TEXTOS CLÁSSICOS BRASILEIROS (Direito público e ciência ...

43
TEXTOS CLÁSSICOS BRASILEIROS (Direito público e ciência política) o escrito que inserimos neste número tem seu valor histórico e doutrinário no pensamento jurídico brasileiro. Precedemo-Io, conforme vimos fazendo, com indicações bibliográficas a respeito de seu autor, professor, publicista e magis- trado, Dr. Augusto Olímpio Viveiros de Castro, filho do Conselheiro Gomes de Castro e irmão do criminalista Viveiros de Castro. Nasceu em 27 de agosto de 1867, no Maranhão, formou-se na Faculdade de Direito do Recife, à qual dedicou carinhosamente seu livro Estudos de di- reito público (1914), e ocupou o cargo de juiz municipal de Santa Maria Madalena, e depois o de juiz-substituto federal no Estado do Rio; voltou a São Luiz do Maranhão, onde abriu banca de advogado. Logo, porém, se trans- fere para o Rio de Janeiro, onde passa a exercer o cargo de representante do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas. Em 1915 foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi professor efetivo na Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, e professor honorário na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de J a- neiro e da Faculdade de Direito do Maranhão. A retidão de sua conduta ilibada e seu alto valor intelectual asseguram-lhe admiração e respeito de seus contemporâneos e da posteridade, que lhe reconhecem os grandes méritos. Escreveu e publicou as seguintes obras: O Contrabando (1899); Tratado dos impostos (2 ed., 1910); Tratado de direito administrativo e ciência da administração (3 ed., 1914); Estudos de direito público (3 ed., 1914); Questão social (1920); Acórdãos e votos, etc. Djacir Menezes R. Ci. pol., Rio de Janeiro, 25(3): 178-220, set./ dez. 1982

Transcript of TEXTOS CLÁSSICOS BRASILEIROS (Direito público e ciência ...

TEXTOS CLÁSSICOS BRASILEIROS (Direito público e ciência política)

o escrito que inserimos neste número tem seu valor histórico e doutrinário no pensamento jurídico brasileiro. Precedemo-Io, conforme vimos fazendo, com indicações bibliográficas a respeito de seu autor, professor, publicista e magis­trado, Dr. Augusto Olímpio Viveiros de Castro, filho do Conselheiro Gomes de Castro e irmão do criminalista Viveiros de Castro.

Nasceu em 27 de agosto de 1867, no Maranhão, formou-se na Faculdade de Direito do Recife, à qual dedicou carinhosamente seu livro Estudos de di­reito público (1914), e ocupou o cargo de juiz municipal de Santa Maria Madalena, e depois o de juiz-substituto federal no Estado do Rio; voltou a São Luiz do Maranhão, onde abriu banca de advogado. Logo, porém, se trans­fere para o Rio de Janeiro, onde passa a exercer o cargo de representante do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas. Em 1915 foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal.

Foi professor efetivo na Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, e professor honorário na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de J a­neiro e da Faculdade de Direito do Maranhão. A retidão de sua conduta ilibada e seu alto valor intelectual asseguram-lhe admiração e respeito de seus contemporâneos e da posteridade, que lhe reconhecem os grandes méritos.

Escreveu e publicou as seguintes obras: O Contrabando (1899); Tratado dos impostos (2 ed., 1910); Tratado de direito administrativo e ciência da administração (3 ed., 1914); Estudos de direito público (3 ed., 1914); Questão social (1920); Acórdãos e votos, etc.

Djacir Menezes

R. Ci. pol., Rio de Janeiro, 25(3): 178-220, set./ dez. 1982

..

HISTORIA CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVA *

AUGUSTO O. VIVEIROS DE CASTRO

Manifestação do sentimento constitucional no Brasil-reino. A convocação de uma Constituinte, pelo Decreto de 3 de junho de 1822. Os Deputados Brasi­leiros nas cortes de Lisboa.

Graves pensadores, que têm estudado a alma latina no intuito de desco­brir as causas da pretensa superioridade dos anglo-saxões, assinalam como uma das falhas do nosso caráter o excessivo idealismo que, nos afastando da reali­dade, dá exagerada importância às fórmulas e faz surgir os dogmas políticos.

Assim explicam eles a crença ingênua dos latinos de que, para garantir a liberdade, bastam as constituições solenemente discutidas e promulgadas, não havendo necessidade do menor esforço dos cidadãos para defender os seus direitos.

Abundando nessas idéias em um trabalho magistral em que estudou a atual crise social da Itália, sob o sugestivo título Forme vecchie idee nuove, assim doutrina Giorgio Arcoleo:

"La gente latina ha bisogno deI dogma in cui riposi l'animo e la mente. Una norma rigida, immutabile suscita e dirige l'azione: non si discute; si accetta, anzi si subisce. Quindi l'attività é meccanica, subitanea, impulsiva, donde l'eccesso: Ia violenza prima, la fiaccheza poi. L'Anglo-sassone non ha bisogno deI dogma aI quale sottoporre tutte le sue energie; si forma una legge man mano che trova un fatto, guarda cio che é vicino in modo che non gli sfuggano le sinuosità deI terreno senza perdere di vista la méta ultima: ma non cambia la via."

Em outro trabalho, em que pretendo estudar essa superioridade anglo-saxô­nica, terei ocasião de mostrar não somente que os latinos não são tão idea­listas como à primeira vista parece, mas ainda que os ingleses não estão menos presos do que nós aos dogmas políticos.

Aceitemos agora como verdade axiomática a predileção dos latinos pelos referidos dogmas políticos, e verifiquemos que importância teve no Brasil­reino o sentimento constitucional; como manifestaram os brasileiros daquela época o seu culto pelas fórmulas constitucionais.

Sintetizarei as minhas idéias a esse respeito nas quatro seguintes proposições: 1. No Brasil-reino o sentimento constitucional não se infiltrou nas massas populares. As idéias liberais eram cultivadas por um pequeno escol de inte­lectuais que as defendiam em parte por diletantismo literário, e em parte atraí­dos pelo fruto proibido, pelo desejo de experimentar essa estranha sensação, o frisson dos franceses. O liberalismo era discutido somente nas sociedades secretas, cujos membros, na França, na Espanha, em Portugal, tomaram o nome de franco-maçons e, na Itália, o de carbonari.

.. Primeira tese apresentada ao Primeiro Congresso de História Nacional em 1914.

Textos clássicos 179

2. Confirmando a doutrina de Achille Loria, todos os nossos principais mo­vimentos revolucionários tiveram causas econômicas. 3. Na época de que nos ocupamos, foram os militares que desempenharam o papel principal em todas as insurreições. O elemento civil manobrou nos bastidores, ou aplaudia na platéia, enfileirando-se depois na marcha triunfal. 4. O movimento constitucional adquiriu real importância somente quando se tomou nacional, traduzindo as aspirações da independência.

Cumpre comprovar essas asserções; desenrolemos, portanto, os fatos históricos. O Brasil foi elevado a reino pela Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815.1

Sendo um problema de história geral, não me ocuparei da questão de saber se esta medida foi efetivamente sugerida ao Conde de Palmella pelo célebre Príncipe de Talleyrand. Basta acentuar apenas que a carta de lei sancionou uma situação de fato.

Pensa Varnhagen que o Brasil já era reino emancipado desde 1808, e assim o reputava a própria Europa que, segundo o testemunho digno de fé de um diplomata português contemporâneo, residente no centro dela durante dezes­seis anos, dava mais consideração ao nome português depois que D. João fi­xara a sede do governo no Brasil. A própria carta de lei diz que conferiu aos domínios do Brasil "aquela graduação e categoria política que se lhes devia competir pela sua extensão e riqueza; sob cujo aspecto (acrescenta) já foram contemplados pelos plenipotenciários que formavam o Congresso de Viena".

Depois da elevação a reino, o mais importante acontecimento político que se deu no Brasil foi incontestavelmente a revolução de Pernambuco de 1817.

Na opinião de abalizados historiadores, essa revolução contradiz a minha segunda proposição, de que todos os nossos principais movimentos revolucio­nários tiveram causas econômicas.

1 "Carta de lei de 16 de dezembro de 1815. Eleva o Estado do Brasil à graduação e categoria de reino. D. João por graça de Deus príncipe-regente de Portugal e dos Algarves etc. Faço saber aos que a presente carta de lei virem, que tendo constantemente em meu

r<!al ânimo os mais vivos desejos de fazer prosperar os estados que a providência divina confiou ao meu soberano regime; e dando ao mesmo tempo a importância devida à vas­tidão e localidade dos meus domínios da América, à cópia e variedade dos preciosos ele­mentos de riqueza que eles em si contêm; e outrossim reconhecendo quanto seja vantajosa aos meus fiéis vassalos em geral uma perfeita união e identidade entre os meus reinos de Portugal e dos Algarves, e os meus domínios do Brasil, erigindo estes àquela graduação e categoria política que pelos sobreditos predicados lhes deve competir, e na qual os ditos • meus domínios já foram considerados pelos plenipotenciários das potências que formaram o Congresso de Viena, assim no tratado de aliança concluído ao 8 de abril do corrente ano. como no tratado final do mesmo Congresso, sou, portanto, servido e me praz ordenar o seguinte:

1 . Que desde a publicação desta carta de lei o estado do Brasil seja elevado à digni­dade, preeminência e denominação de reino do Brasil:

2. Que os meus reinos de Portugal, Algarves e Brasil formem dora em diante um só e único reino debaixo do título: Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarves;

3. Que aos títulos inerentes à coroa de Portugal e de que até agora hei feito uso se substitua em todos os diplomas, cartas de !eis, alvarás, provisões e atos públicos o novo título de Príncipe Regente do Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarves, daquém e dalém-mar, em Africa de Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio de Etiópia, Arábia, Pérsia e da lndia, etc.

E esta se cumprirá, como nela se contém ( ... ) Dada no palácio do Rio de Janeiro aos 16 de dezembro de 1815. O príncipe com guarda Marquês de Aguiar.

180 R.C.P. 3/82

Segundo Oliveira limaI teve a revolução pernambucana, e bem saliente, a sua formosa feição, pois que cativa e fascina quanto representa nobre aspi­ração de liberdade, a qual sabemos não vicejava no Brasil nem mesmo depois que a transplantação da corte determinara uma mudança climatérica.

Entre as causas da revolução, continua Oliveira Lima, não se aponta se­quer razão alguma econômica; foi a manifestação de uma combinação de impulsos em que entravam o amor exagerado, literário se quiserem, filosófico mesmo, mas em todo caso ativo de liberdade, e uma noção jactanciosa da valia americana.

Data vênia, não estou de acordo com esta opinião. O ilustre embaixador da intelectualidade brasileira na Europa (de quem sou admirador entusiasta e de quem tenho a fortuna de ser amigo), não confunde, decerto, os fatores de uma revolução com as suas causas, isto é, com as circunstâncias que tor­naram possível a sua realização.

Ninguêm contesta que havia em Pernambuco um grupo de sonhadores, den­tre os quais se destacava o negociante baiano Domingos José Martins, imbuí­dos das idéias democráticas praticadas nos Estados Unidos, e que procuravam divulgá-las entre os sócios das lojas maçônicas. Estes sonhos, porém, nunca se corporificariam num movimento armado se não fosse a miséria do povo produzida pela carestia dos gêneros alimentícios, e o descontentamento das tropas, cujo soldo estava atrasado, apesar de o erário não estar desprovido de recursos, graças à exagerada e pouco prudente economia do capitão-general Caetano Pinto de Miranda Montenegro. Todos os historiadores reconhecem que era por demais elevado o preço da farinha, base da alimentação das classes pobres, não porque o solo de Pernambuco não se prestasse ao cultivo dos cereais, mas porque o alto preço do algodão fazia com que os lavradores não plantassem outra coisa.

A crise pernambucana de 1817, portanto, foi devida à monocultura, idên­tica à que hodiernamente São Paulo sofreu, devido à superprodução do café, e a Amazônia está sofrendo, devido à desvalorização da borracha .

O próprio Dr. Francisco Muniz Tavares que, na sua bem elaborada mono­grafia sobre a revolução de Pernambuco em 1817 (Revista do Instituto Histó­rico, t. 60, parte 1) descreve quase como edênica a situação da capitania quando rebentou a insurreição, narrando os sucessos que se desenrolaram depois e, referindo-se à entrada no porto do Recife de 11 barcos carregados de farinha de mandioca, considera esse fato um favor da Divina Providência "por achar-se então toda a província de Pernambuco em grande penúria desse indispensável alimento, que negligentes agricultores não pensam jamais em reservá-lo no tempo da abundância, nem o governo em estimular a sua plan­tação e melhoramento progressivo".

Em uma correspondência publicada no nQ 32 do O Português, de dezem­bro de 1816, editado em Londres, correspondência que Varnhagen atribui ao Ouvidor Dr. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, se desfiava um rosarto de queixas, no intuito de mostrar que a capitania de Pernambuco, apesar de ser uma das mais comerciantes e rendosas ao patrimônio régio, era também a mais esquecida em providências favoráveis à sua prosperidade. O povo não estava absolutamente satisfeito com a sua situação econômica; e muito contri­buía para aumentar a sua irritação a grande animosidade sempre existente entre brasileiros e reinóis, animosidade que se traduzia nos célebres lustros, eufemismo que designava tremendas cargas de pau de que freqüentemente eram vítimas os portugueses.

Textos clássicos 181

Leonardo Bezerra, um dos únicos sobreviventes do movimento revolucionário de 1810, contra a ereção do Recife em vila, voltando ao Brasil, depois de treze anos de prisão em Portugal, e fixando a sua residência na Bahia, es­crevia aos seus partidários: "Não corteis um só quiri das matas, tratai de poupá­los para em tempo oportuno quebrarem-se nas costas dos marinheiros."2

Esta animosidade, porém, ainda tinha uma causa econômica; os naturais do país não levavam a bem que os reinóis prosperassem tanto, quase que monopolizando a fortuna particular.

Ouçamos o depoimento de Varnhagen: "Pernambuco era a capitania onde mais pronunciadas e enraigadas se en­

contravam, desde a guerra dos Mascates, as antigas rivalidades entre os colonos nascidos no Brasil e os nascidos em Portugal. Estas rivalidades datavam já do primeiro século da conquista, e se tinha transmitido de geração em geração. Os filhos dos primeiros conquistadores, aventureiros, cavalheiros e pródigos. viam-se pobres e dependentes dos novos adventícios, que em poucos anos se enriqueciam, em virtude de sua sobriedade e economia."

Os autores intelectuais da revolução eram absolutamente desinteressados, e !Sempre procederam com a maior despreocupação pessoal. É exato que o francês L. F. Tollenare afirma que o primeiro uso que Domingos José Martins fez do poder foi empregar ameaças para haver em casamento a filha de um rico negociante do Recife que antes lhe fora negada. Esta lenda amorosa, porém, não pode marear a reputação do abnegado patriota; quando muito poderia servir para um entrecho de romance ou de pretenso drama histórico. Mas os executores materiais da revolução, os militares que a precipitaram, e o povo que acompanhou a procissão, não agiram exclusivamente por amor aos prin­cípios, tiveram principalmente em vista os seus interesses econômicos.

Um dos primeiros atos do governo revolucionário foi elevar os soldos e prêts, e fazer promoções verdadeiramente escandalosas.

O capitão José de Barros Lima, que iniciou a revolta matando o brigadeiro Barbosa, foi promovido a coronel, e nomeado comandante do regimento de artilharia. O tenente-secretário José Mariano de Albuquerque Cavalcanti, genro e auxiliar do primeiro, passou a sargento-mor de artilharia. O capitão Domin­gos Pedro da Silva Pedroso, figura conspícua no movimento, foi também pro­movido a coronel e nomeado comandante do regimento de infantaria. Os outros militares foram devidamente aquinhoados. Quanto ao povo, a sua única preocupação era tornar mais cômoda a sua vida; e, logo que perdeu essa espe­rança, desinteressou-se do movimento.

Com a serena imparcialidade do historiador que narra fatos sem idéias pre­concebidas diz Oliveira Lima:

"O povo, aliás, se conservara sempre sem entusiasmo pelo ensaio demo­crático que diante dele se desenrolava, sem mesmo uma compreensão nítida do que se estava passando: somente percebia com clareza que a sua situação não melhorava efetivamente como lhe haviam anunciado, e que continuava a sofrer as mesmas privações que dantes" (D. João VI no Brasil, v. 2, p. 819).

O Dr. Muniz Tavares, na citada monografia, diz "que um grande erro dos diretores da revolução tinha sido a negligência do primeiro dever dos governos livres, isto é, a reunião dos escolhidos do povo em corpo constituinte e legis·

2 Palavra pejorativa com que em todo o Norte do Brasil se designavam os naturais de Portugal.

182 R.C.P. 3/82

lativo: o interesse de todos deve ser tratado por todos. Bem que a pesslma educação portuguesa não habituasse os brasileiros ao desenvolvimento rápido da ciência política, todavia, na urgência das circunstâncias, bastava seguir o método abraçado pelos Estados Unidos da América. O novo governo de Per­nambuco, logo que foi nomeado, estava na rigorosa obrigação de publicar um regulamento provisório, que marcasse o modo das eleições dos deputados, o número destes, o tempo das eleições e do ajuntamento dos eleitos com a in­dicação do respectivo lugar, convidando as outras províncias a concorrerem contemporaneamente com os membros correspondentes à sua população."

Não me parece procedente esta censura porquanto é o próprio Dr. Muniz Tavares quem informa que o governo provisório, em vez de reunir logo a constituinte, preferiu preparar um projeto de constituição, que denominou lei orgânica. Esse projeto, que não foi impresso, aboliu a pluridade dos indivíduos no poder executivo, o qual devia ser temporário e eleito pela massa dos elei­tores. O legislativo também era temporário, e o judiciário, se bem que eletivo, era inamovível. Consagrava a liberdade de pensamento, e declarava serem to­dos os homens iguais em direito. O governo remeteu um exemplar dessa pro­posta a todas as câmaras da província, ordenando-Ihes que convocassem os homens notáveis dos seus distritos, a fim de que livremente o discutissem, e remetessem por escrito as suas observações, aprovando ou desaprovando os artigos. Dadas as condições intelectuais da capitania, não há meio de negar que o sistema escolhido pelo governo provisório para consultar a vontade po­pular era muito prático e em nada contrariava o regime democrático. Dois artigos foram fortemente impugnados: o que consagrava a liberdade do pen­samento, acusado de encerrar no seu bojo um ataque à Igreja Católica; e o que estabelecia a igualdade jurídica de todos os homens, entendido como meio de abolir a escravidão.

Quanto à acusação de irreligiosidade, o governo não tinha necessidade de se defender; em nenhum dos seus atos se revelara sectário, e não podiam ser mais amistosas as suas relações com o clero. Logo que se deu o movimento revolucionário, os três cônegos que governavam o bispado, diz Muniz Tavares, foram os primeiros a congratularem-se com os fiéis, em uma pastoral na qual mostravam o perfeito acordo que há entre a religião de Jesus Cristo e a bem­entendida liberdade. O governo provisório compareceu ao solene Te-Deum pro­movido pelo vigário da freguesia de Santo Antônio do Recife, Luís José de Albuquerque, e cujas despesas foram largamente custeadas pela irmandade do Sacramento, quase toda composta de portugueses, o que prova que eles haviam aderido ao movimento, talvez para melhor salvaguardar os seus inte­resses comerciais. E não podia ser mais faustosa a bênção da bandeira azul e branca, na qual se ostentava uma cruz vermelha para indicar que o Brasil era consagrado àquele precioso estigma da humana redenção.

Mas a acusação de pretender abolir a escravidão, base de todo o regime. agrícola, era mais grave porque afetava os interesses econômicos. E o governo provisório sentiu a necessidade de explicar, em uma proclamação, o seu pen­samento, declarando que "se bem que pensasse que os homens, por serem mais ou menos tostados, não degeneravam do original tipo de igualdade; es­tava também convencido de que a base de toda a sociedade regular é a in­violabilidade de qualquer espécie de propriedade; e, portanto, assegurava aos patriotas que as suas propriedades, ainda as mais opostas ao ideal de justiça, seriam sagradas; o governo havia de empregar meios de diminuir o mal, mas sem fazê-lo cessar pela força".

Textos clássicos 183

Vencedora por um golpe de audácia, e tendo falhado os elementos com que contava, a revolução pernambucana de 1817 não podia deixar de su­cumbir; e o aludido projeto de constituição serve apenas para mostrar como, naquela época, os sentimentos constitucionais já se afinavam pelo diapasão americano. O movimento foi republicano na mente dos seus autores intelec­tuais;3 foram, porém, as causas econômicas que facilitaram a sua execução.

Outro acontecimento de grande importância, que provocou manifestações do sentimento constitucional, foi a revolução portuguesa de 1820, a qual tem muitos pontos de semelhança com o movimento revolucionário de Pernam­buco, de que acabamos de tratar. Os seus chefes principais, desembargador Manoel Fernandes Thomaz e o auditor-geral José da Silva Carvalho, sonhavam, decerto, com um governo liberal, inspirado nos princípios da Constituição de Cadiz; mas as suas verdadeiras causas foram o descontentamento do exército, cujo soldo estava muito atrasado, e a miséria negra do Reino, completamente arruinado pela abertura dos portos do Brasil ao comércio das nações amigas, pelos extraordinários favores concedidos às mercadorias inglesas, e pelo afas­tamento da família real. Foram ainda as causas econômicas que determinara.m o movimento.

Oliveira Lima observa que o velho Reino era apegado ao seu tradicional regime político, de que o pretendia libertar uma minoria ínfima de ideólogos; e prova irrecusável dessa asserção é a subseqüente popularidade de que gozou D. Miguel, o ídolo das classes populares. O descontentamento das tropas era o melhor elemento com que contavam os revolucionários, tanto assim que, sabendo que o Marechal Beresford regressava do Rio no navio de guerra Vengeur, trazendo quantia suficiente para satisfazer o débito das tropas, apres­saram o movimento. O primeiro ato da junta revolucionária, instalada no Porto, foi ordenar que fossem pagos os soldos e prêts atrasados, aumentar as etapas e distribuir rações dobradas de pão e vinho. Tanto o manifesto que a junta revolucionária dirigiu à nação portuguesa, a 25 de agosto de 1820, comopos­teriormente o das cortes, pintavam com as mais negras cores a situação· do Reino, indicando como causas do seu infortúnio o aniquilamento das fábricas, o desaparecimento do comércio, a transladação da Família real para o Rió de Janeiro, e a abertura dos portos do Brasil aos navios das nações estran­geiras. Ninguém, porém, descreveu melhor a situação de Portugal em 1820 do que o Dr. José Antônio de Miranda, fidalgo cavaleiro da Casa real e ou­vidor eleito do Rio Grande do Sul, em uma memória constitucional e política, apresentada a el-Rei e oferecida ao Príncipe real, da qual transcreverei os seguintes trechos:

"Infelizmente, porém, em nada se cuidou. A guerra tinha consumido quase todos os moços úteis e, feita a paz, algum que restava, ou ia aparecendo, continuou a ser alistado e exercitado no ministério das armas, quando só o devia ser no ministério e exercício do arado e da charrua. Ao depois, essa pouca ou nenhuma agricultura, que ainda restava, foi de todo paralisada e entorpecida pela grande abundância de grãos, que todos estes três ou quatro anos próximos pretéritos têm entrado em Portugal, tanto por mar como por

~ Esses sentimentos republicanos, aliás, não eram partilhados por todos os membros do governo provisório, porquanto, na sua primeira reunião, o magistrado José Luís de Men· donça propôs que se reconhecesse a autoridade régia, à qual deviam ser encaminhadas as queixas da colônia. Chamado à ordem pelo elemento militar, Mendonça se distinguiu de· pois pelo seu liberalismo adiantado, não perdeu ocasião de dar arras da sua dedicação pela causa.

184 R.C.P. 3/82

..

terra. E o mal chegou a tal excesso, que eu mesmo vi, em 1819, conduzir para Estremoz e Evora farinhas vindas de Filadélfia e grãos do Mediterrâneo, ao mesmo tempo que a província do Alentejo possuía grande abundância de grãos, de que os celeiros estavam cheios. O comércio seguiu a mesma sorte da agricultura: ele toca quase a meta de um perfeito aniquilamento, de forma que, dos capitalistas, uns têm quebrado, e outros têm guardado os seus ca­pitais, deixando apodrecerem nos portos os navios, antes que exporem-se a maiores e indispensáveis riscos e perdas. Pela abertura dos portos da Amé­rica a todas as nações do mundo, Lisboa deixou de ser o empório das mer­cadorias do Brasil e, por isso, os estrangeiros abandonaram o porto de Lisboa para seguirem o rumo da América. O sistema, ou tratado de comércio, de 1810, com a Inglaterra, foi todo a favor daquela especuladora nação. Ela nos iludiu, ou antes, os nossos ministros deixaram-se infelizmente iludir com o termo de reciprocidade. Como se fosse possível haver reciprocidade entre duas nações, das quais uma tem pouco ou nenhum comércio e marinha, e a outra tem mais marinha e comércio que todo o mundo!!!"

Diante desse quadro traçado magistralmente, não me parece que se possa concluir, com Oliveira Lima, que "a revolução portuguesa de 1820 foi antes uma questão de amor próprio, de vaidade, de pundonor do que de conveniência".

Não, ela foi a explosão da miséria, o último arranco de um povo esgotado que, para se libertar das agonias do presente, apela para as incertezas do fu­turo. Este acontecimento causou em todo o Brasil, e principalmente na corte, a mais profunda impressão. Apesar da sua aparente bonomia, D. João era muito aferrado aos seus privilégios, tinha profundo horror pelo liberalismo. Mas, tendo de agir nessa aflitiva conjuntura, se achou colocado na embara­çosa situação do burro de Buridan, entre os alvitres do Conde de Palmella e os de Thomás Antônio, o seu favorito, que lisonjeava os seus sentimentos íntimos.

O primeiro, talvez o tipo mais completo de estadista que Portugal pro­duziu, opinava ser preferível que o rei concedesse espontaneamente uma cons­tituição liberal, antes de ser forçado a aceitar a que fosse imposta pelas cortes. Opinava que os reinos de Portugal e do Brasil, unidos sob a mesma coroa e dinastia, deviam ter administrações e instituições distintas, pela diversidade de costumes e de situações; e pela independência prática de que já gozavam, e de que nenhum dos dois Estados se poderia mais despir e desapossar. Achava também muito conveniente que as duas capitais fossem habitadas alternati­vamente por el-Rei e pelo príncipe herdeiro do trono.

Encastelando-se na necessidade de defender o prestígio da autoridade régia,4 Thomaz Antônio aconselhava a reação, acreditando possível restabelecer pela força o antigo estado de coisas. Qualquer concessão no sentido liberal devia partir exclusivamente da munificência régia, depois que os povos se confes­sassem arrependidos do que tinham feito, e pedissem perdão, prometendo a mais completa obediência. O partido reacionário contava com o auxílio da santa Aliança, que se julgava bastante forte para chamar à ordem todos os povos insubordinados; e Antônio de Saldanha instava em Laybach por uma eficaz intervenção nos negócios de Portugal.

Falhou, porém, esse plano, não porque faltasse à santa Aliança a vontade de intervir, mas porque ela não pôde fazê-lo em virtude da abstenção da Ingla·

4 "Uma vez encetada a autoridade real (era o seu mote favorito) toda vai perdida, e mais se não pode suspender a torrente."

Textos clássicos 185

terra, considerada uma espeCle de tutor de Portugal, a qual, entre outras ra­zões para se conservar inativa, alegava que a sua intervenção viria aumentar os ciúmes já existentes no exército português, pouco satisfeito com a subor­dinação aos oficiais estrangeiros e, além disso, estavam historicamente demons­trados os grandes males da intervenção estrangeira nos negócios da França, em 1792.

Em ofício datado de Paris, aos 10 de março de 1821 (citado por Oliveira Lima), Antônio de Saldanha manifestava, nos seguintes termos, o seu des­peito contra a Inglaterra, à qual atribuía, com fundados motivos, o malogro da intervenção: "as poderosas cortes do norte não se afoitavam a ingerir-se nos negócios deste Reino, com receio de que aquela potência (Inglaterra) julgue uma tal intervenção como um ataque feito à sua propriedade. Tal é a triste situação a que nos achamos reduzidos".

Mas não eram justas estas queixas: ainda que o governo inglês quisesse intervir, não poderia fazê-lo porque nem o parlamento,5 nem a opinião pú- • blica consentiriam numa mudança radical da política inglesa. A Inglaterra é profundamente egoísta e interesseira; em todas as questões que se suscitam na Europa, os seus estadistas representam o papel do Bertrand da fábula, acham sempre um Raton condescendente que se encarrega de retirar do fogo as castanhas,6 que a Inglaterra se apressa em devorar; mas, diga-se em seu louvor, ela nunca esteve contra a liberdade dos povos, nem prestou mão forte ao despotismo. .. alheio. Não estando em jogo o seu interesse, ela é paladina da liberdade e das instituições constitucionais. Ao próprio D. João VI não sorria a idéia de uma intervenção estrangeira, tão acariciada pela sua cama-rilha; e, na circular que dirigiu ao corpo diplomático português, a 24 de janeiro de 1821, reconhecia que a Inglaterra tinha razão quando considerava funesta essa intervenção: "Chamar forças externas para coadjuvar a expulsão de inimigos externos, dizia ele, é o que a história apresenta a cada passo; porém, para sossegar as desordens internas é sempre arriscado. .. A massa da nação é ainda sã, e sendo a força moral a que se deve procurar encaminhar, não posso ocultar que o emprego da força marítima só poderia servir para irritar, e conduzir aos desvarios a que a desesperação pode arrastar."

Mas voltemos à irresolução de D. João VI. A princípio, ele julgou que seriam suficientes algumas medidas anódinas:

se bem que declarasse irregular o ato das cortes se reunindo sem a convo­cação régia, resolveu permitir que elas continuassem a funcionar, com o ca-

S Quando, em 1823, a França resolveu confiar ao duque de Angoulême um exército de cem mil homens, para salvar a Espanha da sua ruína, reconciliá-Ia com a Europa, e deixar ao rei Fernando a liberdade de dar aos seus povos as instituições que lhe aprouvesse, as duas câmaras do parlamento inglês protestaram energicamente contra essa intervenção indébita. 6 Na ocasião em que escrevi esta parte da minha memória, ainda não havia rebentado a conflagração européia, na qual a Inglaterra pretende representar o papel de campeão da liberdade dos povos, combatendo desinteressadamente o militarismo conquistador. Não modifiquei, porém, o meu juízo. Nesta guerra, a Inglaterra é a principal interessada. Com· preendendo que a sua prosperidade dependia do aniquilamento do comércio alemão, que inundava os mercados do mundo com os artigos made in Germany, ela teceu habilmente a teia em que a Alemanha ficou envolvida, devido ao temperamento medieval do seu Kaiser, a quem parecer ter sorrido a idéia de reproduzir, em pleno século XX, a epopéia napoleô· nica. Quando se tratar de fixar as condições de paz, a Inglaterra será a melhor aqui­nhoada ... quia nominor leo. (Suprimi esta nota do original do relatório que apresentei ao Primeiro Congresso de História Nacional, porque ela traduz uma opinião exclusiva­mente pessoal, que não devia figurar numa publicação oficial.)

186 R.C.P. 3/82

ráter consultivo, segundo as velhas praxes do Reino, e prometeu receber bene· volamente as suas reclamações. EI-Rei, porém, estava inteiramente iludido sobre a situação, que era de franca rebeldia contra o seu governo absoluto; e não contava que as cortes encontrariam no Brasil um aliado que iria pôr termo às hesitações reais, convertendo D. João VI em um fervoroso adepto das idéias constitucionais. O nosso temperamento entusiasta e impulsivo não nos per­mitiu compreender os verdadeiros intuitos da revolução portuguesa, nem demos fé dos ciúmes que inspirávamos ao velho Reino. Ingenuamente acreditamos nos protestos de fraternal amizade que as cortes, diante da qual pairava como um espectro a possibilidade da intervenção da santa Aliança, não cessavam de nos prodigalizar; e muito cavalheirosamente servimos de trunfo no jogo dos revolucionários portugueses, vencemos a resistência de el-Rei, demos às cortes o prestígio e a força de que mais tarde, com tanta ingratidão quanta inépcia, pretenderam se servir contra nós, esquecendo que, somente por uma subversão das leis naturais, um pigmeu poderia impor o seu jugo a um gigante . O movimento constitucional no Brasil, observa Oliveira Lima, seguiu a di­reção norte-sul; foi o Pará o primeiro a aderir à revolução portuguesa, da qual teve conhecimento pelo estudante paraense Felipe Alberto Patroni Mar­tins Maciel Parente, que então cursava a Universidade de Coimbra, mas, es­tando em Lisboa quando rebentou a revolução, se apressou em regressar à terra natal, no intuito de propagar as idéias liberais. O momento era, aliás, propício para um movimento revolucionário porquanto, na ausência do Mar­quês de Vila-Flor, aliás já transferido para a Bahia, o governo era provisório e, portanto, sem grande força moral.

A 19 de janeiro de 1821, os revolucionários depuseram o governo então existente, constituíram uma junta provisional da qual foi presidente o vigário capitular Romualdo Antônio de Seixas (mais tarde arcebispo da Bahia, e ocupou posição saliente no parlamento nacional, defendendo a verdadeira doutrina da Igreja contra o excessivo liberalismo de Feijó); e, imediatamente, o povo, as tropas e as autoridades juraram obediência ao Rei e à dinastia de Bragança, às cortes gerais e à Constituição que elas decretassem. Quanto à obediência à constituição in fieri, o presidente da junta ressaltou a cláusula de ser mantida a religião católica. Patroni conheceu desde logo quanto é in­certa a gratidão dos povos; apesar do seu açodamento em vir libertar os seus conterrâneos, não fez parte da junta governativa; eleito, pelo senado da câ­mara de Belém, deputado às cortes, a junta não reconheceu a validade da eleição porque a vereação não tinha poderes eleitorais; e, como única ficha de consolação, obteve a nomeação, mais aparatosa do que realmente impor­tante, de procurador do Pará junto às cortes, de cuja nomeação ele procurou tirar grande partido, como veremos mais adiante.

A 10 de fevereiro de 1821 rebentou o movimento revolucionário na Bahia, planejado por três tenentes-coronéis do exército: Francisco José Pereira, Fran­cisco de Paula Oliveira e Manoel Pedro de Freitas Guimarães. O senado da câmara legalizou o movimento, tomando parte na organização da junta gover­nativa, cuja presidência foi oferecida ao próprio governador e capitão-general deposto, o Conde de Palma, em testemunho do apreço em que era tido e para tirar todo caráter pessoal à sua deposição. Não aceitando o Conde de Palma o bizarro convite, foi substituído na presidência da junta pelo Desem­bargador Francisco Manoel de Moura Cabral. O novo governo reconheceu a dinastia de Bragança e a religião católica, e jurou obediência às cortes de

T ex/os clássicos 187

Lisboa, prometendo jurar a Constituição tal como fosse aprovada, e adotando provisoriamente, e também platonicamente, a Constituição de Cádiz, de 1812.

Apesar do grande efeito moral da adesão da Bahia às cortes de Lisboa Thomás Antônio ainda julgava possível a resistência, não queria ouvir falar em constituições, achava que a felicidade dos povos deve depender exclusi­vamente da munificência régia. Mas a atmosfera do Rio começou a aquecer; sob a capa da maçonaria, funcionavam muitos clubes políticos que surda­mente minavam o regime absoluto d'El Rei nosso senhor. Não se julgando muito seguros em terra, muitos militares e civis embarcaram num navio, que estava ancorado no porto, onde mais tranqüilamente concertavam os planos da revolta. Ciente do movimento revolucionário que se preparava, o governo tenta aparar o golpe, publicando o seguinte decreto, de 18 de fevereiro de 1821, que tem na nossa história constitucional a máxima importância, como primeiro projeto governamental de uma constituinte nacional:

"Exigindo as circunstâncias em que se acha a monarquia justas e adequa­das providências para consolidar o trono, e assegurar a felicidade da nação portuguesa, resolvi dar a maior prova do constante desvelo que me anima pelo bem dos meus vassalos, determinando que o meu muito amado e pre­zado filho D. Pedro, príncipe real do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, vá a Portugal munido da autoridade e instruções necessárias para pôr logo em execução as medidas e providências que julga convenientes a fim de restabelecer a tranqüilidade geral daquele reino, para ouvir as represen­tações e queixas dos povos, e para estabelecer as reformas e melhoramentos e as leis que possam consolidar a Constituição portuguesa; e tendo sempre por base a justiça e o bem da monarquia, procurar a estabilidade e prospe­ridade do Reino Unido; e devendo ser-me transmitido pelo príncipe real a mesma Constituição, a fim de receber, sendo por mim aprovada, a minha real sanção.

Não podendo, porém, a Constituição, que, em conseqüência dos menCIO­nados poderes, se há de estabelecer e sancionar para os reinos de Portugal e Algarves, ser igualmente adaptável e conveniente em todos os seus artigos e partes essenciais à povoação, localidade e mais circunstâncias tão ponde­rosas como atendíveis deste reino do Brasil, assim como às das ilhas e do­mínios ultramarinos que não merecem menos a minha contemplação e paternal cuidado: hei por conveniente mandar convocar a esta corte os procuradores que as câmaras das cidades e vilas principais, que têm juízes letrados, tanto do reino do Brasil, como das ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde ele­gerem: E sou outrossim servido que elas hajam de os escolher e nomear sem demora, para que reunido:; aqui o mais prontamente que for possível em junta de cortes com a presidência da pessoa que eu houver por bem escolher para este lugar, não somente examinem e consultem o que dos referidos artigos for adaptável ao reino do Brasil, mas também que proponham as mais reformas, os melhoramentos, os estabelecimentos, e quaisquer outras providências que se entenderem essenciais ou úteis, ou seja, para a segurança individual e das propriedades, boa administração de justiça e da fazenda, aumento do comércio, da agricultura e navegação, estudos e educação pú­blica, ou para outros quaisquer objetos conducentes à prosperidade e bem geral deste reino e dos domínios da coroa portuguesa.

E para acelerar estes trabalhos e preparar as matérias de que deverão ocupar-se: sou também servido criar desde já uma comissão composta de

188 R.C.P. 3/82

..

..

pessoas residentes nesta corte, e por mim nomeadas,1 que entrarão logo em exercício e continuarão com os procuradores das câmaras que se forem apre­sentando a tratar de todos os referidos objetos, para com pleno conhecimento de causa eu os decidir ...

Palácio do Rio de Janeiro em 18 de fevereiro de 1821. Com a rubrica de sua majestade." Se o Brasil constituísse nessa época um todo homogêneo, se os promo­

tores do movimento revolucionário do Rio tivessem uma larga visão do fu­turo, este decreto seria recebido com os mais entusiastas aplausos porque não somente nos concedia uma constituinte nacional, com amplos poderes legis­lativos, como também fazia gravitar, na órbita dos nossos destinos, as pé­rolas preciosas dos Açores e da ilha da Madeira. Quebrar toda a solidariedade com as cortes, cujos interesses eram antagônicos aos nossos, reter o rei entre nós e tirar desse fato todo o lucro possível, tal era a política nacional que o patriotismo estava impondo. Mas, infelizmente, o horizonte dos Macamboas, Góis et reliqua não passava da torre da freguesia, para me servir duma frase de Tobias Barreto para indicar curteza de vistas; e os altos interesses nacio­nais foram sacrificados às lantejoulas de um liberalismo de fancaria. A hábil polícia de Paulo Fernandes Viana procurou suprimir o perigo, prendendo os conjurados; a medida, porém? já vinha tarde. Ao amanhecer do dia 26 de fevereiro, o batalhão de caçadores n9 3, devidamente armado e municiado, saiu do seu quartel e veio tomar posição no Largo do Rocio, vindo mais tarde reunir-se a ele todos os outros batalhões portugueses e brasileiros, sob o comando do brigadeiro português Francisco Joaquim Carreti.

Não era D. João VI, diante de cujo espírito estava sempre presente a imagem sangrenta do desventurado Luís XVI, um rei capaz de enfrentar tropas revoltadas e multidão ululante; e assim encarregou o príncipe D. Pedro de ir se informar dos acontecimento, que, cumprindo a ordem recebida, se dirigiu para o Largo do Rocio, acompanhado apenas por um criado, atravessou as massas revolucionárias e, subindo à varanda do teatro São João (hoje São Pedro, e que, durante a regência se chamou Teatro Constitucional Flumi­nense, como obsequiosamente me informou o meu prezado mestre, Dr. Vieira Fazenda), perguntou aos revolucionários quais os intuitos do movimento.

Entusiásticos vivas à constituição que as cortes estavam elaborando toma­ram inútil outra resposta.

Com muito bom senso, ponderou D. Pedro que não existia ainda a consti­tuição que os revolucionários aplaudiam tão freneticamente; e que era na convicção de que todas as disposições da projetada constituição portuguesa não poderiam convir à situação do Brasil, que EI-Rei havia providenciado sabiamente pelo decreto do dia 18, convocando uma constituinte para o Rio de Janeiro.

O advogado Macamboa tomou então a palavra e, sem refutar as alegações do príncipe, apresentou um ultimatum: as tropas e o povo exigiam que fosse reconhecida e jurada no Rio de Janeiro a constituição tão exatamente como as cortes a votassem, exigência essa que positivamente bate o recorde do absurdo; que fossem demitidos os ministros e funcionários que iludiam EI-Rei

7 Esta comissão foi nomeada, sendo presidente o Marquês de Alegrete, e membros, entre outros, Antônio Luís Pereira da Cunha, Manoel Jacinto Nogueira da Gama, João Severiano Maciel da Costa, Mariano José Pereira da Fonseca, José da Silva Lisboa, Luís José de Carvalho Mello, Barão de Santo Amaro, João Rodrigues Pereira de Almeida, Monsenhor Almeida, José Caetano Gomes, etc.

Textos clássicos 189

e a nação; e que, no provimento dos cargos públicos, fossem preferidas pes­soas avisadas e patrióticas.

Foram tão calorosas as manifestações de entusiasmo pelo discurso desse funesto Macamboa, que D. Pedro, reconhecendo a inutilidade de qualquer observação em contrário, declarou que voltava para São Cristóvão para trans­mitir a EI-Rei os desejos do povo. A dignidade do governo, para usar uma frase que nos últimos anos do império se tomou célebre, saiu desta emer­gência muito arranhada: D. Pedro, voltando de São Cristóvão, subiu nova­mente à histórica varanda do teatro, e leu ao povo o seguinte decreto, ante­datado para 24 de fevereiro, talvez na estulta pretensão de fazer crer aos pósteros que o mesmo decreto não havia sido imposto à covardia de EI-Rei por uma sedição militar:

"Havendo eu dado todas as providências para ligar a Constituição que se está fazendo em Lisboa com o que é conveniente ao Brasil, e tendo chegado ao meu conhecimento que o maior bem que posso fazer aos meus povos é desde já aprovar essa mesma Constituição, e sendo todos os meus cuidados, como é bem constante, procurar-lhes todo o descanso e felicidade: hei por bem desde já aprovar a Constituição, que ali se está fazendo e recebê-la no meu reino do Brasil e nos demais domínios da minha coroa ...

Palácio do Rio de Janeiro em 24 de fevereiro de 1821. Com a rubrica de Sua Majestade." Outro decreto, esse, porém, datado mesmo de 26 de fevereiro, nomeou

novos ministros e outros empregados públicos. Esta vitória de Pirro foi feste­jada na forma do costume: salvas, iluminação e espetáculo de gala.

Referindo-se aos sucessos que acabamos de narrar, Pereira da Silva, que, gravando no frontispício da sua obra uma enorme coroa imperial, parece ter querido imprimir-lhe desde logo o cunho de história cortezã,8 se extasia pe­rante a varonil energia com que D. Pedro atravessou sozinho as tropas e a multidão revolucionada "impondo a todos respeito pela sua decisão e coragem".

Sem contestar a valentia pessoal do príncipe, aliás demonstrada em sucessos menos contestáveis, temos motivos para encarar com ceticismo o seu heroísmo nessa emergência.

Seria D. Pedro inteiramente estranho ao movimento? Não será ele a per­sonne de rang plus élévé que o encarregado dos negócios da França velada­mente acusa de não ter sido estranho ao movimento? É crível que as tropas se movessem dos quartéis somente pela instigação "da caixeirada que se nu­tria com a leitura dos folhetos de Londres"? Estes sucessos do Rio desgos­taram profundamente D. João VI e apressaram o seu regresso para Portugal; ora, ninguém desejava mais do que D. Pedro que EI-Rei voltasse para Lisboa; a presunção do cui prodest? portanto, o compromete muito, principalmente quando não foi somente nessa ocasião que se revelou a duplicidade da sua conduta, como mostraremos mais adiante. O decreto de 2 de março de 1821 providenciou sobre a liberdade de imprensa, sob a censura do Diretor dos Estudos, visto não ser intenção d'EI-Rei "abrir a porta à libertina dissolução no abuso da imprensa". O decreto de 7 do mesmo mês e ano trata do re­gresso d'EI-Rei para Lisboa, ficando o príncipe real encarregado do governo provisório do Brasil, assegurando D. João VI aos seus vassalos americanos que a "memória deles seria sempre saudosa, e que a sua prosperidade jamais

8 Fazendo esta observação, não desconheço o valor da obra de Pereira da Silva, que muito me auxiliou na elaboração desta memória.

190 R.C.P. }/82

cessaria de ser em qualquer ponto um dos mais assíduos cuidados do seu paternal governo". Um outro decreto, da mesma data, mandou proceder à nomeação dos deputados às cortes portuguesas, observando-se, com pequenas modificações, as disposições dos arts. 27 a 103 da Constituição espanhola.

Como base para a representação nacional, tomou-se a população, segundo o último recenseamento,9 havendo um deputado para cada 30 mil almas. O processo eleitoral não podia ser mais complicado, havendo juntas eleitorais de freguesias, de comarcas e de províncias. Nas primeiras votavam todos os cidadãos domiciliados e residentes no território da respectiva freguesia, em cujo número estavam compreendidos os eclesiásticos seculares.

A 6 de abril de 1821, as tropas se revoltaram no Maranhão; e o gover­nador capitão-general Bernardo Pinto da Silveira, convocou em sessão o se­nado da câmara e altos funcionários civis e militares, a fim de deliberarem sobre a situação. Opinaram todos que era conveniente seguir o exemplo da Bania, sendo instalada uma junta governativa, e jurando-se obediência às cortes de Lisboa e à futura constituição.

Coube ao próprio governador a presidência da junta, tendo, como mem­bros, o bispo D. Francisco Joaquim de Nossa Senhora do Nazazé, o chanceler da Relação Lourenço Arrouchella Malheiros, o marechal-de-campo Agostinho Antônio de Faria, o coronel Antônio Rodrigues dos Santos, o desembargador Joaquim Antônio Vieira Belford, o tenente-coronel Manoel de Souza Pinto de Magalhães, o major José Demétrio de Abreu, o capitão Manoel José Ri­beiro da Cunha, e os proprietários Patrício José de Almeida e Silva e An­tônio José Saturnino das Mercês.

O povo maranhense perdeu muito com a mudança do governo, porquanto a junta era dominada inteiramente pelo seu presidente que, à sombra da res­ponsabilidade coletiva, ordenou atos despóticos e violentos, dentre os quais convém salientar as prisões arbitrárias de vários militares e civis nos porões da corveta de guerra Princesa da Beira, que estacionava no porto. Luís do Rego Barreto, governador e capitão-general de Pernambuco, querendo evitar que a sua capitania seguisse o exemplo das outras, convocou para uma reunião o senado da câmara, altos funcionários civis e militares, e pessoas gradas, a fim de deliberarem sobre a situação; e ficou resolvido que o governador suplicaria a EI-Rei que aderisse às novas instituições, ficando os povos muito confiantes nos desejos e intenções do soberano, e muito obedientes às leis e às autoridades constituídas, até que se decidisse legalmente sobre a forma do governo da capitania.

Igual procedimento tiveram os governadores do Ceará e da Paraíba. Deviam reunir-se, no dia 20 de abril, os eleitores paroquiais para elegerem os elei­tores da comarca. E o aviso de 10 de abril de 1821 determinou ao ouvidor, que devia presidir a reunião, que comunicasse aos eleitores o decreto que instituíra a regência de D. Pedro, e lhes facultasse emitirem as suas opi­niões, para serem tomadas em consideração, pois EI-Rei desejava muito co­nhecer como pensavam os seus vassalos. Cumprindo esta ordem, o ouvidor declarou, no edital de convocação do dia 12, que seria permitido aos eleitores apresentarem por escrito as suas propostas.

, Esta disposição foi prejudicial à representação brasileira, porque os nossos recensea­mentos eram muito antigos, mencionavam populações inferiores à realidade, ao passo que o de Portugal aumentou a cifra da população, dando ao velho reino urna represen­tação muito superior à nossa.

Textos clássicos 191

A reuruao teve lugar, no dia marcado, no novo edifício da Praça do Co­mércio, e o ouvidor, tendo como secretário José Clemente Pereira e Joaquim Gonçalves Ledo, leu o decreto que estabelecia os poderes do regente. A assem­bléia, alegando não ter ouvido bem, reclamou uma segunda leitura, que foi feita pelo coronel José Manoel de Morais. A reunião tomou logo uma feição revolucionária, assumindo a assembléia as aparências de uma comissão de salvação pública, sendo tomadas as mais enérgicas providências. O tenente­general Joaquim Xavier Curado e o coronel José Manoel de Morais foram enviados às fortalezas de Santa Cruz Villegaignon e Lage com ordem de im­pedir a saída da divisão que se preparava para o regresso d'EI Rei. Ordenou­se que desembarcasse o tesour010 que havia sido mandado para bordo. E, como as cortes de Lisboa ainda não tinham votado as bases da nova Consti­tuição, resolveu a assembléia enviar ao Paço uma deputação a fim de soli­citar d'El-Rei a aceitação da Constituição espanhola. A deputação ficou assim composta: Antônio José do Amaral, lente de matemática; Dr. Francisco Aires da Gama, sacerdote; Antônio Rodrigues Velloso de Oliveira, desembargador e chance1er do Maranhão; e Francisco Lopes de Souza, também desembargador.

Recebida muito amavelmente pelo rei, a deputação expôs os desejos da assembléia, e D. João VI, depois de consultar os secretários de estado, ex­pediu o seguinte:

"Decreto de 21 de abril de 1821. Havendo tomado em consideração o termo de juramento, que os eleitores

Paroquiais desta comarca, a instâncias e declaração unânime do povo dela, prestaram à Constituição espanhola,!1 e que fizeram subir à minha real pre­sença, para ficar valendo inteiramente a dita Constituição espanhola, desde a data do presente até a instalação da Constituição em que trabalham as cortes

10 Com a drenagem resultante da partida de el-Rei, o tesouro público ficou completa­mente esgotado, estando o Banco do Brasil reduzido à maior pobreza. Para mostrar quanto era aflitiva a situação do banco, diz Armitage que ele não podia trocar uma nota de 100$000 senão pela forma seguinte: 75$000 em notas miúdas, 15$000 em prata e 10$000 em cobre, o que o historiador inglês acha que de fato constituía uma suspensão de pagamento. Os financistas da época tranqüilizavam o povo dizendo que o mal não era tão grande como se pretendia. sendo a depreciação das notas do banco devido à balança do comércio, a terrores pânicos e à falta de meio circulante! 11 São estas as bases da constituição espanhola, que as cortes de Cadiz em nome do povo ~oberano votaram em 1812:

"A soberania reside no povo; a religião católica apostólica é a única verdadeira, com exclusão de qualquer outra; o governo é monárquico; os três poderes são separados; o reI e inviolável, mas sem sanção absoluta; há uma única câmara. As cortes são a reunião de todos os deputados eleitos pelas assembléias das províncias, compostas de eleitores nomeados pelas assembléias da paróquia, nas quais todos os cidadãos têm o direito do sufrágio. Os eleitores de paróquia e os de distritos devem ter pelo menos vinte e cinco anos. Os deputados devem ter uma saúde suficiente, e são eleitos por dois anos, na proporção de um deputado por 70.000 almas. As sessões das cortes devem durar pelo menos três meses em cada ano; e a elas compete votar os impostos e propor as leis que o rei sanciona e faz executar. Se o rei recusar a sanção duas vezes, e as cortes votarem a lei uma terceira vez, será a mesma submetida ao rei que é obrigado a sancionar. Com­pete ao rei declarar a guerra e fazer a paz; nomear os magistrados e bispos, os coman­dantes de terra e mar, e prover os benefícios; mas não poderá impedir, suspender ou dis­solver as cortes, sair do reino, abdicar, fazer alianças ou tratados com potências estran­geiras, nem arrecadar impostos sem o consentimento das cortes, às quais compete o pro­vimento de todos os outros cargos públicos. Os soldados têm o direito de exame e dis­cussão sobre tudo o que disser respeito à sua organização. (!!!) A constituição não pode s<!r revista senão com o concurso de três legislaturas sucessivas, sendo promulgada a revi­são por um decreto que não é submetido à sanção real."

192 R.C.P. 3/82

,

atuais de Lisboa, e que eu houve por bem jurar com toda a minha corte, povo e tropa, no dia 26 de fevereiro do ano corrente: sou servido ordenar que de hoje em diante se fique estrita e literalmente observando neste reino do Brasil a mencionada constituição espanhola, até o momento em que se ache inteira e definitivamente estabelecida a constituição deliberada e deci­dida pelas cortes de Lisboa.

Paço da Boa Vista, aos 21 de abril de 1821. Com a rubrica de Sua Majestade." A leitura deste decreto provocou entusiásticos aplausos, ficando a assembléia

muito comovida diante da paternal liberdade d'El-Rei. Começando a circular o boato de que as tropas portuguesas estavam se reunindo no Largo do Rocio, a assembléia eleitoral resolveu mandar chamar à sua presença o governador das armas, a fim de prestar informações a respeito. Acudiu pressuroso o gene­ral Caula, e deu a sua palavra de honra de que não podiam ser mais pacíficas as intenções das tropas respeitadoras em extremo da autoridade do colégio eleitoral, o qual, muito lisonjeado com este testemunho de respeito, continuou a deliberar em sessão permanente.

Mas a tempestade se formava em São Cristóvão. Melindrara muito ao prín­cipe D. Pedro o pedido dos eleitores de ser jurada a constituição espanhola, a fim de impor-lhe regras fixas de comportamento, ficando coartada a sua autoridade; e, instigado pelos partidários da reação, resolveu tomar uma des­forra, mandando dissolver violentamente a assembléia. Cumprindo as ordens do príncipe, uma companhia da divisão auxiliadora cercou às três horas da madrugada, o edifício da Praça do Comércio; e, sem intimação prévia, infor­mam Armitage e Gomes de Carvalho, deu uma descarga de mosquetaria contra a assembléia dos eleitores desarmados e contra o povo inerme, que acompa­nhava curioso a deliberação dos seus eleitos. Felizmente, o adiantado da hora, que motivara a retirada de muitas pessoas, diminuiu o número das vítimas; mesmo assim, constou oficialmente a morte de três pessoas, sendo grande o número de feridos, entre os quais estava José Clemente Pereira, que recebeu uma profunda cutilada na coxa. Apenas informado de estar feito o serviço, D. Pedro se apressou em vir ao encontro das tropas, e conteve os seus excessos, esperando aumentar a sua popularidade.

São as seguintes as provas circunstanciais de ter partido do Príncipe D. Pedro a ordem para o selvagem ataque à assembléia eleitoral:

1. A questão de ser a reunião dos eleitores dissolvida violentamente pelas tropas, havia sido discutida em conselho de ministros; e, apesar de ser Silves­tre Pinheiro o único a combater essa medida, D. João VI sancionou a sua opi­nião, dando-lhe carta branca para conseguir pacificamente a dissolução da assembléia. Começando a agir, Silvestre Pinheiro encarregou o general Caula de intimar o ouvidor, que continuava a presidir a reunião, a ordem de encerrar a sessão. O ouvidor, salientando a boa ordem em que prosseguiam os traba­lhos, pediu que fosse permitida apenas a conclusão da eleição do conselho. Ora, nestas condições, quem, a não ser D. Pedro, teria autoridade para fazer marchar as tropas lusitanas contra o colégio eleitoral, sem a intervenção do governador das armas, e contrariando as intenções d'EI-Rei, apático demais para ordenar medida tão violenta?

2. Na assembléia eleitoral preponderava o elemento brasileiro, que final­mente compreendera quanto era prejudicial aos interesses nacionais a partida d'EI-Rei; ora, mesmo que fosse simplesmente adiado o regresso de D. Toão, isto contrariava muito os planos ambiciosos do seu herdeiro, instigado também

Textos clássicos 193

pelo Conde dos Arcos, a quem sorria a ambição de ser o primeiro ministro do futuro governo.

3. Pereira da Silva, o historiador da corte, diminuindo muito a gravidade dos acontecimentos, procurou, contudo, fazer crer que El-Rei encarregara D. Pedro de providenciar sobre o restabelecimento da ordem pública; confessa, porém, que, no desempenho dessa incumbência, o príncipe ordenara ao Gene­ral Caula que dissolvesse, por bem ou pela força, o colégio eleitoral.

4. Finalmente, escrevendo a El-Rei, a 9 de outubro de 1821, disse D. Pedro: "Tudo o mais está mais acomodado, porque têm medo da tropa portuguesa. Bem dizia eu a V. M. que necessitava de tropas neste país. Espero que não quererão ver a peça do pano, do qual viram a amostra no dia 21 de abril." Ora esta alusão ao morticínio da praça do Comércio equivale por uma confis­são; apoiado nas tropas portuguesas, D. Pedro garantia ao pai que os brasilei­ros não teriam coragem de agir, mesmo porque já lhes dera uma amostra da sua energia no dia 21 de abril.

Sob a influência dominadora de D. Pedro, EI-Rei vergonhosamente se retra­tou, expedindo o seguinte:

"Decreto de 22 de abril de 1821: Subindo ontem à minha real presença uma representação, dizendo-se ser do

povo, por meio de uma deputação formada dos eleitores Paroquiais, a qual me assegurava que o povo exigia para minha felicidade, e deles, que eu deter­minasse que de ontem em diante este meu reino do Brasil fosse regido pela constituição espanhola, houve então por bem decretar, que essa constituição regesse até a chegada da Constituição, que sabia e sossegadamente as cortes convocadas na minha muito nobre e leal cidade de Lisboa: observando-se, porém, hoje, que esta representação era mandada fazer por homens mal-inten­cionados, e que queriam a anarquia, e vendo que o meu povo se conserva, como eu lhe agradeço, fiel ao juramento que eu com ele de comum acordo prestamos na praça do Rocio no dia 26 de fevereiro do presente ano; hei por bem determinar, decretar e declarar nulo todo ato feito ontem, e que o governo provisório que fica até a chegada da constituição portuguesa, seja da forma que determina o outro decreto, e instrucções que mando publicar12 com a mes­ma data deste, e que meu filho, o príncipe real há de cumprir e sustentar até chegar a mencionada constituição portuguesa.

Palácio da Boa Vista, aos 22 de abril de 1821. Com a rubrica de Sua Majestade."

12 Essas instruções baixaram efetivamente com o Decreto de 22 de abril de 1821, que encarregou o governo-geral do Brasil ao príncipe real constituído regente e lugar-tenente d'EI-Rei, exprimindo a esperança que "ele se haveria como um bom príncipe, amigo e pai destes povos". Segundo as aludidas instruções, o príncipe real devia tomar as suas resoluções em conselho, formado dos ministros de estado e dos dois secretários de estado interinos e as suas determinações seriam referendadas por aquele dos ministros de estado ou secretário da competente repartição, os quais ficariam responsáveis. Além dos poderes gerais para a administração da justiça, fazenda e governo econômico, as instruções con­feriram expressamente ao príncipe as seguintes atribuições: a) comutar ou perdoar a pena de morte aos réus que estiverem incursos nela por sentença; b) prover todos os lugares de letras e ofícios de justiça ou fazenda que estiverem vagos, ou venham a vagar, assim como todos os empregos civis ou militares; e benefícios e dignidades eclesiásticas, salvo os bispados; c) fazer guerra ofensiva ou defensiva, quando as circunstâncias fossem tão graves que fosse impossível esperar a resolução de el-Rei; d) e conferir, como graças ho­noríficas, os hábitos das três Ordens militares de Cristo, São Bento de Aviz e São Tiago da Espada.

194 R.C.P. 3/82

..

Para justificar a sua retratação, EI-Rei procurou fazer crer que os eleitores reunidos na Praça do Comércio eram indivíduos mal-intencionados, provoca­dores de desordens e que não traduziam o sentimento popular. É, porém, intei­ramente infundada esta afirmação. Como já vimos, a comissão que foi a São Cristóvão manifestar os desejos do povo, à qual D. João VI entregou o decreto pondo em vigor a constituição espanhola, era composta de cidadãos respeitá­veis, todos de elevada categoria social. E o corpo eleitoral não envergonhava os seus representantes.

Na sua magnífica monografia, Os deputados brasileiros nas cortes gerais de 1821, à qual me referirei mais de espaço, na última parte desta memória, diz Gomes de Carvalho:

"Já havia mais de 160 eleitores e continuavam a afluir dos outros recantos remotos da província. Eram na maioria lavradores, comerciantes e médicos, que deviam ter as particularidades dos que vivem no campo, onde vêm quase sempre as mesmas pessoas e estas em pequeno número: simples e acanhados, refletidos e de pouco falar. Em desempenho do mandato recebido dos conci­dadãos, afrontaram as descomodidades de longa jornada, através de caminhos difíceis, e o movimento estonteador da capital. Alguns eram tão carregados de anos que mal podiam andar, outros traziam a saúde comprometida. Todos homens dignos e devotados ao bem público. Diz um contemporâneo que eram "a flor da província". Silvestre Pinheiro reconhece que eram "pessoas das mais capazes que se poderiam imaginar". O morticínio da Praça do Comércio cau­sou na população a mais dolorosa impressão; e D. João VI, reconhecendo a sua impopularidade, apressou o seu regresso para Lisboa, embarcando mesmo em São Cristóvão, ao anoitecer do dia 24 de abril. Assim, partiu como um fugitivo um chefe de estado, cuja administração fora das mais fecundas, e a cuja memória devemos ser gratos, esquecendo mesmo as fraquezas do seu caráter.

D. Carlota Joaquina, ao contrário, saiu em pleno dia do paço da cidade; e, ao embarcar, obsequiou-nos com estas palavras da mais requintada amabilida­de principesca: "Afinal vou para terra de gente", traduzindo nessa frase, obser­va Oliveira Lima, todo o seu aborrecimento à terra hospitaleira em que vivera 13 anos, podendo satisfazer todos os seus caprichos libertinos, mas nenhuma das suas ambições políticas.

Julgando-se bastante forte com o apoio prestado pelo Brasil, e desaparecido o receio de uma intervenção da Santa Aliança, as cortes começaram a desmas­carar as suas baterias contra nós, desfechando rude golpe contra a nossa auto­nomia no decreto de 24 de abril de 1821, que declarou legítimos os governos estabelecidos ou que se estabelecerem nos Estados portugueses do ultramar, para abraçarem a causa da regeneração política, e ordenou a eleição dos depu­tados às cortes. Efetivamente, esse decreto já não fala no reino do Brasil, se refere às províncias ultramarinas, no manifesto intuito de equipará-las às do reino, tornando assim inútil a existência de um governo geral e autônomo no Brasil. O início das hostilidades teve a grande vantagem de abrir os olhos de grande número dos nossos compatriotas sobre os supostos sentimentos frater­nais das cortes de Lisboa, e de fazer surgir o partido da Independência nacio­nal, do qual foram logo conspícuas figuras Joaquim Gonçalves Ledo, Cônego Januário da Cunha Barbosa, Francisco Sampaio, e José Clemente Pereira, sendo que este último, muito aferrado à dinastia de Bragança, era, a princípio, par­tidário da união mas com governo autônomo. Não interrompamos, porém, o fio dos acontecimentos.

Textos clássicos 195

o príncipe D. Pedro que, quando foi dos sucessos de abril, se servira das tropas para tirar uma desforra do colégio eleitoral, embora contrariando as ordens anteriores d'EI-Rei, teve ocasião de conhecer quanto é perigoso brincar com fogo: tendo demorado o juramento das bases da constituição portuguesa,I3 que haviam chegado de Lisboa, aguardando notícias sobre o efeito da chegada de seu pai a Lisboa, a divisão portuguesa se insurgiu, a 5 de junho de 1821, marchou para o Largo do Rocio e exigiu as seguintes medidas: 1. juramento imediato das bases da constituição, que haviam chegado de Lisboa; 2. a de­missão do conde de Arcos; 3. confiar o comando das forças armadas a uma comissão militar; 4. instituir uma junta governativa, responsável perante as cortes de Lisboa, sem cuja aprovação nenhuma lei fosse promulgada, nem negócio algum importante decidido.

D. Pedro, tendo verificado que os eleitores das províncias também desejavam o juramento das bases da constituição, cedeu ao império das circunstâncias: jurou a constituição, perante a câmara municipal e nas mãos do bispo do Rio

13 Estas afamadas bases exerceram tanta influência na história nacional e são tão pouco conhecidas, que acredito ser necessário exumá-las da coleção das leis:

"Decreto de 10 de março de 1821. As cortes gerais extraordinárias e constituintes da nação portuguesa, antes de procederem

a formar a sua constituição política, reconhecem e decretam como bases dela os seguintes principios, por serem os mais adequados para assegurar os direitos individuais do cidadão e estabelecer a organização e limites dos poderes políticos do estado.

Seção 1 - Dos direitos individuais do cidadão.

1. A constituição política da nação portuguesa deve manter a liberdade, segurança e propriedade de todo cidadão; 2. A liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei não proíbe. A conservação desta liberdade depende da exata observância as leis; 3. A segurança pessoal consiste na proteção que o governo deve dar a todos para po­derem conservar os seus direitos pessoais; 4. Nenhum indivíduo deve ser preso sem culpa formada; 5. Excetuam-se os casos determinados pela constituição e, ainda nestes, o juiz lhe dará em 24 horas e por escrito a razão da prisão; 6. A lei designará as penas com que devem ser castigados não só o juiz que ordenar a prisão arbitrária, mas a pessoa que a requerer, e os oficiais que a executarem; 7. A propriedade é um direito sagrado e inviolável que tem todo o cidadão de dispor à sua vontade de todos os seus bens, segundo a lei. Quando por alguma circunstância de necessidade pública e urgente for preciso que um cidadão seja privado desse direito, deve ser primeiro indenizado pela maneira que as leis estabelecerem; 8. A livre comunicação dos pensamentos é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo o cidadão pode, conseguintemente, sem dependência de censura prévia, manifestar suas opiniões em qualquer matéria: contando que haja de responder pelo abuso desta liberdade nos casos e na forma que a lei determinar; 9. As cortes farão logo esta lei e nomearão um tribunal especial para proteger a liber­dade de imprensa e coibir os delitos resultantes do seu abuso; 10. Quanto, porém, àquele abuso, que se pode fazer desta liberdade em matérias religio­sas, fica salva aos bispos a censura dos escritos publicados sobre o dogma e moral, e o governo auxiliará os mesmos bispos para serem castigados os culpados; 11 . A lei é igual para todos. Não se devem, portanto, tolerar nem os privilégios do foro nas causas cíveis ou crimes, nem comissões especiais. Esta disposição não compreende as causas que pela sua natureza pertencem a juízos particulares, na conformidade das leis que marcarem essa natureza. 12. Nenhuma lei, e muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta necessidade. Toda pena deve ser proporcionada ao delito e nenhuma deve passar da pessoa do delin­qüente. A confiscação de bens, a infâmia, os açoites, o baraço e pregão, a marca de

196 R.C.P. 3/82

de Janeiro, nomeou ministro o desembargador do paço, Pedro Alvares Diniz, e expediu os seguintes decretos: de 5 de junho de 1821, criando uma junta provisória, composta de nove deputados escolhidos de todas as classes, para verificar a responsabilidade dos ministros; da mesma data, aprovando os depu­tados da junta provisional; de 6 de junho de 1821, criando uma comissão mi­litar, para exercer o comando das armas da corte e província, a qual ficou assim composta: tenente-general graduado Jorge de Avilez Juzarte de Souza Tavares, brigadeiro-quartel mestre general Veríssimo Antônio Cardoso, e o brigadeiro graduado Francisco Saraiva da Costa Refoios; e o de 8 de junho de 1821, mandando prestar juramento às bases da constituição nas províncias do reino do Brasil. Antes, porém, desse levante militar, D. Pedro já havia expedido dois decretos garantindo os direitos constitucionais de propriedade e de liberdade individual. O primeiro, datado de 21 de maio de 1821, proibiu tomar-se a alguém cousa alguma contra a sua vontade, e sem indenização, ainda que sob o pretexto de necessidade do Estado, sendo que, nessa hipótese, a

ferro quente, a tortura, e todas as mais penas cruéis e infamantes ficam em conseqüência abolidas. 13. Todos os cidadãos podem ser admitidos aos cargos públicos sem outra distinção que não seja a dos seus talentos e das suas virtudes; 14. Todo cidadão poderá apresentar por escrito às cortes e ao poder executivo recla­mações, queixas ou petições, que deverão ser examinadas; 15 . O segredo das cartas será inviolável. A administração do correio ficará rigorosa­mente responsável por qualquer infração desta lei.

Seção 2 - Da nação portuguesa, sua religião, governo e dinastia

16. A nação portuguesa é a união de todos os portugueses de ambos os hemisférios. 17. A sua religião é a católica apostólica romana; 18. O seu governo é a monarquia constitucional hereditária, com leis fundamentais que regulem o exercício dos três poderes políticos; 19. A sua dinastia reinante é a da sereníssima casa de Bragança. O nosso rei atual é o senhor D. João VI, a quem sucederão na coroa os seus legítimos descendentes, segundo a ordem regular da primogenitura; 20. A soberania reside essencialmente em a nação. Esta é livre e independente, e não pode ser patrimônio de ninguém; 21. Somente à nação pertence fazer a sua constituição ou lei fundamental, por meio de seus representantes legítimos eleitos. Esta lei fundamental obrigará por ora somente aos portugueses residentes nos reinos de Portugal e Algarves, que estão legalmente representa­dos nas presentes cortes. Quanto aos que residem nas outras três partes do mundo, ela se lhes tomará comum, logo que pelos seus legítimos representantes declarem ser esta sua vontade; 22. Esta constituição ou lei fundamental, uma vez feita pelas presentes cortes extraordi· nárias, somente poderá ser reformada ou alterada em algum ou alguns dos seus artigos clepois de haverem passado quatro anos, contados desde a sua publicação, devendo, porém, concordar dois terços dos deputados presentes em a necessidade da pretendida alteração, a qual somente se poderá fazer na legislatura seguinte aos ditos quatro anos, trazendo os deputados poderes especiais para isso mesmo; 23. Guardar·se-á na constituição uma bem determinada divisão dos três poderes, legislativo, executivo e judiciário. O legislativo reside nas cortes com a dependência da sanção do rei, que nunca terá um veto absoluto, mas suspensivo, pelo modo que determina a constitui· ção. Esta disposição, porém, não compreende as leis feitas nas presentes cortes, as quais leis não ficarão sujeitas a veto algum. O poder executivo está no rei e seus ministros, que o exercem debaixo da autoridade do mesmo rei. O poder judiciário esta nos juízes. Cada um destes poderes será respectivamente regulado de modo que nenhum possa arrogar a si as atribuições do outro; 24. A lei é a vontade dos cidadãos declarada pelos seus representantes juntos em cortes Todos os cidadãos devem concorrer para a formação da lei, elegendo estes representantes pelo método que a constituição estabelecer. Nela se há de também determinar quais devam

Textos clássicos 197

real Fazenda deveria pagar, no momento da entrega, o preço previamente e de comum acordo ajustado.

O outro decreto, de 23 do mesmo mês e ano, determinou que, exceto o caso de flagrante delito, nenhuma pessoa livre poderia ser presa sem ordem, por escrito, do respectivo magistrado criminal, que ficou proibido de expedi-la sem preceder culpa formada por inquirição sumária de três testemunhas, duas das quais jurem contestes não somente sobre o fato que em lei expressa seja decla­rado culposo, como também sobre a designação individual do culpado; e "abo­liu para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros inventados para martirizar homens ainda não julgados a sofrer qualquer pena aflitiva por sentença final".

Ia se avolumando cada vez mais a corrente emancipadora, auxiliada eficaz­mente pela imprensa, não somente periódica como também panfletária. Como espécimes de literatura constitucional e patriótica, daquela época, citarei as seguintes publicações:

ser excluídos destas eleições. As leis se farão pela unanimidade ou pluralidade de votos, precedendo discussão pública; 25. A iniciativa direta das leis somente compete aos representantes da nação juntos em cortes; 26. O rei não poderá assistir às deliberações das cortes, porém somente à sua abertura e conclusão; 27. As cortes se reunirão uma vez por ano em a capital do reino de Portugal, em deter­minado dia, que há de ser prefixo na constituição; e se conservarão reunidas pelo tempo de três meses, o qual poderá prorrogar-se por mais um mês, parecendo assim necessário aos dois terços dos deputados. O rei não poderá prorrogar nem dissolver as cortes; 28. Os deputados das cortes são, como representantes da nação, invioláveis nas suas pessoas e nunca responsáveis pelas suas opiniões; 29. Às cortes pertence nomear a regência do reino, quando assim for preciso; prescrever o modo por que entao se há de exercitar a sanção das leis; e declarar as atribuições da mesma regência. Somente às cortes pertence também aprovar os tratados de aliança ofensiva e defensiva, de subsídios e de comércio; conceder ou negar a admissão de tropas estrangeiras dentro do reino; determinar o valor, peso, lei, e tipo das moedas; e terão as demais atribuições que ela lhes assinalar; 30. Uma junta composta de sete indivíduos eleitos pelas cortes dentre os seus membros, permanecerá na capital, onde elas se reunirem, para fazer convocar cortes extraordinárias nos casos que serão expressos na constituição e cumprirem as outras atribuições que ela lhes assinalar; 31 . O rei é inviolável na sua pessoa. Os seus ministros são responsáveis pela falta de observância das leis, especialmente pelo que obrarem contra a liberdade, segurança e propriedade dos cidacJaos, e por qualquer dissipação ou mau uso dos bens públicos; 32. As cortes assinarão ao rei e à família real no princípio de cada reinado uma dotação conveniente, que será entregue em cada ano ao administrador que o mesmo rei tiver nomeado; 33. Haverá um conselho de estado composto de membros propostos pelas cortes na forma que a constituição determinar; 34. A imposição de tributos e a forma da sua repartição será determinada exclusiva­mente pelas cortes. A repartição dos impostos diretos será proporcionada às faculdades dos contribuintes, e deles não será isenta pessoa ou corporação alguma; 35. A constituição reconhecerá a dívida pública; e as cortes estabelecerão todos os meios adequados para o seu pagamento, ao passo que ela se for liquidando; 36. Haverá uma força militar permanente de terra e mar, determinada pelas cortes. O seu destino é manter a segurança interna e externa do reino, com sujeição ao governo. ao qual somente compete empregá-la pelo modo que lhe parecer conveniente; 37. As cortes farão e dotarão estabelecimentos de caridade e instrução pública.

Paço das cortes, em 9 de março de 1821. Manoel Fernandes Thomaz, presidente, José Ferreira Borges, deputado secretário, João

Baptista Felgueiras. deputado secretário, Agostinho José Freire, deputado secretário, Fran­cisco Barroso Pereira, deputado secretário."

198 R.C.P. 3/82

..

Os Anticonstitucionais, por José Anastácio Falcão. Impresso na Tipografia Régia, ano de 1821. Tinha como intuito provar que os anticonstitucionais (também denominados corcundas, emperrados ou caranguejos) eram maus cris­tãos, maus vassalos e os maiores inimigos da nossa pátria; e os dividia em: disfarçados, declarados, esperançados, desgraçados e aferrados.

Os corcundas do Porto, farsa em verso pelo segundo tenente da Armada José Joaquim Lopes de Lima, e cujos heróis eram o desembargador Sangues­suga e o seu capelão Fr. Hárpia. Tipografia Nacional, 1821.

Dicionário corcundático, pelo mesmo autor. Impressão Nacional, 1821. As amêndoas dadas aos corcundas, por um liberal inimigo dos golfinhos.

Impressão Nacional, 1821. Para dar uma idéia do sabor dessas amêndoas, transcreverei apenas a se-

guinte quadrinha: "Um corcunda não tem brio nem honra tem, nem vergonha é malhar em ferro frio malhar-lhe na carantonha." Testamento da velha, D. Felizarda Feliz da Soledade, que foi a serrar, em

favor dos corcundas emperrados e suíços, sendo tabelião Pedro Malas-Artes. Reimpresso no Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1821.

E a Parábola VI acrescentada ao Portugal regenerado, por D.C.N. Publícola, e destinada a provar a necessidade de uma constituição pela injustiça dos cortesãos. Impressa em Lisboa, e reimpressa no Rio de Janeiro na Nova Ofi­cina Tipográfica, 1821.

Não podia ser mais intenso o movimento literário nesta cidade, no último ano do Brasil-reino, traduzindo as publicações os sentimentos dominantes na­S!!..ele período tão agitado da história nacional.

As cortes de Lisboa, não conhecendo bem a nossa situação e já sob a in­fluência da vertigem das alturas, moléstia tão freqüente nos que governam, con­tinuaram na execução dos seus planos de recolonização do Brasil, tomando, entre outras medidas, a de ordenar o regresso do príncipe D. Pedro, sob o pretexto humilhante de completar a sua educação por demais descurada.

Não podia ser mais oportuna a ocasião para vincular os destinos de D. Pedro aos da nacionalidade que os brasileiros pretendiam fundar, trazendo para a causa nacional um contingente valiosíssimo senão decisivo.l4

José Bonifácio de Andrada e Silva, vice-presidente da junta provincial da cidade de São Paulo, toma a iniciativa do movimento oficial em contrário à partida do príncipe.

Minas secunda esse movimento que, finalmente, repercutiu nesta cidade onde, a 9 de janeiro de 1822, o povo em massa se dirigiu ao senado da câmara, entregando-lhe uma representação assinada por mais de oito mil pessoas, pe­dindo ao príncipe que não obedecesse à ordem de partida. José Clemente Pe­reira foi o intérprete dos desejos do povo, e no discurso que dirigiu ao príncipe não ocultou o seu receio de que, partindo do Brasil o último representante da família real, o movimento libertador tomasse orientação republicana, com prejuízo da unidade do país.

II A mentira de bronze não passa de uma frase injusta, sem fundamento histórico. Seja qual for o juízo definitivo da história sobre D. Pedro I, será impossível negar que ele foi um fator insubstituível no movimento libertador, garantindo a unidade nacional.

Textos clássicos 199

"Será possível que V.A.R. ignore, disse ele, que um partido republicano, mais ou menos forte, existe semeado aqui e ali, em muitas das províncias do Brasil, por não dizer em todas elas? Acaso as cabeças que intervieram na explosão de 1817 expiraram já? E se existem, e são espíritos fortes e poderosos. como se crê que tenham mudado de opinião? Qual outra lhe parecerá mais bem fundada que a sua? E não diz uma fama pública ao parecer segura, que nesta cidade mesma, um ramo desse partido reverdeceu com a esperança da saída de V.A.R., que fez tentativas para crescer e ganhar forças, e que só desanimou à vista da opinião dominante de que V.A.R. se deve demorar aqui, para sustentar a união da pátria?"

Pessoalmente pouco disposto a obedecer a ordem de regresso, D. Pedro satisfez os desejos do povo, pronunciando o célebre Fico,t5 verdadeira decla­ração de guerra às cortes de Lisboa, e ato preparatório para a declaração da independência. Assim pensando, o tenente-general graduado Jorge Avilez Ju­zarte de Souza Tavares solicita demissão do comando das tropas portuguesas e, antes de obtê-la, ordena que as mesmas tropas, compostas de dois mil homens e bem providas de artilharia, ocupem o morro do Castelo. Mas os patriotas não desanimam, acodem em chusma ao largo do Rocio, também armados e dispostos para a luta. Tanto quanto é possível prever o resultado de uma batalha, a vitória não coroaria os nossos esforços: as tropas portuguesas volta­vam aguerridas da guerra peninsular, dispunham de artilharia, e tinham a vantagem da posição, ao passo que os soldados brasileiros eram patriotas des­temidos, é exato, mas sem instrução militar e mal-armados. Mas faltou ao ge­neral português a audácia que caracteriza os grandes capitães: no momento de iniciar as operações de guerra, mediu a responsabilidade da sua situação, aten­tando contra a autoridade do príncipe real, sem estar acobertado com uma ordem positiva das cortes; e resolveu capitular, sob a condição de não serem desarmados os seus soldados.

D. Pedro aceitou a condição, determinando, porém, que as tropas portugue­sas revoltadas embarcassem para Niterói, de onde regressariam para Portugal, o que, efetivamente, teve lugar, apesar dos expedientes protelatórios de Avilez, que esperava ansioso a chegada das tropas portuguesas, que as cortes enviavam para assegurar o cumprimento das suas determinações, podendo assim tomar a sua desforra. Nomeado ministro e secretário de estado dos Negócios do reino e estrangeiros, José Bonifácio de Andrada e Silva, compreendendo que o perigo que ameaçava o Brasil era o desmembramento, começou a trabalhar pela cen­tralização das províncias, promovendo a criação de um centro que as aproxi­masse e estabelecesse interesses comuns, fortalecendo a idéia da unidade da pátria. Obedeceu a esses intuitos o Decreto de 16 de fevereiro de 1822, crian­do o Conselho de Procuradores-Gerais das províncias do Brasil,l6

15 Do termo de vereação do senado da cidade do Rio de Janeiro, de 9 de janeiro de 1822, consta que S.A. Real dignou-se responder com as expressões: "Como é para bem de toods e felicidade geral da nação, estou pronto: Diga ao povo que fico." 16 "Decreto de 16 de fevereiro de 1822:

"Tendo eu anuído aos repetidos votos e desejos dos leais habitantes desta capital e das províncias de São Paulo e Minas Gerais, que me requereram houvesse eu de conservar a regência deste reino, que meu augusto pai me havia conferido, até que pela constituição da monarquia se lhe desse uma final organização sábia, justa e adequada aos seus inalie­náveis direitos, decoro e futura felicidade; porquanto, de outro modo este rico e vasto reino do Brasil ficaria sem um centro de união e de força, exposto aos males da anarquia e da guerra civil; e desejando eu, para a utilidade geral do reino unido e particular do bom povo do Brasil, ir de antemão dispondo e arraigando o sistema constitucional, que

200 R.C.P. 3/82

»

A 5 de março, chegou finalmente a divisão naval que devia levar o príncipe D. Pedro para Portugal, e na qual vinham as tropas que deviam assegurar o cumprimento dessa determinação, reforçando o exército português; mas a en­trada da barra não lhe foi franqueada senão depois de terem os seus coman­dantes assinado o seguinte termo:

"Nós, abaixo-assinados, protestamos de obedecer em tudo as ordens que nos forem dirigidas por Sua Alteza Real, pois tal é o nosso dever; aSSIm como de nada nos embaraçarmos nem tomarmos parte nas disposições do governo, salvo sendo-nos ordenado pelo mesmo augusto Senhor.

Paço do Rio de Janeiro, em 9 de março de 1822. Vice-almirante Francisco Maximiano de Souza. Coronel Antônio Joaquim

Rosado." A 24 do mesmo mês, a esquadra portuguesa regressava a Portugal, deixando

aqui 600 homens que se passaram para o serviço do Brasil. A convocação de um conselho de procuradores das províncias, com o caráter meramente consul­tivo, já não satisfazia às aspirações nacionais, e Joaquim Gonçalves Ledo de­fendia no Reverbero a idéia da convocação de uma constituinte nacional. A ação libertadora de José Bonifácio era francamente secundada apenas por qua-

ele merece, e eu jurei dar-lhe, formando desde já um centro de meios e de fins, com que melhor se sustente e defenda a integridade e liberdade deste fertilíssimo e grandioso País, e se promova a sua futura felicidade: hei por bem mandar convocar um conselho de procuradores-gerais das províncias do Brasil, que as representem interinamente, nomeando aquelas que têm até quatro deputados em cortes, um; as que têm de quatro até oito, dois; e as outras daqui para cima, três; os quais procuradores-gerais poderão ser removidos de seus cargos pelas suas respectivas províncias, no caso de não desempenharem devidamente suas obrigações, se assim o requererem os dois terços das sua câmara, em vereação geral e extraordinária, procedendo-se à nomeação de outros em seu lugar. Estes procuradores ~erão nomeados pelos eleitores de paróquias juntos nas cabeças de comarca, cujas eleições serão apuradas pela câmara da capital da província, saindo eleitos afinal os que tiverem maior número de votos entre os nomeados, e em caso de empate decidirá a sorte; pro­cedendo-se em todas estas nomeações e apurações na conformidade das instruções, que mandou executar meu augusto pai pelo decreto de 7 de março de 1821, na parte em que for aplicável e não se achar revogada pelo presente decreto. Serão as atribuições deste conselho: 1. Aconselhar-me todas as vezes que por mim lhe for mandado, em todos os negócios mais importantes e difíceis; 2. Examinar os grandes projetos de reforma, que se devam fazer na administração geral e particular do estado, que lhe forem comunicados; 3. Propor-me as medidas e planos, que lhe parecerem mais urgentes e vantajosos ao bem do reino unido e à prosperidade do Brasil; 4. Advogar e zelar cada um dos seus membros pelas utilidades de sua província respectiva. Este conselho se reunirá em uma sala do meu paço todas as vezes que eu o mandar convocar, e além disso todas as outras mais que parecer ao mesmo conselho necessário de se reunir, se assim o exigir a urgência dos negócios públicos, para o que me dará parte pelo ministro e secretário de estado dos negócios do reino. Este conselho será por mim presidido, e às suas sessões assistirão os meus ministros e secretários de estado, que terão nelas assento e voto. Para o bom regime e expediente dos negócios nomeará o conselho por pluralidade de votos um vice-presi­dente mensal dentre os seus membros, que poderá ser reeleito, se assim lhe parecer con­veniente; e nomeará de fora um secretário sem voto, que fará o protocolo das sessões, e redigirá e escreverá as propostas aprovadas e as decisões que se tomarem em conselho. Logo que estiverem reunidos os procuradores de três províncias, entrará o conselho n.:> exercício das suas funções. Para honrar, como devo, tão úteis cidadãos: hei por bem conceder-lhes o tratamento de excelência enquanto exercerem os seus importantes em­pregos; e mando outrossim que nas funções públicas preceda o conselho a todas as outras corporações do estado, e gozem seus membros de todas as preeminências de que gozavam até aqui os conselheiros de estado no reino de PortugaL ..

Paço, em 16 de fevereiro de 1822. Com a rubrica de S. A. R. o príncipe regente."

Textos clássicos 201

tro províncias: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul; Pernambuco e Bahia se enfraqueciam em lutas intestinas.

Tendo o governo de Portugal ordenado aos seus cônsules que procurassem impedir a exportação de armas e munições para todas as províncias transatlân­ticas, sob pena de confisco dos navios e responsabilidade criminal dos carre­gadores e encarregados do transporte, esta ordem foi considerada um verda­deiro casus belli, e o senado da câmara da cidade do Rio de Janeiro, atendendo aos desejos do povo e das tropas da 1 ~ e 2~ linhas, reunidas no Largo do Rocio, solicitou ao príncipe regente, em 13 de maio de 1822, que se dignasse de aceitar o título de Protetor e Defensor Perpétuo e Constitucional do Reino do Brasil, com que o povo e as tropas acabavam de o aclamar. Consta do (ermo de vereação do senado da câmara da cidade do Rio de Janeiro, do referido dia 13 de maio, que S.A.R. houve por bem declarar: Que aceitava e continua­ria a desempenhar como até aqui o título, que o povo e a tropa desta corte lhe conferiram. Mas de um aditamento ao mesmo termo se verifica que D. Pedro excluiu do título a palavra protetor declarando amavelmente que o Brasil não precisava da sua proteção e a si mesmo se protegia.

A 23 de maio de 1822, se reuniram no senado da câmara o juiz de fora, os vereadores, o procurador do senado da câmara em vereação extraordinária, e os homens bons que no mesmo senado tinham servido e, tomando conheci­mento de uma representação do povo para que o príncipe regente convocasse para a corte uma assembléia-geral das províncias do Brasil, resolveram "que ela devia ser apresentada imediatamente a S.A. Real, não só por ser esta a vontade do povo da cidade, conforme com a vontade dominante nas provín­cias coligadas do Brasil, como também por ser este o único meio que se oferecia de consolidar a união do reino do Brasil e o salvar dos males evidentes de que estava ameaçado, e para evitar que se rompesse a sua união com Portugal, como fazia temer o estado exaltado a que se tinha elevado ultimamente a opinião pública."

Em virtude desta resolução, saíram todos processionalmente em direitura ao paço do príncipe real, levando o estandarte o ex-almotacé Manoel José Ribeiro de Oliveira, e indo também encorporada uma deputação da província do Rio Grande do Sul e que era composta de Francisco Xavier Ferreira, como repre­sentante do governo da mesma província e das câmaras de Porto Alegre, Rio Grande e Rio Pardo, e do major do estado-maior José Joaquim Machado de Oliveira, por parte da tropa da referida província. Introduzidos todos na grande sala das audiências, onde já se achava o príncipe D. Pedro, José Cle­mente Pereira entregou a representação, pronunciando um discurso enérgico e viril, se bem enfático ou hiperbólico, e do qual destacarei os seguintes trechos:

"Vo:isa Alteza Real achará neste senado venerando a firmeza da sua cons­titucionalidade; a sólida segurança da sua coroa; a estrada certa da verdadeira glória que promete elevar o nome de Vossa Alteza Real acima dos mais famo­sos príncipes do universo; o descanso nas suas fadigas; a salvaguarda nos seus maiores perigos; a força irresistível das suas armas; a riqueza do tesouro pú­blico; a consolação de ver feliz um povo que tão voluntário se declarou súdito fiel de Vossa Alteza Real; a invejada sorte finalmente de lançar a primeira pedra fundamental do império brasileiro que, principiando por onde outros acabam, fará a inveja e a admiração do mundo inteiro.

Mas para que, senhor, produzir motivos para persuadir onde o arbítrio na escolha falta? Está escrito no livro das leis eternas que o Brasil deve passar hoje, oh! grande dia! à lista das nações livres. E decreto do árbitro do uni-

202 R.C.P. 3/82

..

verso. Há de cumprir-se, queiram ou não queiram os mortais, que impedir sua marcha a nenhum é dado. Obedecei, senhor, a esta lei eterna e, cumprindo assim com um dever sagrado, fareis a vossa glória, a salvação de Portugal, e do Brasil a dita."

Recebendo a representação, D. Pedro deu a seguinte resposta: "Fico ciente da vontade do povo do Rio, e tão depressa saiba a das mais províncias, ou pelas câmaras, ou pelos procuradores-gerais, então imediatamente me confor­marei com o voto dos povos deste grande, fértil e riquíssimo reino."17

Falaram, em seguida, o referido deputado do Rio Grande do Sul, Francisco Xavier Ferreira, o major José Joaquim Machado de Oliveira, como represen­tante do corpo militar da 1 ~ e 2~ linhas, e o deputado às cortes pela província do Ceará, sargento-mor Pedro José da Costa Barros, todos agradecendo ao príncipe ter aceito o título de Defensor Perpétuo do Brasil, e protestando a mais absoluta lealdade (Termo de vereação extraordinária do senado da câma­ra da cidade do Rio de Janeiro, de 23 de maio de 1822).

Cumprindo a sua promessa, D. Pedro expediu, a 1<-> de junho de 1822, um decreto convocando para o dia seguinte o conselho de procuradores das pro­víncias, apesar de ainda não estarem representadas três delas, porquanto urgia a salvação do Estado que se instalasse quanto antes o referido conselho. Efe­tivamente, teve lugar no dia 2 de junho de 1822 a instalação do conselho dos procuradores-gerais das províncias brasileiras, os quais, em número de três, prestaram o seguinte juramento:

"Juro aos santos evangelhos de defender a religião católica romana, a Dinas­tia da real Casa de Bragança, a regência de Sua Alteza Real, defensor perpétuo do Brasil, de manter a soberania do Brasil, a sua integridade e a da província de quem sou procurador, requerendo todos os seus direitos, foros e regalias bem como todas as providências que necessárias forem para a conservação e mantença da paz, e da bem-entendida união de toda a monarquia, aconselhando com a verdade, consciência e franqueza a Sua Alteza Real em todos os negó­cios e todas as vezes que para isso for convocado. Assim Deus me salve."

A fala, com que D. Pedro instalou o conselho, terminou com as seguintes palavras, alevantadas e patrióticas:

"Eu lhes peço que advoguem a causa do Brasil da forma há pouco jurada, ainda que contra mim seja (o que espero nunca acontecerá) porque eu pela minha nação estou pronto até a sacrificar a própria vida, que a par da salva­ção da nossa pátria é nada.

Pelas razões expostas acabais de ver a necessidade que houve desta instala­ção repentina, e sabei que dela depende a honra, a alegria, a salvação da nossa pátria, que está em sumo perigo.

Ilustres procuradores, são estes os sentimentos que regem a minha alma, e também os que hão de reger a vossa; contai comigo não só como intrépido guerreiro que pela pátria arrostará todos e quaisquer perigos, mas também como amigo vosso, amigo da liberdade dos povos, e do grande, fértil e riquís­simo Brasil, que tanto me tem honrado e me ama.

Não assenteis, ilustres procuradores, que tudo que tenho dito é nascido de grandes cogitações, esquadrinhando palavras estudadas e enganadoras; não: é filho do meu amor da pátria, expressado com a voz do coração. Acreditai-me."

17 Esta resposta, a única que podia ser dada na ocasião, atenta à gravidade da medida que fora solicitada, não traduz absolutamente a calculada frieza com que Pereira da Silva afirma ter o príncipe respondido.

Textos clássicos 203

Reunidos, no dia 3 de junho de 1822, os procuradores-gerais da província do Rio de Janeiro, Joaquim Gonçalves Ledo e José Mariano de Azevedo Cou­tinho, o procurador-geral do Estado Cisplatino, Lucas José Obes,18 e os mi­nistros de Estado, José Bonifácio de Andrada e Silva, Caetano Pinto de Mi­randa Montenegro, Joaquim de Oliveira Alves e Manoel Antônio Farinha, re­solveram apresentar ao príncipe regente o seguinte requerimento:

"Senhor, a salvação pública, a integridade da nação, o decoro do Brasil e a glória de V.A.R. instam, urgem e imperiosamente comandam que V.A.R. faça convocar com a maior brevidade possível uma assembléia-geral de repre­sentantes das províncias do Brasil. O Brasil, senhor, quer ser feliz; este desejo, que é o princípio de toda a sociabilidade, é bebido na natureza, e na razão que são imutáveis: para preenchê-lo é-lhe indispensável um governo que, dando a necessária expansão às grandíssimas proporções que ele possui, o eleve àquele grau de prosperidade e grandeza para que fora destinado nos planos da pro­vidência. Foi este desejo, que há longos anos o devorava, e que bem prova a sua dignidade, que o fascinou no momento em que ouviu repercutido nas suas praias o eco da liberdade, que soou no Doiro, e no Tejo para não des­confiar do orgulho europeu, nem acreditar que refalsado machiavelismo apa­rentasse princípios liberais para atraí-lo, adormecê-lo, e restribar depois sobre a sua ruína e recolonização o edifício da felicidade de Portugal. No ardor da indignação que lhe causou a perfídia dos seus irmãos, que reluz por entre todos os véus que lhe procuram lançar e que nasceu daqueles mesmos princí­pios de generosidade e confiança que os deviam penhorar de gratidão, o Brasil rompia os vínculos morais de rito, sangue e costumes, que quebrava de uma vez a integridade da nação, a não ter deparado com V.A.R., o herdeiro de uma Casa que ele adora, e serve ainda mais por amor e lealdade, do que por dever e obediência. Não precisamos, senhor, neste momento, fazer a enume­ração das desgraças com que o Congresso, postergando os mesmos princípios que lhes deram nascimento, autoridade e força, ameaçava as ricas províncias deste continente. A Europa, o mundo todo, que o tem observado, as conhece, as aponta, as enumera. O Brasil já não pode, já não deve esperar que dele, que de mãos alheias provenha a sua felicidade. O arrependimento não entra em corações que o crime devora. O Congresso de Lisboa, que perdeu o norte que o devia guiar, isto é a felicidade da maior parte, sem atenção a velhas etiquetas, já agora é capaz de tentar todos os tramas, e de propagar a anarquia para arruinar o que não pode dominar. Maquinam-se partidos, fomentam-se dissenções, alentam-se esperanças criminosas, semeiam-se inimizades, cavam-se abismos aos nossos pés: ainda mais, consentem-se dois centros no Brasil, dois princípios de eterna discórdia, e insistem na retirada de V.A.R. que será o instante que os há de pôr a um contra o outro. E deverá V.A.R. cruzar os braços, e imóvel esperar que rebente o vulcão sobre que está o trono de V.A.? É este, senhor, o grande momento de felicidade, ou da ruína do Brasil. Ele adora a V.A.R., mas existe uma oscilação de sentimentos, movida pelo receio de seus antigos males, pelo receio do despotismo, que as facções secretas muito fazem valer, muito forcejam para aproveitar.19 A âncora que pode segu-

lS Obes havia sido eleito deputado às cortes de Lisboa; mas, chegando ao Rio de Janeiro, preferiu tomar parte nos trabalhos do conselho dos procuradores-gerais das províncias hrasileiras. )Q Era uma alusão discreta à propaganda do partido republicano, que encontrava na pessoa de D. Pedro o único obstáculo sério à sua expansão.

204 R.C.P. 3/82

...

..

rar a nau do Estado, a cadeia que pode ligar as províncias do Brasil aos pés do trono de V.A.R. é a convocação de cortes, que em nome daquelas que re­presentamos, instantemente requeremos a V.A. Real. O Brasil tem direitos inauferíveis para estabelecer o seu governo, e a sua independência; direitos tais, que o mesmo Congresso lusitano reconheceu, e jurou. As leis, as consti­tuições, todas as instituições humanas são feitas para os povos, não os povos para elas. E deste princípio indubitável que devemos partir: as leis formadas na Europa podem fazer a felicidade da Europa, mas não da América. O siste­ma europeu não pode, pela eterna razão das cousas, ser o sistema. americano; e sempre que o tentarem será um estado de coação, e de violência, que neces­sadamente produzirá uma reação terrível. O Brasil não quer atentar contra os direitos de Portugal, mas desadora que Portugal atente contra os seus: o Brasil quer ter o mesmo rei, mas não quer senhores nos deputados do Con­gresso de Lisboa:20 o Brasil quer a sua independência, mas firmada sobre a união bem entendida com Portugal, quer enfim apresentar duas grandes famí­lias, regidas pelas suas leis, presas pelos seus interesses, obedientes ao mesmo chefe. Ao decoro do Brasil, à glória de V.A.R. não pode convir que dure por mais tempo o estado em que está. Qual será a nação do mundo que com ele queira tratar enquanto não assumir um caráter pronunciado? enquanto não proclamar os direitos que tem de figurar entre os povos independentes? E qual será a que despreze a amizade do Brasil, e a amizade do seu regente? E nosso interesse a paz; nosso inimigo só será aquele que ousar atacar a nossa independência.

Digne-se, pois, V.A.R. ouvir o nosso requerimento: pequenas considerações só devem estorvar pequenas almas. Salve o Brasil, Salve a nação, Salve a rea­leza portuguesa."

A assinatura dos ministros de Estado nesse requerimento mostra claramente que a convocação da constituinte era assunto resolvido, não passando o mesmo requerimento de uma formalidade necessária para salvar as aparências, fazendo crer que D. Pedro ainda uma vez cedia ao império das circunstâncias, se incli­nando perante a vontade popular, expressa pelos seus legítimos representantes.

E tanto era assunto resolvido que D. Pedro, no mesmo dia que recebeu o requerimento, expediu o seguinte:

"Decreto de 3 de junho de 1822: Havendo-me representado os procuradores-gerais de algumas províncias do

Brasil já reunidos nesta corte, e diferentes câmaras e povo de outras, o quanto era necessário e urgente para a mantença da integridade da monarquia portu­guesa, e justo decoro do Brasil, a convocação de uma Assembléia luso-bras i­liense, que investida daquela porção de soberania, que essencialmente reside no povo deste grande e riquíssimo continente, constitua as bases sobre que se devam erigir a sua independência, que a natureza marcara, e de que já estava de posse, e a sua união com todas as outras partes integrantes da grande família portuguesa, que cordialmente deseja: e reconhecendo eu a verdade e a força das razões que me foram ponderadas, nem vendo outro modo de asse­gurar a felicidade deste reino, manter uma justa igualdade de direitos entre ele e o de Portugal, sem perturbar a paz, que tanto convém a ambos, e tão própria é de povos irmãos: hei por bem, e com o parecer do meu Conselho de Estado, mandar convocar uma assembléia geral constituinte e legislativa,

lO Dirigido ao filho e herdeiro de el-Rei, o requerimento procurou salientar que a luta não era contra D. João VI, e sim exclusivamente contra as cortes, que tentavam nos reduzir novamente à situação de colônia.

Textos clássicos 205

composta de deputados das provmClas do Brasil novamente eleitos na forma das instruções, que em conselho se acordarem, e que serão publicadas com a maior brevidade.

Com a rubrica do príncipe-regente." Não compreendendo que naquele momento a autoridade régia era apenas

uma ficção constitucional, porquanto o poder público era efetivamente exer­cido pelas cortes, D. Pedro procurou pleitear perante o pai a causa do Brasil e, em carta, aduziu os seguintes argumentos, para mostrar que a convocação da constituinte era uma excelente medida: 1. ser geral a opinião de que sem cortes o Brasil não pode ser feliz; 2. não ser possível que fizessem boas leis para o Brasil homens que não eram brasileiros e legislavam a distância, sem conhecimento das necessidades do país, que variavam constantemente, como era natural em um país que estava na adolescência e ia desenvolvendo maior vigor; 3. que essa medida viria fortalecer os laços que uniam o Brasil a Por­tugal, porque não há união duradoura sem igualdade de direitos, ninguém se unindo em sociedade, para ver piorar a sua condição; ora o Brasil era bas­tante forte para manter os seus direitos, que ele príncipe estava disposto a sustentar, mesmo com o sacrifício de sua vida.

Como veremos na última parte desta memória, as cortes de Lisboa, se bem que tivessem conhecimento da correspondência trocada entre o príncipe D. Pedro e o rei, não se convenceram da necessidade da convocação de uma constituinte brasileira, e até anularam serodiamente esse ato. Mas no Brasil o decreto de 3 de junho foi mais um passo decisivo para a declaração da inde­pendência. O Senado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro, sempre à frente do movimento emancipador, se reuniu em vere ação extraordinária, a 10 de junho de 1822, com a presença dos homens bons que nele haviam servido, e de muitos cidadãos; e resolveu ir processionalmente agradecer ao Príncipe D. Pedro a convocação da assembléia geral constituinte, e prestar novamente o juramento de manter a regência.

Acompanhavam o Senado da Câmara nesta manifestação não só a deputação do Rio Grande do Sul, como também os oficiais de todos os corpos da guar­nição da corte, fraternizando mais uma vez a tropa com o povo.

De acordo com as instruções de 19 de junho de 1822, assinadas por José Bonifácio de Andrada e Silva, foi fixado em 100 o número dos deputados para a Assembléia Constituinte e Legislativa do reino do Brasil, assim distribuídos:

Província cisplatina 2 Bahia 13 Rio Grande do Sul 3 Alagoas 5 Santa Catarina 1 Pernambuco 13 São Paulo 9 Paraíba 5 Mato Grosso 1 Rio Grande do Norte 1 Goiás 2 Ceará 8 Minas Gerais 20 Piauí 1 Rio de Janeiro 8 Maranhão 4 Capitania 1 Pará 3

As eleições seriam feitas pelos eleitores de paróquia, escolhidos diretamente pelo povo de cada uma das freguesias. Tinham direito de votar nas eleições paroquiais todo cidadão casado, e todo aquele que tivesse de 20 anos para cima sendo solteiro, e que não fosse filho-família. Deviam, porém, todos os votantes ter pelo menos um ano de residência na freguesia onde votassem.

206 R.C.P. 3/82

Eram excluídos de votar todos os que recebiam salários ou soldadas por qual­quer modo que fosse.

Não estavam compreendidos nesta exclusão os guarda-livros e primeiros­caixeiros de casas de comércio, os criados da casa real, que não fossem de galão branco, e os administradores de fazendas rurais e fábricas. Foram tam­bém excluídos de votar os religiosos regulares, os estrangeiros não naturaliza­dos e os criminosos.

Há nessas instruções uma disposição que merece especial menção, como testemunho da pureza dos costumes políticos dos nossos maiores, se não tra­duz apenas o fino humorismo do patriarca da independência.

Depois de ter providenciado sobre a eleição dos secretários das mesas elei­torais, e dos escrutinadores, as instruções assim determinam:

"Lavrada a ata desta nomeação, perguntará o presidente se algum dos cir­cunstantes sabe e tem que denunciar suborno ou conluio para que a eleição recaia sobre pessoa ou pessoas determinadas. Verificando-se por exame público e verbal a existência do fato argüido (se houver argüição), perderá o incurso o direito ativo e passivo de voto. A mesma pena sofrerá o caluniador. Qual­quer dúvida que se suscite será decidida pela mesa em ato sucessivo."

Passo a tratar agora da última parte da tese: Os deputados brasileiros nas cortes de Lisboa.

A monografia de Gomes de Carvalho, a que acima aludi, tem o mérito in­contestável de ter lançado viva luz sobre um episódio tão pouco conhecido da nossa história; a ela devo preciosos informes, tendo sido um guia seguro na leitura que fiz do Diário das cortes gerais, extraordinárias e constituintes da nação portuguesa.

Geralmente, nós conceituamos a deputação brasileira nas cortes de Lisboa como uma falange aguerrida e disciplinada, sempre em luta com os deputados portugueses, e invariavelmente unida quando estavam em jogo os interesses da pátria. Ainda mais, pensamos ter sido o verbo inflamado dos nossos repre­sentantes no além-mar que despertou o zelo patriótico dos nossos antepassa­dos, avolumando e tornando irresistível a corrente emancipadora. Entretanto, é completamente outra a verdade histórica. Depois de ter lido a referida mo­nografia de Gomes de Carvalho e o aludido diário, modifiquei inteiramente o meu juízo sobre a ação dos nossos deputados nas cortes de Lisboa, formando um conceito que traduzirei nas seguintes proposições:

1. As deputações brasileiras, durante longo tempo, não tiveram absoluta­mente o sentimento nacional; cada uma delas obedecia exclusivamente ao es­pírito regional, defendia interesses de campanário.

2. As colônias do extremo norte gravitavam na órbita de Lisboa, alheadas quase completamente do Rio de Janeiro.

3. Em vez de ser dominada pelo desejo de combater, a deputação brasi­leira se distinguiu pelo seu espírito moderado, manifestando sinceramente a vontade de encontrar uma fórmula que cimentasse a união com Portugal, sem sacrificar a autonomia do Brasil em todos os negócios do seu peculiar interesse.

4. A deputação brasileira deixou, aos anais das cortes, traços indeléveis do seu liberalismo, defendendo os princípios mais garantidores da liberdade individual.

5. Em vez de terem sido os maiores fautores da independência nacional, os deputados brasileiros agiram sob a ação reflexa do movimento emancipador que lavrava no país e somente sob a pressão dos acontecimentos que se desen­rolavam no Brasil, a sua maioria compreendeu que era impossível evitar o rompimento dos laços que nos prendiam a Portugal.

Textos clássicos 207

6. Finalmente, na generalização do patriotismo, ou, mais propriamente, na criação do sentimento nacional, a ação de São Paulo foi muito eficiente, para não dizer decisiva.

Antes de citar fatos que comprovem estas proposições, examinarei a com­posição das deputações brasileiras, guardando a ordem geográfica. O primeiro brasileiro que se apresentou às cortes, pleiteando o seu reconhecimento como deputado, foi Felipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente,21 já nosso conhe­cido como um dos promotores do movimento revolucionário do Pará, de 1 Q

de janeiro de 1821. Nomeado procurador do Pará junto às cortes de Lisboa, Patroni pretendeu converter essa nomeação honorífica em um diploma de deputado; mas o parecer das comissões de constituição e poderes, reunidas (datado de 4 de abril de 1821), e do qual foi relator o Sr. Francisco Antônio de Almeida Morais Peçanha, não considerou o documento apresentado como conferindo direito a ser considerado deputado da nação; propôs, porém, "que lhe fosse conferida a honra de ser apresentado ao augusto Congresso, pela mesma maneira por que foi recebida a deputação da ilha da Madeira, em circunstâncias análogas."

E assim se venceu; e na ata da sessão das cortes, de 6 de abril de 1821, se lê o seguinte:

"Foi a discussão interrompida pela chegada do ministro secretário de Estado dos Negócios da Marinha, que foi anunciado para apresentar a deputação do Pará.

Introduzidos que foram pelos senhores secretários Filgueiras e Barroso, pra­ticadas as cerimônias do estilo, e tomados os respectivos lugares, ergueu-se o ministro e disse que tinha a honra de apresentar ao soberano congresso os ilustres deputados do Pará. (Patroni se fez acompanhar pelo jidus Achates, Domingos Simões da Cunha, que foi o primeiro a dar vivas à Constituição.)

Então o deputado Felipe Alberto Patroni orou e foi geralmente aplaudi­do ... " (Diário das cortes gerais, extraordinárias e constituintes da nação por­tuguesa, 50/51 de 5/6 de abro de 1821.)

21 Patroni foi o fundador e o redator-chefe do primeiro jornal que se publicou no Pará, O Paraense (março de 1822), tendo como companheiros o alferes de milícias Domingos Simões da Cunha, e o tenente de milícias José Baptista da Silva, que, quando foi dos movimentos da independência, trocou o apelido Silva (realmente muito português) pelo de Camecran. Na 51!- série das Tradições e reminiscências, trabalho interessantíssimo do senador Almeida Nogueira, de saudosa memória, encontrei os seguintes apontamentos sobre Patroni: "Tais eram, em suma, as agruras em que se encontrava, por deficiência de lentes, o curso jurídico, em 1831, que o seu diretor chegou a informar favoravelmente um requerimento, que lhe remeteu o governo, no qual pedia provimento numa cadeira de lente ou numa vaga de substituto o Dr. Felipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente.

Quem era esse candidato? Era um ilustre cidadão, ilustre sim, pois era dotado de grande talento e extraordinária erudição, mas... espírito algum tanto desequilibrado. Eleito deputado geral pelo Pará à legislatura de 1842, que foi previamente dissolvida, o Dr. Pa­troni achou meio de celebrizar-se nas poucas sessões preparatórias que então se celebra­vam. Falava a todo propósito e sem propósito algum, falava longamente, e a sua palavra era mais que fluente, era torrencial, vertiginosa, causando desespero aos taquígrafos. As suas idéias eram originalíssimas, e a sua erudição. como dissemos, era vasta, vasta sim, mas indigesta. Em suma, o lente manqué da Academia de São Paulo constituiu a nota cômica naquele congresso também manqué." Gomes de Carvalho diz que os contemporâ­neos de Patroni reconheciam a sua inteligência; e D. Romualdo, que foi seu mestre, afirma que ele tinha raro talento. Era, em todo caso, uma individualidade original. digna ~em dúvida de um estudo especial, que talvez ainda tenha ocasião de empreender.

208 R.C.P. 3/82

Noticiando esse discurso, diz Gomes de Carvalho: "Os escritores que assinalam o fato, deixam em regra de reproduzir ou co­

mentar o discurso de Patroni. Semelhante omissão, que parece voluntária, deve proceder do intuito cavalheiresco de não desluzir a figura do estudante, a qual aparece na perspectiva da história iluminada de todas as graças da juven­tude. A sua arenga não passa de estirada declamação, lardeada de evocações da história romana, no gosto dos ardores da revolução francesa ... "

Acho demasiadamente severo este juízo. O discurso de Patroni, se à luz da crítica moderna pode ser considerado enfático e balofo, devia ter satisfeito ao paladar da época, era análogo ao ato, e não está deslocado nos anais das cortes, cujas discussões eram eternizadas pelo palavrório tão retumbante quanto inÍl­til. Para comprovar esta maneira de pensar, transcreverei alguns trechos, mais sugestivos, do discurso de Patroni:

"A famosa Belém, senhor, qual outra Belém sagrada, que nos fastos da his­tória santa não é decerto reputada como a mínima entre as terras de Judá; o berço da intrepidez com que aguerridos alunos de Marte deviam naquele mundo debelar a arrogância dos novos vândalos, que com sangrentas águias faziam tremer as grandes potências neste outro mundo; a famosa Belém, que nos anais dos três reinos da natureza oferece aos olhos do observador milhares de prodígios, nunca assaz admirados; e que pela benignidade da sua atmosfera, localidade e extensão, fertilidade e riqueza dever-se-ia ter constituído a repú­blica do grande mestre de Aristóteles, e terem sido manejadas por filósofos as rédeas do governo; a famosa Belém, que isenta por sua essência da corrupção e orgulho dos cínicos, foi em todas as épocas o foco das virtudes de um Sócra­tes; essa mesma Belém, enfim, tem sido pelo imenso espaço de dois séculos o teatro das cenas trágicas, que fizeram escrever seu valor, baquear sua exis­tência política, e adormecer o gênio afeito a sublimadas virtudes, o caráter nativo dos habitantes do grande rio... Os paraenses briosos apreciam seus direitos; e tendo proclamado a constituição livre, estão na heróica e firme reso­lução de a defender à custa da própria vida. Intérprete fiel de todos os meus compatriotas, eu juro, perante o céu, perante a terra, perante o mundo inteiro, que será mais fácil converterem-se em roxo ou negro sangue as claras águas do Amazonas, reduzir-se o Pará todo a cinza, pó, terra e nada, do que abaixar de novo a cerviz ao sacudido jugo. Tremei, déspotas, que o Tejo e o Amazo­nas já são livres ... "

Seria, sem dúvida, de desejar mais sobriedade nesse discurso, mais discreta invocação de imagens, se bem que não fosse difícil destacar trechos idênticos em célebres discursos de afamados oradores contemporâneos. :e preciso, porém, não esquecer que Patroni falava em 1821, não esvaecido ainda o eco das assem­bléias revolucionárias francesas, e em cortes de Portugal, país afamado pela sua pirotécnica e apreciador incansável dos fogos de artifício. O discurso de Patroni não podia deixar de ser o que foi, sendo muito natural que os depu­tados e os espectadores o aclamassem com estrondo, como confessa Gomes de Carvalho, embora atribuindo o sucesso à força comunicativa da comoção que devia reproduzir-se na voz, no rosto e no gesto do filho do Pará.

Nas sessões seguintes, Patroni já não foi admitido no recinto, passando a figurar nas tribunas de honra, por uma graciosa concessão das cortes. Os depu­tados brasileiros que tomaram assento nas cortes, foram os seguintes:

Amazonas (capitania de São José do Rio Negro): João Lopes da Cunha, que tomou posse como substituto de José Cavalcanti de Albuquerque;

Textos clássicos 209

Pará: D. Romualdo de Souza Coelho!!2 e Francisco de Souza Moreira: Maranhão: Desembargador José Joaquim Belford (que, apesar de inelegível,

foi reconhecido pelas cortes, tendo sido contrário o parecer da comissão de po­deres) e José J. Beckman Caldas;

Piauí: Padre Domingos da Conceição (como substituto); Ceará: Antônio José Moreira, Manoel do Nascimento Castro e Silva, Manoel

Felipe Gonçalves e José Martiniano de Alencar (Substituto); Paraíba: Francisco Xavier Monteiro de França e Padre José da Costa Cirne;~:~ Pernambuco: Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira, Inácio Pinto

de Almeida e Castro, Félix José Tavares Lyra, Manoel Zeferino dos Santos, Francisco Muniz Tavares, Pedro de Araújo Lima (depois Marquês de Olinda, que naquela época contava apenas 28 anos) e Manoel Félix De Veras, repre­sentante da comarca do sertão;

Alagoas: Manoel Marques Granjeiro, Frnacisco de Assis Barbosa e Francisco Manuel Martins Ramos;

Bahia: Francisco Agostinho Gomes (diácono de grande saber e virtudes), José Lino Coutinho (figura de grande destaque em toda a deputação brasileira), Pedro Rodrigues Bandeira, Cipriano José Barata de Almeida (que apesar de contar 60 anos, "sobreexcedia a todos em exaltação e combatividade"), Do­mingos Borges de Barros (depois Visconde da Pedra Branca), General Luís A velino de Oliveira Pinto da França, Alexandre Gomes Ferreira e o Padre Marcos Antônio de Souza;

Espírito Santo: Dr. João Fortunato Ramos dos Santos; Rio de Janeiro: Dr. Luís Nicolau Fagundes Varella, D. José de Azevedo

Coutinho, Bispo de Elvas (faleceu dois dias depois de ter tomado assento), Luís Martins Bastos, João Lemos Brandão, Francisco Villela Barbosa, depois Marquês de Paranaguá (substituto) e Custódio Gonçalves Ledo (substituto);

São Paulo: José Feliciano Fernandes Pinheiro, depois Visconde de São Leo­poldo, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, Padre Diogo Antônio Feijó, Nico-lau Pereira de Campos Vergueiro, Desembargador José Ricardo da Costa Aguiar .. e Antônio Manoel da Silva Bueno (substituto);

Santa Catarina: Padre Lourenço Rodrigues de Andrade; Goiás (comarca de Duas Barras): Desembargador Joaquim Teotônio Se­

gurado. Conseqüentemente, tomaram assento nas cortes de Lisboa menos de dois

terços dos deputados que legalmente constituíam a representação do Brasil. Comprovarei agora com fatos as minhas proposições.

A extinção dos tribunais foi um dos atos das cortes de Lisboa que maior indignação causou no Brasil, revelando claramente a intenção de recolonizar o país. Entretanto, a nossa deputação não protestou contra esse ato, e houve até deputados brasileiros que o aplaudiram. O parecer da comissão de consti­tuição, que propôs a extinção de todos os tribunais que el-Rei criara na cidade

22 D. Romualdo obtivera votação igual à do Dr. João Cândido de Deus e Silva, que depois foi lente de direito civil na Faculdade de São Paulo; mas a sorte decidiu em seu favor. (Almeida Nogueira. Tradições e Reminiscências, 5." série). 23 O Rio Grande do Norte não teve representação nas cortes; o deputado Afonso de Al­buquerque Maranhão e o substituto Gonçalo de Andrade não foram ao reino. O depu­tado Antônio de Albuquerque Montenegro apresentou o seu diploma e foi reconhecido; mas resolveu não tomar assento como protesto contra as medidas hostis que as cortes estavam tomando contra o Brasil.

210 R.C.P. 3/82

..

do Rio de Janeiro, depois que para ali se trasladara a corte, foi lido em sessão de 20 de dezembro de 1821, e, entrando logo em discussão, Borges Carneiro defendeu o projeto, alegando motivos de economia e a circunstância de ter a corte regressado para Portugal. Secundou-o o deputado brasileiro Fagundes Varel1a nos seguintes termos:

"Eu creio que nada há mais natural que acabar as coisas pela mesma forma que foram criadas; estas repartições foram criadas pelo almanaque,24 é justo que pelo almanaque sejam também acabadas: a extinção destes tribunais é muito precisa, é necessário acabarmos com estas sanguessugas, que tanto têm arruinado aquela província."

Prosseguindo a discussão, em sessão de 29 de dezembro, tomou a palavra o deputado brasileiro Lino Coutinho para declarar que nada havia de mais justo do que pôr em vigor o projeto em discussão e nivelar a antiga corte do Rio de Janeiro com todas as mais províncias do Brasil. Para o deputado bra­sileiro o que era importante era fazer o Rio de Janeiro descer do alto grau de corte para o de província; tudo o mais era de secundária importância.

Para conseguir o desmembramento do Brasil, as cortes hesitaram entre dois alvitres: ou criar dois centros do executivo, um com sede no Rio, para as províncias meridionais, e outro para o norte, com sede na Bahia, onde Madu­reira afirmava poder garantir a soberania das cortes; ou sujeitar diretamente o extremo norte ao governo de Portugal. Este último alvitre teve o apoio do Bispo D. Romualdo e de Beckman Caldas, que informaram ser mais fácil ao Pará e ao Maranhão se corres ponderem com Lisboa do que com o Rio de Janeiro. Estes dois deputados brasileiros, aliás, sempre formaram ao lado dos portugueses. Mas o outro deputado do Pará, Francisco de Souza Moreira, to­mando assento a 2 de julho de 1822, quando já não havia dúvida sobre as intenções das cortes a respeito do Brasil, desagravou os brios da sua terra, se mantendo fiel à causa nacional.

A moderação dos nossos deputados, e o seu desejo de achar uma fórmula conciliadora, se revelaram de forma incontestável no seguinte projeto organi­zado pela comissão brasileira que as cortes encarregaram da redação dos arti­gos adicionais, que deviam completar a constituição portuguesa e consolidar a união dos dois reinos e mais estados que formavam o império luso-brasileiro:

"I. Haverá no reino do Brasil e no de Portugal e Algarves dois congressos, um em cada reino; os quais serão compostos de representantes eleitos pelo povo, na forma marcada pela constituição.

14 Varella aludia a um gracejo da época (que Gomes de Carvalho supõe ter sido talvez inventado pelo Correio Brasiliense) , de que D. João, chegando ao Brasil, abrira por des­fastio o anuário de Lisboa e copiara a lista das instituições da mãe pátria para reproduzir em sua nova capital aquelas que aí não existiam, sem cogitar das condições diferentes da terra e sem corrigir os vícios do organismo administrativo de Portugal. Fagundes Va­rella foi tão servil aos portugueses, que até perfilhou as suas larachas, convertendO<as e:n argumentos parlamentares.

Mas não ficou sem recompensa. Em sessão de 25 de fevereiro de 1822, procedendo-se a eleição para presidente das cortes, foram mais votados Fagundes Varella com 26 votos, Luís Paulino com 14 votos. Como nenhum dos votados tivesse obtido maioria absoluta, procedeu-se ao segundo escrutínio, sendo eleito Fagundes Varella por 47 votos contra 43, havendo 6 cédulas em branco. No Brasil, ele desapareceu inteiramente do cenário polí-

• lico; mas foi lente da cadeira de processo civil criminal da Faculdade de Direito de São Paulo, tendo falecido em 1831.

T ex/os clássicos 211

2. O congresso brasileiro ajuntar-se-á na capital, onde ora reside o regente do reino do Brasil, enquanto se não funda no centro daquele uma nova capi­tal; e começará as suas sessões no meado de janeiro.25

3. As províncias de Ásia e África portuguesas declararão a que reino se querem incorporar, para terem parte na respectiva representação do reino a que se unirem.

4. Os congressos das cortes especiais de cada reino de Portugal e Algarves, e do Brasil, legislarão sobre o regimento interior, e que diga sobretudo espe­cialmente respeito às suas províncias, e terão além disto as atribuições desig­nadas no capítulo 3 do projeto da constituição, a exceção dos que pertencem às cortes gerais do império luso-brasiliano.

5. A sanção das leis feitas nas cortes especiais do reino do Brasil pertencerá ao regente do dito reino, nos casos em que, pela constituição, houver lugar a dita sanção.

6. Sancionada e publicada a lei pelo regente em nome, e com a autoridade do rei do Reino Unido, será provisoriamente executada; mas só depois de re­vistas pelas cortes gerais, e sancionadas por el-Rei, é que terá inteiro e absoluto vigor.

7. Em Portugal os projetos de lei, depois de discutidos nas cortes especiais, e redigidos na forma em que passarão, serão revistos pelas cortes gerais, depois do que e da devida sanção real, nos casos em que ela há lugar, é que terão a realidade de leis.

8. Na capital do império luso-brasiliano, além das cortes especiais ao res­pectivo reino, se reunirão as cortes gerais de toda a nação, as quais serão com­postas de cinqüenta deputados tirados das cortes especiais dos dois reinos, vinte e cinco de cada uma, eleitos pelas respectivas legislaturas à pluralidade absoluta de votos.

9. Começarão as suas sessões um mês depois de findas as sessões das cortes especiais, que deverão começar em 14 de julho; e durarão estas cortes gerais por espaço de três meses, acabados os quais, dissolver-se-ão; elegendo antes entre si uma deputação permanente na forma do capítulo 4, do título 3, à qual competirão as atribuições marcadas no dito capítulo no que interessar à nação em geral.

10. Às cortes gerais pertence: 1) fazer as leis que regulam as relações co­merciais dos dois reinos entre si, e com os estrangeiros; 2) fazer as leis gerais concernentes à defesa do Reino Unido, e à parte militar da guerra e da ma­rinha; 3) Rever e discutir de novo as leis passadas nas cortes especiais, para que, sendo aprovadas e sancionadas por el-Rei, continuem em seu vigor, e, sendo rejeitadas quanto às do Brasil, se mande sustar a sua execução. Este exame reduzir-se-á a dois pontos somente: que não se oponham ao bem do reino irmão e não ofendam a constituição geral do império; 4) decretar a res­ponsabilidade dos ministros dos dois reinos pelos atos que diretamente infrin­girem a constituição, ou por abuso do poder legal, ou por usurpação, no que tão-somente toca à nação em geral; 5) as atribuições contidas no capítulo 3, artigo 97, do projeto da constituição, desde o nQ 1 até o nQ 8; 6) fixar anual-

25 O fato de ter Lino Coutinho, o deputado baiano que com tanto entusiasmo aplaudiu a supressão dos tribunais, assinado este projeto que proclamava o Rio de Janeiro como a capital provisória do país, é um testemunho irrecusável de quanto havia caminhado o sentimento da unidade nacional, superando as preocupações regionais. Já nessa época havia a idéia de ser estabelecida a capital do país no seu planalto central, idéia consagrada pelo ar!. 3.° da Constituição Federal. Nil novi sub sole.

212 R.C.P. 3/82

mente as despesas gerais e fiscalizar as contas da sua receita e despesa; 7) determinar a inscrição, valor, lei, tipo e denominação das moedas; e bem assim pesos e medidas, que serão os mesmos em ambos os reinos; 8) promover a observância da constituição e das leis, e geralmente o bem da nação por­tuguesa.

11. Na capital do Brasil haverá uma delegação do poder executivo que exercerá todas as atribuições do poder real, à exceção das que abaixo lrao designadas. Esta delegação será confiada atualmente ao sucessor da coroa e, para o futuro, a ele ou a uma pessoa da casa reinante; e, na sua falta, a uma regência.

12. O príncipe herdeiro ou qualquer outra pessoa da casa reinante não serão responsáveis pelos atos da sua administração, pelos quais respondem tão­somente os ministros. A regência, porém, será responsável da mesma maneira que os ministros.

13. O regente do reino do Brasil não poderá: 1) apresentar, para os arce­bispados e bispados, para cujo provimento deverá mandar as listas tríplices referendadas pelo secretário de Estado da repartição, dos que forem mais idô­neos, para el-Rei deles escolher um; 2) prover os lugares do tribunal supremo de justiça, competindo-lhe somente a proposição, na forma da lei, referendada pelo secretário da repartição; 3) nomear embaixadores, cônsules e mais agen­tes diplomáticos, e dirigir todos os negócios políticos e comerciais com os es­trangeiros; 4) conceder títulos em recompensa de serviços; 5) declarar a guerra ofensiva e fazer a paz; 6) fazer tratados de aliança ofensiva ou defensiva, de subsídios ou de comércio.

14. Haverá no reino do Brasil um tribunal supremo de justiça, formado da maneira acima dita, que terá as mesmas atribuições que o tribunal supremo de justiça do reino de Portugal e Algarve.

15. Todos os outros magistrados serão escolhidos segundo as leis pelo re­gente, debaixo da responsabilidade do competente secretário de Estado. Quanto aos outros funcionários, tratar-se-á nos mais artigos adicionais.

Paço das cortes, 15 de junho de 1822. José Feliciano Fernandes Pinheiro; Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Ma­

chado e Silva; José Lino Coutinho; Francisco Villela Barbosa; e Pedro de Araújo Lima."

Apesar de seu espírito moderado, este projeto foi recebido pelos deputados portugueses de lança em riste. O primeiro orador que o combateu, Girão, assim começou o seu discurso: "Não é possível que o sangue deixe de ferver nas veias dos lusitanos perante um projeto que não ouso qualificar em con­sideração dos seus autores."

Os reinóis fingiam acreditar que no Brasil não havia pessoal apto para um governo autônomo, e que, quebrada a sujeição a Portugal, os brancos seriam massacrados pelos negros, que constituíam a população do país e a cujo espí­rito turbulento se deviam atribuir todos os acontecimentos dos últimos tempos, que os deputados brasileiros invocavam como testemunho de que não era mais possível adiar a satisfação das justas aspirações do Brasil. Aos olhos volunta­riamente cegos dos deputados portugueses, o alevantado e irresistível movi­mento que nos conduzia à independência se afigurava insolência desenfreada de negros, que estava a exigir o pulso de ferro de um Madureira para castigá­los a chicote. Somente uma incurável miopia intelectual, ou uma perturbação visual produzida pela violência do ódio, poderia considerar desprovido de homens aptos para o governo um país que tão brilhantemente se fizera repre­sentar nas cortes, e no qual era ministro de Estado um sábio de reputação

Textos clássicos 213

européia, José Bonifácio de Andrada e Silva, cujo alto valor como estadista se revelava nas acertadas providências com que estava garantindo a unidade nacional e acelerando o movimento emancipador.

A violenta reação das cortes de Lisboa ainda uma vez justificou o provérbio: "Quos vult Deus perdere, dementat prius".

Apesar do brilhantismo com que a maioria dos nossos deputados defende­ram o projeto da Comissão, as cortes de Lisboa não julgaram objeto de delibe­ração a parte relativa ao funcionamento do poder legislativo no Brasil e neste sentido votaram três deputados brasileiros, que em tudo acompanharam a maioria, D. Romualdo de Souza Coelho, Manuel Marques Granjeiro e João Lemos Brandão!

As cortes resolveram também, informa Gomes de Carvalho, que o príncipe real não exerceria a delegação no Brasil, e nada decidiram sobre o número das regências, mandando a comissão apresentar outro parecer. Villela Barbosa foi o único deputado brasileiro, membro da primeira comissão, que se sujeitou ao cumprimento da resolução das cortes, tomando parte na organização de novos artigos adicionais, cujo exame, portanto, não nos interessa, porquanto não exprimem os sentimentos constitucionais da representação brasileira.

Apesar de já terem perdido as ilusões sobre os pretendidos sentimentos fra­ternais das cortes, os deputados brasileiros não se desinteressaram da discussão do projeto de constituição, mostrando um liberalismo esclarecido e eficaz.

Assim, por exemplo, entrando em discussão o artigo 181, que dispunha sobre a suspensão das garantias constitucionais, considerando a decretação dessa me­dida como atribuição privativa das cortes, Antônio Carlos opinou que o refe­rido artigo estava redigido em termos muito vagos, porque, podendo o con­gresso ser influenciado pelo poder executivo, era conveniente declarar expres­samente quais as circunstâncias extraordinárias que poderiam exigir a aludida suspensão das garantias individuais; e propôs a seguinte emenda aditiva: "No caso de rebelião ou invasão, exigindo a segurança do Estado e precedendo antes a declaração de que a pátria está em perigo."

O ilustre membro de uma gloriosa trindade, quis prevenir a hipótese de haver um governo capaz de inventar uma conspiração, convertendo simples arruaças, facilmente reprimíveis pela polícia, em movimento revolucionário, no intuito de impor à subserviência do congresso a suspensão das garantias cons­titucionais, podendo assim perseguir os adversários. Exigia, portanto, que hou­vesse realmente uma rebelião e que ela fosse de tal gravidade que comprome­tesse a segurança do Estado; em todo caso, a suspensão das garantias não poderia ter lugar sem a prévia declaração solene de que a pátria estava em perigo. Talvez a muitos pareça algum tanto ingênua a exigência dessa decla­ração. Eu, porém, não penso assim, acreditando, como Antônio Carlos, que, por mais dominado pela paixão partidária que estivesse o governo, não deixa­ria de recuar perante o ridículo de declarar a pátria em perigo, somente, por exemplo, porque alguns exaltados soltaram na rua vivas subversivos, e isto principalmente em países latinos em que tais vivas constituem indispensável válvula de segurança, manifestação platônica da soberania popular.

A eloqüência de Antônio Carlos conquistou adesões entre os próprios depu­tados portugueses, e até Fragoso, talvez o mais ferrenho dos nossos adversá­rios, reconhecia que se não devia suspender o habeas-corpus somente por su­posições de sedições secretas. (Diário das cortes gerais, extraordinárias e cons­tituintes da nação portuguesa, voI. 2, 1822).

Muitos dos nossos representantes sustentavam que a magistratura não devia ser nomeada pelo governo, a fim de ficar realmente independente; mas, ins-

214 R.C.P. 3/82

..

pirados no exemplo dos Estados Unidos, opinavam pelo sistema da eleição po­pular, funestíssimo decerto entre nós, cuja cultura jurídica ainda está no pe­ríodo embrionário e em que sabemos, por dolorosa experiência, de quanto é capaz a magistratura partidária.

Nenhum documento oficial daquela época teve maior importância do que a representação da junta de São Paulo, solicitando a permanência de D. Pedro no Brasil, não só pela coragem serena com que revidou as injúrias dos portu­gueses, como também pela largueza de vistas, antepondo aos interesses de cam­panário a idéia de uma grande pátria unida pela comunhão dos sentimentos; e pela profunda impressão que causou nas cortes de Lisboa.

Convém conhecer na íntegra esse importante documento para melhor avaliar do procedimento dos deputados brasileiros, quando se discutiu nas cortes o projeto mandando processar a aludida junta de São Paulo:

"Senhor. Tínhamos já escrito a Vossa Alteza Real antes que pelo último correio recebêssemos a Gazeta extraordinária do Rio de Janeiro de 2 do cor­rente, e apenas fixamos a nossa atenção sobre o primeiro decreto das cortes acerca da organização dos governos provinciais do Brasil, logo ferveu em nossos corações uma nobre indignação; porque vimos nele exarado o sistema da anarquia e da escravidão; mas o segundo, pelo qual Vossa Alteza Real deve regressar para Portugal, a fim de viajar incógnito somente pela Espanha, França e Inglaterra, causou-nos um verdadeiro horror. Nada menos se pretende do que desunir-nos, enfraquecer-nos, até deixar-nos em mísera orfandade, arran­cando do seio da grande família brasileira o único pai comum que nos res­tava, depois de terem esbulhado o Brasil do benéfico fundador deste reino, o augusto pai de Vossa Alteza Real. Enganam-se; assim esperamos em Deus, que é o vingador das injustiças. Ele nos dará coragem e sabedoria.

Se, pelo art. 21 das bases da constituição, que aprovamos e juramos, por serem princípios de direito público universal, os deputados de Portugal se viram obrigados a determinar que a constituição que se fizesse em Lisboa só obrigaria por ora os portugueses residentes naquele reino; e, quanto aos que residem nas outras três partes do mundo, ela somente se lhes tornaria comum quando os seus legítimos representantes declarassem ser esta a sua vontade, como agora esses deputados de Portugal, sem esperar pelos do Brasil, ousam legislar sobre os interesses mais sagrados de cada província, e de um reino inteiro? Como ousam desmembrá-lo em porções desatadas, isoladas, sem lhes deixarem um centro comum de força e de união? Como ousam roubar a Vossa Alteza Real a lugar-tenência que seu augusto pai, nosso rei, lhe concedera?

Como querem despojar o Brasil do desembargo do paço e mesa de consciên­cia e ordens, conselho da fazenda, junta do comércio, casa de suplicação, e de tantos outros estabelecimentos nossos que já prometiam futuras prosperidades? Para onde recorrerão os povos desgraçados a bem dos seus interesses econô­micos e judiciais? Irão agora, depois de acostumados por doze anos a recursos prontos, a sofrer outra vez, como vis colonos, as delongas e trapaças dos tri­bunais de Lisboa, através de duas mil léguas do oceano, onde os suspiros dos vexados perdiam todo o alento e esperança? Quem o crerá, depois de tantas palavras meigas, mas dolosas, de recíproca igualdade e de felicidade futura! Na sessão de 6 de agosto passado disse o sr. deputado das cortes, Pereira do Carmo (e disse uma verdade eterna) que a constituição era o pacto social em que se expressavam e declamavam as condições pelas quais uma nação se quer constituir em corpo político; e que o fim desta constituição era o bem de todos os indivíduos que devem entrar neste pacto social. Como, pois, ousa agora uma mera fração da grande nação portuguesa, sem esperar a conclusão

Textos clássicos 215

desse solene pacto nacional, atentar contra o bem geral da parte principal da mesma, qual é o vasto e riquíssimo reino do Brasil, desgraçando-o em míseros retalhos e pretendendo arrancar, por fim, do seu seio o representante do poder executivo, e aniquilar de um golpe de pena todos os tribunais e estabelecimen­tos necessários à sua existência e futura prosperidade?

Este inaudito despotismo, este horroroso perjúrio político, decerto o não merecia o bom e generoso Brasil. Mas enganam-se os inimigos da ordem das cortes em Lisboa, se se capacitam que podem ainda iludir com as suas palavras e ocas fantasias o bom siso dos honrados portugueses de ambos os mundos.

Note Vossa Alteza Real que, se o reino da Irlanda, que faz uma parte do Reino Unido da Grã-Bretanha, apesar de ser infinitamente pequeno em com­paração do vasto Reino do Brasil e estar separado da Inglaterra por um estreito braço de mar que se atravessa em poucas horas, todavia conserva um governo­geral, ou vice-rei, como poderá vir à cabeça de ninguém, que não seja ou pro­fundamente ignorante, ou loucamente atrevido, pretender que o vastíssimo reino do Brasil haja de ficar sem centro de atividade e sem representante do poder executivo, como igualmente sem uma mola de energia e direção das nossas tropas, para poder obrar rapidamente e de mãos dadas a favor da defesa do Estado contra qualquer imprevisto ataque de inimigos externos, ou contra as desordens e facções internas, que procuram atacar a segurança pública e a união recíproca das províncias? Sim, augusto senhor, é impossível que os habi­tantes do Brasil, que forem honrados e se prezarem de ser homens, e mor­mente os paulistas, possam jamais consentir em tais absurdos e despotismos. Sim, augusto senhor, V.A. Real deve ficar no Brasil, quaisquer que sejam os projetos das cortes constituintes, não só para o nosso bem geral, mas até para a independência e prosperidade futura do mesmo Portugal. Se V.A. Real esti­ver, o que não é crível, pelo deslembrado e indecoroso decreto de 29 de setem­bro, além de perder para o mundo a dignidade de homem e de príncipe, tor­nando-se escravo de um pequeno número de desorganizadores, terá também de responder perante o Céu do rio de sangue que decerto vai correr pelo Brasil com a sua ausência; pois seus povos, quais tigres raivosos, acordarão decerto do sono amodorrado em que o velho despotismo os tinha sepultado e em que a astúcia de um novo maquiavelismo constitucional os pretende agora conservar.

Nós rogamos, portanto, a V.A. Real, com o maior fervor, ternura e respeito, haja de suspender a sua volta para a Europa, por onde o querem fazer viajar como um pupilo rodeado de aios e de espias; nós lhe rogamos que se confie corajosamente no amor e fidelidade dos seus brasileiros, e mormente dos seus paulistas, que estão todos prontos a verter a última gota do seu sangue e a sacrificar todos os seus haveres, para não perderem o príncipe idolatrado, em que têm posto todas as esperanças bem-fundadas da sua felicidade e de sua honra nacional. Espere pelo menos V.A. Real pelos deputados nomeados por este governo, e pela câmara desta capital, que devem quanto antes levar à sua augusta presença nossos ardentes desejos e firmes resoluções; dignando-se aconselhá-los com o amor e a atenção que lhe devem merecer os seus paulistas. À augusta pessoa de V.A. Real guarde Deus por muitos anos.

Palácio do governo de São Paulo, 24 de dezembro de 1821. João Carlos Augusto de Oeynhausen, presidente; José Bonifácio de Andrada

e Silva, vice-presidente; Martim Francisco Ribeiro de Andrada, secretário; Lázaro José Gonçalves, secretário; Miguel José de Oliveira Pinto, secretário; Manoel Rodrigues Jordão; Francisco Inácio de Souza Queiroz; João Ferreira de Oliveira Bueno; Antônio Leite Pereira da Gama Lobo; Daniel Pedro

216 R.C.P.3/82

Müller; André da Silva Gomes; Francisco de Paula e Oliveira; Antônio Ma­ria Quartim."

Esta representação, precioso documento de altivez e patriotismo dos nossos antepassados, habilmente redigida no intuito de estimular o amor-próprio do Príncipe D. Pedro, a quem, decerto, não podia sorrir a idéia de viajar como pupilo cercado de aios e espiões, estourou como uma bomba, provocando a maior indignação, principalmente contra José Bonifácio. A Comissão especial dos negócios políticos do Brasil (da qual Antônio Carlos se demitira, sendo naturalmente suspeito para emitir parecer sobre o procedimento dos seus irmãos), tomando conhecimento dos acontecimentos que no sul do mesmo Brasil "tinham deslustrado a marcha majestosa e brilhante da regeneração política", propôs, entre outras medidas, que fossem processados e julgados os supraditos membros da junta de São Paulo, assim como o bispo da dio­cese, que assinara a representação de 19 de janeiro de 1822, e os quatro cidadãos que assinaram o discurso dirigido ao príncipe real, em 26 do mesmo mês; não sendo, porém, exeqüível sentença alguma condenatória sem prévia decisão das cortes. Como ficha de consolação, a comissão também propôs que o Príncipe D. Pedro contiuasse no Brasil até a publicação do ato adicional, governando, porém, com sujeição às cortes.

Os deputados portugueses estavam tão sedentos de vingança contra a junta de São Paulo que Xavier Monteiro exclamou que "embora se perdessem dez Brasis, urgia salvar a dignidade nacional"; e Fernandes Thomaz, sustentando a necessidade de uma severa punição, apresentava o seguinte dilema: "Ou São Paulo estava em condições de manter o seu propósito, ou não. Num caso, devia o governo fazer cumprir as leis; e, na outra hipótese, importava Portugal conformar-se com a separação: passe o Sr. Brasil muito bem, que nós cá cui­daremos da nossa vida" (Gomes de Carvalho, OPA cit.).

Mas, nem a linguagem altiva e patriótica da representação incriminada, nem as explosões do ódio português, demoveram os deputados brasileiros da atitude acomodatícia que normalmente haviam adotado nas cortes. Sem con­cordar com a punição da junta de São Paulo, os nossos representantes censu­raram a violência da sua linguagem, renegando qualquer sentimento de soli­dariedade. Para evitar novos conflitos, Campos Vergueiro propunha que cada uma das províncias, exceto a do Rio de Janeiro, seria governada pela junta provisória responsável ao governo do reino, o que importava em quebrar a unidade nacional, e reduzir o príncipe real ao papel de simples governador e capitão-general. Gonçalves Ledo e Pinto de França achavam que o governo devia procurar entrar no conhecimento da pessoa ou pessoas que foram causas de que as autoridades de São Paulo se deslizassem em expressões injustas e ousadas contra o soberano congresso; conseguintemente, condenavam o ele­vado procedimento da junta de São Paulo, insinuando que ela agira em virtude de sugestões de terceiros.

Almeida e Castro também reconheceu que "as expressões usadas na repre­sentação haviam sido incivis, injustas, descomedidas e ofensivas do alto de­coro do augusto congresso, a quem gratuitamente atribuíam intenções sinistras e vistas contrárias à retidão, justiça e circunspecção, que tinham sido sempre a linha impreterível de suas deliberações"; mas tinha dúvida em saber se aquela província, tendo dissolvido o pacto social, pelo qual todas as províncias do reino unido, composto da grande nação portuguesa, se achavam ligadas, e reassumindo os seus imprescritíveis e inalienáveis direitos, ficava por este ato logo sujeita às ordens que dimanassem do augusto congresso sem que fosse representada e incorporada na assembléia constituinte pelos seus deputados.

Textos clássicos 217

Esse deputado brasileiro, portanto, pensava que São Paulo havia quebrado a unidade nacional, quando a representação protestava justamente contra o desejo das cortes de despedaçar o Brasil em míseros retalhos; e se constituíra, pelo seu ato de altivez, em entidade política distinta, tendo, portanto, neces­sidade de nomear novos deputados às cortes (Diário das cortes gerais, extraor­dinárias e constituintes da nação portuguesa, v. 6, 1822).

Não era possível desconhecer mais os nobres intuitos do movimento patrió­tico de São Paulo; nessa emergência, o seu governo esquecera completamente o seu inveterado e algumas vezes irritante bairrismo, encarara a questão sob um ponto de vista verdadeiramente superior, falara em nome dos mais altos interesses da pátria brasileira.

Este incidente é um testemunho irrecusável da influência deletéria do meio hostil das cortes sobre a conduta da quase-totalidade dos nossos deputados; eles não agiam como representantes de um país que tinha consciência dos seus direitos e estava resolvido a defendê-los, indo mesmo ao extremo da declaração da independência; eram súditos portugueses, muito preocupados em '--não ofender a suscetibilidade das cortes. Tendo uma estranha compreensão do mandato, eles julgavam que não podiam cooperar para a separação do Brasil, porque haviam sido encarregados de votar uma constituição que tornasse ainda mais íntima a sua união com a metrópole. Mas a situação diversificara completamente.

Quando foram eleitos os deputados, os brasileiros, seduzidos, como bons la­tinos, pela magia das frases, acreditavam cegamente nos sentimentos fraternais das cortes e esperavam que o novo império luso-brasiliano iria entrar na idade de ouro. Mas os atos positivos das cortes no sentido da recolonização des­vaneceram em breve esses sonhos. Outra, portanto, devia ser a missão· dos nossos representantes. Se eles fossem dominados pelo sentimento nacionaI,:w formariam um bloco, suprindo pela união a deficiência do número; e orga­nizariam um projeto que consubstanciasse as justas aspirações do Brasil, .asse­gurando-lhe um governo autônomo, em todos os negócios do seu peculiar interesse. E, se fossem vencidos, deviam considerar terminado o seu mandato, porque a sua colaboração nos trabalhos das cortes não consultava mais os supremos interesses da pátria.

Outro testemunho irrecusável da profunda divergência que havia entre as idéias dominantes no Brasil e as defendidas pelos seus representantes nas cortes, é incontestavelmente o célebre projeto de Feijó, ao qual Gomes de Carvalho se refere com malcontido entusiasmo, mas que eu, data venia, consi­dero infelicíssimo.

Quebrando o silêncio a que propositalmente se recolhera nas cortes, o padre Diogo Antônio Feijó falou, em sessão de 25 de abril de 1822, justi­ficando uma indicação, da qual transcreverei apenas o final: "Soberano con­gresso, a constituição regulará a criação das leis administrativas, mas quem há de regular as leis fundamentais? Todos nós, ou pelo menos a maioria muito assinalada, que represente e exprima de um modo não equívoco a

11> Os deputados brasileiros nas cortes de Lisboa reconheciam, aliás, quanto era falsa a situação em que se achavam colocados. Em sessão de 7 de agosto de 1822, Pinto da França confessava ser muito penosa e triste a situação de um deputado no Brasil, porque, se dizia ou escrevia segundo agradava aos brasileiros, era censurado pelos de Portugal; e se vice-versa era odiado por aqueles. E na mesma sessão declarava Vi1\ela que estava mal com Portugal por amor do Brasil; e mal com o Brasil por amor de Portugal; mas ficava tranqüilo porque estava bem com a sua consciência.

218 R.C.P. 3/82

vontade geral da nação, mas nunca somente algum de nós. Não imitemos aos déspotas que, ambiciosos de comandar, não podem ouvir as reclamações dos di· reitos do homem. O Brasil apresenta cada dia um prospecto mais triste: a sua luta é só para salvar seus direitos que julga violados; aproveitemos o mo­mento que talvez já escapa: não queiramos que o mundo inteiro nos taxe de insensíveis aos males da humanidade; que a posteridade nos acuse de abandonarmos um irmão, que ajudará sem dúvida a afirmar nosso poder, nossa independência e nossa glória. Proponho, portanto, como único meio de fazer parar o progresso das desgraças, que ameaçam o Brasil, como a medida mais segura para consolidar a reunião da grande família portuguesa, e para dar ao mundo o irrefragável testemunho da nossa prudência, desinteresse e justiça:

1. Que se declare que o congresso de Portugal, enquanto não se organizar a constituição, reconhece a independência de cada uma das províncias do Brasil.

2. Que a constituição obrigará somente aquelas províncias cujos depu­tados nela concordarem pela pluralidade de seus votos.

3. Que as cortes prestarão todo auxílio àquela província que se achar ameaçada de facções, sendo por ela requerido, com o fim somente de a pôr na perfeita liberdade de escolher.

4. Que se declare ao governo que suspenda todos os provimentos e qual­quer determinação a respeito do Brasil, exceto quando lhe for legitimamente requerido por alguma província.

S. Que os governos do Brasil, onde se achar destacamentos de PortugaL os possam fazer retirar desde que assim o julgar ser conveniente."

Reconheço que lançar um projeto consagrando a independência das pro­víncias brasileiras no recinto de um congresso dominado pelo ódio e franca­mente resolvido a reduzi-las a situação de colônias entregues ao arbítrio da metrópole foi um ato de inaudita coragem. Tão extraordinária pareceu a au­dácia, que o secretário das cortes, Filgueiras, formalmente se recusou a ler a indicação; e o presidente das cortes, conselheiro Fortes, mal Feijó terminou a leitura, se apressou a declarar que a mesma indicação devia ser remetida a uma comissão, sendo inoportuna, naquele momento, qualquer discussão a res­peito. Defenderam este alvitre dois deputados brasileiros, Lino Coutinho e Villela, desejosos de conjurar a tempestade que o deputado de São Paulo provocara. Mas as cortes, tremendo de indignação diante da injúria que aca­bava de receber, deliberou ser urgente a matéria da indicação, procedendo-se imediatamente a uma segunda leitura, depois de que foi remetida ao exame da comissão dos negócios políticos do Brasil, onde ficou sepultada. O aludido projeto, portanto, teve apenas um sucesso de escândalo.

Mas, como observa muito acertadamente Gomes de Carvalho, seria desco­nhecer completamente o caráter grave de Feijó admitir que ele, apresentando a sua indicação, não tivera outro intuito senão o de alardear coragem, ou agira exclusivamente sob a preocupação do efeito. A sua indicação obedecia a um plano meditado, que passo a examinar sob o ponto de vista dos inte­resses brasileiros. Ora, a não ser a medida estabelecida no n<'> 5, todas as providências da indicação Feijó seriam muito funestas ao futuro do Brasil. Declarar separadamente a independência das províncias do Brasil seria que­brar, talvez irremediavelmente, a unidade nacional, já tão comprometida pela fortíssima atração que as cortes de Lisboa exerciam sobre o extremo norte do país. Quando todo o esforço nobilíssimo do grande José Bonifácio era converter o Rio de Janeiro no centro para onde deviam convergir todas as aspirações nacionais, era lamentável que houvesse quem se lembrasse de neu-

Textos clássicos 219

tralizar esse esforço, separando as provmclas em estados independentes, de cuja expressa adesão ficaria dependente o pacto constitucional, exacerbando, portanto, as tendências regionais, a política de campanário.

Combatendo a criação no Brasil de duas delegações, o deputado cearense Castro e Silva afirmava que nenhum representante americano poderia aceitar essa medida sem trair o seu mandato, porque os deputados do Brasil não haviam trazido poderes para a mutilação da pátria. A separação de qualquer província, acrescentava ele, visto a gravidade extrema do ato, exigia expressão de vontade muito positiva daquela que pretendesse se desligar das suas irmãs. O projeto Feijó não se limitava a mutilar o Brasil, queria esfacelá-lo comple­tamente, em troca de uma independência efêmera, sujeita à fiscalização das cortes de Lisboa. Além disto, proclamada a independência de cada uma das províncias do Brasil, com que direito poderiam as cortes intervir no seu go­verno, a pretexto de defendê-las contra as facções?

Não refletiu o futuro regente que arma poderosa contra o partido nacional colocava nas mãos dos legisladores portugueses, conferindo a aludida atri­buição. Na linguagem governamental, são facciosos todos os agrupamentos que não comungam no credo oficial. Ora, as juntas governativas das províncias do norte, que, na sua quase totalidade, obedeciam de preferência às cortes de Lisboa, haviam de considerar facciosos os partidários da independência na­cional, e tinham, portanto, o direito de invocar o auxílio estrangeiro para castigar a audácia dos que sonhavam com a pátria livre. Para a glória de Feijó, francamente o digo, seria de desejar que ele não tivesse quebrado o silêncio que por tanto tempo guardara nas cortes. Felizmente, o ódio cegou completamente os portugueses, não permitindo que eles reconhecessem as van­tagens de aprovar a indicação Feijó.

Esta atitude dos deputados brasileiros nas cortes não entibiava o zelo dos que no Brasil defendiam a causa nacional; a grande obra da independência aceleradamente caminhava e, muito tempo antes do brado do Ipiranga, já os documentos oficiais reconheciam que a separação era um fato, constatando o estado de guerra com Portugal e providenciando sobre as relações comerciais com as nações amigas. As notícias recebidas do Brasil esclareceram finalmente os deputados brasileiros, demonstrando a impossibilidade de evitar a sepa­ração. Por escrúpulos de consciência, eles, os representantes das províncias que se libertavam do jugo da metrópole, não queriam jurar nem assinar a constituição; as cortes, porém, não consentiram nesse ato de rebeldia, e quase todos os deputados brasileiros cumpriram a aludida formalidade, convencidos de que não havia perjúrio sendo o ato praticado sob coação. Insustentável era a situação desses deputados; cada vez mais se avolumava contra eles o ódio ~ popular.

Lino Coutinho, Barata, Agostinho Gomes, Antônio Carlos, Bueno, Costa Aguiar e Feijó fogem num barco inglês para Falmouth; e, em breve, nas cortes convertidas em assembléia ordinária ficaram apenas quatro deputados do Brasik José Cavalcanti de Albuquerque, Francisco de Souza Moreira, Pa­dre Domingos da Conceição e desembargador Joaquim Teotônio Segurado.

"Independência ou morte" foi o último ato do movimento libertador; o Brasil-reino cedeu lugar ao império do Brasil. A pátria, enfim, estava livre.

Que Deus clemente proteja o seu destino. "La Chaumiere" (Petrópolis), 5 de agosto de 1914.

220 R.C.P. 3/82