devem ser as condutas, abstração feita de quem as estabelece, podemos entender a norma como imperativo condicional, formulável conforme proposição hipotética, que disciplina o comportamento apenas porque prevê, para sua ocorrência, sanção.

51 Mais sobre a relação direito dever no item 4.3 Diálogo direito-dever. 52 Mais sobre a norma interpretada no item 5.2 Implícitos – Uma questão interpretativa

65

Tudo conforme a fórmula: se A, então deve ser S, em que A é conduta hipotética, S a sanção que segue à ocorrência da hipótese; o dever-ser será o conectivo que une os dois termos. Nesse caso, a norma seria propriamente um diretivo, isto é, uma qualificação para o comportamento que o tipifica e o direciona. (FERRAZ JR., 2013, p. 75) (grifo nosso).

Há também o entendimento de que as normas têm caráter prescritivo. Seriam

atos de uma vontade que impõe dada conduta através de um órgão legítimo. “A norma

como prescrição também se expressa pelo dever-ser, que significa então impositivo

ou impositivo de vontade comandos de uma vontade institucionalizada, isto é, apta a

comandar” (Ibidem).

Por fim, também é possível abordar a norma como uma comunicação, troca de

mensagens entre humanos, e que possibilita a fixação de relações entre

comunicadores, devendo haver mensagem, identificação dos sujeitos, modos de

reação. (Ibidem).

Ao jurista a norma é o critério fundamental de análise social, sendo, repisa-se

o fenômeno jurídico como um dever-ser de consulta, “por meio do qual os homens

criam entre si relações de subordinação, coordenação, organizam seu

comportamento”, interpretam e delimitam o exercício do poder. (Ibidem, p. 76).

As classificações das normas podem ser sintáticas, de subordinação,

estrutural, semântica, material, temporal, espacial, de força de incidência, finalidade.

Sintáticas (dos signos entre si):

(i) pela relevância, enquanto primárias ou secundárias. Aquelas por

estabelecerem um preceito e estas por indicarem a sanção. Kelsen inverte a posição,

"norma jurídica é a prescrição de uma sanção a um comportamento [...] a norma sobre

a sanção de primária e a norma que contém o mandamento de secundária". A posição

atual porém foi alterada de modo que "se uma norma tem por objeto outra norma, ela

é secundária; se tem por objeto a própria ação, é primária. Assim, normas secundárias

são normas sobre normas.” (Ibidem, p. 97)53 ;

53 FERRAZ JR., 2013, p. 97, indica ainda o autor, referenciando Hart e Ross: “Há quem prefira falar em normas

de competência (as que estabelecem poderes e procedimentos) e normas de conduta (as que estabelecem

obrigações), como é o caso de Ross (1970:32). Outros preferem falar em normas de organização e normas de

conduta (cf. Reale, 1974:105). De qualquer forma, a distinção não é rigorosa, e mereceu de Bobbio (1977) um

ensaio, ao qual remetemos o leitor.”

66

(ii) quanto a subordinação, normas-origem e normas derivadas. As primeiras,

como iniciadoras54 55 de uma série e as demais como sucessoras. Essa distinção leva

à fixação de um hierarquia normativa, de modo que uma norma sempre terá um outra

da qual derivou até que a seja indicada a norma suprema da qual todos o sistema

iniciou-se. (Ibidem, p. 98)

(iii) quanto à estrutura; seccionadas ainda em autônomas (lex perfecta) e

dependentes (lex imperfecta)56. Aquelas são em si mesmas seu sentido completo e as

segundas exigem combinação com outras normas. Destaca-se que “Kelsen, de seu

ponto de vista, diz que autônomas são as normas que prescrevem uma sanção a um

comportamento estatuído57.”, aquelas que esgotam a disciplina estatuída.

Dependente, por sua vez é toda norma que exige outra para esgotar sua disciplina.

(Ibidem)

Semânticos (âmbito da norma):

(i) destinatários: gerais ou individuais, aquelas dirigem-se à uma generalidade,

as outras a indivíduos específicos que compõem uma lide58.

(ii) matéria: nesta há uma delimitação da hipótese sobre a qual incide a norma,

entretanto, há uma gradação, podendo haver normas gerais-abstratas, normas

excepcionais e normas especiais e. Uma situação de norma excepcional é a da prisão

por não pagamento alimentar, embora a Constituição indique que não há prisão de

54 Idem. p. 98, Hans Kelsen em sua teoria, toma a norma hipotética fundamental, como norma-origem. “Normas-

origem, por definição, são as primeiras de uma série. As demais normas da série, que remontam à norma-origem,

são derivadas. Por exemplo, a norma que estabelece os poderes de um órgão para editar outras normas é norma-

origem; as editadas conforme elas são derivadas. Discute-se se, em última instância, todo o conjunto das normas

remontaria a uma última e primeira norma-origem, chamada, então, de norma fundamental (cf. Kelsen, 1960). É

o problema da estrutura do ordenamento como um sistema hierárquico e unitário” 55 A discussão elaborada no tópico 4.1 Fundamento jurídico de desta dissertação traz à tona a possibilidade e a

análise sobre a existência de um dever originário, em termo d estrutura, de fonte do direito, do princípio da

legalidade e da reserva de lei constitucional. 56 FERRAZ JR., 2013, p. 98: “Devemos lembrar, ainda, uma antiga classificação que remonta ao direito romano,

que distinguia entre lex perfecta, que cominava a invalidade dos atos praticados em violação do mandamento, lex

imperfecta, que era destituída de sanção, lex minus, quam perfecta, que estabelecia sanção para os violadores,

cujos atos, porém, eram válidos, e lex maius quam perfecta, que simultaneamente invalidava o ato e estabelecia

uma sanção, sendo esta última noção de origem medieval.” 57 FERRAZ JR., 2013, p. 98. Sobre a relação entre normas constitucionais e infraconstitucionais: “[...] a norma

constitucional, que garante o direito de propriedade é dependente, pois se reporta necessariamente a outras que

disciplinam a sanção em caso de violação daquele direito, as quais são autônomas”. 58 FERRAZ JR., 2013, p. 99 “Nesse sentido, uma norma constitucional (Constituição Federal de 1988, art. 14, §

3º, inciso VI, alínea d) que determine que a capacidade de elegibilidade para vereador adquire-se aos 18 anos é

uma norma geral. Já a sentença final de um juiz que condene alguém a pagar a indenização reclamada é norma

individual.”

67

devedor. Uma interpretação excepcional autoriza a indicação desta possibilidade de

prisão. A especial por sua disciplina uma situação de forma diferente daquela

inicialmente prevista pela norma-geral59.

(iii) espacial: referente a delimitação espacial dentro da qual a norma incidirá,

se município, unidade federativa ou União. Isso afeta também o órgão legiferante em

termo de competência legislativa, de modo que um ente federado não pode intervir na

competência temática do outro ou exceder o exercício que lhe cabe territorialmente.

(iv) tempo: “Esse fator afeta a vigência das normas. Umas vigem

indefinidamente, a partir de um certo momento. Outras têm prazo. Fala-se então em

normas de validade permanente e provisória ou temporária” (FERRAZ JR., 2013, p.

101)60 .

(v) derivada da questão do tempo está a incidência: esta pode ser imediata ou

mediata. Tal aspecto conecta-se com a vacatio legis, o início da vigência da norma61.

Quanto ao aspecto pragmático (os efeitos sobre os sujeitos)

(i) força de incidência: Não cabe melhor definição do que a do próprio autor

sobre as impositivas (cogentes).

Por força de incidência entendemos o grau de impositividade da norma. Toda norma é impositiva, vincula os sujeitos. Todavia, algumas subtraem deles qualquer autonomia. Seus atos e omissões não podem ser regulados senão na forma disciplinada na norma geral. Essas normas a dogmática analítica chama de imperativas (stricto sensu, posto que há quem entenda que toda norma é imperativa). Podemos chamá-las também de cogentes ou injuntivas. Essas normas excluem convenções ou acordos entre

59 FERRAZ JR., 2013, P. 100: “A distinção é importante, com uma repercussão relevante na relação entre

normas do mesmo escalão hierárquico: uma regra nos diz que a lei geral não revoga a especial; por exemplo, uma

norma geral que altere a disciplina das locações não revoga preceitos relativos à locação comercial.” 60 Não se faz referência ao tempo durante o qual a norma vigeu, não sendo possível concluir que a vigência de

uma norma por tempo histórico ou político a faz ser entendida como temporária. Toda lei, que não indique

previamente sua intenção de ser temporária, é permanente. Tal quesito, porém, não será objeto da presente

pesquisa, vez que esta versa sobre deveres de caráter permanente. Destaca-se que dada dificuldade de fixação de

deveres (permanentes), como resultado da possibilidade de ingerência estatal nas relações privadas, os deveres

temporários seriam ainda mais temerários, podendo gerar insegurança e volatilidade jurídicas. Exemplo de tal

insegurança foi a obrigação imposta sobre os comerciantes no fim da década de 80 e início da década de 90 a fim

de que a inflação fosse controlada, de modo que os preços eram tabelados diariamente. O tempo de vigência do

tabelamento (conteúdo da norma) era diário, gerando insegurança não apenas jurídica, mas também econômica. 61 Os termos imediata, mediata assim como a vigência serão devidamente definidos no contexto da eficácia

CAPÍTULO V - Eficácia dos deveres. Neste caso, porém os termos referem-se ao início da vigência, se no dia

seguinte a sua publicação ou se após dado tempo, a depender do que a lei prevê.

68

as partes que, se contrariam o disposto, são nulas, isto é, não produzem efeitos jurídicos.” (Ibidem, p. 102) (grifo nosso).

Enquanto há também as dispositivas, que serão aplicáveis quando o acordo

entre as partes restar omisso sobre dado tema62.

(ii) critério da finalidade: se a norma possui uma descrição específica da conduta ou se são de objetivo, de intenções, as chamadas programáticas, como o dever do Estado a educação63.

2.4 DOS DEVERES JURÍDICOS

Deve-se passar à uma noção relevante à compreensão do cumprimento dos

deveres. Pode-se indicar a hipótese de que um dever possui dois graus de afetação,

dentre os quais encontra-se a sanção.

Ônus natural e deveres sancionam?

Afetação pode ser compreendida como um efeito oriundo do descumprimento

de um dever muito embora trabalhemos aqui a noção de Dever-Ser, importante

destacar que o não cumprimento do dever gerará algum efeito, via de regra prejudicial.

Consideremos então os ônus naturais, apresentados no tópico 2.1 Ônus Natural.

A hipótese da alimentação teria um primeiro grau de afetação sobre o homem,

na medida em que tolhe sua liberdade. Ele deve se alimentar, dedicar tempo à procura

do alimento, ao seu preparo e separar dado tempo para a prática dessa atividade.

Esse processo transforma a liberdade (plena) em autonomia.

O segundo grau de afetação entraria em ação na hipótese de descumprimento

desse dever. Caso alguém não se alimente haverá um dano ao seu bem-estar

individual e, consequentemente, à autonomia. O mesmo vale para os outros ônus

naturais oriundos de Leis Naturais que gerem necessidades fisiológicas.

62 Acrescenta o autor que surgem ainda duas distinções normativas FERRAZ JR., 2013, p. 102: “Surge assim outra

distinção que vem em auxílio da anterior. Embora de rigor relativamente contestável, ela nos fala em normas de

ordem pública e de ordem privada. A ideia de ordem pública significa que o instituto, por sua natureza, prevalece

contra interesses privados. Assim, por exemplo, diz-se que a ordem pública tem interesse, em certo momento, de

que os preços não variem conforme a vontade das partes (lei de mercado), mas fiquem congelados num

determinado patamar.” 63 BRASIL, 1988: “Art. 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e

incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o

exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho"

69

A existência do ônus natural transforma a liberdade em autonomia, e a não

prática/cumprimento desse ônus leva ao segundo grau de afetação, sendo que este

pode ser entendido como uma penalidade, que segue uma lógica natural e que

poderia ser traduzido numa proposição condicional equivalente a que se aplica a

gravidade 64.

O que ocorre aqui é que há certeza no efeito que será gerado, quando dadas

condições e elementos compuserem o cenário.

No mundo natural, cumpre afirmar que as leis da física, v.g., da gravidade, não variam. Em qualquer lugar será sempre a mesma lei física. Assim, a força gravitacional da Terra é a mesma em qualquer parte do planeta, não cabendo qualquer sorte de interpretação, apenas valendo o quanto for observado e comprovado por meio da experimentação (BASTOS, 2002, p. 22).

O efeito pode eventualmente ser evitado. O objeto indicado no exemplo pode

ser pego no ar, de modo que não cairia no chão, e levaria à invalidade para este

episódio isolado, mas não invalidaria a lei da gravidade. (a gravidade continua

operando e daí deriva a certeza/imutabilidade dos seus efeitos sob dadas condições).

Na alimentação ocorreria algo equivalente (se dado ser humano não se

alimentar padecerá). O efeito é sabido, caso o ser humano não se alimente, mas se

este se alimentar isso não invalidará a lógica condicional, senão para o caso

específico.

A distinção que se faz é que o primeiro nível de afetação não pode ser afastado

(por uma lei natural condicionante a autonomia será afetada), ao passo que se não

cumprido o ônus natural, este gerará um efeito prejudicial. Não há que se falar em

sanção, pois tal termo aplica-se dentro das Ciências Jurídicas, e não as Leis Naturais.

Fosse utilizado o termo sanção como sinônimo de um efeito lógico, estar-se-ía

inferindo implicitamente que há uma autoridade que coatora que sanciona as atitudes

individuais.

64 Ex: se dado objeto for solto a distância suficiente do chão para que a gravidade opere, então este dado objeto

cairá no chão.

70

Pode-se indicar que os deveres culturais, possuem sanções, conforme

supramencionado, que não fazem uso da escrita, mas isso não inibe tais grupos de

aplicar sanções, quando do descumprimento desta modalidade de deveres.

A sanção pode ser, dentro dos aspectos culturais carregada de carga divina ou

entregue ao acaso, como forma de punição, mas no mais das vezes, o ostracismo é

aplicado, não mais o ostracismo ateniense de que nos fala Plutarco, voltado para o

exílio, mas um ostracismo social moderno que tende a afastar o indivíduo do convívio.

Cabe aqui destacar que às sanções jurídicas cabe uma abordagem

diferenciada, pois embora estas possam ser reduzidas a proposições, (i) sua

ocorrência não é certa, (ii) sua lógica somente é válida pois funda-se na convenção,

no consenso, diferente das proposições condicionais deduzidas de hipóteses naturais

imutáveis; e (iii) as sanções, via de regra65, são arbitradas também por consenso.

As sanções jurídicas fundam-se numa estrutura propositiva:

Proposições jurídicas são, por exemplo, as seguintes: se alguém comete um crime, deve ser-lhe aplicada uma pena; se alguém não paga um dívida, deve proceder-se a uma execução forçada de seu patrimônio; se alguém é atacado de doença contagiosa, deve ser internado num estabelecimento adequado. (MONTORO, 2000, s/n).

O raciocínio é o de que sob determinados pressupostos jurídicos, uma coação

deverá ser efetivada por esta mesma ordem jurídica.

Insta destacar que, embora tal lógica seja aplicada às normas jurídicas, a

estrutura de proposições que indique um dado comportamento, seguido de uma

65 Observe-se que no campo penal a fixação da pena pelo legislador não é baseada numa lógica fechada. Varia-se

o tempo de prisão a depender da gravidade do crime, mas não há exatidão nesta fixação em termos de pressupostos.

Alguns crimes têm equivalência de pena por acaso e não porque sejam equivalentes. Trata-se de deliberação e

consenso.

A exemplo do artigo 136, § 1º e artigo 155, caput do Código Penal. Na hipótese de reclusão ambos têm a mesma

pena.

"Maus-tratos: Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para

fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer

sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.”

“Furto: Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multas

71

proposição que indique o resultado na hipótese de descumprimento ou de

cumprimento, pode ser deduzida de um fenômeno da natureza.

Montoro fixa ainda que a norma deve três elementos básicos: "a) a endonorma

que estabelece a prestação ou obrigação, por exemplo: se F é eleitor, F deve votar;"

seguida de uma ou mais perinormas, que estabelecem consequências positivas para

o respeito a norma.(Ibidem)

Por fim uma ou mais perinormas que estabelcem consequências jurídicas

(sanções) quando do descumprimento. "se F não votou, F deve ser multado; se F não

votou, não poderá retirar seu passaporte; se F não votou, não poderá inscrever-se em

concurso público etc." (Ibidem).

Montoro, seguindo a proposta de Carlos Cossio, segue a linha kelseniana.

Constarão na norma proposições condicionais, uma com a hipótese, seguida de outra

com a sanção na hipótese de descumprimento.

2.4.1 Norma Constitucional - Texto versus Norma

Constitucionalismo

Os deveres jurídicos encontram-se dentro de um contexto maior, dentro de uma

posição que a doutrina jurídica assumiu e que se reproduz na maior parte das nações:

o movimento constitucionalista, que fixa uma Carta Magna ou Constituição Federal,

como fundamento primeiro de sua ordem jurídica, para fins teóricos, principiológicos

e de expressão dos anseios de um povo ou cultura.

Constitucionalismo e legalismo (princípio da legalidade) surgem como

procedimentos de regulação do direito compreendido por diversos: núcleos, natural,

moral ou derivado dos costumes. Tais núcleos, sujeitos a ideologização, podem ser

expressão de programas consistentes de ação, uma programatização. Uma resposta

à crescente burocratização (FERRAZ JR., 2013, p. 87).

A Constituição surge, em certa medida, como uma direção - ética e moral - um

modo de viver e conviver de um dado povo que, formando uma comunidade, fixa essa

Constituição como a ordem jurídica fundamental (HESSE, 1983, p. 16).

72

Justamente por representar o povo, do qual se origina seu texto e suas normas,

é que não se deve falar em movimento constitucionalista, mas em movimentos

constitucionalistas. Embora a Magna Carta inglesa de 1215 seja um dos episódios

mais referenciados, os movimentos inovaram e divergiram no decorrer dos séculos.

Será preferível dizer que existem diversos movimentos constitucionais com corações nacionais, mas também com alguns momentos de aproximação entre si, fornecendo uma complexa tessitura histórico-cultural (CANOTILHO, 2002, p. 51).

Por Constitucionalismo entenda-se uma “teoria (ou ideologia) que ergue o

princípio do governo limitado, indispensável à garantia dos direitos em dimensão

estruturante da organização político-social de uma comunidade”(Ibidem).

A Constituição ergue-se então como um documento escrito “no qual se

declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder público.”, além de

ter caráter declarativo e garantístico de direitos; e de organizar o poder político de

modo a também limitá-lo. Este, entretanto é um modelo ideal, uma vez que cada

movimento constitucional dotou sua constituição de particularidades derivadas de

momentos fractais (Ibidem, p. 52)66

Há, portanto, uma aura de supremacia na Constituição, de modo que o

legislador se vê vinculado a esta, na medida em que deve seguir os procedimentos

estabelecidos ao regulamentar leis, tanto no aspecto formal quanto no material, além

deste se submeter a inalterabilidade constitucional67. Os atos promovidos pelos

poderes públicos devem ainda se conformar à Constituição, cabendo ao Estado o

dever de revogar atos ilegais, que fujam do rito estabelecido (Ibidem, p. 247).

66 Sobre as diferenças histórico culturais, Canotilho destaca os movimentos inglês, estado-unidense, francês e

português (2002, p. 52-3) “[...]um Englishman sentir-se-á arrepiado ao falar-se de “ordenação sistemática e

racional das comunidades através de um documento escrito”. Para ele a constituição - The English Constitution -

será a sedimentação histórica dos direitos adquiridos pelos “ ingleses” e o alicerçamento, também histórico, de um

governo balanceado e moderado (the balanced constitutions). A um Founding Father (e a um qualquer americano)

não repugnaria a ideia de uma carta escrita garantidora de direitos e reguladora de um governo com “freios” e

“contrapesos” feita por um poder constituinte, mas já não se identificará com qualquer sugestão de uma cultura

projectante traduzida na programação racional e sistemática da comunidade. Aos olhos de um citoyen

revolucionário ou de um “vintista exaltado” português a constituição teria de transportar necessariamente um

momento de ruptura e um momento construtivista.” 67 CANOTILHO, 2002, p. 246. "A vinculação do legislador à constituição sugere a indispensabilidade de as leis

serem feitas pelo órgão, terem a forma e seguirem o procedimento nos termos constitucionalmente fixados. [...] A

constituição é, além disso, um parâmetro material intrínseco dos actos legislativos, motivo pelo qual só serão

válidas as leis materialmente conformes com a constituição. A proeminência ou supremacia da constituição

manifesta-se, em terceiro lugar, na proibição de leis de alteração constitucional [...]"

73

O que vale à discussão presente é o princípio da reserva da constituição, o que

exige que determinadas temáticas jurídicas sejam tratadas exclusivamente pela Carta

Magna, em especial aqueles que tenham como objeto a restrição de direitos, liberdade

e garantias. Neste âmbito aponta José Canotilho.

[... ] a reserva de constituição significa deverem as restrições destes direitos ser feitas directamente pela constituição ou através de lei, mediante autorização constitucional expressa e nos casos previstos pela constituição (2002, P. 247).

Dá-se a impressão de que seria necessária a total normação de temas de

deveres dentro da constituição, mas Canotilho assevera isso pode ser afastado.

(ibidem, p. 248). Os fundamentos dos deveres encontram-se na Constituição, seja por

disposição expressa seja por disposição implícita. Assim, é importante assentar que

a Constituição tem papel preponderante na dedução dos deveres, mas não o

papel de fonte totalizante (grifo nosso).

É na Constituição que devem constar e da qual deve-se extrair os deveres

entendidos como constitucionais. Embora existam, deveres morais ou pré-estatais,

restam elididos fundamento aos deveres constitucionais, elidindo a figura de deveres

pré-estatais ou deveres morais, como fundamento dos deveres fundamentais. Não

cabe à Constituição regular situações de dever, senão aquelas próprias dos deveres

constitucionais (NABAIS, 2007, p. 250).

José Afonso da Silva, ao dissertar os deveres individuais e coletivos indica que

na Constituinte de 1988 os conservadores clamaram mais pelos deveres do que pelos

direitos. Na visão do autor não caberia à Constituição a declaração de deveres

paralelos aos direitos pois aqueles correspondem a estes, reproduzindo a mesma

lógica dos deputados da Assembleia Geral da DDHC.

Ora, uma Constituição não tem que fazer declarações de deveres paralela à declaração de direitos. Os deveres decorrem destes na medida em que cada titular de direitos individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual direito do outro, bem como o dever de comportar-se, nas relações inter-humanas, com postura democrática, compreendendo que a dignidade da pessoa humana do próximo deve ser exaltada como a sua própria. (SILVA, 2015, p. 198)

Dentre os deveres estariam: o de propiciar ampla defesa aos acusados; o de

prender alguém apenas sob ordem escrita de autoridade judiciária; o de comunicar a

74

prisão de alguém e o local onde se encontre ao juiz competente e à família do preso,

bem como o de identificação daqueles que o prendem (SILVA, 2015, p. 198).

Ao autor bastariam os direitos, os quais somados, ao respeito ao próximo

levariam à efetivação destes, sem que fosse necessário apontar deveres na esfera

constitucional. Indica ainda que os deveres elencados no artigo 5º, que versa sobre

os deveres individuais e coletivos, têm como destinatário o próprio Poder Público e os

agentes mais do que os indivíduos privados. É possível, portanto, concluir que a

interpretação do texto constitucional, é uma possibilidade para desvelar o seu

conteúdo e a norma.

Lei ordinária e normas

A distinção entre normas constitucionais e ordinárias é por sua vez de ordem

formal, de modo que os temas não referentes à organização do poder, distribuição de

competências, exercício de autoridade, forma de governo e direitos e deveres da

pessoa humana (que compõem o aspecto material da Constituição ) seriam de ordem

formal.

Fala-se de Constituição em sentido formal quando se faz a distinção entre as leis ordinárias e aquelas outras que exigem certos requisitos especiais para a sua criação e reforma. (KELSEN apud BONAVIDES, 1996, p. 82).

Todavia, ainda que tratem de matérias não afetas aos objetivos originais de

uma Constituição, uma vez inseridos, sua alteração resta mais dificultosa do que em

leis ordinárias, uma vez que os temas, ainda que de ordem não materialmente

constitucional tornam-se formalmente constitucionais. (BONAVIDES, 1996, p. 82).

O que se destaca ainda é o fato de que tal distinção torna-se possível tão

somente em relação às constituições escritas, uma vez que “nas consuetudinárias,

unicamente a interpretação racional determina quais as regras do sistema jurídico que

têm caráter constitucional” (BASCUÑAN apud BONAVIDES, 1996,p. 83)68.

Até o fim do século XVIII preponderavam as Constituições costumeiras, “uma

complexa massa de costumes, usos e decisões judiciárias” (BARTHÉLEMY apud

68 BONAVIDES, 1996, p. 85 citando Mario González: “Pode-se dizer que Constituições não escritas ou

consuetudinárias aquelas que a prática ou o costume sancionaram ou impuseram.”

75

BONAVIDES, 2002, p. 84), existindo poucas leis de fato constitucionais, o que impedia

uma clara distinção entre o que era constitucional e o que era ordinário.

A distinção entre uma norma constitucional e uma ordinária é feita, conforme a

tipologia de Tércio Sampaio Junior, da seguinte forma: (i) a depender do tema ou

direito/dever, uma relação sintática de subordinação; (ii) semântica material, podendo

aquelas ser gerais-abstratas e estas especiais; (iii) de finalidade, podendo específica

ou programática69.

A esta pesquisa, são relevantes as constituições modernas, escritas e cujo

conteúdo, ainda que apenas formalmente constitucional, será entendido como texto

constitucional dos quais podem se originar deveres jurídicos, constitucionais ou

infraconstitucionais, numa acepção lato sensu.

Entretanto, não há óbice à aplicação destes preceitos a constituições de

natureza mista (escritas e costumeiras), uma vez que a constituição, ao menos

textualmente, vê-se incapaz de “regulamentar com absoluta precisão as

eventualidades do futuro” (FRIEDRICH apud BONAVIDES, p. 85). Tal incapacidade

dialoga inclusive com o fundamento desta pesquisa, vez que a hipótese dos deveres

implícitos é extratextual, oriundo de um processo interpretativo.

2.4.2 Ordenamento jurídico

Neste contexto a Constituição, assim como as leis ordinárias formam um todo,

um sistema, nomeadamente indicado como ordenamento jurídico. “Para a dogmática

analítica70, ordenamento é um conceito operacional que permite a integração das

normas num conjunto, dentro do qual é possível identificá-las como normas jurídicas

válidas” (FERRAZ JR., 2013, p. 147).

Este ordenamento é composto por um repertório (elementos normativos e não

normativos)71, que se relacionam e que são estruturados entre si e estruturantes uns

69 O apontamento das classificações é feito em linhas gerais, uma vez que cada caso concreto, cada norma analisada

terá sua própria classificação. 70 Uma abordagem ou "uma disciplina pode ser definida como dogmática à medida que considera certas premissas,

em si e por si arbitrárias (isto é, resultantes de uma decisão), como vinculantes par ao estudo, renunciando-se assim

ao postulado da pesquisa independente. (FERRAZ JR., 2013, p. 24). 71 FERRAZ JR., 2013, p. 146 regras não normativas seriam por exemplo as de subordinação ou coordenação, lex

superior (uma norma que dispõe que sobre a formação de outras normas) ou da lex posterior (que prevê a

prevalência de norma mais recente sobre norma mais antiga, quando aquela tratar do mesmo conteúdo desta).

76

em relação aos outros. À teoria geral do direito e à filosofia cabe a discussão sobre os

elementos deste repertório, que no contexto desta pesquisa apresentar os deveres,

nas suas variadas formas como elemento normativo que compõe este repertório. Atua

sobre este repertório um processo de expansão e de retração a depender da teoria

que se toma como pressuposto.

Assim, as teorias (zetéticas) do ordenamento ora estreitam o repertório, considerando elementos do ordenamento apenas as normas (Kelsen), ora reconhecendo nele normas, fatos, valores (Reale); do mesmo modo, a estrutura merece discussões, havendo quem lhe atribua um caráter lógico-formal (assim, de modo indireto, Kelsen, ao dizer que normas manifestam um sistema concatenação lógica das proposições jurídicas com que a ciência do direito as descreve) (FERRAZ JR., 2013, p. 146) (grifo nosso)

É desta noção de ordenação que aparece outro aspecto de um ordenamento

jurídico: sua unidade, a noção de conjunto homogêneo. Kelsen nomeia tal princípio

de norma fundamental, produto do ordenamento serial escalonado proposto pelo

autor. No escalão mais alto das normas estaria a norma fundamental, que encerra a

estrutura, mas não a “[...] questão de seu estatuto teórico: é norma? é um ato ou fato

de poder? é uma norma historicamente positivada ou uma espécie de princípio lógico

que organiza o sistema?” (Ibidem).

O fato de o repertório ser alterável, já deixa demonstrado que o sistema é de

estrutura dinâmica, de modo que este “capta as normas dentro de um processo de

contínua transformação” (ibidem, p. 147).

É preciso dizer [...] se estamos ou não diante de uma norma jurídica [...] é preciso integrá-la no conjunto, e este conjunto tem de apresentar contornos razoavelmente precisos: a ideia de sistema permite traçar esses contornos, posto que sistema implica a noção de limite, esta linha diferencial abstrata que nos autoriza a identificar o que está dentro, o que entra, o que sai e o que permanece fora (Ibidem).

Dentro deste ordenamento, já inserido no Estado Moderno e dentro do qual é

necessária uma capacidade gestora do bem comum, em que o indivíduo é objeto

deste Estado soberano e este “direito de soberania transforma-se também num direito

de sistematização centralizada das normas de exercício do poder de gestão” através

da positivação do direito. A institucionalização da mutabilidade do direito. (ibidem, p.

148-9).

[...] com a positivação ocorre uma radical reestruturação do direito, pois sua congruência interna deixa de assentar-se sobre a natureza, o costume, a

77

razão, e passa, reconhecidamente, a basear-se na própria vida social moderna [..] (Ibidem, p. 149).

O que se procederá será a tentativa de incluir neste conjunto de normas

positivadas as possibilidades de categorização dos deveres que serão descritas nesta

pesquisa, entendendo que tais elementos devem compor o repertório em vista do

ambiente (Estado Democrático de Direito) e dos princípios que este apregoa.

2.5 DAS SANÇÕES DOS DEVERES

Deve-se passar à uma noção relevante à compreensão do cumprimento dos

deveres. Pode-se indicar a hipótese de que um dever possui dois graus de afetação,

dentre os quais encontra-se a sanção.

Ônus natural e deveres sancionam?

Afetação pode ser compreendida como um efeito oriundo do descumprimento

de um dever muito embora trabalhemos aqui a noção de Dever-se, importante

destacar que o não cumprimento do dever gerará algum efeito, via de regra prejudicial.

Consideremos então os ônus naturais, apresentados no tópico 2.1 Ônus Natural.

A hipótese da alimentação teria um primeiro grau de afetação sobre o homem,

na medida em que tolhe sua liberdade. Ele deve se alimentar, dedicar tempo à procura

do alimento, ao seu preparo e separar dado tempo para a prática dessa atividade.

Esse processo transforma a liberdade (plena) em autonomia.

O segundo grau de afetação entraria em ação na hipótese de descumprimento

desse dever. Caso alguém não se alimente haverá um dano ao seu bem-estar

individual e, consequentemente, à autonomia. O mesmo vale para os outros ônus

naturais oriundos de Leis Naturais que gerem necessidades fisiológicas.

A existência do ônus natural transforma a liberdade em autonomia, e a não

prática/cumprimento desse ônus leva ao segundo grau de afetação, sendo que este

pode ser entendido como uma penalidade, que segue uma lógica natural e que

78

poderia ser traduzido numa proposição condicional equivalente a que se aplica a

gravidade 72.

O que ocorre aqui é que há certeza no efeito que será gerado, quando dadas

condições e elementos compuserem o cenário.

No mundo natural, cumpre afirmar que as leis da física, v.g., da gravidade, não variam. Em qualquer lugar será sempre a mesma lei física. Assim, a força gravitacional da Terra é a mesma em qualquer parte do planeta, não cabendo qualquer sorte de interpretação, apenas valendo o quanto for observado e comprovado por meio da experimentação (BASTOS, 2002, p. 22).

O efeito pode eventualmente ser evitado. O objeto indicado no exemplo pode

ser pego no ar, de modo que não cairia no chão, e levaria à invalidade para este

episódio isolado, mas não invalidaria a lei da gravidade. (a gravidade continua

operando e daí deriva a certeza/imutabilidade dos seus efeitos sob dadas condições).

Na alimentação ocorreria algo equivalente (se dado ser humano não se

alimentar padecerá). O efeito é sabido, caso o ser humano não se alimente, mas se

este se alimentar isso não invalidará a lógica condicional, senão para o caso

específico.

A distinção que se faz é que o primeiro nível de afetação não pode ser afastado

(por uma lei natural condicionante a autonomia será afetada), ao passo que se não

cumprido o ônus natural, este gerará um efeito prejudicial. Não há que se falar em

sanção, pois tal termo aplica-se dentro das Ciências Jurídicas, e não as Leis Naturais.

Fosse utilizado o termo sanção como sinônimo de um efeito lógico, estar-se-ía

inferindo implicitamente que há uma autoridade que coatora que sanciona as atitudes

individuais.

Pode-se indicar que os deveres culturais, possuem sanções, conforme

supramencionado, que não fazem uso da escrita, mas isso não inibe tais grupos de

aplicar sanções, quando do descumprimento desta modalidade de deveres.

72 Ex: se dado objeto for solto a distância suficiente do chão para que a gravidade opere, então este dado objeto

cairá no chão.

79

A sanção pode ser, dentro dos aspectos culturais carregada de carga divina ou

entregue ao acaso, como forma de punição, mas no mais das vezes, o ostracismo é

aplicado, não mais o ostracismo ateniense de que nos fala Plutarco, voltado para o

exílio, mas um ostracismo social moderno que tende a afastar o indivíduo do convívio.

Cabe aqui destacar que às sanções jurídicas cabe uma abordagem

diferenciada, pois embora estas possam ser reduzidas a proposições, (i) sua

ocorrência não é certa, (ii) sua lógica somente é válida pois funda-se na convenção,

no consenso, diferente das proposições condicionais deduzidas de hipóteses naturais

imutáveis; e (iii) as sanções, via de regra73, são arbitradas também por consenso.

As sanções jurídicas fundam-se numa estrutura propositiva:

Proposições jurídicas são, por exemplo, as seguintes: se alguém comete um crime, deve ser-lhe aplicada uma pena; se alguém não paga um dívida, deve proceder-se a uma execução forçada de seu patrimônio; se alguém é atacado de doença contagiosa, deve ser internado num estabelecimento adequado. (MONTORO, 2000, s/n).

O raciocínio é o de que sob determinados pressupostos jurídicos, uma coação

deverá ser efetivada por esta mesma ordem jurídica.

Insta destacar que, embora tal lógica seja aplicada às normas jurídicas, a

estrutura de proposições que indique um dado comportamento, seguido de uma

proposição que indique o resultado na hipótese de descumprimento ou de

cumprimento, pode ser deduzida de um fenômeno da natureza.

Montoro fixa ainda que a norma deve três elementos básicos: "a) a endonorma

que estabelece a prestação ou obrigação, por exemplo: se F é eleitor, F deve votar;"

73 Observe-se que no campo penal a fixação da pena pelo legislador não é baseada numa lógica fechada. Varia-se

o tempo de prisão a depender da gravidade do crime, mas não há exatidão nesta fixação em termos de pressupostos.

Alguns crimes têm equivalência de pena por acaso e não porque sejam equivalentes. Trata-se de deliberação e

consenso.

A exemplo do artigo 136, § 1º e artigo 155, caput do Código Penal. Na hipótese de reclusão ambos têm a mesma

pena.

"Maus-tratos: Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para

fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer

sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.”

“Furto: Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multas

80

seguida de uma ou mais perinormas, que estabelecem consequências positivas para

o respeito a norma.(Ibidem)

Por fim uma ou mais perinormas que estabelcem consequências jurídicas

(sanções) quando do descumprimento. "se F não votou, F deve ser multado; se F não

votou, não poderá retirar seu passaporte; se F não votou, não poderá inscrever-se em

concurso público etc." (Ibidem)

Montoro, seguindo a proposta de Carlos Cossio, segue a linha kelseniana.

Constarão na norma proposições condicionais, uma com a hipótese, seguida de outra

com a sanção na hipótese de descumprimento.

81

3. CAPÍTULO 3 - EFICÁCIA DA NORMA

3.1 DO TERMO EFICÁCIA: DISTINÇÕES

Faz-se mister distinguir termos que dialogam com a eficácia da norma, mas que

com esta não devem se confundir. O termo eficácia engloba uma série de aspectos

passíveis de problematização, incluindo o próprio uso do termo. (SARLET, 2015, p.

235).

Eficácia e Vigência

Há na doutrina pátria a tradicional postura de situar os conceitos eficácia e

vigência em planos distintos, de modo que a “vigência consiste na qualidade da norma

que a faz existir juridicamente (após regular promulgação e publicação), tornando-a

de observância obrigatória”(SARLET, 2015, p. 236) e fixando a vigência como

pressuposto da eficácia, uma vez que apenas norma vigente pode ser eficaz. (SILVA,

1982, p.42)74.

Por sua vez, há quem considere que a vigência identifica-se com a própria

existência da norma. (PIOVESAN, 1995, p. 45-46)75.

Distanciando-se das concepções apresentadas, Luis Roberto Barroso distingue

existência e validade. Enquanto aquela funda-se na presença dos elementos

constitutivos - agente, forma e objeto do ato normativo que servem de configuração

dos pressupostos de incidência -, esta seria a “conformação do ato normativo aos

requisitos estabelecidos pelo ordenamento jurídico no que concerne à competência,

adequação da forma, licitude e possibilidade do objeto”(SARLET, 2015, 236), noções

que não se confundiriam com a vigência, que se traduziria na existência jurídica e

aplicabilidade.

Para fins desta pesquisa, tomar-se-á a concepção adotada por José Afonso da

Silva, de modo que “a noção de existência da norma com a de sua vigência” (Ibidem).

74 Sobre o tema leciona J. H. Meireles Teixeira, Curso de Direito Constitucional, p. 286, para quem vigente “é toda

norma regularmente promulgada, enquanto não derrogada por outra norma, incidindo, portanto, sobre os fatos,

situações e comportamentos por ela previsto e regulados”, p. 286 75 Tal argumento alicerça-se sobre os ensinamentos de Tércio Sampaio sobre Hans Kelsen.

82

Fixa-se ainda o consenso de que entre a vigência a eficácia há íntima relação, seja

qual for o sentido atribuído ao termo eficácia.

Não é possível, todavia encontrar o sentido da eficácia da norma tomando-se

como ponto de distinção apenas a relação entre vigência e eficácia, porquanto a

própria eficácia distingue-se entre eficácia social e jurídica, alvo do próximo tópico.

Eficácia jurídica e Eficácia Social (Efetividade)

A inclusão do segundo termo as distingue em duas esferas que, apesar de se

complementarem, por serem espécies de eficácia, eficácia jurídica e social, devem

ser estudadas de forma pormenorizada. O alvo desta pesquisa, com as devidas

ressalvas em hipóteses de exemplificação, é a eficácia jurídicas dos deveres. José

Afonso da Silva, indica que o termo eficácia jurídica

[...] designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos nela indicados; nesse sentido, a eficácia diz respeitos à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. Possibilidade, não efetividade (SILVA, 1982, 55-6).76

Enquanto por sua vez, a eficácia social da norma seria a real obediência e

aplicação no plano dos fatos. (SARLET, 2015, 237). José Afonso da Silva, citando

Hans Kelsen indica que a efetividade se verifica quando a norma é efetivamente

aplicada e seguida conforme à norma se verificar na ordem dos fatos

Tal noção dialoga com o conceito e efetividade da norma, que segundo Luis

Roberto Barroso.

[...] significa, portanto, a realização do Direito o desempenho concreto de sua social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. (BARROSO, p. 83, 2001).

Numa retomada lógica faz-se imperiosa a existência da norma (vigência), para

que se fale em eficácia jurídica e então em efetividade77, sendo esta última o reflexo

na realidade social.

76 José Afonso da Silva, na obra Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 55-6, indica ainda que em vista

desta distinção é possível notar o fenômeno da inefetividade da norma. Uma norma pode ser eficaz do ponto de

vista jurídico, mas não do social, na medida em que pode não cumprida no plano social. 77 José Afonso da Silva trabalha com os conceitos de efetividade e eficácia. “Os direitos, liberdades e prerrogativas

consubstanciadas no título II, caracterizados como direitos fundamentais, só cumprem sua finalidade se as normas

83

Eficácia e Aplicabilidade

Dentro da mesma doutrina de que Luís Roberto Barroso é representante, resta

o consenso de que a eficácia jurídica e a aplicabilidade são indissociáveis na medida

em que a eficácia constitui uma possibilidade de aplicação da norma a casos

concretos e a consequente geração de efeitos jurídicos. (SARLET, 2015, p. 238).

Assevera José Afonso da Silva que “eficácia e aplicabilidade são fenômenos

conexos, aspectos talvez do mesmo fenômeno, encarados por prismas diferentes:

aquela como potencialidade; esta como realizabilidade, praticidade.”(SILVA, 1982, p.

49-50).

Deste modo, se faltar à norma algum dos requisitos para sua aplicação ao caso

concreto, faltar-lhe-ia a eficácia e a disposição para ser aplicável. Para que haja

aplicação, faz-se necessário que a norma seja capaz de gerar efeitos jurídicos.

Assumindo posição que dialoga com os ensinamentos de José Afonso da Silva,

mas tomando o próprio caminho, Virgílio Afonso da Silva (apud SARLET) comenta

que embora haja uma conexidade entre ambos os conceitos, não se trata de uma

relação de pressuposição,

[...]visto ser possível que uma norma dotada de eficácia não tenha aplicabilidade, especialmente em função de a aptidão para a produção de efeitos ser algo definido em plano diverso do qual se discute o problema da aplicação.(SARLET, 2015, p. 238)

Segundo Virgílio Afonso da Silva ainda, a aplicabilidade envolveria uma

dimensão fática, uma conexão entre a norma jurídica e fatos, atos e posições jurídicas

(apud SARLET, 2015, p. 238). Tal distinção apresentada por Virgílio Afonso da Silva

que, referenciando as lições de Tércio Sampaio Junior, indica que não seria possível

definir eficácia como um termo estritamente jurídico, vez que os efeitos normativos

oriundos desta dependeriam sempre de outras variáveis, mais amplas e múltiplas do

que o dispositivo constitucional e legal. (SARLET, 2015, p. 239)

Ingo Sarlet observa que tal definição seria contraditória, pois se à aplicabilidade

cabe ao contato com a condição fática, então à eficácia caberia tão somente o contato

que os expressem tiverem efetividade. [...] Essa declaração pura e simplesmente por si não bastaria se outros

mecanismos não fossem previstos para torná-la efetiva. SILVA, 2014, p. 470)

84

com a dimensão estritamente jurídica ou não o sendo com elementos que não incluem

uma dimensão fática.

Todavia, para efeitos didáticos tomar-se-á na presente pesquisa a noção

defendida por Ingo Sarlet, de modo que ao referenciar-se a eficácia jurídica, estar-se-

ia referenciando a aplicabilidade, que lhe é inerente. Uma norma, conclui-se, é sempre

aplicável, mas poderá não sê-lo, não alcançando, portanto, sua eficácia social

(efetividade). (SARLET, 2015, p. 238)

Importante ainda salientar que, embora o modelo de José Afonso da Silva tome

como pressuposto a presença ou não de elementos textuais - que demonstrem ou não

a necessidade de fixação de lei ordinária - , o jurista, como bem relembra Ingo Sarlet

cuida de eficácia da norma (e aplicabilidade) de normas constitucionais, e não de

textos (dispositivos) “constitucionais pura e simplesmente, de tal sorte que, levando

em conta que a norma não se confunde com o texto e é resultado sempre de uma

operação externa ao texto” (Ibidem, p. 240)

Na concepção de eficácia jurídica aqui adotada, a noção de que se cuida da aptidão de uma norma para gerar efeitos não é (e nem parece que a posição de José Afonso da Silva tenha de ser interpretada necessariamente desta forma) única e exclusivamente dependente do texto constitucional ou legal. (op. cit., p. 240).

Nota-se, a distinção entre a aptidão da norma para gerar efeitos após sua

interpretação e o ato concreto de aplicação e realização efetiva desta, seja através do

legislador ou do Juiz. (SARLET, 2015, p. 240). Por fim, tecendo uma linha entre todos

os conceitos listados definir-se-á a eficácia jurídica.

[...] como a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente (juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de - na medida de sua aplicabilidade - gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação norma (juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente - ou não - desta aplicação. (Ibidem).

Não se pretende separar a eficácia social da jurídica, pois é fato que apesar de

situadas em dimensões diferentes, a jurídica no dever-ser e a social no ser, estas são

intimamente conectadas entre si, “[...] na medida em que ambos servem e são

indispensáveis à realização integral do Direito”. (Ibidem). Repisa-se pois, o fato de que

na medida do necessário serão feitas as devidas referências aos problemas de

efetivação da norma no campo social.

85

3.2 CLASSIFICAÇÕES DOUTRINÁRIAS DA NORMAS COM BASE NA

APLICABILIDADE E EFICÁCIA

Inúmeros autores conceituaram, partindo de pressupostos ligeiramente

diferentes os graus de eficácia de que a norma constitucional seria dotada. Tal

retomada serve à elucidação das variadas formas de classificação e ao devido

caminhar que uma pesquisa deve tomar, ainda que, desde já, assuma-se como marco

teórico a obra de José Afonso da Silva, a qual servirá como fio condutor.

Ruy Barbosa - Normas self executing e normas non self executing

O tema da eficácia das normas constitucionais, ainda que não no campo dos

deveres, foi destacadamente estudada, desde 1891. Ruy Barbosa surge como

expoente da ordem republicana nascida no século XIX.

Fundado no modelo constitucionalista estado-unidense e nas decisões da

Suprema Corte, o autor acolheu a distinção entre normas autoaplicáveis (ou

autoexecutáveis) e as normas não autoaplicáveis (ou não auto

executáveis).(SARLET, 2015, p. 242). Tratar-se-iam das normas self-executing, self-

acting, ou self-enforcing e normas not self-executing, not self-acting, ou not self-

enforcing, respectivamente.

Executáveis são portanto,

As determinações, para executar as quaes, não se haja mister de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou indicar um processo especial, e aquellas onde o direito instituído se ache armado, por si mesmo, pela sua própria natureza, dos meios de execução e preservação (BARBOSA, 1933, p. 492)

Prossegue ainda, indicando, “que uma disposição constitucional é executável

por si mesma, quando, completa no que determina, lhe é supérfluo o auxílio supletivo

da lei, para exprimir tudo o que intenta” (Ibidem).

A Ruy Barbosa, seriam exemplos de normas autoaplicáveis: a) vedações e

proibições constitucionais; b) os princípios da declaração dos direitos fundamentais

do homem; c) as isenções, imunidades e prerrogativas constitucionais; d) a

designação de autoridades, a que se cometa especificamente essa execução; e) a

criação ou indicação de processos especiais de sua execução; f) o preenchimento de

certos requisitos para sua execução; g) a elaboração de outras normas legislativas

86

que lhes revistam de meios de ação, porque já se apresentam armadas por si mesmas

desses meios, ou seja, suficientemente explícitas sobre o assunto de que tratam.

(SILVA, 1982, p. 74)

Quanto as não autoaplicáveis, o autor, tomando para si as lições do americano

G. Tucker, destaca que há normas que precisam da ação do legislador, um

interpositivo legislatoris, de modo que “não revestem dos meios de acção essenciaes

ao seu exercício”, os direitos que outorgam ou os encargos que impõem: estabelecem

competências, atribuições, poderes, cujo uso tem de aguardar que a Legislatura, [...]

os habilite a se exercerem (BARBOSA, 1933, p. 488-9).

Conclui que “uma disposição constitucional é auto executável, quando nos fornece uma regra, mediante a qual se possa fruir e resguardar o direito outorgado, ou executar o dever imposto, e que não é autoaplicável, quando meramente indica princípios, sem estabelecer normas, por cujo meio se logre dar a esses princípios vigor de lei78” (ibidem, 495) (grifo nosso).

Tal característica, a de auto aplicabilidade, estaria expressa de forma literal no

enunciado e no conteúdo da norma, donde seria possível perceber se um preceito

constitucional dirige-se ao legislador ou ao Judiciário.

Este elemento dependerá ainda da circunstância da norma exigir (ou não) uma

concretização a nível legislativo, de acordo com a possibilidade de a norma gerar por

conta própria efeitos jurídicos, ou não gerar, caso seja apenas um princípio genérico.

(SARLET, 2015, p. 243).

Fixa Ruy Barbosa:

A questão, em cada especie, vem a ser se a linguagem do texto constitucional se dirige aos Tribunaes ou aos legisladores. Indicará ella que a disposição fosse destinada a constituir uma norma posta desde logo em effeito, como já completa na sua plenitude, estudando-se-lhe, não só o contexto da redacção, mas também a natureza intrínseca do conteúdo. Se a natureza e a extensão do direito conferido, ou do encargo imposto, se acham definidas tão inteiramente no próprio texto, que para os averiguar, basta o exame, a intelligencia dos seus próprios termos, e se na linguagem delles não há indício nenhum de que a materia foi confiada à acção legislativa, então se deverá concluir que a disposição é executável por si mesma79 (BARBOSA, 1933, p. 492) (nosso grifo) .

78 SARLET, 2015, p. 243: Dentre as normas não autoaplicáveis, o autor menciona as normas de competências e

as que criam instituições. 79 Neste mesmo trecho, Ruy Barbosa, fixa os termos à exequibilidade de uma norma, à possibilidade de demandar

o cumprimento de certo direito ou dever, tendo bem definidos seu objeto, sujeitos forma de cumprimento e demais

87

A presença de termo literal no texto constitucional como pressuposto

classificatório da norma também será crivo de José Afonso da Silva. Para Ruy

Barbosa, entretanto, bastarão apenas as duas classificações.

Tal distinção surgiu da verificação de que nas constituições estarão presentes

normas, princípios e regras de caráter geral, que serão desenvolvidas e aplicadas pelo

legislador ordinário, já que o texto constitucional não pode e não deve descer a

minúcias (SILVA, 1982, 73).

São largas sínteses, sumas de princípios gerais, onde por via de regra, só se encontra o substractum, de cada instituição nas suas normas dominantes, a estrutura de cada uma, reduzida, as mais das vezes, a uma característica, a uma indicação, a um traço. Ao legislador cumpre, ordinariamente, revestir-lhes a ossatura delineada, impor-lhes o organismo adequado, e lhes dar capacidade de ação (op.cit., 477-8).

Todavia, Ruy Barbosa assevera que “não há, numa Constituição, cláusulas,

a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições.

Todas têm força imperativa de regras, ditadas pela soberania

nacional”(BARBOSA, 1933, p. 489, destaque do pesquisador).

E José afonso Afonso da SIlva agrega ao destacar que nem mesmo as normas

autoaplicáveis seriam capazes de gerar por si só todos os efeitos possíveis, pois

seriam passíveis de novos desenvolvimentos dentro das leis ordinárias, a depender

do momento histórico, ao mesmo tempo que destaca que as não autoaplicáveis

tampouco seriam de eficácia nula “, pois produzem efeitos jurídicos e têm eficácia,

ainda que relativa e reduzida (SILVA, 1982, p. 76).

não se saberia verdadeiramente em que fazer consistir o caráter completo de uma norma; cada norma, em certo sentido, é incompleta, porque geral e abstrata, tanto que necessita do trabalho do intérprete para tornar-se concretamente aplicável aos casos singulares da vida social, compreendidos na respectiva categoria; existem, demais disso, normas mais ou menos [...] incompletas, ou, em outros termos, que requerem operações mais ou menos demoradas e complexas de interpretação para preencher-se o hiato que sempre separa a regra abstrata do caso historicamente individual que se trata de regular concretamente. ( Ibidem) (grifo nosso).

A Pontes de Miranda, contemporâneo de Ruy Barbosa, uma terceira

classificação seria possível, a das normas programáticas, resultantes do fracasso do

modelo liberal de Estado, e que reconheciam a estas um certo grau de cogência, “na

elementos necessários. Tal aspecto da exequibilidade será analisado em momento oportuno dentro da presente

pesquisa.

88

medida em que cerceiam a atividade do legislador, que não pode contrariar o

programa estabelecido pela Constituição (SARLET, 2015, p. 244).

Sua posição, embora em contato com a posição clássica, já trazia certa

inovação80 e acompanhava a crítica desferida contra a teoria clássica norte-

americana, que não absorvia as normas programáticas. (op. cit.)81

José Horácio Meirelles Teixeira

Eficácia plena ou limitada

Na década de 1950, para José Horácio Meirelles Teixeira, a norma

constitucional poderia ser considerada de natureza gradual, variando de um mínimo a

um máximo de eficácia, de modo que a este seria possível a classificação das normas

constitucionais como de eficácia plena e de eficácia limitada ou reduzida.

O primeiro grupo corresponderia às normas que - valendo-nos da formulação do autor - ‘produzem, desde o momento de sua promulgação, todos os seus efeitos essenciais, isto é, todos os objetivos especialmente visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui.(MEIRELLES TEIXEIRA apud SARLET, 2015, p. 146)

Por sua vez, as normas de eficácia reduzida ou limitada seriam aquelas que

não produzem efeitos, logo da sua promulgação, os efeitos essenciais, porque não foi

estabelecida normatividade suficiente sobre a matéria, dando ao legislador ordinário

a incumbência de fazê-lo (Ibidem, p. 247).

As de eficácia limitada são ainda divididas em programáticas e de legislação.

As primeiras referem-se a questões éticas e sociais, verdadeiros programas

80 Ingo Sarlet comenta a crítica sobre a obra de Barbosa “A teoria de Ruy Barbosa, em que pese sua inegável

importância e seus aspectos positivos, passou a ser objeto, entre nós (de modo especial a partir da década de

cinquenta), de acirrada crítica, não correspondendo mais ao modelo preponderante no âmbito de nossa doutrina,

além de manifestamente incompatível com a o direito constitucional positivo desde a Constituição de 1934, de

cunho notadamente social e programático, aspectos que desde então caracterizam o nosso constitucionalismo. Sua

revisão e reformulação ocorreram com base, principalmente, no pensamento de alguns dos principais publicistas

italianos do segundo pós-guerra, mas também à luz da s lições de juristas alemães da época de Weimar. Enquanto

a concepção clássica partia da premissa de que a maior parte das disposições constitucionais não era diretamente

aplicável sem a intervenção do legislador infraconstitucional, a doutrina atual parte da constatação de que a maioria

das normas constitucionais constitui direito pleno e diretamente aplicável.” SARLET, 2015, p. 244 81 SARLET, 2015, p. 258: Vale aqui a indicação de Eros Grau, Direito, Conceitos e Normas Jurídicas, p. 130,

que, além das normas programáticas, cunhou o termo norma-objetivo. Enquanto as programáticas definem fins

concretos, têm princípios e programas, existindo apenas na esfera constitucional, as de objetivo também o fazem,

mas na legislação ordinária.

89

destinados ao legislador ordinário. A segunda categoria, composta por normas

organizacionais e de competência, sem caráter ético-social, necessitariam de

legislação concretizadora, em virtude de critério técnico e instrumental. Regulam a

questão objeto de forma direta, mas não são de aplicação imediata (SARLET, 2015,

p. 247).

José Afonso da Silva

O professor José Afonso, por sua vez, também elaborou uma estrutura

tricotômica82, de modo que as normas constitucionais podem ser divididas em três

grupos, de eficácia plena, de eficácia contida e de eficácia limitada. Este parte do

pressuposto, já indicado por Ruy Barbosa, de que “não há norma constitucional

alguma destituída de eficácia” (SILVA, 1982, p. 81) (grifo nosso).

Normas de Eficácia Plena

Ao autor seriam as normas que, dotadas de aplicabilidade direta, imediata e

integral, prescindiriam a atuação do legislador ordinário para que alcançassem sua

plena operatividade, já que desde “a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou

têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos

interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituintes, direta ou

indiretamente, quis regular” (Ibidem, p. 79 e 89)

Eficácia Contida ou Contível

As normas de eficácia contida por sua vez, são dotadas de aplicabilidade direta,

imediata, mas possivelmente não integral, “aquelas em que o legislador constituinte

regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou

margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do poder público,

nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados.

(ibidem, p. 79 e 105).

82 Tal como Pontes de Miranda, mas com classificações diferenciadas quanto as normas não-autoaplicáveis

(imperfeitas na classificação de Pontes de Miranda).

90

Eficácia Limitada

As normas destes terceiro grupo, tem aplicabilidade indireta e reduzida, de

modo que o legislador gerou tal efeito ao não atribuir-lhe normatividade suficiente para

que estas fossem desde logo aplicáveis exigindo o interpositio legislatoris, a

intervenção legislativa.

Ressalte-se que as normas de eficácia limitada englobam tanto as normas declaratórias de princípios institutivos e organizatórios, que definem a estrutura e as funções de determinados órgãos e instituições, cuja formatação definitiva, contudo, se encontra na dependência do legislador ordinário. (SARLET, 2015, 248)

Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Brito

Por sua vez, estes autores apresentaram também uma proposta de

sistematização, partindo de critério diferenciado, qual seja, o de incidência da norma,

a maneira pela qual a norma regula a matéria sobre a qual incide.

Trabalha-se com a possibilidade ou não de o legislador interferir na

regulamentação da matéria pela Constituição, de modo que as normas classificar-se-

iam em inintegráveis (ou de mera aplicação), as quais “encerram uma formulação

jurídica de núcleo inelástico, ou impermeável a outro querer normativo de grau

hierárquico menor”(BASTOS & BRITTO, 1982, p. 117) e as integráveis, que seriam

regras com vocação para formar consórcios e dialogar com as normas inferiores,

ordinárias. Dentro desta última categoria estariam as normas completáveis e as

restringíveis pela atuação do legislador. (op. cit.).

Quanto à eficácia apontam os autores que a norma pode ser classificada como

eficácia parcial (as normas de integração completáveis) e as de eficácia plena, que

correspondem tanto às normas inintegráveis, quanto as de integração restringíveis.

(SARLET, 2015, p. 248-9).

Maria Helena Diniz

Sobre eficácia da norma em Maria Helena Diniz83

83 Disponível em:< https://jus.com.br/artigos/48494/classificacao-e-aplicabilidade-das-normas-constitucionais>.

Acesso em 09/12/2019.

91

Após a Constituição de 1988, Maria Helena Diniz formulou uma proposta de

sistematização ligada aos efeitos da norma, sustentando uma classificação em quatro

grupos(Ibidem, p. 249):

a) normas com eficácia absoluta, as quais Não seriam suscetíveis de alteração,

sendo intocáveis até mesmo pelas Emendas constitucionais. Teriam ainda uma

eficácia reforçada em relação às normas plenas;

b) normas com eficácia plena, que independeriam de atuação do legislador

ordinário para gerar efeitos, de modo que incidiriam diretamente sobre o tema-objeto,

sendo contudo suscetível a emenda constitucional;

c) normas de eficácia relativa restringível, que possuem aplicabilidade direta ou

imediata, podendo gerar todos os seus efeitos, mas que encontram-se sujeitas a

restrições que podem reduzir sua aplicabilidade.

d) normas com eficácia relativa complementável, de aplicação mediata

(indireta), já que não são dotadas de normatividade suficiente e não tem capacidade

de gerar desde logo seus efeitos, abrangendo os princípios institutivos e as normas

programáticas. (SARLET, 2015, p. 249)

Luís Roberto Barroso

Luís Roberto Barroso, por sua vez indicou uma organização cujo pressuposto

é o da situação jurídica dos indivíduos em face dos preceitos constitucionais, uma

tipologia ligada a função da norma no âmbito da Lei Fundamental. São três as

classificações, acompanhadas de subdivisões quando pertinente.

a) normas constitucionais de organização, estrutura ou competência: visam

organizar o exercício do poder político, as quais, seguindo a lição de Miguel Reale,

estabelecem as obrigações objetivas, desvinculadas de um fato hipotético sobre o

qual seria aplicada sanção na hipótese de descumprimento. Tal categoria de norma

ainda estaria dividida em 04 espécies, i) as de veiculação de decisões políticas, ii) as

definidoras de competência dos órgãos constitucionais, iii) as criadoras de órgãos

públicos, iv) as que estabelecem normas processuais ou procedimentais (Ibidem, p.

250)

92

b) normas constitucionais definidoras de direitos: fixam os direitos

fundamentais, de ordem subjetiva, e que geram situações entre os particulares,

podendo ser distribuídas em três grupos: i) situações prontamente desfrutáveis,

ligados a uma abstenção estatal - os direitos liberais clássicos; ii) situações que

exigem a prestação positiva do Estado - que dialoga com a quinta geração dos direitos

e os deveres; iii) normas que exijam edição de norma infraconstitucional integradora.

(SARLET, 2015, p. 150).

c) normas constitucionais programáticas; as que traçam fins públicos a serem

alcançados pelo Estado (Ibidem).84

Aspectos gerais das teorias

As teorias têm, cada qual, suas particularidades, que as diferem umas das

outras. Todos os autores comentados fixam o consenso de que existem normas

completamente destituídas de eficácia, havendo, em última hipótese, uma gradação

de eficácia.

Àquelas normas cuja normatividade constitucional é insuficiente para a geração

de efeitos imediatos, caberia a atuação concretizadora do legislador ordinário,

caracterizando as normas de eficácia limitada ou reduzida. Sobre o defendido por

Meirelles Teixeira, José Afonso da Silva, Celso Bastos, Carlos A. Britto e Maria Helena

Diniz, tal compatibilidade repete-se: há normas capazes de gerar seus efeitos, com

normatividade suficiente e que dispensam interpositio legislatoris. (ibidem, p. 251)85

José Afonso da Silva, ao indicar a classificação de normas de eficácia contida

(contível), apresenta um meio-termo entre normas de normatividade completa e

aquelas de normatividade complementável por lei ordinária. As normas de eficácia

84 SARLET, 2015, p. 253: Em relação as normas programáticas Ingo Sarlet destaca os comentários do jurista

português Jorge Miranda. "Assim, enquanto as normas preceptivas são de aplicação imediata, as programáticas

podem ser consideradas de aplicação diferida, revelando, neste sentido, uma dimensão prospectiva. [...] as

normas não exequíveis por si mesmas de natureza programática, além da concretização legislativa, reclamam

decisões políticas, providências administrativas e/ou operações materiais." deste modo seria viável optar por um

esquema tricotômico: " a)normas exequíveis por si mesmas; b) normas preceptivas não exequíveis por si mesmas;

c) normas programáticas.". Por fim Jorge Miranda destaca que "[...] todas as normas constitucionais são normas

jurídicas, não se cuidando, em nenhum caso, de mera proclamação política ou de cláusulas não vinculativas, na

medida em que as diferenças existentes são apenas de estrutura e de projeção de cada norma no ordenamento."

(destaque do pesquisador) 85 CANOTILHO, 2002, p. 535 “[...] a generalidade dos deveres fundamentais pressupõe uma interpositio

legislatoris legislativa necessária para a criação de esquemas organizatórios, procedimentais e processuais

definidores e reguladores do cumprimento dos deveres”

93

contida (contível) seriam aquelas que indicam uma possibilidade de reserva legal

ordinária que regulamentará ou restringirá a norma ou um direito de exercício.

Todavia, como bem lembra Ingo Sarlet, citando passagem de O conteúdo

essencial dos direitos fundamentais, obra de José Afonso da Silva, inexiste direito

fundamental completamente imune a limitações86, mesmo que veiculado numa

norma de eficácia plena (SARLET, 2015, 251)87. Deste modo, Ingo Sarlet critica a

classificação tríplice, uma vez que passada a Navalha de Occam seria mais prudente

distinguir entre apenas duas categorias, como fizeram, Meirelles Teixeira e Celso

Bastos e Calor Ayres Britto.

Tal aspecto, embora interessante, será deixado de lado, uma vez que na

presente pesquisa, pela amplitude de obras que analisam a tricotomia de José Afonso,

optar-se-á por trabalhar dentro da classificação deste, também no contexto dos

deveres. As limitações da teoria, comuns a todas as teorias, e mais destacadas quanto

maior o tempo de sua prevalência, também serão levadas em conta no decorrer do

texto.

Num quadro geral, e também constituindo-se como ponto de contato entre

todas as classificações, a discussão versa sobre uma questão de densidade

normativa como medida de eficácia (aplicabilidade) (Ibidem, p. 252). Destaca-se ainda

que o conteúdo da norma determinará a alta ou a baixa densidade normativa que se

pode extrair desta, de modo que excluir-se-ia a classificação de não auto- executáveis

e auto- executáveis88.

[...] pode-se falar em normas constitucionais de alta densidade normativa, que, dotadas de suficiente normatividade, se encontram aptas a, diretamente e sem a intervenção do legislador ordinário, gerar os seus

86 SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais, (2015). 87 Aqui destacam-se dois itens relevantes a presente pesquisa: i) Se José Afonso da Silva entende que direitos

fundamentais são restringíveis, sua aplicação, como assevera Ingo Sarlet(2015, p. 251, rodapé) deixaria de fazer

sentido; ii) se tal restrição, de norma de eficácia plena (a qual não prevê em seu texto restringibilidade) é possível,

então o critério textual, como já esperado, não é preponderante na obra de José Afonso, pois valerá o conteúdo

normativo do texto. Isso leva à uma conclusão, a de que, implicitamente, embora José Afonso parta do texto por

seguir doutrina positivista, este aceita a interpretação como mediadora. 88 CANOTILHO apud SARLET, 2015, p. 253, nota 58 sobre a relação entre as classificações de eficácia e a noção

de densidade normativa “Ressalte-se que para J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 195, a densidade

da norma constitucional diz com a sua proximidade de norma relativamente aos seus efeitos e condições de

aplicação, salientado, ainda, que quanto mais densa a norma, menor a liberdade de conformação do legislador,

ressaltando, todavia, que mesmo uma norma mais densa que outra pode reclamar uma interposição do legislador.

Em virtude de constituir a densidade uma grandeza variável, rechaça o mestre de Coimbra a existência de normas

constitucionais exequíveis por si mesmas e normas não exequíveis por si mesmas.

94

efeitos essenciais [...] bem como em normas de baixa densidade normativa, que não possuem normatividade suficiente para - de forma direta e sem uma interpositio legislatoris - gerar seus efeitos principais, ressaltando-se que, em virtude de uma normatividade mínima (presente em todas as normas constitucionais), sempre apresentam certo grau de eficácia jurídica. (Ibidem, p. 253, destaque do pesquisador)

Entenda-se aqui que a densidade normativa carrega em si duas dimensões:

i) aquela relacionada ao seu conteúdo que, destacada por Ruy Barbosa com

as devidas ressalvas, assume um pressuposto para sua eficácia e aplicabilidade, daí

derivando normas constitucionais de alta ou baixa densidade (SARLET, 2015, p. 252);

ii) a dimensão de densidade normativa propriamente legislativa, comparável a

uma capilarização normativa (por tema, hipótese, competência territorial ou instância

de interpretação normativa, como tribunais superiores) e a indicação de normas

específicas e que desenham os contornos compreendidos como devidos pelo

legislador89. Partiu-se da generalidade e abstração do texto constitucional para a

especificidade do texto infraconstitucional.

Mas que reste dissolvida qualquer dúvida quanto à eficácia, destaca-se que a

classificação tem condão didático e operacional, de modo que não abrange todas as

manifestações possíveis de eficácia. Há consenso entre os autores de que há uma

estratificação em termos de eficácia. É possível que cada direito e cada dever níveis

diferenciados de eficácia, de tal forma que não se encaixariam nas classificações aqui

listadas.

Para além disso, convém relembrar que todas as normas constitucionais, sendo dotadas sempre de um mínimo de eficácia, sendo esta variável consoante seu grau de densidade normativa, também podem considerar-se - em certa medida - diretamente aplicáveis, naturalmente nos limites de sua eficácia e normatividade (SARLET, 2015, p. 255).

Desde Ruy Barbosa restou pacificado que cada norma constitucional tem

eficácia e aplicabilidade, dependendo de sua normatividade. “[...] todas as normas

89 Neste ponto é interessante elaborar uma comparação. A densidade normativa pode ser observada por vários

aspectos, pelo da competência local onde a norma-origem constitucional é mais pertinente para atuar (questões de

preservação ambiental em escala); ou por temáticas (como a promoção do bem-estar de alguma categoria

específica de sujeito); bem com outras perspectivas. Mas o que se nota é um movimento equivalente ao de uma

ampulheta, em que inicialmente toda a “carga” normativa estava represada na norma-origem, porém com o passar

do tempo, a carga migra para outro espaço.

95

são sempre eficazes e, na medida de sua eficácia (variável de acordo com cada

norma), imediatamente aplicáveis” (Ibidem) (grifo nosso).

Consoante ainda com o grau de normatividade e eficácia de cada norma, Ingo

Sarlet destaca ainda dois últimos aspectos;

1) o de que a Constituição tem caráter vinculante e geral, não existindo

declarações “destituídas de conteúdo normativo”, e que apenas o “conteúdo concreto”

de cada norma será capaz de indicar a “carga eficacial” (eficácia). (SARLET, 2015, p.

255); e,

2) Que em certa medida, a eficácia jurídica dependerá da eficácia

social(efetividade). Não no sentido de interdependência, mas no de que a eficácia

jurídica pode restar facilitada, caso o ambiente social já tenha estruturas concretas

bastante desenvolvidas para atender a norma fixada (Ibidem).

Esse aspecto é relevante, pois o objetivo maior da norma é trazer efeitos

práticos à realidade. Uma vez que a norma, mesmo sem densidade normativa (de

conteúdo ou formal) atinge o objetivo de normatizar uma dada conduta, ela cumpre

com sua função, mesmo que, suponha-se, a norma fosse de eficácia limitada,

modalidade que exige normação ordinária90.

Alinhado aos deveres e levando-se em conta o disposto, são obtidas as

seguintes conclusões. (i) direitos são restringíveis, ainda que tidos como de eficácia

plena; (ii) que a existência de texto não é preponderante, pois fala-se em norma

abstraída do texto, conforme José Afonso da Silva, e não puramente em texto legal;

(iii) que eficácia também é uma questão de densidade normativa, seja em conteúdo,

seja em estrutura formal (lei), de modo que haverá normas que demandam mais ou

menos indicações legais em normas ordinárias, esteja tal necessidade prevista ou não

em seu texto; (iv) que toda norma tem eficácia, ainda que variável, conforme o item

anterior; (v) toda norma, ainda que de baixa densidade normativa ou programática,

tem normatividade; (vi) que o ambiente também determinará a necessidade de

densidade normativa ou não, sendo que alguns ambientes terão mais ou menos

90 Importa notar que as classificações não excluem umas às outras. As propostas, ainda que “[...] formuladas cm

base em critérios distintos, não excluem as demais, assumindo natureza complementar, na medida em que destas

recepcionaram as concepções sobre eficácia e aplicabilidade que a estas subjazem, desenvolvendo-as sob o ângulo

da efetividade.” (SARLET, 2015, p. 256)

96

estrutura para a efetivação da norma, o que influenciará a eficácia jurídica, em termos

de densidade normativa; (vii) o intérprete tem papel preponderante neste processo de

indicação das normas; (viii) os deveres, por tratarem de limitação de liberdades e

garantias, exigem previsão em texto legal.

97

4. CAPÍTULO 4 - DOS DEVERES FUNDAMENTAIS

A retomada histórica promovida no Capítulo I é bastante à elucidação do

esquecimento promovido em relação aos Deveres. Por motivações de caráter

ideológico, político, histórico e até por medo, tal estrutura jurídica embora presente

nas Ciências Jurídicas de modo implícito e relevante na forma de obrigações, acabou

sendo relativamente esquecida.

4.1 FUNDAMENTO JURÍDICO

A compreensão do fundamento jurídico dos deveres fundamentais passa pela

análise da base, dos suportes destes dos deveres, expressos ou implícitos. Em

primeiro lugar, se para cada dever é necessário um dever específico ou haveria uma

cláusula geral de deverosidade. Se específicos, a Constituição brasileira, em seu

Título II, Capítulo I, Dos direitos e deveres individuais e coletivos concederiam, ainda

que implicitamente os subsídios para a estipulação de deveres com base nos direitos.

Mesmo nas constituições em que restam ausente os deveres explícitos, há “bases

para a defesa duma lista aberta dos deveres fundamentais decorrentes de preceitos

constitucionais” (NABAIS, 2015, P. 62).

Enfim, por qualquer destas vias, que constituem expressão da ideia já aflorada de que ao princípio da liberdade (ou da autonomia do indivíduo) não corresponde uma emancipação absoluta ou anárquica, mas uma liberdade acompanhada da correspondente responsabilidade social ou comunitária, e que remete para um entendimento personalísticos do indivíduo, (Ibidem).

Na posição de José Nabais, a deverosidade social (uma cláusula que é

genérica) deve ser ilidida. A cada dever (fundamental), a interpretação de norma da

esfera constitucional. Isso inclusive, para afastar a fundamentação dos deveres

(fundamentais) em deveres-pré estatais, e nem morais, não cabendo a Constituição

sanções senão sobre as hipóteses que ela mesma preveja. (Ibidem, p. 62-3).

[..] os deveres fundamentais apenas valem como tal - como deveres fundamentais - se e na medida em que disponham de consagração (expressa ou implícita) na constituição, ideia esta que, ao jogar no sentido de conferir primazia ao reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais (rectius, dos direitos, liberdades e garantias), presta vassalagem ao princípio da liberdade. (op. cit., p. 63) (grifo nosso).

98

Note-se ainda que ao autor, o pressuposto de sua obra O Dever Fundamental

de Pagar Impostos, é que os deveres implícitos são aceitos doutrinária e

juridicamente, pois ainda que implícitos encontram-se extremamente arraigados a

uma realidade social e geram efeitos materiais. (NABAIS, 2015, p. 63). O próprio dever

de pagar impostos é implícito no contexto lusitano e brasileiro.

A aceitação desta implicitude analisa e encerra um eventual debate referente a

Reserva de Lei da Constituição. Embora quaisquer restrições, em termo de deveres

devam constar na Constituição, a Carta Magna não é um “sistema fechado”, é ao

contrário, aberta ao desenvolvimento, de modo que esta reserva constitucional deve

dialogar com as novas configurações sociais91. “[...] a constituição não é apenas um

‘texto jurídico’, mas também uma expressão do desenvolvimento cultural do povo.”

(CANOTILHO, 2002, p. 1140-1)92.

Dever originário e a norma hipotética fundamental kelseniana

Em virtude desta remissão à fundamentação jurídica dos deveres, uma

discussão floresce. Seria possível então fixar um conceito de Dever Originário? O

Dever Originário que se pretende delinear não é um dever originário presente na

natureza, mas um que possa (i) ser um alicerce à estrutura dos deveres, um dever

geral ou específico por dever e (ii) que não seja um Dever Originário essencialista ou

ligado à natureza do homem, (iii) portanto entender-se-á tal Dever Originário enquanto

um dever não-natural, ou seja, Artificial, mais especificamente, jurídico, que pode ter

o condão de unificar as categorias de Deveres93. A teoria de Hans Kelsen pode

colaborar para tal construção.

Hans Kelsen define norma jurídica como uma proposição descritiva, composta

por uma proposição primária, a qual é hipotética e prevê dado comportamento, e uma

norma secundária a qual é a sanção punitiva promovida pelo ente estatal quando

praticada a proposição primária por dada pessoa.

91 CANOTILHO, 2002,p. 1141: "[...] a pluralização dos mundos' que caracteriza a nossa sociedade (no domínio

das religiões, das ideias, dos valores da estética, da moral) torna crucial o problema de saber se a constituição deve

condensar os 'princípios superiores' objecto de consenso ou se deve também incluir os dissensos de minorias

(religiosas, étnicas, sexuais)." 92 Ibidem. “Precisamente por isso, a reserva de constituição deve estar aberta aos temas do futuro [...] 93 A indicação de um dever originário não natural afasta a noção de divino, pois, como já demonstrado, caso haja

o fator divino, este acabaria por ser a fonte de todas as categorias de deveres.

99

Há um dever-ser, que se deduz através da enunciação de um comportamento

indesejado e de sua sanção, e do qual se extrai a norma, que será a defesa daquilo

que não pode ser ofendido, conforme a expressão da proposição primária.

A norma é essencialmente coercitiva e sua lógica é deôntica. Ausenta-se na

análise purista de Kelsen, qualquer aspecto axiológico ou teleológico na construção

ou estudo da norma jurídica, sendo esta ausência, assim como a presença da

proposição secundária (a sanção), os elementos que distinguem uma norma jurídica

de uma norma moral.

À noção de sistema, Kelsen expõe que essa sistematização se dará através da

validação de normas, uma se originando de outra anteriormente fixada por um ente

que seja competente para tanto. O fundamento validador de uma norma é outra

norma. Isto, entretanto, leva à uma regressão infinita, através da qual uma norma, por

mais superior que seja ver-se-á sempre fundamentada por outra superior.

A fim de resolver esta problemática, Kelsen então apresentou em sua 2ª edição

da Teoria Pura do Direito, no fim da década de 1960, o conceito de norma hipotética

fundamental.

Esta é responsável pela validade de todas as demais e caracteriza, simultaneamente, o sistema como um conjunto de normas redutíveis a uma unidade. Só pode haver, por isso, uma única norma fundamental, sob pena de não termos um sistema. O problema, porém, é determinar o estatuto teórico dessa norma fundamental (FERRAZ JR., 2013, p. 156).

Esta seria a norma originária94 e fundante de todas as demais normas. Isso

garantiria a sistematização, bem como a fixação e manutenção de uma ordem

normativa.

Onde os pressupostos jurídicos se iniciam e para onde as reflexões normativas

caminham. Norberto Bobbio então apresentará esta sistematização como uma

pirâmide, cujos platôs encontram-se sujeitos a platôs superiores, contidos pelo topo

da estrutura. Esta concepção, porém, será comentada a seguir.

94 Uma norma-origem, a exemplo da classificação de Tércio Sampaio apresentada

100

Dever jurídico em Kelsen

O dever jurídico consistiria em seguir a norma, dentro de uma lógica própria

dela, a deôntica. Pode-se ainda abstrair duas noções: a de que (i) aquilo que é

defendido constitui o direito de um dado sujeito, um poder-fazer ou ainda o poder-

exigir algo de outrem; ao mesmo tempo em que (ii) cria-se o dever de todos, ou caso

a caso deveres individualizados entre pessoas específicas.

Existiria, portanto, uma relação direito-dever. Uma proposição que expressa um

direito, por correlação expressaria um dever e vice-versa. Todavia, o que interessa à

esta pesquisa não é uma não-prestação hipotética seguida de uma sanção (NP∴S),

mas sim uma prestação(P) que se não cumprida implicará em uma sanção (se NP∴S).

O primeiro nível de leitura apresenta a hipótese de cumprimento, e não a

hipótese de descumprimento do preceito expresso pela proposição primária. Como o

modelo mencionado anteriormente de Franco Montoro.

A estrutura de deveres aproxima-se do segundo modelo, no qual a primeira

proposição apresenta a compulsoriedade no cumprimento de um dever, claramente

expresso pelo texto legal e do qual seria então possível deduzir num segundo

momento um dado direito.

A distinção aqui apresentada é de caráter lógico, e não prático. Enquanto no

primeiro modelo a norma é negativa, um não dever-fazer que será sancionado, o

segundo modelo apresentar um dever-fazer, que se não realizado será sancionado.

A conclusão a que se chega pois, é que entre direito e dever há uma distinção

na construção semântica e lógica, mas que ambas as estruturas são, como é de se

esperar, geradoras de normas. Kelsen fala em norma, portanto, não distingue

direito de dever. (grifo nosso). Seja norma de direito, seja norma de dever, qualquer

uma destas pode compor a lógica de uma norma hipotética fundamental. A mesma

norma pode servir aos grupos de direito e dever inclusive.

Tal aspecto poderia dar por encerrado o presente debate, mas a problemática

aqui expressa é se: seria necessária ou possível a fixação de um Dever Originário ao

se teorizar a fundamentação jurídica dos deveres?

101

O que se traça aqui é um paralelo entre uma estrutura geral mais ampla e a

estrutura dos deveres, que buscam uma fundamentação jurídica lógica e autônoma

da estrutura dos deveres, muito embora, estes devam sempre dialogar com aqueles.

Ocorre que a norma hipotética de que fala Kelsen, sendo uma norma de origem,

está sujeita a uma hipótese comparativa, relacional. Todavia, se a teoria de Kelsen

aceita que uma norma se funda em norma anterior, esta norma hipotética fundamental

não será norma, pois nada deve precedê-la. Mesmo com este aparente problema

lógico, ela continua existindo, e simplesmente existe porque é reconhecida como um

inegável ponto de partida. (FERRAZ JR. 2013, p. 156).

A norma fundamental pressuposta passa a ter uma espécie de validade que não é relacional: validade das condições do próprio pensamento (Kelsen diz que ela é uma condição transcendental do pensar) (Ibidem).

Bobbio apresenta uma solução esta dificuldade, afirmando que a norma

primeira é um ato de poder simplesmente posto. O poder constituinte pode ser este

poder, por exemplo. Trata-se de um início arbitrário, mas que por necessidade de

efetividade deve ser aceito. (Ibidem, p. 157)95.

Da construção feita até este ponto, elencam-se outros aspectos, pertinentes a

um dever originário à uma pretensa Teoria Geral dos Deveres, tomando a teoria de

Kelsen como pressuposto. (i) entende-se que a norma é coercitiva; (ii) que em Kelsen

o respeito a norma constitui um dever jurídico; (iii) que direito e dever são conceitos,

de cujas construções lógicas se pode extrair uma norma; (iv) que o dever jurídico

kelseniano é o de cumprimento geral da norma, diferente da estrutura deôntica de

dever; (v) que segundo a obra de Hans Albert três são as formas de justificação de

existência de um sistema;

O Trilema de Munchausen e os deveres originários

Por lema entende-se uma proposição que indica uma ideia central e que deve

ser seguida; por dilema e trilema, por sua vez, entendem-se conjuntos de proposições,

duas no primeiro caso e três no segundo caso, as quais podem ser aplicadas ou

95 FERRAZ JR., 2013, p. 157 “Bobbio (1960:51) nos dá ainda outra explicação. Observando que Kelsen, com sua

norma fundamental pressuposta, está buscando o impossível (uma validade não relacional), propõe ele que a norma

última se identifique com um ato de poder. A norma fundamental é a que é posta por poder fundante da ordem

jurídica e sua característica é a efetividade: ou o poder se impõe, ou não é poder fundante e não teremos norma

fundamental” (grifo nosso).

102

utilizadas como respostas à uma dada situação, mas que, em ambos os casos, são

insatisfatórias à devida resolução desta situação-problema.

Um exemplo de dilema é aquele descrito por Michael Sandel, quando pessoas

se encontram paradas em uma linha de trem e o interlocutor do dilema vê-se obrigado

a escolher entre salvar uma pessoa ou várias ao puxar uma alavanca na plataforma

da estação que salvará umas e matará outra desviando o trem. Embora existam as

respostas, não há resposta satisfatória.

Um trilema teria a mesma proposta, entretanto pretende-se analisar um trilema

em específico, qual seja o de Münchhausen96 , proposto pelo estudioso alemão Hans

Albert, baseada na obra de Marco Agripa, político e filósofo romano. Albert segue a

linha crítica-racionalista, sendo um dos seguidores de Karl Popper.

A relevância está no fato de que este Trilema foi proposto para analisar as

origens de um dado sistema. No caso em análise, o jurídico. Albert considerou que o

pensamento moderno tem a tendência de fundamentar suas estruturas em

pensamentos totalizantes que criem um argumento interno, auto justificável e que gera

consequências(funcionalidade), de modo que os conhecimentos podem ser

absorvidos sem que tenha a necessidade de colocá-los em dúvida ou debate.

(ALBERT, 1976, p. 24). Eles (os argumentos) estão lá porque eles se justificam e isso

basta.

A estrutura destes sistemas se basearia em premissas lógicas vazias que

gerariam consequências lógicas vazias (sem conteúdo), a citar o exemplo de NP∴S

ou P ou ainda se NP∴S. O modelo original pode então ser preenchido de diversos

modos, de acordo com a necessidade do emissor ou dos interlocutores, dentro da

lógica deôntica.

Sobrepondo o conceito exposto por Albert ao sistema jurídico, haveria, pois,

três possibilidades à fundamentação de um dado sistema, de modo que ele

96 O Barão de Münchhausen foi uma personalidade do século XVIII conhecida por ser um assíduo contador de

historietas que fugiam da realidade. Em certa ocasião contou que cavalgava por uma dada região, quando adentrou

um pântano e neste atolou, junto com seu cavalo. Contou a todos que decidiu então puxar os próprios cabelos, e o

fez com tamanha força que conseguiu sair do atoleiro em que se encontrava. Sua própria força justificou sua

própria salvação. Daí a escolha de Hans Albert para nome do Trilema.

103

justificasse a si mesmo e gerasse consequências (sua funcionalidade), quais sejam,

de modo que uma norma justificaria a outra; (Ibidem).

(i) A circularidade, de modo que uma proposição justificaria a outra até a última

proposição da sequência justificar a primeira. e.g. “A Bíblia é a palavra de Deus; Deus

diz a verdade; As verdades vêm de Deus; Deus escreveu a Bíblia, portanto a Bíblia é

a verdade”. Uma sequência de silogismos ou não que legitimam uns aos outros;

(ibidem). (ii) a regressão infinita; que apresenta um problema de interrupção

regressiva e progressivamente97; (iii) Um início dogmático, abrupto, que foi

convencionado. (op. cit.). Conforme modelo a seguir.

Quadro 1:

Fonte 1

No contexto da obra de Kelsen, é preciso observar dois momentos distintos. O

primeiro em 1934 quando o autor apresentou sua Teoria Pura do Direito, na qual

indicava que a regressão de normas, através da qual uma norma legitimaria a outra,

estruturaria as Ciências Jurídicas e o segundo momento em 1974, quando então

constituiu a Norma Hipotética Fundamental.

Em seu primeiro momento a obra de Kelsen não fazia referência a qualquer

elemento externo ao sistema jurídico, sua obra era pura, entretanto, não apenas os

notórios fatos que se sucederam durante a Segunda Grande Guerra, como a

legitimação de genocídios, perseguições a grupos étnicos e culturais, bem como o

97 FERRAZ JR., 2013, p. 158: “O problema que resta é explicar quando e como interrompemos a sério, tanto

regressivamente (questão da norma-origem), quanto progressivamente.”

104

Tribunal de Nuremberg98, (FERRAZ JR., 2013, p. 158-9) levaram Kelsen a incluir a

Norma Hipotética Fundamental em sua Teoria.

Deste modo que em certa medida este admitiu que determinado elemento, de

carga valorativa, histórica ou extemporânea poderia ser tomada como base à sua

Teoria. O que concedeu a seu pensamento uma auto fundamentação, ainda que em

detrimento de um purismo. O que passou a ser um início dogmático à sua Teoria. Isso

equivale a comentada norma posta pelo poder, citada anteriormente.

Vá-se além, pois a circularidade também é fenômeno que se aplica ao

ordenamento jurídico, pois este é um sistema que, enquanto dinâmico, admite várias

hierarquias, o que não apenas eliminaria hipótese de uma única norma fundamental

e levaria à uma “estrutura circular de competências referidas mutuamente” (Ibidem.,

2013, p. 157).

Pode-se então concluir que vários subsistemas podem ser criados, de modo

que não se faz necessário, embora possa existir, um único dever originário de

deverosidade ou de submissão a norma, que será ampla e genérico e cobrirá todos

os deveres99.

Todavia, em virtude das particularidades do deveres, explícitos ou implícitos,

cabe aqui a indicação da possibilidade de deveres originários, de modo que (i) aceita

a implicitude de deveres dedutíveis de direitos; (ii) a possibilidade de flexibilização da

reserva de lei constitucional, tais deveres originários, que passam a não ser

obrigatórios, podem ser ainda assim ser posicionados como normas-origem de um

encadeamento. Ex: do Dever de Proteção à Privacidade (implícito), originar-se-ia a

98 O qual ocorreu sem que houvesse fundamentação jurídica prévia, uma imprevisão normativa, como também a

impossibilidade lógica de uma regressão infinita 99 Apenas a título especulativo seria possível comentar, O dever de proteção da Constituição ou respeito a esta é

um dever originário ou, o mais elementar e simplificador da lógica constitucional. Ao invés de inúmeros deveres

correlatos a direitos, talvez um único dever, o de respeito à constituição seja suficiente à defesa dos direitos

fundamentais. Isso (i) segue o preceito constitucional, (ii) acompanha a possibilidade de aplicação de uma norma

hipotética fundamental; (iii) e acata a navalha de Ocam. Esse dever, porém, é de ordem principiológica, de modo

que sanções pelo descumprimento deste preceito fundamental seriam perpetradas pelos órgãos inferiores e

ordinários. A forma de cumprimento deste deve ser levada em conta desde já, na medida em que o dever de

proteção da Constituição, deve ter eficácia jurídica e social (efetividade), sendo que esta se tornará a mais

relevante, pois caso nos fixemos na defesa do texto literal, sem no entanto buscar uma aplicação real, sua utilidade

restará prejudicada.

Este não é um dever, assim como todos os deveres, que se completa protegendo ou garantindo a estrutura de

cumprimento, mas que se completa e sublima ao cumpri-lo de forma exógena. O cumprimento do dever não está

no dever, mas a partir do dever.

105

fundamentação da Lei nº 13.709/18, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD); outro

para o Dever de Proteção/Promoção do meio ambiente, dentre outros100.

Deste modo, o termo dever originário, numa primeira classificação nomeada de

deveres de origem de deverosidade, possa ser utilizado para (i) referir-se a um dever

que deu início a um encadeamento de normas, restrições, regulamentações ou

direitos, seja este dever implícito o explícito; (ii) sendo que este dever originário ou de

origem será constitucional, podendo ser abstrato e geral, quase principiológico101.

Destaca-se ainda que as leis ordinárias podem prever deveres que sejam de

caráter fundamental, mas estes, seriam tão somente deveres ordinários, ou legais.

(NABAIS, 2015, p. 63).

Conceito

José Nabais indica, sem a pretensão de criar uma definição absoluta, que os

deveres fundamentais constitucionais102 podem ser definidos como (i) deveres

jurídicos do indivíduo, de especial significado a comunidade e que (ii) podem por esta

ser exigido. Podem ser definidos ainda, em relação aos seus correlatos direitos

fundamentais, como uma posição jurídica passiva, autônoma, subjetiva, individual,

universal, permanente e essencial. (Ibidem, p. 64).

Trata-se assim de posições opostas às dos direitos fundamentais, uma vez que estes, traduzindo a situação de prevalência do indivíduo face ao estado, consubstanciam posições jurídicas activas ou de caráter activo dos indivíduos face ao estado ou comunidade. O que não significa, como é fácil de se ver, que os deveres fundamentais se traduzam em meras situações de inércia ou inactivas como as sujeições, que são totalmente independentes da vontade do respectivo titular. (NABAIS, 2015, p. 65) (grifo nosso).

O destaque feito vale ainda para relembrar ao leitor que os deveres não são

apenas de ordem passiva, ou de abstenção (Capítulo I), como definidos pela ordem

100 Em linhas gerais (FERRAZ, 2013, p. 164) “Ordenamentos, pois, constituem sistema dinâmicos, com vários

padrões de funcionamento, conforme a variedade de suas estruturais. Não são, assim totalidades homogêneas,

embora sejam todos coesos. [...] Não há uma norma a conferir-lhe unidade, porque os ordenamentos contêm séries

normativas plurais. “ 101 Numa consideração que visa alongar o debate: Numa segunda classificação, pode-se indicar os deveres

originários de cada sujeitos de dever (diferentes deveres de origem para cada sujeito, ao indivíduo o dever de

resistência). Tal tema resta no mínimo interessante. 102 Os deveres fundamentais, sempre que disposto juridicamente, o serão na Constituição Federal, quando num

contexto constitucionalista que trabalhe com uma Carta escrita. Estes, portanto, estarão dentro dos deveres

constitucionais, visto que estão numa Constituição. Os deveres fundamentais serão constitucionais e vice-versa.

106

liberal em relação aos direitos de defesa, liberdades ou garantias. Os chamados

deveres de direitos fundamentais recaem predominantemente sobre o Estado, de

modo que são deveres negativos, de abstenção, de proteção (penal, policial,

diplomática) e de exequibilidade dos direitos, na perspectiva processual e

organizatória) (Ibidem, p. 66).

A passividade vê-se presente quando estes relacionam-se com os direitos de

defesa, mas não por exemplo em relação aos direitos sociais, quando então os

deveres e os direitos de quinta geração tornam-se deveres prestativos e de

concretização103.

Ainda sobre os deveres de abstenção, Nabais argumenta que estes “não são

autónomos face à figura dos direitos fundamentais” (2015, p. 67) e que seriam na

verdade limites interindividuais dos direitos, o que influi na classificação dos deveres

tidos como autônomos, pois ainda assim estes seriam limites aos direitos, ainda que

não referenciassem diretamente dados direitos.

4.2 TIPOLOGIA

A classificação dos deveres conforme a seguir consta, é ampla e toma critério

aspectos diversos.

Quanto ao conteúdo

Quanto ao conteúdo são 05 classificações expressas pela literatura.

a) deveres positivos ou negativos, a depender do comportamento que o

destinatário (sujeito de dever) deve praticar. Dentre os positivos podem ainda constar

os (i) deveres de prestações pessoais, que definem a prestação de fato (facere) que

103 Na mesma passagem José Casalta Nabais levanta o questionamento sobre a vinculação dos particulares aos

direitos sociais e a realização destes. Assevera que (2015, p. 66) “[...] quando a lei obriga os particulares à

realização de prestações sociais, como de algum modo sucede entre nós com as tradicionais leis do arrendamento

urbano para a habitação por força [...] ela está a infringir a Constituição: é que , a realização do direito social à

habitação implica para o estado, e não para os particulares [...]. Numa outra perspectivação, isto quer dizer que os

direitos sociais, numa sociedade que pretende manter-se aberta devem ser realizados através do estado fiscal

(através do sistema de impostos), e não por via do estado dirigista que, assinale-se, ou representa uma situação de

excepção ou uma etapa do estado proprietário.” Tais comentários são pertinente na medida em que deseja afastar

a possibilidade do Estado ter ingerência ou interferências constantes sobre as propriedades particulares ou sobre o

modus operandi do mercado, todavia, com as devidas ressalvas, a exemplo da função social, todos os indivíduos,

quando não de forma direta, contribuem indiretamente para o cumprimento do dever ou veem-se sujeitos ativos

de dever.

107

deve ser tomada, dividindo-se ainda em personalíssimo ou infungíveis (dever de voto,

prestação militar) e os de prestação (dare), como o pagamento de impostos. Os

deveres negativos, por sua vez são os de abstenção (non facere), como os de isenção

político-partidária das forças armadas, o de proteção da privacidade, na medida em

que correspondências são invioláveis. (NABAIS, 2015, p. 112)

Dada a complexidade dos deveres, alguns destes enquadram-se em ambos as

classificações, positivos e negativos, como os de defesa e promoção da saúde, de

defesa e promoção do meio ambiente natural e outros que são ao mesmo tempo de

prestação de ação (facere), como os dever de manutenção e educação dos filhos.

b) deveres conforme a determinação constitucional: seriam definidos

constitucionalmente e de aplicação imediata ou não definidos constitucionalmente e

de aplicação mediata. Quando disposto na Constituição seriam imediatamente

exigíveis, enquanto os deveres determinados em lei (ordinária) seriam exigíveis tão

somente mediatamente. Neste ponto há um diálogo quanto à eficácia jurídica do dever

fundamental delineado constitucionalmente, de modo que Nabais parte do

pressuposto que a presença em texto de categoria superior, qual seja, a CF de um

Estado bastaria à sua imediata aplicação. (Ibidem, p. 113).

O autor adianta-se e indica que “os deveres fundamentais, mesmo quando

estejam determinados na constituição, não são directamente aplicáveis, exigindo a

sua aplicação a intervenção do legislador” (Ibidem). E segue importante argumento a

regulação infraconstitucional dos deveres.

Com efeito, mesmo quando se não configuram como habilitações ao legislador para a concretização do conteúdo dos deveres, os preceitos que os consagram são sempre pelo menos autorizações ao legislador para disciplinar os modos ou modalidades do seu cumprimento e, sobretudo, para estabelecer as sanções pelos seu incumprimento, sanções cuja cominação é imprescindível à efectivação dos mesmos, dado eles consistirem, por via de regra, em obrigações de fazer e, em princípio, ninguém poder ser coagido a uma actividade.(Ibidem) (grifo nosso).

Fica instado neste ponto que (i) a posição dos deveres é sempre de autorização

ao legislador ordinário, para que este legisle sobre tal objeto, (ii) fixando a forma de

cumprimento e (iii) a forma de sanção na hipótese de descumprimento

108

(incumprimento). Dada a liberdade do legislador constituinte, tais itens (margem para

legislar, forma e sanção) pode constar no texto constitucional104.

c) deveres autônomos (ou de conteúdo autônomo) e deveres não-autônomos

(conexos ou correlatos). Aqueles que são correlatos integram elementos dos direitos

a que estão ligados e acabam por constituir direitos-deveres105 ou deveres-direitos.

Estes coincidem total ou parcialmente com os direitos, podendo haver deveres que

sejam principais em relação aos direitos ou acessórios. A generalidade dos deveres

encontra-se nesta categoria, e pela sua natureza em contato com direitos

fundamentais. Trata-se de uma relação de integração. (NABAIS, 2015, p. 114)

Os deveres autônomos por sua vez têm seu conteúdo constitucional totalmente

excluído de específicos direitos fundamentais, os quais embora estejam

conteudisticamente afastados dos direitos, ao impor obrigações/deveres, limitando os

direitos acabam por dialogar funcionalmente com os direitos. Trata-se de uma de

relação de exclusão ou de delimitação.

Naturalmente, há casos de difícil classificação, como por exemplo o exercício

do direito de propriedade em conformidade com a função social preconizada pelo art.

5º, XXIII, da CF/88, “que para alguns sequer constitui um autêntico dever fundamental,

mas sim, um limite constitucional da propriedade.” É prudente enquadrar a função

social da propriedade no grupo dos deveres conexos, “pela íntima vinculação ao

direito de propriedade, o que também ocorre no caso da função ecológica da

propriedade” (SARLET, 2015, p. 229)

d) deveres de conteúdo cívico político e os de conteúdo econômico, social ou

cultural. Os primeiros representam o compromisso individual com o Estado e

representam o conjunto formado de direitos e de participação política inerentes ao

104 ASSEMBLEIA CONSTITUINTE PORTUGUESA, 1976, Art. 267, nº 6 “nenhum cidadão poderá conservar

nem obter emprego do Estado ou de outra entidade pública se deixar de cumprir os seus deveres militares ou de

serviço cívico quando obrigatório” 105 SARLET, 2015, p. 229, tomando objeto de análise do art. 225 da CF/88: “Os direitos fundamentais a um

ambiente equilibrado e a à saúde, por exemplo, constituem típicos direitos-deveres, pois os deveres fundamentais

em questão, conforme é possível depreender do conteúdo do disposto no art. 225, caput, bem como no art. 196,

ambos da CF, cuidando-se, portanto, de típicos deveres do tipo conexo ou correlato.” Cita no mesmo trecho, o que

pode ser entendido como ponte entre direito-dever ao citar a ADIN 3.540-1/DF, Rel. Min. Celso de Mello

(01/09/2005) “Nesta linha de entendimento, colaciona-se decisão do STF reconhecendo também o dever de

solidariedade que se projeta a partir do direito fundamental ao ambiente, gerando uma obrigação de tutela

ambiental por parte de toda a coletividade (ou seja, particulares) e não apenas por parte do Estado.”

109

modelo estado democrático, seja este liberal (negativo e não intervencionista) ou

social (positivo e intervencionista)106. Os segundos declaram as responsabilidades de

todos os entes das esferas econômicas, social e cultural na promoção destes três

aspectos.

Apontadas as classificações dos deveres quanto ao seu conteúdo indica ainda

o autor:

Do ponto de vista dos seus titulares os sujeitos activos, os deveres fundamentais, podem ser: 1) deveres vinculam os cidadãos nas suas relações directas com o estado, como são os deveres de carácter cívico-político ou os deveres clássicos; 2) deveres que obrigam os indivíduos principalmente nas suas relações com as colectividade em geral, como são os deveres de caráter económico, social ou cultural ou os deveres modernos; 3) deveres que se impõem às pessoas nas suas relações com outras pessoas, como é o dever dos pais de manutenção e educação dos filhos; e 4) deveres até para consigo próprio, como é o dever de defender e promover a saúde própria. (SARLET, 2015, p. 115)

Isto posto, Nabais defende que os dois primeiros itens do excerto seriam

deveres do cidadão, membro de uma comunidade, enquanto os dois últimos itens

seriam deveres inerentes ao indivíduo enquanto pessoa, verdadeiros deveres

naturais, radicados na dignidade da pessoa e na autonomia ética desta, sem a

necessidade de imposição de lei. Tal caráter pré-estadual não reduziria estes deveres

a deveres morais, uma vez que todo dever é o é em relação a comunidade estadual.

A rigor não haveria dever natural107.

Quanto a presença ou não texto constitucional

a) Deveres constitucionais formais e Deveres constitucionais materiais: Não

ocorre com os deveres o mesmo que com os direitos, de modo que a criação de

deveres ex lege, “Não é possível falar em uma cláusula aberta para a admissibilidade

de deveres materialmente fundamentais”, principalmente porque tal criação implica,

no mais das vezes, numa restrição da esfera jurídica dos cidadãos. (CANOTILHO,

2002, 534)

106 CANOTILHO, 2002, p. 534, “Estes deveres constitucionalmente positivados em normas constitucionais ‘são

deveres jurídicos (= deveres de natureza jurídica)’, embora a Constituição, ao aludir a dever cívico (ex.: direito de

voto) queira, claramente excluir a ideia de sanção geralmente associada às normas deônticas.” 107 Tal termo, assim com o termo obrigação, deve ser aplicado nas hipóteses em que se fale de relações entre

indivíduos, ao passo que ações que aparentam ser deveres consigo mesmo, são na verdade ônus: ações obrigatórias

que devem ser perpetradas pelo homem para que este goze de um direito, estes seriam os ônus naturais. (tal aspecto

foi comentado no item 2.1 Ônus natural desta dissertação.

110

b) Deveres explícitos ou implícitos: diferente dos direitos poucas são as

hipóteses de deveres listadas de forma explícita no texto constitucional, muito embora

a existência de deveres implícitos seja majoritariamente aceita, gerando estranheza

aos juristas a dúvida quanto a correspondência direito-dever.

Da mesma forma, questiona-se a tese se a cada direito em espécie corresponde um dever fundamental, pelo menos de natureza implícita, o que implicaria, em outras palavras, reconhecer uma relação de correspondência direta e absoluta entre direitos e deveres fundamentais. (SARLET, 2015, p. 230)

Repisa-se que José Afonso da Silva opõe-se a tal necessidade de indicação de

deveres correlatos a direitos108, seguindo, ainda que não intencionalmente o

entendimento vencedor na Assembleia Geral de 1789, que abandonou a ideia de listar

deveres paralelos aos direitos.

Quanto a função em relação a outros deveres

a) deveres-meio: ainda é possível falar em deveres meio ou instrumentais.

Aqueles que não são deveres per se, mas sim deveres necessários ao cumprimento

de algum outro dever, como por exemplo o direito/dever de voto que depende do

cumprimento do dever de serviço militar. (NABAIS, 2015, p. 132)

4.3 DIÁLOGO DIREITO-DEVER

Com uma metáfora usual, pode-se dizer que direito e dever são como o verso

e o reverso de uma mesma moeda. Mas qual é o verso e qual é o reverso? Depende

da posição com que olhamos a moeda. (BOBBIO, 2004, p.29)

Essa correlação é resultado não apenas das posições jurídicas, mas também

da relação entre os direitos e deveres, não numa perspectiva exata, que leve à

existência de deveres para todo e qualquer direito. Não e trata de relação

integralmente simétrica, o que levaria à um Estado totalitário. A propósito nestes

Estado haveria apenas deveres. (op. cit., p. 119)

108 SILVA, 2014, p. 198: “Os deveres decorrem destes [direito] na medida em que cada titular de direitos

individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual direito do outro, bem com o dever de comportar-se, nas

relações inter-humanas, com postura democrática, compreendendo que a dignidade da pessoa humana do próximo

deve ser exaltada como a sua própria.”

111

Num estado democrático de coisas, tampouco há uma assimetria completa,

pois não é a assimetria que caracteriza um Estado livre de um Estado totalitário.

Naquele, com frequência, há deveres que são também direitos, o que leva à uma

simetria parcial.

No mesmo sentido das intensas relações entre os direitos e os deveres fundamentais vai a ideia de que não há direitos sem deveres nem deveres sem direitos. Não há direitos sem deveres, porque não há garantia jurídica ou fáctica dos direitos fundamentais sem o cumprimento dos deveres do homem e do cidadão indispensáveis à existência e funcionamento da comunidade estadual, sem a qual os direitos fundamentais não podem ser assegurados nem exercidos. (NABAIS, 2015, p. 119)

Há entre ambos uma relação de conexão funcional, que afasta exclusivismos,

o que inclusive rechaçou a ideia dualista do modelo liberal de que o estado totalizante

deveria ser reduzido.

Importante destacar, que no contexto do Estado Democrático de Direito, a

dignidade da pessoa humana109 110 mostra-se como referencial, tanto à fixação de

direitos quanto de deveres. Daí ainda é inconcebível um estado assente apenas em

deveres. Sua presença e representação histórica restam patentes na expressão “no

taxation without representation”. Sendo que tal relação ainda se vê mediada pela

proporcionalidade, tanto da taxação, quanto da representação (Ibidem, p. 119-120)

Entretanto, pela própria natureza os deveres são limitadores da esfera da

liberdade dos indivíduos, restando destaca a “(de)limitação do conteúdo dos direitos

pelos deveres e, por outro lado, a (de)limitação do conteúdo dos deveres pelos

próprios direitos fundamentais”. A exemplo do dever de serviço militar, que afeta

variadas liberdades. (op. cit., p. 122)

109 Embora a definição do termo reste discrepante e de difícil delineamento, fixa-se aqui a conceituação e a

utilidade do conceito apresentadas por Ingo Wolfgang Sarlet: “Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade

intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do

Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que

assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir

as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa

corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.” (SARLET,

2015, p. 65) 110 Complementa ainda NABAIS, 2015, p. 120. “Desde logo, implica que por detrás dos deveres fundamentais

esteja também a dignidade da pessoa humana individual ou institucionalmente considerada. Com efeito, a este

critério material, que parte da ideia de homem como ser autónomo, livre e responsável (que se impõe como

princípio e fim do estado e da sociedade), se deve a unidade de sentido de todo o complexo normativo polarizado

em torno dos direitos fundamentais, unidade de sentido que é uma unidade de sentido cultural simultaneamente

positiva e histórica, pluralista e aberta”

112

Não podendo contudo haver a supressão dos limites imanentes dos mesmo

direitos, tampouco da liberdade ou da possibilidade de cumprimento dos ônus

naturais.111 Age sobre esta limitação inclusive a reserva de lei restritiva - dentro do

contexto de uma sistemática de limites – somente podendo haver restrição quando

previsto pela norma constitucional, a exemplo de uma restrição profissional, como o

limite ao exercício apenas de profissões lícitas (CANOTILHO, 2002,p. 1275-6)

Ainda assim, diante da adaptabilidade fática da Constituição, o legislador acaba

tendo grande margem para o estabelecimento de sanção e até para facilitar a

exequibilidade do dever, mesmo quando todo o conteúdo do dever restou

constitucionalizado explicitamente, mas dentro da margem de respeito aos direitos

fundamentais. (NABAIS, 2015, p. 155)

Um último aspecto ainda, é a ausência de choque entre direito e dever em

algumas hipóteses. Se no passado os direitos de liberdade caracterizavam a outra

face dos deveres de abstenção do Estado, no âmbito dos deveres/direitos sociais tal

comparação resta inaplicável.

[...] direito, liberdades e garantias são os direitos de liberdade, cujo destinatário é o Estado, e que têm como objecto a obrigação de abstenção do mesmo relativamente à esfera jurídica-subjectiva por eles definida e protegida. (CANOTILHO, 2002, p. 399)

Há uma integração entre direito e dever, ao passo que o direito ao meio

ambiente encontra um par, e não limitador ou opositor no dever de proteção do meio

ambiente. Tratando-se de um dever aberto, lato e de cumprimento variado, este

amplia o gozo do direito, ao invés de especificá-lo ou fazê-lo ser gozado como que

dentro dos limites de um labirinto. (NABAIS, 2015, p. 122).

111 Recordemo-nos que os ônus naturais são cumpridos do indivíduo para si mesmo e são, ao menos do que se

depreende da presente pesquisa, atrelados a natureza física do ser, de modo que não podem ser embaraçados.

113

4.4 SUJEITOS DE DEVER

Posições jurídicas

Em relação aos deveres, os sujeitos serão os mesmos que os de direito. Não

haveria lógica em supor que relação direito-dever existe, mas que aqueles que têm

direito não são os mesmos que tem dever.

Não há que se esperar, conforme já mencionado que a correspectividade entre

os direitos e deveres seja plena, longe disso. Mas é de se esperar que aqueles que

têm deveres em face de uns tenham direitos em face de outros, a depender da posição

jurídica assumida ou da situação jurídica.

Legislador

A doutrina adotada opta por diferenciar as duas figuras públicas legislador e

juiz dos demais sujeitos. Repisa-se, não porque sejam posições especiais, mas

porque estes têm deveres em relação aos deveres. Existe para estes o dever de

cumprir determinados mandos em relação ao rol de deveres.

O legislador constituinte indica os deveres e o legislador ordinário por sua vez

os torna aplicáveis, os traz para a realidade e os molda a realidade, tornando-os

exequíveis e concretizáveis.

Os direitos sociais, que na visão do Estado são deveres a serem cumpridos,

são os que mais exigem atuação pública, tanto legislativa e orçamentária quanto

material. Demandados pelo estatuto da CF/88, a constituição cidadã, como também

pela necessidade de atingimento dos objetivos propostos pelos princípios do Estado

Democrático de Direito.

Essa vinculação do legislador, entretanto, tem um caráter mais político e

sistemático do que jurídico, de modo que ao não legislar a nível ordinário seria

excessivo falar em hipótese de inconstitucionalidade. Além disso, a necessidade ou

não de legislar a nível ordinário é resultado da atuação do constituinte que versou

mais ou menos sobre dado tema, mas que pode ainda ter optado por não legislar em

114

vista da eficácia social de que gozava um dever a época da constituinte. (NABAIS,

2015, p. 166-7)

Com efeito, podemos dizer que o legislador, a este título é fundamentalmente chamado a conformar os deveres fundamentais, concretizando o seu conteúdo e regula(menta)ndo o seu cumprimento, e a sancionar o seu incumprimento[...] (Idem)

Ressalta-se que o legislador tem o papel de definir o dever a nível de lei

ordinária, porque a generalidade dos deveres não possui conteúdo determinado a

nível constitucional. A restrição dos deveres, seu ajuste, sua conformação é, portanto,

um problema de ordem ordinária. Aqueles deveres, entretanto, de conteúdo definido

constitucionalmente, não podem ser diminuídos ainda mais pela lei ordinária, sob

pena de serem inexequíveis ou inúteis. Em contrastante com os deveres este

possuem uma diferença destacada:

[...] a lógica que impõe que o constituinte consagre os direitos fundamentais com um conteúdo o mais amplo possível, autorizando a sua restrição (ao menos sem situações o mais amplo possível, autorizando a sua restrição (ao menos em situações de normalidade constitucional) apenas direito a direito, impõem aqui a consagração dos deveres com um conteúdo o menor possível, habilitando-se porém o legislador a concretizá-los em termos mais amplos, se for o caso disso. (op. cit., p. 168)

Ao passo que o direito nasce amplo e pode restringido, o dever nasce diminuto

e pode ser ampliado, com a ressalva ao segundo de que este resta controlado pelo

princípio da liberdade. E. suma, o legislador resta caracterizado não como um sujeito,

- embora o seja em termos de dever regular os deveres - mas como um primeiro

destinatário de passagem, e não o destinatário principal. (op. cit., p. 157 e 166)

Magistrado

O magistrado por sua vez, guarda uma função de protetor da ordem jurídica,

de acesso à constituição e é chamado a interpretar e a aplicar a carta constitucional.

Nesse processo interpretativo, o juiz constitucional, onde houver Corte Constitucional,

e o juiz comum tirarão parâmetros para o dever ordinário. (op. cit., p. 161)

Sua função torna-se especial pois, pode atuar de forma qualificada como órgão

de jurisdição constitucional, a nível de Suprema Corte ou a nível ordinário. Diante

ainda desta possibilidade, seu papel passa a ser sistematicamente importante, pois

diante da generalidade dos deveres e de sua mínima amplitude, o juízo será capaz de

115

analisar e aplicar a norma de dever aos casos subjetivos capilarizando a aplicação da

norma de maneira que o legislador constituinte ou nem o ordinário puderam fazê-lo.

Somente a falta de compreensão da função normativa da decisão judicial, o preconceito de que o Direito apenas consta de normas gerais, a ignorância da norma jurídica individual, obscureceu o fato de que a decisão judicial é apenas a continuação do processo de criação jurídica e conduziu ao erro de ver nela apenas a função declarativa. (KELSEN, 2009, p. 376)

Há na função do magistrado um processo imprescindível a aos deveres e seu

estado atual, de pouca normatividade, que é a continuação do processo de criação

jurídica pela interpretação.

Ente público

O Estado como instituição pública é o fixador dos deveres, mas é também

conformado por estes.

Conforme exposto, historicamente os primeiros deveres do de Estado moderno,

foram os de abstenção, próprio do liberalismo, mas os direitos sociais passaram a

demandar do estado uma postura mais (pró)ativa em relação a concretização destes

deveres.

O Estado deve trazer à realidade social os conteúdos dos deveres, mas pode

delegar tal função, em virtude da especificidade de alguns setores, da segmentação

econômica e da necessidade, numa perspectiva econômica de que seria inviável um

Estado detentor de empresas em todos os setores, o que até poderia afastar a atuação

privada.

É a partir da 2ª geração dos direitos, os chamados direitos sociais que surge

uma perspectiva de atuação positiva do Estado. Inicialmente tiveram uma baixa

normatividade e eficácia duvidosa, uma vez que a limitação material se impunha, o

que hoje é conhecida como a reserva do possível. (BONAVIDES, 2013, p. 570). Deixa-

se de lançar a sorte dos direitos na mão invisível do mercado e passa-se a colocá-los

nas mãos do Estado.

Dentre alguns outros deveres podem figurar o de indenização por erros

judiciais; o dever de edição de norma que proíba a tortura promovida pelo Estado; o

de efetivação (eficácia social) dos direitos fundamentais de forma positiva e

116

prestacional; o dever de exercício do Direito de forma solidária e que leve em conta

os interesses da sociedade. (DIMOULIS & MARTINS, 2011, p. 76-80).

Entes privados, indivíduos e comunidade

Por entes privados entendem-se as pessoas jurídicas, as empresas e

corporações as, quais são ficções jurídicas, mas compostas por pessoas, cujos

resultados de suas atividades atingem pessoas, no bônus ou no ônus e as quais não

restam afastadas dos efeitos dos deveres. A discussão principalmente sobre a

autonomia dos particulares em suas relações. Apontou o ministro do Supremo

Tribunal Federal (STF) Celso de Mello em voto do Recurso Extraordinário nº 201. 819-

8, pela 2ª Turma da Corte, ocorrido em 2005.

[...] a autonomia privada - que encontra claras limitações de ordem jurídica - não pode ser exercida em detrimento aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em se constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. (STF apud SARMENTO, p. 313)

Ademais, a autonomia privada não significa independência em relação à

Constituição. O dever do Estado de proteger e promover os direitos fundamentais, não

resta enclausurado nas repartições públicas, de modo que cabe a todos os entes e

indivíduos, mesmo nas relações particulares a proteção e promoção destes.

Embora seja possível a ponderação dos deveres das poderosas entidades

privadas e corporações, pois estas são detentoras de direitos, a proteção do núcleo

essencial de cada direito vincula estes (ANDRADE, 2004, p. 256-266)

Quanto ao indivíduo, este é o sujeito principal dos deveres. É executor, sujeito

ativo, aquele que confrontado com um direito vê-se na posição de cumpridor do dever

constitucional ou legal.

É o mais demandado, seja em decorrência dos deveres individuais, seja em

decorrência dos deveres dos demais sujeitos como Estados, entes privados e a

comunidade, vez que estes são entes fictícios e todas as ações e inações passarão

117

por essas pessoas. É ao indivíduo a quem se dirigem as os deveres e seus conteúdos

(NABAIS, 2015, p. 159)

A comunidade por sua vez, entendida com o agregado de homens, será a

executora do dever em hipóteses em que apenas o exercício em grupo garantirá o

pleno cumprimento do dever (serviço militar, pagamento de impostos, dever de voto),

ou em hipótese em que o dever genérico for fixado (dever de proteção da infância, do

idoso, da privacidade). Não é possível falar e deveres sem levar em conta o ânimo de

agregação.

4.5 DEVERES (IN)DELEGÁVEIS

4.5.1 Relativização

O ser humano já não é mais visto como um ente genérico, mas sim e suas

especificidades, na sua concreticidade, como criança, velho ou doente, sujeitos

variados, o que leva sempre a lei a fazer referência ou tomar por base contextos

sociais determinados. (BOBBIO, 2004, p. 83)

Seria possível então a relativização do sujeito de dever? Entenda-se

relativização em relação ao sujeito ativo do dever, aquele que se vê obrigado a praticá-

lo.

Todavia, pode o Estado terceirizar, convocar outrem a atuar em seu nome sob

função delegada? Sim é possível, por meio de parcerias e convênios conforme

preconiza o Direito Administrativo, exemplo disso são os escritórios universitários, os

quais conveniados com a Defensoria Pública do Estado aceitam parte da demanda

do órgão público em questão.

Por outro lado uma dada comunidade ou povo não pode supor que seja

possível terceirizar um dever que lhe caiba, como por exemplo supor que caberá à

outra comunidade o pagamento de tributos ao seu governo, crer que a defesa de seu

país deva ser promovida por outra nação112 ou indivíduos aos quais não caiba tal

112 Em relação a este dever cabe uma observação. No século XVIII a República Francesa, embora uma das nações

mais populosas da Europa, não contando com forças militares suficientes entre seus nacionais passou a recepcionar

118

dever ou ainda creditar à comunidade alheia o dever de proteção do seu meio

ambiente imediato.

No nível individual, porém a questão desta provável relativização mostra-se

mais complexa, pois no caso do Acesso à Justiça este trata-se de um dever estatal

em relação à sua comunidade e aos indivíduos que compõem essa comunidade. Sua

efetivação será individualizada de modo que ao fim do atendimento cíclico das

demandas individuais tenha sido efetivado de forma comunitária o acesso à justiça.

Entretanto, os indivíduos possuem deveres entre si, em relações que são

específicas e cujos sujeitos individuais são determinados (como relação entre pais e

filhos); entre o indivíduo e à comunidade (cujos integrantes são determináveis) e em

relação ao Estado (enquanto entre público). O questionamento que emerge então é

se seria possível terceirizar a execução de um dever, partindo da perspectiva dos

indivíduos.

Tal tema é demasiado longo e imbricado para que seja tratado nos seus

pormenores na presente pesquisa, mas cabe aqui expor aspectos relevantes, pois tal

raciocínio sobre a possibilidade de relativização de sujeito afeta a noção de

cumprimento ou descumprimento de um dever e, consequentemente, a incidência ou

não de sanção, quando esta for ordinariamente (em lei ordinária) prevista.

1. Embora não seja possível afastar-se integralmente da deverosidade de

algumas normas - como por exemplo do dever de promover o bem-estar da

infância e da juventude, em especial dentro do ciclo familiar, em decorrência

da deverosidade legalmente imposta- a vida de moderna trouxe algumas

ferramentas facilitadoras de modo que aos pais não há o dever expresso de

cuidar a todo instante dos filhos menores, podendo por exemplo realizar a

contratação de cuidadoras, de professores ou ainda de tutores para que estes

ensinem ou façam o que estes (genitores) desconhecem. Neste caso

simplificado, em que resta afastada uma hipótese de abandono afetivo, não

poderia alegar o descumprimento de um dever de proteção da infância contra

um genitor que matriculasse os filhos numa escola de estudos em período

indivíduos de variadas origens nas fileiras da sua Legião Estrangeira, cujo nome, claramente, evoca o espírito de

recepção a outros que não compartilhassem da cidadania ou a nacionalidade francesa

119

integral, pois dentro deste dever os sujeitos ativos de dever podem ser vistos

como facilitadores e não como os necessários cumpridores do dever de forma

integral.

2. Quanto aos deveres que o indivíduo possui em relação à comunidade, tais

deveres ensejam uma esfera transindividual e reflexiva (na medida em que os

resultados do cumprimento retornarão para o sujeito ativo de forma mediata ou

imediata), a exemplo da preservação do meio ambiente de forma proativa ao

promover o descarte de produtos recicláveis de forma a favorecer o processo

de reciclagem (mediato) ou ao promover a instalação de jardins e bosques

verticais em edifícios nas grandes metrópoles, reduzindo, por exemplo, gastos

com a refrigeração dos ambientes internos da edificação (imediato). Todavia,

mesmo estes deveres, a exemplo daqueles deveres de indivíduo para

indivíduo, também podem ser terceirizados, de modo que uma cooperativa

pode fazer a triagem dos dejetos recicláveis ou a instalação e cuidado dos

jardins e bosques verticais pode ser feita por um indivíduo ou pessoa jurídica

contratadas. Em ambas as relações, a pecúnia pode intermediar e terceirizar a

relação indivíduo/indivíduo ou indivíduo/comunidade, sem embargar o

cumprimento final do dever. A criança terá a educação, o lixo será reciclado e

o gasto com energia serão objetivos alcançados. A pessoalidade no

cumprimento fica relativizada, assim como a forma de cumprimento(lata), pois

há variadas possibilidades na promoção da proteção do meio ambiente e ele

vale para a proteção da infância, a qual não se restringe apenas aos cuidados

diários ou à educação formal em escolas regulares.

3. Todavia, é na relação indivíduo/Estado que reside a presença da pessoalidade

em suas características mais limitadores da autonomia. Enquanto que nas duas

hipóteses o cumprimento é lato, podendo ser cumprido de variadas formas e

por pessoas que não o sujeito ativo, nesta terceira hipótese a forma e o sujeito

serão bem definidos e frequentemente incidirá a pessoalidade, salvo, como

previsto nas hipóteses que envolverem pecúnia, como na eventualidade de

inadimplemento de impostos, aplicar-se-ia a matemata pecuni non olet (o

dinheiro não cheiro), de modo que pago o valor, o Estado restaria indiferente

quanto a origem do valor.

120

Ainda há deveres de cumprimento específico e pessoal, como o dever de voto

ou de prestação do serviço militar, os quais não poderiam em tese ser delegados.

Sobre o voto, restaria inútil o sistema de eleição de representantes se a lógica do

sistema eleitoral fosse fundada na vontade da maioria, mas ainda assim fosse

possível delegar a terceiro a possibilidade de acumular um voto dobrado via mandato

ou ainda que um só indivíduo pudesse, ainda via mandato representar centenas ou

milhares de votantes, portanto de uma perspectiva prática relativização do sujeito de

dever na hipótese do dever de voto vê-se impossibilitada pois atacaria um dos pilares

do próprio modelo eleitoral.

Quanto a prestação do serviço militar, prevista em inúmeras Constituições

Federais como obrigatório, não haveria tal discussão tampouco, entretanto, Michael

Sandel destaca um cenário que é de todo relevante em relação ao contexto dos

Estado Unidos, país no qual o serviço militar não é compulsório, nem mesmo a

apresentação à uma das três Forças Armadas. Durante a Guerra Civil estadunidense,

a União (Norte), cujo líder era Abraham Lincoln viu-se obrigada a sancionar a primeira

lei de alistamento compulsório, em decorrência da escalada que o conflito havia tido

em 1862. Tal postura “[...] atingia a tradição individualista americana em sua base, e

a União abriu uma ampla concessão: quem fosse convocado e não quisesse servir

poderia contratar outra pessoa para assumir seu lugar (SANDEL, 2014, p. 100).

Os convocados passaram então a realizar anúncio nos jornais, oferecendo

1.500 dólares, montante considerável na década de 1860. A Confederação (Sul) já

previa tal possibilidade, o que levou ao surgimento da expressão “guerra dos ricos,

luta dos pobres”, até que em março de 1863 o Congresso estadunidense aprovou uma

lei que obrigava todo convocado a pagar ao governo uma taxa de 300 dólares.

Seguradoras passaram a atuar de modo que as seguradoras pagariam uma apólice

mensal e na eventualidade de convocação a empresa pagaria a taxa estabelecida

(Ibidem).

No final, foram poucos os convocados que lutaram efetivamente no exército da União. (Mesmo depois da criação do serviço militar obrigatório, a grande força do exército era constituída de voluntários que se alistaram levados pelos soldos pagos e pela ameaça de serem convocados). [...] Constam entre aqueles que pagaram substitutos para que combatessem em seu lugar os

121

nomes Andrew Carnegie e J. P. Morgan, os pais de Theodore e Franklin Roosevelt [...]113.

O contexto estado-unidense, tanto na época do conflito quanto pós-

modernamente (século XXI) vê-se permeado pela espírito liberal sendo este país o

máximo expoente do Estado Liberal, mas não é aceitável num Estado Social, no qual

a igualdade visa operar num plano material e não apenas formal, aceitar a

possibilidade de que por vias econômicas todos os deveres possam ter seu sujeito

ativo substituído indiscriminadamente. A igualdade do Estado Liberal demonstrou-se

meramente formal, mesmo sua ideologia pregando a igualdade entre os homens, esta

prestava-se apenas à uma minoria burguesa.

O serviço militar ainda é opcional, porém, outras ferramentas, também

fundadas no resultado pecuniário que a prestação do serviço militar pode render ao

soldado, foram delineadas: benefícios como o financiamento estudantil ou imobiliário

mais atrativos, com taxas de juros ou condições diferenciadas para os veteranos de

guerra e cita um dos deputados do país, já no contexto da Guerra do Iraque, iniciada

após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, Charles Rangel.

A maioria dos que pegam em armas por este país no Iraque vem das comunidades mais pobres das cidades do interior e das regiões rurais, onde o pagamento de até 40 mil dólares e mais milhares em benefícios educacionais tornam-se muito atraentes. Para as pessoas que podem optar pelo ensino superior, tais incentivos - comparados ao risco de morte - nada representam (apud SANDEL, 2014, p. 108).

Para efeitos comparativos Michael Sandel expõe o dever de participação no

júri, dever para com o Estado e a comunidade e que, na perspectiva do autor,

representa uma expressão da participação contributiva do indivíduo para sua

sociedade.

O motivo pelo qual convocamos jurados em vez de contratá-los é porque consideram a atividade de fazer justiça nos tribunais uma responsabilidade que todos os cidadãos devem compartilhar. Os jurados não estão ali simplesmente para votar; eles deliberam sobre as provas e as leis. E as decisões são fundamentadas nas diversas experiências de vida que os jurados das várias categorias sociais levam consigo. O dever de participar do júri não é apenas uma forma de resolver os casos. É também uma forma de educação cívica e uma expressão da cidadania em um regime democrático (Ibidem).

113 SANDEL, 2014, p. 101.

122

Os três cenários analisados, dever (i) do Estado em relação ao indivíduo ou a

comunidade, (ii) do indivíduo com outro indivíduo, (iii) do indivíduo em relação a

comunidade e do (iv) do indivíduo em relação ao Estado servem à compreensão de

que alguns deveres podem ser transferidos, delegados a outrem, quando estes

deveres forem latos, ao passo que restaria, num contexto de Estado Social de Direito

impossibilitada a delegação de um dever quando este é de cumprimento específico,

tanto em relação a forma quanto ao sujeito, quando é personalíssima.

Naturalmente é da característica personalíssima que provém o receio em

relação aos deveres, pois estes seriam limitadores muito claros das liberdades do

cidadão, por este motivo, a fixação de deveres deste gênero (personalíssimos) deve

ser feita com extremada acuidade e vigilância, sempre visando a igualitária

distribuição da deverosidade entre os entes sociais, evitando encargos excessivos ou

movimentos pendulares em direção a determinados grupos sociais menos favorecidos

materialmente. Fixa Ingo Wolfgang Sarlet:

O reconhecimento de deveres fundamentais diz com a participação ativa dos cidadãos na vida política e implica um empenho solidário de todos na transformação das estruturas sociais, portanto, reclama um mínimo de responsabilidade social no exercício da liberdade individual e implica a existência de deveres jurídicos (e não apenas morais) de respeito pelos valores constitucionais e pelos direitos fundamentais, inclusive na esfera das relações entre privados, justificando, inclusive, limitações ao exercício dos direitos fundamentais (SARLET, 2015, p. 235).

Não há ainda a pretensão de supor que os deveres que irão se sobrepor aos

direitos e influir na construção de uma sociedade de prevalência comunitária, o que

seria visto como radical e levaria à um rechaço ainda maior em relação aos deveres,

mas que reste clara a responsabilidade de todos os entes da sociedade e a

participação ativa na promoção do bem-estar geral em detrimento de uma presunção

de um gozo pleno e indiscriminado de direitos.

123

5. CAPÍTULO 5 - EFICÁCIA DOS DEVERES

Uma vez retomado o caminho dos deveres, as noções de eficácia conforme os

principais doutrinadores brasileiros, compreendida a estrutura e os elementos que

dialogam com o dever é chegado o momento de analisar a eficácia dos deveres.

O principal aspecto que permeia a presente pesquisa foi o afastamento dos

deveres em termos de texto legal. A tomada da teoria das posições jurídicas como

pressupostos à necessidade de fixação, mergulhada no contexto de um Estado

Democrático de Direito autorizam, conforme apresentado anteriormente a

interpretação de deveres a partir do texto constitucional.

Este último capítulo está organizado em duas partes principais, a primeira

voltada para a análise da eficácia dos deveres explícitos. Serão apontados os deveres

de voto (correlato) e o dever de prestação do serviço militar (autônomo) - ambos

tratam de uma relação indivíduo-Estado. Na análise dos deveres implícitos, serão

analisados os deveres de proteção da privacidade (correlato).

5.1 EXPLÍCITOS

Juridicidade

Quanto aos deveres explícitos, aqueles que possuem texto legal, o primeiro

aspecto a ser retomado é o da juridicidade. José Afonso da Silva, no contexto das

normas constitucionais destaca que estas têm eficácia e valores jurídicos diversos,

mas tal diferença não autoriza uma recusa de juridicidade, ou seja, seguindo Ruy

Barbosa, não há norma constitucional “meramente moral ou de conselho, avisos ou

lições”.

124

Os três deveres explícitos apontados, quais sejam (i) dever de voto (correlato);

(ii)114 dever de prestação do serviço militar (autônomo)115; (iii) o dever de proteção do

meio ambiente (correlato)116 possuem artigos explicitamente listados na Constituição

Federal brasileira, não havendo qualquer atentado ao princípio da legalidade ou contra

a Reserva Constitucional. Todos são devidamente indicados em um ou mais artigos.

O dever de voto e o de serviço militar, em vista de serem impostos pelo Estado

e, este ser o primeiro sujeito passivo, tanto em termos de apresentação do indivíduo

para o voto quanto para alistamento, merecem ter dois aspectos analisados.

Inaplicabilidade direta

Primeiramente, segundo a classificação de José Afonso da Silva é possível

indicar que o dever de voto é de eficácia limitada, visto que consta neste a expressão

114 BRASIL, 1988 "Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto,

com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

§ 1º O alistamento eleitoral e o voto são:

I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; § 2º - Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e,

durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos."

Entende-se tal dever como correlato pois advém do direito de voto, fundado no sufrágio universal, igualitário e

direito, conforme expresso no caput. 115 Ib. "Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.

§ 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após

alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de

convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. (Regulamento)

§ 2º As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos,

porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir. (Regulamento) 116 Idem. “BRASIL, 1988. Direito ao meio ambiente

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial

à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para

as presentes e futuras gerações.

Enquanto dever individual de proteção do meio ambiente

"Art 5º: LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao

patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao

patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da

sucumbência;

Enquanto dever dos entes particulares

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos

produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº

42, de 19.12.2003)

Enquanto dever do Estado

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou

veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 3º Compete à lei federal:

II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas

ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos,

práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

125

“[...] e, nos termos da lei” (art. 14, caput, CF/88). A expressão não dá margem à não

fixação de lei ordinária, de modo que o conectivo “e” tal necessidade.

O legislador constituinte estabeleceu que seria necessária a fixação de norma

infraconstitucional para a devida regulação, muito embora os incisos do mesmo artigo

tenham estabelecido formas (art. 14, I, II e III), faculdades (art. 14, § 1º, II e alíneas) e

obrigações (art. 14, § 1º, I) de pronto.

A Lei 4.737/65 serviu como lei ordinária, uma vez que foi recepcionada pelo

legislador constituinte de 1988. Este trata-se ainda de dever correlato, pois não pode

ser apartado do direito de voto, do sufrágio universal. Num espectro histórico este é

um dos poucos deveres cuja origem resta clara no direito.

Em termos de eficácia o dever de prestação do serviço militar também é de

eficácia limitada, uma vez que o caput do art. 143 “O serviço militar é obrigatório nos

termos da lei”. O legislador deixou às leis ordinárias o encargo de estabelecer critérios

e condições de recrutamento, muito embora os §§ 1º e 2º tenham indicado situações

de exceção quanto ao cumprimento dos deveres aquele quanto aos “alegarem

imperativo de consciência” e este em relação as mulheres e aos eclesiásticos117.

Fixou-se o dever, mas desde já sua aplicabilidade resta restringida, em virtude

da natureza do sujeito (BOBBIO, 2003, p. 172). Tal dever ainda é classificável como

autônomo, pois não tem seu conteúdo ligado diretamente a um direito, sendo inclusive

um limitador de direitos, inclusive afetando o limite imanente dos deveres que é a

liberdade118.

Pela perspectiva teórico-jurídica, ambos são de eficácia limitada, em vista do

que fixou o legislador constituinte. Todavia, ainda que não houvesse referência a

necessidade de edição de lei posterior ou de um interpositio legislatoris, tais deveres

seriam por sua natureza teórica (de deveres) inaplicáveis diretamente (NABAIS, 2015,

p. 148)

Isto é, enquanto os direitos, liberdades e garantias têm o seu conteúdo concretizado politicamente (enquanto opções políticas) na própria constituição (feitas portanto pelo legislador constituinte) impondo-os

117 A relativização do cumprimento de um dever será melhor trabalhada no tópico 4.5.1. Relativização 118 Tal aspecto foi abordado no Capítulo IV tópico 4.3 Diálogo direito-dever

126

directamente aos operadores jurídicos concretos (juiz, administração e os próprios particulares), que devem aplicá-los mesmo sem lei ou mesmo contra a lei se está claramente os violar, os deveres fundamentais não têm o seu conteúdo concretizado, o totalmente concretizado, na constituição ou, mesmo que o tenham, não são directamente aplicáveis (Ibidem, p. 149)

Inaplicáveis diretamente porque são estruturas jurídicas limitadoras de

liberdade e do cumprimento dos ônus naturais elencados inicialmente. Ademais, numa

perspectiva material ambos também seriam indiretamente aplicáveis.

Se por um lado o Estado fixa tais deveres, por serem necessários à

manutenção da sua estrutura (voto) e à manutenção do próprio Estado, em termos de

espaço (serviço militar), este mesmo Estado que exige o cumprimento é o que irá

subsidiar ambos os cumprimentos.

É sujeito passivo e ativo desta relação, pois a estrutura eleitoral, a exemplo do

Tribunal Superior Eleitoral (TSE)119 e do serviço militar na fase de recrutamento e

manutenção física de suas estruturas. Deste modo, os deveres seriam inexequíveis

sem uma organização em níveis jurídico e material.

Quanto ao voto, vê-se ainda intensa essa dificuldade, visto que a CF/88 foi

promulgada após o fim da ditadura militar e teria de garantir o direito/dever de voto a

milhões de brasileiros em curto espaço de tempo. 120 Tal cenário dialogaria inclusive

com a Reserva do Possível, tanto em termos orçamentários, quanto em termos de

previsão orçamentária. (Ibidem, p. 150)

Em vista do exposto é possível concluir nesta parte que se tratam de deveres

que relacionam indivíduo e Estado, (i) sendo de cumprimento individualizado; (ii)

indelegáveis; e (iii) até mesmo coletivos, visto que mais de um sujeito (indivíduo e

Estado) atuará de modo ativo em seu cumprimento.

119 BRASIL, 1988 "Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos

juízes de direito e das juntas eleitorais"; o Código Eleitoral de 1965; a Lei 9.504, de 1997; a Lei dos Partidos

Políticos, de 1995; a Lei 12.034 de 2009 120 Vale destacar que Ingo Sarlet em artigo intitulado XXXX indica que a classificação de eficácia jurídica de José

Afonso da Silva está em certa medida atrelada a eficácia social, pois quanto mais disseminada uma norma

constitucional e quanto mais ampla a estrutura prévia que pode atender o cumprimento desta norma, mais provável

que a eficácia se aproxime da plena ou exija maior densidade normativa.

127

Relações dos deveres fundamentais entre si

O segundo aspecto que deve ser levado em conta e daí uma das justificativas

para a escolha do dever de voto e do dever de serviço militar, é o fato de que ambos

se conectam, ao menos no sentido do voto para o serviço.

Para que seja possível votar, o eleitor que estiver apto a fazê-lo deve provar

que quitou suas obrigações junto às Forças armadas, em virtude da vedação

explicitada no art. 14, § 2º, CF/88. Trata-se de uma situação de dependência de

deveres. Verificável “[...] sempre que o exercício de um dever está dependente do

cumprimento de um outro dever, dever este que assim é pressuposto daquele.” (op.

cit., p. 132)121.

É possível indicar que em tempos de paz uma das funções do serviço militar é

servir ao cumprimento do dever de votos. Em tempos de guerra este dever ganharia

uma autonomia maior, sendo um dever per se em sua totalidade.

Nota-se aí que a relação é de dever com dever, para somente então ser de

direito-dever. Cumprido o dever de quitação militar, torna-se possível o exercício do

direito-dever de voto.

Sanção - Princípio da Legalidade

Típico da estrutura normativa é a previsão de sanção na hipótese de

descumprimento. O princípio da legalidade exige não apenas a previsão expressa da

norma, ou ao menos dá preferência a norma expressa, mas também exige que a

sanção seja especificada em termo de texto normativo, numa perspectiva que além

de pragmática é de caráter fundamental ao Estado de Direito e à segurança jurídica.

Não resta possível a aplicação de sanção sem prévia cominação legal.122

121 Sobre o tema, prossegue o autor, NABAIS, 2015, p. 132: "Embora esta hipótese não seja frequente, pois que

o cumprimento dos deveres fundamentais depende, por via de regra, do exercício das competências estaduais a

começar desde logo pela competência legislativa em que integra a concretização política dos mesmos, ou do gozo

de certo direito fundamental (direito de cidadania) ou da posse de certo requisitos (como a idade), e não do

cumprimento de outro deveres por parte dos cidadãos.” 122 BRASIL, 1988 “5º, inciso XXXIX, que "não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem

prévia cominação legal"”

128

No âmbito constitucional a exigência de fixação de sanção vê-se prejudicada,

vez que não cabe à Constituição Federal, em virtude do seu caráter genérico e amplo,

determinar a sanção cabível em cada hipótese de descumprimento.

[...] cada dever fundamental, porque constitui um instituto jurídico cujo significado essencial para a comunidade e para os indivíduos é formalmente reconhecido e normativamente valorado pela constituição, há de ser visto ou perspectivado como uma unidade, uma unidade do respectivo preceito constitucional com a correspondente conformação legal necessária à sua concretização conteudística e/ou sua sancionação. (NABAIS, 2015, p. 160)

A título de exemplo se a dignidade da pessoa humana, fundamentada no art.

1º, III da CF/88123 vê-se atingida, e pode sê-lo de incontáveis maneiras na realidade

fática, não resta viável o lançamento destas inúmeras hipóteses na Carta Magna,

seguidas de suas sanções, uma vez que o objetivo da CF/88 é servir de guião ao

grupo social, tendo mais ou menos carga normativa, mas sempre com juridicidade.

Referente aos deveres jurídicos explícitos, estes tampouco têm suas sanções

previstas na esfera constitucional. Prevê-se o comportamento, mas a sanção restará

à esfera infraconstitucional. Não apenas pelo caráter capilarizado que não pode ser

assumido pela Constituição como também pelo caráter rígido de que esta é afeita.

Eventuais alterações em seu texto demandam um esforço maior em termos

legislativos.

Resta à norma constitucional a hipótese de edição de norma ordinária que

versará sobre o tema, quando então serão delineadas as condições de exequibilidade

destes. Um dever constitucional que será indicado de modo pormenorizado na esfera

ordinária. No caso do direito-dever ao voto fixado constitucionalmente, há legislação

Eleitoral, que conexa ainda com outros dispositivos fixa sanções contra aquele que

não votou, embaraçando por exemplo a emissão de passaporte na esfera

administrativa.124

123 BRASIL, 1988 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana;” 124 BRASIL, 2006 “Art. 20. São condições gerais para a obtenção do passaporte comum, no Brasil: I - ser brasileiro;

II - comprovar sua identidade e demais dados pessoais necessários ao cadastramento no banco de dados de

requerentes de passaportes; III - estar quite com a justiça eleitoral e o serviço militar obrigatório;

129

A facilidade de aplicação também dependerá da tangibilidade do dever que

deve ser cumprido e da forma de cumprimento, lembrando que certos deveres são de

cumprimento lato.

Enquanto os exemplos são tangíveis, quantificáveis e limitados (quanto aos

elementos da sanção) o descumprimento do dever de preservação do meio ambiente

resta de difícil sanção. Como seria realizada por exemplo a quantificação do dano

ambiental?

Tangibilizar o dano é possível - em termos de extensão e dano pecuniário -,

mas a percepção dessa tangibilidade, que influenciará o sujeito de dever, que é o

magistrado, restará prejudicada, pois a forma de cumprimento não foi definida.

Essas normas constitucionais restariam classificadas como normas

imperativas, vez que não possuem a previsão da sanção, mas nem por isso ineficazes

(pois seriam de eficácia limitada) ou inaplicáveis (pois continuam sendo de

aplicabilidade imediata).

Resta ainda consolidado que, em virtude da inexistência de reserva de lei

constitucional para os deveres que serão fixados em lei ordinária, isto valerá

analogamente às sanções.

A não indicação de sanção, ou a não indicação de possibilidade de sanção não

inibe o legislador ordinário, em contraponto ao constituinte de fixar sanções. Inclusive,

se isso ocorresse, inviabilizaria a estrutura normativa. Daí a presunção de que na

norma ordinária caberá sanção, mesmo que o constituinte não tenha exposto tal

possibilidade.

III - estar quite com o serviço militar obrigatório; (Redação dada pelo Decreto nº 8.374, de 2014) IV - recolher a taxa ou emolumento devido; IV - comprovar que votou na última eleição, quando obrigatório, pagou multa ou se justificou

devidamente; (Redação dada pelo Decreto nº 8.374, de 2014) V - submeter-se à coleta de dados biométricos; e V - recolher a taxa devida; (Redação dada pelo Decreto nº 8.374, de 2014) VI - não ser procurado pela Justiça nem impedido judicialmente de obter passaporte.

VI - submeter-se à coleta de dados biométricos; e (Redação dada pelo Decreto nº 8.374, de 2014) VII - não ser procurado pela Justiça nem impedido judicialmente de obter passaporte. (Incluído pelo

Decreto nº 8.374, de 2014)

130

O que se pode supor como hipótese é que o próprio descumprimento do dever

resultará em um dano contra a sociedade. A sanção é prevista em norma e controlada

pela vontade do legislador na edição desta norma, mas o dano não.

Este dano é intangível e até mesmo incalculável em termos monetários. O

desvio histórico e político que pode haver num país em que parte minoritária de sua

população vota, por exemplo. Na multa por não votar há uma sanção imediata125 mas

no enfraquecimento da soberania popular haverá um dano imediato incalculável.126

Todavia, perceba-se que, a nível ordinário ainda assim haverá previsão de

sanção. Conclui-se que havendo dever explícito, não será da natureza constitucional

prever sanção, que passará à norma ordinária tal encargo facilitador da exequibilidade

do dever e da densidade normativa deste.

5.2 IMPLÍCITOS - UMA QUESTÃO INTERPRETATIVA

Os deveres implícitos restam ainda problemáticos em termos de classificação

e de eficácia, muito embora a categoria seja listada na tipologia de José Casalta

Nabais e ainda seja tida como pressuposto para sua obra.

Estes podem ainda ser analisados sob duas perspectivas, deveres implícitos

autônomos e dos deveres implícitos interpretados de direitos, ou seja, os correlatos.

Aqueles desde já restam de todo prejudicados, pois pressupõem que o dever não está

conectado diretamente a nenhum outro direito, como é o caso do dever prestação do

serviço militar.

Todavia, o serviço militar é um dever autônomo explícito, que é referenciado

pelo texto constitucional, o que o torna capaz de gozar de certa eficácia. Àqueles

deveres, que puderem ser interpretados de outros artigos, sem contato manter com

estes correlação, restaria temerário estabelecê-los, pois, ao menos num contexto

legalista a principal fonte de direito e dever é a lei.

125 As hipóteses dos artigos art. 15, IV c/c art. 5º, VIII, da CF/88; art. 7º da Lei 4.737/65 - Código Eleitoral 126 art. 1º, I, CF/88

131

A discussão versa sobre quais elementos podem ou não ser fonte de direito e

substrato à interpretação. Passa-se a análise de dois aspectos.

1- Dentre as fontes de Direito figuram a legislação, em que cabe a Constituição

e as leis ordinárias, pressupostos desta pesquisa e ponto de partida da análise dos

deveres. Há ainda os decretos, regulamentos e portarias, os quais não compõem o

quadro de normas desta pesquisa. (FERRAZ JR. 2013, p. 198-200)

2- Quanto a interpretação. A teoria kelseniana estabelece parâmetros para uma

ciência jurídica, muito embora não estabeleça de pronto uma hermenêutica dogmática

que facilite a instrumentalização norma (Ibidem, p. 228), mas explana sobre a

interpretação da norma, distinguindo duas formas, a da autêntica, promovida por

órgãos competentes e a doutrinária, feita por entes sem qualidade de órgãos judiciais.

Estes entes promoveriam uma interpretação que é linguística e plurívoca,

trabalhando com a equivocidade. Qualquer interpretação que ultrapassasse a mera

indicação dessa plurivocidade e pretendesse dar univocidade, um sentido claro e

único, seria de caráter político e não propriamente científico. (Ibidem, p. 227 -229)

Sua renúncia pode ter um sentido heroico, de fidelidade à ciência, mas deixa sem fundamento a maior parte das atividades dogmáticas, as quais dizem respeito à hermenêutica. E ademais, não explica a diferença entre a mera opinião, não técnica, sobre o conteúdo de uma lei, exarada por alguém que sequer tenha estudado Direito e a opinião do doutrinador, que busca, com os meios da razão jurídica, o sentido da norma. (FERRAZ JR, 2013, p.

Na teoria kelseniana, que adota uma metodologia dogmática - com a proposta

de trazer respostas às situações jurídicas - a discussão hermenêutica dificultaria tal

processo por ser de princípios abertos, aceitando que os sentidos das normas também

o serão. O intérprete está obrigado a cumprir sua função, mas de modo a pôr um fim

a questão. (ibidem, p. 230)

A presente pesquisa, por sua vez, lança mão da interpretação e trabalha sobre

duas possibilidades: a primeira é a de que os intérpretes mediatos, considerados

secundários, terão papel preponderante para a indicação, fixação e sobrevivência dos

deveres que se mantiverem implícitos até a fixação de norma expressa; e a segunda

é a de que a interpretação dá margem para que os diversos significados da norma

possam ser trazidos à tona, sem que se perca a miríade de possibilidades que podem

tornar a norma eficaz jurídica e socialmente.

132

Dentro deste aspecto interpretativo há ainda o intérprete, “esta atividade deve

ser entendida como a necessidade de se aplicar a norma ao caso concreto." Uma

forma de explicitar, apurar o conteúdo da norma e “atribuir um sentido ou um

significado ao texto” pois o Direito é essencialmente voluntarista, precisa da vontade

do intérprete para existir. (BASTOS, 2002, p. 37-8).

Trata-se de uma tarefa exercida pelo intérprete dentro de limites condicionados,

tal como uma moldura. No contexto do Estado Democrático de Direito, torna-se

factível indicar que deveres implícitos correlatos estão dentro da moldura de

possibilidades interpretativas, em virtude das posições que podem ser assumidas de

detentor de um dever ou de direito e da correlação destes dois. Não se nega,

entretanto, os inúmeros fatores que influenciam o intérprete, e o levam em algum

ponto a optar por dada alternativa. Todavia:

[...] o Estado Democrático de Direito não se contenta com uma interpretação subjectiva da lei baseada tão-somente na ideologia do intérprete, como por exemplo: "a norma deve ser interpretada assim, porque eu quero", ou esta é a interpretação correta porque ela me é favorável'. É necessário que esta contenha em si elementos lógicos e razoáveis, dotados de objetividade. (Ibidem, p. 56)

Os diversos métodos interpretativos “oferecem vários ângulos da mesma

norma [...] o que acaba por, indubitavelmente, facilitar o alcance de seu real conteúdo”.

Não deve o intérprete -numa interpretação gramatical - ater-se apenas ao texto da lei,

porque esta não acompanha a evolução histórica; ao passo que na interpretação

histórica não cabe levar em conta apenas as intenções da lei no ato de sua elaboração

(Ibidem, p. 56-7). A este último método um destaque.

[...] o elemento histórico desempenha na interpretação constitucional um papel mais destacado do que na interpretação das leis. Isso se torna especialmente verdade em reação às Constitucionais mais recentes. [...] Em veemente defesa da interpretação histórica em matéria constitucional, Pietro Merola Chierchia sustenta que o que se interpreta na norma não é apenas o seu conteúdo aparente, mas todo o substrato de valores históricos, políticos e ideológicos que estão na origem da Constituição. (BARROSO, 1996, p. 126)

É com fundamento na possibilidade de interpretação da norma que será

possível deduzir deveres correlatos implícito. Não apenas aqueles simetricamente

posicionadas, mas aqueles que embora não equivalente ao direito, com estes

dialogam.

133

Tratemos, pois, do Direito à privacidade. Segundo o critério de eficácia de José

Afonso é a descrição, na própria norma, se haverá ou não a possibilidade/necessidade

de edição. Esse é o pressuposto dele. Nisso o direito à privacidade é de eficácia plena.

Todavia, modernamente não temos todas as ferramentas que garantem a

permanência do direito à privacidade. Daí deriva a necessidade de edição de normas

q regulamentem ou restrinjam o uso dos dados. Uma dessas normas seria o dever. O

dever dos que manipulam dados é o de garantir a privacidade.

A eficácia plena da norma de privacidade se foi, não porque houve edição da

norma q o constituinte pensou inicialmente, mas porque o ambiente e o momento

histórico exigiram. Destaca-se um aspecto.

O pressuposto de José Afonso da Silva não é a redação da norma per se, o

texto, mas a interpretação que se tira dela após ser inserida num ambiente, em seus

valores e intérpretes.

A conclusão a que se chega neste trecho é a de que o dever implícito pode ser

interpretado enquanto correlato. Sua juridicidade resta prejudicada, minorada e quase

inexistente até a doutrina e uma pesquisa afeita a métodos científicos e jurídicos os

deduza. Diferente dos deveres explícitos- sejam correlatos ou autônomos - que terão

juridicidade, pois presentes textualmente na constituição, não terão carga normativa

suficiente.

O aspecto da sanção até a vigência de norma que delineie o dever também,

pois caso não haja sanção no descumprimento o dever se torna mera recomendação

principiológica, norma programática de um programa social que se almeja.

O dever implícito que pode ser objeto deste item é o Dever de Proteção da

Privacidade, dedutível como um dever correlato ao Direito à Privacidade, porém

implícito. Ora, o direito à privacidade consta no art. 5º, X da CF/88.

No contexto dos deveres é importante destacar, tomando os ensinamentos de

Norberto Bobbio e Celso Ribeiro Bastos que o Direto é um fenômeno histórico e

cultural. Note-se ainda a possibilidade de migração de uma norma de uma

classificação de eficácia para outra dentro da estrutura de José Afonso da Silva.

134

Ora, se, no passado o Direito a Privacidade constituía um direito de defesa do

indivíduo e um Dever de Omissão por parte do Estado, no contexto tecnológico do

século XXI tal cenário modifica-se. No modelo clássico do direito de defesa da

privacidade, bastava a omissão do Estado, o que tornaria tal direito uma norma

constitucional de eficácia plena.

Todavia, no século XXI a omissão do Estado ou dos entes privados já não é

suficiente, pois faz-se mister uma postura proativa, de modo que devem ser fixados

requisitos, de cunho instrumental, para viabilizar a manutenção do direito à

privacidade, bem como garantir a exequibilidade e a sancionação do dever de

proteção da privacidade.

Deste modo, o direito de proteção à privacidade não é bastante em si, de modo

que embora seja de aplicabilidade imediata, não pode ser entendido como de eficácia

plena, vez que seu cumprimento depende de outros fatores fáticos e da fixação de

legislação, podendo ser classificada como de eficácia limitada, muito embora não

conste na sua redação a necessidade de norma posterior. O dever por sua vez é de

eficácia limitada, por exigir interpositio legislatoris para ter eficácia jurídica e social.

Portanto, (i) uma vez afastada a reserva de lei constitucional; (ii) aberta a

possibilidade de interpretação dos deveres a partir dos direitos textualmente

dispostos; (iii) somado ao fato de que a reserva de lei constitucional é flexível; (iv) e

que as normas infraconstitucionais podem ser fixadas e prescindir de norma

constitucional que verse especificamente sobre seu dever; (iv) que a interpretação

pode ser feita pela doutrina, muito embora não se trate de órgão jurisdicionado; e que

por fim (v) interpretando um dever na esfera constitucional servirá dever originário do

dever específico e formará um micro ordenamento jurídico; é possível indicar que os

deveres implícitos correlatos são limitadamente eficazes.

Interpretação e lei

Chegado este ponto da pesquisa, é possível inferir que uma das principais

características do modelo normativo de dever é a presença de uma sanção. O dever

carrega consigo a estigma de limitador dos direitos, senão cerceador, pois o texto de

dever, numa hermenêutica exegética ou de outro gênero da norma imprescinde a

fixação de uma sanção na hipótese de descumprimento.

135

Essa sanção, além das funções clássicas apresentadas pela doutrina, quais

sejam evitar a reincidência, garantir a reflexão daquele errou sobre o erro cometido,

levar à normalização, sendo este último de grande valia aos críticos do poder

sancionatório do Estado e de seus delegados, seria também uma tentativa de

reproduzir o efeito que o descumprimento de um dever natural possui sobre o homem,

a exemplo dos dois níveis de afetação citados no capítulo II127.

À eficácia dos deveres surge então o questionamento de ordem pragmática que

é justamente trazer os deveres à tona de modo que estes sejam eficazes, do ponto

de vista de estimular determinada posturas dos sujeitos que o devem praticar, sem no

entanto promover exatamente o aspecto de maior receio por parte dos juristas, o

cerceamento indiscriminado dos direitos em um ambiente e em um momento histórico

que se erguem na prevalência de direitos?

Três aspectos devem ser levados em consideração.

1. O Estado de Direito não deve ser fundado apenas na proposição de fixação de

direitos, pois embora os direitos devam ser evocados, o caráter de

responsabilidade de atravessa toda a presente pesquisa, de modo que aos

direitos deve estar atrelada uma preocupação que exceda a individualidade dos

direitos subjetivos. Corolário ao Estado de Direito está o Estado Social, cujo

principal elemento é o bem-estar da sociedade, tanto quanto possível

materialmente e principiologicamente.

O Estado de Direito leva consigo a noção de que os cidadãos podem ignorar o

comprometimento com sua comunidade e com os semelhantes, o que se vê

impossível no Estado Social, o qual buscou justamente moderar o excessivo

individualismo liberal, contemplando elementos sociais, deveres econômicos, sociais

e culturais (SARLET, 2015, p. 228).

Evoca-se portanto a carga coletiva dos deveres, na medida em que mesmo um

Estado, proclamando constitucionalmente todos os direitos que o constituinte creditou

à noção de bem-estar e à uma sociedade plena de direitos, restaria impossível ao

127 O primeiro nível de afetação seria justamente o que transforma a liberdade plena e autonomia, na medida em

que determinado comportamento deve-se feito; e o segundo nível seria a afetação que advém do descumprimento

de um dever natural, uma sanção. Este segundo nível sancionatório é o que a norma jurídica tenta reproduzir ao

estabelecer uma sanção, ao passo que a fixação de um dever seria o primeiro nível.

136

Estado, enquanto instituição provedora de muitos destes direitos a plenitude da

efetivação destes, se não fossem todos cumpridores de seus deveres individuais e

coletivos.

Neste ponto, retorna-se a um dos deveres mais antigos e analisados pela

doutrina, qual seja o dever de pagamento dos impostos, que tão antigo quanto a

própria organização estatal encontra-se na pós-modernidade com os direitos numa de

suas pontas e com o cumprimento individual dos deveres. Naturalmente não se

pretende supor que aqueles que descumpram seus deveres tributários devam

padecer, tampouco que a cada gozo de direitos que se pode acessar o Estado barre

aqueles que descumpriram seus deveres. A universalidade dos direitos é inerente a

estes, como propõe e defende sua doutrina. Todavia, o próprio Estado, enquanto

instituição, provedor de inúmeros direitos pode ver-se incapaz de ofertá-los em

quantidade de qualidade suficientes para a garantia do bem-estar social.

Se o aspecto individualizante prevalece na relação social e consequentemente

incorre-se na ignorância dos deveres, a Reserva do Possível torna-se ainda mais

escassa. Se, na hipótese do cumprimento dos deveres, o Estado é vê-se limitado com

o que tem, na hipótese de descumprimento inexistiria a própria Reserva128. Há uma

aura de obviedade neste argumento, mas é um dos exemplos mais tangíveis de que

se pode lançar mão129.

Enquanto o exemplo tributário nos rememora de um dever pecuniário, o dever

de proteção da pátria, a exemplos de diversas Constituições, delinear um dever

prestativo que tem como principal substrato a submissão física, corpórea do indivíduo

nas fileiras das forças de segurança. Surge então o raciocínio, que não deve ser

descolado do contexto de contraprestação em que se desenvolve este texto, de que

128 Indica o professor Vidal Serrano Junior "tratar-se de ideia que surge como um limite contingente à realização

de direitos sociais” e indica ainda que “a concretização dos direitos fundamentais sociais ficaria condicionada ao

montante de recursos previstos nos orçamentos das respectivas entidades públicas para tal finalidade”. (2009,

p.196) 129 Não há aqui a pretensão de defender a necessidade de pagamento dos impostos ou o regime dos impostos. Há

apenas a intenção de delinear em termos tangíveis a impossibilidade de efetivação de direitos na hipótese de

inexistência de uma contrapartida que, no exemplo, é uma contrapartida pecuniária.

137

não é possível demandar segurança se nenhum indivíduo se dispuser a promover a

segurança da pátria.130

Isso vale para o voto. O direito a alternância da representação política e da

representação dos anseios de diversos grupos não podem ser mantidas se inexistem

eleitores aptos ao voto e desejosos de fazê-lo. O descumprimento deste dever levaria

à uma crise de legitimidade da própria instituição democrática131. Deveres de caráter

pragmático que garantem a efetiva realização de um direito.

O trajeto percorrido pela pesquisa trabalhou com a origem dos deveres de

modo que seu trajeto fosse o mais puro possível em relação aos direitos o que,

entretanto, não significa que ambos possam existir de forma apartada. Assim como

se deseja deixar demonstrado que não é possível a manutenção de um sistema

normativo fundado unicamente em normas de direito e que, ao mesmo tempo,

excluem normas de dever, nasce a conclusão de que é inviável um sistema normativo

fundado tão somente em deveres, o qual, destaca-se seria um sistema normativo, não

somente autoritário, como também logicamente inviável132. O resultado satisfatório

que surge da coexistência destes é objetivo principal, os efeitos da efetivação da

norma operacionalizada formam o aspecto final da pesquisa e da própria aplicação

das Ciências Jurídicas133.

130 Este último trecho, escrito com extremada ressalva deve ter afastado de si a possibilidade de interpretação de

que todos, dentro ou fora de forças de segurança deveriam promover a segurança da pátria, pois tal lógica levaria

à uma errônea compreensão de que o bom cumprimento do dever de proteção da pátria passaria pelo porte e posse

de armas pelo cidadão comum que não atue regularmente como membro de forças de segurança. Tal como aponta

Norberto Bobbio, direitos, e também deveres, resultam do processo de embates históricos, de modo que a este

autor resta relevante, levando-se em consideração o contexto político em que a presente obra é desenvolvida, abrir

margem à interpretações descoladas dos objetivos da obra. 131 Não se pretende discutir a legitimidade do dever de voto e seu cumprimento, instituído pela Constituição em

seu artigo art. 14 e fixado como requisito à aprovação em concursos públicos e à emissão de passaporte. Visa-se,

novamente, exemplificar a necessidade de contraprestação. 132 Tal tema, a simulação de um sistema de normas constituídos somente de deveres não se presta a outra função

senão a de elucubração, todavia, tal simulação traz à tona problemas de lógica que se apresentariam na realidade.

Um dos exemplos será trabalhado na presente pesquisa, mas vale adiantá-lo, qual seja a fixação de deveres

específicos, com uma demasia de elementos necessários à sua concretização e que levariam à falácia lógica que

(i) levaria a um cumprimento parcial do dever OU (ii) levaria a extensiva aplicação de sanção por descumprimento

de dever, já que, em decorrência da multiplicidade de elementos restaria dificultoso ao sujeito ativo realizá-lo, vide

o exemplo do Dever de Proteção da Infância. Daí o problema: deveres de cumprimento parcial ou não aceitação

de cumprimento parcial seguido de sanção. A solução, aparente que surge, é a fixação de deveres em linhas gerais

na esfera constitucional, com baixa densidade, seguida da atuação do legislador que, através de Códigos esparsos

e infraconstitucionais ficará normas, com redação de direito ou de dever, mas que remetem ao dever

constitucionalmente expresso. 133 Numa comparação tangível, estruturas normativas de direito e de dever poderiam cada qual representar polos

opostos de uma estrutura esférica. Estariam em pontos diametralmente opostos por convenção, já que tratar-se-ia

138

2. Restou claro também no capítulo II, que seguindo a proposta de organização

dos Deveres Naturais, Culturais e Artificiais, incorrendo o intérprete e legislador

na possibilidade de diálogo das categorias, a positivação dos deveres acaba

por se mostrar um caminho a ser percorrido. O dever natural e o cultural podem

ser positivados, enquanto que o artificial o será por necessidade, caso contrário

perde sua capacidade de gerar efeitos na realidade, pois ao passo que os

deveres naturais estarão sempre à espreita do homem e os culturais serão

praticados pelo convívio, os artificiais precisam do liame com a realidade

através da positivação.

Todavia, a positivação de que se fala não vem à tona apenas para que seja

mais fácil às Ciências Jurídicas trabalhar com o deveres bem delineados, o que

destaca-se seria de enorme valia ao pesquisador dos deveres, mas presta-se também

para que o deveres, tomando como referência o caminho percorrido pelas doutrinas

de direito, não incorra em lacunas e dificuldades. Hannah Arendt clarifica bem tais

dificuldades ao abordá-las ao tratar da efetivação dos direitos de caráter

universalizante que se seguiram durante o século XX. Desde já se aplica a analogia

em relação aos deveres.

Após a Primeira Guerra Mundial e a dissolução de extensos impérios europeus

dentre os quais o Império Austro Húngaro, seguiu-se à formação de diversos países

no continente europeu e a um fenômeno de ascensão ao poder de grupos étnicos e

culturais que até então viviam nos territórios dos impérios agora dissolvidos. Findado

o conflito, novos governos surgiram, porém não para todos os grupos culturais, de

modo que se formaram então, nomeadamente, as minorias, grupos sem território e

sem governo que viviam em países recém-formados e governados por outras

minorias, as quais podiam inclusive ser rivais históricas (ARENDT, 2016, 378).

A recém formada Liga das Nações, ciente do fato de que agora os novos

Estados tornaram-se instrumentos de nações, de um interesse nacional e cultural que

seria priorizado sobre a noção de Estado como instrumento de exercício da lei - o que

de uma relação bilateral ou multilateral. Mesmo assim, sabendo a exata localização do dever e do direito na esfera,

não seria possível dividir a esfera em dois hemisférios equivalentes, não só porque a delimitação do que seria um

dever/direito perfeito pode variar de sujeito para sujeito, como também porque a perfeição restringir-se-ia aos

termos dispostos na norma e que foram alvo de interpretação. A satisfação do dever poderia dar-se, segundo o

sujeito passivo do cumprimento do dever, por critérios menos exigentes do que os intencionados pelos próprios

legisladores ordinários ou constitucionais.

139

mais tarde levaria à própria assertiva por parte de Adolf Hitler de que “o direito é aquilo

que é bom para o povo alemão” - tomou uma medida preventiva estabelecendo

Tratados de Minorias, de modo que dali em diante, o status de minoria e o

reconhecimento de que milhões de pessoas viviam fora da proteção legal e normativa

de algum Estado era um fato real e exigia a sua atuação e a consciência de tal fato

pelos Estados europeus. Somava-se ainda o fato de que este “estado de coisas não

era temporário”, mas “[...]sim um modus vivendi.” que a Liga das Nações pretendia

manter (Ibidem).

Lembremo-nos de que o contexto europeu já havia tido contato com a

Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, de modo que houve a

pressuposição, pelas potências sobreviventes da Primeira Guerra de que à proteção

das minorias seria desnecessária a fixação de normas em cada uma das nações

integrantes da Liga das Nações , bastando, à efetivação destes direitos inalienáveis,

a mera assunção de que estes protegiam a todos os humanos onde quer que

estivessem.

Nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico como a discrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, que persistiam teimosamente em considerar “inalienáveis” os direitos desfrutados pelos cidadãos dos países civilizados, e a situação de seres humanos sem direitos algum (ibidem, p. 383).

E prossegue ainda delineando o pensamento relacional que vigia à época e

que exortava o fato de que toda norma nacional pressupunha a aplicação ou a tomada

dos Direitos do Homem como fonte inspiradora do legislador que a elaborava.

Todavia, tal autonomia do homem, que desde o século anterior de desvencilhava do

divino e da história escondia um paradoxo (Ibidem, p. 396).

Como se afirmava que os Direitos do Homem eram inalienáveis, irredutíveis e inseduzíveis de outros direitos ou leis, não se invocava nenhuma autoridade para estabelecê-los; o próprio Homem seria a sua origem e seu objetivo último. Além disso, julgava-se que nenhuma lei especial seria necessária para protegê-los, pois se supunha que todas as leis se baseavam neles. O Homem surgia como único soberano em questões de lei, da mesma forma como o povo era proclamado o único soberano em questões de governo. A soberania do povo (diferente da do príncipe) não era proclamada pela graça de Deus, mas em nome do Homem, de sorte que parecia apenas natural que os direitos “inalienáveis” do Homem encontrassem sua garantia no direito do povo a um autogoverno soberano e se tornassem parte inalienável desse direito (Ibidem, p. 397) (grifo nosso)

140

O que se conclui, de forma paradoxal, é que o detentor dos Direitos do Homem

não era o indivíduo, mas sim o povo que um conjunto de indivíduos formava, povo

este, que assim como na hipótese dos deveres, surge da autodeterminação de um

povo, de sua soberania.

O indivíduo de que tratava a Declaração dos Direitos do Homem era um ser

humano abstrato, uma vez que este não existia só em nenhum lugar - e neste ponto

o homem abstrato da declaração dos direitos é também o homem abstrato dos

deveres naturais - pois todo grupo, inclusive os selvagens foram algum tipo de ordem

social e afastam a forma de vivência individualizada de sua realidade, portanto, “[...] o

povo, e não o indivíduo, representava a imagem do homem134.” Portanto, um indivíduo

sem povo e um povo sem governo inviabilizava a garantia de direitos dito inalienáveis

para os povos e minorias sem estado.

Os Direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como “inalienáveis” porque se supunha serem independentes de todos os governos; mas sucedia que, no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los. (Ibidem, p. 397) (nosso grifo).

A não inclusão dos Direitos Humanos em textos normativos nacionais levou tais

direitos à “[...]uma existência mais ou menos irreal[...]” (Ibidem, p. 396). No pós-

segunda guerra ficou evidente que enquanto o Estado não adotasse os Direitos do

Homem, não haveria respeito a estes, pois o homem que agora, prescindia a natureza

divina e colocava-se como provedor de suas normas transmutava-se agora um

membro de um povo que via somente o melhor para si mesmo enquanto povo e não

enquanto homem abstrato universalizado cercado de outros homens abstratos.

[...] O mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano. [...] Os sobreviventes dos campos de extermínio, os internados nos campos de concentração e de refugiados, e até os relativamente afortunados apátridas, puderam ver, [...] que a nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que corriam (Ibidem, p. 408)

Em analogia com os deveres é possível aduzir que (i) estes, ainda que

proclamados por organizações ou entidades internacionais ou até mesmo por blocos

econômicos135, encontrarão sua defesa e promoção somente quando absorvidos e

134 ARENDT, 2016, p. 396 135 O art. 15 da Lei Geral de Proteção de Dados da União Europeia prevê a possibilidade de acesso do usuário aos

dados armazenados pelas empresas, enquanto os artigos 16 e 17 por exemplo garantem possibilidade de retificação

141

normatizados pelos respectivos Estados, naturalmente respeitada a soberania de

cada povo para fazê-lo, (ii) podendo os deveres incorrer em uma existência irreal caso

não sejam editados nacionalmente.

Sobre eficácia a efetividade

Assim como na hipótese dos povos sem estados, que não tendo a quem

recorrer padeceram de instituições fortes o suficiente para defendê-los ou para

realocá-los adequadamente136, pois estes não contavam com a possibilidade de

alegar no direito interno a proteção ao homem pelo Estado que lhe atacava - os povos

ou grupos que não puderem localizar em seus respectivos estatutos jurídicos normas

das quais se possam deduzir deveres não terão, na hipótese da relação Estado-

Indivíduo ou Estado-comunidade, referências tangíveis e alinhadas aos seus

contextos culturais para enfrentar o Estado ou corporações descumpridoras de

deveres137.

A ausência de norma, ainda que possa ser suprida pelo uso da, aqui aplicada,

analogia, somada à inafastabilidade de juízo - a quem uma dada questão seja

jurisdicionada não seriam suficientes à defesa do cumprimento de um dever não

previsto expressamente ou não apreciado pela doutrina a nível constitucional ou da

Suprema Corte de um país, sendo que esta última, podendo inovar na interpretação -

padece, em virtude da tripartição dos poderes da impossibilidade de inovação

legislativa propriamente dita. A “efetivação não é possível senão pela

institucionalização dos mecanismos do poder em termos de lei”. (FERRAZ JR., 2013,

p. 142)

3. O terceiro aspecto leva em conta a fixação de uma redação aos deveres, mas

de forma que reste afastada uma lógica matemática, o que os tornariam

inexequíveis, caso contivessem termos e especificidades em demasia.

e exclusão de dados pessoais. O caso da União Europeia é atípico pois em certa medida os países que compõem a

União Europeia prescindiriam a fixação de normas em seus países. Nem por isso, as normas deixaram de ser

eficazes. 136 Houve no período pós-primeira guerra uma tentativa de realocação destes povos tidos como sem estado, em

especial por parte do governo francês. 137 A exemplo do dedutível Dever de Proteção da Privacidade, o qual tem sido reiteradamente atacado em

decorrência de vazamentos de dados e informações particulares de pessoas físicas e de empresas a exemplo das

redes sociais. Disponível em:< Link: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/04/04/dados-de-

540-milhoes-de-usuarios-do-facebook-ficam-expostos-em-servidor.ghtml> Acesso em 09/12/2019.

142

Neste ponto será possível delinear, através das conclusões anteriores, que (i)

quanto mais lato mais facilitado resta o cumprimento dos deveres, mas mais dificultosa

sua sancionação; (ii) enquanto lato, sua adaptabilidade à construção histórica do

direito mostra-se mais ampla; e (iii) que pelo trajeto histórico do Estado Democrático

de Direito, que sucede o Estado Liberal, uma baixa densidade normativa garantirá,

num primeiro momento, a assimilação deste deveres pelas comunidades, mas uma

densidade normativa desenvolvida garantirá a eficácia.

Evidenciada pois, (i) a necessidade de legislação aos deveres; (ii) a

necessidade de que estes dialoguem com os direitos emerge a necessidade de (iii)

tê-los bem delimitados, ainda que como resultantes da interpretação.

Diante de tudo quanto foi exposto até este ponto, vê-se possível concluir que o

caminho para a dedução de deveres implícitos é um processo interpretativo. Parte-se

de um pressuposto de existência das posições jurídicas de direito e dever em toda

norma, mas aceita-se a interpretação de deveres que são correlatos a partir de direitos

que foram textualmente dispostos. Trata-se de uma possibilidade disposta dentro da

moldura.

[...] em se tratando da Constituição, as fronteiras desta podem delimitar-se com mais facilidade, compondo a moldura de um sistema aberto à ambiência social, com estruturas funcionais, exemplicáveis mediante processos de interação, informação e comunicação.’ (BONAVIDES, 1996, p. 129).

Indica Canotilho que "As normas consagradoras de deveres fundamentais se

reconduzem, pois, à categoria de normas desprovidas de determinabilidade jurídico

constitucional, e, por isso, carecem de mediação legislativa." (CANOTILHO, 2002, p.

535)

É possível considerar que o autor classifica tais normas como programáticas,

mas afasta-se de tal possibilidade ao proferir, na mesma passagem que "Não se trata,

propriamente, de "normas programáticas de deveres fundamentais" no velho sentido

oitocentista ("declarações", "programas", como pretende certa doutrina, mas tão-só e

apenas de normas constitucionais carecidas de concretização legislativa" (Ibidem)

O autor não prolonga no argumento. Torna-se possível, entretanto, trabalhar

com o conceito de norma programática trazida por Canotilho. Se por um lado é

143

inaplicável um conceito antiquado, por outro a noção de norma programática

atualizada pela doutrina vê-se mais coerente.

Esta última classificação, das programáticas, gera discussões entre a doutrina

quanto ao seu aspecto jurídico. O embate entra no campo do caráter vinculante da

norma, uma vez que as normas que estabelecem deveres do Estado a exemplo do

art. 205 não geram sanções em caso de descumprimento, entretanto, embora sem

sanção, há certa vinculação do Estado brasileiro ao artigo, pois não o efetivar é ser

omisso ou até mesmo avesso a norma constitucionalmente estabelecida. “O programa

vincula de modo negativo, pois, senão obriga ao ato programado, pode impedir o ato

que o inviabiliza’ (FERRAZ JR., 2013, p. 102).138

É possível observar que as normas programáticas são um exemplo de uma

construção histórica, imbuída dos anseios sociais. Uma clara hipótese de indicação

dos objetivos como pressupostos, em que, repisa-se o posterius se torna o prius.

O dever programático, neste viés não entendo apenas como aquele promovido

apenas pelo Estado, mas como aquele que exige um esforço de todos os entes em

prol do seu cumprimento.

Se por um lado o poder público não poderá exercer diretamente o cumprimento

do dever, poderá fazê-lo através da delegação de tal cumprimento através de órgãos

públicos reguladores, os quais atuarão em conjunto ou de forma a controlar outros

entes. O programa a que o Estado se sujeita ver-se-á cumprido por delegação.

É preciso, entretanto que seja considerada uma possível classificação, que

colocaria os deveres em quatro níveis, dentro de critérios de limitação dos deveres e

de especificidade, sendo este último fator preponderante à exequibilidade da norma.

138 Uma comparação, ainda que inusual, poderia ser feita. Quando um computador tem seu código de

funcionamento fixado, cada uma das diretrizes é fixada. Não há hipótese de fuga da programação (a menos que

isso esteja prevista e, ainda assim não deixa de ser uma programação), de modo que na eventualidade de não seguir

o fixado no código, por uma falha física ou problema ou até por um erro não notado do próprio código. O

computador não sofrerá sanção. O resultado será o não funcionamento correto intencionado pelo programador. O

código computacional não é uma intenção, como o é a norma programática, mas tampouco é código inválido

apenas por não ter sanção. A discussão sobre a natureza da norma é de cunho zetético nesta hipótese, pois discute

os pressupostos ou critérios iniciais para a indicação do que seja ou não uma norma.

144

1. dever específico constitucional (para sujeitos ou hipóteses específicas); o caso

do dever de votar, que indica os eleitores como sujeito;

2. dever genérico constitucional, hipótese prestacional; o dever de voto ou o dever

de proteção da privacidade;

3. limite do raio de atuação do dever, direito de liberdade ou reserva do possível

(para o Estado); o dever de votar esbarra na liberdade do eleitor de votar em

que lhe pareça melhor

4. dever (norma), hipótese prestacional com indicação de sanção no

descumprimento; o dever de voto que se descumprido impedirá, por exemplo

a emissão de passaporte.

Esta estrutura pode ser observada para que os deveres se tornem exequíveis,

passando pelo nível constitucional, podendo ser interpretados neste, mas exigindo

legislação ordinária e uma flexibilidade quanto ao executor do dever, o qual não será

apenas o Estado, mas um ente delegado e os próprios membros do corpo social.

145

CONCLUSÃO

A relevância da presente pesquisa reside no fato de que os deveres foram

historicamente afastados do ambiente jurídico em virtude de tendência políticas e

econômicas, principalmente de linha liberal e de governo, ainda que democráticos,

nascidos após ditaduras militares.

Em virtude do receio de que os deveres frustrassem as liberdades conquistadas

após a Revolução Francesa ou que rememorassem os tempos totalitários, as

Constituições e Leis Fundamentais de diversos países, dentre os quais Alemanha,

Portugal, Espanha e Brasil afastaram-se do tema.

Num Estado Democrático de Direito moderno, porém, a presença da relação

direito-dever fica ainda mais evidenciada a necessidade de distribuição dos

compromissos sociais e individuais que os indivíduos carregam consigo. Ônus e

bônus, direitos e deveres caminham juntos.

O principal objetivo foi analisar a eficácia jurídica dos deveres em duas de suas

categorias: a dos deveres explícitos e implícitos. Outros objetivos específicos também

foram estabelecidos, quais sejam: (i) compreender as causas históricas para o

distanciamento dos deveres; (ii) separar o objeto de estudo, os deveres jurídicos de

outras prováveis categorias de deveres, inclusive a hipótese de um dever natural; (iii)

indicar o grau de eficácia das duas categorias de deveres dentro da obra de José

Afonso da Silva; (iv) indicar o tipo de norma que estas seriam; (v) analisar a

necessidade de um dever na esfera constitucional para a que estes fossem eficazes

a nível ordinário em paralelo com a obra Hans Kelsen; (vi) indicar os sujeito de dever

e (vii) por fim, aplicar as conclusões a exemplificações de deveres.

A retomada histórica foi promovida no Capítulo I, de modo que restou clara a

passagem do Estado Liberal para o Estado Social, e deste último para o Estado

Democrático de Direito, no qual encontra-se a República Federativa do Brasil, sob o

mando da CF/88. Ainda neste primeiro capítulo optou-se pela distinção terminológica.

Ônus, dever e direito foram devidamente delineados.

Conclui-se, portanto, que é possível organizar os estudos dos deveres em três

categorias: (i) o natural, dentro do qual encontram-se os ônus naturais; (ii) o cultural,

146

composto pelos deveres culturais; (iii) e o artificial, no qual está o conjunto dos deveres

jurídicos. Estes organizados em ordem crescente em grau de positivação.

A delimitação destas 03 prováveis categorias trata de um marco importante ao

estudo, pois fixa-se que: (i) os deveres tratados na presente pesquisa, os jurídicos,

serão aqueles apontados ou interpretáveis a partir de atos de poder positivados e

emanados de um ente público - o Estado - cuja legitimidade para tanto é reconhecida

e aceita; (ii) os deveres culturais por sua vez, que não encontram na positivação uma

característica imprescindível, ainda que possam sê-lo. Dentro destes estão os deveres

morais e religiosos - os quais não foram objeto desta pesquisa, uma vez que o

caminho traçado foi o de uma análise voltada à Teoria Geral do Direito e não às

questões ética, morais ou metafísicas do ser - e estes ainda lançam mão da

possibilidade de uma adaptabilidade dos deveres de uma grupo para outro, com

fundamento na soberania de cada povo;

Ainda que (iii) os ônus naturais, por sua vez, são assim entendidos pois não

tratam de relações, mas de uma atividade ou ação que o ser humano tem consigo

mesmo, na sua individualidade e aspecto natural - são as necessidades físicas que

agem sobre este como resultado das Leis Físicas.

Quanto aos deveres jurídicos concluiu-se que: (i) modernamente o

constitucionalismo traduziu-se como um modelo político-jurídico-institucional

preponderante entre as nações, embora cada uma tenha um movimento próprio, todas

partem de uma Lei Fundamental; (ii) que as Ciências Jurídicas regulam relações; (iii)

que tais relações serão previstas de maneira prescritiva pelas normas, cuja

classificação de Tércio Sampaio Ferraz Junior restou indicada e relevante à

compreensão do tipo de norma a que os deveres poderiam submeter-se

tipologicamente. Restou destacada a necessidade de construção das normas como

uma estrutura que prevê uma conduta e que também a sanciona.

Ficou caracterizada, tanto para os ônus quanto para os deveres - culturais e

jurídicos - que há dois graus de afetação; um resultante da própria existência destes

ônus e deveres, o que por si só tolhe a autonomia e outro resultante da sanção que

advém dos deveres. Destaca-se que há sanção nos deveres, mas não nos ônus, pois

sanção é previsível, fixada na norma - ainda que não escrita, no caso de deveres

147

culturais que levarão à uma sanção social quando descumpridos. Os ônus não o que

se entende por sanção, mas tão somente uma consequência, própria das leis naturais

e alvo das leis descritivas.

O capítulo 3, focado na noção de eficácia e na releitura dos principais

doutrinadores brasileiros que versaram sobre o tema concluiu-se alguns pontos em

comum: (i) há uma concordância quanto ao fato de que é eficaz a norma aplicável; (ii)

de que a eficácia jurídica difere-se da eficácia social (efetividade), embora estas

dialoguem, em especial em termos de necessidade de legislação para efetivação e de

não disposição do constituinte por existência de estruturas que efetivem o espírito da

norma, mesmo sem norma positivada;

E prossiga-se: (iv) que há normas que geram efeitos de pronto e outras que

necessitam de melhor delimitação pelas leis ordinárias, havendo numerosas

classificações que não se chocam, mas dialogam; (v) que a classificação de José

Afonso da Silva estabelece a existência de normas de eficácia plena, contida e

limitada, sendo que nesta última há normas programáticas e organizatórias, sendo

aquelas relevantes a esta pesquisa. Lançou-se a hipótese de que os deveres podem

ser normas programáticas;

O Capítulo IV versou sobre os deveres, indicando sua tipologia, fundamento e

estruturas. Definiu-se os conceitos de deveres explícitos e implícitos, aqueles com

texto normativo inscrito na Constituição e estes sem texto normativo, sendo

interpretados dos direitos que foram listados na Lei Fundamental. Evidenciou-se ainda

a assimetria entre direito e dever, na medida em que dados direitos terão mais força

do que os deveres com os quais se relaciona.

A discussão versou ainda sobre reserva de lei constitucional e se esta era de

fato necessária à estruturação dos deveres. Para tanto foi analisada a noção de

norma-origem e a norma hipotética fundamental (nhf) de Hans Kelsen, em contraponto

com o Trilema de Munchausen. As conclusões a que se chegou foram: (i) não há que

se falar em um único dever originário, pois a nhf será de direito ou de dever e um ato

de poder que não é propriamente uma norma;

E prossiga-se (ii) pela variedade de deveres e suas particularidades restaria

dificultoso e não prático indicar um só dever fonte ou ainda deveres genéricos amplos

148

que serviriam como fonte, tal como um dever de deverosidade geral; (iii) mas convém

construir um microcosmos dentro os quais os deveres constitucionais ou interpretados

da CF/88 podem ser entendidos como deveres originários deste microcosmos; (iv) a

indicação dos deveres respeitará sempre o princípio da liberdade, os limites

imanentes e os limites que os ônus naturais impõem.

Na análise dos sujeitos de dever coube a indicação daqueles que são

destinatários primários, o legislador e o magistrado e os destinatários finais, indivíduos

e comunidade além das relações privadas. Adotou-se a teoria das posições e das

situações jurídicas como pressuposto à construção da relação direito-dever entre

estes sujeitos.

A indelegabilidade de alguns deveres e a necessidade de redução destes a

texto para proteção dos sujeitos também foi destacada, com especial fundamento na

obra de Hannah Arendt que destaca que ter em mãos apenas os direitos humanos e

restar desnudo, sem qualquer proteção em legislação nacional resta inútil, de modo

que para efeito de deveres o mesmo pode ser aplicado. A mera indicação de

existência de um dever na esfera teórica ou internacional não é o bastante para

garantir a proteção dos direitos ou exigir ação do sujeito ativo de dever - aquele que

pratica o dever.

Por fim o Capítulo V versou sobre a eficácia dos deveres propriamente. A

abordagem seguiu uma divisão: deveres explícitos e deveres implícitos. Para ambas

as classificações foram indicados exemplos.

O dever de voto e o dever de serviço militar foram indicados como deveres

explícitos. Estes se relacionam na medida em que um é pressuposto do outro e ambos

são expressos na constituição.

Por sua vez, vê-se- possível a interpretação de novos deveres a partir de textos

de direito, pois ambas as posições coexistem e autorizam tal interpretação. Estes

deveres implícitos, entretanto, terão caráter programático, pois falta-lhes força

normativa. Ao menos tempo, porém, não deixam de vincular os entes públicos, os

quais poderão delegar o cumprimento de tal dever nos termos de lei específica.

149

Num quadro geral a discussão sobre a eficácia jurídica dos deveres vê

importante em virtude da necessidade de promoção da ação entre os sujeitos, seja no

cumprimento das obrigações e deveres ligados aos direitos seja naquelas obrigações

e deveres autônomas, não porque é necessário impor uma deverosidade, tal como

num estado totalitário, mas sim pelo fato de que cada ser humano é detentor da

autonomia e de responsabilidades.

A discussão jurídica não visa outro aspecto senão o da realidade fática, para

que aquilo disposto na teoria gere impactos e resultados satisfatórios no ambiente em

que for aplicado. O Estado Democrático de Direito confia à previsão normativa a

regulamentação dos deveres e o próprio controle do exercício dos deveres, todavia, o

estigma sobre estes deve ser rechaçado, pois a plenitude do convívio social não será

encontrada em outro lugar senão no outro.

Diversos deveres foram comentados, no contexto brasileiro e em nações

estrangeiras, mas a pesquisa não tem por ambição classificar ou organizar todos os

deveres, pois dadas as suas particularidade e até mesmo o momento discreto de

desenvolvimento dos deveres, não se pretende ofertar subsídios à atuações espúrias

fundadas em deveres implícitos, a exemplo do fundado receio apresentado no capítulo

V.

A pesquisa como um todo demonstra que é possível e realizável a consagração

dos deveres em ambas as esferas, a constitucional e a infraconstitucional, naquela

através da interpretação - sendo inclusive uma possibilidade futura o sincretismo

metodológico - e nesta através da compreensão de que toda norma tem duas faces e

que todo sujeito pode assumir posições de direito ou dever, ainda que o texto não seja

propriamente de direito ou de dever, pois a norma carrega em si ambas as posições.

Conclui-se por fim que não apenas os objetivo específicos foram atingidos mas

também o objetivo geral de análise da eficácia dos deveres, os quais podem ser

interpretados de normas de direito, mas que enquanto normas constitucionais

autônomas ou expressas caracterizam-se por sua programaticidade, em vista do fato

de que não sancionam - sendo que a sanção é aspecto relevante à estrutura do dever

- e não expressam seu cumprimento em especificidades de sujeito ou de forma.

150

Sua eficácia, portanto, é limitada, em virtude da própria natureza dos deveres

e da necessidade de conceder-lhe densidade normativa, pois o dever será realizável

a nível ordinário, quando então especificará hipóteses e forma, sujeitos e sanções,

completando a estrutura dos deveres.

Os casos a serem analisados, o serão na realidade concreta ou sede d

pesquisa pormenorizada, não sendo viável a análise de todas as hipóteses ou de

outras além das expostas dentro desta pesquisa, ao menos neste momento. Coube

aqui o lançamento de prováveis pressupostos que podem ser assumidos ao analisar

as normas de dever e sua capacidade para gerar efeitos juridicamente apreciáveis,

ampliando assim o horizonte dos deveres.

151

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