The naturalization of poverty: reflections on the formation of social thinking

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Accorssi, A., Scarparo, H., & Guareschi, P. A naturalização da pobreza: reflexões sobre a formação do pensamento... 536 A NATURALIZAÇÃO DA POBREZA: REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO SOCIAL THE NATURALIZATION OF POVERTY: REFLECTIONS ON THE FORMATION OF SOCIAL THINKING Aline Accorssi Centro Universitário La Salle, Canoas, Brasil Helena Scarparo Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil Pedrinho Guareschi Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil RESUMO Neste trabalho investiga-se como a ideologia neoliberal pode influenciar a formação do pensamento social contemporâneo no que se refere à estrutura socioeconômica brasileira. Para tanto, procura-se refletir criticamente sobre algumas proposições que estão presentes na vida cotidiana e incorporadas em nossa linguagem, tais como o conceito de pobreza, a sobrevaloração da prática do voluntariado, o mercado em torno do sofrimento humano com a ampliação do Terceiro Setor, entre outras. Embora, nas últimas décadas, o campo de estudo e de intervenção sobre a pobreza e os seus impactos tenha sido ampliado pelo Estado e pela sociedade civil, a hipótese defendida neste artigo é a de que muitos desses discursos, aparentemente a favor da redução da desigualdade social, tendem a legitimar a manutenção da pouca mobilidade social e, consequentemente, a aceitação e naturalização da pobreza no cotidiano. Palavras-chave: pensamento social; neoliberalismo; naturalização; pobreza. ABSTRACT This paper investigates how the neoliberal ideology can influence the formation of contemporary social thought with regard to the socio-economic structure of Brazil. To this end, we seek to reflect critically on some propositions present in everyday life and incorporated into our language, such as the concept of poverty, the overevaluation of the practice of voluntary work, the market around the human suffering with the expansion of the Third Sector, among others. Although in recent decades the field of study and intervention on poverty and its impact has been magnified by the state and civil society, the hypothesis put forward here is that many of these discourses, apparently in favor of reducing social inequality, tend to legitimize the maintenance of low social mobility and, consequently, the acceptance and naturalization of poverty in everyday life. Keywords: social thought; neoliberalism; naturalization; poverty. Introdução Uma das manifestações contemporâneas mais importantes da questão social na América Latina e, em especial, no Brasil, é a desigualdade social. Apesar de essa problemática ter origem remota e de, segundo alguns discursos correntes, muito se ter lutado para combatê-la, ainda hoje encontramos disparidades socioeconômicas relevantes em nosso país, aliadas à naturalização e aceitação de tal fato. Frente a isso, o presente trabalho procura investigar e refletir criticamente sobre como a ideologia neoliberal pode influenciar a formação do pensamento social contemporâneo no que se refere à estrutura socioeconômica brasileira. Partimos do pressuposto de que o conhecimento humano não é fruto de uma racionalidade pura, nem mesmo o resultado de uma apreensão de informações que reproduz a realidade externa tal qual ela é ou parece ser. Ao contrário, acreditamos que nossas ideias e pensamentos são representações, ou seja, formas dialógicas produzidas pelas inter-relações eu/outro/objeto-mundo (Jovchelovitch, 2008). O conhecimento, portanto, é sempre produzido através da interação, e sua expressão está sempre ligada aos interesses humanos que estão nele implicados. Sendo

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Accorssi A Scarparo H amp Guareschi P A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento

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A NATURALIZACcedilAtildeO DA POBREZA REFLEXOtildeES SOBRE A FORMACcedilAtildeO DO PENSAMENTO SOCIAL

THE NATURALIZATION OF POVERTY REFLECTIONS ON THE FORMATION OF SOCIAL THINKING

Aline AccorssiCentro Universitaacuterio La Salle Canoas Brasil

Helena Scarparo Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil

Pedrinho GuareschiUniversidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil

RESUMO Neste trabalho investiga-se como a ideologia neoliberal pode influenciar a formaccedilatildeo do pensamento social contemporacircneo no que se refere agrave estrutura socioeconocircmica brasileira Para tanto procura-se refletir criticamente sobre algumas proposiccedilotildees que estatildeo presentes na vida cotidiana e incorporadas em nossa linguagem tais como o conceito de pobreza a sobrevaloraccedilatildeo da praacutetica do voluntariado o mercado em torno do sofrimento humano com a ampliaccedilatildeo do Terceiro Setor entre outras Embora nas uacuteltimas deacutecadas o campo de estudo e de intervenccedilatildeo sobre a pobreza e os seus impactos tenha sido ampliado pelo Estado e pela sociedade civil a hipoacutetese defendida neste artigo eacute a de que muitos desses discursos aparentemente a favor da reduccedilatildeo da desigualdade social tendem a legitimar a manutenccedilatildeo da pouca mobilidade social e consequentemente a aceitaccedilatildeo e naturalizaccedilatildeo da pobreza no cotidianoPalavras-chave pensamento social neoliberalismo naturalizaccedilatildeo pobreza

ABSTRACT This paper investigates how the neoliberal ideology can influence the formation of contemporary social thought with regard to the socio-economic structure of Brazil To this end we seek to reflect critically on some propositions present in everyday life and incorporated into our language such as the concept of poverty the overevaluation of the practice of voluntary work the market around the human suffering with the expansion of the Third Sector among others Although in recent decades the field of study and intervention on poverty and its impact has been magnified by the state and civil society the hypothesis put forward here is that many of these discourses apparently in favor of reducing social inequality tend to legitimize the maintenance of low social mobility and consequently the acceptance and naturalization of poverty in everyday lifeKeywords social thought neoliberalism naturalization poverty

Introduccedilatildeo

Uma das manifestaccedilotildees contemporacircneas mais importantes da questatildeo social na Ameacuterica Latina e em especial no Brasil eacute a desigualdade social Apesar de essa problemaacutetica ter origem remota e de segundo alguns discursos correntes muito se ter lutado para combatecirc-la ainda hoje encontramos disparidades socioeconocircmicas relevantes em nosso paiacutes aliadas agrave naturalizaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de tal fato Frente a isso o presente trabalho procura investigar e refletir criticamente sobre como a ideologia neoliberal pode influenciar a formaccedilatildeo do pensamento

social contemporacircneo no que se refere agrave estrutura socioeconocircmica brasileira

Partimos do pressuposto de que o conhecimento humano natildeo eacute fruto de uma racionalidade pura nem mesmo o resultado de uma apreensatildeo de informaccedilotildees que reproduz a realidade externa tal qual ela eacute ou parece ser Ao contraacuterio acreditamos que nossas ideias e pensamentos satildeo representaccedilotildees ou seja formas dialoacutegicas produzidas pelas inter-relaccedilotildees euoutroobjeto-mundo (Jovchelovitch 2008) O conhecimento portanto eacute sempre produzido atraveacutes da interaccedilatildeo e sua expressatildeo estaacute sempre ligada aos interesses humanos que estatildeo nele implicados Sendo

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assim eacute necessaacuterio olhar para a vida cotidiana e para as relaccedilotildees nela estabelecidas para compreender os modos de pensamento que influenciam nosso agir Foi o que fizemos para a construccedilatildeo do presente artigo As proposiccedilotildees que abrem as discussotildees do trabalho satildeo elementos ou provocaccedilotildees construiacutedas a partir da vivecircncia dos pesquisadores resultantes das observaccedilotildees assistemaacuteticas extraiacutedas do cotidiano que em alguma medida ilustram os conhecimentos ou representaccedilotildees circulantes no meio social Nessa perspectiva o estudo das formas simboacutelicas ou seja de accedilotildees e falas de imagens e textos produzidos pelos sujeitos ganha consideraacutevel importacircncia Isso porque tais produccedilotildees sociais nos fornecem informaccedilotildees sobre o alimento que nutre nosso modo de pensaragir

Analisar o que constitui a representaccedilatildeo da representaccedilatildeo ou ateacute mesmo pensar o pensamento requer uma abordagem criacutetica e natildeo ingecircnua uma vez que as formas simboacutelicas podem estar servindo para a manutenccedilatildeo de situaccedilotildees desiguais e opressivas Dessa maneira o estudo da Ideologia pode nos auxiliar na construccedilatildeo de um pensamento criacutetico e libertador Importante lembrar que o conceito de ideologia tem muitos significados mas aqui ele eacute compreendido como as maneiras que ldquoo sentido mobilizado pelas formas simboacutelicas serve para estabelecer e sustentar as relaccedilotildees de dominaccedilatildeordquo (Thompson 1995 p 79) Estabelecer significa que o sentido pode criar ativamente e instituir relaccedilotildees de dominaccedilatildeo enquanto que sustentar significa que o sentido pode servir para manter e reproduzir relaccedilotildees de dominaccedilatildeo atraveacutes de um contiacutenuo processo de produccedilatildeo e recepccedilatildeo de formas simboacutelicas A naturalizaccedilatildeo por exemplo tem sido uma estrateacutegia recorrente e eficaz para perpetuaccedilatildeo de situaccedilotildees opressivas ou conforme Freire (1996) uma das principais armas na manutenccedilatildeo de situaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de acobertamento da realidade A naturalizaccedilatildeo enquanto um modos operandis da Ideologia se produz quando um estado de coisas que eacute uma criaccedilatildeo social e histoacuterica de grupos humanos em certo momento histoacuterico-social eacute tratado e abordado como um acontecimento natural ou como um resultado inevitaacutevel de caracteriacutesticas naturais (Thompson 1995) Essa eacute a ldquoforccedila da ideologia fatalista dominante que estimula a imobilidade dos oprimidos e sua acomodaccedilatildeo agrave realidade injusta necessaacuteria ao movimento dos dominadoresrdquo (Freire 2000 p 43)

Compomos ao longo do artigo uma espeacutecie de diaacuterio da pobreza a partir da problematizaccedilatildeo de proposiccedilotildees que circulam no mundo social De modo metafoacuterico ilustramos a dinacircmica cotidiana onde a pobreza e as praacuteticas em torno dela satildeo perpetuadas Em um cotidiano atarefado em que a reflexatildeo criacutetica

natildeo eacute prioridade passamos progressivamente a aceitar certos problemas sociais a consideraacute-los inclusive como normais ou como o esperado Legitimamos dia apoacutes dia a manutenccedilatildeo de situaccedilotildees desumanas decorrentes da desigualdade social e da pobreza Lutar contra isto significa natildeo reproduzir de forma ingecircnua as verdades absolutas mas sim estranhar e reagir frente aos fatos E eacute com esta intencionalidade que iniciamos a discussatildeo da semana

Segunda-feira relativize o conceito de pobreza a tal ponto que seja impossiacutevel saber quem

de fato a vivencia

Pesquisadores ligados a ONU advertem que em 2020 a pobreza urbana chegaraacute a 45 ou 50 do total dos moradores das cidades (Davis 2006) Poreacutem os Indicadores do Desenvolvimento Mundial para 2007 produzidos pelo Banco Mundial (2008) apontam para a diminuiccedilatildeo das taxas mundiais de pobreza nos quatro primeiros anos do seacuteculo XXI Afinal qual dado retrata o problema da pobreza no mundo

O debate em torno de quem satildeo os pobres e o que eacute a pobreza tem ganhado espaccedilo na agenda puacuteblica e no meio acadecircmico O cidadatildeo que estiver atento aos jornais aos noticiaacuterios e agraves publicaccedilotildees desta aacuterea facilmente ficaraacute desnorteado com o excesso de informaccedilotildees que alimentam o cotidiano sobre esse assunto Exemplo disso satildeo os inuacutemeros indicadores e conceitos agraves vezes contraditoacuterios que sistematicamente satildeo lanccedilados ingenuamente ou natildeo ao puacuteblico em geral No caso anterior seraacute que as agecircncias utilizaram os mesmos conceitos para fazerem tais afirmativas A condiccedilatildeo de pobreza retratada e contabilizada eacute a mesma Aparentemente natildeo Sendo assim nosso primeiro ponto de reflexatildeo abarca os conceitos que utilizamos em especial as implicaccedilotildees que decorrem ao se escolher uma concepccedilatildeo em detrimento de outras

De forma abrangente um conceito pode ser compreendido como um termo que se refere a algo em particular a um predicado a uma caracteriacutestica ligada a algueacutem ou a alguma coisa ldquopossuir um conceito eacute ter a capacidade de usar um termo que o exprima ao fazer juiacutezosrdquo (Blackburn 1997 p 66) E aqui haacute dois pontos importantes para a anaacutelise do conceito de pobreza pois essa capacidade relaciona-se tanto com a aplicabilidade do termo como com a compreensatildeo das consequecircncias de sua aplicaccedilatildeo

A partir do contato com os estudos a respeito da pobreza podemos supor a existecircncia de duas principais linhas-base para o pensamento e a definiccedilatildeo

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desse conceito De um lado haacute as abordagens de subsistecircncia ou de pobreza absoluta definidas a partir de criteacuterios objetivos e precisos de outro a pobreza compreendida como fenocircmeno multidimensional em que se assume a complexidade das experiecircncias no centro da sua anaacutelise No que seraacute que elas se diferem ou se assemelham Por que tantos conceitos para falar sobre os mesmos fenocircmenos

Na linha do que tem se considerado miacutenimo necessaacuterio para sobreviver encontramos a abordagem chamada de subsistecircncia equivalente ao que hoje em dia chama-se de pobreza absoluta Essa condiccedilatildeo estaacute relacionada agraves questotildees de sobrevivecircncia fiacutesica ou seja ao ldquonatildeo-atendimento das necessidades vinculadas ao miacutenimo vitalrdquo (Rocha 2008 p 11) indispensaacutevel para o exerciacutecio das atividades humanas nos variados papeacuteis sociais que o sujeito atua como no trabalho na famiacutelia etc Esta perspectiva de anaacutelise unidimensional tem sofrido ataques devido a dois fatores primeiramente pelo reducionismo bioloacutegico-alimentar que ela atribui agraves necessidades do sujeito e aleacutem disso pelo fato de que natildeo haacute como estabelecer um criteacuterio absoluto em relaccedilatildeo agrave quantidade de energias e de nutrientes que os seres humanos necessitam para se manterem vivos pois tal aspecto depende de inuacutemeros fatores tais como o lugar as condiccedilotildees climaacuteticas as atividades realizadas etc

Jaacute na concepccedilatildeo ligada agraves necessidades baacutesicas comeccedila a haver uma mudanccedila no entendimento do que eacute o miacutenimo e passa-se a lidar com a pobreza enquanto um fenocircmeno multifacetado Esse conceito inclui no campo das necessidades de sobrevivecircncia dois conjuntos de fatores eacute necessaacuterio um miacutenimo de condiccedilotildees para o consumo privado como comida roupas equipamentos medicamentos etc e um outro grupo de necessidades relacionado aos serviccedilos essenciais providos para a sociedade como aacutegua potaacutevel sauacutede educaccedilatildeo transporte puacuteblico etc (Rocha 2006)

O conceito de privaccedilatildeo (ou pobreza) relativa por sua vez reconhece a existecircncia da interdependecircncia entre as estruturas social e institucional vigentes no cotidiano ou seja considera que a relaccedilatildeo entre privaccedilatildeo e renda eacute mutaacutevel ao longo do tempo e entre as comunidades que ocupam diferentes territoacuterios (Codes 2008) Sendo assim a pobreza passa a ser definida em funccedilatildeo do contexto social em que se vive a partir da consideraccedilatildeo do padratildeo de vida e da maneira como as necessidades satildeo suprimidas em certa realidade socioeconocircmica Ser pobre significa portanto natildeo poder obter determinados produtos ou condiccedilotildees e isto manteacutem o sujeito distante da possibilidade de ocupar

determinados papeacuteis sociais esperados dele enquanto membro da sociedade (Rocha 2006)

Um passo aleacutem encontramos outras definiccedilotildees ainda mais relativas e multifacetadas Sen (2000) por exemplo propotildee o entendimento da pobreza como privaccedilatildeo de capacidades baacutesicas que satildeo intrinsecamente importantes para o ser humano O autor chama tambeacutem a atenccedilatildeo para o fato de que conceitos que tomam a renda como criteacuterio exclusivo de anaacutelise adotam uma visatildeo tipicamente instrumental Na verdade diz ele embora a baixa renda seja uma das maiores causas da pobreza e da privaccedilatildeo das capacidades de uma pessoa a renda em si natildeo eacute o uacutenico instrumento de geraccedilatildeo de capacidades

O perigo das definiccedilotildees nas quais a relatividade do fenocircmeno eacute considerada ponto chave eacute o fato de que se pode cair em uma armadilha ideoloacutegica ao natildeo se conseguir mais nomear ou quantificar quem eacute pobre Conforme Telles (2001) ao se radicalizar o discurso da cidadania pobre e pobreza deixam de existir

O que existe isso sim satildeo indiviacuteduos e grupos sociais em situaccedilotildees particulares de denegaccedilatildeo de direitos A indiferenciaccedilatildeo do pobre remete a uma esfera homogecircnea das necessidades na qual o indiviacuteduo desaparece como identidade vontade e accedilatildeo pois eacute plenamente dominado pelas circunstacircncias que o determinam na sua impotecircncia (Telles 2001 pp 51-52)

Por outro lado as concepccedilotildees que consideram a multidimensionalidade do fenocircmeno da pobreza puderam chamar a atenccedilatildeo para fatores antes negados e que alimentam o ciacuterculo vicioso no qual a pobreza se insere Ou seja a pobreza eacute muito mais complexa do que os determinantes econocircmicos conseguem avaliar e medir Ela eacute sobretudo um plano constitutivo da identidade individual e social (Salama amp Destremau 1999)

Assim natildeo buscamos aqui defender uma posiccedilatildeo em detrimento de outra Apenas acreditamos ser preciso levar em consideraccedilatildeo o fato de que dependendo do ponto de partida ou seja dos conceitos e indicadores chegar-se-aacute a diferentes resultados Diante disso eacute possiacutevel que questionemos o porquecirc da realidade ser tatildeo maleaacutevel Haacute de se desconfiar das intenccedilotildees dos atores sociais quando optam por uma teoria em detrimento de outra

Sabemos que a pobreza natildeo eacute um fenocircmeno natural e imutaacutevel ao contraacuterio a pobreza e as pessoas que vivem nesta condiccedilatildeo tecircm ocupado lugares diversos conforme basicamente o conjunto de interesses e forccedilas existentes no momento histoacuterico

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que a constitui (Castel 2001 Paugam 2003) A pobreza corresponde mais a um processo do que um estado perpeacutetuo e imutaacutevel ldquoToda definiccedilatildeo estaacutetica da pobreza contribui para agrupar num mesmo conjunto populaccedilotildees cuja situaccedilatildeo eacute heterogecircnea ocultando a origem e os efeitos a longo prazo das dificuldades dos indiviacuteduos e de suas famiacuteliasrdquo (Paugam 1999 p68)

Concordamos portanto com Boaventura de Souza Santos (2008) quando ele propotildee estudar e aprender com o Sul sendo este entendido como uma metaacutefora do sofrimento humano causado pelo capitalismo Tal postura parece levantar novas possibilidades ao estudo da condiccedilatildeo de pobreza e os seus efeitos pois nada melhor do que o oprimido para falar sobre a sua situaccedilatildeo no mundo (Freire 1987) Na mesma perspectiva os estudos poacutes-colonialistas compostos por um conjunto de correntes teoacutericas e analiacuteticas trouxeram e ainda trazem a voz de paiacuteses chamados de ldquoterceiro mundordquo e a de minorias sociais como uma prioridade teoacuterico-poliacutetica na explicaccedilatildeo ou na compreensatildeo do mundo contemporacircneo Isso porque na perspectiva poacutes-colonial parte-se da ideia de que eacute a partir das margens ou das periferias que as estruturas de poder e de saber satildeo mais visiacuteveis Acreditamos ser fundamental desenvolver o interesse na geopoliacutetica do conhecimento ou seja ldquoproblematizar quem produz o conhecimento em que contexto o produz e para quem o produzrdquo (Santos 2008 p 29)

Assim as teorias quando tomadas como criaccedilatildeo e accedilatildeo humana e portanto histoacutericas e passiacuteveis de contradiccedilotildees podem nos fornecer lentes de anaacutelise do campo social que estudamos eou agimos Tais lentes focam em certos aspectos e ao mesmo tempo desfocam em outros pois a incompletude caracteriacutestica ontoloacutegica tambeacutem estaacute presente nas produccedilotildees humanas Poreacutem mesmo se considerarmos e aceitarmos tal fato natildeo podemos esquecer que no meio desta rede conceitual de interesses e implicaccedilotildees ldquoa pobreza se diz de vaacuterias maneiras Ela se diz tambeacutem segundo uma multiplicidade de palavras que saturam o discurso pela sua variedade sua frequumlecircncia e sua intensidaderdquo (Bernard 2003 p103)

Terccedila-feira ensine a pescar mesmo que natildeo haja acesso ao rio ou natildeo haja peixe

Eacute quase um consenso no meio social a ideia de que natildeo devemos dar o peixe ao faminto mas sim ensinaacute-lo a pescar Isso porque ao dar o peixe estar-se-ia promovendo a cultura da dependecircncia entre os necessitados Portanto nada melhor do que programas educativos instrutivos e disciplinadores para resolver os problemas sociais do mundo Resta saber se a fome

e boa parte das mazelas sociais se resolveriam ou ao menos diminuiriam se todas as pessoas famintas fossem qualificadas profissionalmente por exemplo

Vimos no item anterior que haacute implicaccedilotildees ao se eleger um conceito em detrimento de outros e agora comeccedilamos as perceber no cotidiano das populaccedilotildees Interessante observar nesse sentido que em boa parte dos cursos de qualificaccedilatildeo profissional oferecidos gratuitamente para pessoas de baixa renda haacute um moacutedulo ou uma disciplina chamada cidadania Por que para os pobres eacute necessaacuterio ensinar o que eacute ser cidadatildeo Seraacute somente uma boa intenccedilatildeo compartilhada por inuacutemeras pessoas e instituiccedilotildees Aliaacutes enquanto muitas pessoas de um lado satildeo consideradas o ldquoalvordquo das poliacuteticas sociais algumas outras do lado oposto planejam e decidem o funcionamento dos projetos Ao colocar essas provocaccedilotildees em pauta natildeo pretendemos abordar diretamente projetos e programas sociais mas sim problematizar o papel do conhecimento que inevitavelmente os sustentam

Para discutirmos a problemaacutetica do conhecimento cientiacutefico e as praacuteticas que dele decorrem precisamos assumir de qual conceito de ciecircncia estamos partindo Nesse sentido a filosofia da ciecircncia contribui para a discussatildeo uma vez que ela nos fornece vaacuterios modelos para a compreensatildeo dela mesma (Burawoy 1990) Tomamos aqui as ideias propostas por Thomas Kuhn Esse cientista foi um dos mais relevantes da contemporaneidade a considerar as influecircncias histoacutericas e socioloacutegicas para a compreensatildeo da produccedilatildeo do conhecimento vinculando o desenvolvimento da ciecircncia agraves praacuteticas de grupos sociais Renunciou o conceito de teoria como unidade de anaacutelise da evoluccedilatildeo da ciecircncia substituindo-o pelo de paradigma Apesar de ter uma definiccedilatildeo ambiacutegua para esse termo (com 21 sentidos diferentes) de modo geral faz referecircncia a uma unidade de anaacutelise mais ampla que a teoria Para o autor paradigma eacute um conjunto de explicaccedilotildees teoacutericas sobre determinados fenocircmenos provenientes de dados empiacutericos bem como um conjunto de problemas que ainda estatildeo abertos para serem resolvidos Kuhn vai mais a fundo e diz que o conteuacutedo de determinado paradigma ultrapassa o seu caraacuteter cientiacutefico inclui tambeacutem um significado socioloacutegico pois se refere ao desenvolvimento institucional que se produz em torno do paradigma dominante Ou seja o paradigma inserido em uma rede de relaccedilotildees sociais cria estruturas de poder para evitar que o desenvolvimento da atividade cientiacutefica o ponha em risco (Aacutelvaro amp Garrido 2006)

Outro aspecto relevante conforme apontam Bauer Gaskel e Allum (2002) eacute a discussatildeo em torno

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dos interesses do conhecimento pois a produccedilatildeo cientiacutefica somente ocorre atraveacutes deles Podemos afirmar que ningueacutem consegue livrar-se dos interesses do conhecimento apesar de alguns cientistas terem certeza da sua neutralidade Ao discutir essa questatildeo Habermas (cf Bauer Gaskell amp Allum 2002 Habermas 2006) propocircs uma tipologia de interesses do conhecimento a partir da anaacutelise de alguns autores Para ele existem trecircs interesses constitutivos do conhecimento que estatildeo na base das ciecircncias ldquoempiacuterico-analiacuteticasrdquo ldquohistoacuterico-hermenecircuticasrdquo e ldquocriacuteticasrdquo

As ciecircncias empiacuterico-analiacuteticas tecircm como base um interesse no controle teacutecnico ou seja com o objetivo de obter o conhecimento cientiacutefico adotam como imperativo racional o controle sobre as condiccedilotildees materiais em que nos encontramos e a partir disso buscam aumentar nossa sauacutede e seguranccedila fiacutesica e espiritual Promovem o estudo de leis que presidem os fenocircmenos naturais Buscam a prediccedilatildeo e a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos Jaacute as ciecircncias histoacuterico-hermenecircuticas tecircm um interesse no estabelecimento de consenso e em funccedilatildeo disso tomam como imperativo a busca pela compreensatildeo intersubjetiva que somente pode ser alcanccedilada atraveacutes da linguagem comum A compreensatildeo hermenecircutica que tem como finalidade restaurar canais rompidos de comunicaccedilatildeo trabalha com duas dimensotildees (a) o elo entre a proacutepria experiecircncia de vida de algueacutem e a tradiccedilatildeo agrave qual pertence e (b) a esfera da comunicaccedilatildeo entre diferentes indiviacuteduos grupos e tradiccedilotildees O cientista em ambos os casos procura aprender a liacutengua que ele interpreta mas deve aproximar-se da interpretaccedilatildeo a partir de um ponto histoacuterico especiacutefico Ao fazer isso o pesquisador leva em consideraccedilatildeo a totalidade de interpretaccedilatildeo que jaacute estaacute presente (uma vez que o proacuteprio mundo social jaacute eacute um mundo preacute-interpretado) e entra no que se chama de ldquociacuterculo hermenecircuticordquo Eacute esse movimento que leva ao consenso entre os atores Evidentemente que esse consenso jamais seraacute absoluto pelo contraacuterio ele eacute necessariamente fluido e dinacircmico pois ele eacute conseguido atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo que evolui e continua a evoluir e modificar-se historicamente (Bauer Gaskel amp Allum 2002)

A ciecircncia perdeu muito tempo e energia com a descriccedilatildeo de delineamentos e ldquobrigasrdquo entre as metodologias Parece ficar claro inclusive que o primeiro modelo encontra-se com mais frequecircncia nas pesquisas quantitativas e o segundo nas pesquisas qualitativas Contudo ainda haacute um terceiro tipo de ciecircncia e interesses que daacute um novo colorido a essa antiga discussatildeo Habermas aponta para a possibilidade de uma ciecircncia ldquocriacuteticardquo que tem como

interesse maior a emancipaccedilatildeo Sua principal tese eacute a de que os interesses emancipatoacuterios fornecem o referencial para se avanccedilar aleacutem do conhecimento nomoloacutegico e da compreensatildeo hermenecircutica e nos permitem ldquodeterminar quando afirmaccedilotildees teoacutericas atingem regularidades invariantes da accedilatildeo social como tal e quando elas expressam relaccedilotildees ideologicamente congeladas de dependecircncia que podem em princiacutepio ser transformadasrdquo (Bauer Gaskel amp Allum 2002 p 33) Eacute atraveacutes de um processo autorreflexivo que as ciecircncias criacuteticas podem chegar a identificar estruturas condicionadoras de poder que com o ldquouso de uma comunicaccedilatildeo sistematicamente distorcida e de uma repressatildeo sutilmente legitimadardquo tendem a se naturalizar na sociedade

Mas esse projeto de ciecircncia natildeo foi e natildeo eacute uma tarefa simples Criacuteticas sobre esta proposta alertam que a proacutepria ideia de transformaccedilatildeo emancipatoacuteria da sociedade pode se transformar em uma nova forma de opressatildeo social (Santos 2008) De fato muitas das praacuteticas embasadas nesta concepccedilatildeo ou seja em nome do desenvolvimento ou da conscientizaccedilatildeo de certo grupo acabaram legitimando ideias das quais elas pretendiam romper Assim mais do que nunca adotar o princiacutepio de que ldquoa coerecircncia da criacutetica estaacute na autocriacuteticardquo (Demo 2002 p23) eacute fator determinante para a construccedilatildeo de praacuteticas emancipadoras Sempre eacute importante lembrar que praacuteticas sociais satildeo produzidas por atores inseridos em instituiccedilotildees seja na pesquisa ou no campo da intervenccedilatildeo social Se satildeo praacuteticas jamais se poderia adotar a postura de uma suposta neutralidade e imparcialidade em momento algum inclusive ao decidir quem com ela se beneficiaraacute E isso nos leva a pensar no dia de amanhatilde ou seja no papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional para o desenvolvimento de praacuteticas sociais justas e solidaacuterias

Quarta-feira lute contra a pobreza do mesmo modo que o BM e o FMI o fazem

Vimos que os conceitos satildeo produtos histoacutericos o que significa dizer que satildeo construiacutedos reproduzidos eou transformados conforme o ambiente e os jogos de poder em que estatildeo inseridos que o conhecimento produzido nas academias em especial nos nuacutecleos de pesquisa no acircmbito humano-social pode ter grande impacto na definiccedilatildeo de poliacuteticas sociais Agora pretendemos ilustrar o debate anterior inserindo na discussatildeo o papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo na construccedilatildeo do pensamento social

Nem sempre se sabe de onde vecircm as palavras e expressotildees que partilhamos e perpetuamos em nosso cotidiano Utilizamo-las muitas vezes ingenuamente

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sem perceber os efeitos das mesmas sem nos darmos conta de que os conceitos podem estar legitimando praacuteticas opostas agraves nossas intenccedilotildees Assim a questatildeo que aqui colocamos eacute a seguinte o que significa aderir e perpetuar um conceito descolado de sua histoacuteria

Considerando-se a abrangecircncia e influecircncia de certas instituiccedilotildees internacionais na dinacircmica socioeconocircmica e poliacutetica mundial buscamos refletir sobre como a questatildeo da pobreza eacute tratada pelo Banco Mundial (BM) e levantamos possiacuteveis compreensotildees sobre quais satildeo os interesses dessa instituiccedilatildeo ao utilizar o conceito pobreza e as suas recomendaccedilotildees em relaccedilatildeo a como combatecirc-la

O BM juntamente com o Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI) foi criado durante a conferecircncia de Bretton Woods em 1944 proposta pelo governo norte-americano com a intenccedilatildeo de traccedilar os contornos da nova ordem econocircmica que deveria ser instituiacuteda no poacutes-guerra Ao mesmo tempo estabeleceu-se um novo padratildeo monetaacuterio internacional centrado no doacutelar com paridade fixa com o ouro (Mattos 2001) O BM tinha como objetivo promover o investimento internacional e manter a estabilidade do cacircmbio aleacutem de tratar de problemas de balanccedilas de pagamento (Hobsbawm 1995) As regras para seu funcionamento incluiacuteram um dispositivo de captaccedilatildeo de recursos junto aos mercados financeiros com as mais baixas taxas de mercado destinados evidentemente para os paiacuteses-membro (Misoczky 2002)

Mas nem sempre essas instituiccedilotildees tiveram o mesmo papel Entre 1974 e 1975 por exemplo o FMI seguido pelo BM mudou o seu enfoque dos paiacuteses industriais desenvolvidos para os que estavam em desenvolvimento uma vez que estes uacuteltimos cambaleavam com o impacto dos preccedilos cada vez mais altos do petroacuteleo Ao aumentar passo a passo os seus empreacutestimos o FMI ampliou o alcance das condicionalidades coercitivas e ajustes estruturais que impunha aos paiacuteses que eram seus clientes Desde 1980 o BM vem atuando como importante regulador e formulador de poliacuteticas para os paiacuteses perifeacutericos e juntamente com o FMI exercendo um papel importante na disseminaccedilatildeo das poliacuteticas neoliberais (Ugaacute 2004) Sabe-se que o FMI bem como outras agecircncias internacionais de desenvolvimento impotildeem condiccedilotildees para emprestar dinheiro determinando a reestruturaccedilatildeo de oacutergatildeos de governos municipais estaduais e federais e orientando suas praacuteticas Os empreacutestimos pagam consultores internacionais que frequentemente pouco conhecem a realidade local mas conhecem muito bem os idecircnticos modelos que satildeo impostos a diferentes paiacuteses de diferentes culturas em diferentes cidades (Maricato 2006)

A reforma do Estadoestimulada pela accedilatildeo do BM e do FMI propotildee como condiccedilatildeo para o crescimento econocircmico e inserccedilatildeo na ordem mundial ajustes fiscais e estabilidade interna da moeda o que torna necessaacuterio o controle dos gastos puacuteblicos e a geraccedilatildeo de superaacutevit primaacuterio nos paiacuteses perifeacutericos para saldar juros da diacutevida externa (Costa 2006 p 157)

Em diferentes contextos mas com consequecircncias semelhantes os Estados endividados passaram a depender do mercado financeiro A autonomia na formulaccedilatildeo da poliacutetica econocircmica foi prejudicada e passou a ser cada vez mais difiacutecil cobrar impostos num mundo globalizado com a mobilidade do capital ditando as regras ldquoA necessidade de criar postos de trabalho faz com que o capital tenha um poder de barganha muito grande sobre o governo com um apelo ideoloacutegico repassado para a sociedaderdquo (Costa 2006 p 164) E quando o governo contraria as expectativas do capital podemos assistir a um conjunto de manifestaccedilotildees midiaacuteticas que afirmam e reafirmam a incompetecircncia do Estado em gerir e manter os empregos em determinada regiatildeo

O BM passou a analisar e a balizar a atuaccedilatildeo dos governos tambeacutem no acircmbito social Em consonacircncia com os princiacutepios neoliberais prescreveu reformas especialmente nas aacutereas da educaccedilatildeo e da sauacutede Aleacutem disso constatou que as despesas governamentais com os serviccedilos sociais natildeo eram eficientes pois natildeo beneficiavam quem mais precisava delas os pobres Com tal conclusatildeo passou a recomendar fortemente que os paiacuteses adotassem medidas focalizadas ou seja serviccedilos sociais para as populaccedilotildees mais necessitadas O tema da equidade foi colocado em pauta frisando que a necessidade de intervenccedilatildeo deveria ser na educaccedilatildeo primaacuteria e no atendimento preventivo na sauacutede a atenccedilatildeo baacutesica (Fonseca 1998 Misoczki 2002 Ugaacute 2004) ldquoO ensino superior e o atendimento hospitalar foram considerados secundaacuterios dentro das propostas de atuaccedilatildeo do Estado na aacuterea socialrdquo (Costa 2006 p 209)

Segundo Costa (2006) as conquistas com a universalizaccedilatildeo do acesso sem melhorar a capacidade de investimento puacuteblico na elevaccedilatildeo da qualidade dos serviccedilos ofertados para toda a populaccedilatildeo fizeram com que a classe meacutedia buscasse o mercado privado Os usuaacuterios mais pobres que foram inseridos no acesso aos serviccedilos sociais na medida em que natildeo tinham esse acesso anteriormente fizeram pouca pressatildeo para elevar a qualidade do que estavam lhes oferecendo ldquoReproduzindo a loacutegica da submissatildeo agradecem pelo fato de serem atendidos sem considerar isso como um direito de cidadaniardquo (p 212)

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Eacute a partir da naturalizaccedilatildeo da pobreza e das desigualdades que esse modelo do BM devolve o conflito para o seio de uma sociedade fragmentada na qual os atores individualizam-se ao mesmo tempo em que sujeitos coletivos perdem as identidades ldquoMuda portanto a orientaccedilatildeo da poliacutetica social nem consumos coletivos nem direitos sociais senatildeo que assistecircncia focalizada para aqueles com lsquomenor capacidade de pressatildeorsquo ou os mais lsquohumildesrsquo ou ainda os mais lsquopobresrsquordquo (Soares 2002 p 73) Assim o Estado neoliberal constroacutei uma faceta assistencialista como contrapartida de um mercado livre e o BM pode se vangloriar de suas poliacuteticas com face humana que ensinam a lutar contra a pobreza Se por um lado criam-se necessidades com a poliacutetica de ajustes por outro se trabalha no sentido humanitaacuterio de reparo dos danos com o estiacutemulo agraves poliacuteticas focalizadas Evidentemente esse processo traz consequecircncias seacuterias para o cotidiano das comunidades por um lado a aceitaccedilatildeo do fenocircmeno da pobreza sem maiores questionamentos por outro o esvaziamento do conceito de cidadania social ou seja a garantia dos direitos sociais para muito aleacutem de meras poliacuteticas compensatoacuterias (Ugaacute 2004)

Quinta-feira usufrua dos benefiacutecios do mercado em torno do sofrimento humano pois ele eacute

rentaacutevel

No item anterior discutimos o interesse de algumas instituiccedilotildees internacionais na diminuiccedilatildeo do tamanho do papel do Estado Vimos que o debate natildeo estaacute isento de interesses ao contraacuterio ele ldquoevidencia a polecircmica dentro da sociedade sobre que funccedilotildees o Estado deve realizar e qual o seu papel na prestaccedilatildeo de serviccedilos sociaisrdquo (Costa 2006 p 208) Sabemos tambeacutem que a partir da deacutecada de 1990 com a incorporaccedilatildeo continuada das recomendaccedilotildees do Consenso de Washington houve o acirramento e ampliaccedilatildeo das desigualdades bem como o surgimento de uma nova exclusatildeo social Frente a isso uma onda de praacuteticas solidaacuterias realizadas tanto por instituiccedilotildees internacionais quanto nacionais emergiu para amenizar os problemas decorrentes do ajuste estrutural O Terceiro Setor caracterizado por abrigar um conjunto amplo de organizaccedilotildees natildeo-governamentais (ONGs) como associaccedilotildees e fundaccedilotildees surge no ldquointerior (e como resultado) do processo de reestruturaccedilatildeo do capital particularmente no conjunto de reformas do Estadordquo (Montantildeo 2005) A crise e a suposta escassez de recursos serviram como justificativa para que o Estado se eximisse de sua responsabilidade social assim como para a abertura de certos serviccedilos por

entidades que se imaginava serem sem fins lucrativos e comprometidas com a sociedade

Uma pesquisa de 2005 realizada pelo Programa de Voluntaacuterios das Naccedilotildees Unidas (UNV) em parceria com o instituto Johns Hopkins revelou o movimento (e o crescimento) financeiro deste setor no Brasil A pesquisa constatou que o setor obteve investimentos da ordem de R$ 47 bilhotildees o que representou 5 do PIB nacional superando inclusive setores expressivos da economia brasileira como a induacutestria de extraccedilatildeo mineral (petroacuteleo mineacuterio de ferro gaacutes natural carvatildeo entre outros) (Bedinelli 2006 O que fazem as pessoas 2008 Zavala 2006) Mas de onde vieram tais financiamentos Quais bondades foram realizadas com este recurso

Sabemos que boa parte dos recursos utilizados nesse setor satildeo puacuteblicos na medida em que essas instituiccedilotildees satildeo financiadas direta ou indiretamente por governos Diretamente quando por exemplo as entidades com tiacutetulo de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil de Interesse Puacuteblico (OSCIPs) podem disputar recursos puacuteblicos para realizar projetos e programas especiacuteficos Indiretamente quando por meio de incentivos fiscais empresas privadas deslocam parte do que destinariam aos impostos para uma instituiccedilatildeo do Terceiro Setor Costuma-se dizer ateacute mesmo na aacuterea da Gestatildeo Social que recursos natildeo faltam o que faltam satildeo bons projetos Independente se isso eacute verdadeiro ou natildeo fato eacute que a livre competiccedilatildeo caracteriacutestica do mercado capitalista tambeacutem ocupou espaccedilos de comercializaccedilatildeo do sofrimento humano

O filme intitulado Quanto vale ou eacute por quilo de 2005 traz elementos interessantes para o debate sobre o Terceiro Setor O diretor Seacutergio Bianchi penetra no mundo das ONGS com duras criacuteticas ilustrando o caos que compotildee tal campo das intervenccedilotildees sociais Tanto no filme quanto em nosso cotidiano haacute instituiccedilotildees que disputam verbas locais e beneficiados para a realizaccedilatildeo dos projetos Frente a isso pode-se questionar se problema da pobreza eacute de fato algo a ser resolvido ou mantido Aparentemente quanto maior o tamanho da pobreza maior seraacute o tamanho dos investimentos Bianchi (2005) em uma entrevista para a Revista Eacutepoca afirma natildeo ser contra a existecircncia de tais atividades desde que natildeo sejam atividades que levem ldquoa permanecircncia desses problemas ao transformar esses problemas em mercadordquo E complementa dizendo que se o Terceiro Setor ou a miseacuteria desaparecer uma quantidade enorme de desempregados surgiraacute (Bianchi 2005)

Um estudo realizado por Pinto (2005 p 2) sobre a atuaccedilatildeo das organizaccedilotildees sociais natildeo-governamentais (caracterizadas em trecircs grupos pela autora ideoloacutegicas

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religiosas e por pura solidariedade) que realizavam accedilotildees contra a fome identificou claras limitaccedilotildees para ldquolevar a cabo com ecircxito as missotildees de substituir o Estado em accedilotildees dirigidas a populaccedilotildees carentes ou em situaccedilatildeo de riscordquo Trecircs dessas limitaccedilotildees fundamentais satildeo a natildeo-obrigaccedilatildeo da universalidade a dependecircncia de recursos e o voluntariado Isso porque as accedilotildees tendem a ser realizadas por ldquoagentes da sociedade civil como uma questatildeo pontual isolada o que natildeo permite poliacuteticas universalizantes que mudem a qualidade de vida das populaccedilotildees em situaccedilatildeo de miseacuteriardquo (p 27)

Na verdade o que se observa no cotidiano eacute que as populaccedilotildees que estatildeo em situaccedilatildeo de indigecircncia e pobreza precisam de auxiacutelios variados e continuados para romper com o ciacuterculo de dificuldades cotidianas E aqui existe um outro problema que coloca muitas vezes em risco o trabalho que pretende ser comprometido com a transformaccedilatildeo social Os projetos as intervenccedilotildees quando patrocinadas por oacutergatildeos estatais ou por empresas privadas possuem um prazo determinado a priori para a execuccedilatildeo das atividades propostas e para o uso dos recursos financeiros disponibilizados Normalmente o prazo eacute de aproximadamente 12 meses agraves vezes mais agraves vezes menos Como transformar uma situaccedilatildeo com raiacutezes histoacutericas tatildeo profundas em um curto espaccedilo de tempo Levaram-se anos na verdade seacuteculos para construirmos uma memoacuteria e um imaginaacuterio social da forma que os satildeo na atualidade Portanto pelo bem e pelo mal eacute fato eles natildeo se transformaratildeo na mesma velocidade que alguns gostariam O maacuteximo que se poderaacute fazer eacute atenuar os problemas ou como diz Demo (2002) docilizar as populaccedilotildees atendidas

Outro aspecto importante eacute a falta de paracircmetros de controle das entidades sociais Ateacute agora ldquonatildeo sabemos como gerir estas novas aacutereas pois os instrumentos de gestatildeo correspondentes ainda estatildeo engatinhandordquo (Dowbor 1999 p 8) Aleacutem disso casos de desvio de verbas corrupccedilatildeo fundaccedilotildees fantasmas etc natildeo satildeo novidades Quem deve ou deveria regular tais entidades Como podemos saber quais satildeo os resultados dos investimentos puacuteblicos nelas investidos

Embora a situaccedilatildeo social do Brasil tenha melhorado nos uacuteltimos anos (Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2008 2009) temos ainda um panorama grave e urgente Apoacutes a deacutecada de 1990 o que se fez foi afirmar e reafirmar a natildeo constituiccedilatildeo de uma rede universal de ldquoproteccedilatildeo social que explicite o dever do Estado na garantia dos direitos sociaisrdquo Na verdade foi o oposto que aconteceu Houve um retrocesso a uma ldquoconcepccedilatildeo de que o bem-estar pertence ao acircmbito do privadordquo a comunidades locais

as instituiccedilotildees de cunho religioso e filantroacutepico (Soares 2005 p 12) O plano era de que estas instituiccedilotildees tomadas pela bondade humana estabeleceriam uma rede de solidariedade para proteger e salvaguardar os pobres De certo modo o plano tem dado certo basta somente saber para quem

Sexta-feira pratique o voluntariado e regojize-se pelo aliacutevio de sua consciecircncia

Nos dias atuais a accedilatildeo voluntaacuteria tem sido reconhecida como praacutetica importante em discursos e planejamentos que visam agrave intervenccedilatildeo ou mudanccedila social No terceiro setor tal praacutetica eacute incentivada por inuacutemeras instituiccedilotildees em especial pela ONG Parceiros Voluntaacuterios (RS) Instituto Voluntaacuterios em Accedilatildeo (SC) e Portal do Voluntaacuterio (Internet) Tamanha eacute a importacircncia do assunto que a ONU lanccedilou um dia em comemoraccedilatildeo agrave praacutetica e aos praticantes ndash Dia Internacional do Voluntariado ndash fixado no dia 05 de dezembro

Mas o que eacute ser voluntaacuterio Segundo a definiccedilatildeo da ONG Parceiros Voluntaacuterios (2008) o voluntariado eacute aquilo que toda pessoa ou organizaccedilatildeo faz motivado pelos valores de participaccedilatildeo e solidariedade para contribuir com as causas de interesse social e comunitaacuterio Para tanto ldquoo voluntaacuterio disponibiliza seu conhecimento tempo e emoccedilatildeo de maneira espontacircnea e natildeo-remuneradardquo

Contudo nem sempre encontramos boas experiecircncias associadas a esse tipo de trabalho Reclamaccedilotildees quanto agrave exploraccedilatildeo das pessoas ao uso de informaccedilotildees sem retorno agravequeles que as forneceram ao curto periacuteodo de envolvimento em um trabalho etc satildeo muito comuns nas comunidades e instituiccedilotildees em que recebem os voluntaacuterios Mas por que isso acontece Talvez devecircssemos refletir sobre os motivos pelos quais as pessoas procuram realizar esta praacutetica

Uma pesquisa realizada em empresas e instituiccedilotildees natildeo governamentais por Caldana e Figueiredo (2008) aponta que a busca pelo voluntariado estaacute relacionada ao aumento da estima atraveacutes da aprovaccedilatildeo e reconhecimento dos colegas de trabalho a transmissatildeo de princiacutepios religiosos ao aliacutevio das tensotildees ao incentivo midiaacutetico a diminuiccedilatildeo de culpas a superaccedilatildeo de limites pessoais entre outros fatores Incluiriacuteamos tambeacutem entre as motivaccedilotildees a forte pressatildeo pela qual os profissionais satildeo submetidos para desenvolver algum tipo de trabalho desse feitio Se em um curriacuteculo profissional por exemplo existe doaccedilatildeo ao outro possivelmente este candidato possa tambeacutem se doar agrave empresa se o candidato jaacute realizou praacuteticas diversas mesmo que ele esteja se oferecendo

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ao mercado de trabalho pela primeira vez ele jaacute passou por experiecircncias anteriores (nada melhor neste caso entatildeo do que se treinar com aqueles que aparentemente natildeo reclamam das experiecircncias das quais satildeo partes)

Frente a tais caracteriacutesticas e motivaccedilotildees identificamos na concepccedilatildeo do voluntariado uma polarizaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo da relaccedilatildeo haacute o doador coisa ou serviccedilo doado e aquele desprovido que recebe Cria-se a imagem de que o doador eacute bom por excelecircncia que ele tem algo de muito especial para entregar agravequele que estaacute na outra ponta em uma situaccedilatildeo nem sempre muito confortaacutevel que por sua vez cumpre seu papel ao receber bem ou mal a coisa doada Aleacutem disso ouve-se desde crianccedila a afirmativa que basta plantar uma sementinha para mudar o mundohellip E entatildeo cada um deve fazer a sua parte para melhorar a situaccedilatildeo mundial em relaccedilatildeo a tudo Campanhas educativas em prol do meio ambiente estatildeo aiacute use sacola reciclaacutevel economize aacutegua e energia eleacutetrica escolha produtos sem agrotoacutexicos opte pelo uso de combustiacuteveis natildeo poluentes etc Concordamos evidentemente com todas essas campanhas mas ao mesmo tempo eacute impressionante ver o descaso e a pouca repercussatildeo com os desastres por exemplo provocados pelas empresas ou com o nuacutemero exorbitante de luzes acesas para celebrar o Natal Tambeacutem eacute importante lembrar que 80 das emissotildees de poluentes na atmosfera satildeo produzidas pelos paiacuteses do G-20 que conforme Sanson (2008) ao colocarem no topo da agenda a resoluccedilatildeo da crise econocircmica negligenciam a crise ecoloacutegica

Mas por que ainda assim eacute importante que individualmente tenhamos praacuteticas solidaacuterias e voluntaacuterias Qual eacute a loacutegica de transformaccedilatildeo ou manutenccedilatildeo social que elas (tais praacuteticas) sustentam Haacute o aliacutevio de tensotildees (Caldana amp Figueiredo 2008) para ambos lados naqueles que praticam o ato solidaacuterio e sentem-se uacuteteis socialmente e naqueles que recebem atraveacutes da amenizaccedilatildeo de algum possiacutevel sofrimento Natildeo seriam portanto funcionais aos interesses neoliberais e por conseguinte mais um instrumental que favorece a manutenccedilatildeo do status quo (Montantildeo 2005)

Final de semana o descanso ou a corporificaccedilatildeo da pobreza

Iniciamos o artigo discutindo o papel do conhecimento cientiacutefico frente agrave transformaccedilatildeo da realidade Vimos que os conceitos e teorias que circulam natildeo satildeo verdades absolutas mas sim construccedilotildees histoacutericas que precisam sempre ser contextualizadas

Isso porque o conhecimento cientiacutefico que alimenta conceitos praacuteticas poliacuteticas sociais etc tambeacutem eacute produzido sobre determinados interesses e jogos de poder Prova disso eacute a existecircncia de poucos trabalhos acadecircmicos que abordam a pobreza enquanto fenocircmeno e conceito com o vieacutes eou o discurso daqueles que estatildeo nesta condiccedilatildeo socioeconocircmica

Do mesmo modo mas com outra amplitude vecirc-se a forma como o Banco Mundial e o Fundo Monetaacuterio Internacional lidam com os Estados Nacionais com a pobreza e com os enquadrados como ldquopobresrdquo Problematizamos as afirmaccedilotildees sobre a importacircncia da reduccedilatildeo do tamanho do Estado para o desenvolvimento econocircmico do paiacutes e as suas consequecircncias com o enxugamento dos direitos sociais jaacute conquistados pelas populaccedilotildees fato que parece muito mais fomentar um ciclo de dependecircncia do que de autonomia e empoderamento

Dentro desta loacutegica de enxugamento estatal abordamos o surgimento e o fortalecimento do Terceiro Setor movimentando rios de dinheiro e alguns desvios de curso uma vez que ele eacute divulgado como a possibilidade da sociedade se articular em torno do bem comum da humanidade A bondade comprada ou natildeo eacute fundamental pois como eacute sugerido pelos discursos hegemocircnicos com um ldquomutiratildeo de voluntaacuteriosrdquo pode-se salvar boa parte das pessoas necessitadas Dessas pessoas chamadas por muitos como ldquobeneficiadasrdquo espera-se a aceitaccedilatildeo incondicional de sua situaccedilatildeo no mundo da ajuda recebida e da bondade posta a seu benefiacutecio Qualquer desvio eacute sinal de ingratidatildeo eou motivo para a culpabilizaccedilatildeo daquela pessoa que natildeo soube se preparar que natildeo soube se vender ao mercado de trabalho O fantasma do invaacutelido do desprovido do vagabundo do preguiccediloso segue entre noacutes e alimenta discursos disciplinadores e forccedilas repressivas

Ao analisar portanto o modo como a ldquopobrezardquo eacute retratada no mundo social percebe-se a existecircncia de uma espeacutecie de corroboraccedilatildeo contiacutenua vinda de diferentes atores sociais dessa condiccedilatildeo socioeconocircmica atraveacutes da naturalizaccedilatildeo de praacuteticas e discursos que favorece a aceitaccedilatildeo e apatia social perante a problemaacutetica Sabe-se que a pobreza poliacutetica eacute a encarnaccedilatildeo mais proacutexima dos efeitos de poder de uma sociedade opressiva Concordamos com Demo (2002) quando ele diz que o alimento a fonte de tal pobreza se daacute por diferentes caminhos pela ldquovia do cultivo da ignoracircncia para alimentar e manter a massa de manobrardquo pela ldquovia das ajudas que soacute ajudam a marginalizar ainda mais os marginalizadosrdquo pela ldquovia da compreensatildeo truncada da pobreza como simples carecircncia material para evitar a subelevaccedilatildeo dos excluiacutedosrdquo (p 12)

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Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546

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assim eacute necessaacuterio olhar para a vida cotidiana e para as relaccedilotildees nela estabelecidas para compreender os modos de pensamento que influenciam nosso agir Foi o que fizemos para a construccedilatildeo do presente artigo As proposiccedilotildees que abrem as discussotildees do trabalho satildeo elementos ou provocaccedilotildees construiacutedas a partir da vivecircncia dos pesquisadores resultantes das observaccedilotildees assistemaacuteticas extraiacutedas do cotidiano que em alguma medida ilustram os conhecimentos ou representaccedilotildees circulantes no meio social Nessa perspectiva o estudo das formas simboacutelicas ou seja de accedilotildees e falas de imagens e textos produzidos pelos sujeitos ganha consideraacutevel importacircncia Isso porque tais produccedilotildees sociais nos fornecem informaccedilotildees sobre o alimento que nutre nosso modo de pensaragir

Analisar o que constitui a representaccedilatildeo da representaccedilatildeo ou ateacute mesmo pensar o pensamento requer uma abordagem criacutetica e natildeo ingecircnua uma vez que as formas simboacutelicas podem estar servindo para a manutenccedilatildeo de situaccedilotildees desiguais e opressivas Dessa maneira o estudo da Ideologia pode nos auxiliar na construccedilatildeo de um pensamento criacutetico e libertador Importante lembrar que o conceito de ideologia tem muitos significados mas aqui ele eacute compreendido como as maneiras que ldquoo sentido mobilizado pelas formas simboacutelicas serve para estabelecer e sustentar as relaccedilotildees de dominaccedilatildeordquo (Thompson 1995 p 79) Estabelecer significa que o sentido pode criar ativamente e instituir relaccedilotildees de dominaccedilatildeo enquanto que sustentar significa que o sentido pode servir para manter e reproduzir relaccedilotildees de dominaccedilatildeo atraveacutes de um contiacutenuo processo de produccedilatildeo e recepccedilatildeo de formas simboacutelicas A naturalizaccedilatildeo por exemplo tem sido uma estrateacutegia recorrente e eficaz para perpetuaccedilatildeo de situaccedilotildees opressivas ou conforme Freire (1996) uma das principais armas na manutenccedilatildeo de situaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de acobertamento da realidade A naturalizaccedilatildeo enquanto um modos operandis da Ideologia se produz quando um estado de coisas que eacute uma criaccedilatildeo social e histoacuterica de grupos humanos em certo momento histoacuterico-social eacute tratado e abordado como um acontecimento natural ou como um resultado inevitaacutevel de caracteriacutesticas naturais (Thompson 1995) Essa eacute a ldquoforccedila da ideologia fatalista dominante que estimula a imobilidade dos oprimidos e sua acomodaccedilatildeo agrave realidade injusta necessaacuteria ao movimento dos dominadoresrdquo (Freire 2000 p 43)

Compomos ao longo do artigo uma espeacutecie de diaacuterio da pobreza a partir da problematizaccedilatildeo de proposiccedilotildees que circulam no mundo social De modo metafoacuterico ilustramos a dinacircmica cotidiana onde a pobreza e as praacuteticas em torno dela satildeo perpetuadas Em um cotidiano atarefado em que a reflexatildeo criacutetica

natildeo eacute prioridade passamos progressivamente a aceitar certos problemas sociais a consideraacute-los inclusive como normais ou como o esperado Legitimamos dia apoacutes dia a manutenccedilatildeo de situaccedilotildees desumanas decorrentes da desigualdade social e da pobreza Lutar contra isto significa natildeo reproduzir de forma ingecircnua as verdades absolutas mas sim estranhar e reagir frente aos fatos E eacute com esta intencionalidade que iniciamos a discussatildeo da semana

Segunda-feira relativize o conceito de pobreza a tal ponto que seja impossiacutevel saber quem

de fato a vivencia

Pesquisadores ligados a ONU advertem que em 2020 a pobreza urbana chegaraacute a 45 ou 50 do total dos moradores das cidades (Davis 2006) Poreacutem os Indicadores do Desenvolvimento Mundial para 2007 produzidos pelo Banco Mundial (2008) apontam para a diminuiccedilatildeo das taxas mundiais de pobreza nos quatro primeiros anos do seacuteculo XXI Afinal qual dado retrata o problema da pobreza no mundo

O debate em torno de quem satildeo os pobres e o que eacute a pobreza tem ganhado espaccedilo na agenda puacuteblica e no meio acadecircmico O cidadatildeo que estiver atento aos jornais aos noticiaacuterios e agraves publicaccedilotildees desta aacuterea facilmente ficaraacute desnorteado com o excesso de informaccedilotildees que alimentam o cotidiano sobre esse assunto Exemplo disso satildeo os inuacutemeros indicadores e conceitos agraves vezes contraditoacuterios que sistematicamente satildeo lanccedilados ingenuamente ou natildeo ao puacuteblico em geral No caso anterior seraacute que as agecircncias utilizaram os mesmos conceitos para fazerem tais afirmativas A condiccedilatildeo de pobreza retratada e contabilizada eacute a mesma Aparentemente natildeo Sendo assim nosso primeiro ponto de reflexatildeo abarca os conceitos que utilizamos em especial as implicaccedilotildees que decorrem ao se escolher uma concepccedilatildeo em detrimento de outras

De forma abrangente um conceito pode ser compreendido como um termo que se refere a algo em particular a um predicado a uma caracteriacutestica ligada a algueacutem ou a alguma coisa ldquopossuir um conceito eacute ter a capacidade de usar um termo que o exprima ao fazer juiacutezosrdquo (Blackburn 1997 p 66) E aqui haacute dois pontos importantes para a anaacutelise do conceito de pobreza pois essa capacidade relaciona-se tanto com a aplicabilidade do termo como com a compreensatildeo das consequecircncias de sua aplicaccedilatildeo

A partir do contato com os estudos a respeito da pobreza podemos supor a existecircncia de duas principais linhas-base para o pensamento e a definiccedilatildeo

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desse conceito De um lado haacute as abordagens de subsistecircncia ou de pobreza absoluta definidas a partir de criteacuterios objetivos e precisos de outro a pobreza compreendida como fenocircmeno multidimensional em que se assume a complexidade das experiecircncias no centro da sua anaacutelise No que seraacute que elas se diferem ou se assemelham Por que tantos conceitos para falar sobre os mesmos fenocircmenos

Na linha do que tem se considerado miacutenimo necessaacuterio para sobreviver encontramos a abordagem chamada de subsistecircncia equivalente ao que hoje em dia chama-se de pobreza absoluta Essa condiccedilatildeo estaacute relacionada agraves questotildees de sobrevivecircncia fiacutesica ou seja ao ldquonatildeo-atendimento das necessidades vinculadas ao miacutenimo vitalrdquo (Rocha 2008 p 11) indispensaacutevel para o exerciacutecio das atividades humanas nos variados papeacuteis sociais que o sujeito atua como no trabalho na famiacutelia etc Esta perspectiva de anaacutelise unidimensional tem sofrido ataques devido a dois fatores primeiramente pelo reducionismo bioloacutegico-alimentar que ela atribui agraves necessidades do sujeito e aleacutem disso pelo fato de que natildeo haacute como estabelecer um criteacuterio absoluto em relaccedilatildeo agrave quantidade de energias e de nutrientes que os seres humanos necessitam para se manterem vivos pois tal aspecto depende de inuacutemeros fatores tais como o lugar as condiccedilotildees climaacuteticas as atividades realizadas etc

Jaacute na concepccedilatildeo ligada agraves necessidades baacutesicas comeccedila a haver uma mudanccedila no entendimento do que eacute o miacutenimo e passa-se a lidar com a pobreza enquanto um fenocircmeno multifacetado Esse conceito inclui no campo das necessidades de sobrevivecircncia dois conjuntos de fatores eacute necessaacuterio um miacutenimo de condiccedilotildees para o consumo privado como comida roupas equipamentos medicamentos etc e um outro grupo de necessidades relacionado aos serviccedilos essenciais providos para a sociedade como aacutegua potaacutevel sauacutede educaccedilatildeo transporte puacuteblico etc (Rocha 2006)

O conceito de privaccedilatildeo (ou pobreza) relativa por sua vez reconhece a existecircncia da interdependecircncia entre as estruturas social e institucional vigentes no cotidiano ou seja considera que a relaccedilatildeo entre privaccedilatildeo e renda eacute mutaacutevel ao longo do tempo e entre as comunidades que ocupam diferentes territoacuterios (Codes 2008) Sendo assim a pobreza passa a ser definida em funccedilatildeo do contexto social em que se vive a partir da consideraccedilatildeo do padratildeo de vida e da maneira como as necessidades satildeo suprimidas em certa realidade socioeconocircmica Ser pobre significa portanto natildeo poder obter determinados produtos ou condiccedilotildees e isto manteacutem o sujeito distante da possibilidade de ocupar

determinados papeacuteis sociais esperados dele enquanto membro da sociedade (Rocha 2006)

Um passo aleacutem encontramos outras definiccedilotildees ainda mais relativas e multifacetadas Sen (2000) por exemplo propotildee o entendimento da pobreza como privaccedilatildeo de capacidades baacutesicas que satildeo intrinsecamente importantes para o ser humano O autor chama tambeacutem a atenccedilatildeo para o fato de que conceitos que tomam a renda como criteacuterio exclusivo de anaacutelise adotam uma visatildeo tipicamente instrumental Na verdade diz ele embora a baixa renda seja uma das maiores causas da pobreza e da privaccedilatildeo das capacidades de uma pessoa a renda em si natildeo eacute o uacutenico instrumento de geraccedilatildeo de capacidades

O perigo das definiccedilotildees nas quais a relatividade do fenocircmeno eacute considerada ponto chave eacute o fato de que se pode cair em uma armadilha ideoloacutegica ao natildeo se conseguir mais nomear ou quantificar quem eacute pobre Conforme Telles (2001) ao se radicalizar o discurso da cidadania pobre e pobreza deixam de existir

O que existe isso sim satildeo indiviacuteduos e grupos sociais em situaccedilotildees particulares de denegaccedilatildeo de direitos A indiferenciaccedilatildeo do pobre remete a uma esfera homogecircnea das necessidades na qual o indiviacuteduo desaparece como identidade vontade e accedilatildeo pois eacute plenamente dominado pelas circunstacircncias que o determinam na sua impotecircncia (Telles 2001 pp 51-52)

Por outro lado as concepccedilotildees que consideram a multidimensionalidade do fenocircmeno da pobreza puderam chamar a atenccedilatildeo para fatores antes negados e que alimentam o ciacuterculo vicioso no qual a pobreza se insere Ou seja a pobreza eacute muito mais complexa do que os determinantes econocircmicos conseguem avaliar e medir Ela eacute sobretudo um plano constitutivo da identidade individual e social (Salama amp Destremau 1999)

Assim natildeo buscamos aqui defender uma posiccedilatildeo em detrimento de outra Apenas acreditamos ser preciso levar em consideraccedilatildeo o fato de que dependendo do ponto de partida ou seja dos conceitos e indicadores chegar-se-aacute a diferentes resultados Diante disso eacute possiacutevel que questionemos o porquecirc da realidade ser tatildeo maleaacutevel Haacute de se desconfiar das intenccedilotildees dos atores sociais quando optam por uma teoria em detrimento de outra

Sabemos que a pobreza natildeo eacute um fenocircmeno natural e imutaacutevel ao contraacuterio a pobreza e as pessoas que vivem nesta condiccedilatildeo tecircm ocupado lugares diversos conforme basicamente o conjunto de interesses e forccedilas existentes no momento histoacuterico

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que a constitui (Castel 2001 Paugam 2003) A pobreza corresponde mais a um processo do que um estado perpeacutetuo e imutaacutevel ldquoToda definiccedilatildeo estaacutetica da pobreza contribui para agrupar num mesmo conjunto populaccedilotildees cuja situaccedilatildeo eacute heterogecircnea ocultando a origem e os efeitos a longo prazo das dificuldades dos indiviacuteduos e de suas famiacuteliasrdquo (Paugam 1999 p68)

Concordamos portanto com Boaventura de Souza Santos (2008) quando ele propotildee estudar e aprender com o Sul sendo este entendido como uma metaacutefora do sofrimento humano causado pelo capitalismo Tal postura parece levantar novas possibilidades ao estudo da condiccedilatildeo de pobreza e os seus efeitos pois nada melhor do que o oprimido para falar sobre a sua situaccedilatildeo no mundo (Freire 1987) Na mesma perspectiva os estudos poacutes-colonialistas compostos por um conjunto de correntes teoacutericas e analiacuteticas trouxeram e ainda trazem a voz de paiacuteses chamados de ldquoterceiro mundordquo e a de minorias sociais como uma prioridade teoacuterico-poliacutetica na explicaccedilatildeo ou na compreensatildeo do mundo contemporacircneo Isso porque na perspectiva poacutes-colonial parte-se da ideia de que eacute a partir das margens ou das periferias que as estruturas de poder e de saber satildeo mais visiacuteveis Acreditamos ser fundamental desenvolver o interesse na geopoliacutetica do conhecimento ou seja ldquoproblematizar quem produz o conhecimento em que contexto o produz e para quem o produzrdquo (Santos 2008 p 29)

Assim as teorias quando tomadas como criaccedilatildeo e accedilatildeo humana e portanto histoacutericas e passiacuteveis de contradiccedilotildees podem nos fornecer lentes de anaacutelise do campo social que estudamos eou agimos Tais lentes focam em certos aspectos e ao mesmo tempo desfocam em outros pois a incompletude caracteriacutestica ontoloacutegica tambeacutem estaacute presente nas produccedilotildees humanas Poreacutem mesmo se considerarmos e aceitarmos tal fato natildeo podemos esquecer que no meio desta rede conceitual de interesses e implicaccedilotildees ldquoa pobreza se diz de vaacuterias maneiras Ela se diz tambeacutem segundo uma multiplicidade de palavras que saturam o discurso pela sua variedade sua frequumlecircncia e sua intensidaderdquo (Bernard 2003 p103)

Terccedila-feira ensine a pescar mesmo que natildeo haja acesso ao rio ou natildeo haja peixe

Eacute quase um consenso no meio social a ideia de que natildeo devemos dar o peixe ao faminto mas sim ensinaacute-lo a pescar Isso porque ao dar o peixe estar-se-ia promovendo a cultura da dependecircncia entre os necessitados Portanto nada melhor do que programas educativos instrutivos e disciplinadores para resolver os problemas sociais do mundo Resta saber se a fome

e boa parte das mazelas sociais se resolveriam ou ao menos diminuiriam se todas as pessoas famintas fossem qualificadas profissionalmente por exemplo

Vimos no item anterior que haacute implicaccedilotildees ao se eleger um conceito em detrimento de outros e agora comeccedilamos as perceber no cotidiano das populaccedilotildees Interessante observar nesse sentido que em boa parte dos cursos de qualificaccedilatildeo profissional oferecidos gratuitamente para pessoas de baixa renda haacute um moacutedulo ou uma disciplina chamada cidadania Por que para os pobres eacute necessaacuterio ensinar o que eacute ser cidadatildeo Seraacute somente uma boa intenccedilatildeo compartilhada por inuacutemeras pessoas e instituiccedilotildees Aliaacutes enquanto muitas pessoas de um lado satildeo consideradas o ldquoalvordquo das poliacuteticas sociais algumas outras do lado oposto planejam e decidem o funcionamento dos projetos Ao colocar essas provocaccedilotildees em pauta natildeo pretendemos abordar diretamente projetos e programas sociais mas sim problematizar o papel do conhecimento que inevitavelmente os sustentam

Para discutirmos a problemaacutetica do conhecimento cientiacutefico e as praacuteticas que dele decorrem precisamos assumir de qual conceito de ciecircncia estamos partindo Nesse sentido a filosofia da ciecircncia contribui para a discussatildeo uma vez que ela nos fornece vaacuterios modelos para a compreensatildeo dela mesma (Burawoy 1990) Tomamos aqui as ideias propostas por Thomas Kuhn Esse cientista foi um dos mais relevantes da contemporaneidade a considerar as influecircncias histoacutericas e socioloacutegicas para a compreensatildeo da produccedilatildeo do conhecimento vinculando o desenvolvimento da ciecircncia agraves praacuteticas de grupos sociais Renunciou o conceito de teoria como unidade de anaacutelise da evoluccedilatildeo da ciecircncia substituindo-o pelo de paradigma Apesar de ter uma definiccedilatildeo ambiacutegua para esse termo (com 21 sentidos diferentes) de modo geral faz referecircncia a uma unidade de anaacutelise mais ampla que a teoria Para o autor paradigma eacute um conjunto de explicaccedilotildees teoacutericas sobre determinados fenocircmenos provenientes de dados empiacutericos bem como um conjunto de problemas que ainda estatildeo abertos para serem resolvidos Kuhn vai mais a fundo e diz que o conteuacutedo de determinado paradigma ultrapassa o seu caraacuteter cientiacutefico inclui tambeacutem um significado socioloacutegico pois se refere ao desenvolvimento institucional que se produz em torno do paradigma dominante Ou seja o paradigma inserido em uma rede de relaccedilotildees sociais cria estruturas de poder para evitar que o desenvolvimento da atividade cientiacutefica o ponha em risco (Aacutelvaro amp Garrido 2006)

Outro aspecto relevante conforme apontam Bauer Gaskel e Allum (2002) eacute a discussatildeo em torno

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dos interesses do conhecimento pois a produccedilatildeo cientiacutefica somente ocorre atraveacutes deles Podemos afirmar que ningueacutem consegue livrar-se dos interesses do conhecimento apesar de alguns cientistas terem certeza da sua neutralidade Ao discutir essa questatildeo Habermas (cf Bauer Gaskell amp Allum 2002 Habermas 2006) propocircs uma tipologia de interesses do conhecimento a partir da anaacutelise de alguns autores Para ele existem trecircs interesses constitutivos do conhecimento que estatildeo na base das ciecircncias ldquoempiacuterico-analiacuteticasrdquo ldquohistoacuterico-hermenecircuticasrdquo e ldquocriacuteticasrdquo

As ciecircncias empiacuterico-analiacuteticas tecircm como base um interesse no controle teacutecnico ou seja com o objetivo de obter o conhecimento cientiacutefico adotam como imperativo racional o controle sobre as condiccedilotildees materiais em que nos encontramos e a partir disso buscam aumentar nossa sauacutede e seguranccedila fiacutesica e espiritual Promovem o estudo de leis que presidem os fenocircmenos naturais Buscam a prediccedilatildeo e a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos Jaacute as ciecircncias histoacuterico-hermenecircuticas tecircm um interesse no estabelecimento de consenso e em funccedilatildeo disso tomam como imperativo a busca pela compreensatildeo intersubjetiva que somente pode ser alcanccedilada atraveacutes da linguagem comum A compreensatildeo hermenecircutica que tem como finalidade restaurar canais rompidos de comunicaccedilatildeo trabalha com duas dimensotildees (a) o elo entre a proacutepria experiecircncia de vida de algueacutem e a tradiccedilatildeo agrave qual pertence e (b) a esfera da comunicaccedilatildeo entre diferentes indiviacuteduos grupos e tradiccedilotildees O cientista em ambos os casos procura aprender a liacutengua que ele interpreta mas deve aproximar-se da interpretaccedilatildeo a partir de um ponto histoacuterico especiacutefico Ao fazer isso o pesquisador leva em consideraccedilatildeo a totalidade de interpretaccedilatildeo que jaacute estaacute presente (uma vez que o proacuteprio mundo social jaacute eacute um mundo preacute-interpretado) e entra no que se chama de ldquociacuterculo hermenecircuticordquo Eacute esse movimento que leva ao consenso entre os atores Evidentemente que esse consenso jamais seraacute absoluto pelo contraacuterio ele eacute necessariamente fluido e dinacircmico pois ele eacute conseguido atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo que evolui e continua a evoluir e modificar-se historicamente (Bauer Gaskel amp Allum 2002)

A ciecircncia perdeu muito tempo e energia com a descriccedilatildeo de delineamentos e ldquobrigasrdquo entre as metodologias Parece ficar claro inclusive que o primeiro modelo encontra-se com mais frequecircncia nas pesquisas quantitativas e o segundo nas pesquisas qualitativas Contudo ainda haacute um terceiro tipo de ciecircncia e interesses que daacute um novo colorido a essa antiga discussatildeo Habermas aponta para a possibilidade de uma ciecircncia ldquocriacuteticardquo que tem como

interesse maior a emancipaccedilatildeo Sua principal tese eacute a de que os interesses emancipatoacuterios fornecem o referencial para se avanccedilar aleacutem do conhecimento nomoloacutegico e da compreensatildeo hermenecircutica e nos permitem ldquodeterminar quando afirmaccedilotildees teoacutericas atingem regularidades invariantes da accedilatildeo social como tal e quando elas expressam relaccedilotildees ideologicamente congeladas de dependecircncia que podem em princiacutepio ser transformadasrdquo (Bauer Gaskel amp Allum 2002 p 33) Eacute atraveacutes de um processo autorreflexivo que as ciecircncias criacuteticas podem chegar a identificar estruturas condicionadoras de poder que com o ldquouso de uma comunicaccedilatildeo sistematicamente distorcida e de uma repressatildeo sutilmente legitimadardquo tendem a se naturalizar na sociedade

Mas esse projeto de ciecircncia natildeo foi e natildeo eacute uma tarefa simples Criacuteticas sobre esta proposta alertam que a proacutepria ideia de transformaccedilatildeo emancipatoacuteria da sociedade pode se transformar em uma nova forma de opressatildeo social (Santos 2008) De fato muitas das praacuteticas embasadas nesta concepccedilatildeo ou seja em nome do desenvolvimento ou da conscientizaccedilatildeo de certo grupo acabaram legitimando ideias das quais elas pretendiam romper Assim mais do que nunca adotar o princiacutepio de que ldquoa coerecircncia da criacutetica estaacute na autocriacuteticardquo (Demo 2002 p23) eacute fator determinante para a construccedilatildeo de praacuteticas emancipadoras Sempre eacute importante lembrar que praacuteticas sociais satildeo produzidas por atores inseridos em instituiccedilotildees seja na pesquisa ou no campo da intervenccedilatildeo social Se satildeo praacuteticas jamais se poderia adotar a postura de uma suposta neutralidade e imparcialidade em momento algum inclusive ao decidir quem com ela se beneficiaraacute E isso nos leva a pensar no dia de amanhatilde ou seja no papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional para o desenvolvimento de praacuteticas sociais justas e solidaacuterias

Quarta-feira lute contra a pobreza do mesmo modo que o BM e o FMI o fazem

Vimos que os conceitos satildeo produtos histoacutericos o que significa dizer que satildeo construiacutedos reproduzidos eou transformados conforme o ambiente e os jogos de poder em que estatildeo inseridos que o conhecimento produzido nas academias em especial nos nuacutecleos de pesquisa no acircmbito humano-social pode ter grande impacto na definiccedilatildeo de poliacuteticas sociais Agora pretendemos ilustrar o debate anterior inserindo na discussatildeo o papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo na construccedilatildeo do pensamento social

Nem sempre se sabe de onde vecircm as palavras e expressotildees que partilhamos e perpetuamos em nosso cotidiano Utilizamo-las muitas vezes ingenuamente

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sem perceber os efeitos das mesmas sem nos darmos conta de que os conceitos podem estar legitimando praacuteticas opostas agraves nossas intenccedilotildees Assim a questatildeo que aqui colocamos eacute a seguinte o que significa aderir e perpetuar um conceito descolado de sua histoacuteria

Considerando-se a abrangecircncia e influecircncia de certas instituiccedilotildees internacionais na dinacircmica socioeconocircmica e poliacutetica mundial buscamos refletir sobre como a questatildeo da pobreza eacute tratada pelo Banco Mundial (BM) e levantamos possiacuteveis compreensotildees sobre quais satildeo os interesses dessa instituiccedilatildeo ao utilizar o conceito pobreza e as suas recomendaccedilotildees em relaccedilatildeo a como combatecirc-la

O BM juntamente com o Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI) foi criado durante a conferecircncia de Bretton Woods em 1944 proposta pelo governo norte-americano com a intenccedilatildeo de traccedilar os contornos da nova ordem econocircmica que deveria ser instituiacuteda no poacutes-guerra Ao mesmo tempo estabeleceu-se um novo padratildeo monetaacuterio internacional centrado no doacutelar com paridade fixa com o ouro (Mattos 2001) O BM tinha como objetivo promover o investimento internacional e manter a estabilidade do cacircmbio aleacutem de tratar de problemas de balanccedilas de pagamento (Hobsbawm 1995) As regras para seu funcionamento incluiacuteram um dispositivo de captaccedilatildeo de recursos junto aos mercados financeiros com as mais baixas taxas de mercado destinados evidentemente para os paiacuteses-membro (Misoczky 2002)

Mas nem sempre essas instituiccedilotildees tiveram o mesmo papel Entre 1974 e 1975 por exemplo o FMI seguido pelo BM mudou o seu enfoque dos paiacuteses industriais desenvolvidos para os que estavam em desenvolvimento uma vez que estes uacuteltimos cambaleavam com o impacto dos preccedilos cada vez mais altos do petroacuteleo Ao aumentar passo a passo os seus empreacutestimos o FMI ampliou o alcance das condicionalidades coercitivas e ajustes estruturais que impunha aos paiacuteses que eram seus clientes Desde 1980 o BM vem atuando como importante regulador e formulador de poliacuteticas para os paiacuteses perifeacutericos e juntamente com o FMI exercendo um papel importante na disseminaccedilatildeo das poliacuteticas neoliberais (Ugaacute 2004) Sabe-se que o FMI bem como outras agecircncias internacionais de desenvolvimento impotildeem condiccedilotildees para emprestar dinheiro determinando a reestruturaccedilatildeo de oacutergatildeos de governos municipais estaduais e federais e orientando suas praacuteticas Os empreacutestimos pagam consultores internacionais que frequentemente pouco conhecem a realidade local mas conhecem muito bem os idecircnticos modelos que satildeo impostos a diferentes paiacuteses de diferentes culturas em diferentes cidades (Maricato 2006)

A reforma do Estadoestimulada pela accedilatildeo do BM e do FMI propotildee como condiccedilatildeo para o crescimento econocircmico e inserccedilatildeo na ordem mundial ajustes fiscais e estabilidade interna da moeda o que torna necessaacuterio o controle dos gastos puacuteblicos e a geraccedilatildeo de superaacutevit primaacuterio nos paiacuteses perifeacutericos para saldar juros da diacutevida externa (Costa 2006 p 157)

Em diferentes contextos mas com consequecircncias semelhantes os Estados endividados passaram a depender do mercado financeiro A autonomia na formulaccedilatildeo da poliacutetica econocircmica foi prejudicada e passou a ser cada vez mais difiacutecil cobrar impostos num mundo globalizado com a mobilidade do capital ditando as regras ldquoA necessidade de criar postos de trabalho faz com que o capital tenha um poder de barganha muito grande sobre o governo com um apelo ideoloacutegico repassado para a sociedaderdquo (Costa 2006 p 164) E quando o governo contraria as expectativas do capital podemos assistir a um conjunto de manifestaccedilotildees midiaacuteticas que afirmam e reafirmam a incompetecircncia do Estado em gerir e manter os empregos em determinada regiatildeo

O BM passou a analisar e a balizar a atuaccedilatildeo dos governos tambeacutem no acircmbito social Em consonacircncia com os princiacutepios neoliberais prescreveu reformas especialmente nas aacutereas da educaccedilatildeo e da sauacutede Aleacutem disso constatou que as despesas governamentais com os serviccedilos sociais natildeo eram eficientes pois natildeo beneficiavam quem mais precisava delas os pobres Com tal conclusatildeo passou a recomendar fortemente que os paiacuteses adotassem medidas focalizadas ou seja serviccedilos sociais para as populaccedilotildees mais necessitadas O tema da equidade foi colocado em pauta frisando que a necessidade de intervenccedilatildeo deveria ser na educaccedilatildeo primaacuteria e no atendimento preventivo na sauacutede a atenccedilatildeo baacutesica (Fonseca 1998 Misoczki 2002 Ugaacute 2004) ldquoO ensino superior e o atendimento hospitalar foram considerados secundaacuterios dentro das propostas de atuaccedilatildeo do Estado na aacuterea socialrdquo (Costa 2006 p 209)

Segundo Costa (2006) as conquistas com a universalizaccedilatildeo do acesso sem melhorar a capacidade de investimento puacuteblico na elevaccedilatildeo da qualidade dos serviccedilos ofertados para toda a populaccedilatildeo fizeram com que a classe meacutedia buscasse o mercado privado Os usuaacuterios mais pobres que foram inseridos no acesso aos serviccedilos sociais na medida em que natildeo tinham esse acesso anteriormente fizeram pouca pressatildeo para elevar a qualidade do que estavam lhes oferecendo ldquoReproduzindo a loacutegica da submissatildeo agradecem pelo fato de serem atendidos sem considerar isso como um direito de cidadaniardquo (p 212)

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Eacute a partir da naturalizaccedilatildeo da pobreza e das desigualdades que esse modelo do BM devolve o conflito para o seio de uma sociedade fragmentada na qual os atores individualizam-se ao mesmo tempo em que sujeitos coletivos perdem as identidades ldquoMuda portanto a orientaccedilatildeo da poliacutetica social nem consumos coletivos nem direitos sociais senatildeo que assistecircncia focalizada para aqueles com lsquomenor capacidade de pressatildeorsquo ou os mais lsquohumildesrsquo ou ainda os mais lsquopobresrsquordquo (Soares 2002 p 73) Assim o Estado neoliberal constroacutei uma faceta assistencialista como contrapartida de um mercado livre e o BM pode se vangloriar de suas poliacuteticas com face humana que ensinam a lutar contra a pobreza Se por um lado criam-se necessidades com a poliacutetica de ajustes por outro se trabalha no sentido humanitaacuterio de reparo dos danos com o estiacutemulo agraves poliacuteticas focalizadas Evidentemente esse processo traz consequecircncias seacuterias para o cotidiano das comunidades por um lado a aceitaccedilatildeo do fenocircmeno da pobreza sem maiores questionamentos por outro o esvaziamento do conceito de cidadania social ou seja a garantia dos direitos sociais para muito aleacutem de meras poliacuteticas compensatoacuterias (Ugaacute 2004)

Quinta-feira usufrua dos benefiacutecios do mercado em torno do sofrimento humano pois ele eacute

rentaacutevel

No item anterior discutimos o interesse de algumas instituiccedilotildees internacionais na diminuiccedilatildeo do tamanho do papel do Estado Vimos que o debate natildeo estaacute isento de interesses ao contraacuterio ele ldquoevidencia a polecircmica dentro da sociedade sobre que funccedilotildees o Estado deve realizar e qual o seu papel na prestaccedilatildeo de serviccedilos sociaisrdquo (Costa 2006 p 208) Sabemos tambeacutem que a partir da deacutecada de 1990 com a incorporaccedilatildeo continuada das recomendaccedilotildees do Consenso de Washington houve o acirramento e ampliaccedilatildeo das desigualdades bem como o surgimento de uma nova exclusatildeo social Frente a isso uma onda de praacuteticas solidaacuterias realizadas tanto por instituiccedilotildees internacionais quanto nacionais emergiu para amenizar os problemas decorrentes do ajuste estrutural O Terceiro Setor caracterizado por abrigar um conjunto amplo de organizaccedilotildees natildeo-governamentais (ONGs) como associaccedilotildees e fundaccedilotildees surge no ldquointerior (e como resultado) do processo de reestruturaccedilatildeo do capital particularmente no conjunto de reformas do Estadordquo (Montantildeo 2005) A crise e a suposta escassez de recursos serviram como justificativa para que o Estado se eximisse de sua responsabilidade social assim como para a abertura de certos serviccedilos por

entidades que se imaginava serem sem fins lucrativos e comprometidas com a sociedade

Uma pesquisa de 2005 realizada pelo Programa de Voluntaacuterios das Naccedilotildees Unidas (UNV) em parceria com o instituto Johns Hopkins revelou o movimento (e o crescimento) financeiro deste setor no Brasil A pesquisa constatou que o setor obteve investimentos da ordem de R$ 47 bilhotildees o que representou 5 do PIB nacional superando inclusive setores expressivos da economia brasileira como a induacutestria de extraccedilatildeo mineral (petroacuteleo mineacuterio de ferro gaacutes natural carvatildeo entre outros) (Bedinelli 2006 O que fazem as pessoas 2008 Zavala 2006) Mas de onde vieram tais financiamentos Quais bondades foram realizadas com este recurso

Sabemos que boa parte dos recursos utilizados nesse setor satildeo puacuteblicos na medida em que essas instituiccedilotildees satildeo financiadas direta ou indiretamente por governos Diretamente quando por exemplo as entidades com tiacutetulo de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil de Interesse Puacuteblico (OSCIPs) podem disputar recursos puacuteblicos para realizar projetos e programas especiacuteficos Indiretamente quando por meio de incentivos fiscais empresas privadas deslocam parte do que destinariam aos impostos para uma instituiccedilatildeo do Terceiro Setor Costuma-se dizer ateacute mesmo na aacuterea da Gestatildeo Social que recursos natildeo faltam o que faltam satildeo bons projetos Independente se isso eacute verdadeiro ou natildeo fato eacute que a livre competiccedilatildeo caracteriacutestica do mercado capitalista tambeacutem ocupou espaccedilos de comercializaccedilatildeo do sofrimento humano

O filme intitulado Quanto vale ou eacute por quilo de 2005 traz elementos interessantes para o debate sobre o Terceiro Setor O diretor Seacutergio Bianchi penetra no mundo das ONGS com duras criacuteticas ilustrando o caos que compotildee tal campo das intervenccedilotildees sociais Tanto no filme quanto em nosso cotidiano haacute instituiccedilotildees que disputam verbas locais e beneficiados para a realizaccedilatildeo dos projetos Frente a isso pode-se questionar se problema da pobreza eacute de fato algo a ser resolvido ou mantido Aparentemente quanto maior o tamanho da pobreza maior seraacute o tamanho dos investimentos Bianchi (2005) em uma entrevista para a Revista Eacutepoca afirma natildeo ser contra a existecircncia de tais atividades desde que natildeo sejam atividades que levem ldquoa permanecircncia desses problemas ao transformar esses problemas em mercadordquo E complementa dizendo que se o Terceiro Setor ou a miseacuteria desaparecer uma quantidade enorme de desempregados surgiraacute (Bianchi 2005)

Um estudo realizado por Pinto (2005 p 2) sobre a atuaccedilatildeo das organizaccedilotildees sociais natildeo-governamentais (caracterizadas em trecircs grupos pela autora ideoloacutegicas

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religiosas e por pura solidariedade) que realizavam accedilotildees contra a fome identificou claras limitaccedilotildees para ldquolevar a cabo com ecircxito as missotildees de substituir o Estado em accedilotildees dirigidas a populaccedilotildees carentes ou em situaccedilatildeo de riscordquo Trecircs dessas limitaccedilotildees fundamentais satildeo a natildeo-obrigaccedilatildeo da universalidade a dependecircncia de recursos e o voluntariado Isso porque as accedilotildees tendem a ser realizadas por ldquoagentes da sociedade civil como uma questatildeo pontual isolada o que natildeo permite poliacuteticas universalizantes que mudem a qualidade de vida das populaccedilotildees em situaccedilatildeo de miseacuteriardquo (p 27)

Na verdade o que se observa no cotidiano eacute que as populaccedilotildees que estatildeo em situaccedilatildeo de indigecircncia e pobreza precisam de auxiacutelios variados e continuados para romper com o ciacuterculo de dificuldades cotidianas E aqui existe um outro problema que coloca muitas vezes em risco o trabalho que pretende ser comprometido com a transformaccedilatildeo social Os projetos as intervenccedilotildees quando patrocinadas por oacutergatildeos estatais ou por empresas privadas possuem um prazo determinado a priori para a execuccedilatildeo das atividades propostas e para o uso dos recursos financeiros disponibilizados Normalmente o prazo eacute de aproximadamente 12 meses agraves vezes mais agraves vezes menos Como transformar uma situaccedilatildeo com raiacutezes histoacutericas tatildeo profundas em um curto espaccedilo de tempo Levaram-se anos na verdade seacuteculos para construirmos uma memoacuteria e um imaginaacuterio social da forma que os satildeo na atualidade Portanto pelo bem e pelo mal eacute fato eles natildeo se transformaratildeo na mesma velocidade que alguns gostariam O maacuteximo que se poderaacute fazer eacute atenuar os problemas ou como diz Demo (2002) docilizar as populaccedilotildees atendidas

Outro aspecto importante eacute a falta de paracircmetros de controle das entidades sociais Ateacute agora ldquonatildeo sabemos como gerir estas novas aacutereas pois os instrumentos de gestatildeo correspondentes ainda estatildeo engatinhandordquo (Dowbor 1999 p 8) Aleacutem disso casos de desvio de verbas corrupccedilatildeo fundaccedilotildees fantasmas etc natildeo satildeo novidades Quem deve ou deveria regular tais entidades Como podemos saber quais satildeo os resultados dos investimentos puacuteblicos nelas investidos

Embora a situaccedilatildeo social do Brasil tenha melhorado nos uacuteltimos anos (Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2008 2009) temos ainda um panorama grave e urgente Apoacutes a deacutecada de 1990 o que se fez foi afirmar e reafirmar a natildeo constituiccedilatildeo de uma rede universal de ldquoproteccedilatildeo social que explicite o dever do Estado na garantia dos direitos sociaisrdquo Na verdade foi o oposto que aconteceu Houve um retrocesso a uma ldquoconcepccedilatildeo de que o bem-estar pertence ao acircmbito do privadordquo a comunidades locais

as instituiccedilotildees de cunho religioso e filantroacutepico (Soares 2005 p 12) O plano era de que estas instituiccedilotildees tomadas pela bondade humana estabeleceriam uma rede de solidariedade para proteger e salvaguardar os pobres De certo modo o plano tem dado certo basta somente saber para quem

Sexta-feira pratique o voluntariado e regojize-se pelo aliacutevio de sua consciecircncia

Nos dias atuais a accedilatildeo voluntaacuteria tem sido reconhecida como praacutetica importante em discursos e planejamentos que visam agrave intervenccedilatildeo ou mudanccedila social No terceiro setor tal praacutetica eacute incentivada por inuacutemeras instituiccedilotildees em especial pela ONG Parceiros Voluntaacuterios (RS) Instituto Voluntaacuterios em Accedilatildeo (SC) e Portal do Voluntaacuterio (Internet) Tamanha eacute a importacircncia do assunto que a ONU lanccedilou um dia em comemoraccedilatildeo agrave praacutetica e aos praticantes ndash Dia Internacional do Voluntariado ndash fixado no dia 05 de dezembro

Mas o que eacute ser voluntaacuterio Segundo a definiccedilatildeo da ONG Parceiros Voluntaacuterios (2008) o voluntariado eacute aquilo que toda pessoa ou organizaccedilatildeo faz motivado pelos valores de participaccedilatildeo e solidariedade para contribuir com as causas de interesse social e comunitaacuterio Para tanto ldquoo voluntaacuterio disponibiliza seu conhecimento tempo e emoccedilatildeo de maneira espontacircnea e natildeo-remuneradardquo

Contudo nem sempre encontramos boas experiecircncias associadas a esse tipo de trabalho Reclamaccedilotildees quanto agrave exploraccedilatildeo das pessoas ao uso de informaccedilotildees sem retorno agravequeles que as forneceram ao curto periacuteodo de envolvimento em um trabalho etc satildeo muito comuns nas comunidades e instituiccedilotildees em que recebem os voluntaacuterios Mas por que isso acontece Talvez devecircssemos refletir sobre os motivos pelos quais as pessoas procuram realizar esta praacutetica

Uma pesquisa realizada em empresas e instituiccedilotildees natildeo governamentais por Caldana e Figueiredo (2008) aponta que a busca pelo voluntariado estaacute relacionada ao aumento da estima atraveacutes da aprovaccedilatildeo e reconhecimento dos colegas de trabalho a transmissatildeo de princiacutepios religiosos ao aliacutevio das tensotildees ao incentivo midiaacutetico a diminuiccedilatildeo de culpas a superaccedilatildeo de limites pessoais entre outros fatores Incluiriacuteamos tambeacutem entre as motivaccedilotildees a forte pressatildeo pela qual os profissionais satildeo submetidos para desenvolver algum tipo de trabalho desse feitio Se em um curriacuteculo profissional por exemplo existe doaccedilatildeo ao outro possivelmente este candidato possa tambeacutem se doar agrave empresa se o candidato jaacute realizou praacuteticas diversas mesmo que ele esteja se oferecendo

Accorssi A Scarparo H amp Guareschi P A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento

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ao mercado de trabalho pela primeira vez ele jaacute passou por experiecircncias anteriores (nada melhor neste caso entatildeo do que se treinar com aqueles que aparentemente natildeo reclamam das experiecircncias das quais satildeo partes)

Frente a tais caracteriacutesticas e motivaccedilotildees identificamos na concepccedilatildeo do voluntariado uma polarizaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo da relaccedilatildeo haacute o doador coisa ou serviccedilo doado e aquele desprovido que recebe Cria-se a imagem de que o doador eacute bom por excelecircncia que ele tem algo de muito especial para entregar agravequele que estaacute na outra ponta em uma situaccedilatildeo nem sempre muito confortaacutevel que por sua vez cumpre seu papel ao receber bem ou mal a coisa doada Aleacutem disso ouve-se desde crianccedila a afirmativa que basta plantar uma sementinha para mudar o mundohellip E entatildeo cada um deve fazer a sua parte para melhorar a situaccedilatildeo mundial em relaccedilatildeo a tudo Campanhas educativas em prol do meio ambiente estatildeo aiacute use sacola reciclaacutevel economize aacutegua e energia eleacutetrica escolha produtos sem agrotoacutexicos opte pelo uso de combustiacuteveis natildeo poluentes etc Concordamos evidentemente com todas essas campanhas mas ao mesmo tempo eacute impressionante ver o descaso e a pouca repercussatildeo com os desastres por exemplo provocados pelas empresas ou com o nuacutemero exorbitante de luzes acesas para celebrar o Natal Tambeacutem eacute importante lembrar que 80 das emissotildees de poluentes na atmosfera satildeo produzidas pelos paiacuteses do G-20 que conforme Sanson (2008) ao colocarem no topo da agenda a resoluccedilatildeo da crise econocircmica negligenciam a crise ecoloacutegica

Mas por que ainda assim eacute importante que individualmente tenhamos praacuteticas solidaacuterias e voluntaacuterias Qual eacute a loacutegica de transformaccedilatildeo ou manutenccedilatildeo social que elas (tais praacuteticas) sustentam Haacute o aliacutevio de tensotildees (Caldana amp Figueiredo 2008) para ambos lados naqueles que praticam o ato solidaacuterio e sentem-se uacuteteis socialmente e naqueles que recebem atraveacutes da amenizaccedilatildeo de algum possiacutevel sofrimento Natildeo seriam portanto funcionais aos interesses neoliberais e por conseguinte mais um instrumental que favorece a manutenccedilatildeo do status quo (Montantildeo 2005)

Final de semana o descanso ou a corporificaccedilatildeo da pobreza

Iniciamos o artigo discutindo o papel do conhecimento cientiacutefico frente agrave transformaccedilatildeo da realidade Vimos que os conceitos e teorias que circulam natildeo satildeo verdades absolutas mas sim construccedilotildees histoacutericas que precisam sempre ser contextualizadas

Isso porque o conhecimento cientiacutefico que alimenta conceitos praacuteticas poliacuteticas sociais etc tambeacutem eacute produzido sobre determinados interesses e jogos de poder Prova disso eacute a existecircncia de poucos trabalhos acadecircmicos que abordam a pobreza enquanto fenocircmeno e conceito com o vieacutes eou o discurso daqueles que estatildeo nesta condiccedilatildeo socioeconocircmica

Do mesmo modo mas com outra amplitude vecirc-se a forma como o Banco Mundial e o Fundo Monetaacuterio Internacional lidam com os Estados Nacionais com a pobreza e com os enquadrados como ldquopobresrdquo Problematizamos as afirmaccedilotildees sobre a importacircncia da reduccedilatildeo do tamanho do Estado para o desenvolvimento econocircmico do paiacutes e as suas consequecircncias com o enxugamento dos direitos sociais jaacute conquistados pelas populaccedilotildees fato que parece muito mais fomentar um ciclo de dependecircncia do que de autonomia e empoderamento

Dentro desta loacutegica de enxugamento estatal abordamos o surgimento e o fortalecimento do Terceiro Setor movimentando rios de dinheiro e alguns desvios de curso uma vez que ele eacute divulgado como a possibilidade da sociedade se articular em torno do bem comum da humanidade A bondade comprada ou natildeo eacute fundamental pois como eacute sugerido pelos discursos hegemocircnicos com um ldquomutiratildeo de voluntaacuteriosrdquo pode-se salvar boa parte das pessoas necessitadas Dessas pessoas chamadas por muitos como ldquobeneficiadasrdquo espera-se a aceitaccedilatildeo incondicional de sua situaccedilatildeo no mundo da ajuda recebida e da bondade posta a seu benefiacutecio Qualquer desvio eacute sinal de ingratidatildeo eou motivo para a culpabilizaccedilatildeo daquela pessoa que natildeo soube se preparar que natildeo soube se vender ao mercado de trabalho O fantasma do invaacutelido do desprovido do vagabundo do preguiccediloso segue entre noacutes e alimenta discursos disciplinadores e forccedilas repressivas

Ao analisar portanto o modo como a ldquopobrezardquo eacute retratada no mundo social percebe-se a existecircncia de uma espeacutecie de corroboraccedilatildeo contiacutenua vinda de diferentes atores sociais dessa condiccedilatildeo socioeconocircmica atraveacutes da naturalizaccedilatildeo de praacuteticas e discursos que favorece a aceitaccedilatildeo e apatia social perante a problemaacutetica Sabe-se que a pobreza poliacutetica eacute a encarnaccedilatildeo mais proacutexima dos efeitos de poder de uma sociedade opressiva Concordamos com Demo (2002) quando ele diz que o alimento a fonte de tal pobreza se daacute por diferentes caminhos pela ldquovia do cultivo da ignoracircncia para alimentar e manter a massa de manobrardquo pela ldquovia das ajudas que soacute ajudam a marginalizar ainda mais os marginalizadosrdquo pela ldquovia da compreensatildeo truncada da pobreza como simples carecircncia material para evitar a subelevaccedilatildeo dos excluiacutedosrdquo (p 12)

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Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546

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desse conceito De um lado haacute as abordagens de subsistecircncia ou de pobreza absoluta definidas a partir de criteacuterios objetivos e precisos de outro a pobreza compreendida como fenocircmeno multidimensional em que se assume a complexidade das experiecircncias no centro da sua anaacutelise No que seraacute que elas se diferem ou se assemelham Por que tantos conceitos para falar sobre os mesmos fenocircmenos

Na linha do que tem se considerado miacutenimo necessaacuterio para sobreviver encontramos a abordagem chamada de subsistecircncia equivalente ao que hoje em dia chama-se de pobreza absoluta Essa condiccedilatildeo estaacute relacionada agraves questotildees de sobrevivecircncia fiacutesica ou seja ao ldquonatildeo-atendimento das necessidades vinculadas ao miacutenimo vitalrdquo (Rocha 2008 p 11) indispensaacutevel para o exerciacutecio das atividades humanas nos variados papeacuteis sociais que o sujeito atua como no trabalho na famiacutelia etc Esta perspectiva de anaacutelise unidimensional tem sofrido ataques devido a dois fatores primeiramente pelo reducionismo bioloacutegico-alimentar que ela atribui agraves necessidades do sujeito e aleacutem disso pelo fato de que natildeo haacute como estabelecer um criteacuterio absoluto em relaccedilatildeo agrave quantidade de energias e de nutrientes que os seres humanos necessitam para se manterem vivos pois tal aspecto depende de inuacutemeros fatores tais como o lugar as condiccedilotildees climaacuteticas as atividades realizadas etc

Jaacute na concepccedilatildeo ligada agraves necessidades baacutesicas comeccedila a haver uma mudanccedila no entendimento do que eacute o miacutenimo e passa-se a lidar com a pobreza enquanto um fenocircmeno multifacetado Esse conceito inclui no campo das necessidades de sobrevivecircncia dois conjuntos de fatores eacute necessaacuterio um miacutenimo de condiccedilotildees para o consumo privado como comida roupas equipamentos medicamentos etc e um outro grupo de necessidades relacionado aos serviccedilos essenciais providos para a sociedade como aacutegua potaacutevel sauacutede educaccedilatildeo transporte puacuteblico etc (Rocha 2006)

O conceito de privaccedilatildeo (ou pobreza) relativa por sua vez reconhece a existecircncia da interdependecircncia entre as estruturas social e institucional vigentes no cotidiano ou seja considera que a relaccedilatildeo entre privaccedilatildeo e renda eacute mutaacutevel ao longo do tempo e entre as comunidades que ocupam diferentes territoacuterios (Codes 2008) Sendo assim a pobreza passa a ser definida em funccedilatildeo do contexto social em que se vive a partir da consideraccedilatildeo do padratildeo de vida e da maneira como as necessidades satildeo suprimidas em certa realidade socioeconocircmica Ser pobre significa portanto natildeo poder obter determinados produtos ou condiccedilotildees e isto manteacutem o sujeito distante da possibilidade de ocupar

determinados papeacuteis sociais esperados dele enquanto membro da sociedade (Rocha 2006)

Um passo aleacutem encontramos outras definiccedilotildees ainda mais relativas e multifacetadas Sen (2000) por exemplo propotildee o entendimento da pobreza como privaccedilatildeo de capacidades baacutesicas que satildeo intrinsecamente importantes para o ser humano O autor chama tambeacutem a atenccedilatildeo para o fato de que conceitos que tomam a renda como criteacuterio exclusivo de anaacutelise adotam uma visatildeo tipicamente instrumental Na verdade diz ele embora a baixa renda seja uma das maiores causas da pobreza e da privaccedilatildeo das capacidades de uma pessoa a renda em si natildeo eacute o uacutenico instrumento de geraccedilatildeo de capacidades

O perigo das definiccedilotildees nas quais a relatividade do fenocircmeno eacute considerada ponto chave eacute o fato de que se pode cair em uma armadilha ideoloacutegica ao natildeo se conseguir mais nomear ou quantificar quem eacute pobre Conforme Telles (2001) ao se radicalizar o discurso da cidadania pobre e pobreza deixam de existir

O que existe isso sim satildeo indiviacuteduos e grupos sociais em situaccedilotildees particulares de denegaccedilatildeo de direitos A indiferenciaccedilatildeo do pobre remete a uma esfera homogecircnea das necessidades na qual o indiviacuteduo desaparece como identidade vontade e accedilatildeo pois eacute plenamente dominado pelas circunstacircncias que o determinam na sua impotecircncia (Telles 2001 pp 51-52)

Por outro lado as concepccedilotildees que consideram a multidimensionalidade do fenocircmeno da pobreza puderam chamar a atenccedilatildeo para fatores antes negados e que alimentam o ciacuterculo vicioso no qual a pobreza se insere Ou seja a pobreza eacute muito mais complexa do que os determinantes econocircmicos conseguem avaliar e medir Ela eacute sobretudo um plano constitutivo da identidade individual e social (Salama amp Destremau 1999)

Assim natildeo buscamos aqui defender uma posiccedilatildeo em detrimento de outra Apenas acreditamos ser preciso levar em consideraccedilatildeo o fato de que dependendo do ponto de partida ou seja dos conceitos e indicadores chegar-se-aacute a diferentes resultados Diante disso eacute possiacutevel que questionemos o porquecirc da realidade ser tatildeo maleaacutevel Haacute de se desconfiar das intenccedilotildees dos atores sociais quando optam por uma teoria em detrimento de outra

Sabemos que a pobreza natildeo eacute um fenocircmeno natural e imutaacutevel ao contraacuterio a pobreza e as pessoas que vivem nesta condiccedilatildeo tecircm ocupado lugares diversos conforme basicamente o conjunto de interesses e forccedilas existentes no momento histoacuterico

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que a constitui (Castel 2001 Paugam 2003) A pobreza corresponde mais a um processo do que um estado perpeacutetuo e imutaacutevel ldquoToda definiccedilatildeo estaacutetica da pobreza contribui para agrupar num mesmo conjunto populaccedilotildees cuja situaccedilatildeo eacute heterogecircnea ocultando a origem e os efeitos a longo prazo das dificuldades dos indiviacuteduos e de suas famiacuteliasrdquo (Paugam 1999 p68)

Concordamos portanto com Boaventura de Souza Santos (2008) quando ele propotildee estudar e aprender com o Sul sendo este entendido como uma metaacutefora do sofrimento humano causado pelo capitalismo Tal postura parece levantar novas possibilidades ao estudo da condiccedilatildeo de pobreza e os seus efeitos pois nada melhor do que o oprimido para falar sobre a sua situaccedilatildeo no mundo (Freire 1987) Na mesma perspectiva os estudos poacutes-colonialistas compostos por um conjunto de correntes teoacutericas e analiacuteticas trouxeram e ainda trazem a voz de paiacuteses chamados de ldquoterceiro mundordquo e a de minorias sociais como uma prioridade teoacuterico-poliacutetica na explicaccedilatildeo ou na compreensatildeo do mundo contemporacircneo Isso porque na perspectiva poacutes-colonial parte-se da ideia de que eacute a partir das margens ou das periferias que as estruturas de poder e de saber satildeo mais visiacuteveis Acreditamos ser fundamental desenvolver o interesse na geopoliacutetica do conhecimento ou seja ldquoproblematizar quem produz o conhecimento em que contexto o produz e para quem o produzrdquo (Santos 2008 p 29)

Assim as teorias quando tomadas como criaccedilatildeo e accedilatildeo humana e portanto histoacutericas e passiacuteveis de contradiccedilotildees podem nos fornecer lentes de anaacutelise do campo social que estudamos eou agimos Tais lentes focam em certos aspectos e ao mesmo tempo desfocam em outros pois a incompletude caracteriacutestica ontoloacutegica tambeacutem estaacute presente nas produccedilotildees humanas Poreacutem mesmo se considerarmos e aceitarmos tal fato natildeo podemos esquecer que no meio desta rede conceitual de interesses e implicaccedilotildees ldquoa pobreza se diz de vaacuterias maneiras Ela se diz tambeacutem segundo uma multiplicidade de palavras que saturam o discurso pela sua variedade sua frequumlecircncia e sua intensidaderdquo (Bernard 2003 p103)

Terccedila-feira ensine a pescar mesmo que natildeo haja acesso ao rio ou natildeo haja peixe

Eacute quase um consenso no meio social a ideia de que natildeo devemos dar o peixe ao faminto mas sim ensinaacute-lo a pescar Isso porque ao dar o peixe estar-se-ia promovendo a cultura da dependecircncia entre os necessitados Portanto nada melhor do que programas educativos instrutivos e disciplinadores para resolver os problemas sociais do mundo Resta saber se a fome

e boa parte das mazelas sociais se resolveriam ou ao menos diminuiriam se todas as pessoas famintas fossem qualificadas profissionalmente por exemplo

Vimos no item anterior que haacute implicaccedilotildees ao se eleger um conceito em detrimento de outros e agora comeccedilamos as perceber no cotidiano das populaccedilotildees Interessante observar nesse sentido que em boa parte dos cursos de qualificaccedilatildeo profissional oferecidos gratuitamente para pessoas de baixa renda haacute um moacutedulo ou uma disciplina chamada cidadania Por que para os pobres eacute necessaacuterio ensinar o que eacute ser cidadatildeo Seraacute somente uma boa intenccedilatildeo compartilhada por inuacutemeras pessoas e instituiccedilotildees Aliaacutes enquanto muitas pessoas de um lado satildeo consideradas o ldquoalvordquo das poliacuteticas sociais algumas outras do lado oposto planejam e decidem o funcionamento dos projetos Ao colocar essas provocaccedilotildees em pauta natildeo pretendemos abordar diretamente projetos e programas sociais mas sim problematizar o papel do conhecimento que inevitavelmente os sustentam

Para discutirmos a problemaacutetica do conhecimento cientiacutefico e as praacuteticas que dele decorrem precisamos assumir de qual conceito de ciecircncia estamos partindo Nesse sentido a filosofia da ciecircncia contribui para a discussatildeo uma vez que ela nos fornece vaacuterios modelos para a compreensatildeo dela mesma (Burawoy 1990) Tomamos aqui as ideias propostas por Thomas Kuhn Esse cientista foi um dos mais relevantes da contemporaneidade a considerar as influecircncias histoacutericas e socioloacutegicas para a compreensatildeo da produccedilatildeo do conhecimento vinculando o desenvolvimento da ciecircncia agraves praacuteticas de grupos sociais Renunciou o conceito de teoria como unidade de anaacutelise da evoluccedilatildeo da ciecircncia substituindo-o pelo de paradigma Apesar de ter uma definiccedilatildeo ambiacutegua para esse termo (com 21 sentidos diferentes) de modo geral faz referecircncia a uma unidade de anaacutelise mais ampla que a teoria Para o autor paradigma eacute um conjunto de explicaccedilotildees teoacutericas sobre determinados fenocircmenos provenientes de dados empiacutericos bem como um conjunto de problemas que ainda estatildeo abertos para serem resolvidos Kuhn vai mais a fundo e diz que o conteuacutedo de determinado paradigma ultrapassa o seu caraacuteter cientiacutefico inclui tambeacutem um significado socioloacutegico pois se refere ao desenvolvimento institucional que se produz em torno do paradigma dominante Ou seja o paradigma inserido em uma rede de relaccedilotildees sociais cria estruturas de poder para evitar que o desenvolvimento da atividade cientiacutefica o ponha em risco (Aacutelvaro amp Garrido 2006)

Outro aspecto relevante conforme apontam Bauer Gaskel e Allum (2002) eacute a discussatildeo em torno

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dos interesses do conhecimento pois a produccedilatildeo cientiacutefica somente ocorre atraveacutes deles Podemos afirmar que ningueacutem consegue livrar-se dos interesses do conhecimento apesar de alguns cientistas terem certeza da sua neutralidade Ao discutir essa questatildeo Habermas (cf Bauer Gaskell amp Allum 2002 Habermas 2006) propocircs uma tipologia de interesses do conhecimento a partir da anaacutelise de alguns autores Para ele existem trecircs interesses constitutivos do conhecimento que estatildeo na base das ciecircncias ldquoempiacuterico-analiacuteticasrdquo ldquohistoacuterico-hermenecircuticasrdquo e ldquocriacuteticasrdquo

As ciecircncias empiacuterico-analiacuteticas tecircm como base um interesse no controle teacutecnico ou seja com o objetivo de obter o conhecimento cientiacutefico adotam como imperativo racional o controle sobre as condiccedilotildees materiais em que nos encontramos e a partir disso buscam aumentar nossa sauacutede e seguranccedila fiacutesica e espiritual Promovem o estudo de leis que presidem os fenocircmenos naturais Buscam a prediccedilatildeo e a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos Jaacute as ciecircncias histoacuterico-hermenecircuticas tecircm um interesse no estabelecimento de consenso e em funccedilatildeo disso tomam como imperativo a busca pela compreensatildeo intersubjetiva que somente pode ser alcanccedilada atraveacutes da linguagem comum A compreensatildeo hermenecircutica que tem como finalidade restaurar canais rompidos de comunicaccedilatildeo trabalha com duas dimensotildees (a) o elo entre a proacutepria experiecircncia de vida de algueacutem e a tradiccedilatildeo agrave qual pertence e (b) a esfera da comunicaccedilatildeo entre diferentes indiviacuteduos grupos e tradiccedilotildees O cientista em ambos os casos procura aprender a liacutengua que ele interpreta mas deve aproximar-se da interpretaccedilatildeo a partir de um ponto histoacuterico especiacutefico Ao fazer isso o pesquisador leva em consideraccedilatildeo a totalidade de interpretaccedilatildeo que jaacute estaacute presente (uma vez que o proacuteprio mundo social jaacute eacute um mundo preacute-interpretado) e entra no que se chama de ldquociacuterculo hermenecircuticordquo Eacute esse movimento que leva ao consenso entre os atores Evidentemente que esse consenso jamais seraacute absoluto pelo contraacuterio ele eacute necessariamente fluido e dinacircmico pois ele eacute conseguido atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo que evolui e continua a evoluir e modificar-se historicamente (Bauer Gaskel amp Allum 2002)

A ciecircncia perdeu muito tempo e energia com a descriccedilatildeo de delineamentos e ldquobrigasrdquo entre as metodologias Parece ficar claro inclusive que o primeiro modelo encontra-se com mais frequecircncia nas pesquisas quantitativas e o segundo nas pesquisas qualitativas Contudo ainda haacute um terceiro tipo de ciecircncia e interesses que daacute um novo colorido a essa antiga discussatildeo Habermas aponta para a possibilidade de uma ciecircncia ldquocriacuteticardquo que tem como

interesse maior a emancipaccedilatildeo Sua principal tese eacute a de que os interesses emancipatoacuterios fornecem o referencial para se avanccedilar aleacutem do conhecimento nomoloacutegico e da compreensatildeo hermenecircutica e nos permitem ldquodeterminar quando afirmaccedilotildees teoacutericas atingem regularidades invariantes da accedilatildeo social como tal e quando elas expressam relaccedilotildees ideologicamente congeladas de dependecircncia que podem em princiacutepio ser transformadasrdquo (Bauer Gaskel amp Allum 2002 p 33) Eacute atraveacutes de um processo autorreflexivo que as ciecircncias criacuteticas podem chegar a identificar estruturas condicionadoras de poder que com o ldquouso de uma comunicaccedilatildeo sistematicamente distorcida e de uma repressatildeo sutilmente legitimadardquo tendem a se naturalizar na sociedade

Mas esse projeto de ciecircncia natildeo foi e natildeo eacute uma tarefa simples Criacuteticas sobre esta proposta alertam que a proacutepria ideia de transformaccedilatildeo emancipatoacuteria da sociedade pode se transformar em uma nova forma de opressatildeo social (Santos 2008) De fato muitas das praacuteticas embasadas nesta concepccedilatildeo ou seja em nome do desenvolvimento ou da conscientizaccedilatildeo de certo grupo acabaram legitimando ideias das quais elas pretendiam romper Assim mais do que nunca adotar o princiacutepio de que ldquoa coerecircncia da criacutetica estaacute na autocriacuteticardquo (Demo 2002 p23) eacute fator determinante para a construccedilatildeo de praacuteticas emancipadoras Sempre eacute importante lembrar que praacuteticas sociais satildeo produzidas por atores inseridos em instituiccedilotildees seja na pesquisa ou no campo da intervenccedilatildeo social Se satildeo praacuteticas jamais se poderia adotar a postura de uma suposta neutralidade e imparcialidade em momento algum inclusive ao decidir quem com ela se beneficiaraacute E isso nos leva a pensar no dia de amanhatilde ou seja no papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional para o desenvolvimento de praacuteticas sociais justas e solidaacuterias

Quarta-feira lute contra a pobreza do mesmo modo que o BM e o FMI o fazem

Vimos que os conceitos satildeo produtos histoacutericos o que significa dizer que satildeo construiacutedos reproduzidos eou transformados conforme o ambiente e os jogos de poder em que estatildeo inseridos que o conhecimento produzido nas academias em especial nos nuacutecleos de pesquisa no acircmbito humano-social pode ter grande impacto na definiccedilatildeo de poliacuteticas sociais Agora pretendemos ilustrar o debate anterior inserindo na discussatildeo o papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo na construccedilatildeo do pensamento social

Nem sempre se sabe de onde vecircm as palavras e expressotildees que partilhamos e perpetuamos em nosso cotidiano Utilizamo-las muitas vezes ingenuamente

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sem perceber os efeitos das mesmas sem nos darmos conta de que os conceitos podem estar legitimando praacuteticas opostas agraves nossas intenccedilotildees Assim a questatildeo que aqui colocamos eacute a seguinte o que significa aderir e perpetuar um conceito descolado de sua histoacuteria

Considerando-se a abrangecircncia e influecircncia de certas instituiccedilotildees internacionais na dinacircmica socioeconocircmica e poliacutetica mundial buscamos refletir sobre como a questatildeo da pobreza eacute tratada pelo Banco Mundial (BM) e levantamos possiacuteveis compreensotildees sobre quais satildeo os interesses dessa instituiccedilatildeo ao utilizar o conceito pobreza e as suas recomendaccedilotildees em relaccedilatildeo a como combatecirc-la

O BM juntamente com o Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI) foi criado durante a conferecircncia de Bretton Woods em 1944 proposta pelo governo norte-americano com a intenccedilatildeo de traccedilar os contornos da nova ordem econocircmica que deveria ser instituiacuteda no poacutes-guerra Ao mesmo tempo estabeleceu-se um novo padratildeo monetaacuterio internacional centrado no doacutelar com paridade fixa com o ouro (Mattos 2001) O BM tinha como objetivo promover o investimento internacional e manter a estabilidade do cacircmbio aleacutem de tratar de problemas de balanccedilas de pagamento (Hobsbawm 1995) As regras para seu funcionamento incluiacuteram um dispositivo de captaccedilatildeo de recursos junto aos mercados financeiros com as mais baixas taxas de mercado destinados evidentemente para os paiacuteses-membro (Misoczky 2002)

Mas nem sempre essas instituiccedilotildees tiveram o mesmo papel Entre 1974 e 1975 por exemplo o FMI seguido pelo BM mudou o seu enfoque dos paiacuteses industriais desenvolvidos para os que estavam em desenvolvimento uma vez que estes uacuteltimos cambaleavam com o impacto dos preccedilos cada vez mais altos do petroacuteleo Ao aumentar passo a passo os seus empreacutestimos o FMI ampliou o alcance das condicionalidades coercitivas e ajustes estruturais que impunha aos paiacuteses que eram seus clientes Desde 1980 o BM vem atuando como importante regulador e formulador de poliacuteticas para os paiacuteses perifeacutericos e juntamente com o FMI exercendo um papel importante na disseminaccedilatildeo das poliacuteticas neoliberais (Ugaacute 2004) Sabe-se que o FMI bem como outras agecircncias internacionais de desenvolvimento impotildeem condiccedilotildees para emprestar dinheiro determinando a reestruturaccedilatildeo de oacutergatildeos de governos municipais estaduais e federais e orientando suas praacuteticas Os empreacutestimos pagam consultores internacionais que frequentemente pouco conhecem a realidade local mas conhecem muito bem os idecircnticos modelos que satildeo impostos a diferentes paiacuteses de diferentes culturas em diferentes cidades (Maricato 2006)

A reforma do Estadoestimulada pela accedilatildeo do BM e do FMI propotildee como condiccedilatildeo para o crescimento econocircmico e inserccedilatildeo na ordem mundial ajustes fiscais e estabilidade interna da moeda o que torna necessaacuterio o controle dos gastos puacuteblicos e a geraccedilatildeo de superaacutevit primaacuterio nos paiacuteses perifeacutericos para saldar juros da diacutevida externa (Costa 2006 p 157)

Em diferentes contextos mas com consequecircncias semelhantes os Estados endividados passaram a depender do mercado financeiro A autonomia na formulaccedilatildeo da poliacutetica econocircmica foi prejudicada e passou a ser cada vez mais difiacutecil cobrar impostos num mundo globalizado com a mobilidade do capital ditando as regras ldquoA necessidade de criar postos de trabalho faz com que o capital tenha um poder de barganha muito grande sobre o governo com um apelo ideoloacutegico repassado para a sociedaderdquo (Costa 2006 p 164) E quando o governo contraria as expectativas do capital podemos assistir a um conjunto de manifestaccedilotildees midiaacuteticas que afirmam e reafirmam a incompetecircncia do Estado em gerir e manter os empregos em determinada regiatildeo

O BM passou a analisar e a balizar a atuaccedilatildeo dos governos tambeacutem no acircmbito social Em consonacircncia com os princiacutepios neoliberais prescreveu reformas especialmente nas aacutereas da educaccedilatildeo e da sauacutede Aleacutem disso constatou que as despesas governamentais com os serviccedilos sociais natildeo eram eficientes pois natildeo beneficiavam quem mais precisava delas os pobres Com tal conclusatildeo passou a recomendar fortemente que os paiacuteses adotassem medidas focalizadas ou seja serviccedilos sociais para as populaccedilotildees mais necessitadas O tema da equidade foi colocado em pauta frisando que a necessidade de intervenccedilatildeo deveria ser na educaccedilatildeo primaacuteria e no atendimento preventivo na sauacutede a atenccedilatildeo baacutesica (Fonseca 1998 Misoczki 2002 Ugaacute 2004) ldquoO ensino superior e o atendimento hospitalar foram considerados secundaacuterios dentro das propostas de atuaccedilatildeo do Estado na aacuterea socialrdquo (Costa 2006 p 209)

Segundo Costa (2006) as conquistas com a universalizaccedilatildeo do acesso sem melhorar a capacidade de investimento puacuteblico na elevaccedilatildeo da qualidade dos serviccedilos ofertados para toda a populaccedilatildeo fizeram com que a classe meacutedia buscasse o mercado privado Os usuaacuterios mais pobres que foram inseridos no acesso aos serviccedilos sociais na medida em que natildeo tinham esse acesso anteriormente fizeram pouca pressatildeo para elevar a qualidade do que estavam lhes oferecendo ldquoReproduzindo a loacutegica da submissatildeo agradecem pelo fato de serem atendidos sem considerar isso como um direito de cidadaniardquo (p 212)

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Eacute a partir da naturalizaccedilatildeo da pobreza e das desigualdades que esse modelo do BM devolve o conflito para o seio de uma sociedade fragmentada na qual os atores individualizam-se ao mesmo tempo em que sujeitos coletivos perdem as identidades ldquoMuda portanto a orientaccedilatildeo da poliacutetica social nem consumos coletivos nem direitos sociais senatildeo que assistecircncia focalizada para aqueles com lsquomenor capacidade de pressatildeorsquo ou os mais lsquohumildesrsquo ou ainda os mais lsquopobresrsquordquo (Soares 2002 p 73) Assim o Estado neoliberal constroacutei uma faceta assistencialista como contrapartida de um mercado livre e o BM pode se vangloriar de suas poliacuteticas com face humana que ensinam a lutar contra a pobreza Se por um lado criam-se necessidades com a poliacutetica de ajustes por outro se trabalha no sentido humanitaacuterio de reparo dos danos com o estiacutemulo agraves poliacuteticas focalizadas Evidentemente esse processo traz consequecircncias seacuterias para o cotidiano das comunidades por um lado a aceitaccedilatildeo do fenocircmeno da pobreza sem maiores questionamentos por outro o esvaziamento do conceito de cidadania social ou seja a garantia dos direitos sociais para muito aleacutem de meras poliacuteticas compensatoacuterias (Ugaacute 2004)

Quinta-feira usufrua dos benefiacutecios do mercado em torno do sofrimento humano pois ele eacute

rentaacutevel

No item anterior discutimos o interesse de algumas instituiccedilotildees internacionais na diminuiccedilatildeo do tamanho do papel do Estado Vimos que o debate natildeo estaacute isento de interesses ao contraacuterio ele ldquoevidencia a polecircmica dentro da sociedade sobre que funccedilotildees o Estado deve realizar e qual o seu papel na prestaccedilatildeo de serviccedilos sociaisrdquo (Costa 2006 p 208) Sabemos tambeacutem que a partir da deacutecada de 1990 com a incorporaccedilatildeo continuada das recomendaccedilotildees do Consenso de Washington houve o acirramento e ampliaccedilatildeo das desigualdades bem como o surgimento de uma nova exclusatildeo social Frente a isso uma onda de praacuteticas solidaacuterias realizadas tanto por instituiccedilotildees internacionais quanto nacionais emergiu para amenizar os problemas decorrentes do ajuste estrutural O Terceiro Setor caracterizado por abrigar um conjunto amplo de organizaccedilotildees natildeo-governamentais (ONGs) como associaccedilotildees e fundaccedilotildees surge no ldquointerior (e como resultado) do processo de reestruturaccedilatildeo do capital particularmente no conjunto de reformas do Estadordquo (Montantildeo 2005) A crise e a suposta escassez de recursos serviram como justificativa para que o Estado se eximisse de sua responsabilidade social assim como para a abertura de certos serviccedilos por

entidades que se imaginava serem sem fins lucrativos e comprometidas com a sociedade

Uma pesquisa de 2005 realizada pelo Programa de Voluntaacuterios das Naccedilotildees Unidas (UNV) em parceria com o instituto Johns Hopkins revelou o movimento (e o crescimento) financeiro deste setor no Brasil A pesquisa constatou que o setor obteve investimentos da ordem de R$ 47 bilhotildees o que representou 5 do PIB nacional superando inclusive setores expressivos da economia brasileira como a induacutestria de extraccedilatildeo mineral (petroacuteleo mineacuterio de ferro gaacutes natural carvatildeo entre outros) (Bedinelli 2006 O que fazem as pessoas 2008 Zavala 2006) Mas de onde vieram tais financiamentos Quais bondades foram realizadas com este recurso

Sabemos que boa parte dos recursos utilizados nesse setor satildeo puacuteblicos na medida em que essas instituiccedilotildees satildeo financiadas direta ou indiretamente por governos Diretamente quando por exemplo as entidades com tiacutetulo de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil de Interesse Puacuteblico (OSCIPs) podem disputar recursos puacuteblicos para realizar projetos e programas especiacuteficos Indiretamente quando por meio de incentivos fiscais empresas privadas deslocam parte do que destinariam aos impostos para uma instituiccedilatildeo do Terceiro Setor Costuma-se dizer ateacute mesmo na aacuterea da Gestatildeo Social que recursos natildeo faltam o que faltam satildeo bons projetos Independente se isso eacute verdadeiro ou natildeo fato eacute que a livre competiccedilatildeo caracteriacutestica do mercado capitalista tambeacutem ocupou espaccedilos de comercializaccedilatildeo do sofrimento humano

O filme intitulado Quanto vale ou eacute por quilo de 2005 traz elementos interessantes para o debate sobre o Terceiro Setor O diretor Seacutergio Bianchi penetra no mundo das ONGS com duras criacuteticas ilustrando o caos que compotildee tal campo das intervenccedilotildees sociais Tanto no filme quanto em nosso cotidiano haacute instituiccedilotildees que disputam verbas locais e beneficiados para a realizaccedilatildeo dos projetos Frente a isso pode-se questionar se problema da pobreza eacute de fato algo a ser resolvido ou mantido Aparentemente quanto maior o tamanho da pobreza maior seraacute o tamanho dos investimentos Bianchi (2005) em uma entrevista para a Revista Eacutepoca afirma natildeo ser contra a existecircncia de tais atividades desde que natildeo sejam atividades que levem ldquoa permanecircncia desses problemas ao transformar esses problemas em mercadordquo E complementa dizendo que se o Terceiro Setor ou a miseacuteria desaparecer uma quantidade enorme de desempregados surgiraacute (Bianchi 2005)

Um estudo realizado por Pinto (2005 p 2) sobre a atuaccedilatildeo das organizaccedilotildees sociais natildeo-governamentais (caracterizadas em trecircs grupos pela autora ideoloacutegicas

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religiosas e por pura solidariedade) que realizavam accedilotildees contra a fome identificou claras limitaccedilotildees para ldquolevar a cabo com ecircxito as missotildees de substituir o Estado em accedilotildees dirigidas a populaccedilotildees carentes ou em situaccedilatildeo de riscordquo Trecircs dessas limitaccedilotildees fundamentais satildeo a natildeo-obrigaccedilatildeo da universalidade a dependecircncia de recursos e o voluntariado Isso porque as accedilotildees tendem a ser realizadas por ldquoagentes da sociedade civil como uma questatildeo pontual isolada o que natildeo permite poliacuteticas universalizantes que mudem a qualidade de vida das populaccedilotildees em situaccedilatildeo de miseacuteriardquo (p 27)

Na verdade o que se observa no cotidiano eacute que as populaccedilotildees que estatildeo em situaccedilatildeo de indigecircncia e pobreza precisam de auxiacutelios variados e continuados para romper com o ciacuterculo de dificuldades cotidianas E aqui existe um outro problema que coloca muitas vezes em risco o trabalho que pretende ser comprometido com a transformaccedilatildeo social Os projetos as intervenccedilotildees quando patrocinadas por oacutergatildeos estatais ou por empresas privadas possuem um prazo determinado a priori para a execuccedilatildeo das atividades propostas e para o uso dos recursos financeiros disponibilizados Normalmente o prazo eacute de aproximadamente 12 meses agraves vezes mais agraves vezes menos Como transformar uma situaccedilatildeo com raiacutezes histoacutericas tatildeo profundas em um curto espaccedilo de tempo Levaram-se anos na verdade seacuteculos para construirmos uma memoacuteria e um imaginaacuterio social da forma que os satildeo na atualidade Portanto pelo bem e pelo mal eacute fato eles natildeo se transformaratildeo na mesma velocidade que alguns gostariam O maacuteximo que se poderaacute fazer eacute atenuar os problemas ou como diz Demo (2002) docilizar as populaccedilotildees atendidas

Outro aspecto importante eacute a falta de paracircmetros de controle das entidades sociais Ateacute agora ldquonatildeo sabemos como gerir estas novas aacutereas pois os instrumentos de gestatildeo correspondentes ainda estatildeo engatinhandordquo (Dowbor 1999 p 8) Aleacutem disso casos de desvio de verbas corrupccedilatildeo fundaccedilotildees fantasmas etc natildeo satildeo novidades Quem deve ou deveria regular tais entidades Como podemos saber quais satildeo os resultados dos investimentos puacuteblicos nelas investidos

Embora a situaccedilatildeo social do Brasil tenha melhorado nos uacuteltimos anos (Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2008 2009) temos ainda um panorama grave e urgente Apoacutes a deacutecada de 1990 o que se fez foi afirmar e reafirmar a natildeo constituiccedilatildeo de uma rede universal de ldquoproteccedilatildeo social que explicite o dever do Estado na garantia dos direitos sociaisrdquo Na verdade foi o oposto que aconteceu Houve um retrocesso a uma ldquoconcepccedilatildeo de que o bem-estar pertence ao acircmbito do privadordquo a comunidades locais

as instituiccedilotildees de cunho religioso e filantroacutepico (Soares 2005 p 12) O plano era de que estas instituiccedilotildees tomadas pela bondade humana estabeleceriam uma rede de solidariedade para proteger e salvaguardar os pobres De certo modo o plano tem dado certo basta somente saber para quem

Sexta-feira pratique o voluntariado e regojize-se pelo aliacutevio de sua consciecircncia

Nos dias atuais a accedilatildeo voluntaacuteria tem sido reconhecida como praacutetica importante em discursos e planejamentos que visam agrave intervenccedilatildeo ou mudanccedila social No terceiro setor tal praacutetica eacute incentivada por inuacutemeras instituiccedilotildees em especial pela ONG Parceiros Voluntaacuterios (RS) Instituto Voluntaacuterios em Accedilatildeo (SC) e Portal do Voluntaacuterio (Internet) Tamanha eacute a importacircncia do assunto que a ONU lanccedilou um dia em comemoraccedilatildeo agrave praacutetica e aos praticantes ndash Dia Internacional do Voluntariado ndash fixado no dia 05 de dezembro

Mas o que eacute ser voluntaacuterio Segundo a definiccedilatildeo da ONG Parceiros Voluntaacuterios (2008) o voluntariado eacute aquilo que toda pessoa ou organizaccedilatildeo faz motivado pelos valores de participaccedilatildeo e solidariedade para contribuir com as causas de interesse social e comunitaacuterio Para tanto ldquoo voluntaacuterio disponibiliza seu conhecimento tempo e emoccedilatildeo de maneira espontacircnea e natildeo-remuneradardquo

Contudo nem sempre encontramos boas experiecircncias associadas a esse tipo de trabalho Reclamaccedilotildees quanto agrave exploraccedilatildeo das pessoas ao uso de informaccedilotildees sem retorno agravequeles que as forneceram ao curto periacuteodo de envolvimento em um trabalho etc satildeo muito comuns nas comunidades e instituiccedilotildees em que recebem os voluntaacuterios Mas por que isso acontece Talvez devecircssemos refletir sobre os motivos pelos quais as pessoas procuram realizar esta praacutetica

Uma pesquisa realizada em empresas e instituiccedilotildees natildeo governamentais por Caldana e Figueiredo (2008) aponta que a busca pelo voluntariado estaacute relacionada ao aumento da estima atraveacutes da aprovaccedilatildeo e reconhecimento dos colegas de trabalho a transmissatildeo de princiacutepios religiosos ao aliacutevio das tensotildees ao incentivo midiaacutetico a diminuiccedilatildeo de culpas a superaccedilatildeo de limites pessoais entre outros fatores Incluiriacuteamos tambeacutem entre as motivaccedilotildees a forte pressatildeo pela qual os profissionais satildeo submetidos para desenvolver algum tipo de trabalho desse feitio Se em um curriacuteculo profissional por exemplo existe doaccedilatildeo ao outro possivelmente este candidato possa tambeacutem se doar agrave empresa se o candidato jaacute realizou praacuteticas diversas mesmo que ele esteja se oferecendo

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ao mercado de trabalho pela primeira vez ele jaacute passou por experiecircncias anteriores (nada melhor neste caso entatildeo do que se treinar com aqueles que aparentemente natildeo reclamam das experiecircncias das quais satildeo partes)

Frente a tais caracteriacutesticas e motivaccedilotildees identificamos na concepccedilatildeo do voluntariado uma polarizaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo da relaccedilatildeo haacute o doador coisa ou serviccedilo doado e aquele desprovido que recebe Cria-se a imagem de que o doador eacute bom por excelecircncia que ele tem algo de muito especial para entregar agravequele que estaacute na outra ponta em uma situaccedilatildeo nem sempre muito confortaacutevel que por sua vez cumpre seu papel ao receber bem ou mal a coisa doada Aleacutem disso ouve-se desde crianccedila a afirmativa que basta plantar uma sementinha para mudar o mundohellip E entatildeo cada um deve fazer a sua parte para melhorar a situaccedilatildeo mundial em relaccedilatildeo a tudo Campanhas educativas em prol do meio ambiente estatildeo aiacute use sacola reciclaacutevel economize aacutegua e energia eleacutetrica escolha produtos sem agrotoacutexicos opte pelo uso de combustiacuteveis natildeo poluentes etc Concordamos evidentemente com todas essas campanhas mas ao mesmo tempo eacute impressionante ver o descaso e a pouca repercussatildeo com os desastres por exemplo provocados pelas empresas ou com o nuacutemero exorbitante de luzes acesas para celebrar o Natal Tambeacutem eacute importante lembrar que 80 das emissotildees de poluentes na atmosfera satildeo produzidas pelos paiacuteses do G-20 que conforme Sanson (2008) ao colocarem no topo da agenda a resoluccedilatildeo da crise econocircmica negligenciam a crise ecoloacutegica

Mas por que ainda assim eacute importante que individualmente tenhamos praacuteticas solidaacuterias e voluntaacuterias Qual eacute a loacutegica de transformaccedilatildeo ou manutenccedilatildeo social que elas (tais praacuteticas) sustentam Haacute o aliacutevio de tensotildees (Caldana amp Figueiredo 2008) para ambos lados naqueles que praticam o ato solidaacuterio e sentem-se uacuteteis socialmente e naqueles que recebem atraveacutes da amenizaccedilatildeo de algum possiacutevel sofrimento Natildeo seriam portanto funcionais aos interesses neoliberais e por conseguinte mais um instrumental que favorece a manutenccedilatildeo do status quo (Montantildeo 2005)

Final de semana o descanso ou a corporificaccedilatildeo da pobreza

Iniciamos o artigo discutindo o papel do conhecimento cientiacutefico frente agrave transformaccedilatildeo da realidade Vimos que os conceitos e teorias que circulam natildeo satildeo verdades absolutas mas sim construccedilotildees histoacutericas que precisam sempre ser contextualizadas

Isso porque o conhecimento cientiacutefico que alimenta conceitos praacuteticas poliacuteticas sociais etc tambeacutem eacute produzido sobre determinados interesses e jogos de poder Prova disso eacute a existecircncia de poucos trabalhos acadecircmicos que abordam a pobreza enquanto fenocircmeno e conceito com o vieacutes eou o discurso daqueles que estatildeo nesta condiccedilatildeo socioeconocircmica

Do mesmo modo mas com outra amplitude vecirc-se a forma como o Banco Mundial e o Fundo Monetaacuterio Internacional lidam com os Estados Nacionais com a pobreza e com os enquadrados como ldquopobresrdquo Problematizamos as afirmaccedilotildees sobre a importacircncia da reduccedilatildeo do tamanho do Estado para o desenvolvimento econocircmico do paiacutes e as suas consequecircncias com o enxugamento dos direitos sociais jaacute conquistados pelas populaccedilotildees fato que parece muito mais fomentar um ciclo de dependecircncia do que de autonomia e empoderamento

Dentro desta loacutegica de enxugamento estatal abordamos o surgimento e o fortalecimento do Terceiro Setor movimentando rios de dinheiro e alguns desvios de curso uma vez que ele eacute divulgado como a possibilidade da sociedade se articular em torno do bem comum da humanidade A bondade comprada ou natildeo eacute fundamental pois como eacute sugerido pelos discursos hegemocircnicos com um ldquomutiratildeo de voluntaacuteriosrdquo pode-se salvar boa parte das pessoas necessitadas Dessas pessoas chamadas por muitos como ldquobeneficiadasrdquo espera-se a aceitaccedilatildeo incondicional de sua situaccedilatildeo no mundo da ajuda recebida e da bondade posta a seu benefiacutecio Qualquer desvio eacute sinal de ingratidatildeo eou motivo para a culpabilizaccedilatildeo daquela pessoa que natildeo soube se preparar que natildeo soube se vender ao mercado de trabalho O fantasma do invaacutelido do desprovido do vagabundo do preguiccediloso segue entre noacutes e alimenta discursos disciplinadores e forccedilas repressivas

Ao analisar portanto o modo como a ldquopobrezardquo eacute retratada no mundo social percebe-se a existecircncia de uma espeacutecie de corroboraccedilatildeo contiacutenua vinda de diferentes atores sociais dessa condiccedilatildeo socioeconocircmica atraveacutes da naturalizaccedilatildeo de praacuteticas e discursos que favorece a aceitaccedilatildeo e apatia social perante a problemaacutetica Sabe-se que a pobreza poliacutetica eacute a encarnaccedilatildeo mais proacutexima dos efeitos de poder de uma sociedade opressiva Concordamos com Demo (2002) quando ele diz que o alimento a fonte de tal pobreza se daacute por diferentes caminhos pela ldquovia do cultivo da ignoracircncia para alimentar e manter a massa de manobrardquo pela ldquovia das ajudas que soacute ajudam a marginalizar ainda mais os marginalizadosrdquo pela ldquovia da compreensatildeo truncada da pobreza como simples carecircncia material para evitar a subelevaccedilatildeo dos excluiacutedosrdquo (p 12)

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Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546

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que a constitui (Castel 2001 Paugam 2003) A pobreza corresponde mais a um processo do que um estado perpeacutetuo e imutaacutevel ldquoToda definiccedilatildeo estaacutetica da pobreza contribui para agrupar num mesmo conjunto populaccedilotildees cuja situaccedilatildeo eacute heterogecircnea ocultando a origem e os efeitos a longo prazo das dificuldades dos indiviacuteduos e de suas famiacuteliasrdquo (Paugam 1999 p68)

Concordamos portanto com Boaventura de Souza Santos (2008) quando ele propotildee estudar e aprender com o Sul sendo este entendido como uma metaacutefora do sofrimento humano causado pelo capitalismo Tal postura parece levantar novas possibilidades ao estudo da condiccedilatildeo de pobreza e os seus efeitos pois nada melhor do que o oprimido para falar sobre a sua situaccedilatildeo no mundo (Freire 1987) Na mesma perspectiva os estudos poacutes-colonialistas compostos por um conjunto de correntes teoacutericas e analiacuteticas trouxeram e ainda trazem a voz de paiacuteses chamados de ldquoterceiro mundordquo e a de minorias sociais como uma prioridade teoacuterico-poliacutetica na explicaccedilatildeo ou na compreensatildeo do mundo contemporacircneo Isso porque na perspectiva poacutes-colonial parte-se da ideia de que eacute a partir das margens ou das periferias que as estruturas de poder e de saber satildeo mais visiacuteveis Acreditamos ser fundamental desenvolver o interesse na geopoliacutetica do conhecimento ou seja ldquoproblematizar quem produz o conhecimento em que contexto o produz e para quem o produzrdquo (Santos 2008 p 29)

Assim as teorias quando tomadas como criaccedilatildeo e accedilatildeo humana e portanto histoacutericas e passiacuteveis de contradiccedilotildees podem nos fornecer lentes de anaacutelise do campo social que estudamos eou agimos Tais lentes focam em certos aspectos e ao mesmo tempo desfocam em outros pois a incompletude caracteriacutestica ontoloacutegica tambeacutem estaacute presente nas produccedilotildees humanas Poreacutem mesmo se considerarmos e aceitarmos tal fato natildeo podemos esquecer que no meio desta rede conceitual de interesses e implicaccedilotildees ldquoa pobreza se diz de vaacuterias maneiras Ela se diz tambeacutem segundo uma multiplicidade de palavras que saturam o discurso pela sua variedade sua frequumlecircncia e sua intensidaderdquo (Bernard 2003 p103)

Terccedila-feira ensine a pescar mesmo que natildeo haja acesso ao rio ou natildeo haja peixe

Eacute quase um consenso no meio social a ideia de que natildeo devemos dar o peixe ao faminto mas sim ensinaacute-lo a pescar Isso porque ao dar o peixe estar-se-ia promovendo a cultura da dependecircncia entre os necessitados Portanto nada melhor do que programas educativos instrutivos e disciplinadores para resolver os problemas sociais do mundo Resta saber se a fome

e boa parte das mazelas sociais se resolveriam ou ao menos diminuiriam se todas as pessoas famintas fossem qualificadas profissionalmente por exemplo

Vimos no item anterior que haacute implicaccedilotildees ao se eleger um conceito em detrimento de outros e agora comeccedilamos as perceber no cotidiano das populaccedilotildees Interessante observar nesse sentido que em boa parte dos cursos de qualificaccedilatildeo profissional oferecidos gratuitamente para pessoas de baixa renda haacute um moacutedulo ou uma disciplina chamada cidadania Por que para os pobres eacute necessaacuterio ensinar o que eacute ser cidadatildeo Seraacute somente uma boa intenccedilatildeo compartilhada por inuacutemeras pessoas e instituiccedilotildees Aliaacutes enquanto muitas pessoas de um lado satildeo consideradas o ldquoalvordquo das poliacuteticas sociais algumas outras do lado oposto planejam e decidem o funcionamento dos projetos Ao colocar essas provocaccedilotildees em pauta natildeo pretendemos abordar diretamente projetos e programas sociais mas sim problematizar o papel do conhecimento que inevitavelmente os sustentam

Para discutirmos a problemaacutetica do conhecimento cientiacutefico e as praacuteticas que dele decorrem precisamos assumir de qual conceito de ciecircncia estamos partindo Nesse sentido a filosofia da ciecircncia contribui para a discussatildeo uma vez que ela nos fornece vaacuterios modelos para a compreensatildeo dela mesma (Burawoy 1990) Tomamos aqui as ideias propostas por Thomas Kuhn Esse cientista foi um dos mais relevantes da contemporaneidade a considerar as influecircncias histoacutericas e socioloacutegicas para a compreensatildeo da produccedilatildeo do conhecimento vinculando o desenvolvimento da ciecircncia agraves praacuteticas de grupos sociais Renunciou o conceito de teoria como unidade de anaacutelise da evoluccedilatildeo da ciecircncia substituindo-o pelo de paradigma Apesar de ter uma definiccedilatildeo ambiacutegua para esse termo (com 21 sentidos diferentes) de modo geral faz referecircncia a uma unidade de anaacutelise mais ampla que a teoria Para o autor paradigma eacute um conjunto de explicaccedilotildees teoacutericas sobre determinados fenocircmenos provenientes de dados empiacutericos bem como um conjunto de problemas que ainda estatildeo abertos para serem resolvidos Kuhn vai mais a fundo e diz que o conteuacutedo de determinado paradigma ultrapassa o seu caraacuteter cientiacutefico inclui tambeacutem um significado socioloacutegico pois se refere ao desenvolvimento institucional que se produz em torno do paradigma dominante Ou seja o paradigma inserido em uma rede de relaccedilotildees sociais cria estruturas de poder para evitar que o desenvolvimento da atividade cientiacutefica o ponha em risco (Aacutelvaro amp Garrido 2006)

Outro aspecto relevante conforme apontam Bauer Gaskel e Allum (2002) eacute a discussatildeo em torno

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dos interesses do conhecimento pois a produccedilatildeo cientiacutefica somente ocorre atraveacutes deles Podemos afirmar que ningueacutem consegue livrar-se dos interesses do conhecimento apesar de alguns cientistas terem certeza da sua neutralidade Ao discutir essa questatildeo Habermas (cf Bauer Gaskell amp Allum 2002 Habermas 2006) propocircs uma tipologia de interesses do conhecimento a partir da anaacutelise de alguns autores Para ele existem trecircs interesses constitutivos do conhecimento que estatildeo na base das ciecircncias ldquoempiacuterico-analiacuteticasrdquo ldquohistoacuterico-hermenecircuticasrdquo e ldquocriacuteticasrdquo

As ciecircncias empiacuterico-analiacuteticas tecircm como base um interesse no controle teacutecnico ou seja com o objetivo de obter o conhecimento cientiacutefico adotam como imperativo racional o controle sobre as condiccedilotildees materiais em que nos encontramos e a partir disso buscam aumentar nossa sauacutede e seguranccedila fiacutesica e espiritual Promovem o estudo de leis que presidem os fenocircmenos naturais Buscam a prediccedilatildeo e a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos Jaacute as ciecircncias histoacuterico-hermenecircuticas tecircm um interesse no estabelecimento de consenso e em funccedilatildeo disso tomam como imperativo a busca pela compreensatildeo intersubjetiva que somente pode ser alcanccedilada atraveacutes da linguagem comum A compreensatildeo hermenecircutica que tem como finalidade restaurar canais rompidos de comunicaccedilatildeo trabalha com duas dimensotildees (a) o elo entre a proacutepria experiecircncia de vida de algueacutem e a tradiccedilatildeo agrave qual pertence e (b) a esfera da comunicaccedilatildeo entre diferentes indiviacuteduos grupos e tradiccedilotildees O cientista em ambos os casos procura aprender a liacutengua que ele interpreta mas deve aproximar-se da interpretaccedilatildeo a partir de um ponto histoacuterico especiacutefico Ao fazer isso o pesquisador leva em consideraccedilatildeo a totalidade de interpretaccedilatildeo que jaacute estaacute presente (uma vez que o proacuteprio mundo social jaacute eacute um mundo preacute-interpretado) e entra no que se chama de ldquociacuterculo hermenecircuticordquo Eacute esse movimento que leva ao consenso entre os atores Evidentemente que esse consenso jamais seraacute absoluto pelo contraacuterio ele eacute necessariamente fluido e dinacircmico pois ele eacute conseguido atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo que evolui e continua a evoluir e modificar-se historicamente (Bauer Gaskel amp Allum 2002)

A ciecircncia perdeu muito tempo e energia com a descriccedilatildeo de delineamentos e ldquobrigasrdquo entre as metodologias Parece ficar claro inclusive que o primeiro modelo encontra-se com mais frequecircncia nas pesquisas quantitativas e o segundo nas pesquisas qualitativas Contudo ainda haacute um terceiro tipo de ciecircncia e interesses que daacute um novo colorido a essa antiga discussatildeo Habermas aponta para a possibilidade de uma ciecircncia ldquocriacuteticardquo que tem como

interesse maior a emancipaccedilatildeo Sua principal tese eacute a de que os interesses emancipatoacuterios fornecem o referencial para se avanccedilar aleacutem do conhecimento nomoloacutegico e da compreensatildeo hermenecircutica e nos permitem ldquodeterminar quando afirmaccedilotildees teoacutericas atingem regularidades invariantes da accedilatildeo social como tal e quando elas expressam relaccedilotildees ideologicamente congeladas de dependecircncia que podem em princiacutepio ser transformadasrdquo (Bauer Gaskel amp Allum 2002 p 33) Eacute atraveacutes de um processo autorreflexivo que as ciecircncias criacuteticas podem chegar a identificar estruturas condicionadoras de poder que com o ldquouso de uma comunicaccedilatildeo sistematicamente distorcida e de uma repressatildeo sutilmente legitimadardquo tendem a se naturalizar na sociedade

Mas esse projeto de ciecircncia natildeo foi e natildeo eacute uma tarefa simples Criacuteticas sobre esta proposta alertam que a proacutepria ideia de transformaccedilatildeo emancipatoacuteria da sociedade pode se transformar em uma nova forma de opressatildeo social (Santos 2008) De fato muitas das praacuteticas embasadas nesta concepccedilatildeo ou seja em nome do desenvolvimento ou da conscientizaccedilatildeo de certo grupo acabaram legitimando ideias das quais elas pretendiam romper Assim mais do que nunca adotar o princiacutepio de que ldquoa coerecircncia da criacutetica estaacute na autocriacuteticardquo (Demo 2002 p23) eacute fator determinante para a construccedilatildeo de praacuteticas emancipadoras Sempre eacute importante lembrar que praacuteticas sociais satildeo produzidas por atores inseridos em instituiccedilotildees seja na pesquisa ou no campo da intervenccedilatildeo social Se satildeo praacuteticas jamais se poderia adotar a postura de uma suposta neutralidade e imparcialidade em momento algum inclusive ao decidir quem com ela se beneficiaraacute E isso nos leva a pensar no dia de amanhatilde ou seja no papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional para o desenvolvimento de praacuteticas sociais justas e solidaacuterias

Quarta-feira lute contra a pobreza do mesmo modo que o BM e o FMI o fazem

Vimos que os conceitos satildeo produtos histoacutericos o que significa dizer que satildeo construiacutedos reproduzidos eou transformados conforme o ambiente e os jogos de poder em que estatildeo inseridos que o conhecimento produzido nas academias em especial nos nuacutecleos de pesquisa no acircmbito humano-social pode ter grande impacto na definiccedilatildeo de poliacuteticas sociais Agora pretendemos ilustrar o debate anterior inserindo na discussatildeo o papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo na construccedilatildeo do pensamento social

Nem sempre se sabe de onde vecircm as palavras e expressotildees que partilhamos e perpetuamos em nosso cotidiano Utilizamo-las muitas vezes ingenuamente

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sem perceber os efeitos das mesmas sem nos darmos conta de que os conceitos podem estar legitimando praacuteticas opostas agraves nossas intenccedilotildees Assim a questatildeo que aqui colocamos eacute a seguinte o que significa aderir e perpetuar um conceito descolado de sua histoacuteria

Considerando-se a abrangecircncia e influecircncia de certas instituiccedilotildees internacionais na dinacircmica socioeconocircmica e poliacutetica mundial buscamos refletir sobre como a questatildeo da pobreza eacute tratada pelo Banco Mundial (BM) e levantamos possiacuteveis compreensotildees sobre quais satildeo os interesses dessa instituiccedilatildeo ao utilizar o conceito pobreza e as suas recomendaccedilotildees em relaccedilatildeo a como combatecirc-la

O BM juntamente com o Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI) foi criado durante a conferecircncia de Bretton Woods em 1944 proposta pelo governo norte-americano com a intenccedilatildeo de traccedilar os contornos da nova ordem econocircmica que deveria ser instituiacuteda no poacutes-guerra Ao mesmo tempo estabeleceu-se um novo padratildeo monetaacuterio internacional centrado no doacutelar com paridade fixa com o ouro (Mattos 2001) O BM tinha como objetivo promover o investimento internacional e manter a estabilidade do cacircmbio aleacutem de tratar de problemas de balanccedilas de pagamento (Hobsbawm 1995) As regras para seu funcionamento incluiacuteram um dispositivo de captaccedilatildeo de recursos junto aos mercados financeiros com as mais baixas taxas de mercado destinados evidentemente para os paiacuteses-membro (Misoczky 2002)

Mas nem sempre essas instituiccedilotildees tiveram o mesmo papel Entre 1974 e 1975 por exemplo o FMI seguido pelo BM mudou o seu enfoque dos paiacuteses industriais desenvolvidos para os que estavam em desenvolvimento uma vez que estes uacuteltimos cambaleavam com o impacto dos preccedilos cada vez mais altos do petroacuteleo Ao aumentar passo a passo os seus empreacutestimos o FMI ampliou o alcance das condicionalidades coercitivas e ajustes estruturais que impunha aos paiacuteses que eram seus clientes Desde 1980 o BM vem atuando como importante regulador e formulador de poliacuteticas para os paiacuteses perifeacutericos e juntamente com o FMI exercendo um papel importante na disseminaccedilatildeo das poliacuteticas neoliberais (Ugaacute 2004) Sabe-se que o FMI bem como outras agecircncias internacionais de desenvolvimento impotildeem condiccedilotildees para emprestar dinheiro determinando a reestruturaccedilatildeo de oacutergatildeos de governos municipais estaduais e federais e orientando suas praacuteticas Os empreacutestimos pagam consultores internacionais que frequentemente pouco conhecem a realidade local mas conhecem muito bem os idecircnticos modelos que satildeo impostos a diferentes paiacuteses de diferentes culturas em diferentes cidades (Maricato 2006)

A reforma do Estadoestimulada pela accedilatildeo do BM e do FMI propotildee como condiccedilatildeo para o crescimento econocircmico e inserccedilatildeo na ordem mundial ajustes fiscais e estabilidade interna da moeda o que torna necessaacuterio o controle dos gastos puacuteblicos e a geraccedilatildeo de superaacutevit primaacuterio nos paiacuteses perifeacutericos para saldar juros da diacutevida externa (Costa 2006 p 157)

Em diferentes contextos mas com consequecircncias semelhantes os Estados endividados passaram a depender do mercado financeiro A autonomia na formulaccedilatildeo da poliacutetica econocircmica foi prejudicada e passou a ser cada vez mais difiacutecil cobrar impostos num mundo globalizado com a mobilidade do capital ditando as regras ldquoA necessidade de criar postos de trabalho faz com que o capital tenha um poder de barganha muito grande sobre o governo com um apelo ideoloacutegico repassado para a sociedaderdquo (Costa 2006 p 164) E quando o governo contraria as expectativas do capital podemos assistir a um conjunto de manifestaccedilotildees midiaacuteticas que afirmam e reafirmam a incompetecircncia do Estado em gerir e manter os empregos em determinada regiatildeo

O BM passou a analisar e a balizar a atuaccedilatildeo dos governos tambeacutem no acircmbito social Em consonacircncia com os princiacutepios neoliberais prescreveu reformas especialmente nas aacutereas da educaccedilatildeo e da sauacutede Aleacutem disso constatou que as despesas governamentais com os serviccedilos sociais natildeo eram eficientes pois natildeo beneficiavam quem mais precisava delas os pobres Com tal conclusatildeo passou a recomendar fortemente que os paiacuteses adotassem medidas focalizadas ou seja serviccedilos sociais para as populaccedilotildees mais necessitadas O tema da equidade foi colocado em pauta frisando que a necessidade de intervenccedilatildeo deveria ser na educaccedilatildeo primaacuteria e no atendimento preventivo na sauacutede a atenccedilatildeo baacutesica (Fonseca 1998 Misoczki 2002 Ugaacute 2004) ldquoO ensino superior e o atendimento hospitalar foram considerados secundaacuterios dentro das propostas de atuaccedilatildeo do Estado na aacuterea socialrdquo (Costa 2006 p 209)

Segundo Costa (2006) as conquistas com a universalizaccedilatildeo do acesso sem melhorar a capacidade de investimento puacuteblico na elevaccedilatildeo da qualidade dos serviccedilos ofertados para toda a populaccedilatildeo fizeram com que a classe meacutedia buscasse o mercado privado Os usuaacuterios mais pobres que foram inseridos no acesso aos serviccedilos sociais na medida em que natildeo tinham esse acesso anteriormente fizeram pouca pressatildeo para elevar a qualidade do que estavam lhes oferecendo ldquoReproduzindo a loacutegica da submissatildeo agradecem pelo fato de serem atendidos sem considerar isso como um direito de cidadaniardquo (p 212)

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Eacute a partir da naturalizaccedilatildeo da pobreza e das desigualdades que esse modelo do BM devolve o conflito para o seio de uma sociedade fragmentada na qual os atores individualizam-se ao mesmo tempo em que sujeitos coletivos perdem as identidades ldquoMuda portanto a orientaccedilatildeo da poliacutetica social nem consumos coletivos nem direitos sociais senatildeo que assistecircncia focalizada para aqueles com lsquomenor capacidade de pressatildeorsquo ou os mais lsquohumildesrsquo ou ainda os mais lsquopobresrsquordquo (Soares 2002 p 73) Assim o Estado neoliberal constroacutei uma faceta assistencialista como contrapartida de um mercado livre e o BM pode se vangloriar de suas poliacuteticas com face humana que ensinam a lutar contra a pobreza Se por um lado criam-se necessidades com a poliacutetica de ajustes por outro se trabalha no sentido humanitaacuterio de reparo dos danos com o estiacutemulo agraves poliacuteticas focalizadas Evidentemente esse processo traz consequecircncias seacuterias para o cotidiano das comunidades por um lado a aceitaccedilatildeo do fenocircmeno da pobreza sem maiores questionamentos por outro o esvaziamento do conceito de cidadania social ou seja a garantia dos direitos sociais para muito aleacutem de meras poliacuteticas compensatoacuterias (Ugaacute 2004)

Quinta-feira usufrua dos benefiacutecios do mercado em torno do sofrimento humano pois ele eacute

rentaacutevel

No item anterior discutimos o interesse de algumas instituiccedilotildees internacionais na diminuiccedilatildeo do tamanho do papel do Estado Vimos que o debate natildeo estaacute isento de interesses ao contraacuterio ele ldquoevidencia a polecircmica dentro da sociedade sobre que funccedilotildees o Estado deve realizar e qual o seu papel na prestaccedilatildeo de serviccedilos sociaisrdquo (Costa 2006 p 208) Sabemos tambeacutem que a partir da deacutecada de 1990 com a incorporaccedilatildeo continuada das recomendaccedilotildees do Consenso de Washington houve o acirramento e ampliaccedilatildeo das desigualdades bem como o surgimento de uma nova exclusatildeo social Frente a isso uma onda de praacuteticas solidaacuterias realizadas tanto por instituiccedilotildees internacionais quanto nacionais emergiu para amenizar os problemas decorrentes do ajuste estrutural O Terceiro Setor caracterizado por abrigar um conjunto amplo de organizaccedilotildees natildeo-governamentais (ONGs) como associaccedilotildees e fundaccedilotildees surge no ldquointerior (e como resultado) do processo de reestruturaccedilatildeo do capital particularmente no conjunto de reformas do Estadordquo (Montantildeo 2005) A crise e a suposta escassez de recursos serviram como justificativa para que o Estado se eximisse de sua responsabilidade social assim como para a abertura de certos serviccedilos por

entidades que se imaginava serem sem fins lucrativos e comprometidas com a sociedade

Uma pesquisa de 2005 realizada pelo Programa de Voluntaacuterios das Naccedilotildees Unidas (UNV) em parceria com o instituto Johns Hopkins revelou o movimento (e o crescimento) financeiro deste setor no Brasil A pesquisa constatou que o setor obteve investimentos da ordem de R$ 47 bilhotildees o que representou 5 do PIB nacional superando inclusive setores expressivos da economia brasileira como a induacutestria de extraccedilatildeo mineral (petroacuteleo mineacuterio de ferro gaacutes natural carvatildeo entre outros) (Bedinelli 2006 O que fazem as pessoas 2008 Zavala 2006) Mas de onde vieram tais financiamentos Quais bondades foram realizadas com este recurso

Sabemos que boa parte dos recursos utilizados nesse setor satildeo puacuteblicos na medida em que essas instituiccedilotildees satildeo financiadas direta ou indiretamente por governos Diretamente quando por exemplo as entidades com tiacutetulo de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil de Interesse Puacuteblico (OSCIPs) podem disputar recursos puacuteblicos para realizar projetos e programas especiacuteficos Indiretamente quando por meio de incentivos fiscais empresas privadas deslocam parte do que destinariam aos impostos para uma instituiccedilatildeo do Terceiro Setor Costuma-se dizer ateacute mesmo na aacuterea da Gestatildeo Social que recursos natildeo faltam o que faltam satildeo bons projetos Independente se isso eacute verdadeiro ou natildeo fato eacute que a livre competiccedilatildeo caracteriacutestica do mercado capitalista tambeacutem ocupou espaccedilos de comercializaccedilatildeo do sofrimento humano

O filme intitulado Quanto vale ou eacute por quilo de 2005 traz elementos interessantes para o debate sobre o Terceiro Setor O diretor Seacutergio Bianchi penetra no mundo das ONGS com duras criacuteticas ilustrando o caos que compotildee tal campo das intervenccedilotildees sociais Tanto no filme quanto em nosso cotidiano haacute instituiccedilotildees que disputam verbas locais e beneficiados para a realizaccedilatildeo dos projetos Frente a isso pode-se questionar se problema da pobreza eacute de fato algo a ser resolvido ou mantido Aparentemente quanto maior o tamanho da pobreza maior seraacute o tamanho dos investimentos Bianchi (2005) em uma entrevista para a Revista Eacutepoca afirma natildeo ser contra a existecircncia de tais atividades desde que natildeo sejam atividades que levem ldquoa permanecircncia desses problemas ao transformar esses problemas em mercadordquo E complementa dizendo que se o Terceiro Setor ou a miseacuteria desaparecer uma quantidade enorme de desempregados surgiraacute (Bianchi 2005)

Um estudo realizado por Pinto (2005 p 2) sobre a atuaccedilatildeo das organizaccedilotildees sociais natildeo-governamentais (caracterizadas em trecircs grupos pela autora ideoloacutegicas

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religiosas e por pura solidariedade) que realizavam accedilotildees contra a fome identificou claras limitaccedilotildees para ldquolevar a cabo com ecircxito as missotildees de substituir o Estado em accedilotildees dirigidas a populaccedilotildees carentes ou em situaccedilatildeo de riscordquo Trecircs dessas limitaccedilotildees fundamentais satildeo a natildeo-obrigaccedilatildeo da universalidade a dependecircncia de recursos e o voluntariado Isso porque as accedilotildees tendem a ser realizadas por ldquoagentes da sociedade civil como uma questatildeo pontual isolada o que natildeo permite poliacuteticas universalizantes que mudem a qualidade de vida das populaccedilotildees em situaccedilatildeo de miseacuteriardquo (p 27)

Na verdade o que se observa no cotidiano eacute que as populaccedilotildees que estatildeo em situaccedilatildeo de indigecircncia e pobreza precisam de auxiacutelios variados e continuados para romper com o ciacuterculo de dificuldades cotidianas E aqui existe um outro problema que coloca muitas vezes em risco o trabalho que pretende ser comprometido com a transformaccedilatildeo social Os projetos as intervenccedilotildees quando patrocinadas por oacutergatildeos estatais ou por empresas privadas possuem um prazo determinado a priori para a execuccedilatildeo das atividades propostas e para o uso dos recursos financeiros disponibilizados Normalmente o prazo eacute de aproximadamente 12 meses agraves vezes mais agraves vezes menos Como transformar uma situaccedilatildeo com raiacutezes histoacutericas tatildeo profundas em um curto espaccedilo de tempo Levaram-se anos na verdade seacuteculos para construirmos uma memoacuteria e um imaginaacuterio social da forma que os satildeo na atualidade Portanto pelo bem e pelo mal eacute fato eles natildeo se transformaratildeo na mesma velocidade que alguns gostariam O maacuteximo que se poderaacute fazer eacute atenuar os problemas ou como diz Demo (2002) docilizar as populaccedilotildees atendidas

Outro aspecto importante eacute a falta de paracircmetros de controle das entidades sociais Ateacute agora ldquonatildeo sabemos como gerir estas novas aacutereas pois os instrumentos de gestatildeo correspondentes ainda estatildeo engatinhandordquo (Dowbor 1999 p 8) Aleacutem disso casos de desvio de verbas corrupccedilatildeo fundaccedilotildees fantasmas etc natildeo satildeo novidades Quem deve ou deveria regular tais entidades Como podemos saber quais satildeo os resultados dos investimentos puacuteblicos nelas investidos

Embora a situaccedilatildeo social do Brasil tenha melhorado nos uacuteltimos anos (Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2008 2009) temos ainda um panorama grave e urgente Apoacutes a deacutecada de 1990 o que se fez foi afirmar e reafirmar a natildeo constituiccedilatildeo de uma rede universal de ldquoproteccedilatildeo social que explicite o dever do Estado na garantia dos direitos sociaisrdquo Na verdade foi o oposto que aconteceu Houve um retrocesso a uma ldquoconcepccedilatildeo de que o bem-estar pertence ao acircmbito do privadordquo a comunidades locais

as instituiccedilotildees de cunho religioso e filantroacutepico (Soares 2005 p 12) O plano era de que estas instituiccedilotildees tomadas pela bondade humana estabeleceriam uma rede de solidariedade para proteger e salvaguardar os pobres De certo modo o plano tem dado certo basta somente saber para quem

Sexta-feira pratique o voluntariado e regojize-se pelo aliacutevio de sua consciecircncia

Nos dias atuais a accedilatildeo voluntaacuteria tem sido reconhecida como praacutetica importante em discursos e planejamentos que visam agrave intervenccedilatildeo ou mudanccedila social No terceiro setor tal praacutetica eacute incentivada por inuacutemeras instituiccedilotildees em especial pela ONG Parceiros Voluntaacuterios (RS) Instituto Voluntaacuterios em Accedilatildeo (SC) e Portal do Voluntaacuterio (Internet) Tamanha eacute a importacircncia do assunto que a ONU lanccedilou um dia em comemoraccedilatildeo agrave praacutetica e aos praticantes ndash Dia Internacional do Voluntariado ndash fixado no dia 05 de dezembro

Mas o que eacute ser voluntaacuterio Segundo a definiccedilatildeo da ONG Parceiros Voluntaacuterios (2008) o voluntariado eacute aquilo que toda pessoa ou organizaccedilatildeo faz motivado pelos valores de participaccedilatildeo e solidariedade para contribuir com as causas de interesse social e comunitaacuterio Para tanto ldquoo voluntaacuterio disponibiliza seu conhecimento tempo e emoccedilatildeo de maneira espontacircnea e natildeo-remuneradardquo

Contudo nem sempre encontramos boas experiecircncias associadas a esse tipo de trabalho Reclamaccedilotildees quanto agrave exploraccedilatildeo das pessoas ao uso de informaccedilotildees sem retorno agravequeles que as forneceram ao curto periacuteodo de envolvimento em um trabalho etc satildeo muito comuns nas comunidades e instituiccedilotildees em que recebem os voluntaacuterios Mas por que isso acontece Talvez devecircssemos refletir sobre os motivos pelos quais as pessoas procuram realizar esta praacutetica

Uma pesquisa realizada em empresas e instituiccedilotildees natildeo governamentais por Caldana e Figueiredo (2008) aponta que a busca pelo voluntariado estaacute relacionada ao aumento da estima atraveacutes da aprovaccedilatildeo e reconhecimento dos colegas de trabalho a transmissatildeo de princiacutepios religiosos ao aliacutevio das tensotildees ao incentivo midiaacutetico a diminuiccedilatildeo de culpas a superaccedilatildeo de limites pessoais entre outros fatores Incluiriacuteamos tambeacutem entre as motivaccedilotildees a forte pressatildeo pela qual os profissionais satildeo submetidos para desenvolver algum tipo de trabalho desse feitio Se em um curriacuteculo profissional por exemplo existe doaccedilatildeo ao outro possivelmente este candidato possa tambeacutem se doar agrave empresa se o candidato jaacute realizou praacuteticas diversas mesmo que ele esteja se oferecendo

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ao mercado de trabalho pela primeira vez ele jaacute passou por experiecircncias anteriores (nada melhor neste caso entatildeo do que se treinar com aqueles que aparentemente natildeo reclamam das experiecircncias das quais satildeo partes)

Frente a tais caracteriacutesticas e motivaccedilotildees identificamos na concepccedilatildeo do voluntariado uma polarizaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo da relaccedilatildeo haacute o doador coisa ou serviccedilo doado e aquele desprovido que recebe Cria-se a imagem de que o doador eacute bom por excelecircncia que ele tem algo de muito especial para entregar agravequele que estaacute na outra ponta em uma situaccedilatildeo nem sempre muito confortaacutevel que por sua vez cumpre seu papel ao receber bem ou mal a coisa doada Aleacutem disso ouve-se desde crianccedila a afirmativa que basta plantar uma sementinha para mudar o mundohellip E entatildeo cada um deve fazer a sua parte para melhorar a situaccedilatildeo mundial em relaccedilatildeo a tudo Campanhas educativas em prol do meio ambiente estatildeo aiacute use sacola reciclaacutevel economize aacutegua e energia eleacutetrica escolha produtos sem agrotoacutexicos opte pelo uso de combustiacuteveis natildeo poluentes etc Concordamos evidentemente com todas essas campanhas mas ao mesmo tempo eacute impressionante ver o descaso e a pouca repercussatildeo com os desastres por exemplo provocados pelas empresas ou com o nuacutemero exorbitante de luzes acesas para celebrar o Natal Tambeacutem eacute importante lembrar que 80 das emissotildees de poluentes na atmosfera satildeo produzidas pelos paiacuteses do G-20 que conforme Sanson (2008) ao colocarem no topo da agenda a resoluccedilatildeo da crise econocircmica negligenciam a crise ecoloacutegica

Mas por que ainda assim eacute importante que individualmente tenhamos praacuteticas solidaacuterias e voluntaacuterias Qual eacute a loacutegica de transformaccedilatildeo ou manutenccedilatildeo social que elas (tais praacuteticas) sustentam Haacute o aliacutevio de tensotildees (Caldana amp Figueiredo 2008) para ambos lados naqueles que praticam o ato solidaacuterio e sentem-se uacuteteis socialmente e naqueles que recebem atraveacutes da amenizaccedilatildeo de algum possiacutevel sofrimento Natildeo seriam portanto funcionais aos interesses neoliberais e por conseguinte mais um instrumental que favorece a manutenccedilatildeo do status quo (Montantildeo 2005)

Final de semana o descanso ou a corporificaccedilatildeo da pobreza

Iniciamos o artigo discutindo o papel do conhecimento cientiacutefico frente agrave transformaccedilatildeo da realidade Vimos que os conceitos e teorias que circulam natildeo satildeo verdades absolutas mas sim construccedilotildees histoacutericas que precisam sempre ser contextualizadas

Isso porque o conhecimento cientiacutefico que alimenta conceitos praacuteticas poliacuteticas sociais etc tambeacutem eacute produzido sobre determinados interesses e jogos de poder Prova disso eacute a existecircncia de poucos trabalhos acadecircmicos que abordam a pobreza enquanto fenocircmeno e conceito com o vieacutes eou o discurso daqueles que estatildeo nesta condiccedilatildeo socioeconocircmica

Do mesmo modo mas com outra amplitude vecirc-se a forma como o Banco Mundial e o Fundo Monetaacuterio Internacional lidam com os Estados Nacionais com a pobreza e com os enquadrados como ldquopobresrdquo Problematizamos as afirmaccedilotildees sobre a importacircncia da reduccedilatildeo do tamanho do Estado para o desenvolvimento econocircmico do paiacutes e as suas consequecircncias com o enxugamento dos direitos sociais jaacute conquistados pelas populaccedilotildees fato que parece muito mais fomentar um ciclo de dependecircncia do que de autonomia e empoderamento

Dentro desta loacutegica de enxugamento estatal abordamos o surgimento e o fortalecimento do Terceiro Setor movimentando rios de dinheiro e alguns desvios de curso uma vez que ele eacute divulgado como a possibilidade da sociedade se articular em torno do bem comum da humanidade A bondade comprada ou natildeo eacute fundamental pois como eacute sugerido pelos discursos hegemocircnicos com um ldquomutiratildeo de voluntaacuteriosrdquo pode-se salvar boa parte das pessoas necessitadas Dessas pessoas chamadas por muitos como ldquobeneficiadasrdquo espera-se a aceitaccedilatildeo incondicional de sua situaccedilatildeo no mundo da ajuda recebida e da bondade posta a seu benefiacutecio Qualquer desvio eacute sinal de ingratidatildeo eou motivo para a culpabilizaccedilatildeo daquela pessoa que natildeo soube se preparar que natildeo soube se vender ao mercado de trabalho O fantasma do invaacutelido do desprovido do vagabundo do preguiccediloso segue entre noacutes e alimenta discursos disciplinadores e forccedilas repressivas

Ao analisar portanto o modo como a ldquopobrezardquo eacute retratada no mundo social percebe-se a existecircncia de uma espeacutecie de corroboraccedilatildeo contiacutenua vinda de diferentes atores sociais dessa condiccedilatildeo socioeconocircmica atraveacutes da naturalizaccedilatildeo de praacuteticas e discursos que favorece a aceitaccedilatildeo e apatia social perante a problemaacutetica Sabe-se que a pobreza poliacutetica eacute a encarnaccedilatildeo mais proacutexima dos efeitos de poder de uma sociedade opressiva Concordamos com Demo (2002) quando ele diz que o alimento a fonte de tal pobreza se daacute por diferentes caminhos pela ldquovia do cultivo da ignoracircncia para alimentar e manter a massa de manobrardquo pela ldquovia das ajudas que soacute ajudam a marginalizar ainda mais os marginalizadosrdquo pela ldquovia da compreensatildeo truncada da pobreza como simples carecircncia material para evitar a subelevaccedilatildeo dos excluiacutedosrdquo (p 12)

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Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546

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dos interesses do conhecimento pois a produccedilatildeo cientiacutefica somente ocorre atraveacutes deles Podemos afirmar que ningueacutem consegue livrar-se dos interesses do conhecimento apesar de alguns cientistas terem certeza da sua neutralidade Ao discutir essa questatildeo Habermas (cf Bauer Gaskell amp Allum 2002 Habermas 2006) propocircs uma tipologia de interesses do conhecimento a partir da anaacutelise de alguns autores Para ele existem trecircs interesses constitutivos do conhecimento que estatildeo na base das ciecircncias ldquoempiacuterico-analiacuteticasrdquo ldquohistoacuterico-hermenecircuticasrdquo e ldquocriacuteticasrdquo

As ciecircncias empiacuterico-analiacuteticas tecircm como base um interesse no controle teacutecnico ou seja com o objetivo de obter o conhecimento cientiacutefico adotam como imperativo racional o controle sobre as condiccedilotildees materiais em que nos encontramos e a partir disso buscam aumentar nossa sauacutede e seguranccedila fiacutesica e espiritual Promovem o estudo de leis que presidem os fenocircmenos naturais Buscam a prediccedilatildeo e a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos Jaacute as ciecircncias histoacuterico-hermenecircuticas tecircm um interesse no estabelecimento de consenso e em funccedilatildeo disso tomam como imperativo a busca pela compreensatildeo intersubjetiva que somente pode ser alcanccedilada atraveacutes da linguagem comum A compreensatildeo hermenecircutica que tem como finalidade restaurar canais rompidos de comunicaccedilatildeo trabalha com duas dimensotildees (a) o elo entre a proacutepria experiecircncia de vida de algueacutem e a tradiccedilatildeo agrave qual pertence e (b) a esfera da comunicaccedilatildeo entre diferentes indiviacuteduos grupos e tradiccedilotildees O cientista em ambos os casos procura aprender a liacutengua que ele interpreta mas deve aproximar-se da interpretaccedilatildeo a partir de um ponto histoacuterico especiacutefico Ao fazer isso o pesquisador leva em consideraccedilatildeo a totalidade de interpretaccedilatildeo que jaacute estaacute presente (uma vez que o proacuteprio mundo social jaacute eacute um mundo preacute-interpretado) e entra no que se chama de ldquociacuterculo hermenecircuticordquo Eacute esse movimento que leva ao consenso entre os atores Evidentemente que esse consenso jamais seraacute absoluto pelo contraacuterio ele eacute necessariamente fluido e dinacircmico pois ele eacute conseguido atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo que evolui e continua a evoluir e modificar-se historicamente (Bauer Gaskel amp Allum 2002)

A ciecircncia perdeu muito tempo e energia com a descriccedilatildeo de delineamentos e ldquobrigasrdquo entre as metodologias Parece ficar claro inclusive que o primeiro modelo encontra-se com mais frequecircncia nas pesquisas quantitativas e o segundo nas pesquisas qualitativas Contudo ainda haacute um terceiro tipo de ciecircncia e interesses que daacute um novo colorido a essa antiga discussatildeo Habermas aponta para a possibilidade de uma ciecircncia ldquocriacuteticardquo que tem como

interesse maior a emancipaccedilatildeo Sua principal tese eacute a de que os interesses emancipatoacuterios fornecem o referencial para se avanccedilar aleacutem do conhecimento nomoloacutegico e da compreensatildeo hermenecircutica e nos permitem ldquodeterminar quando afirmaccedilotildees teoacutericas atingem regularidades invariantes da accedilatildeo social como tal e quando elas expressam relaccedilotildees ideologicamente congeladas de dependecircncia que podem em princiacutepio ser transformadasrdquo (Bauer Gaskel amp Allum 2002 p 33) Eacute atraveacutes de um processo autorreflexivo que as ciecircncias criacuteticas podem chegar a identificar estruturas condicionadoras de poder que com o ldquouso de uma comunicaccedilatildeo sistematicamente distorcida e de uma repressatildeo sutilmente legitimadardquo tendem a se naturalizar na sociedade

Mas esse projeto de ciecircncia natildeo foi e natildeo eacute uma tarefa simples Criacuteticas sobre esta proposta alertam que a proacutepria ideia de transformaccedilatildeo emancipatoacuteria da sociedade pode se transformar em uma nova forma de opressatildeo social (Santos 2008) De fato muitas das praacuteticas embasadas nesta concepccedilatildeo ou seja em nome do desenvolvimento ou da conscientizaccedilatildeo de certo grupo acabaram legitimando ideias das quais elas pretendiam romper Assim mais do que nunca adotar o princiacutepio de que ldquoa coerecircncia da criacutetica estaacute na autocriacuteticardquo (Demo 2002 p23) eacute fator determinante para a construccedilatildeo de praacuteticas emancipadoras Sempre eacute importante lembrar que praacuteticas sociais satildeo produzidas por atores inseridos em instituiccedilotildees seja na pesquisa ou no campo da intervenccedilatildeo social Se satildeo praacuteticas jamais se poderia adotar a postura de uma suposta neutralidade e imparcialidade em momento algum inclusive ao decidir quem com ela se beneficiaraacute E isso nos leva a pensar no dia de amanhatilde ou seja no papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo internacional para o desenvolvimento de praacuteticas sociais justas e solidaacuterias

Quarta-feira lute contra a pobreza do mesmo modo que o BM e o FMI o fazem

Vimos que os conceitos satildeo produtos histoacutericos o que significa dizer que satildeo construiacutedos reproduzidos eou transformados conforme o ambiente e os jogos de poder em que estatildeo inseridos que o conhecimento produzido nas academias em especial nos nuacutecleos de pesquisa no acircmbito humano-social pode ter grande impacto na definiccedilatildeo de poliacuteticas sociais Agora pretendemos ilustrar o debate anterior inserindo na discussatildeo o papel das agecircncias de cooperaccedilatildeo na construccedilatildeo do pensamento social

Nem sempre se sabe de onde vecircm as palavras e expressotildees que partilhamos e perpetuamos em nosso cotidiano Utilizamo-las muitas vezes ingenuamente

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sem perceber os efeitos das mesmas sem nos darmos conta de que os conceitos podem estar legitimando praacuteticas opostas agraves nossas intenccedilotildees Assim a questatildeo que aqui colocamos eacute a seguinte o que significa aderir e perpetuar um conceito descolado de sua histoacuteria

Considerando-se a abrangecircncia e influecircncia de certas instituiccedilotildees internacionais na dinacircmica socioeconocircmica e poliacutetica mundial buscamos refletir sobre como a questatildeo da pobreza eacute tratada pelo Banco Mundial (BM) e levantamos possiacuteveis compreensotildees sobre quais satildeo os interesses dessa instituiccedilatildeo ao utilizar o conceito pobreza e as suas recomendaccedilotildees em relaccedilatildeo a como combatecirc-la

O BM juntamente com o Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI) foi criado durante a conferecircncia de Bretton Woods em 1944 proposta pelo governo norte-americano com a intenccedilatildeo de traccedilar os contornos da nova ordem econocircmica que deveria ser instituiacuteda no poacutes-guerra Ao mesmo tempo estabeleceu-se um novo padratildeo monetaacuterio internacional centrado no doacutelar com paridade fixa com o ouro (Mattos 2001) O BM tinha como objetivo promover o investimento internacional e manter a estabilidade do cacircmbio aleacutem de tratar de problemas de balanccedilas de pagamento (Hobsbawm 1995) As regras para seu funcionamento incluiacuteram um dispositivo de captaccedilatildeo de recursos junto aos mercados financeiros com as mais baixas taxas de mercado destinados evidentemente para os paiacuteses-membro (Misoczky 2002)

Mas nem sempre essas instituiccedilotildees tiveram o mesmo papel Entre 1974 e 1975 por exemplo o FMI seguido pelo BM mudou o seu enfoque dos paiacuteses industriais desenvolvidos para os que estavam em desenvolvimento uma vez que estes uacuteltimos cambaleavam com o impacto dos preccedilos cada vez mais altos do petroacuteleo Ao aumentar passo a passo os seus empreacutestimos o FMI ampliou o alcance das condicionalidades coercitivas e ajustes estruturais que impunha aos paiacuteses que eram seus clientes Desde 1980 o BM vem atuando como importante regulador e formulador de poliacuteticas para os paiacuteses perifeacutericos e juntamente com o FMI exercendo um papel importante na disseminaccedilatildeo das poliacuteticas neoliberais (Ugaacute 2004) Sabe-se que o FMI bem como outras agecircncias internacionais de desenvolvimento impotildeem condiccedilotildees para emprestar dinheiro determinando a reestruturaccedilatildeo de oacutergatildeos de governos municipais estaduais e federais e orientando suas praacuteticas Os empreacutestimos pagam consultores internacionais que frequentemente pouco conhecem a realidade local mas conhecem muito bem os idecircnticos modelos que satildeo impostos a diferentes paiacuteses de diferentes culturas em diferentes cidades (Maricato 2006)

A reforma do Estadoestimulada pela accedilatildeo do BM e do FMI propotildee como condiccedilatildeo para o crescimento econocircmico e inserccedilatildeo na ordem mundial ajustes fiscais e estabilidade interna da moeda o que torna necessaacuterio o controle dos gastos puacuteblicos e a geraccedilatildeo de superaacutevit primaacuterio nos paiacuteses perifeacutericos para saldar juros da diacutevida externa (Costa 2006 p 157)

Em diferentes contextos mas com consequecircncias semelhantes os Estados endividados passaram a depender do mercado financeiro A autonomia na formulaccedilatildeo da poliacutetica econocircmica foi prejudicada e passou a ser cada vez mais difiacutecil cobrar impostos num mundo globalizado com a mobilidade do capital ditando as regras ldquoA necessidade de criar postos de trabalho faz com que o capital tenha um poder de barganha muito grande sobre o governo com um apelo ideoloacutegico repassado para a sociedaderdquo (Costa 2006 p 164) E quando o governo contraria as expectativas do capital podemos assistir a um conjunto de manifestaccedilotildees midiaacuteticas que afirmam e reafirmam a incompetecircncia do Estado em gerir e manter os empregos em determinada regiatildeo

O BM passou a analisar e a balizar a atuaccedilatildeo dos governos tambeacutem no acircmbito social Em consonacircncia com os princiacutepios neoliberais prescreveu reformas especialmente nas aacutereas da educaccedilatildeo e da sauacutede Aleacutem disso constatou que as despesas governamentais com os serviccedilos sociais natildeo eram eficientes pois natildeo beneficiavam quem mais precisava delas os pobres Com tal conclusatildeo passou a recomendar fortemente que os paiacuteses adotassem medidas focalizadas ou seja serviccedilos sociais para as populaccedilotildees mais necessitadas O tema da equidade foi colocado em pauta frisando que a necessidade de intervenccedilatildeo deveria ser na educaccedilatildeo primaacuteria e no atendimento preventivo na sauacutede a atenccedilatildeo baacutesica (Fonseca 1998 Misoczki 2002 Ugaacute 2004) ldquoO ensino superior e o atendimento hospitalar foram considerados secundaacuterios dentro das propostas de atuaccedilatildeo do Estado na aacuterea socialrdquo (Costa 2006 p 209)

Segundo Costa (2006) as conquistas com a universalizaccedilatildeo do acesso sem melhorar a capacidade de investimento puacuteblico na elevaccedilatildeo da qualidade dos serviccedilos ofertados para toda a populaccedilatildeo fizeram com que a classe meacutedia buscasse o mercado privado Os usuaacuterios mais pobres que foram inseridos no acesso aos serviccedilos sociais na medida em que natildeo tinham esse acesso anteriormente fizeram pouca pressatildeo para elevar a qualidade do que estavam lhes oferecendo ldquoReproduzindo a loacutegica da submissatildeo agradecem pelo fato de serem atendidos sem considerar isso como um direito de cidadaniardquo (p 212)

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Eacute a partir da naturalizaccedilatildeo da pobreza e das desigualdades que esse modelo do BM devolve o conflito para o seio de uma sociedade fragmentada na qual os atores individualizam-se ao mesmo tempo em que sujeitos coletivos perdem as identidades ldquoMuda portanto a orientaccedilatildeo da poliacutetica social nem consumos coletivos nem direitos sociais senatildeo que assistecircncia focalizada para aqueles com lsquomenor capacidade de pressatildeorsquo ou os mais lsquohumildesrsquo ou ainda os mais lsquopobresrsquordquo (Soares 2002 p 73) Assim o Estado neoliberal constroacutei uma faceta assistencialista como contrapartida de um mercado livre e o BM pode se vangloriar de suas poliacuteticas com face humana que ensinam a lutar contra a pobreza Se por um lado criam-se necessidades com a poliacutetica de ajustes por outro se trabalha no sentido humanitaacuterio de reparo dos danos com o estiacutemulo agraves poliacuteticas focalizadas Evidentemente esse processo traz consequecircncias seacuterias para o cotidiano das comunidades por um lado a aceitaccedilatildeo do fenocircmeno da pobreza sem maiores questionamentos por outro o esvaziamento do conceito de cidadania social ou seja a garantia dos direitos sociais para muito aleacutem de meras poliacuteticas compensatoacuterias (Ugaacute 2004)

Quinta-feira usufrua dos benefiacutecios do mercado em torno do sofrimento humano pois ele eacute

rentaacutevel

No item anterior discutimos o interesse de algumas instituiccedilotildees internacionais na diminuiccedilatildeo do tamanho do papel do Estado Vimos que o debate natildeo estaacute isento de interesses ao contraacuterio ele ldquoevidencia a polecircmica dentro da sociedade sobre que funccedilotildees o Estado deve realizar e qual o seu papel na prestaccedilatildeo de serviccedilos sociaisrdquo (Costa 2006 p 208) Sabemos tambeacutem que a partir da deacutecada de 1990 com a incorporaccedilatildeo continuada das recomendaccedilotildees do Consenso de Washington houve o acirramento e ampliaccedilatildeo das desigualdades bem como o surgimento de uma nova exclusatildeo social Frente a isso uma onda de praacuteticas solidaacuterias realizadas tanto por instituiccedilotildees internacionais quanto nacionais emergiu para amenizar os problemas decorrentes do ajuste estrutural O Terceiro Setor caracterizado por abrigar um conjunto amplo de organizaccedilotildees natildeo-governamentais (ONGs) como associaccedilotildees e fundaccedilotildees surge no ldquointerior (e como resultado) do processo de reestruturaccedilatildeo do capital particularmente no conjunto de reformas do Estadordquo (Montantildeo 2005) A crise e a suposta escassez de recursos serviram como justificativa para que o Estado se eximisse de sua responsabilidade social assim como para a abertura de certos serviccedilos por

entidades que se imaginava serem sem fins lucrativos e comprometidas com a sociedade

Uma pesquisa de 2005 realizada pelo Programa de Voluntaacuterios das Naccedilotildees Unidas (UNV) em parceria com o instituto Johns Hopkins revelou o movimento (e o crescimento) financeiro deste setor no Brasil A pesquisa constatou que o setor obteve investimentos da ordem de R$ 47 bilhotildees o que representou 5 do PIB nacional superando inclusive setores expressivos da economia brasileira como a induacutestria de extraccedilatildeo mineral (petroacuteleo mineacuterio de ferro gaacutes natural carvatildeo entre outros) (Bedinelli 2006 O que fazem as pessoas 2008 Zavala 2006) Mas de onde vieram tais financiamentos Quais bondades foram realizadas com este recurso

Sabemos que boa parte dos recursos utilizados nesse setor satildeo puacuteblicos na medida em que essas instituiccedilotildees satildeo financiadas direta ou indiretamente por governos Diretamente quando por exemplo as entidades com tiacutetulo de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil de Interesse Puacuteblico (OSCIPs) podem disputar recursos puacuteblicos para realizar projetos e programas especiacuteficos Indiretamente quando por meio de incentivos fiscais empresas privadas deslocam parte do que destinariam aos impostos para uma instituiccedilatildeo do Terceiro Setor Costuma-se dizer ateacute mesmo na aacuterea da Gestatildeo Social que recursos natildeo faltam o que faltam satildeo bons projetos Independente se isso eacute verdadeiro ou natildeo fato eacute que a livre competiccedilatildeo caracteriacutestica do mercado capitalista tambeacutem ocupou espaccedilos de comercializaccedilatildeo do sofrimento humano

O filme intitulado Quanto vale ou eacute por quilo de 2005 traz elementos interessantes para o debate sobre o Terceiro Setor O diretor Seacutergio Bianchi penetra no mundo das ONGS com duras criacuteticas ilustrando o caos que compotildee tal campo das intervenccedilotildees sociais Tanto no filme quanto em nosso cotidiano haacute instituiccedilotildees que disputam verbas locais e beneficiados para a realizaccedilatildeo dos projetos Frente a isso pode-se questionar se problema da pobreza eacute de fato algo a ser resolvido ou mantido Aparentemente quanto maior o tamanho da pobreza maior seraacute o tamanho dos investimentos Bianchi (2005) em uma entrevista para a Revista Eacutepoca afirma natildeo ser contra a existecircncia de tais atividades desde que natildeo sejam atividades que levem ldquoa permanecircncia desses problemas ao transformar esses problemas em mercadordquo E complementa dizendo que se o Terceiro Setor ou a miseacuteria desaparecer uma quantidade enorme de desempregados surgiraacute (Bianchi 2005)

Um estudo realizado por Pinto (2005 p 2) sobre a atuaccedilatildeo das organizaccedilotildees sociais natildeo-governamentais (caracterizadas em trecircs grupos pela autora ideoloacutegicas

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religiosas e por pura solidariedade) que realizavam accedilotildees contra a fome identificou claras limitaccedilotildees para ldquolevar a cabo com ecircxito as missotildees de substituir o Estado em accedilotildees dirigidas a populaccedilotildees carentes ou em situaccedilatildeo de riscordquo Trecircs dessas limitaccedilotildees fundamentais satildeo a natildeo-obrigaccedilatildeo da universalidade a dependecircncia de recursos e o voluntariado Isso porque as accedilotildees tendem a ser realizadas por ldquoagentes da sociedade civil como uma questatildeo pontual isolada o que natildeo permite poliacuteticas universalizantes que mudem a qualidade de vida das populaccedilotildees em situaccedilatildeo de miseacuteriardquo (p 27)

Na verdade o que se observa no cotidiano eacute que as populaccedilotildees que estatildeo em situaccedilatildeo de indigecircncia e pobreza precisam de auxiacutelios variados e continuados para romper com o ciacuterculo de dificuldades cotidianas E aqui existe um outro problema que coloca muitas vezes em risco o trabalho que pretende ser comprometido com a transformaccedilatildeo social Os projetos as intervenccedilotildees quando patrocinadas por oacutergatildeos estatais ou por empresas privadas possuem um prazo determinado a priori para a execuccedilatildeo das atividades propostas e para o uso dos recursos financeiros disponibilizados Normalmente o prazo eacute de aproximadamente 12 meses agraves vezes mais agraves vezes menos Como transformar uma situaccedilatildeo com raiacutezes histoacutericas tatildeo profundas em um curto espaccedilo de tempo Levaram-se anos na verdade seacuteculos para construirmos uma memoacuteria e um imaginaacuterio social da forma que os satildeo na atualidade Portanto pelo bem e pelo mal eacute fato eles natildeo se transformaratildeo na mesma velocidade que alguns gostariam O maacuteximo que se poderaacute fazer eacute atenuar os problemas ou como diz Demo (2002) docilizar as populaccedilotildees atendidas

Outro aspecto importante eacute a falta de paracircmetros de controle das entidades sociais Ateacute agora ldquonatildeo sabemos como gerir estas novas aacutereas pois os instrumentos de gestatildeo correspondentes ainda estatildeo engatinhandordquo (Dowbor 1999 p 8) Aleacutem disso casos de desvio de verbas corrupccedilatildeo fundaccedilotildees fantasmas etc natildeo satildeo novidades Quem deve ou deveria regular tais entidades Como podemos saber quais satildeo os resultados dos investimentos puacuteblicos nelas investidos

Embora a situaccedilatildeo social do Brasil tenha melhorado nos uacuteltimos anos (Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2008 2009) temos ainda um panorama grave e urgente Apoacutes a deacutecada de 1990 o que se fez foi afirmar e reafirmar a natildeo constituiccedilatildeo de uma rede universal de ldquoproteccedilatildeo social que explicite o dever do Estado na garantia dos direitos sociaisrdquo Na verdade foi o oposto que aconteceu Houve um retrocesso a uma ldquoconcepccedilatildeo de que o bem-estar pertence ao acircmbito do privadordquo a comunidades locais

as instituiccedilotildees de cunho religioso e filantroacutepico (Soares 2005 p 12) O plano era de que estas instituiccedilotildees tomadas pela bondade humana estabeleceriam uma rede de solidariedade para proteger e salvaguardar os pobres De certo modo o plano tem dado certo basta somente saber para quem

Sexta-feira pratique o voluntariado e regojize-se pelo aliacutevio de sua consciecircncia

Nos dias atuais a accedilatildeo voluntaacuteria tem sido reconhecida como praacutetica importante em discursos e planejamentos que visam agrave intervenccedilatildeo ou mudanccedila social No terceiro setor tal praacutetica eacute incentivada por inuacutemeras instituiccedilotildees em especial pela ONG Parceiros Voluntaacuterios (RS) Instituto Voluntaacuterios em Accedilatildeo (SC) e Portal do Voluntaacuterio (Internet) Tamanha eacute a importacircncia do assunto que a ONU lanccedilou um dia em comemoraccedilatildeo agrave praacutetica e aos praticantes ndash Dia Internacional do Voluntariado ndash fixado no dia 05 de dezembro

Mas o que eacute ser voluntaacuterio Segundo a definiccedilatildeo da ONG Parceiros Voluntaacuterios (2008) o voluntariado eacute aquilo que toda pessoa ou organizaccedilatildeo faz motivado pelos valores de participaccedilatildeo e solidariedade para contribuir com as causas de interesse social e comunitaacuterio Para tanto ldquoo voluntaacuterio disponibiliza seu conhecimento tempo e emoccedilatildeo de maneira espontacircnea e natildeo-remuneradardquo

Contudo nem sempre encontramos boas experiecircncias associadas a esse tipo de trabalho Reclamaccedilotildees quanto agrave exploraccedilatildeo das pessoas ao uso de informaccedilotildees sem retorno agravequeles que as forneceram ao curto periacuteodo de envolvimento em um trabalho etc satildeo muito comuns nas comunidades e instituiccedilotildees em que recebem os voluntaacuterios Mas por que isso acontece Talvez devecircssemos refletir sobre os motivos pelos quais as pessoas procuram realizar esta praacutetica

Uma pesquisa realizada em empresas e instituiccedilotildees natildeo governamentais por Caldana e Figueiredo (2008) aponta que a busca pelo voluntariado estaacute relacionada ao aumento da estima atraveacutes da aprovaccedilatildeo e reconhecimento dos colegas de trabalho a transmissatildeo de princiacutepios religiosos ao aliacutevio das tensotildees ao incentivo midiaacutetico a diminuiccedilatildeo de culpas a superaccedilatildeo de limites pessoais entre outros fatores Incluiriacuteamos tambeacutem entre as motivaccedilotildees a forte pressatildeo pela qual os profissionais satildeo submetidos para desenvolver algum tipo de trabalho desse feitio Se em um curriacuteculo profissional por exemplo existe doaccedilatildeo ao outro possivelmente este candidato possa tambeacutem se doar agrave empresa se o candidato jaacute realizou praacuteticas diversas mesmo que ele esteja se oferecendo

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ao mercado de trabalho pela primeira vez ele jaacute passou por experiecircncias anteriores (nada melhor neste caso entatildeo do que se treinar com aqueles que aparentemente natildeo reclamam das experiecircncias das quais satildeo partes)

Frente a tais caracteriacutesticas e motivaccedilotildees identificamos na concepccedilatildeo do voluntariado uma polarizaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo da relaccedilatildeo haacute o doador coisa ou serviccedilo doado e aquele desprovido que recebe Cria-se a imagem de que o doador eacute bom por excelecircncia que ele tem algo de muito especial para entregar agravequele que estaacute na outra ponta em uma situaccedilatildeo nem sempre muito confortaacutevel que por sua vez cumpre seu papel ao receber bem ou mal a coisa doada Aleacutem disso ouve-se desde crianccedila a afirmativa que basta plantar uma sementinha para mudar o mundohellip E entatildeo cada um deve fazer a sua parte para melhorar a situaccedilatildeo mundial em relaccedilatildeo a tudo Campanhas educativas em prol do meio ambiente estatildeo aiacute use sacola reciclaacutevel economize aacutegua e energia eleacutetrica escolha produtos sem agrotoacutexicos opte pelo uso de combustiacuteveis natildeo poluentes etc Concordamos evidentemente com todas essas campanhas mas ao mesmo tempo eacute impressionante ver o descaso e a pouca repercussatildeo com os desastres por exemplo provocados pelas empresas ou com o nuacutemero exorbitante de luzes acesas para celebrar o Natal Tambeacutem eacute importante lembrar que 80 das emissotildees de poluentes na atmosfera satildeo produzidas pelos paiacuteses do G-20 que conforme Sanson (2008) ao colocarem no topo da agenda a resoluccedilatildeo da crise econocircmica negligenciam a crise ecoloacutegica

Mas por que ainda assim eacute importante que individualmente tenhamos praacuteticas solidaacuterias e voluntaacuterias Qual eacute a loacutegica de transformaccedilatildeo ou manutenccedilatildeo social que elas (tais praacuteticas) sustentam Haacute o aliacutevio de tensotildees (Caldana amp Figueiredo 2008) para ambos lados naqueles que praticam o ato solidaacuterio e sentem-se uacuteteis socialmente e naqueles que recebem atraveacutes da amenizaccedilatildeo de algum possiacutevel sofrimento Natildeo seriam portanto funcionais aos interesses neoliberais e por conseguinte mais um instrumental que favorece a manutenccedilatildeo do status quo (Montantildeo 2005)

Final de semana o descanso ou a corporificaccedilatildeo da pobreza

Iniciamos o artigo discutindo o papel do conhecimento cientiacutefico frente agrave transformaccedilatildeo da realidade Vimos que os conceitos e teorias que circulam natildeo satildeo verdades absolutas mas sim construccedilotildees histoacutericas que precisam sempre ser contextualizadas

Isso porque o conhecimento cientiacutefico que alimenta conceitos praacuteticas poliacuteticas sociais etc tambeacutem eacute produzido sobre determinados interesses e jogos de poder Prova disso eacute a existecircncia de poucos trabalhos acadecircmicos que abordam a pobreza enquanto fenocircmeno e conceito com o vieacutes eou o discurso daqueles que estatildeo nesta condiccedilatildeo socioeconocircmica

Do mesmo modo mas com outra amplitude vecirc-se a forma como o Banco Mundial e o Fundo Monetaacuterio Internacional lidam com os Estados Nacionais com a pobreza e com os enquadrados como ldquopobresrdquo Problematizamos as afirmaccedilotildees sobre a importacircncia da reduccedilatildeo do tamanho do Estado para o desenvolvimento econocircmico do paiacutes e as suas consequecircncias com o enxugamento dos direitos sociais jaacute conquistados pelas populaccedilotildees fato que parece muito mais fomentar um ciclo de dependecircncia do que de autonomia e empoderamento

Dentro desta loacutegica de enxugamento estatal abordamos o surgimento e o fortalecimento do Terceiro Setor movimentando rios de dinheiro e alguns desvios de curso uma vez que ele eacute divulgado como a possibilidade da sociedade se articular em torno do bem comum da humanidade A bondade comprada ou natildeo eacute fundamental pois como eacute sugerido pelos discursos hegemocircnicos com um ldquomutiratildeo de voluntaacuteriosrdquo pode-se salvar boa parte das pessoas necessitadas Dessas pessoas chamadas por muitos como ldquobeneficiadasrdquo espera-se a aceitaccedilatildeo incondicional de sua situaccedilatildeo no mundo da ajuda recebida e da bondade posta a seu benefiacutecio Qualquer desvio eacute sinal de ingratidatildeo eou motivo para a culpabilizaccedilatildeo daquela pessoa que natildeo soube se preparar que natildeo soube se vender ao mercado de trabalho O fantasma do invaacutelido do desprovido do vagabundo do preguiccediloso segue entre noacutes e alimenta discursos disciplinadores e forccedilas repressivas

Ao analisar portanto o modo como a ldquopobrezardquo eacute retratada no mundo social percebe-se a existecircncia de uma espeacutecie de corroboraccedilatildeo contiacutenua vinda de diferentes atores sociais dessa condiccedilatildeo socioeconocircmica atraveacutes da naturalizaccedilatildeo de praacuteticas e discursos que favorece a aceitaccedilatildeo e apatia social perante a problemaacutetica Sabe-se que a pobreza poliacutetica eacute a encarnaccedilatildeo mais proacutexima dos efeitos de poder de uma sociedade opressiva Concordamos com Demo (2002) quando ele diz que o alimento a fonte de tal pobreza se daacute por diferentes caminhos pela ldquovia do cultivo da ignoracircncia para alimentar e manter a massa de manobrardquo pela ldquovia das ajudas que soacute ajudam a marginalizar ainda mais os marginalizadosrdquo pela ldquovia da compreensatildeo truncada da pobreza como simples carecircncia material para evitar a subelevaccedilatildeo dos excluiacutedosrdquo (p 12)

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Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546

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sem perceber os efeitos das mesmas sem nos darmos conta de que os conceitos podem estar legitimando praacuteticas opostas agraves nossas intenccedilotildees Assim a questatildeo que aqui colocamos eacute a seguinte o que significa aderir e perpetuar um conceito descolado de sua histoacuteria

Considerando-se a abrangecircncia e influecircncia de certas instituiccedilotildees internacionais na dinacircmica socioeconocircmica e poliacutetica mundial buscamos refletir sobre como a questatildeo da pobreza eacute tratada pelo Banco Mundial (BM) e levantamos possiacuteveis compreensotildees sobre quais satildeo os interesses dessa instituiccedilatildeo ao utilizar o conceito pobreza e as suas recomendaccedilotildees em relaccedilatildeo a como combatecirc-la

O BM juntamente com o Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI) foi criado durante a conferecircncia de Bretton Woods em 1944 proposta pelo governo norte-americano com a intenccedilatildeo de traccedilar os contornos da nova ordem econocircmica que deveria ser instituiacuteda no poacutes-guerra Ao mesmo tempo estabeleceu-se um novo padratildeo monetaacuterio internacional centrado no doacutelar com paridade fixa com o ouro (Mattos 2001) O BM tinha como objetivo promover o investimento internacional e manter a estabilidade do cacircmbio aleacutem de tratar de problemas de balanccedilas de pagamento (Hobsbawm 1995) As regras para seu funcionamento incluiacuteram um dispositivo de captaccedilatildeo de recursos junto aos mercados financeiros com as mais baixas taxas de mercado destinados evidentemente para os paiacuteses-membro (Misoczky 2002)

Mas nem sempre essas instituiccedilotildees tiveram o mesmo papel Entre 1974 e 1975 por exemplo o FMI seguido pelo BM mudou o seu enfoque dos paiacuteses industriais desenvolvidos para os que estavam em desenvolvimento uma vez que estes uacuteltimos cambaleavam com o impacto dos preccedilos cada vez mais altos do petroacuteleo Ao aumentar passo a passo os seus empreacutestimos o FMI ampliou o alcance das condicionalidades coercitivas e ajustes estruturais que impunha aos paiacuteses que eram seus clientes Desde 1980 o BM vem atuando como importante regulador e formulador de poliacuteticas para os paiacuteses perifeacutericos e juntamente com o FMI exercendo um papel importante na disseminaccedilatildeo das poliacuteticas neoliberais (Ugaacute 2004) Sabe-se que o FMI bem como outras agecircncias internacionais de desenvolvimento impotildeem condiccedilotildees para emprestar dinheiro determinando a reestruturaccedilatildeo de oacutergatildeos de governos municipais estaduais e federais e orientando suas praacuteticas Os empreacutestimos pagam consultores internacionais que frequentemente pouco conhecem a realidade local mas conhecem muito bem os idecircnticos modelos que satildeo impostos a diferentes paiacuteses de diferentes culturas em diferentes cidades (Maricato 2006)

A reforma do Estadoestimulada pela accedilatildeo do BM e do FMI propotildee como condiccedilatildeo para o crescimento econocircmico e inserccedilatildeo na ordem mundial ajustes fiscais e estabilidade interna da moeda o que torna necessaacuterio o controle dos gastos puacuteblicos e a geraccedilatildeo de superaacutevit primaacuterio nos paiacuteses perifeacutericos para saldar juros da diacutevida externa (Costa 2006 p 157)

Em diferentes contextos mas com consequecircncias semelhantes os Estados endividados passaram a depender do mercado financeiro A autonomia na formulaccedilatildeo da poliacutetica econocircmica foi prejudicada e passou a ser cada vez mais difiacutecil cobrar impostos num mundo globalizado com a mobilidade do capital ditando as regras ldquoA necessidade de criar postos de trabalho faz com que o capital tenha um poder de barganha muito grande sobre o governo com um apelo ideoloacutegico repassado para a sociedaderdquo (Costa 2006 p 164) E quando o governo contraria as expectativas do capital podemos assistir a um conjunto de manifestaccedilotildees midiaacuteticas que afirmam e reafirmam a incompetecircncia do Estado em gerir e manter os empregos em determinada regiatildeo

O BM passou a analisar e a balizar a atuaccedilatildeo dos governos tambeacutem no acircmbito social Em consonacircncia com os princiacutepios neoliberais prescreveu reformas especialmente nas aacutereas da educaccedilatildeo e da sauacutede Aleacutem disso constatou que as despesas governamentais com os serviccedilos sociais natildeo eram eficientes pois natildeo beneficiavam quem mais precisava delas os pobres Com tal conclusatildeo passou a recomendar fortemente que os paiacuteses adotassem medidas focalizadas ou seja serviccedilos sociais para as populaccedilotildees mais necessitadas O tema da equidade foi colocado em pauta frisando que a necessidade de intervenccedilatildeo deveria ser na educaccedilatildeo primaacuteria e no atendimento preventivo na sauacutede a atenccedilatildeo baacutesica (Fonseca 1998 Misoczki 2002 Ugaacute 2004) ldquoO ensino superior e o atendimento hospitalar foram considerados secundaacuterios dentro das propostas de atuaccedilatildeo do Estado na aacuterea socialrdquo (Costa 2006 p 209)

Segundo Costa (2006) as conquistas com a universalizaccedilatildeo do acesso sem melhorar a capacidade de investimento puacuteblico na elevaccedilatildeo da qualidade dos serviccedilos ofertados para toda a populaccedilatildeo fizeram com que a classe meacutedia buscasse o mercado privado Os usuaacuterios mais pobres que foram inseridos no acesso aos serviccedilos sociais na medida em que natildeo tinham esse acesso anteriormente fizeram pouca pressatildeo para elevar a qualidade do que estavam lhes oferecendo ldquoReproduzindo a loacutegica da submissatildeo agradecem pelo fato de serem atendidos sem considerar isso como um direito de cidadaniardquo (p 212)

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Eacute a partir da naturalizaccedilatildeo da pobreza e das desigualdades que esse modelo do BM devolve o conflito para o seio de uma sociedade fragmentada na qual os atores individualizam-se ao mesmo tempo em que sujeitos coletivos perdem as identidades ldquoMuda portanto a orientaccedilatildeo da poliacutetica social nem consumos coletivos nem direitos sociais senatildeo que assistecircncia focalizada para aqueles com lsquomenor capacidade de pressatildeorsquo ou os mais lsquohumildesrsquo ou ainda os mais lsquopobresrsquordquo (Soares 2002 p 73) Assim o Estado neoliberal constroacutei uma faceta assistencialista como contrapartida de um mercado livre e o BM pode se vangloriar de suas poliacuteticas com face humana que ensinam a lutar contra a pobreza Se por um lado criam-se necessidades com a poliacutetica de ajustes por outro se trabalha no sentido humanitaacuterio de reparo dos danos com o estiacutemulo agraves poliacuteticas focalizadas Evidentemente esse processo traz consequecircncias seacuterias para o cotidiano das comunidades por um lado a aceitaccedilatildeo do fenocircmeno da pobreza sem maiores questionamentos por outro o esvaziamento do conceito de cidadania social ou seja a garantia dos direitos sociais para muito aleacutem de meras poliacuteticas compensatoacuterias (Ugaacute 2004)

Quinta-feira usufrua dos benefiacutecios do mercado em torno do sofrimento humano pois ele eacute

rentaacutevel

No item anterior discutimos o interesse de algumas instituiccedilotildees internacionais na diminuiccedilatildeo do tamanho do papel do Estado Vimos que o debate natildeo estaacute isento de interesses ao contraacuterio ele ldquoevidencia a polecircmica dentro da sociedade sobre que funccedilotildees o Estado deve realizar e qual o seu papel na prestaccedilatildeo de serviccedilos sociaisrdquo (Costa 2006 p 208) Sabemos tambeacutem que a partir da deacutecada de 1990 com a incorporaccedilatildeo continuada das recomendaccedilotildees do Consenso de Washington houve o acirramento e ampliaccedilatildeo das desigualdades bem como o surgimento de uma nova exclusatildeo social Frente a isso uma onda de praacuteticas solidaacuterias realizadas tanto por instituiccedilotildees internacionais quanto nacionais emergiu para amenizar os problemas decorrentes do ajuste estrutural O Terceiro Setor caracterizado por abrigar um conjunto amplo de organizaccedilotildees natildeo-governamentais (ONGs) como associaccedilotildees e fundaccedilotildees surge no ldquointerior (e como resultado) do processo de reestruturaccedilatildeo do capital particularmente no conjunto de reformas do Estadordquo (Montantildeo 2005) A crise e a suposta escassez de recursos serviram como justificativa para que o Estado se eximisse de sua responsabilidade social assim como para a abertura de certos serviccedilos por

entidades que se imaginava serem sem fins lucrativos e comprometidas com a sociedade

Uma pesquisa de 2005 realizada pelo Programa de Voluntaacuterios das Naccedilotildees Unidas (UNV) em parceria com o instituto Johns Hopkins revelou o movimento (e o crescimento) financeiro deste setor no Brasil A pesquisa constatou que o setor obteve investimentos da ordem de R$ 47 bilhotildees o que representou 5 do PIB nacional superando inclusive setores expressivos da economia brasileira como a induacutestria de extraccedilatildeo mineral (petroacuteleo mineacuterio de ferro gaacutes natural carvatildeo entre outros) (Bedinelli 2006 O que fazem as pessoas 2008 Zavala 2006) Mas de onde vieram tais financiamentos Quais bondades foram realizadas com este recurso

Sabemos que boa parte dos recursos utilizados nesse setor satildeo puacuteblicos na medida em que essas instituiccedilotildees satildeo financiadas direta ou indiretamente por governos Diretamente quando por exemplo as entidades com tiacutetulo de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil de Interesse Puacuteblico (OSCIPs) podem disputar recursos puacuteblicos para realizar projetos e programas especiacuteficos Indiretamente quando por meio de incentivos fiscais empresas privadas deslocam parte do que destinariam aos impostos para uma instituiccedilatildeo do Terceiro Setor Costuma-se dizer ateacute mesmo na aacuterea da Gestatildeo Social que recursos natildeo faltam o que faltam satildeo bons projetos Independente se isso eacute verdadeiro ou natildeo fato eacute que a livre competiccedilatildeo caracteriacutestica do mercado capitalista tambeacutem ocupou espaccedilos de comercializaccedilatildeo do sofrimento humano

O filme intitulado Quanto vale ou eacute por quilo de 2005 traz elementos interessantes para o debate sobre o Terceiro Setor O diretor Seacutergio Bianchi penetra no mundo das ONGS com duras criacuteticas ilustrando o caos que compotildee tal campo das intervenccedilotildees sociais Tanto no filme quanto em nosso cotidiano haacute instituiccedilotildees que disputam verbas locais e beneficiados para a realizaccedilatildeo dos projetos Frente a isso pode-se questionar se problema da pobreza eacute de fato algo a ser resolvido ou mantido Aparentemente quanto maior o tamanho da pobreza maior seraacute o tamanho dos investimentos Bianchi (2005) em uma entrevista para a Revista Eacutepoca afirma natildeo ser contra a existecircncia de tais atividades desde que natildeo sejam atividades que levem ldquoa permanecircncia desses problemas ao transformar esses problemas em mercadordquo E complementa dizendo que se o Terceiro Setor ou a miseacuteria desaparecer uma quantidade enorme de desempregados surgiraacute (Bianchi 2005)

Um estudo realizado por Pinto (2005 p 2) sobre a atuaccedilatildeo das organizaccedilotildees sociais natildeo-governamentais (caracterizadas em trecircs grupos pela autora ideoloacutegicas

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religiosas e por pura solidariedade) que realizavam accedilotildees contra a fome identificou claras limitaccedilotildees para ldquolevar a cabo com ecircxito as missotildees de substituir o Estado em accedilotildees dirigidas a populaccedilotildees carentes ou em situaccedilatildeo de riscordquo Trecircs dessas limitaccedilotildees fundamentais satildeo a natildeo-obrigaccedilatildeo da universalidade a dependecircncia de recursos e o voluntariado Isso porque as accedilotildees tendem a ser realizadas por ldquoagentes da sociedade civil como uma questatildeo pontual isolada o que natildeo permite poliacuteticas universalizantes que mudem a qualidade de vida das populaccedilotildees em situaccedilatildeo de miseacuteriardquo (p 27)

Na verdade o que se observa no cotidiano eacute que as populaccedilotildees que estatildeo em situaccedilatildeo de indigecircncia e pobreza precisam de auxiacutelios variados e continuados para romper com o ciacuterculo de dificuldades cotidianas E aqui existe um outro problema que coloca muitas vezes em risco o trabalho que pretende ser comprometido com a transformaccedilatildeo social Os projetos as intervenccedilotildees quando patrocinadas por oacutergatildeos estatais ou por empresas privadas possuem um prazo determinado a priori para a execuccedilatildeo das atividades propostas e para o uso dos recursos financeiros disponibilizados Normalmente o prazo eacute de aproximadamente 12 meses agraves vezes mais agraves vezes menos Como transformar uma situaccedilatildeo com raiacutezes histoacutericas tatildeo profundas em um curto espaccedilo de tempo Levaram-se anos na verdade seacuteculos para construirmos uma memoacuteria e um imaginaacuterio social da forma que os satildeo na atualidade Portanto pelo bem e pelo mal eacute fato eles natildeo se transformaratildeo na mesma velocidade que alguns gostariam O maacuteximo que se poderaacute fazer eacute atenuar os problemas ou como diz Demo (2002) docilizar as populaccedilotildees atendidas

Outro aspecto importante eacute a falta de paracircmetros de controle das entidades sociais Ateacute agora ldquonatildeo sabemos como gerir estas novas aacutereas pois os instrumentos de gestatildeo correspondentes ainda estatildeo engatinhandordquo (Dowbor 1999 p 8) Aleacutem disso casos de desvio de verbas corrupccedilatildeo fundaccedilotildees fantasmas etc natildeo satildeo novidades Quem deve ou deveria regular tais entidades Como podemos saber quais satildeo os resultados dos investimentos puacuteblicos nelas investidos

Embora a situaccedilatildeo social do Brasil tenha melhorado nos uacuteltimos anos (Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2008 2009) temos ainda um panorama grave e urgente Apoacutes a deacutecada de 1990 o que se fez foi afirmar e reafirmar a natildeo constituiccedilatildeo de uma rede universal de ldquoproteccedilatildeo social que explicite o dever do Estado na garantia dos direitos sociaisrdquo Na verdade foi o oposto que aconteceu Houve um retrocesso a uma ldquoconcepccedilatildeo de que o bem-estar pertence ao acircmbito do privadordquo a comunidades locais

as instituiccedilotildees de cunho religioso e filantroacutepico (Soares 2005 p 12) O plano era de que estas instituiccedilotildees tomadas pela bondade humana estabeleceriam uma rede de solidariedade para proteger e salvaguardar os pobres De certo modo o plano tem dado certo basta somente saber para quem

Sexta-feira pratique o voluntariado e regojize-se pelo aliacutevio de sua consciecircncia

Nos dias atuais a accedilatildeo voluntaacuteria tem sido reconhecida como praacutetica importante em discursos e planejamentos que visam agrave intervenccedilatildeo ou mudanccedila social No terceiro setor tal praacutetica eacute incentivada por inuacutemeras instituiccedilotildees em especial pela ONG Parceiros Voluntaacuterios (RS) Instituto Voluntaacuterios em Accedilatildeo (SC) e Portal do Voluntaacuterio (Internet) Tamanha eacute a importacircncia do assunto que a ONU lanccedilou um dia em comemoraccedilatildeo agrave praacutetica e aos praticantes ndash Dia Internacional do Voluntariado ndash fixado no dia 05 de dezembro

Mas o que eacute ser voluntaacuterio Segundo a definiccedilatildeo da ONG Parceiros Voluntaacuterios (2008) o voluntariado eacute aquilo que toda pessoa ou organizaccedilatildeo faz motivado pelos valores de participaccedilatildeo e solidariedade para contribuir com as causas de interesse social e comunitaacuterio Para tanto ldquoo voluntaacuterio disponibiliza seu conhecimento tempo e emoccedilatildeo de maneira espontacircnea e natildeo-remuneradardquo

Contudo nem sempre encontramos boas experiecircncias associadas a esse tipo de trabalho Reclamaccedilotildees quanto agrave exploraccedilatildeo das pessoas ao uso de informaccedilotildees sem retorno agravequeles que as forneceram ao curto periacuteodo de envolvimento em um trabalho etc satildeo muito comuns nas comunidades e instituiccedilotildees em que recebem os voluntaacuterios Mas por que isso acontece Talvez devecircssemos refletir sobre os motivos pelos quais as pessoas procuram realizar esta praacutetica

Uma pesquisa realizada em empresas e instituiccedilotildees natildeo governamentais por Caldana e Figueiredo (2008) aponta que a busca pelo voluntariado estaacute relacionada ao aumento da estima atraveacutes da aprovaccedilatildeo e reconhecimento dos colegas de trabalho a transmissatildeo de princiacutepios religiosos ao aliacutevio das tensotildees ao incentivo midiaacutetico a diminuiccedilatildeo de culpas a superaccedilatildeo de limites pessoais entre outros fatores Incluiriacuteamos tambeacutem entre as motivaccedilotildees a forte pressatildeo pela qual os profissionais satildeo submetidos para desenvolver algum tipo de trabalho desse feitio Se em um curriacuteculo profissional por exemplo existe doaccedilatildeo ao outro possivelmente este candidato possa tambeacutem se doar agrave empresa se o candidato jaacute realizou praacuteticas diversas mesmo que ele esteja se oferecendo

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ao mercado de trabalho pela primeira vez ele jaacute passou por experiecircncias anteriores (nada melhor neste caso entatildeo do que se treinar com aqueles que aparentemente natildeo reclamam das experiecircncias das quais satildeo partes)

Frente a tais caracteriacutesticas e motivaccedilotildees identificamos na concepccedilatildeo do voluntariado uma polarizaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo da relaccedilatildeo haacute o doador coisa ou serviccedilo doado e aquele desprovido que recebe Cria-se a imagem de que o doador eacute bom por excelecircncia que ele tem algo de muito especial para entregar agravequele que estaacute na outra ponta em uma situaccedilatildeo nem sempre muito confortaacutevel que por sua vez cumpre seu papel ao receber bem ou mal a coisa doada Aleacutem disso ouve-se desde crianccedila a afirmativa que basta plantar uma sementinha para mudar o mundohellip E entatildeo cada um deve fazer a sua parte para melhorar a situaccedilatildeo mundial em relaccedilatildeo a tudo Campanhas educativas em prol do meio ambiente estatildeo aiacute use sacola reciclaacutevel economize aacutegua e energia eleacutetrica escolha produtos sem agrotoacutexicos opte pelo uso de combustiacuteveis natildeo poluentes etc Concordamos evidentemente com todas essas campanhas mas ao mesmo tempo eacute impressionante ver o descaso e a pouca repercussatildeo com os desastres por exemplo provocados pelas empresas ou com o nuacutemero exorbitante de luzes acesas para celebrar o Natal Tambeacutem eacute importante lembrar que 80 das emissotildees de poluentes na atmosfera satildeo produzidas pelos paiacuteses do G-20 que conforme Sanson (2008) ao colocarem no topo da agenda a resoluccedilatildeo da crise econocircmica negligenciam a crise ecoloacutegica

Mas por que ainda assim eacute importante que individualmente tenhamos praacuteticas solidaacuterias e voluntaacuterias Qual eacute a loacutegica de transformaccedilatildeo ou manutenccedilatildeo social que elas (tais praacuteticas) sustentam Haacute o aliacutevio de tensotildees (Caldana amp Figueiredo 2008) para ambos lados naqueles que praticam o ato solidaacuterio e sentem-se uacuteteis socialmente e naqueles que recebem atraveacutes da amenizaccedilatildeo de algum possiacutevel sofrimento Natildeo seriam portanto funcionais aos interesses neoliberais e por conseguinte mais um instrumental que favorece a manutenccedilatildeo do status quo (Montantildeo 2005)

Final de semana o descanso ou a corporificaccedilatildeo da pobreza

Iniciamos o artigo discutindo o papel do conhecimento cientiacutefico frente agrave transformaccedilatildeo da realidade Vimos que os conceitos e teorias que circulam natildeo satildeo verdades absolutas mas sim construccedilotildees histoacutericas que precisam sempre ser contextualizadas

Isso porque o conhecimento cientiacutefico que alimenta conceitos praacuteticas poliacuteticas sociais etc tambeacutem eacute produzido sobre determinados interesses e jogos de poder Prova disso eacute a existecircncia de poucos trabalhos acadecircmicos que abordam a pobreza enquanto fenocircmeno e conceito com o vieacutes eou o discurso daqueles que estatildeo nesta condiccedilatildeo socioeconocircmica

Do mesmo modo mas com outra amplitude vecirc-se a forma como o Banco Mundial e o Fundo Monetaacuterio Internacional lidam com os Estados Nacionais com a pobreza e com os enquadrados como ldquopobresrdquo Problematizamos as afirmaccedilotildees sobre a importacircncia da reduccedilatildeo do tamanho do Estado para o desenvolvimento econocircmico do paiacutes e as suas consequecircncias com o enxugamento dos direitos sociais jaacute conquistados pelas populaccedilotildees fato que parece muito mais fomentar um ciclo de dependecircncia do que de autonomia e empoderamento

Dentro desta loacutegica de enxugamento estatal abordamos o surgimento e o fortalecimento do Terceiro Setor movimentando rios de dinheiro e alguns desvios de curso uma vez que ele eacute divulgado como a possibilidade da sociedade se articular em torno do bem comum da humanidade A bondade comprada ou natildeo eacute fundamental pois como eacute sugerido pelos discursos hegemocircnicos com um ldquomutiratildeo de voluntaacuteriosrdquo pode-se salvar boa parte das pessoas necessitadas Dessas pessoas chamadas por muitos como ldquobeneficiadasrdquo espera-se a aceitaccedilatildeo incondicional de sua situaccedilatildeo no mundo da ajuda recebida e da bondade posta a seu benefiacutecio Qualquer desvio eacute sinal de ingratidatildeo eou motivo para a culpabilizaccedilatildeo daquela pessoa que natildeo soube se preparar que natildeo soube se vender ao mercado de trabalho O fantasma do invaacutelido do desprovido do vagabundo do preguiccediloso segue entre noacutes e alimenta discursos disciplinadores e forccedilas repressivas

Ao analisar portanto o modo como a ldquopobrezardquo eacute retratada no mundo social percebe-se a existecircncia de uma espeacutecie de corroboraccedilatildeo contiacutenua vinda de diferentes atores sociais dessa condiccedilatildeo socioeconocircmica atraveacutes da naturalizaccedilatildeo de praacuteticas e discursos que favorece a aceitaccedilatildeo e apatia social perante a problemaacutetica Sabe-se que a pobreza poliacutetica eacute a encarnaccedilatildeo mais proacutexima dos efeitos de poder de uma sociedade opressiva Concordamos com Demo (2002) quando ele diz que o alimento a fonte de tal pobreza se daacute por diferentes caminhos pela ldquovia do cultivo da ignoracircncia para alimentar e manter a massa de manobrardquo pela ldquovia das ajudas que soacute ajudam a marginalizar ainda mais os marginalizadosrdquo pela ldquovia da compreensatildeo truncada da pobreza como simples carecircncia material para evitar a subelevaccedilatildeo dos excluiacutedosrdquo (p 12)

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Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546

Accorssi A Scarparo H amp Guareschi P A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento

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Eacute a partir da naturalizaccedilatildeo da pobreza e das desigualdades que esse modelo do BM devolve o conflito para o seio de uma sociedade fragmentada na qual os atores individualizam-se ao mesmo tempo em que sujeitos coletivos perdem as identidades ldquoMuda portanto a orientaccedilatildeo da poliacutetica social nem consumos coletivos nem direitos sociais senatildeo que assistecircncia focalizada para aqueles com lsquomenor capacidade de pressatildeorsquo ou os mais lsquohumildesrsquo ou ainda os mais lsquopobresrsquordquo (Soares 2002 p 73) Assim o Estado neoliberal constroacutei uma faceta assistencialista como contrapartida de um mercado livre e o BM pode se vangloriar de suas poliacuteticas com face humana que ensinam a lutar contra a pobreza Se por um lado criam-se necessidades com a poliacutetica de ajustes por outro se trabalha no sentido humanitaacuterio de reparo dos danos com o estiacutemulo agraves poliacuteticas focalizadas Evidentemente esse processo traz consequecircncias seacuterias para o cotidiano das comunidades por um lado a aceitaccedilatildeo do fenocircmeno da pobreza sem maiores questionamentos por outro o esvaziamento do conceito de cidadania social ou seja a garantia dos direitos sociais para muito aleacutem de meras poliacuteticas compensatoacuterias (Ugaacute 2004)

Quinta-feira usufrua dos benefiacutecios do mercado em torno do sofrimento humano pois ele eacute

rentaacutevel

No item anterior discutimos o interesse de algumas instituiccedilotildees internacionais na diminuiccedilatildeo do tamanho do papel do Estado Vimos que o debate natildeo estaacute isento de interesses ao contraacuterio ele ldquoevidencia a polecircmica dentro da sociedade sobre que funccedilotildees o Estado deve realizar e qual o seu papel na prestaccedilatildeo de serviccedilos sociaisrdquo (Costa 2006 p 208) Sabemos tambeacutem que a partir da deacutecada de 1990 com a incorporaccedilatildeo continuada das recomendaccedilotildees do Consenso de Washington houve o acirramento e ampliaccedilatildeo das desigualdades bem como o surgimento de uma nova exclusatildeo social Frente a isso uma onda de praacuteticas solidaacuterias realizadas tanto por instituiccedilotildees internacionais quanto nacionais emergiu para amenizar os problemas decorrentes do ajuste estrutural O Terceiro Setor caracterizado por abrigar um conjunto amplo de organizaccedilotildees natildeo-governamentais (ONGs) como associaccedilotildees e fundaccedilotildees surge no ldquointerior (e como resultado) do processo de reestruturaccedilatildeo do capital particularmente no conjunto de reformas do Estadordquo (Montantildeo 2005) A crise e a suposta escassez de recursos serviram como justificativa para que o Estado se eximisse de sua responsabilidade social assim como para a abertura de certos serviccedilos por

entidades que se imaginava serem sem fins lucrativos e comprometidas com a sociedade

Uma pesquisa de 2005 realizada pelo Programa de Voluntaacuterios das Naccedilotildees Unidas (UNV) em parceria com o instituto Johns Hopkins revelou o movimento (e o crescimento) financeiro deste setor no Brasil A pesquisa constatou que o setor obteve investimentos da ordem de R$ 47 bilhotildees o que representou 5 do PIB nacional superando inclusive setores expressivos da economia brasileira como a induacutestria de extraccedilatildeo mineral (petroacuteleo mineacuterio de ferro gaacutes natural carvatildeo entre outros) (Bedinelli 2006 O que fazem as pessoas 2008 Zavala 2006) Mas de onde vieram tais financiamentos Quais bondades foram realizadas com este recurso

Sabemos que boa parte dos recursos utilizados nesse setor satildeo puacuteblicos na medida em que essas instituiccedilotildees satildeo financiadas direta ou indiretamente por governos Diretamente quando por exemplo as entidades com tiacutetulo de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil de Interesse Puacuteblico (OSCIPs) podem disputar recursos puacuteblicos para realizar projetos e programas especiacuteficos Indiretamente quando por meio de incentivos fiscais empresas privadas deslocam parte do que destinariam aos impostos para uma instituiccedilatildeo do Terceiro Setor Costuma-se dizer ateacute mesmo na aacuterea da Gestatildeo Social que recursos natildeo faltam o que faltam satildeo bons projetos Independente se isso eacute verdadeiro ou natildeo fato eacute que a livre competiccedilatildeo caracteriacutestica do mercado capitalista tambeacutem ocupou espaccedilos de comercializaccedilatildeo do sofrimento humano

O filme intitulado Quanto vale ou eacute por quilo de 2005 traz elementos interessantes para o debate sobre o Terceiro Setor O diretor Seacutergio Bianchi penetra no mundo das ONGS com duras criacuteticas ilustrando o caos que compotildee tal campo das intervenccedilotildees sociais Tanto no filme quanto em nosso cotidiano haacute instituiccedilotildees que disputam verbas locais e beneficiados para a realizaccedilatildeo dos projetos Frente a isso pode-se questionar se problema da pobreza eacute de fato algo a ser resolvido ou mantido Aparentemente quanto maior o tamanho da pobreza maior seraacute o tamanho dos investimentos Bianchi (2005) em uma entrevista para a Revista Eacutepoca afirma natildeo ser contra a existecircncia de tais atividades desde que natildeo sejam atividades que levem ldquoa permanecircncia desses problemas ao transformar esses problemas em mercadordquo E complementa dizendo que se o Terceiro Setor ou a miseacuteria desaparecer uma quantidade enorme de desempregados surgiraacute (Bianchi 2005)

Um estudo realizado por Pinto (2005 p 2) sobre a atuaccedilatildeo das organizaccedilotildees sociais natildeo-governamentais (caracterizadas em trecircs grupos pela autora ideoloacutegicas

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religiosas e por pura solidariedade) que realizavam accedilotildees contra a fome identificou claras limitaccedilotildees para ldquolevar a cabo com ecircxito as missotildees de substituir o Estado em accedilotildees dirigidas a populaccedilotildees carentes ou em situaccedilatildeo de riscordquo Trecircs dessas limitaccedilotildees fundamentais satildeo a natildeo-obrigaccedilatildeo da universalidade a dependecircncia de recursos e o voluntariado Isso porque as accedilotildees tendem a ser realizadas por ldquoagentes da sociedade civil como uma questatildeo pontual isolada o que natildeo permite poliacuteticas universalizantes que mudem a qualidade de vida das populaccedilotildees em situaccedilatildeo de miseacuteriardquo (p 27)

Na verdade o que se observa no cotidiano eacute que as populaccedilotildees que estatildeo em situaccedilatildeo de indigecircncia e pobreza precisam de auxiacutelios variados e continuados para romper com o ciacuterculo de dificuldades cotidianas E aqui existe um outro problema que coloca muitas vezes em risco o trabalho que pretende ser comprometido com a transformaccedilatildeo social Os projetos as intervenccedilotildees quando patrocinadas por oacutergatildeos estatais ou por empresas privadas possuem um prazo determinado a priori para a execuccedilatildeo das atividades propostas e para o uso dos recursos financeiros disponibilizados Normalmente o prazo eacute de aproximadamente 12 meses agraves vezes mais agraves vezes menos Como transformar uma situaccedilatildeo com raiacutezes histoacutericas tatildeo profundas em um curto espaccedilo de tempo Levaram-se anos na verdade seacuteculos para construirmos uma memoacuteria e um imaginaacuterio social da forma que os satildeo na atualidade Portanto pelo bem e pelo mal eacute fato eles natildeo se transformaratildeo na mesma velocidade que alguns gostariam O maacuteximo que se poderaacute fazer eacute atenuar os problemas ou como diz Demo (2002) docilizar as populaccedilotildees atendidas

Outro aspecto importante eacute a falta de paracircmetros de controle das entidades sociais Ateacute agora ldquonatildeo sabemos como gerir estas novas aacutereas pois os instrumentos de gestatildeo correspondentes ainda estatildeo engatinhandordquo (Dowbor 1999 p 8) Aleacutem disso casos de desvio de verbas corrupccedilatildeo fundaccedilotildees fantasmas etc natildeo satildeo novidades Quem deve ou deveria regular tais entidades Como podemos saber quais satildeo os resultados dos investimentos puacuteblicos nelas investidos

Embora a situaccedilatildeo social do Brasil tenha melhorado nos uacuteltimos anos (Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2008 2009) temos ainda um panorama grave e urgente Apoacutes a deacutecada de 1990 o que se fez foi afirmar e reafirmar a natildeo constituiccedilatildeo de uma rede universal de ldquoproteccedilatildeo social que explicite o dever do Estado na garantia dos direitos sociaisrdquo Na verdade foi o oposto que aconteceu Houve um retrocesso a uma ldquoconcepccedilatildeo de que o bem-estar pertence ao acircmbito do privadordquo a comunidades locais

as instituiccedilotildees de cunho religioso e filantroacutepico (Soares 2005 p 12) O plano era de que estas instituiccedilotildees tomadas pela bondade humana estabeleceriam uma rede de solidariedade para proteger e salvaguardar os pobres De certo modo o plano tem dado certo basta somente saber para quem

Sexta-feira pratique o voluntariado e regojize-se pelo aliacutevio de sua consciecircncia

Nos dias atuais a accedilatildeo voluntaacuteria tem sido reconhecida como praacutetica importante em discursos e planejamentos que visam agrave intervenccedilatildeo ou mudanccedila social No terceiro setor tal praacutetica eacute incentivada por inuacutemeras instituiccedilotildees em especial pela ONG Parceiros Voluntaacuterios (RS) Instituto Voluntaacuterios em Accedilatildeo (SC) e Portal do Voluntaacuterio (Internet) Tamanha eacute a importacircncia do assunto que a ONU lanccedilou um dia em comemoraccedilatildeo agrave praacutetica e aos praticantes ndash Dia Internacional do Voluntariado ndash fixado no dia 05 de dezembro

Mas o que eacute ser voluntaacuterio Segundo a definiccedilatildeo da ONG Parceiros Voluntaacuterios (2008) o voluntariado eacute aquilo que toda pessoa ou organizaccedilatildeo faz motivado pelos valores de participaccedilatildeo e solidariedade para contribuir com as causas de interesse social e comunitaacuterio Para tanto ldquoo voluntaacuterio disponibiliza seu conhecimento tempo e emoccedilatildeo de maneira espontacircnea e natildeo-remuneradardquo

Contudo nem sempre encontramos boas experiecircncias associadas a esse tipo de trabalho Reclamaccedilotildees quanto agrave exploraccedilatildeo das pessoas ao uso de informaccedilotildees sem retorno agravequeles que as forneceram ao curto periacuteodo de envolvimento em um trabalho etc satildeo muito comuns nas comunidades e instituiccedilotildees em que recebem os voluntaacuterios Mas por que isso acontece Talvez devecircssemos refletir sobre os motivos pelos quais as pessoas procuram realizar esta praacutetica

Uma pesquisa realizada em empresas e instituiccedilotildees natildeo governamentais por Caldana e Figueiredo (2008) aponta que a busca pelo voluntariado estaacute relacionada ao aumento da estima atraveacutes da aprovaccedilatildeo e reconhecimento dos colegas de trabalho a transmissatildeo de princiacutepios religiosos ao aliacutevio das tensotildees ao incentivo midiaacutetico a diminuiccedilatildeo de culpas a superaccedilatildeo de limites pessoais entre outros fatores Incluiriacuteamos tambeacutem entre as motivaccedilotildees a forte pressatildeo pela qual os profissionais satildeo submetidos para desenvolver algum tipo de trabalho desse feitio Se em um curriacuteculo profissional por exemplo existe doaccedilatildeo ao outro possivelmente este candidato possa tambeacutem se doar agrave empresa se o candidato jaacute realizou praacuteticas diversas mesmo que ele esteja se oferecendo

Accorssi A Scarparo H amp Guareschi P A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento

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ao mercado de trabalho pela primeira vez ele jaacute passou por experiecircncias anteriores (nada melhor neste caso entatildeo do que se treinar com aqueles que aparentemente natildeo reclamam das experiecircncias das quais satildeo partes)

Frente a tais caracteriacutesticas e motivaccedilotildees identificamos na concepccedilatildeo do voluntariado uma polarizaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo da relaccedilatildeo haacute o doador coisa ou serviccedilo doado e aquele desprovido que recebe Cria-se a imagem de que o doador eacute bom por excelecircncia que ele tem algo de muito especial para entregar agravequele que estaacute na outra ponta em uma situaccedilatildeo nem sempre muito confortaacutevel que por sua vez cumpre seu papel ao receber bem ou mal a coisa doada Aleacutem disso ouve-se desde crianccedila a afirmativa que basta plantar uma sementinha para mudar o mundohellip E entatildeo cada um deve fazer a sua parte para melhorar a situaccedilatildeo mundial em relaccedilatildeo a tudo Campanhas educativas em prol do meio ambiente estatildeo aiacute use sacola reciclaacutevel economize aacutegua e energia eleacutetrica escolha produtos sem agrotoacutexicos opte pelo uso de combustiacuteveis natildeo poluentes etc Concordamos evidentemente com todas essas campanhas mas ao mesmo tempo eacute impressionante ver o descaso e a pouca repercussatildeo com os desastres por exemplo provocados pelas empresas ou com o nuacutemero exorbitante de luzes acesas para celebrar o Natal Tambeacutem eacute importante lembrar que 80 das emissotildees de poluentes na atmosfera satildeo produzidas pelos paiacuteses do G-20 que conforme Sanson (2008) ao colocarem no topo da agenda a resoluccedilatildeo da crise econocircmica negligenciam a crise ecoloacutegica

Mas por que ainda assim eacute importante que individualmente tenhamos praacuteticas solidaacuterias e voluntaacuterias Qual eacute a loacutegica de transformaccedilatildeo ou manutenccedilatildeo social que elas (tais praacuteticas) sustentam Haacute o aliacutevio de tensotildees (Caldana amp Figueiredo 2008) para ambos lados naqueles que praticam o ato solidaacuterio e sentem-se uacuteteis socialmente e naqueles que recebem atraveacutes da amenizaccedilatildeo de algum possiacutevel sofrimento Natildeo seriam portanto funcionais aos interesses neoliberais e por conseguinte mais um instrumental que favorece a manutenccedilatildeo do status quo (Montantildeo 2005)

Final de semana o descanso ou a corporificaccedilatildeo da pobreza

Iniciamos o artigo discutindo o papel do conhecimento cientiacutefico frente agrave transformaccedilatildeo da realidade Vimos que os conceitos e teorias que circulam natildeo satildeo verdades absolutas mas sim construccedilotildees histoacutericas que precisam sempre ser contextualizadas

Isso porque o conhecimento cientiacutefico que alimenta conceitos praacuteticas poliacuteticas sociais etc tambeacutem eacute produzido sobre determinados interesses e jogos de poder Prova disso eacute a existecircncia de poucos trabalhos acadecircmicos que abordam a pobreza enquanto fenocircmeno e conceito com o vieacutes eou o discurso daqueles que estatildeo nesta condiccedilatildeo socioeconocircmica

Do mesmo modo mas com outra amplitude vecirc-se a forma como o Banco Mundial e o Fundo Monetaacuterio Internacional lidam com os Estados Nacionais com a pobreza e com os enquadrados como ldquopobresrdquo Problematizamos as afirmaccedilotildees sobre a importacircncia da reduccedilatildeo do tamanho do Estado para o desenvolvimento econocircmico do paiacutes e as suas consequecircncias com o enxugamento dos direitos sociais jaacute conquistados pelas populaccedilotildees fato que parece muito mais fomentar um ciclo de dependecircncia do que de autonomia e empoderamento

Dentro desta loacutegica de enxugamento estatal abordamos o surgimento e o fortalecimento do Terceiro Setor movimentando rios de dinheiro e alguns desvios de curso uma vez que ele eacute divulgado como a possibilidade da sociedade se articular em torno do bem comum da humanidade A bondade comprada ou natildeo eacute fundamental pois como eacute sugerido pelos discursos hegemocircnicos com um ldquomutiratildeo de voluntaacuteriosrdquo pode-se salvar boa parte das pessoas necessitadas Dessas pessoas chamadas por muitos como ldquobeneficiadasrdquo espera-se a aceitaccedilatildeo incondicional de sua situaccedilatildeo no mundo da ajuda recebida e da bondade posta a seu benefiacutecio Qualquer desvio eacute sinal de ingratidatildeo eou motivo para a culpabilizaccedilatildeo daquela pessoa que natildeo soube se preparar que natildeo soube se vender ao mercado de trabalho O fantasma do invaacutelido do desprovido do vagabundo do preguiccediloso segue entre noacutes e alimenta discursos disciplinadores e forccedilas repressivas

Ao analisar portanto o modo como a ldquopobrezardquo eacute retratada no mundo social percebe-se a existecircncia de uma espeacutecie de corroboraccedilatildeo contiacutenua vinda de diferentes atores sociais dessa condiccedilatildeo socioeconocircmica atraveacutes da naturalizaccedilatildeo de praacuteticas e discursos que favorece a aceitaccedilatildeo e apatia social perante a problemaacutetica Sabe-se que a pobreza poliacutetica eacute a encarnaccedilatildeo mais proacutexima dos efeitos de poder de uma sociedade opressiva Concordamos com Demo (2002) quando ele diz que o alimento a fonte de tal pobreza se daacute por diferentes caminhos pela ldquovia do cultivo da ignoracircncia para alimentar e manter a massa de manobrardquo pela ldquovia das ajudas que soacute ajudam a marginalizar ainda mais os marginalizadosrdquo pela ldquovia da compreensatildeo truncada da pobreza como simples carecircncia material para evitar a subelevaccedilatildeo dos excluiacutedosrdquo (p 12)

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Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546

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religiosas e por pura solidariedade) que realizavam accedilotildees contra a fome identificou claras limitaccedilotildees para ldquolevar a cabo com ecircxito as missotildees de substituir o Estado em accedilotildees dirigidas a populaccedilotildees carentes ou em situaccedilatildeo de riscordquo Trecircs dessas limitaccedilotildees fundamentais satildeo a natildeo-obrigaccedilatildeo da universalidade a dependecircncia de recursos e o voluntariado Isso porque as accedilotildees tendem a ser realizadas por ldquoagentes da sociedade civil como uma questatildeo pontual isolada o que natildeo permite poliacuteticas universalizantes que mudem a qualidade de vida das populaccedilotildees em situaccedilatildeo de miseacuteriardquo (p 27)

Na verdade o que se observa no cotidiano eacute que as populaccedilotildees que estatildeo em situaccedilatildeo de indigecircncia e pobreza precisam de auxiacutelios variados e continuados para romper com o ciacuterculo de dificuldades cotidianas E aqui existe um outro problema que coloca muitas vezes em risco o trabalho que pretende ser comprometido com a transformaccedilatildeo social Os projetos as intervenccedilotildees quando patrocinadas por oacutergatildeos estatais ou por empresas privadas possuem um prazo determinado a priori para a execuccedilatildeo das atividades propostas e para o uso dos recursos financeiros disponibilizados Normalmente o prazo eacute de aproximadamente 12 meses agraves vezes mais agraves vezes menos Como transformar uma situaccedilatildeo com raiacutezes histoacutericas tatildeo profundas em um curto espaccedilo de tempo Levaram-se anos na verdade seacuteculos para construirmos uma memoacuteria e um imaginaacuterio social da forma que os satildeo na atualidade Portanto pelo bem e pelo mal eacute fato eles natildeo se transformaratildeo na mesma velocidade que alguns gostariam O maacuteximo que se poderaacute fazer eacute atenuar os problemas ou como diz Demo (2002) docilizar as populaccedilotildees atendidas

Outro aspecto importante eacute a falta de paracircmetros de controle das entidades sociais Ateacute agora ldquonatildeo sabemos como gerir estas novas aacutereas pois os instrumentos de gestatildeo correspondentes ainda estatildeo engatinhandordquo (Dowbor 1999 p 8) Aleacutem disso casos de desvio de verbas corrupccedilatildeo fundaccedilotildees fantasmas etc natildeo satildeo novidades Quem deve ou deveria regular tais entidades Como podemos saber quais satildeo os resultados dos investimentos puacuteblicos nelas investidos

Embora a situaccedilatildeo social do Brasil tenha melhorado nos uacuteltimos anos (Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada 2008 2009) temos ainda um panorama grave e urgente Apoacutes a deacutecada de 1990 o que se fez foi afirmar e reafirmar a natildeo constituiccedilatildeo de uma rede universal de ldquoproteccedilatildeo social que explicite o dever do Estado na garantia dos direitos sociaisrdquo Na verdade foi o oposto que aconteceu Houve um retrocesso a uma ldquoconcepccedilatildeo de que o bem-estar pertence ao acircmbito do privadordquo a comunidades locais

as instituiccedilotildees de cunho religioso e filantroacutepico (Soares 2005 p 12) O plano era de que estas instituiccedilotildees tomadas pela bondade humana estabeleceriam uma rede de solidariedade para proteger e salvaguardar os pobres De certo modo o plano tem dado certo basta somente saber para quem

Sexta-feira pratique o voluntariado e regojize-se pelo aliacutevio de sua consciecircncia

Nos dias atuais a accedilatildeo voluntaacuteria tem sido reconhecida como praacutetica importante em discursos e planejamentos que visam agrave intervenccedilatildeo ou mudanccedila social No terceiro setor tal praacutetica eacute incentivada por inuacutemeras instituiccedilotildees em especial pela ONG Parceiros Voluntaacuterios (RS) Instituto Voluntaacuterios em Accedilatildeo (SC) e Portal do Voluntaacuterio (Internet) Tamanha eacute a importacircncia do assunto que a ONU lanccedilou um dia em comemoraccedilatildeo agrave praacutetica e aos praticantes ndash Dia Internacional do Voluntariado ndash fixado no dia 05 de dezembro

Mas o que eacute ser voluntaacuterio Segundo a definiccedilatildeo da ONG Parceiros Voluntaacuterios (2008) o voluntariado eacute aquilo que toda pessoa ou organizaccedilatildeo faz motivado pelos valores de participaccedilatildeo e solidariedade para contribuir com as causas de interesse social e comunitaacuterio Para tanto ldquoo voluntaacuterio disponibiliza seu conhecimento tempo e emoccedilatildeo de maneira espontacircnea e natildeo-remuneradardquo

Contudo nem sempre encontramos boas experiecircncias associadas a esse tipo de trabalho Reclamaccedilotildees quanto agrave exploraccedilatildeo das pessoas ao uso de informaccedilotildees sem retorno agravequeles que as forneceram ao curto periacuteodo de envolvimento em um trabalho etc satildeo muito comuns nas comunidades e instituiccedilotildees em que recebem os voluntaacuterios Mas por que isso acontece Talvez devecircssemos refletir sobre os motivos pelos quais as pessoas procuram realizar esta praacutetica

Uma pesquisa realizada em empresas e instituiccedilotildees natildeo governamentais por Caldana e Figueiredo (2008) aponta que a busca pelo voluntariado estaacute relacionada ao aumento da estima atraveacutes da aprovaccedilatildeo e reconhecimento dos colegas de trabalho a transmissatildeo de princiacutepios religiosos ao aliacutevio das tensotildees ao incentivo midiaacutetico a diminuiccedilatildeo de culpas a superaccedilatildeo de limites pessoais entre outros fatores Incluiriacuteamos tambeacutem entre as motivaccedilotildees a forte pressatildeo pela qual os profissionais satildeo submetidos para desenvolver algum tipo de trabalho desse feitio Se em um curriacuteculo profissional por exemplo existe doaccedilatildeo ao outro possivelmente este candidato possa tambeacutem se doar agrave empresa se o candidato jaacute realizou praacuteticas diversas mesmo que ele esteja se oferecendo

Accorssi A Scarparo H amp Guareschi P A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento

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ao mercado de trabalho pela primeira vez ele jaacute passou por experiecircncias anteriores (nada melhor neste caso entatildeo do que se treinar com aqueles que aparentemente natildeo reclamam das experiecircncias das quais satildeo partes)

Frente a tais caracteriacutesticas e motivaccedilotildees identificamos na concepccedilatildeo do voluntariado uma polarizaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo da relaccedilatildeo haacute o doador coisa ou serviccedilo doado e aquele desprovido que recebe Cria-se a imagem de que o doador eacute bom por excelecircncia que ele tem algo de muito especial para entregar agravequele que estaacute na outra ponta em uma situaccedilatildeo nem sempre muito confortaacutevel que por sua vez cumpre seu papel ao receber bem ou mal a coisa doada Aleacutem disso ouve-se desde crianccedila a afirmativa que basta plantar uma sementinha para mudar o mundohellip E entatildeo cada um deve fazer a sua parte para melhorar a situaccedilatildeo mundial em relaccedilatildeo a tudo Campanhas educativas em prol do meio ambiente estatildeo aiacute use sacola reciclaacutevel economize aacutegua e energia eleacutetrica escolha produtos sem agrotoacutexicos opte pelo uso de combustiacuteveis natildeo poluentes etc Concordamos evidentemente com todas essas campanhas mas ao mesmo tempo eacute impressionante ver o descaso e a pouca repercussatildeo com os desastres por exemplo provocados pelas empresas ou com o nuacutemero exorbitante de luzes acesas para celebrar o Natal Tambeacutem eacute importante lembrar que 80 das emissotildees de poluentes na atmosfera satildeo produzidas pelos paiacuteses do G-20 que conforme Sanson (2008) ao colocarem no topo da agenda a resoluccedilatildeo da crise econocircmica negligenciam a crise ecoloacutegica

Mas por que ainda assim eacute importante que individualmente tenhamos praacuteticas solidaacuterias e voluntaacuterias Qual eacute a loacutegica de transformaccedilatildeo ou manutenccedilatildeo social que elas (tais praacuteticas) sustentam Haacute o aliacutevio de tensotildees (Caldana amp Figueiredo 2008) para ambos lados naqueles que praticam o ato solidaacuterio e sentem-se uacuteteis socialmente e naqueles que recebem atraveacutes da amenizaccedilatildeo de algum possiacutevel sofrimento Natildeo seriam portanto funcionais aos interesses neoliberais e por conseguinte mais um instrumental que favorece a manutenccedilatildeo do status quo (Montantildeo 2005)

Final de semana o descanso ou a corporificaccedilatildeo da pobreza

Iniciamos o artigo discutindo o papel do conhecimento cientiacutefico frente agrave transformaccedilatildeo da realidade Vimos que os conceitos e teorias que circulam natildeo satildeo verdades absolutas mas sim construccedilotildees histoacutericas que precisam sempre ser contextualizadas

Isso porque o conhecimento cientiacutefico que alimenta conceitos praacuteticas poliacuteticas sociais etc tambeacutem eacute produzido sobre determinados interesses e jogos de poder Prova disso eacute a existecircncia de poucos trabalhos acadecircmicos que abordam a pobreza enquanto fenocircmeno e conceito com o vieacutes eou o discurso daqueles que estatildeo nesta condiccedilatildeo socioeconocircmica

Do mesmo modo mas com outra amplitude vecirc-se a forma como o Banco Mundial e o Fundo Monetaacuterio Internacional lidam com os Estados Nacionais com a pobreza e com os enquadrados como ldquopobresrdquo Problematizamos as afirmaccedilotildees sobre a importacircncia da reduccedilatildeo do tamanho do Estado para o desenvolvimento econocircmico do paiacutes e as suas consequecircncias com o enxugamento dos direitos sociais jaacute conquistados pelas populaccedilotildees fato que parece muito mais fomentar um ciclo de dependecircncia do que de autonomia e empoderamento

Dentro desta loacutegica de enxugamento estatal abordamos o surgimento e o fortalecimento do Terceiro Setor movimentando rios de dinheiro e alguns desvios de curso uma vez que ele eacute divulgado como a possibilidade da sociedade se articular em torno do bem comum da humanidade A bondade comprada ou natildeo eacute fundamental pois como eacute sugerido pelos discursos hegemocircnicos com um ldquomutiratildeo de voluntaacuteriosrdquo pode-se salvar boa parte das pessoas necessitadas Dessas pessoas chamadas por muitos como ldquobeneficiadasrdquo espera-se a aceitaccedilatildeo incondicional de sua situaccedilatildeo no mundo da ajuda recebida e da bondade posta a seu benefiacutecio Qualquer desvio eacute sinal de ingratidatildeo eou motivo para a culpabilizaccedilatildeo daquela pessoa que natildeo soube se preparar que natildeo soube se vender ao mercado de trabalho O fantasma do invaacutelido do desprovido do vagabundo do preguiccediloso segue entre noacutes e alimenta discursos disciplinadores e forccedilas repressivas

Ao analisar portanto o modo como a ldquopobrezardquo eacute retratada no mundo social percebe-se a existecircncia de uma espeacutecie de corroboraccedilatildeo contiacutenua vinda de diferentes atores sociais dessa condiccedilatildeo socioeconocircmica atraveacutes da naturalizaccedilatildeo de praacuteticas e discursos que favorece a aceitaccedilatildeo e apatia social perante a problemaacutetica Sabe-se que a pobreza poliacutetica eacute a encarnaccedilatildeo mais proacutexima dos efeitos de poder de uma sociedade opressiva Concordamos com Demo (2002) quando ele diz que o alimento a fonte de tal pobreza se daacute por diferentes caminhos pela ldquovia do cultivo da ignoracircncia para alimentar e manter a massa de manobrardquo pela ldquovia das ajudas que soacute ajudam a marginalizar ainda mais os marginalizadosrdquo pela ldquovia da compreensatildeo truncada da pobreza como simples carecircncia material para evitar a subelevaccedilatildeo dos excluiacutedosrdquo (p 12)

Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546 2012

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Referecircncias

Aacutelvaro J L amp Garrido A (2006) Psicologia Social perspectivas psicoloacutegicas e socioloacutegicas Satildeo Paulo McGraw-Hill

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Bauer M Gaskell G amp Allum N (2002) Qualidade quantidade e interesses do conhecimento Evitando confusotildees In M Bauer amp G Gaskell Pesquisa qualitativa com texto imagem e som um manual praacutetico (pp 17-36) Petroacutepolis RJ Vozes

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Bianchi S (2005) Entrevista com o diretor do filme Quanto Vale ou eacute Por Quilo Entrevistadores Ana Aranha e Cleacuteber Eduardo Acesso em 03 de janeiro 2009 em httprevistaepocaglobocomEpoca06993EPT961935-165500html

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Castel R (2001) As metamorfoses da questatildeo social uma crocircnica do salaacuterio (3ordf ed) Petroacutepolis RJ Vozes

Codes A L M (2008 abril) A trajetoacuteria do pensamento cientiacutefico sobre pobreza em direccedilatildeo a uma visatildeo complexa (Texto para discussatildeo n 1332) Brasiacutelia DF IPEA

Costa L C (2006) Os impasses do Estado capitalista uma anaacutelise sobre a reforma do Estado no Brasil Ponta Grossa PR UEPG Satildeo Paulo Cortez

Davis M (2006) Planeta favela Satildeo Paulo BoitempoDemo P (2002) Solidariedade como efeito de poder Satildeo

Paulo Cortez Instituto Paulo FreireDowbor L (1999) Tendecircncias da gestatildeo social Sauacutede e

Sociedade 8(1) 3-16Fonseca M (1998 janeirojulho) O Banco Mundial como

referecircncia para a justiccedila social no terceiro mundo evidecircncias do caso Brasileiro Revista da Faculdade de Educaccedilatildeo 24(1) 37-69

Freire P (1987) Pedagogia do oprimido (17ordf ed) Rio de Janeiro Paz e Terra

Freire P (1996) Pedagogia da autonomia (36ordf ed) Satildeo Paulo Paz e Terra

Freire P (2000) Pedagogia da indignaccedilatildeo cartas pedagoacutegicas e outros escritos Satildeo Paulo UNESP

Habermas J (2006) Teacutecnica e ciecircncia como ideologia Lisboa Ediccedilotildees 70

Hobsbawm E (1995) Era dos extremos O breve seacuteculo XX - 1914-1991 Satildeo Paulo Companhia das Letras

Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada ndash IPEA (2008 agosto) Pobreza e riqueza no Brasil metropolitano Comunicado da Presidecircncia 7 Acesso em 01 de setembro 2008 em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=articleampid=1714

Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada ndash IPEA (2009 setembro) PNAD 2008 Primeiras Anaacutelises Comunicado

da Presidecircncia 30 Acesso em 03 de outubro 2009 em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=articleampid=1749

Jovchelovitch S (2008) Os contextos do saber representaccedilotildees comunidade e cultura Petroacutepolis RJ Vozes

Maricato E (2006) Posfaacutecio In M Davis Planeta Favela (pp 209-224) Satildeo Paulo Boitempo

Mattos R (2001) As agecircncias internacionais e as poliacuteticas de sauacutede nos Anos 90 um panorama geral da oferta de ideacuteias Ciecircncia e Sauacutede Coletiva 6(2) 377-389

Misoczky M C A (2002) O Banco Mundial e a reconfiguraccedilatildeo do campo das agecircncias internacionais de sauacutede uma anaacutelise multiparadigmaacutetica In Anais do Encontro de Estudos Organizacionais 2 [CD] Recife PROPAD ANPAD

Montantildeo C (2005) Terceiro setor e questatildeo social criacutetica ao padratildeo emergente de intervenccedilatildeo social (3ordf ed) Satildeo Paulo Cortez

O que fazem as pessoas que trabalham no Terceiro Setor (2008) Desafios do Desenvolvimento Ipea Acesso em 19 de fevereiro 2008 em httpdesafiosipeagovbr00300301009jspttCD_CHAVE=3776

Parceiros voluntaacuterios (2008) Website oficial Acesso em 30 de dezembro 2008 em httpwwwparceirosvoluntariosorgbrcomponentestextosTextosGlossarioasptxLtr=Vampiidvc=28amprnd=09495566||03640187

Paugam S (1999) O enfraquecimento e a ruptura dos viacutenculos sociais Uma dimensatildeo essencial do processo de desqualificaccedilatildeo social In B Sawaia (Org) As artimanhas da exclusatildeo anaacutelise psicossocial e eacutetica da desigualdade social (pp 67-86) Petroacutepolis RJ Vozes

Paugam S(2003) Desqualificaccedilatildeo social ensaio sobre a nova pobreza Satildeo Paulo EducCortez

Pinto C R J (2005 janeiroabril) A sociedade civil e a luta contra a fome no Brasil (1993-2003) Sociedade e Estado 20(1) 195-228

Quanto vale ou eacute por quilo (2008) Website oficial do filme Acesso em 30 de dezembro 2008 em httpwwwquantovaleoueporquilocombr

Rocha S (2006) Pobreza no Brasil Afinal de que se trata Rio de Janeiro FGV

Salama P amp Destremau B (1999) O tamanho da pobreza Economia poliacutetica da distribuiccedilatildeo de renda Rio de Janeiro Garamond

Sanson C (2008) A quaacutedrupla crise planetaacuteria Acesso em 30 de dezembro 2008 em httpwwwradioagencianpcombrnode5968

Santos B de S (2008) A gramaacutetica do tempo para uma nova cultura poliacutetica (2ordf ed Coleccedilatildeo para um novo senso comum 4) Satildeo Paulo Cortez

Sen A (2000) Desenvolvimento como liberdade Satildeo Paulo Companhia das Letras

Soares L T (2002) Os custos sociais do ajuste neoliberal na Ameacuterica Latina Satildeo Paulo Cortez

Soares L T (2005) Prefaacutecio In C Montantildeo Terceiro setor e questatildeo social criacutetica ao padratildeo emergente de intervenccedilatildeo social (3ordf ed pp 11-13) Satildeo Paulo Cortez

Telles V (2001) Pobreza e cidadania Satildeo Paulo USPEd 34Thompson J B (1995) Ideologia e cultura moderna Teoria

social criacutetica na era dos meios de comunicaccedilatildeo de massa Petroacutepolis RJ Vozes

Ugaacute V (2004 novembro) A categoria ldquopobrezardquo nas formulaccedilotildees de poliacutetica social do Banco Mundial Rev Sociologia Poliacutetica 23 55-62

Accorssi A Scarparo H amp Guareschi P A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento

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Zavala R (2006) Setor sem fins lucrativos representa 5 do PIB nacional GIFE Acesso em 14 de dezembro 2008 em httpwwwgifeorgbrredegifeonline_noticiasphpcodigo=7072

Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546

Accorssi A Scarparo H amp Guareschi P A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento

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ao mercado de trabalho pela primeira vez ele jaacute passou por experiecircncias anteriores (nada melhor neste caso entatildeo do que se treinar com aqueles que aparentemente natildeo reclamam das experiecircncias das quais satildeo partes)

Frente a tais caracteriacutesticas e motivaccedilotildees identificamos na concepccedilatildeo do voluntariado uma polarizaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo da relaccedilatildeo haacute o doador coisa ou serviccedilo doado e aquele desprovido que recebe Cria-se a imagem de que o doador eacute bom por excelecircncia que ele tem algo de muito especial para entregar agravequele que estaacute na outra ponta em uma situaccedilatildeo nem sempre muito confortaacutevel que por sua vez cumpre seu papel ao receber bem ou mal a coisa doada Aleacutem disso ouve-se desde crianccedila a afirmativa que basta plantar uma sementinha para mudar o mundohellip E entatildeo cada um deve fazer a sua parte para melhorar a situaccedilatildeo mundial em relaccedilatildeo a tudo Campanhas educativas em prol do meio ambiente estatildeo aiacute use sacola reciclaacutevel economize aacutegua e energia eleacutetrica escolha produtos sem agrotoacutexicos opte pelo uso de combustiacuteveis natildeo poluentes etc Concordamos evidentemente com todas essas campanhas mas ao mesmo tempo eacute impressionante ver o descaso e a pouca repercussatildeo com os desastres por exemplo provocados pelas empresas ou com o nuacutemero exorbitante de luzes acesas para celebrar o Natal Tambeacutem eacute importante lembrar que 80 das emissotildees de poluentes na atmosfera satildeo produzidas pelos paiacuteses do G-20 que conforme Sanson (2008) ao colocarem no topo da agenda a resoluccedilatildeo da crise econocircmica negligenciam a crise ecoloacutegica

Mas por que ainda assim eacute importante que individualmente tenhamos praacuteticas solidaacuterias e voluntaacuterias Qual eacute a loacutegica de transformaccedilatildeo ou manutenccedilatildeo social que elas (tais praacuteticas) sustentam Haacute o aliacutevio de tensotildees (Caldana amp Figueiredo 2008) para ambos lados naqueles que praticam o ato solidaacuterio e sentem-se uacuteteis socialmente e naqueles que recebem atraveacutes da amenizaccedilatildeo de algum possiacutevel sofrimento Natildeo seriam portanto funcionais aos interesses neoliberais e por conseguinte mais um instrumental que favorece a manutenccedilatildeo do status quo (Montantildeo 2005)

Final de semana o descanso ou a corporificaccedilatildeo da pobreza

Iniciamos o artigo discutindo o papel do conhecimento cientiacutefico frente agrave transformaccedilatildeo da realidade Vimos que os conceitos e teorias que circulam natildeo satildeo verdades absolutas mas sim construccedilotildees histoacutericas que precisam sempre ser contextualizadas

Isso porque o conhecimento cientiacutefico que alimenta conceitos praacuteticas poliacuteticas sociais etc tambeacutem eacute produzido sobre determinados interesses e jogos de poder Prova disso eacute a existecircncia de poucos trabalhos acadecircmicos que abordam a pobreza enquanto fenocircmeno e conceito com o vieacutes eou o discurso daqueles que estatildeo nesta condiccedilatildeo socioeconocircmica

Do mesmo modo mas com outra amplitude vecirc-se a forma como o Banco Mundial e o Fundo Monetaacuterio Internacional lidam com os Estados Nacionais com a pobreza e com os enquadrados como ldquopobresrdquo Problematizamos as afirmaccedilotildees sobre a importacircncia da reduccedilatildeo do tamanho do Estado para o desenvolvimento econocircmico do paiacutes e as suas consequecircncias com o enxugamento dos direitos sociais jaacute conquistados pelas populaccedilotildees fato que parece muito mais fomentar um ciclo de dependecircncia do que de autonomia e empoderamento

Dentro desta loacutegica de enxugamento estatal abordamos o surgimento e o fortalecimento do Terceiro Setor movimentando rios de dinheiro e alguns desvios de curso uma vez que ele eacute divulgado como a possibilidade da sociedade se articular em torno do bem comum da humanidade A bondade comprada ou natildeo eacute fundamental pois como eacute sugerido pelos discursos hegemocircnicos com um ldquomutiratildeo de voluntaacuteriosrdquo pode-se salvar boa parte das pessoas necessitadas Dessas pessoas chamadas por muitos como ldquobeneficiadasrdquo espera-se a aceitaccedilatildeo incondicional de sua situaccedilatildeo no mundo da ajuda recebida e da bondade posta a seu benefiacutecio Qualquer desvio eacute sinal de ingratidatildeo eou motivo para a culpabilizaccedilatildeo daquela pessoa que natildeo soube se preparar que natildeo soube se vender ao mercado de trabalho O fantasma do invaacutelido do desprovido do vagabundo do preguiccediloso segue entre noacutes e alimenta discursos disciplinadores e forccedilas repressivas

Ao analisar portanto o modo como a ldquopobrezardquo eacute retratada no mundo social percebe-se a existecircncia de uma espeacutecie de corroboraccedilatildeo contiacutenua vinda de diferentes atores sociais dessa condiccedilatildeo socioeconocircmica atraveacutes da naturalizaccedilatildeo de praacuteticas e discursos que favorece a aceitaccedilatildeo e apatia social perante a problemaacutetica Sabe-se que a pobreza poliacutetica eacute a encarnaccedilatildeo mais proacutexima dos efeitos de poder de uma sociedade opressiva Concordamos com Demo (2002) quando ele diz que o alimento a fonte de tal pobreza se daacute por diferentes caminhos pela ldquovia do cultivo da ignoracircncia para alimentar e manter a massa de manobrardquo pela ldquovia das ajudas que soacute ajudam a marginalizar ainda mais os marginalizadosrdquo pela ldquovia da compreensatildeo truncada da pobreza como simples carecircncia material para evitar a subelevaccedilatildeo dos excluiacutedosrdquo (p 12)

Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546 2012

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Referecircncias

Aacutelvaro J L amp Garrido A (2006) Psicologia Social perspectivas psicoloacutegicas e socioloacutegicas Satildeo Paulo McGraw-Hill

Banco Mundial (2008) Site do Banco Mundial Acesso em 20 de maio ano em httpwebworldbankorg

Bauer M Gaskell G amp Allum N (2002) Qualidade quantidade e interesses do conhecimento Evitando confusotildees In M Bauer amp G Gaskell Pesquisa qualitativa com texto imagem e som um manual praacutetico (pp 17-36) Petroacutepolis RJ Vozes

Bedinelli T (2006) ONGs tecircm peso maior que petroacuteleo no PIB PNUD Acesso em 29 de dezembro 2008 em httpwwwpnudorgbrNoticiaaspxid=901

Bernard F (2003) O governo da pobreza Satildeo Leopoldo RS Nova Harmonia

Bianchi S (2005) Entrevista com o diretor do filme Quanto Vale ou eacute Por Quilo Entrevistadores Ana Aranha e Cleacuteber Eduardo Acesso em 03 de janeiro 2009 em httprevistaepocaglobocomEpoca06993EPT961935-165500html

Blackburn S (1997) Dicionaacuterio Oxford de Filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editora

Burawoy M (1990 dezembro) O que noacutes entendemos por ciecircncia (P Guareschi Trad) Revista American Sociological Review 55 775-793

Caldana A C amp Figueiredo M A (2008) O voluntariado em questatildeo a subjetividade permitida Psicologia Ciecircncia e Profissatildeo 28(3) 466-479

Castel R (2001) As metamorfoses da questatildeo social uma crocircnica do salaacuterio (3ordf ed) Petroacutepolis RJ Vozes

Codes A L M (2008 abril) A trajetoacuteria do pensamento cientiacutefico sobre pobreza em direccedilatildeo a uma visatildeo complexa (Texto para discussatildeo n 1332) Brasiacutelia DF IPEA

Costa L C (2006) Os impasses do Estado capitalista uma anaacutelise sobre a reforma do Estado no Brasil Ponta Grossa PR UEPG Satildeo Paulo Cortez

Davis M (2006) Planeta favela Satildeo Paulo BoitempoDemo P (2002) Solidariedade como efeito de poder Satildeo

Paulo Cortez Instituto Paulo FreireDowbor L (1999) Tendecircncias da gestatildeo social Sauacutede e

Sociedade 8(1) 3-16Fonseca M (1998 janeirojulho) O Banco Mundial como

referecircncia para a justiccedila social no terceiro mundo evidecircncias do caso Brasileiro Revista da Faculdade de Educaccedilatildeo 24(1) 37-69

Freire P (1987) Pedagogia do oprimido (17ordf ed) Rio de Janeiro Paz e Terra

Freire P (1996) Pedagogia da autonomia (36ordf ed) Satildeo Paulo Paz e Terra

Freire P (2000) Pedagogia da indignaccedilatildeo cartas pedagoacutegicas e outros escritos Satildeo Paulo UNESP

Habermas J (2006) Teacutecnica e ciecircncia como ideologia Lisboa Ediccedilotildees 70

Hobsbawm E (1995) Era dos extremos O breve seacuteculo XX - 1914-1991 Satildeo Paulo Companhia das Letras

Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada ndash IPEA (2008 agosto) Pobreza e riqueza no Brasil metropolitano Comunicado da Presidecircncia 7 Acesso em 01 de setembro 2008 em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=articleampid=1714

Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada ndash IPEA (2009 setembro) PNAD 2008 Primeiras Anaacutelises Comunicado

da Presidecircncia 30 Acesso em 03 de outubro 2009 em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=articleampid=1749

Jovchelovitch S (2008) Os contextos do saber representaccedilotildees comunidade e cultura Petroacutepolis RJ Vozes

Maricato E (2006) Posfaacutecio In M Davis Planeta Favela (pp 209-224) Satildeo Paulo Boitempo

Mattos R (2001) As agecircncias internacionais e as poliacuteticas de sauacutede nos Anos 90 um panorama geral da oferta de ideacuteias Ciecircncia e Sauacutede Coletiva 6(2) 377-389

Misoczky M C A (2002) O Banco Mundial e a reconfiguraccedilatildeo do campo das agecircncias internacionais de sauacutede uma anaacutelise multiparadigmaacutetica In Anais do Encontro de Estudos Organizacionais 2 [CD] Recife PROPAD ANPAD

Montantildeo C (2005) Terceiro setor e questatildeo social criacutetica ao padratildeo emergente de intervenccedilatildeo social (3ordf ed) Satildeo Paulo Cortez

O que fazem as pessoas que trabalham no Terceiro Setor (2008) Desafios do Desenvolvimento Ipea Acesso em 19 de fevereiro 2008 em httpdesafiosipeagovbr00300301009jspttCD_CHAVE=3776

Parceiros voluntaacuterios (2008) Website oficial Acesso em 30 de dezembro 2008 em httpwwwparceirosvoluntariosorgbrcomponentestextosTextosGlossarioasptxLtr=Vampiidvc=28amprnd=09495566||03640187

Paugam S (1999) O enfraquecimento e a ruptura dos viacutenculos sociais Uma dimensatildeo essencial do processo de desqualificaccedilatildeo social In B Sawaia (Org) As artimanhas da exclusatildeo anaacutelise psicossocial e eacutetica da desigualdade social (pp 67-86) Petroacutepolis RJ Vozes

Paugam S(2003) Desqualificaccedilatildeo social ensaio sobre a nova pobreza Satildeo Paulo EducCortez

Pinto C R J (2005 janeiroabril) A sociedade civil e a luta contra a fome no Brasil (1993-2003) Sociedade e Estado 20(1) 195-228

Quanto vale ou eacute por quilo (2008) Website oficial do filme Acesso em 30 de dezembro 2008 em httpwwwquantovaleoueporquilocombr

Rocha S (2006) Pobreza no Brasil Afinal de que se trata Rio de Janeiro FGV

Salama P amp Destremau B (1999) O tamanho da pobreza Economia poliacutetica da distribuiccedilatildeo de renda Rio de Janeiro Garamond

Sanson C (2008) A quaacutedrupla crise planetaacuteria Acesso em 30 de dezembro 2008 em httpwwwradioagencianpcombrnode5968

Santos B de S (2008) A gramaacutetica do tempo para uma nova cultura poliacutetica (2ordf ed Coleccedilatildeo para um novo senso comum 4) Satildeo Paulo Cortez

Sen A (2000) Desenvolvimento como liberdade Satildeo Paulo Companhia das Letras

Soares L T (2002) Os custos sociais do ajuste neoliberal na Ameacuterica Latina Satildeo Paulo Cortez

Soares L T (2005) Prefaacutecio In C Montantildeo Terceiro setor e questatildeo social criacutetica ao padratildeo emergente de intervenccedilatildeo social (3ordf ed pp 11-13) Satildeo Paulo Cortez

Telles V (2001) Pobreza e cidadania Satildeo Paulo USPEd 34Thompson J B (1995) Ideologia e cultura moderna Teoria

social criacutetica na era dos meios de comunicaccedilatildeo de massa Petroacutepolis RJ Vozes

Ugaacute V (2004 novembro) A categoria ldquopobrezardquo nas formulaccedilotildees de poliacutetica social do Banco Mundial Rev Sociologia Poliacutetica 23 55-62

Accorssi A Scarparo H amp Guareschi P A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento

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Zavala R (2006) Setor sem fins lucrativos representa 5 do PIB nacional GIFE Acesso em 14 de dezembro 2008 em httpwwwgifeorgbrredegifeonline_noticiasphpcodigo=7072

Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

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Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546 2012

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Recebido em 20122009Revisatildeo em 17052010Aceite em 26052010

Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546

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Aline Accorssi eacute Psicoacuteloga Especialista em Gestatildeo Social pela UFRGS e Doutora em Psicologia pela PUCRS

Professora-pesquisadora no Mestrado de Memoacuteria Social e Bens Culturais do Unilasalle CanoasRS Av Victor

Barreto 2288 preacutedio 08 3deg andar Email alineaccorssigmailcom

Helena Scarparo eacute Psicoacuteloga Doutora em Psicologia pela PUCRS Professora-pesquisadora no Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Psicologia da PUCRS Email scarparopucrsbr

Pedrinho Guareschi eacute Doutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison Professor-

pesquisador no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Email pedrinhoguareschiufrgsbr

Como citarAccorssi A Scarparo H amp Guareschi P (2012) A naturalizaccedilatildeo da pobreza reflexotildees sobre a formaccedilatildeo do pensamento social Psicologia amp Sociedade 24(3) 536-546