SAUDADES DA TERRA - Gaspar Frutuoso - Livro 2 - Madeira e Ilhas Adjacentes

197
FICHA TÉCNICA Título SAUDADES DA TERRA – Livro II Autor DOUTOR GASPAR FRUTUOSO Edição INSTITUTO CULTURAL DE PONTA DELGADA Revisão de texto e reformulação de índices JERÓNIMO CABRAL Catalogação Proposta FRUTUOSO, Gaspar, 1522-1591 Saudades da terra : livro II / Doutor Gaspar Frutuoso ; [Palavras prévias de João Bernardo de Oliveira Rodrigues] - Nova ed. - Ponta Delgada : Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998. Ass: AÇORES / HISTÓRIA / HISTORIOGRAFIA AÇORIANA. séc. 15 -16

Transcript of SAUDADES DA TERRA - Gaspar Frutuoso - Livro 2 - Madeira e Ilhas Adjacentes

FICHA TÉCNICA

Título SAUDADES DA TERRA – Livro II

Autor DOUTOR GASPAR FRUTUOSO

Edição INSTITUTO CULTURAL DE PONTA DELGADA

Revisão de texto e reformulação de índices JERÓNIMO CABRAL

Catalogação Proposta

FRUTUOSO, Gaspar, 1522-1591

Saudades da terra : livro II / Doutor Gaspar Frutuoso ; [Palavras prévias de João Bernardo de Oliveira Rodrigues] - Nova ed. - Ponta Delgada : Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998. Ass: AÇORES / HISTÓRIA / HISTORIOGRAFIA AÇORIANA. séc. 15 -16

LIVRO SEGUNDO

DAS

SAUDADES DA TERRA

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Palavras Prévias VI

PALAVRAS PRÉVIAS

João Bernado de Oliveira Rodrigues Ponta Delgada, 31 de Outubro de 1968

No cumprimento da incumbência que me foi cometida pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada — a edição completa das «Saudades da Terra», de acordo com o manuscrito original — é agora publicado o Livro II, isto é, aquele que o Dr. Gaspar Frutuoso dedicou às ilhas que hoje constituem o distrito do Funchal, dentro do seu desígnio de fazer uma resenha histórica, mais ou menos longa, dos arquipélagos do Atlântico Norte, a que de forma indestrutível ficou ligado o nome dos Portugueses.

De toda a obra do insigne cronista açoriano, foi este livro, sem dúvida, um dos que mais cedo atraíram a atenção dos estudiosos, sobretudo os da ilha da Madeira, suscitando dúvidas e interpretações, que, para alguns, ainda actualmente não obtiveram resposta satisfatória ou definitiva.

Foi também este Livro o primeiro das «Saudades da Terra» a ver a luz da publicidade, mercê da importância que lhe deu o erudito historiador continental, Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo, como fonte primeva e, até então, mais circunstanciada de tudo o que respeita ao descobrimento e colonização do Arquipélago.

Feita sobre uma cópia, ao tempo existente no Funchal (1), saiu esta edição em 1873, e ainda nos nossos dias é em extremo valiosa, pelas notas que o seu editor lhe juntou, produto de longa e incansável pesquisa por arquivos e cartórios da Madeira.

Em 1925, o Sr. Prof. Damião Peres, por iniciativa da Junta Geral daquele distrito, publicou nova edição deste Livro, servindo-se do apógrafo das «Saudades da Terra» que se encontra depositado na Biblioteca da Ajuda, e que, apesar de bastante incompleto, lhe deu a oportunidade para igualmente transcrever importantes documentos inéditos, que extraiu do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, e do da Câmara Municipal do Funchal, e apor, com a competência que todos lhe reconhecem, eruditas notas da sua autoria que se relacionam com a matéria versada no texto.

Ambas as edições, sumamente apreciadas pela documentação reunida, na impossibilidade de se terem baseado no manuscrito original, ao tempo vedado a olhos estranhos pela família que durante muitos anos o possuiu, sofrem do inconveniente de se fundamentarem em cópias de pouca confiança, sobretudo a última, que, em alguns capítulos, se apresenta bastante fragmentada.

Uma e outra, de há muito, desapareceram dos escaparates das livrarias, mas consta-nos que o ilustre e erudito Professor, acima citado, tem entre mãos nova edição, esta já conforme com o autógrafo (agora, como se sabe, patente ao público na Biblioteca e Arquivo Distrital de Ponta Delgada), a qual, decerto, obedecerá à rigorosa reprodução do texto, de acordo com as regras que hoje se exigem em matéria diplomática.

Contudo, parece-nos não ser isto motivo para excluir este Livro II do trabalho que estamos a empreender, o qual, na linha de rumo que vimos seguindo, tendo em vista a sua divulgação, foi editado em ortografia do nosso tempo, conforme desejo expresso do Instituto Cultural de Ponta Delgada.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Palavras Prévias VII

*

* *

Frutuoso, para a confecção deste Livro, serviu-se em grande parte de um manuscrito que ele próprio encomendara ao Cónego da Sé do Funchal, Jerónimo Dias Leite, sobre o descobrimento e os capitães-donatários do Arquipélago da Madeira. Expressamente o declara em capítulo da sua própria lavra, como se pode observar a páginas 152 deste volume, e ao assunto por mais de uma vez se refere no decurso da obra.

Da leitura das respectivas passagens se conclui a importância que lhe deu como fonte informativa de muitas das matérias que versou, embora incluísse na sua narrativa notícias que colheu através de outras vias, como, por exemplo, as que respeitam à descrição topográfica das ilhas da Madeira e do Porto Santo, que, como mais tarde se havia de verificar não constam do manuscrito do Cónego da Sé do Funchal.

De facto, alguns historiadores que se têm ocupado daquelas ilhas, nomeadamente os Drs. Álvaro Rodrigues de Azevedo (2) e Cabral do Nascimento (3), não deixaram de estranhar o desequilíbrio e a falta de unidade, de que, no seu conjunto, este Livro II se ressente, pois que, ao lado de narrativas da maior importância, feitas sem o relevo que seria para desejar, como as que se referem ao descobrimento e aos primeiros passos dados na colonização, figuram, de mistura com notícias de real valor para o conhecimento da vida insular nos séculos XV e XVI, factos de natureza anedótica, que pouco significado possuem sob um ponto de vista rigorosamente histórico, e a que o autor, pela extensão que lhes deu, parece ligar particular interesse (4).

Contudo, como durante muito tempo se não identificasse o manuscrito de Jerónimo Dias Leite (5), eram as «Saudades da Terra» consideradas a fonte de maior relevância para o estudo dos primórdios da existência daquelas ilhas como terras habitadas.

Esta situação de privilégio modificou-se desde que o Dr. João Franco Machado, num meritório e incansável trabalho de investigação, descobriu na Biblioteca da Academia das Ciências um apógrafo do citado manuscrito, que pertencera ao bibliófilo Joaquim Pedro Casado Giraldes e que, após minucioso e exaustivo exame, não hesitou em reconhecer como a obra em que o cronista micaelense se fundamentara para compor a parte mais importante do seu Livro II.

Considerando aquele apógrafo, pelo estudo filológico e ortográfico a que o submeteu, como reprodução exacta do original, tal como saíra em 1579 dos bicos da pena do seu autor — o exemplar remetido a Frutuoso perdeu-se, certamente, no destino que levou a sua livraria, quando a Companhia de Jesus, a quem a tinha legado, foi expulsa de Portugal no século XVIII — o Dr. João Franco Machado procedeu em 1947, pelo Fundo Sá Pinto da Universidade de Coimbra, a uma edição do «Descobrimento da Ilha da Madeira e discurso da Vida e Feitos dos Capitães da dita Ilha», de Jerónimo Dias Leite, em que no notável prefácio, que a antecede, prova de forma irrefutável a íntima correspondência existente entre o respectivo texto e o das «Saudades da Terra», a ponto, de, na sua totalidade, a versão do ilustre capitular da diocese do Funchal ter sido transcrita quase «ipsis verbis» pelo próprio Frutuoso.

Aproximadamente pela mesma época, o Sr. Dr. Fernando d’Aguiar deu a notícia de existir na livraria do Dr. Artur de Oliveira Ramos, que o adquirira no leilão dos livros do conhecido genealogista Afonso de Dornelas, um exemplar quinhentista do manuscrito da referida obra, que identificou como sendo o original, donde, possivelmente, se extraíram a cópia encontrada

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Palavras Prévias VIII

na Biblioteca da Academia das Ciências, mais tarde editada pelo Dr. João Franco Machado, e aquela que teria sido remetida a Frutuoso e a que este, como vimos, mais de uma vez faz referência.

Depois de pormenorizado confronto entre o que considerou o texto saído das mãos de Jerónimo Dias Leite e o apógrafo, de que resultou a edição já referida, emite o parecer de que aquele, pertencendo ao espólio deixado pelo seu autor na ilha da Madeira, acompanhou para Lisboa as «Memórias seculares e eclesiásticas para a composição da História da Diocese do Funchal», de Henrique Henriques de Noronha e, desde então, por ali «ficou correndo a sua vária e anónima fortuna» (6); chega mesmo a identiflcá-lo, confirmando a suspeita já esboçada pelo Dr. João Franco Machado (7), com a espécie n.º 19, constante da «Notícia bibliográfica» das «Saudades da Terra», de João de Simas, e que por este fora dada como uma cópia da crónica de Frutuoso, pertencente a João Maria Nepomuceno, que se teria transviado para local desconhecido.

Por seu turno, o Sr. Padre Eduardo N. Pereira diz que o original de Jerónimo Dias Leite se conservou, pelo menos, durante 150 anos no Colégio dos Jesuítas do Funchal, que foi visto e compulsado pelo bispo D. José de Sousa Castelo-Branco e pelo historiador, atrás referido, Henrique Henriques de Noronha (8), do que, aliás, dá igualmente testemunho o Dr. Franco Machado, o qual acrescenta que dele se extraiu cópia enviada à Academia Real da História, acompanhando as citadas «Memórias», conforme refere D. António Caetano de Sousa, na sua narrativa «Do que compreende o Bispado do Funchal», inserta no códice existente na Biblioteca Nacional, «Notícias de geografia e história», que em parte são da autoria deste erudito e benemérito teatino (9).

Seja qual for o rumo que levou o autógrafo ou autógrafos de Jerónimo Dias Leite, o que é certo é que depois da publicação desta obra, deslocou-se para plano secundário o trabalho de Frutuoso como fonte histórica do Arquipélago.

No entanto, alguém disse que isto não invalida por completo o que ele escreveu no seu Livro II, pois que o Cónego da Sé do Funchal quase se limitou aos assuntos contidos nos dois títulos que deu ao seu manuscrito (10).

Muitos capítulos figuram nas «Saudades da Terra», que não constam do «Descobrimento da Ilha da Madeira», e mesmo a parte anedótica, a que já me referi, e tão desagradáveis comentários tem merecido a alguns historiadores (11), severos em demasia e, a meu ver, bastante injustos para com o nosso cronista, oferece o seu interesse e é mais uma achega, se bem que de somenos importância, para a história do Arquipélago no século XVI. Ainda em data recente o Dr. Fernando Jasmins Pereira cita o testemunho de Frutuoso na vasta bibliografia de que se socorreu para compor o seu valioso e bem urdido estudo intitulado «A Ilha da Madeira no período henriquino» (12).

*

* *

Porém, um problema surge, por enquanto não de todo resolvido, prestando-se, por isso, às mais desencontradas versões.

Diz respeito à fonte primária e mais antiga, em que se baseou a narrativa de Jerónimo Dias Leite e, por conseguinte, a transcrição que dela fez o nosso cronista nas «Saudades da Terra».

Frutuoso, no cap.º L do Livro ll, ao referir-se ao Conde da Calheta, João Gonçalves da Câmara, diz que este «trazia no seu escritório o descobrimento da ilha da Madeira, o mais verdadeiro que até agora se achou», como «coisa hereditária de descendentes em descendentes», e que, para satisfazer o pedido que formulara através do rico mercador Marcos Lopes Henriques (13) e do nobre Belchior Fernandes de Castro ao referido eclesiástico, este o havia solicitado àquele capitão-donatário, então, em Lisboa, donde lho enviou em três folhas de papel, por cópia do seu camareiro Lucas de Sá. Diz ainda o cronista micaelense que lhe

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Palavras Prévias IX

constava, por carta do aludido fidalgo a Jerónimo Dias Leite, ser o autor desse manuscrito um Gonçalo Aires Ferreira, companheiro e criado de João Gonçalves Zarco no descobrimento do Arquipélago, o qual, por ser de poucas letras, o redigira em linguagem rude e «mal composta», pelo que o Cónego, com o seu «grave e polido estilo», o recompilara e consertara, ampliando-o e refundindo-o até perfazer onze folhas de papel, para o que se havia auxiliado dos tombos e cartórios da cidade do Funchal, que, para aquele fim, todos lhe foram entregues.

Embora Jerónimo Dias Leite se não refira a tal pormenor (o da autoria do dito «Descobrimento» na posse dos Câmaras, Condes da Calheta e capitães-donatários do Funchal), durante muito tempo se admitiu sem reservas a sua veracidade, tanto mais que Frutuoso relata que os descendentes de Gonçalo Aires Ferreira — os da Casta Grande, como se intitulavam no Arquipélago — ao saberem que nessas folhas manuscritas o seu antepassado era tido como «criado» do Zarco — assim também o Cónego o chama por mais de uma vez — trataram imediatamente de protestar contra tal designação, que consideravam humilhante para a sua estirpe.

Daí Frutuoso, ao transcrever Jerónimo Dias Leite, chamar sempre a Gonçalo Aires «companheiro e amigo» do primelro capitão-donatário do Funchal, possivelmente forçado, temos de reconhecê-lo, pelas relações que deveria manter com o Bacharel Gonçalo Aires Ferreira, morador nesta ilha de São Miguel e descendente de uma irmã daquele antigo povoador da Madeira.

É muito provável ter sido através deste Mestre de Gramática da vila da Ribeira Grande que o cronista obtivesse a notícia do pormenor acima apontado quanto à autoria do manuscrito, e também as informações que sobre a nobre ascendência escocesa da família de Gonçalo Aires nos dá, ainda que confusamente, no Livro IV das «Saudades da Terra», embora assevere que as colhera do «brazão passado pelos Reis de Portugal» (14).

O Sr. Padre Pita Ferreira alude a esta circunstância ao discutir a autenticidade da afirmação de Frutuoso com respeito ao autor do documento existente na posse dos Câmaras, Capitães do Funchal e Condes da Calheta, ao qual, aliás, já João de Barros se referira no cap.º III da sua «Década Primeira» (15).

As dúvidas começaram a suscitar-se, quando, em 1936, no «Arquivo Histórico da Marinha» (16), e também na obra do Prof. António Gonçalves Rodrigues, «D. Francisco Manuel de Melo e o Descobrimento da Madeira», se reproduziu a célebre «Relação» que sobre este facto histórico escrevera um Francisco Alcoforado, escudeiro do Infante D. Henrique e companheiro de João Gonçalves Zarco, e de que aquele escritor seiscentista se serviu para compor a sua «Epanáfora Amorosa».

A revelação desse relato de Alcoforado provocou, como era de prever, grande celeuma, por vir avivar problemas que há muito estavam relegados ao esquecimento, como produto da fantasia do célebre polígrafo do século XVII.

Como se sabe, essa terceira Epanáfora trata dos amores infelizes dos ingleses Roberto Machim e Ana d’Harfert, que, segundo uma velha tradição, haviam fugido da Inglaterra, aportando à ilha da Madeira com os seus companheiros de aventura antes de iniciado o povoamento pelos portugueses.

Ora, tal como essa «Relação», o «Descobrimento» de Jerónimo Dias Leite começa precisamente pela narrativa desse romântico episódio e Frutuoso, na sua esteira, com ela compôs o capítulo IV deste livro das «Saudades da Terra».

Foi no «Boletin de Ia Sociedad Geografica de Madrid» que o Prof. António Gonçalves Rodrigues encontrou esse relato, publicado em 1878 por iniciativa de Cesareo Fernandez Duro em artigo intitulado «Como se descobrió la isla de Madera». Ao apreciá-lo, diz aquele Professor: Trata-se de «uma cópia manuscrita do século XVII, conservada na Biblioteca Nacional de Madrid, da famosa «Relação» de Alcoforado», e acrescenta: «a mais rápida comparação dos textos basta para verificar que a «Relação» descoberta foi, de facto, fonte directa da Epanáfora».

Desde o século XVI que essa narrativa do infortúnio de Roberto Machim e Ana d’Harfert vem apaixonando vários escritores, tanto nacionais como estrangeiros, de que resultaram versões nem sempre concordantes, de há muito fazendo parte da tradição histórica da ilha da Madeira, onde se tem mantido através dos tempos.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Palavras Prévias X

Que me conste, foi o Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo, numa das suas mais extensas notas às «Saudades da Terra», o primeiro em Portugal a negar-lhe qualquer autenticidade, considerando esse episódio amoroso e o seu desfecho na terra madeirense como pura lenda, produto de fantasiosa imaginação.

Com argumentos de cerrada dialéctica procurou provar a inconsistência das afirmações do notável historiador inglês, Ricardo Major, que, aceitando-a como verídica e dando-lhe crédito absoluto, para tal se baseara não só no testemunho da «Epanáfora Amorosa», mas também no célebre manuscrito de Muních sobre as ilhas do Atlântico, de Valentim Fernandes, em que pela primeira vez esse episódio amoroso foi enunciado, embora mais tarde se tivesse difundido através do «Tratado dos Descobrimentos», de António Galvão, o qual, diga-se de passagem, constituiu uma das fontes mais autorizadas de que se socorreu Frutuoso ao redigir as «Saudades da Terra».

O aparecimento da «Relação» de Alcoforado foi, de facto, relevante, pois que veio novamente suscitar a discussão sobre um problema, que, depois da análise crítica do Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo, tinha sido completamente posto de parte.

Os círculos culturais, nomeadamente os da Madeira, movimentaram-se e, se alguns investigadores há que continuam a recusar-lhe qualquer aceitação, chegando, mesmo, a considerar apócrifo o relato de Alcoforado (17), outros, pelo contrário, afirmam que «no estado actual dos nossos conhecimentos» sobre o assunto (a lenda de Machim), ele não pode «repudiar-se com o desdém que o tem acolhido desde a crítica do Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo» (18). Por sua vez, o Dr. João Franco Machado, que a essa «Relação» já aludira na «História da Expansão Portuguesa no Mundo», e a publicara no vol. I do «Arquivo Histórico da Marinha», não hesita em identificá-la com a escritura a que Frutuoso se refere, dando-a como existente no «escritório» dos capitães-donatários do Funchal em Lisboa e atribuindo-a (enganadamente, na sua opinião) à pena rude e pouco literária de Gonçalo Aires.

No estudo que precedeu a sua edição do «Descobrimento» de Jerónimo Dias Leite, observando que ambos os textos começam pela narrativa do episódio amoroso de Roberto Machim e Ana d’Arfert, quase «ipsis verbis», e cotejando-os frase por frase na parte que se refere ao descobrimento da Madeira, único assunto de que se ocupa Alcoforado, o distinto investigador não tem dúvidas em aceitar este como a fonte mais antiga, onde foram beber o Cónego madeirense e, por sua via, o nosso Gaspar Frutuoso.

Perentoriamente o afirma nos seguintes termos: «Hoje a identificação está feita. Trata-se, não de uma obra composta pelo referido companheiro (se companheiro foi) do Zargo, mas de uma relação escrita por Francisco Alcoforado, que no descobrimento da ilha da Madeira a tudo assistiu, a qual se deu por muito tempo como desaparecida e até como inexistente» (19).

E, depois de dizer que a «Relação» se intitula: «Qual foy o Azo com que se descobriu a Ilha da Madeira escritto por my Francisco Alcoforado Escudeyro do Senhor Infante D. Henrique que fuy a tudo presente e foy desta Guisa», passa a comparar o respectivo texto com o de Jerónimo Dias Leite e verifica que este «nas suas primeiras dezasseis folhas é um decalque daquele, levemente melhorado na sua redacção» (19). De igual parecer é o Padre Pita Ferreira no seu estudo «Gonçalo Aires e o seu Descobrimento da Ilha da Madeira» (20).

Por sua vez, o Sr. Padre Eduardo N. Pereira insurge-se contra tal opinião, aceitando como indiscutível a autoria de Gonçalo Aires para aquele precioso manuscrito e atribuindo a Jerónimo Dias Leite o enxerto nesse documento do que considera uma lenda (a de Roberto Machim), inventada quase um século depois de descoberta a Madeira (21). Acusando o Cónego da Sé do Funchal de ter amalgamado e mistificado as três folhas do manuscrito de Gonçalo Aires, «desdobrando-o para onze folhas com os erros e incongruências da relação apócrifa, atribuída sem indício algum de autenticidade a Francisco Alcoforado, suposto companheiro de Zarco, cuja existência e actuação não foi possível até hoje descobrir nem identificar», baseia as suas opiniões em autores abalizados, como Duarte Leite, Damião Peres, António Álvaro Dória e Vitorino Nemésio, que igualmente se referiram ao assunto (22).

A. A. Dória na sua obra «O Problema do Descobrimento da Madeira», refutando a opinião do Prof. A. G. Rodrigues, expressamente diz que «ninguém sabe quem foi o Francisco Alcoforado e em parte alguma, a não ser na obra referida («D. Francisco Manuel de Melo e o Descobrimento da Madeira») se lhe menciona o nome» e acrescenta que «teremos de pô-lo de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Palavras Prévias XI

quarentena» enquanto se não provar que o «manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Madrid é cópia de outro autêntico» (23).

Ainda uma outra versão nos surge sobre tão debatida matéria: a do Sr. Dr. Ernesto Gonçalves no seu trabalho «Ocupação da Madeira e Porto Santo», publicado no volume XII do «Arquivo Histórico da Madeira».

Este autor pergunta: «Seria a relação, aproveitada com mau critério por Jerónimo Dias, a «escritura mui particular» de que fala João de Barros no cap.º III da I Década?» (24).

Admitindo que fosse a mesma que os Capitães do Funchal possuíam, a que alude o autor da «Ásia», o Sr. Dr. Ernesto Gonçalves diz que nada nos permite considerá-la como lavrada por um coevo dos acontecimentos. Na sua opinião, esse relato «entraria directamente a narrar como Zarco e Tristão tinham aportado à Madeira», pois, segundo nos diz Gaspar Frutuoso no capítulo L deste Livro II, começava nos seguintes termos: «Chegamos a esta ilha a que pusemos o nome da Madeira» (25), as únicas palavras que dessa narrativa conhecemos. E conclui por afirmar que, ao contrário do que se tem julgado, esta relação saiu directamente do texto de Jerónimo Dias Leite.

Sem pretendermos imiscuir-nos na questão da autenticidade do escrito de Alcoforado, somos de parecer que o assunto é de ponderar e não pode ser discutido de ânimo leve ou aguerrido, ao sabor dos preconceitos e simpatias de cada um. Diremos, no entanto, que, reconhecendo através da leitura das «Saudades da Terra» como o Dr. Gaspar Frutuoso procurou sempre evitar melindres por parte das famílias e entidades mais em voga na sua terra natal, não nos repugna acreditar que aceitasse sem qualquer espécie de crítica as informações que, porventura, sobre Gonçalo Aires Ferreira lhe tivesse fornecido o seu homónimo, que, como dissemos, morava nesta ilha de S. Miguel e seria aqui elemento destacante na sociedade da época.

E, a propósito, convém lembrar a nota que o Sr. Padre Pita Ferreira insere na sua obra «O Arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante» (26) acerca de um Alcoforado, que é referido como fundador ou dono de um hospital d’aquela ilha no Livro das Vereações da Câmara do Funchal (1470-1472), levando-o a perguntar se será o mesmo para quem determinada crítica hoje parece inclinar-se a atribuir a autoria do decantado manuscrito, que os capitães-donatários do Funchal possuíam nos seus «escritórios» de Lisboa (27).

É esta, pois, uma questão em aberto, para conhecimento da qual convidamos o leitor mais curioso a consultar as obras que aqui temos vindo a salientar e, igualmente, o «Arquivo Histórico da Madeira», rico repositório de documentos e artigos sobre a especialidade, da autoria de eruditos investigadores, que dele têm feito um instrumento de inapreciável valor para a reconstituição do passado daquele Arquipélago (28).

*

* *

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Palavras Prévias XII

Mas não ficam por aqui os problemas que neste Livro II das «Saudades da Terra» se contêm.

Como já foi explicado na descrição que fizemos do códice frutuosiano (29), é este livro, de que vimos tratando, um dos que se encontram mais viciados pela introdução de capítulos e folhas que não faziam parte da sua primitiva factura, cuja data conseguimos fixar em 1584.

Refiro-me aos panegíricos de Tristão Vaz da Veiga e D. Luís de Figueiredo e Lemos, ambos figuras de relevo do regime filipino, cuja vaidade houve o particular empenho de lisonjear, incluindo-os numa obra, que, tudo o indica, se destinava a ver a luz da publicidade.

Já o Morgado João de Arruda, na sua cópia anotada das «Saudades da Terra», que data de 1812, dera conta dessa estranha anomalia e, por seu intermédio, a ela igualmente se referem com pormenor João de Simas na sua «Notícia bibliográfica» e o Dr. Cabral do Nascimento nos seus «Apontamentos de História Insular», aventando a hipótese de o viciamento ter sido cometido após a morte do cronista, que, como se sabe, ocorreu em Agosto de 1591.

Com efeito, o Dr. Cabral do Nascimento põe em dúvida de que tais panegíricos fossem redigidos por Frutuoso e para tal estriba-se na admiração que este sempre nutriu pelo Padre Martim Gonçalves da Câmara, que foi contrário a Filipe II de Espanha e mereceu do nosso cronista longas e desenvolvidas palavras de elogio, e também no carinho com que se refere ao filho do sexto capitão do Funchal, que o soberano espanhol encarcerou (30). E sugere que o autor de tais interpolações tenha sido o Dr. Daniel da Costa, físico que para aquela cidade acompanhara o bispo D. Luís de Figueiredo e Lemos, o mesmo que no Livro III, que trata da ilha de Santa Maria, escreveu o «Contraponto» dedicado a este prelado.

Quanto a Tristão Vaz de Veiga, que, ao tempo, era capitão-general da Madeira, nomeado por Filipe II, para cujo partido se passou ao avizinharem-se de Lisboa as tropas invasoras, entregando sem qualquer resistência a fortaleza de São Julião da Barra, cuja defesa lhe havia sido confiada pelos Governadores do Reino, alguém, depois de 1590 — é a data que no panegírico vem referida — introduziu na obra nove capítulos, narrando com exagerado e fastidioso pormenor os feitos no Oriente dessa figura sombria da nossa História. Para tal, como já se disse, houve a necessidade de arrancar folhas escritas pelo próprio punho de Frutuoso e substituí-las por outras, pertencentes aos dois cadernos contendo essa homenagem, que abrange igualmente no cap.º XXVII a justificação da sua atitude anti-patriótica, tudo redigido em sentido apologético.

O que estava escrito por Frutuoso, tanto no capítulo que antecede tal elogio, como no que lhe é subsequente, teve de ser trasladado para esses cadernos com a mesma letra que neles figura, a qual é, totalmente diversa da do nosso cronista e poderá, até certo ponto, identificar-se com a do Padre Simão Tavares, que lavrou vários termos no registo paroquial da Matriz da Ribeira Grande, a partir de 1587.

Outra prova do viciamento é a numeração dos capítulos que se lhe seguem, a qual nos aparece sempre emendada, não sendo difícil divisar-se sob as emendas os primitivos números, apostos por Frutuoso.

Pela linguagem empregada, que pouco se assemelha à do cronista insulano, pelos erros de cópia, com que a cada passo se topam e não foram corrigidos, e, sobretudo, pela ausência total de emendas e acrescentamentos da própria mão de Frutuoso — as suas costumadas entrelinhas em quase todos os capítulos saídos do seu punho — nem sequer podemos admitir que este panegírico fosse da sua autoria, mas sim redigido por alguém (possivelmente do Colégio da Companhia de Jesus do Funchal, bastante afecta a Tristão Vaz da Veiga) empenhado em o adular ou, mesmo, justificar-lhe o procedimento numa obra, que, segundo cremos, se destinava a ser publicada.

Tais capítulos têm todo o aspecto de serem cópia de um original, que desconhecemos, feito de propósito para ser incluído nas «Saudades da Terra», pois é frequente notarem-se, nas margens e entrelinhas, frases na própria letra do copista, que lhe haviam escapado no momento de as trasladar. Alguns, pelo menos, como confessa o desconhecido autor, foram extraídos ou inspirados na obra que Jorge de Lemos publicou em 1585, historiando os cercos de Malaca, quando António Moniz Barreto era governador da Índia (31).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Palavras Prévias XIII

Contudo, estamos certos de que a sua inclusão nas «Saudades da Terra» se fez com o consentimento de Frutuoso; disso nos convencemos ao deparar com as entrelinhas «capelão de Sua Majestade» que ele, referindo-se ao Cónego Jerónimo Dias Leite, apôs com a sua letra extremamente miúda no capítulo XXX, este já da sua autoria, pois que trata dos filhos e filhas de João Gonçalves Zarco, e que para consertar a obra, após o viciamento praticado, teve de ser suprimido e depois transcrito pelo mesmo copista para os dois cadernos interpolados.

A outra interpolação, a que nos referimos, foi o longo capítulo de elogio ao bispo do Funchal, D. Luís de Figueiredo e Lemos, igualmente partidário de Filipe II, e nomeado para aquela diocese em 1585, isto é, depois de redigido este Livro II, que, como dissemos, é possível colocar-se em 1584, pelos dados irrefutáveis que nele se colhem.

Para a sua introdução, já depois do trabalho estar confeccionado, foi igualmente necessário arrancar a última folha do capítulo, que, pelo punho de Frutuoso, trata do bispo D. Jerónimo Barreto e transcrever o que aí estava para aquela, em que se dá começo a este outro, numerado de XLII, como se disse de homenagem a D. Luís de Figueiredo e Lemos, e ainda

substituir por novas folhas o cap.º XLIII (que trata dos honrosos feitos do capitão Simão Gonçalves da Câmara e dos filhos e filhas que teve) e o começo do XLIV (como foi saqueada a cidade do Funchal por corsários luteranos), ambos, presumivelmente, da autoria de Frutuoso, ou, pelo menos, da sua letra.

Embora o papel seja da marca que figura na maior parte dos capítulos dedicados a Tristão Vaz da Veiga e igual ao que serviu para a escrituração do Livro VI, a letra é com toda a evidência muito diferente; bastante legível, grada e inclinada para a direita, apresenta algumas semelhanças com a do copista dos últimos capítulos do Livro IV.

Igualmente não nos repugna acreditar que tal elogio ao bispo do Funchal se incluísse na obra com a aquiescência de Frutuoso; não só o prelado era figura das mais marcantes entre os açorianos da época, como o cronista tivera ocasião de o conhecer, quando aquele exerceu as funções de pároco da freguesia de S. Pedro de Ponta Delgada e as de vigário geral da diocese de Angra. Aliás, a data da nomeação de D. Luís de Figueiredo para bispo do Funchal — 1585 — já posterior à confecção da obra, coloca-se numa época em que Frutuoso não hesita em apresentar-se, ou aparentemente se revela como defensor dos direitos de Filipe II à coroa de Portugal.

Com todos os seus problemas, e apesar do «Descobrimento da ilha da Madeira», de Jerónimo Dias Leite, ser hoje a fonte informativa mais segura dos primórdios da existência daquele arquipélago como terra habitada, o Livro II das «Saudades da Terra» não desmerece do conjunto da obra, se atentarmos às circunstâncias em que Frutuoso teve de trabalhar, no isolamento da sua remota vila da Ribeira Grande, onde paroquiava, e numa época em que dificilmente as pessoas se podiam deslocar para colher «de visu» os materiais necessários à composição de um trabalho da envergadura daquele que realizou. Nem se lhe leve a mal a cópia quase servil do texto de Jerónimo Dias Leite, aliás elaborado a seu pedido para figurar nas «Saudades da Terra», circunstância que o cronista micaelense jamais escondeu, pois que por mais de uma vez a ela se refere e sempre em termos elogiosos para o seu autor. É verdade que alterou a ordenação dos assuntos que o Cónego da Sé do Funchal lhe havia dado, e do critério que a isso o levou poderemos discordar com maior ou menor fundamento, mas lembremo-nos de que a outras fontes ele recorreu para nos dar obra mais vasta, em que se contêm capítulos de indiscutível valor, como sejam as descrições topográficas da Madeira e de Porto Santo, que não figuram no trabalho daquele prebendado, e outros, que nem pelo aspecto anedótico que os informa, deixam de ter interesse para o conhecimento da vida madeirense no século XVI.

E tenhamos em consideração de que se não fora o gosto do nosso cronista em legar aos vindouros esse autêntico monumento, que são as «Saudades da Terra», possivelmente não teria o Cónego Jerónimo Dias Leite a oportunidade de redigir o seu valioso «Descobrimento da Ilha da Madeira», de que hoje, e com toda a razão, tanto se ufanam os naturais do distrito do Funchal.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Palavras Prévias XIV

Sem preocupações de inoportuno e deslocado bairrismo, mantemo-nos na linha daqueles vultos micaelenses que, apesar dos exageros ou deslizes que na sua Crónica se podem apontar e foram sobretudo resultado das condições em que ao tempo se trabalhava em matéria histórica, tiveram sempre pelo Dr. Gaspar Frutuoso o respeito e a admiração que ele merece, como fonte a muitos títulos inesgotável e mesmo preciosa para reconstituir o passado das nossas ilhas atlânticas, designadamente as dos Açores.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Manuscrito Original das Saudades da Terra XV

FOTOCÓPIA DA PÁGINA N.º 63 DO MANUSCRITO ORIGINAL DAS SAUDADES DA TERRA, EM QUE SE DÁ COMEÇO AO LIVRO SEGUNDO

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Livro Segundo das Saudades da Terra

LIVRO SEGUNDO DAS SAUDADES DA TERRA

DO DOUTOR GASPAR FRUCTUOSO EM QUE SE TRATA DO DESCOBRIMENTO DA ILHA DA MADEIRA E SUAS

ADJACENTES, E DA VIDA E PROGÉNIE DOS ILUSTRES CAPITÃES DELAS

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Primeiro 3

CAPÍTULO PRIMEIRO

DO NASCIMENTO, PROGÉNIE, AUTORIDADE E COSTUMES DO INFANTE DOM HENRIQUE, QUE MANDOU DESCOBRIR AS ILHAS DE PORTO SANTO, MADEIRA E DOS

AÇORES

Tratado tenho, Senhora, do princípio remoto e, para que trate agora de outro mais chegado ao que destas ilhas me pedistes vos contasse, não será sem razão dizer alguma coisa da vida e costumes do infante Dom Henrique, digno de imortal e gloriosa memória, pois hei de tratar das ilhas da Madeira e dos Açores, que ele mandou descobrir neste grande mar Oceano ocidental. Para o qual se há de notar que Dom João, de Boa Memória, décimo Rei de Portugal e primeiro do nome, casou com a Infanta Dona Filipa, de nação inglesa, neta de el-Rei de Inglaterra Dom Duarte, terceiro do nome, e filha de João de Gand, Duque de Alencastre, filho quarto de el-Rei Duarte e irmão de Ricardo, Rei de Inglaterra, que neste tempo reinava.

Havia casado o Duque João de Gand com Madama Branca, herdeira do Ducado de Alencastre, de quem houve um filho chamado Henrique, que foi Duque de Alencastre e, depois, Rei de Inglaterra, e duas filhas, uma chamada Isabel, que foi condessa de Holanda, casada com João, Conde de Holanda, e a outra é esta rainha Dona Filipa, de quem el-Rei Dom João, seu marido, houve nobre e grande geração.

Primeiramente houveram a Infante Dona Branca, que de oito meses faleceu e jaz sepultada na Sé de Lisboa aos pés da sepultura de el-Rei Dom Afonso quarto, seu bisavô; e o Infante Dom Afonso, que faleceu moço e jaz sepultado na Sé de Braga; e o Infante Dom Duarte, que reinou depois de seu pai, e o Infante Dom Pedro, que foi Duque de Coimbra e Senhor de Montemor-o-Velho e de Aveiro e das terras do Infantado; e o Infante Dom Henrique, que foi Duque de Viseu e Senhor de Covilhã e Mestre da Ordem de Cristo, cuja era a vila de Lagos, e a de Sagres; e Dona Isabel, que foi casada com o Duque Filipe de Borgonha e Conde de Flandres, poderoso príncipe, de alcunha o Bom Pai, e Senhora de outros grandes estados e mãe do Duque Charles, que mataram os suiços e alemães na batalha de Nanci, em terra de Lorena. Houve mais el-Rei Dom João da Rainha Dona Filipa, sua mulher, o Infante Dom João, que foi Mestre da Ordem de Santiago e Condestável do Reino, pai da Rainha Dona Isabel, mulher de el-Rei Dom João de Castela, segundo de nome. Houve mais dela o Infante Dom Fernando, Mestre da Ordem de Avis e Senhor de Salvaterra e de outros povos, de grande caridade com os próximos, por cuja ajuda e liberdade ficou em terra de mouros e lá morreu cativo em Fez. Esta é a real e alta progénie do Infante Dom Henrique, que mandou descobrir estas Ilhas da Madeira e dos Açores, como adiante contarei. Teve também el-Rei Dom João, sendo Mestre, antes que reinasse, dois filhos bastardos de uma mulher, chamada Dona Inês, que depois foi Comendadora de Santos, sc. Dom Afonso, que casou com uma filha herdeira de Dom Nuno Álvares Pereira (chamada Dona Breatiz), que foi Conde de Ourém e Barcelos, e uma filha, chamada Dona Breatiz, que casou com Dom Tomé, Conde de Arendel e Borga em Inglaterra.

O Infante Dom Henrique, quarto filho de el-Rei Dom João, de Boa Memória, e da Rainha Dona Filipa, nasceu na cidade do Porto em quarta-feira de Cinza, quatro dias do mês de Março do ano de mil trezentos noventa e quatro, e foi (como disse) Duque de Viseu e Mestre da Ordem de Cristo, cuja militar religião reformou ele de suas sobejas estreitezas com autoridade do Papa Eugénio quarto.

Há-se mais de notar que o Infante Dom João, filho quinto de el-Rei Dom João, de Boa Memória, e da Rainha Dona Filipa, sua mulher, nasceu em Santarém no mês de Fevereiro e, segundo outros dizem, no mês de Julho, o qual Infante foi Mestre de Santiago e Condestável dos Reinos de Portugal e casou com uma sua sobrinha, Dona Isabel, filha de Dom Afonso, primeiro Duque de Bragança, seu meio irmão, filho fora de matrimónio de el-Rei Dom João, seu

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Primeiro 4

pai, da qual Dona Isabel, sua mulher, houve primeiramente um filho, chamado Dom Diogo, a que outros chamam Dom Luís, que, depois do Infante, seu pai, faleceu de pouca idade, e uma filha, chamada Dona Isabel, que veio a ser Rainha de Castela, mulher de Dom João, segundo deste nome, que, sendo ele em idade de quarenta anos, a houve por sua segunda mulher. Teve mais o Infante Dom João da Infanta Dona Isabel, sua mulher, a segunda filha, que se chamou Dona Breatiz, a qual, andando os tempos, fez as pazes perpétuas de Portugal e Castela, entre Dom Afonso, o quinto deste nome, duodécimo Rei de Portugal, e Dom Fernando quinto e Dona Isabel, Reis Católicos de Castela, no fim do ano de mil quatrocentos e oitenta. Esta casou o Infante Dom Pedro, governador, então, do Reino, com seu primo carnal, dela, o Infante Dom Fernando, irmão de el-Rei Dom Afonso e filho segundo de el-Rei Dom Duarte; os quais, Dom Fernando e Dona Breatiz, houveram estes filhos sc. Dom Domingos ou Dom Diogo (que parece teve dois nomes, ou por lhe mudarem o primeiro na crisma, ou por qualquer outra razão que seja), Duque de Viseu, e Dom Manuel, que depois foi Rei de Portugal. Houve mais o Infante Dom João (32) de sua mulher, a Infanta Dona Breatiz (sic), a terceira filha, que se chamou Dona Filipa, como a Rainha, sua avó paterna, a qual Dona Filipa, sendo Senhora de Almeida, havendo sustentado grande casa e muita honra e castidade, sem casar, casando e fazendo muito bem a seus criados e criadas, acabou virtuosamente sua vida. E no fim do mês de Outubro do ano de mil quatrocentos e quarenta e dois faleceu este Infante Dom João, irmão do Infante Dom Henrique, que descobriu estas Ilhas, em Alcácer do Sal, de febre, donde levaram seu corpo ao mosteiro da Batalha, onde tem sua sepultura dentro da capela de el-Rei Dom João, seu pai. E a seu filho, Dom Diogo, fez logo condestável o Regente do Reino Dom Pedro, seu tio, dando-lhe o mestrado de Santiago com todas as rendas e cousas que o Infante Dom João, seu pai, tinha, o que tudo logrou pouco, pois, como está dito, faleceu muito moço, de febre contínua, logo no ano seguinte de mil e quatrocentos e quarenta e três, cuja herança e casa passou a Dona Isabel, sua irmã maior, e depois, porque esta casou com el-Rei de Castela, passou por contrato à filha segunda, Dona Breatiz, casada com o Infante Dom Fernando. E, porque do Infante Dom João não ficava outro herdeiro barão (33), o Infante Dom Pedro, governador, então, do Reino, fez com el-Rei que proveu, logo, do ofício de Condestável a Dom Pedro, seu filho maior, do mesmo Dom Pedro. E parece que, depois, el-Rei Dom Afonso, o quinto do nome, morto o Dom Pedro, fez condestável a Dom Diogo ou Dom Domingos, filho do Infante Dom Fernando, seu irmão, e da Infanta Dona Beatriz, pois ele nas cartas das doações destas ilhas põe este título de Condestável.

Era o Infante Dom Henrique, que mandou descobrir a ilha da Madeira e suas adjacentes e estas ilhas dos Açores, tão poderoso no Reino e de tanta autoridade, por suas muitas virtudes e saber, que, fazendo-lhe queixume o Infante Dom Fernando, seu sobrinho (34) Mestre de Aviz, como el-Rei Dom Duarte, seu pai, do mesmo Dom Fernando, e irmão do mesmo Dom Henrique, não lhe queria dar licença para passar a África (que era coisa que ele muito desejava), rogou a el-Rei que lha desse e logo a alcançou, ainda que eram contra isso o Infante Dom João e o Infante Dom Pedro. E, quando uma vez el-Rei Dom Afonso, o quinto do nome, partiu de Santarém para Lisboa, onde o mesmo Infante Dom Henrique (que estava no Algarve) lhe foi falar, sentindo que a honra e vida do Infante Dom Pedro, seu irmão, com modos falsos de seus inimigos era maltratada e se dispunha a destruição e perigo, atalhou a isso, falando com el-Rei. Bem bastara sua autoridade a pôr tudo em paz e acabar com el-Rei que não cresse o que lhe diziam do infante Dom Pedro, se não fora Dom Afonso, Conde de Barcelos, e seus filhos Dom Diogo, Conde de Ourém e Marquês de Valença, e Dom Fernando, Conde de Arraiolos e Marquês de Vila Viçosa, e Dom Pedro de Noronha, arcebispo de Lisboa, cunhado do Conde Dom Afonso, irmão de Dona Constança, sua segunda mulher, e Dom Frei Nuno de Goes, prior de São João, que é a cabeça do priorado do Crato, e Dom Afonso, Senhor de Cascais, e outros servidores da Rainha viúva Dona Leonor, mulher que fora de el-Rei Dom Duarte, e mãe do mesmo Rei Dom Afonso, quinto do nome, que eram da mesma parcialidade contra o Infante Dom Pedro, os quais receosos, se o Infante Dom Henrique, segundo era poderoso no Reino e de grande autoridade, pendesse à banda do Infante Dom Pedro, que suas imaginações ficariam com dano deles muito aquém de seu propósito, trabalharam de fazer a el-Rei suspeitosas suas muitas virtudes e segura lealdade, afirmando-lhe que nas desculpas do infante Dom Pedro o não devia crer, porque na culpa do engano e desterro da Rainha, sua mãe, e em outros desmandos, que, por morte de el-Rei Dom Duarte no Reino, se fizeram, ambos foram causadores e participantes. Mas, como isto era falso, não danava na limpeza do Infante Dom Henrique, ainda que foi causa para que el-Rei Dom Afonso lhe não cresse as desculpas e razões que ele lhe deu por parte do Infante, seu irmão.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Primeiro 5

Além do que João de Barros dele diz no cap.º 17.º do primeiro livro da primeira Década de sua Ásia, era este excelente Infante Dom Henrique valoroso cavaleiro e mui grande cosmógrafo e matemático, e tão afeiçoado às letras, que deu suas próprias casas para os estudos de Lisboa, e tão dado à contemplação e virtude, que jamais se quis casar; e, para poder melhor gozar da vista e curso das estrelas e orbes celestes, escolheu para sua habitação uma montanha no Cabo de São Vicente, porque ali chove poucas vezes e por maravilha se turba a serenidade do Céu, fazendo discursos, como bom filósofo e cosmógrafo, de uma razão em outra; e por outras razões e conjecturas, que direi adiante, e por certo roteiro, que dizem que achou do tempo dos Romanos, e com conselho dos cosmógrafos e homens peritos e experimentados na navegação, desejando estender e alargar os reinos paternos com novas conquistas e descobrimentos, veio a concluir que se podia navegar de Portugal à Índia Oriental pela parte do meio dia, e, desejando saber por experiência o que alcançava por arte, armou à sua custa certos navios e mandou com eles gente a descobrir aquela navegação, e em diversas vezes veio a ter notícia de gram parte daquela costa da terra firme e de algumas ilhas no mar Atlântico; e em todas as em que havia gente fez pregar a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo e, por sua boa diligência, se converteram à nossa santa religião os infiéis bárbaros de algumas daquelas partes. E, então, se descobriu a ilha da Madeira e a do Porto Santo e estas dos Açores, como depois particularmente direi. E como tinha vontade de bem fazer, como ele tinha por moto de sua divisa nestas palavras francesas «Talent de bien faire», ainda que fosse à sua custa, continuou este excelente Infante Dom Henrique este descobrimento e conquista por mais de vinte e oito anos.

Passadas estas coisas e outras, que adiante contarei, veio a morrer no ano de mil quatrocentos sessenta e três (sic) (35), a treze dias de Novembro, deixando descoberto do Cabo de Não até a Serra Leoa, que está desta nossa banda em sete graus e dois terços, ou, como outros dizem, oito graus de altura. Faleceu em Sagres, vila sua do Algarve, sendo de idade de sessenta e sete anos, e foi enterrado na igreja de Lagos, donde depois foi trasladado ao mosteiro real da Batalha, que el-Rei D. João, seu pai, havia edificado, e posto na capela do mesmo convento, que está no cruzeiro à banda direita, onde está enterrado el-Rei Dom João, seu pai, e, ao redor dele, seus filhos, os Infantes Dom Pedro, Dom João e Dom Fernando. Tem por divisa este Infante Dom Henrique na sepultura, dourada, umas bolsas e letras douradas, tudo já gastado. Dizem ter isto assim, por ser ele o por cuja indústria se descobriu a Mina, da qual veio e vem a Portugal muito ouro.

Este Infante têm todos por certo que morreu virgem; cuja morte sentiu muito todo Portugal, e muito mais el-Rei Dom Afonso, seu sobrinho, a quem dos Sereníssimos Infantes, seus tios legítimos, só este lhe havia ficado, porque o Infante Dom João, Mestre de Santiago e Condestável do Reino, e o Infante Santo, Dom Fernando, Mestre de Aviz, já então eram falecidos, e também o Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra; e o tio, fora de matrimónio, que era Dom Afonso, Duque de Bragança, de mais idade que todos seus irmãos, faleceu no ano seguinte e sucedeu-lhe no ducado seu filho, Dom Fernando, Conde de Arraiolos e Marquês de Vila Viçosa, segundo Duque de Bragança, neto do primeiro Condestável Dom Nuno Álvares Pereira por linha de sua mãe, a Condessa de Barcelos, Dona Breatiz, filha única herdeira do Condestável, e, por linha masculina, neto também de el-Rei Dom João de Boa Memória, o primeiro do nome.

Este Infante Dom Henrique, tio natural e pai adoptivo do Infante Dom Fernando (ao qual devem estes reinos, como tenho dito, o descobrimento de muitas ilhas e terras firmes e princípio dos reinos e províncias que se descobriram e se conquistaram depois no Oriente), por reconhecimento das mercês que de Deus recebera na ampliação dos senhorios destes reinos, mandou fazer em sua vida em Restelo, lugar de ancoragem antiga, ali, onde ora é o mosteiro de Belém, mais de meia légua de Lisboa, e, segundo outros, uma légua, uma ermida da invocação de Nossa Senhora de Belém, em que se pudesse recolher alguns freires da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo do convento de Tomar, de que ele era Mestre, os quais servissem ali a Deus e com os mercantes estrangeiros exercitassem as obras de caridade, assim espirituais, confessando-os e consolando-os, como corporais, agasalhando os pobres e ajudando os enfermos e enterrando os mortos que ou ali falecessem ou o mar ali lançasse, tendo o Infante desta casa, que tinha neste surgidouro de Restelo, feito doação à mesma Ordem de Cristo, com algumas heranças de pomares, fontes e terras que comprara para se manterem os freires, com encarrego de todos os sábados dizerem uma missa por sua alma.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Primeiro 6

Depois que Vasco da Gama tornou da Índia, vendo el-Rei Dom Manuel quão obrigado estava (acrescentando Deus em seu tempo à coroa destes reinos outros tantos e tão grandes) acrescentar-lhe também o templo e magnificência da obra para limpeza do culto divino e perfeição de maior religião, determinou de edificar ali o mosteiro de Belém, da ordem de São Jerónimo, prosseguindo a memória e santa tenção do Infante Dom Henrique, seu tio e avô adoptivo, e irmão de el-Rei Dom Duarte, seu avô natural, como disse. E logo em satisfação e recompensão deu à Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo a igreja de Nossa Senhora da Concepção de Lisboa, que, antes da conversão dos judeus, fora Sinagoga, e ele a convertera e mudara em serviço de Deus e templo da Virgem Nossa Senhora.

Mas, como o edifício de Nossa Senhora de Belém era sumptuoso, e por sua muita grandeza e qualidade da obra requeria largo espaço de tempo para se acabar na ordem em que o ele principiara, e sua morte foi tantos anos antes do que, segundo o comum curso dos homens, pudera ser, pois faleceu aos treze dias de Dezembro do ano do Senhor de mil e quinhentos e vinte e um, dia de Santa Luzia, nos paços da Ribeira, não de velhice, senão de uma febre, espécie de modorra, doença de que naquele tempo morria muita gente em Lisboa, da qual, a cabo dos nove dias que lhe tocou, deu a alma a Deus em idade de cinquenta e dois anos, seis meses e treze dias, dos quais reinou os vinte e seis, um mês e dezanove dias, deixou encomendado a el-Rei Dom João, terceiro do nome, seu filho, e sucessor também de suas obrigações, como o era dos regnos e senhorios que lhe deixava, o prosseguimento e fim dela; e, para mais o obrigar a prossegui-la, acabá-la e dotá-la da maneira que ele, se vivera, o determinava fazer, ordenou e mandou em seu testamento que enterrassem seu corpo na igreja de Belém antiga, que o Infante Dom Henrique mandara edificar, e, como a igreja do mosteiro fosse acabada, lhe trasladassem a ela seus ossos pola (sic) escolher para sua sepultura, e agora o é também dos mais Reis, seus sucessores.

Dizem e escrevem alguns que, por o Infante Dom Henrique não ter filhos e no tempo de seu falecimento regnar em Portugal el-Rei Dom Afonso, o quinto do nome, (como se vê claramente, pois este Rei nasceu em Santarém no ano de mil quatrocentos trinta e dois e faleceu a vinte e oito dias de Agosto, em dia de Santo Agostinho, na era de mil quatrocentos e oitenta e um), deixou em seu testamento a conquista do descobrimento das terras à coroa real, como ao tronco donde ele descendia. E parece que também deixou, com aprazimento de el-Rei Dom Afonso, o mestrado de Cristo e quanto tinha ao Infante Dom Fernando, que ele perfilhou, casado com sua sobrinha, a infanta Dona Breatiz, filha de seu irmão, o Infante Dom João, já neste tempo falecido, ou, como conta o grave e docto cronista Damião de Goes, no ano de 1460, depois do falecimento do infante Dom Henrique, fez el-Rei Dom Afonso quinto doação das ilhas do Cabo Verde e das dos Açores, que ele chama Terceiras, ao Infante Dom Fernando, seu irmão, e, por morte do Infante Dom Fernando, ficou o dito mestrado e o mais a seu filho, Dom Diogo.

Como quer que seja, sua mãe, deste Dom Diogo, a Infanta Dona Breatiz, por ele naquele tempo ser de pouca idade, sendo sua tutor e curador fez e confirmou as doações destas ilhas da Madeira e dos Açores aos capitães delas, e o mesmo Duque Dom Diogo, depois de ter idade para isso. as confirmou, como de algumas delas parece. E por morte deste Dom Diogo, que el-Rei Dom João, o segundo do nome, matou às punhaladas por lhe tratar treição, (sic) sucedeu Dom Manuel no mestrado e ducado de Viseu a seu irmão, por mercê de el-Rei, e no Regno ao mesmo Rei, seu cunhado, pelo seu testamento e por aí não haver outra pessoa a quem mais pertencesse o Regno que ao dito Dom Manuel, regedor e governador da Ordem e Cavalaria do Mestrado de Nosso Senhor Jesus Cristo, Duque de Viseu e de Beja, Senhor de Covilhã e de Moura e das ilhas da Madeira e Cabo Verde e destas dos Açores, que são do mesmo mestrado.

E, depois que Dom Manuel sucedeu no Regno, ficou o dito Mestrado de Cristo encorporado na coroa, como parece que profetizou el-Rei Dom João, o segundo, quando, falando com o Duque Dom Manuel e fazendo-lhe mercê do ducado e terras e senhorios que tinha seu irmão Dom Diogo, defunto, (como conta o curioso Garcia de Rezende) lhe disse que ele matara o Duque seu irmão, porque ele, Duque, com outros o quiseram matar. E, porque todalas coisas, que ele em sua vida tinha, por sua morte ficavam livremente à coroa, ele de todas, dali em diante, lhe fazia mercê e pura doação para sempre, porque Deus sabia que ele o amava como a próprio filho e lhe dizia que, se o seu próprio filho falecesse, sem outro filho legítimo que o sucedesse, que daquela hora para então o havia por seu filho, herdeiro de todos os seus Regnos e Senhorios; e, sendo isto dito e ouvido, de uma parte e da outra, com muita tristeza e

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Primeiro 7

lágrimas (porque el-Rei tudo atribuía a seus pecados), o Senhor Dom Manuel, com muito acatamento pondo os giolhos em terra, lhe beijou por tudo a mão, e o mesmo fez Diogo da Silva, seu aio. Então, lhe mudou el-Rei o título de Duque de Viseu, por se não intitular como seu irmão, e houve por melhor que se intitulasse Duque de Beja e Senhor de Viseu, como daí em diante se chamou. E, logo nesta mesma fala, el-Rei tocou ao Duque em querer para si as vilas de Serpa e Moura e que por elas lhe daria dentro do Regno mui inteira satisfação; e assim apontou nas saboarias do Regno, que tinha, em que, porventura, haveria mudança, porque as havia por opressão dos povos e por cárrego de sua consciência. E também lhe disse que a ilha da Madeira, no que pertencia a sua coroa, ele, Duque, a teria em sua vida inteiramente, mas que por seu falecimento, quando Deus o ordenasse, era razão que, por ser cousa tamanha, se tornasse à coroa e aos Reis destes Regnos, que os sucedessem. As quais palavras, que el-Rei, então, disse ao Duque, foram todas (como disse) profecias do que ao diante se viu, pois tudo foi como ele, então, o disse, e ficou o mestrado à coroa no tempo que o Duque Dom Manuel ficou Rei.

E esta parece ser a razão porque são as doações, em aqueles tempos, aos capitães destas ilhas concedidas pela dita Infanta Dona Breatíz, como curador e tutor de seu filho, o Duque Dom Diogo, enquanto era de pouca idade, e foram depois confirmadas pelo dito Dom Diogo, quando já tinha idade para isso, e pelos Reis destes regnos; e, sucedendo por Duque no ducado de Beja, Dom Manuel, por morte de seu irmão Dom Diogo, e vindo depois a ser Rei o mesmo Dom Manuel, ficou o Mestrado da Ordem de Cristo encorporado na Coroa Real, como agora está, e os Reis de Portugal são os que agora fazem as doações destas capitanias destas ilhas e as confirmam, ainda que dantes eram concedidas (como tenho dito) pela lnfanta Dona Breatiz, como curador e tutor de seu filho, o Infante Dom Diogo, enquanto era menino, e depois confirmadas por ele, quando já teve idade para isso. E qualquer Rei que agora sucede no Reino é o Mestre da Ordem de Cristo, de cujo Mestrado são a ilha da Madeira e suas adjacentes e estas ilhas dos Açores.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Segundo 8

CAPÍTULO SEGUNDO

DO QUE ESCREVE JOÃO DE BARROS DO DESCOBRIMENTO DAS ILHAS DE PORTO SANTO E DA MADEIRA, E DOUTRAS OPlNlÕES QUE DELE TÊM OUTROS AUTORES

Segundo escreve o não menos docto que curioso João de Barros quase no princípio de sua Ásia, depois que el-Rei Dom João, de gloriosa memória, o primeiro deste nome em Portugal, passando a África, no mês de Julho, por força de armas tomou a cidade de Cepta, na tomada da qual o Infante Dom Henrique, seu filho terceiro génito, foi parte mui principal, e, como conta o grave cronista Damião de Goes, quatro anos depois que el-Rei Dom João tomou a cidade de Cepta aos mouros, eles a requerimento de el-Rei de Granada, chamado o Esquerdo, a vieram cercar no mês de Agosto com grão poder, ao qual cerco el-Rei Dom João mandou muita e mui nobre gente de seus regnos, por cujo capitão foi o Infante Dom Henrique.

E porque, além de ele ser mui arriscado cavaleiro, era mui dado ao estudo das letras, principalmente da Astrologia e Cosmografia, trazendo, como Júlio Cesar, a lança em uma mão e o livro na outra, tornando do dito cerco o mesmo Infante, sabendo a obrigação do cárrego e administração que tinha de governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, que el-Rei Dom Dinis, seu trisavô, para a guerra dos infiéis ordenou e novamente constituiu, desejoso de acrescentar o Regno de Portugal e descobrir outro mundo de novo, já que não lhe cabia o descobrimento ou conquista de África, e vendo como os mouros do Regno de Fez e Marrocos ficavam por conquistar, metidos na coroa destes Regnos por o novo título que seu pai tomou de Senhor de Cepta, e que ele já não podia intervir como conquistador, senão como capitão enviado, e, indo desta maneira, havia de seguir a vontade de el-Rei e a disposição do Regno e não a sua, assentou mudar esta conquista, que muito desejava, para outras partes mais remotas de Espanha; com fundamento da qual empresa (que até o seu tempo nenhum príncipe tentou), para que este seu propósito houvesse efeito, era mui diligente na inquisição das terras e seus moradores e de todalas coisas que pertenciam à Geografia, dando-se muito a ela, com que veio a ter notícia de muitas terras, estando recolhido em uma vila, que novamente fundava no regno do Algarve, na angra chamada Sagres, por estar junto do cabo de São Vicente, chamado pelos antigos históricos Sacrum Promontorium, que quere dizer Grande Cabo (como se podem chamar todos os outros cabos grandes que ao mar saem). Assim chama Virgílio à grande fome e sede de ouro, auri sacra fames, a que os latinos chamam execrabilis, ex-fugienda, de que se deve fugir e arredar, como dos grandes cabos ou promontórios, onde quase sempre há tormentas e perigos, donde se derivou o corrupto nome de Sagres, que para mais verdadeira imitação da língua latina, donde a nossa traz seu (sic) origem (como diz o cronista Damião de Goes), se deve chamar, mudando o g em c, Sacres; à qual vila o dito Infante pôs nome Terçá Nabal, e ora se chama a Vila do Infante.

Como coisa que lhe fora revelada, segundo alguns dizem, ainda que o mais certo é pela certeza que alcançou do trabalho de seu estudo e grande curiosidade que a navegação para a Índia Oriental já fora em outros tempos achada, logo no mesmo ano que tornou do cerco de Cepta, que foi o de mil e quinhentos (36) e dezanove, um dia, em se levantando com muita diligência, mandou armar dois navios que foram os primeiros com que começou mandar descobrir a costa de África. E, porque naquele tempo nenhum português passava do cabo de Não, que está em vinte e nove graus de altura, deu aos capitães por regimento que seu descobrimento fosse deste cabo por diante; mas estes e outros, que doutras vezes foram e vieram, não descobriram mais que até o cabo Bojador, que será avante do cabo de Não obra de sessenta léguas.

Tornados estes navios, falaram-lhe dois nobres e esforçados cavaleiros de sua casa, a um dos quais chamavam João Gonçalves, Zargo de alcunha, e outro Tristão Vaz, de menos idade, vendo os desejos que ele tinha de descobrir terra e eles de o servirem na tal empresa, como

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Segundo 9

naquelas idas de além o tinham em África mui bem servido, pedindo-lhe muito que, pois armava navios para descobrir a costa de Berbéria e Guiné, lhe aprouvesse irem eles em algum navio a este descobrimento que eles sentiam em si que nele o poderiam bem servir. O Infante, vendo suas boas vontades e conhecendo deles serem homens para qualquer honrado feito, pela experiência que tinha de seus serviços, mandou-lhe armar um navio a que chamavam barca naquele tempo, e deu-lhes regimento que corressem a costa de Berbéria até passarem aquele temeroso Cabo Bojador, e daí fossem descobrindo o que mais achassem.

Como este Infante Dom Henrique era um barão tão puro, tão limpo e de coração tão virginal como foi, segundo nota João de Barros, a ele convinha descobrir estas terras idólatras e abrir os alicesses (sic) da Igreja Oriental que nelas se depois edificou. E, assim, permitiu Deus que este novo descobrimento (pela majestade dele) passasse pela lei que têm as grandes coisas, as quais têm uns princípios trabalhosos e casos não cuidados e de tanto perigo, como passaram estes dois nobres cavaleiros, que o Infante mandou descobrir, depois de partidos em sua barca, porque, antes que chegassem à costa de África, saltou com eles tamanho temporal, com força de ventos contrairos à sua viagem, que perderam a esperança das vidas, por o navio ser tão pequeno e o mar tão grosso, que os comia, correndo a árvore seca à vontade dele.

E como os marinheiros naquele tempo não eram costumados a se engolfar tanto no pego do mar e toda sua navegação era por sangraduras, sempre à vista da terra, e, segundo lhes parecia, eram mui afastados da costa deste regno, andavam todos tão torvados e fora de seu juízo, pelo temor lhe ter tomado a maior parte dele, que não sabiam julgar em que paragem eram; mas aprouve à piedade de Deus que o tempo cessou e, posto que os ventos lhe fizeram perder a viagem que levavam, segundo o regimento do Infante, não os desviou de sua boa fortuna, descobrindo a ilha que agora chamamos do Porto Santo (37), o qual nome lhe eles, então, puseram porque os segurou do perigo que nos dias da fortuna passaram. E bem lhe pareceu que terra, em parte, não esperada não somente lha deparava Deus para sua salvação, mas ainda para bem e proveito destes regnos, vendo a disposição e sítio dela, e mais não ser povoada de tão fera gente como, naquele tempo, eram as ilhas Canárias, de que já tinham notícia. Com a qual nova, sem ir mais avante, se tornaram ao regno, de que o Infante recebeu o maior prazer que até naquele tempo desta sua empresa tinha visto, parecendo-lhe que era Deus servido dele, pois já começava ver o fruto de seus trabalhos.

E pela informação que estes dois cavaleiros davam dos ares, sítio e fresquidão da terra, e por comprazer ao Infante, se moveram muitos e ofereceram a ele com propósito de a povoar, antre os quais foi uma pessoa notável, chamado Bertolameu Perestrelo, que era fidalgo da casa do Infante Dom João, seu irmão, para a qual ida mandou armar três navios, um dos quais deu a Bertolameu Perestrelo, e os outros dois a João Gonçalves e a Tristão Vaz, primeiros descobridores. E antre as sementes e plantas e outras coisas, que levavam, era uma coelha, que Bertolameu Perestrelo levava prenhe, metida em uma gaiola, que pelo mar acertou de parir e, depois de chegados à ilha, e solta a coelha com seu fruto, em breve tempo multiplicou tanto que não semeavam ou prantavam coisa que logo não fosse roída por espaço de dois anos que ali estiveram, o que foi causa que, importunado, Bertolameu Perestrelo se tornou para o regno.

João Gonçalves e Tristão Vaz, como tiveram melhor estrela que o Perestrelo, partido ele, determinaram de ir ver se era terra uma grande sombra que lhe fazia a ilha a que ora chamamos da Madeira e, vendo o mar para isso disposto, passaram-se a ela em dois barcos que fizeram, a qual chamaram da Madeira por causa do grande e espesso arvoredo de que era coberta.

O Infante, depois que estes dois capitães vieram ao Regno com a nova do novo descobrimento desta ilha, por consentimento de el-Rei Dom João, seu pai, a repartiu em duas capitanias: a João Gonçalves deu a que chamamos a do Funchal, onde está a cidade nomeada deste lugar, e a Tristão Vaz deu a outra, onde está a vila de Machico; e começaram ambos de povoar a ilha na era de 1420. E a ilha do Porto Santo deu o Infante a Bertolameu Perestreio.

E o mesmo João de Barros diz que Gomes Eenes (sic) de Zurara, cronista destes regnos, em soma, conta que João Gonçalves e Tristão Vaz, ambos descobriram a ilha da Madeira. E (como conta o capitão António Galvão) outros dizem que, vendo um castelhano os desejos que o Infante tinha de descobrir novo mundo, lhe dera conta como eles acharam a ilha do Porto Santo, parece ser quando foram descobrir as Canárias ou fazendo outra viagem, e, por ser cousa pequena, não faziam dela conta; que foi causa de mandar lá o Infante Bertolameu

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Segundo 10

Perestrelo (aos quais a história da ilha da Madeira chama Palestrelo e Zargo e Tristão Vaz Teixeira) e, pelos sinais e derrotas que o castelhano dera do Porto Santo, foram ter a ele, e, depois de ali estarem dois anos, no de 1420 se passaram à ilha da Madeira, onde acharam como Machim (depois dos Fenicianos), ali estivera no lugar que dele, depois (como já disse), chamaram Machico.

Outros dizem que no ano de 1420 João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz, de casa do Infante Dom Henrique, foram de Lagos, onde o Infante estava, em um navio saltear as Canárias e a ilha dos Lobos, e da tornada, dando tormenta neles, foram ter à ilha do Porto Santo, o qual nome lhe eles puseram pela tormenta em que se viram, de que nela escaparam, onde estiveram alguns dias, e, tomando mostras da terra, se tornaram a Lagos, onde o Infante estava, e lhe deram relação da ilha, de que deu o Infante a capitania a Bertolameu Perestrelo, fidalgo da casa do Infante Dom João, seu irmão. E que logo no seguinte ano de 1421, por mandado do dito Infante Dom Henrique, foram os mesmos João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz e Bertolameu Perestrelo à dita ilha do Porto Santo, onde estiveram dois anos, e cada ano ia a ela navio de Lagos com mantimentos para eles, e por se enfadar Bertolameu Perestrelo de estar ali, pola (sic) muita criação dos coelhos, que multiplicaram sem conto de uma coelha, que trouxera, que pariu no mar, danar quanto na terra se semeava, se tornou no navio, que cada ano vinha de Lagos, ter com eles, ficando João Gonçalves e Tristão Vaz na dita ilha, que, então, era toda coberta de dragoeiros e zimbros e outras árvores até o mar.

E por verem dali sobre a ilha da Madeira sempre muita névoa e vulcão, sem nunca se desfazer nem mudar, no ano de 1424 fizeram duas barcas grandes e, metendo-se nelas com os homens que consigo tinham, foram ter detrás da ilha da Madeira, da banda do norte, à ponta de Tristão, o qual nome lhe puseram por amor de Tristão Vaz, que ficou ali, indo João Gonçalves em uma barca por derredor da ilha, pela ponta do Zargo, e foi ter a Câmara de Lobos, donde tomou seu apelido, e dali se tornou à outra ponta, onde ficara Tristão Vaz, da qual se foram ambos nas barcas até à ponta de São Lourenço, e dela até a baía e porto de Machico, e desembarcaram onde agora se chama o Desembarcadouro, ou, segundo outros, o Embarcadouro, onde acharam uma choupana derribada, e dali foram onde agora está a igreja de Cristo na vila de Machico, onde acharam uma cruz em uma árvore com letras que diziam: «Aqui chegou Machin, ingrês (38), com tormenta; e aqui jaz enterrada uma mulher, que com ele vinha». E, tanto que eles isto viram, se tornaram para a ilha do Porto Santo, e levaram as mostras da ilha da Madeira no navio que veio de Lagos o dito ano, indo-se nele para Lagos, onde o Infante estava, a quem mostraram o que levavam da dita ilha, pedindo-lhe a capitania.

O dito Infante, vendo as mostras e relação que da ilha lhe eles deram, lhe pôs o nome que agora tem da ilha da Madeira e partiu a capitania dela antre eles, como ao presente está, dando (segundo alguns dizem) a Tristão Vaz, por ser mais velho, a capitania de Machico, e a João Gonçalves a capitania do Funchal, e, segundo outros, fazendo capitão do Funchal a João Gonçalves Zargo (sic), por ser mais velho, pela qual razão também o havia dantes mandado por capitão, em cuja companhia ia Tristão Vaz, quando acharam as ditas duas ilhas. E dizem mais alguns antigos que no ano de 1425, no mês de Maio, foi Tristão Vaz com sua mulher ter à ilha da Madeira.

A escritura, que têm os herdeiros de João Gonçalves, diz que ele foi o principal neste feitio; e, nomeando Tristão Vaz por Tristão da Ilha, como el-Rei e o Infante em suas provisões e doações o nomeiam, como pessoa menos principal e não homem de tanta idade, nem qualidade, como João Gonçalves, somente se diz que era chegado a ele por amizade e companhia e, como homem mancebo e desta conta, sempre era nomeado por Tristão, como se relata mais copiosamente na mesma história e informação dos ilustres capitães da ilha da Madeira, que de pena anda escrita, e eu a alcancei ver por meio do muito reverendo e curioso Hierónimo Dias Leite, cónego na Sé da cidade do Funchal, que a coligiu e compôs. E para confirmação disto, conforme ao que nela li, e, por outra parte, ouvi a homens antigos, honrados e dignos de fé, desta ilha de São Miguel e de fora dela, contarei logo mais particularmente, ainda que com brevidade, o descobrimento destas duas ilhas do Porto Santo e da Madeira e de outras suas vizinhas, e a vida e alguns honrosos feitos dos ilustres capitães de todas elas, deixando as mais particularidades (pois mais não pude alcançar saber) para quem delas quiser escrever particularmente, porque são tão grandes e altivas, honrosas e ricas as coisas desta ilha da Madeira e das outras, que digo, que estão a sua sombra, e de seus capitães e moradores, que, além de requererem outro melhor e mais alto estilo que o meu, que é baixo e

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Segundo 11

estéril e tem pequenos e fracos ombros para se atrever a levar tão grande cárrega, pode quem as inquirir e alcançar saber todas fazer e compor um mui grande, curioso e gostoso volume.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Terceiro 12

CAPÍTULO TERCEIRO

DO PRINCÍPIO E FUNDAMENTO, GENEALOGIA E FIDALGUIA DO PRIMEIRO CAPITÃO DO FUNCHAL DA ILHA DA MADEIRA JOÃO GONÇALVES, O ZARGO (SIC), PRIMEIRO DO

NOME, E DE SEUS DESCENDENTES

Como todos os homens procederam de um pai e mãe, Adão e Eva, que são um só princípio e não dois pais e mães, claro está que nenhum nasceu fidalgo, nem com este privilégio de fidalguia, senão depois que suas obras, ou de seus antepassados, lho deram.

Como as obras de Abel o fizeram santo e accepto a Deus, e as de Caim, filho do mesmo pai e mãe, o tornaram rústico e condenado, pois como rústico viveu dali por diante (havendo morto a seu irmão Abel), antre os matos e feros animais abatido e fugitivo sobre a face da Terra, onde depois o matou com uma frecha, ou seta, ou (como cá dizemos) à besta, o Patriarca Lamech, cuidando ser besta, tendo-o por bruto animal do campo em que antre os brutos andava. Digo isto para mostrar que a fidalguia teve princípio ou nas obras de algum, que com elas lho deu, ou na acceptação dos Reis, que com ela lho deram. E pois isto é assim que toda a fidalguia e nobreza teve princípio em algum chefe que fez o alicesse (sic) e pôs no fundamento a primeira pedra dela.

A ilustre progénie dos ilustres capitães do Funchal da ilha da Madeira e desta ilha de São Miguel, que deles descendem, teve um dos mais altos e honrosos princípios que se podem contar, se é verdade (como por verdade se tem) o que dele se conta, como logo direi.

Segundo alguns nossos cronistas deixaram escrito, depois da Encarnação de Nosso Deus e Senhor mil e quatrocentos e quinze ou dezasseis anos, no mês de Julho, partiu el-Rei de Portugal, Dom João, de Boa Memória, primeiro de nome, da cidade de Lisboa, e o príncipe Dom Duarte e os Infantes Dom Pedro e Dom Henrique, seus filhos, e outros senhores e nobres do regno, para África, e uma quarta-feira, ao meio-dia, véspera de Nossa Senhora de Agosto, da mesma era, per força de armas tomaram aos mouros a grã cidade de Cepta (39), que está da parte do Norte em trinta e cinco até seis graus de altura, a qual cidade depois foi cercada de mouros e o Infante Dom Henrique a foi descercar.

E, como a homens antigos e nobres desta ilha de São Miguel e a outros de fora dela ouvi, ou no cerco dela, ou dantes no cerco de Tânger, onde se acharam João Gonçalves, o Zargo, e Tristão Vaz, e o fizeram tão honradamente, que o Infante os armou cavaleiros, ou seja aí, ou em outra parte, em algum dos lugares de África, estando lá um capitão de el-Rei, aconteceu que, correndo mouros às tranqueiras, dantre eles saiu um que a cavalo desafiou aos portugueses, dizendo que a um por um queria mostrar a valia de seu esforço e, se antre eles havia esforçados, que não encobrissem a sua, ao qual (antre muitos que dos nossos para acceptar o desafio se ofereceram) saiu, com licença do capitão, um, esforçado, e de nome antre os cristãos, a quem na briga a fortuna tão mal favoreceu, que o mouro com morte dele ficou senhor do campo; logo saiu outro de não menos valia, a quem a sorte disse de maneira que fez companhia ao primeiro; após este, outro, e não sei se mais, que tiveram o mesmo fim.

Vendo o capitão quão mal lhe sucederam as coisas naquele dia, estava tão ocupado do pesar pela perda dos seus cavaleiros, que no campo via jazer, sem vida, vencidos, que com palavras e meneios se deixava bem entender, respondendo aos que se ofereciam para vingar a morte dos mortos que nem lhe falassem, nem lhe pedissem licença, pois bastava bem a desaventura que todos presentes viam e não provar outra maior, nem ver o fim à Fortuna. Estando as coisas neste estado, se veio ao capitão um soldado infante, até então sem nenhum nome (dantes nem depois lho pude saber, ainda que ele o ganhou muito grande), e lhe pediu que o deixasse sair ao mouro, que ele com favor de Deus esperava vencê-lo e entregá-lo cativo, respondendo-lhe o capitão que se deixasse de tal propósito, pois o que tantos e tão

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Terceiro 13

animosos cavaleiros não puderam fazer, como ele, sem experiência de cavalo, esperava sair vencedor? Disse o soldado que, já que na demanda eram perdidos tantos e tão abalisados cavaleiros e de tanto nome ante ele, capitão, e o Rei, pouco se aventurava em ele também se perder, pelo que lhe pedia lhe não negasse licença; o capitão, entendendo esta razão e réplica e o grande ânimo do soldado com que isto lhe requeria e, vendo nele mostras para acabar qualquer feito honroso, de parecer doutros cavaleiros lhe concedeu o que pedia.

E logo o soldado pediu um cavalo de um cavaleiro, que para o feito escolheu, e, cavalgando nele com a adarga embraçada e na outra mão um pedaço de pau, caminhou para o mouro que, em o vendo, escaramuçando, se veio mui soberbo a ele e, todas as vezes que queria ferir ao cristão, ele não fazia mais que com o pau desviar de si a lança do mouro, o que fez até, tanto que viu tempo e conjunção, que, remetendo depressa com o cavalo ao mouro, lhe deu em descoberto tão grande pancada, que, atordoado, o tomou pelos cabelos e preso o entregou ao capitão, pelo qual feito foi daí por diante conhecido do Rei. Deste valoroso soldado dizem que procedeu João Gonçalves, o Zargo, seu filho, ou neto. E outros dizem que este feito em armas fez o mesmo João Gonçalves e por o mouro, que ele, ou seu pai ou avô, matou, se chamar Zarco, lhe ficou a eles, ou a ele, o mesmo apelido e nome.

A informação que tenho da ilha da Madeira conta este princípio de outra maneira, dizendo que este primeiro capitão do Funchal foi chamado Zarco, alcunha imposta por honra de sua cavalaria, porque, no tempo que os Infantes Dom Henrique e Dom Fernando, filhos de el-Rei Dom João, primeiro do nome, foram cercar Tânger com tenção de a tomar e sujeitar à coroa destes regnos de Portugal, foi este capitão João Gonçalves com eles por ser cavaleiro da casa do dito Infante Dom Henrique.

Estando pois os Infantes neste cerco, vieram sobre eles el-Rei de Fez, e el-Rei de Beles, e el-Rei de Marrocos, e Luzaraque e cinco Enxouvios com todo seu poder, em que traziam sessenta mil de cavalo e cem mil homens de pé, os quais, chegados, cercaram logo os Infantes, pelo que lhe foi necessário fazer um palanque, onde se defenderam com padecerem muitas afrontas e fortes combates, nos quais se mostrou tão cavaleiro o Zargo, que deu mostras de seu grande esforço, pelejando valorosamente diante dos Infantes, que por essa causa o estimavam muito. E neste lugar e combate recebeu uma ferida em um dos olhos, de um virotão, que dos imigos lhe tiraram, com que lhe quebraram um olho. E como naquele tempo chamavam zargo a quem não tinha mais que um olho, ficou-lhe o nome por insígnia e honra de sua cavalaria, porque nela deu tais mostras e se sinalou por tão cavaleiro, que não foi pouca ajuda seu esforço e indústria na guerra, para o Infante Dom Henrique se salvar e recolher ao mar a tempo que já o Infante Dom Fernando ficava cativo por treição (sic) e manha, como na Crónica de el-Rei Dom Duarte copiosamente se relata. Assim que com a indústria e esforço deste cavaleiro, João Gonçalves Zargo, se recolheu e embarcou o Infante Dom Henrique nos navios, que no mar estavam para esse efeito, ficando sempre o Zargo em terra recolhendo a gente que pôde e sustentando esforçadamente o ímpeto e peso dos mouros, que sobre ele vinham por entrar o Infante; e, depois de recolhidos, com perda de muitos portugueses, João Gonçalves se recolheu bem ferido, com trabalho e perigo, sendo os mouros infinitos.

Por este grande serviço, que este magnânimo João Gonçalves Zargo fez ao Infante, e outros, que tinha feitos a el-Rei, o estimavam muito, e lhe dava el-Rei cargos de substância, em que sempre se mostrava mui cavaleiro; e por essa razão o encarregou, havendo guerras com Castela, de capitão da costa do Algarve, como logo declararei, onde serviu a el-Rei muito bem, tendo segura a costa de toda a moléstia dos castelhanos.

Este princípio é mui certo, e os outros, que antes deste tenho dito, bem o podem também ser, e todos serem verdadeiros por acontecerem uns ante os outros, e em diversos tempos e pessoas, como são pai e filho, ou neto. E ora seja de um modo destes, ou de qualquer deles, ou todos, cada um deles, por si, foi um dos mais honrosos e afamados que antre muitas e grandes linhagens se apregoa, pois qualquer destes feitos é tão grande, que em poucas gerações e prosápias se pode achar outro princípio maior e de mais nome e fama.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quarto 14

CAPÍTULO QUARTO

DA HISTÓRlA MAIS VERDADEIRA E PARTICULAR COMO O INGRÊS MACHIM ACHOU A ILHA DA MADEIRA

Ainda que já, Senhora, atrás tenho contado brevemente o que se conta do ingrês Machim que, desgarrado com tormenta, foi ter à ilha da Madeira, que ainda nunca fora descoberta, tudo foi relatado conforme ao que escreve o notável capitão António Galvão em um tratado que fez de novos descobrimentos.

Mas agora que vos quero contar mais particularidades do descobrimento da mesma ilha, como então prometi, direi também mais verdadeira e particularmente, segundo outros que melhor a inquiriram e examinaram da maneira que aconteceu, esta saudosa história cheia de muitas saudades (40).

No tempo de el-Rei Dom Duarte de Inglaterra houve um nobre ingrês, afamado cavaleiro, a que chamavam de alcunha o Machim, o qual, por ter altos pensamentos como também honrosos feitos, andava de amores com uma dama de alta linhagem, a que chamavam Ana de Harfet. Prosseguindo ele com extremos seus amores, veio ela também amar muito a quem a amava, porque, enfim, o amor, se não for com amor, não tem igual paga, e como ele (como as coisas odoríferas) se não pode encobrir onde está encerrado, com mostras e suspeitas que de si deram, foram descobertos os amantes, por se quererem ambos muito. E (ainda que, às vezes, a proibição de uma coisa é causa de maior desejo dela e seja isca de maior incêndio querer alguém apagar o fogo amoroso, pois nossa natureza mais se incita e aspira ao que mais lhe é vedado) como os senhores de alguns campos regadios, no tempo das grandes enchentes, fazem à água grandes valos no princípio donde vem, para as lançar para outra diferente parte, e os médicos, para curar a pontada de um lado, mandam sangrar do contrairo, assim os parentes dela, cuidando deitar água no fogo e não alcatrão, que arde nela, como senhores do agro e médicos de sua amorosa enfermidade, para divertir a corrente do amor que a alagava e apartar o sangue da contraira pontada, como fazendo contrairos valados e sangrias, com aprazimento de el-Rei a casaram em Bristol com um homem de alto estado.

Machim foi disto mui lastimado e ela muito descontente, não tendo nenhum meio a paixão e dor destes extremos com que ambos se viram, mostrando com lágrimas ardentes a lástima deste casamento, acordando com grande segredo fugirem para França, com quem Inglaterra, então, tinha grandes guerras. E falando-se Machim com alguns agravados e parentes, a que descobriu seu peito e todo seu talento e tesouro (que tinha encerrado onde estava seu coração e amor), deram-se as fés e juraram de irem todos com ele para França. E, para melhor porem em effecto (sic) esta partida, foram secretamente poucos e poucos ter a Bristol, onde estavam certas naus de mercadores carregadas para Espanha, determinados meter-se em uma delas e por força fazendo-se à vela, passarem-se a França, fazendo saber com todo secreto este seu acordo a Ana de Harfet para vir ter com eles e fugirem.

E ordenado o dia que as naus estivessem despejadas da gente principal, um dia de festa, sendo o mestre e mercadores em terra, estando Ana de Harfet avisada, cavalgou o mais secretamente que pôde em um palafrém e, levando consigo um crucifixo e todas suas jóias de preço, deu consigo no lugar ordenado, onde a estavam já esperando com um batel. Meteu-se no batel com seu Machim, que com seus criados e amigos a recolheram, e levaram-na a uma das naus que tinham prestes, a qual fizeram fazer logo à vela e, cortadas as amarras, recolheram o batel.

Acertou de ventar uma tormenta grande, revolvendo as ondas como invejosas daquele desenvolto amor, com que logo se afastaram da terra, e como anoiteceu, havendo conselho que poderiam sair as outras naus atrás ela, que haviam de entender que passavam a França,

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quarto 15

desviaram-se desse caminho, esperando de ir tomar as derradeiras partes de França em Gasconha, ou Espanha. E, como o piloto e mestre ficaram em terra e os que iam na nau não sabiam tomar a terra, nem a altura dela, achando vento próspero, correram para onde os levava a ventura com todas as velas, por não os alcançarem, e em poucos dias se acharam em uma ponta de uma terra brava, toda coberta de arvoredo até o mar, de que ficaram espantados e confusos; logo detrás da ponta viram uma enseada grande e, metendo-se nela, deitaram âncora, lançaram batel fora, foram ver que terra era e, não podendo sair nela com a quebrança do mar, foram-se a uma rocha, que entrava no mar da banda do Nascente, onde saíram bem à vontade, e dali se foram à praia, antre o arvoredo e o mar, até darem em uma formosa ribeira de boa água que, por antre o arvoredo, saía ao mar, não achando animal nem bicho nenhum. Porém, acharam muitas aves e viram o arvoredo tão grosso, e espesso, que os pôs em espanto. Antre outras árvores acharam junto do mar uma muito grande e grossa, que, da antiguidade, tinha um oco no pé, onde entravam como em uma casa; tornando com esta nova à nau, o Machim e companheiros, entendendo que era terra nova, puseram em vontade de a pedirem aos reis de Espanha.

Ana de Harfet, como ia mareada e enjoada do mar, rogou ao Machim que a levasse a terra a ver aquela ribeira e desmarear-se alguns dias do enjoo. Fê-lo ele assim; mandou levar roupa e mantimento a terra para estar ali alguns dias de vagar, enquanto o tempo lho desse, levando consigo alguns companheiros para estar em sua companhia na terra, e outros iam e vinham à nau. Mas, como a fortuna corre com alguém não lhe dá vagar de repouso, a terceira noite, depois que chegaram, levantou-se um vento tão forte sobre a terra, que a nau se desamarrou; os que dentro estavam deram à vela, sem poderem parar, e foram-se por onde o vento os levava e em poucos dias, (dizem que) foram dar à costa de Berbéria, onde foram logo cativos dos mouros e levados a Marrocos.

Quando amanheceu e os que ficaram em terra não viram a nau, ficaram mui tristes, dando-se logo por perdidos e desesperados de mais poderem dali sair. A dama de Machim, de se ver ficar ali, pasmou e nunca mais falou, e daí a três dias morreu. Machim, pelo muito que lhe queria, de paixão arrebentava e, vendo-se desterrado de sua pátria e seu amor morto na alheia, que era todo o conforto de seu desterro, não lhe lembravam já saudades da terra; só as tinha insofríveis da sua Ana de Harfet, que diante de si tão prestes via feita terra; com estas, com que ficava, e com ardentes suspiros e lágrimas, com que a acompanhava, ali, onde estavam agasalhados, a mandou enterrar e pôs-lhe uma cruz de pau à cabeceira e uma mesa ou campaã (sic) de pedra, com o seu crucifixo sobre ela, e aos pés do crucifixo pôs um letreiro em latim, em que contava todo o seu tristíssimo sucesso e o que naquela viagem tão sem ventura lhe tinha acontecido, pedindo que, se em algum tempo ali viessem ter cristãos, fizessem naquele lugar uma igreja da invocação de Cristo.

Acabado isto, pediu aos companheiros que, com a roupa que tinham e aves que tomassem, se fossem aonde a ventura os guiasse, pois a ele não tivera de lhe viver sua amiga, que queria ali ficar e morrer onde matara Ana de Harfet, só, com sua soidade, acompanhando seu corpo morto, pois ela o acompanhara vivendo; os companheiros movidos de piedade lhe disseram todos que o não haviam de deixar e que ali haviam de morrer e ficar com ele. O Machim, que muito lhe agradeceu aquele amor, e mais lhe agradecera sua crueldade, se só o deixaram, de dor e paixão da morte de sua amiga não durou mais que cinco dias.

Os companheiros, que não com pouca saudade de sua companhia o enterraram junto da sua Ana de Harfet, puseram-lhe outra cruz à cabeceira e, deixando o mesmo crucifixo, como Machim o pusera, e estas duas sepulturas naquela terra erma por tristíssimo espectáculo saudoso e amoroso, meteram-se no batel em que vieram da nau (posto que outros querem que o fizessem do tronco da árvore, que grossa era e capaz de muitas pessoas) e, indo ter à costa de Berbéria, foram lá cativos dos mouros e levados a Marrocos, onde já estavam também cativos os outros companheiros da nau, tão sem prazer e sem ventura.

Estes breves, momentâneos e curtos gostos têm as grandes e compridas esperanças do mundo, cujo costume, condição e natureza sempre foi e será descarregar com mui pouco ou nada a quem promete muito.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinto 16

CAPÍTULO QUINTO

COMO JOÃO GONÇALVES ZARGO, ANDANDO POR CAPITÃO DA COSTA DO ALGARVE NO TEMPO DAS GUERRAS ANTRE PORTUGAL E CASTELA, TOMOU UM NAVIO DE CASTELHANOS, QUE VINHAM RESGATADOS DE MARROCOS, E, ANTRE

ELES, UM PILOTO QUE LÁ OUVIRA AOS COMPANHEIROS DA NAU DE MACHIM COMO HAVIAM ACHADO A ILHA DA MADEIRA, E LEVANDO-0 ADIANTE DE EL-REI E DO INFANTE DOM HENRIOUE, ALEGRES ELES COM ESTA NOVA OS MANDARAM

DESCOBRIR A MESMA ILHA, CUJA SOMBRA VIRAM E TEMERAM DO PORTO SANTO, ONDE CHEGARAM

Ao tempo que a nau, que trouxe Machim à ilha da Madeira, desgarrou da dita ilha e foi ter a Berbéria, onde foram cativos com os outros que depois vieram da mesma companhia (como tenho dito), havia em Marrocos muitos cativos; antre os quais estava um castelhano per nome João Damores, homem do mar e bom piloto, mui entendido na arte de navegar, o qual, como lá viu estes ingreses que da ilha vieram desgarrados, quis saber deles que ventura os trouxera a Berbéria e os chegara àquele estado de cativeiro, havendo grande dó deles (porque ninguém o pode ter tão verdadeiro como aquele que do mesmo mal é ferido), e (porque até os tristes sentem algum alívio em contar sua tristeza) eles lhe contaram, a João Damores, os amores de Machim miudamente, e como a fortuna o aportara a uma ilha nova e o que passaram nela na morte do Machim e de sua amiga, e como, desesperados de poderem viver, cometeram o mar e a ventura, que ali os aportou tanto sem ventura.

O João Damores era homem esperto nas coisas do mar e sobretudo curioso, a qual curiosidade das coisas não se acha senão nos que mais delas entendem, porque quem não entende nada, assim como não duvida nada, não procura saber o que não duvida e desta maneira fica ignorante, por não se saber maravilhar e duvidar das coisas que vê, da qual admiração e dúvida nasce a inquirição delas, e da inquirição a experiência, e da experiência a memória, e das muitas memórias a ciência.

E, como João Damores, sendo curioso, tinha amor à ciência ou arte que aprendera, perguntou a estes companheiros de Machim de que porto de Inglaterra partiram, e que tempo trouxeram, e que derrota levaram, e em quantos dias vieram ter àquela terra nova, e, quando a nau desamarrou, que caminho trouxera, e em quantos dias vieram ter à costa de Berbéria; e sabido tudo miudamente, segundo era hábil e de bom engenho, tomou tudo na memória e, pouco mais ou menos, entendeu onde esta terra podia estar, pelo que aconteceu aos ingreses que de tudo o instruíram.

Neste tempo faleceu em Castela o Mestre de Santiago, pessoa de grande estado, e deixou em seu testamento que por sua alma tirassem certo número de cativos de África. E, antre eles, tiraram o piloto João Damores e, como no mesmo tempo havia guerra entre Portugal e Castela, andava por capitão de uma armada João Gonçalves Zargo guardando a costa do Algarve, porque faziam nela muito dano os biscainhos. E, andando assim na costa de Andaluzia, houve vista do navio em que vinha de África João Damores com outros resgatados, o qual alcançou e tomou.

O piloto João Damores, como se viu em poder de cristãos, foi-se logo ao capitão e contou-lhe tudo o que tinha passado e sabido dos ingreses e da terra nova, que acharam, que podia pertencer a el-Rei de Portugal. O capitão ficou mui alegre com o que lhe ouviu e lançou logo mão deste piloto, trazendo-o consigo e largando o navio dos cativos, que se fosse embora; e, fazendo volta para o Algarve, trouxe o piloto ao Infante Dom Henrique, que estava neste tempo em Sagres, no cabo de São Vicente, com determinação de mandar descobrir a costa de África do cabo Bojador por diante, que com a vinda do piloto foi mui alegre e, muito mais, pelas novas que lhe deu da terra nova, mandando logo a João Gonçalves que fosse com

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinto 17

o piloto a Lisboa oferecê-lo a el-Rei, seu pai, e dar-lhe conta do que passava; e proveu a armada de outro capitão.

João Gonçalves fez logo seu caminho a Lisboa e pôs por obra o que o Infante lhe mandava, levando em sua companhia, para o efeito que pretendia, certos homens da armada, que com ele andavam, de que ele muito fiava para semelhantes empresas. Antre os quais foi João Lourenço, e Francisco do Carvalhal, e Rui Pais, e João Afonso, homens para qualquer feito de guerra, assim no mar como na terra, e levou mais alguns homens de Lagos, como foram António Gago, Lourenço Gomes e alguns mancebos marinheiros que andavam na armada.

El-Rei, tanto que viu e ouviu a João Gonçalves Zargo, houve muito prazer com a nova que ele lhe deu da terra nova e fez-lhe muita honra. E, vindo neste tempo a Lisboa o Infante Dom Henrique ver-se com el-Rei para este descobrimento da ilha nova, ordenaram que o mesmo João Gonçalves a fosse descobrir com o piloto que tomara, pois estava informado pelos ingreses onde demorava. E, mandando-lhe aparelhar um navio de armada e um barinel, partiram de Restelo na entrada de Junho da era do nascimento de Cristo Nosso Senhor de mil e quatrocentos e dezanove (41), em que logo foram demandar a ilha do Porto Santo, que está em trinta e dois graus, que havia dois anos que era descoberta por uns navios de castelhanos que iam para as ilhas de Canária, as quais havia pouco tempo que (como já disse) uns franceses tinham achadas; e, por isso, o piloto tomou esta derrota.

Havia fama antre os navegantes e homens do mar (como vós, Senhora, melhor sabereis) que desta ilha do Porto Santo aparecia um negrume mui grande e espantoso aos que o viam de longe, quanto mais a quem o via de perto, que nunca se desfazia, e, como coisa nunca vista no mundo (e os homens não sabiam nada do mar largo, porque navegavam ao longo da costa), era tão temido, por a sua negra e medonha sombra, que se afastavam dele e fabulavam grandes coisas da sua obscuridão, dizendo uns que era do abismo que estava no mar, outros que era boca do Inferno, e que aquele negrume era o fumo que de lá saía, porque parecia fumo negro de fornalha. E por esta fama contavam tantos espantos e armavam tantos medos nesta paragem, que os mareantes se afastavam dela, e os que isto viam muito mais.

Partindo de Lisboa João Gonçalves, o Zargo, com sua companhia, e com próspero vento, com a fama do negrume que aparecia nesta paragem, não correndo de noite senão aquilo que de dia podia alcançar com os olhos (porque assim o mandava o piloto a quem o capitão em semelhantes coisas ouvia, seguindo seu parecer), no mesmo mês de Junho em que partiram, chegando em poucos dias ao Porto Santo (nome já posto a esta ilha pelos castelhanos por causa de uma tormenta que passaram e, neste porto, se salvaram), onde, lançando âncora, antes de sair em terra viram logo do mar aquele negrume, de que tantos espantos se contavam pela fama dos medos que dele diziam. Tomando conselho sobre o que fariam, pareceu bem ao capitão e ao piloto saírem em terra no Porto Santo e esperarem ali aquele quarteirão da lua, a ver se se mudava ou desfazia aquela sombra que viam; e assim se detiveram alguns dias em conselhos, sem nunca se desfazer aquela balsa obscura, pelo que cada vez mais a temiam e davam crédito ao que dela fabulavam os mareantes, porque era muito medonha de longe.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Sexto 18

CAPÍTULO SEXTO

COMO O VALOROSO CAPITÃO JOÃO GONÇALVES ZARGO, CONTRA O PARECER DE TODOS OS QUE CONSIGO LEVAVA, SOMENTE COM O DO PILOTO, COMETEU O HORRENDO NEGRUME QUE VIA E, ACHANDO SER ILHA, SAIU COM OS SEUS EM

TERRA E MANDOU DIZER MISSA NELA SOBRE A SEPULTURA DE MACHIM; E DO QUE MAIS FEZ ATÉ SE TORNAR AOS NAVIOS

Praticando o capitão João Gonçalves Zargo muitas vezes com os do navio que conselho teriam sobre o cometimento daquele negrume que aparecia, não porque ele duvidasse de o cometer, senão pedindo o parecer de todos, por não parecer voluntário e de temerário atrevimento e isento de querer tomar conselho, dizia o piloto que, pela informação que lhe deram os ingreses, que a terra nova, que vinham buscar, não devia de estar mui longe e que (como os ingreses lhe afirmaram), pelo muito alto e basto arvoredo de que lhe disseram que a terra era cheia, sem nunca se enxugar da humidade, com que estava toda coberta de um nevoeiro muito negro, lhe parecia que deviam ir demandar aquele negrume e ver o que aquilo podia ser; mas todos eram contra este parecer, pelo medo que tinham concebido da fama desta obscuridão, e juntamente requeriam que não fossem cometer uma desaventura tão certa como viam, senão o capitão que, como era de valoroso coração, determinou de ir provar aquela ventura, dizendo-o assim a todos; e, pondo-o por obra, um domingo ante manhã, três horas antes de sair o Sol, mandou fazer os navios à vela para lhe ficar dia, em que pudesse ver o que aquilo era.

Isto determinado, encomendando-se a Deus, correram com bom tempo a cometer o negrume que de cada vez mais parecia maior e mais espantoso e alto e de cor medonha e negra, e, sendo já perto de meio-dia, foram ter quase aferrados com ele, onde deu um pavor a todos, em geral, gritando, porque ouviam diante de si arrebentar o mar com uns roncos espantosos, sem ver com os olhos, nem atinar bem com o juízo onde arrebentava, por o nevoeiro, que cobria a terra, chegar até o mar, o que lhe pôs muito espanto e mor temor do que dantes tinham, ouvindo assim arrebentar o mar espantosamente, sem verem em que parte. Bradaram, então, todos juntamente que voltassem e não se fossem sorver assim parvoamente naquele abismo (que por tal o julgavam); e foram arribando ao longo da névoa, não ficando nenhum que não fosse de parecer que virassem, senão o capitão e o piloto, que diziam de que haviam de voltar, pois não viam causa disso.

Contudo, mandou o capitão lançar os batéis fora para revocar (42) os navios e chegarem mais perto, se o vento acalmasse, fazendo entrar em um barco António Gago, homem nobre, dos Gagos do Algarve, e, em outro, seu amigo e companheiro Gonçalo Aires (43) por confiar muito deles que não deixariam; e mandou correr os navios ao longo do nevoeiro, porque, já então, sentiam que arrebentava muito o mar da banda do Nascente, sem verem mais que névoa.

Indo, assim, escorrendo a névoa por aquela banda do Nascente, não corria o nevoeiro tão longe nem tão obscuro; porém, sempre o mar roncava espantosamente; e, tendo pouco espaço andado, viram por antre a névoa uns picos negros, sem saberem determinar o que podia ser, mas, passando mais avante, quase escorrendo ela (44), viram o mar mais claro e, por antre ela (45), uma ponta de terra que, pelo medo com que iam, não divisavam ser terra; antes do espanto do que viam (porque o navio em que ia o capitão se chamava São Lourenço) bradou o capitão em alta voz: «Ó São Lourenço, chega», pelo que ficou o nome à ponta que se chama agora de São Lourenço; e com este ânimo, dobrando aquela ponta para a banda do Sul, viram uma terra coberta de nevoeiro, porque daquela parte do Sul não descia a névoa do cume da serra para baixo.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Sexto 19

Conhecendo eles que era terra, houveram todos muito prazer e deram uns a outros grandes gritos com alegria, zombando do medo passado e do espanto que tinham, sendo aquilo ilha e terra tão formosa. Viram logo uma praia grande e espaçosa, e o piloto, pelos sinais, conheceu que era a terra dos ingreses; foram, então, com muitas folias e cantares lançar âncora na praia e, por ser já muito tarde, não saíram aquele dia em terra, passando no mar a noite, com muito contentamento, que, da sua parte, lha fazia parecer pequena, mas o desejo de sair ao outro dia em terra (ainda que era no verão) lha fez muito grande.

Tanto que amanheceu, ao outro dia, mandou o capitão um batel a terra, de que deu cargo a Rui Pais que fosse ver a disposição e sítio dela, e lhe trouxesse recado do que achasse, o qual, indo, não pôde desembarcar na praia por causa do arvoredo, que chegava ao mar, e paus que ele e a ribeira ali tinham juntos.

Daqui foi para a banda do Nascente desembarcar na rocha, onde estão pedras e baixos, que se pode facilmente desembarcar neles por aparcelado que ande o mar, porque está resguardado com a rocha, e este lugar se chama hoje o Desembarcadouro, onde também desembarcaram os de Machim; postos em terra, acharam-na muito graciosa e saudosa de grandes arvoredos, e, a lugares, prados, o que tudo se via também dos navios. Foi Rui Pais com os da companhia per antre o arvoredo e o mar e, achando lenha cortada e rasto de gente, foram por ele dar no tronco do pau grande, onde Machim estivera, e acharam a mesa e o crucifixo, que os ingreses deixaram, e as sepulturas com as cruzes à cabeceira, do que ficaram espantados, posto que tudo tinham já ouvido ao seu piloto.

Tornados aos navios com este recado, deram relação do que viram e acharam na ilha ao capitão, que os recebeu com alegria; o qual, querendo ver com seus olhos o que viram os alheios, determinou sair em terra, o que logo fez acompanhado da gente principal dos navios, levando consigo dois padres, que foram com ele. E, chegados a ela e desembarcados no lugar e sepultura de Machim, depois de ver a terra quão fresca e viçosa era, deu muitas graças a Deus pela mercê que lhe fizera e, pelos padres, mandou benzer água, que andaram espargindo pelo ar e pela terra, como quem desfazia encantamento ou tomava posse, em nome de Deus, daquela terra nova, nunca lavrada, nem conhecida (senão, pouco antes, de Machim) desde o princípio do mundo até àquela hora. E, isto feito, mandou, dentro na árvore e casa que do tronco estava feita, armar um altar sobre a mesa de Machim, onde se disse missa com muita devação (sic) e solenidade, e disseram responso de finados sobre as sepulturas; e esta foi a primeira missa que se disse, dia da Visitação de Santa Isabel, dois dias de Julho do ano acima dito de mil e quatrocentos e dezanove (46), naquela ilha e lugar, onde se depois fundou a igreja de Cristo.

Acabada a missa, o capitão mandou entrar gente por antre o arvoredo e pela ribeira acima, a ver se a terra criava alguns animais ferozes ou bichos peçonhentos, o que eles fizeram; e andaram bom espaço pela terra dentro e correram a ribeira, que fresca e espaçosa era, sem acharem coisa viva, senão aves de diversas maneiras que tomavam às mãos, porque não eram costumadas a ver gente, nem conversação no mundo. O que tudo feito, o capitão se recolheu ao batel com a gente, e mandou meter dentro lenha, água e terra (que era o que o Infante lhe encomendara que lhe levasse de diversas partes da ilha e terra nova, se a achasse), com que se foram para os navios.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Sétimo 20

CAPÍTULO SÉTIMO

COMO O CAPITÃO JOÃO GONÇALVES ZARGO, DEIXANDO OS NAVIOS NO DESEMBARCADOURO, FOI DESCOBRIR A COSTA DA ILHA ATÉ CÂMARA DE LOBOS, DONDE TOMOU SUAS ARMAS, E, VENDO À SAÍDA O CABO DO GIRÃO, SE TORNOU A

DORMIR AOS NAVIOS

Recolhidos aos navios, teve conselho o capitão para descobrir a terra dali para baixo; e assentou-se per parecer do piloto, que deviam de deixar ali os navios e com os barcos descobrir a ilha, por lhe ver muita penedia, dizendo que assim podia ser ao longo da costa; o que parecendo bem ao capitão, logo ao outro dia se meteu nos batéis com os principais da frota, levando mantimentos e todo o necessário.

O capitão ia no batel do navio com o piloto, e do outro deu cargo a Álvaro Afonso; e foram, assim, correndo a costa com brando mar, galherno (sic) tempo e manso vento, em calma a costa toda à beira da terra, e, passada uma ponta que fazia a terra para baixo, ao Ponente, viram, ao pé de uma rocha que entrava no mar, sair dela quatro canos de água que a natureza ali fizera tão formosa, como se fora chafariz feito à mão, onde, tendo o capitão desejo de saber que tal era aquela água, que tão clara parecia, mandou buscar dela e achou-a que era estremada, boa e fria e leve, e daqui levou uma vasilha para o Infante, antre outras coisas que lhe encomendou.

Correndo mais abaixo, sempre apegados com terra, acharam em um fresco vale e ameno prado um ribeiro de água, que vinha sair ao mar com muita frescura; ali fez sair alguns em terra, onde os que saíram acharam outra fonte, que saía debaixo de um grande e antigo e liso seixo, e era tão preciosa e fria, que mandou dela encher outra vasilha para levar ao Infante; e pôs este porto nome (por causa do que nele achou), o porto do Seixo, como hoje se chama.

Indo assim costeando a ilha ao longo do arvoredo, que, em partes, chegava ao mar, passando uma volta que faz a terra, entraram em uma formosa angra, na praia da qual acharam um formoso e deleitoso vale, coberto de arvoredo por sua ordem composto, onde acharam em terra uns cepos velhos derribados do tempo, dos quais mandou o capitão fazer uma cruz, que logo fez arvorar em um alto de uma árvore, dando nome ao lugar Santa Cruz, onde se depois fundou uma nobre vila, a maior, mais rica e melhor povoação de toda a parte de Machico; e é tão nobre em seus moradores, que, a não ser Machico cabeça daquela jurdição, por ser primeiro achada, ela fora cabeceira e a principal de toda aquela capitania, que tão bem assentada está, onde tinha alfândega e oficiais dela.

Passados mais abaixo, em uma (47) parte da terra saíram, por estar tudo cercado de altas rochas e arvoredo, e não viam mais que correntes, ribeiras, fontes e regatos, que, por antre ele, vinham com grande frescura deferir ao mar.

Chegados a uma alta e grande ponta que a terra fazia grossa e alcantilada no mar, acharam nela tantos garajaus, aves do mar, que sem nenhum medo se punham sobre suas cabeças e sobre os remos, que eles tomavam com a mão com que houveram muito prazer e fizeram grande festa e, por esta causa, ficou o nome à ponta do Garajau, que está quatro léguas de Machico para o Ocidente, ou três (como outros dizem); desta ponta descobriram outra abaixo, que seria dali duas léguas, e fazia-se antre estas duas pontas uma formosa e grande enseada de terra mais branda e ares frescos, toda coberta de formoso arvoredo, tão igual, por cima, que parecia feita à mão, sem haver árvore mais alta que outra, e, além de ser muito alegre à vista, vinha beber toda na água, que parecia a Natureza meter todo seu cabedal em perfeiçoar obra tão acabada. Antre este arvoredo igual e espaçoso iam entremeados alguns cedros, tão altos que se divisavam por cima das outras árvores, que eles mui bem conheciam pela experiência que deles atrás tinham, onde acharam muitos.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Sétimo 21

Antes que chegassem a este deleitoso vale, foram correndo a costa, que de altas rochas era, sem acharem lugar onde sair, senão em uma ribeira que bota uma pedra ao mar, em que podem desembarcar como em cais; ali mandou o capitão o seu amigo (48) Gonçalo Aires que saísse em terra nesta ribeira, com certos companheiros, e andassem pela terra algum espaço ver se havia nela alguns animais, ou bichos, ou serpentes e cobras venenosas, e não se afastassem da corrente da água para se saber tornar aos batéis, que no mar deixava. Foi Gonçalo Aires com os companheiros correndo a terra por espaço de três horas, no fim das quais se agastava já o capitão com a tardança deles, senão quando eis que assomavam pela ribeira abaixo, com capelas na cabeça e, enramados, vinham falando (49) com muito prazer que não achavam coisa viva, senão aves; e daqui ficou nome à ribeira de Gonçalo Aires.

Chegados ao formoso vale, que de lisos e alegres seixos era coberto, sem haver outro género de arvoredo, senão muito funcho que cobria o vale até o mar por bom espaço, saíam deste deleitoso vale ao mar três grandes e frescas ribeiras, ainda que não tão soberbas, na aparência, como a de Machico; eram, porém, muito formosas por todas virem acabar no mar, saídas deste vale. E, pelo muito funcho que nele achou, lhe pôs nome o Funchal (onde depois fundou uma vila de seu nome, que já, neste tempo, é uma nobre e sumptuosa cidade), no cabo do qual estão dois ilhéus, onde se foram abrigar por ser já tarde, e tomou em terra água e lenha com que fizeram de cear, em um deles, de muitas aves que tomaram; depois disto foram dormir aos barcos e, como foi manhã, passaram mais abaixo. E, chegados a uma ponta, que no dia dantes tinham visto, mandou o capitão pôr nela uma cruz, donde lhe ficou o nome Ponta da Cruz. Dobrando esta ponta, foram dar em uma formosa praia que, pela formosura e assento dela, lhe pôs nome a Praia Formosa.

Prosseguindo João Gonçalves seu descobrimento pelo modo acima declarado, com seus batéis e companhia, antre duas pontas viram entrar no mar uma poderosa e grande ribeira, na qual pediram uns mancebos de Lagos licença para saírem em terra e ver a ribeira, que espaçosa e alegre parecia. E, ficando o capitão com os outros no batel, os mandou lançar fora pelo barco de Álvaro Afonso, os quais, em terra, cometeram passar a ribeira a vau e, como ela era soberba em suas águas, corria com tanto ímpeto e fúria ao mar, que na veia da água caíram e a ribeira os levava, onde correram sem falta perigo, se o capitão do mar não bradara ao batel de Álvaro Afonso, que em terra estava com a gente, onde eles foram, que corressem depressa àqueles mancebos, que a corrente da ribeira levava, às vozes do qual foram os mancebos acorridos e livres do perigo da água, com que o capitão ficou contente, porque os trazia nos olhos; e daqui ficou o nome à ribeira, que hoje, este dia, se chama Ribeira dos Acorridos, que peor pareceu àqueles mancebos de perto, do que lhe pareceu primeiro de longe.

Daqui passaram mais abaixo até dar em uma rocha delgada, a maneira de ponta baixa, que entra muito no mar, e, entre esta rocha e outra, fica um braço de mar em remanso, onde a Natureza fez uma grande lapa, a modo de câmara de pedra e rocha viva; aqui se meteram com os batéis, onde acharam tantos lobos marinhos, que era espanto, e não foi pequeno refresco e passatempo para a gente, porque mataram muitos deles e tiveram na matança muito prazer e festa, pelo que deu nome a este remanso Câmara de Lobos, donde este capitão João Gonçalves tomou o apelido, por ser a derradeira parte que descobriu deste giro e caminho, que fez; e deste lugar tomou suas armas, que el-Rei lhe deu, tornando ao Regno, como adiante contarei.

Deste lugar de Câmara de Lobos não passaram mais para baixo, assim porque lhe ficavam os navios longe, como porque daqui não puderam ver bem para baixo a costa com o muito arvoredo. Contudo, quando se saíam desta câmara e remanso, da ponta do mar viram uma rocha muito alta, logo aí apegado e arrebentar no mar em uma ponta que ela abaixo fazia, a qual lhe ficou por meta e fim do seu descobrimento, e lhe deram nome o Cabo de Girão (50) por ser daquela vez a derradeira parte e cabo do giro de seu caminho. Daqui tornaram outra vez dormir aquele dia ao ilhéu da noite passada, onde dormiram nos batéis a ele abrigados, e, ao outro dia seguinte, foram dormir aos navios e, chegando com muito prazer, acharam com muito maior os que neles ficaram, pelos verem tão contentes e satisfeitos da fertilidade, frescura e bondade, que lhe contavam do sítio da ilha e portos que deixavam descobertos, fazendo todos, juntamente, muita festa e dando muitas graças ao Senhor, pela grande mercê que lhes tinha feita.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Oitavo 22

CAPÍTULO OITAVO

COMO O CAPITÃO JOÃO GONÇALVES ZARGO, DEPOIS DE SE TORNAR AOS NAVIOS, PARTIU PARA O REGNO COM A NOVA DO DESCOBRIMENTO DA ILHA NOVA QUE ACHOU, COM QUE EL-REI, RECEBENDO-O COM MUITA HONRA, MANDOU FAZER

MUITAS FESTAS E, DANDO-LHE ARMAS DE SUA FIDALGUIA, O TORNOU A MANDAR A POVOÁ-LA, CONCEDENDO-LHE COM A CAPITANIA DO FUNCHAL A METADE DA ILHA, E COM ELE DOIS CAPITÃES, UM DE MACHICO, COM A OUTRA PARTE, E OUTRO DA ILHA

DO PORTO SANTO, ONDE FORAM TER À TORNADA

Logo ao outro dia, com muita diligência, mandou o capitão tomar certas vasilhas de água e terra, e paus não conhecidos no Regno, que levou ao Infante por lho ter encomendado; e com vento honesto partiram para o Regno sua rota batida, e, com a nova certa do descobrimento da nova ilha, em poucos dias chegaram a Lisboa, onde, sabida por el-Rei a certeza deste caso e visto as águas, terra e paus da ilha tão fresca e graciosa, como lhe davam por nova, houve muito prazer do que o capitão João Gonçalves tinha descoberto e o recebeu com muita honra, mandando por tal nova fazer procissões em Lisboa com festas e danças, com determinação de no ano seguinte mandar o mesmo João Gonçalves povoar aquela ilha, a que o dito capitão pôs nome da Madeira, por causa do muito, espesso e grande arvoredo de que era coberta, nome já agora tão celebrado e sabido por toda nossa Europa e muitas partes de África e Ásia pelos frutos da terra, de que todos participam; e é ela tão nobre e fértil e generosa em seus moradores que, tirando Ingraterra (sic), antiquíssima em povoação e mui ilustre com a majestade de seus Reis em todo o mar oceano ocidental, esta ilha da Madeira se pode com verdade chamar princesa de todas.

E por João Gonçalves, o Zargo, descobrir tão grande e rica ilha, e tão proveitosa ao Regno, como, então, parecia por sua grandeza e clima, e pelas mostras que dela se traziam, querendo el-Rei Dom João de Boa Memória, o primeiro do nome, que neste tempo em Portugal reinava, galardoar um serviço tão grande, como este capitão neste descobrimento lhe fizera, além dos muitos que dele tinha recebidos, o fez fidalgo de sua casa, dando-lhe em seu brazão de armas, em um escudo de campo verde, uma torre de homenagem com uma cruz de ouro mais rica que a da sepultura de Machim, no cimo, e com dois lobos marinhos encostados a ela, que parece que querem trepar ao cume da torre, com seu paquife e folhagens vermelhas e verdes, e por timbre das armas um lobo, também marinho, assentado em cima do paquife.

Bem pudera este valoroso capitão, conforme ao que dele e de seus progenitores contado tenho, tomar por armas um valentíssimo mouro, morto pela mão de um deles, ou um virotão pregado em um olho, como lhe aconteceu no cerco dos Infantes em Tânger, quando valorosamente os defendia, com que parecera ter parte nas setas reais, ou um medonho negrume em as espaçosas águas e espantosas ondas do mar oceano ocidental, mais dificultoso e receoso de cometer (sendo verdadeiro) que as fantásticas torres e castelos encantados e fingidos, que se soem pintar e contar (sendo mentirosos), pois foi tão aventureiro, que acometeu e acabou com invencível ânimo uma aventura verdadeira de todos tão temida.

Mas como alguns valentíssimos cavaleiros, não fazendo tanto caso das grandes façanhas que em África tinham feitas contra mouros, quiseram antes, depois de passados muitos mares e tormentas neles, receber a ordem e coroa de cavalaria em as conquistas e batalhas de negros e cafres, não tão armados e menos fortes, assim este venturoso capitão, deixando todas as outras insígnias de seus tão honrosos e heróicos feitos, não quis tomar a empresa de suas armas, mais ganhadas na terra que no mar, em que também sempre foi mui guerreiro, quase morando nele, senão de câmara de lobos marinhos, animais do mesmo mar, onde por seus precedentes merecimentos e virtudes achou e ganhou tanta ventura, para sobre estas armas (como os lobos marinhos dantes faziam) se assentar, dormir e descansar de tantos

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Oitavo 23

trabalhos passados por seu Deus e por sua lei e por seu Rei, tomando dos lobos a câmara e descanso, que a ele com tanta razão e justiça mais era devido, as quais armas agora trazem seus descendentes, e os chefes assim as têm sem outra mistura. E depois deste felice capitão, todos tomaram o apelido da Câmara, casa tão ilustre e de solar tão conhecido, cujo chefe foi este ditoso capitão, a quem, além disto, el-Rei fez mercê da capitania da jurdição do Funchal, de juro e herdade para ele e seus sucessores. As mesmas armas trazem e têm os ilustres capitães desta ilha de São Miguel, que deles descendem, com alguma diferença no timbre, que é o mesmo lobo marinho assentado em cima do paquife (ainda que de seu natural as não tenha), com asas estendidas, com que parece que voaram mais além até esta ilha de São Miguel, de que são capitães e governadores, como direi em seu lugar, adiante.

E no verão seguinte, na entrada de Maio no ano de mil e quatrocentos e vinte, movido el-Rei com desejos de mandar povoar a nova ilha da Madeira e as que havia ao redor dela, mandou fazer prestes navios e dizem que deu a capitania do Porto Santo a um Bartolomeu Palestrelo (51), a petição do Infante Dom Henrique, de cuja casa era fidalgo; e por o dito Infante ser o autor deste descobrimento e de todos os que esperava fazer pela costa, mandou dois capitães com João Gonçalves, que eram Bartolomeu Palestrelo, que havia de ficar no Porto Santo, e Tristão, cavaleiro da casa do Infante, que ambos vinham debaixo da bandeira do dito João Gonçalves Zargo (ainda que não faltam muitos que outra coisa digam) e, por causa que veio esta segunda vez Tristão com João Gonçalves, contam o descobrimento por outra via, como relata o doctíssimo João de Barros no princípio da sua primeira Década (como já contei) e o refere também o capitão António Galvão no Tratado que fez de diversos descobrimentos.

Partidos, pois, estes capitães de Lisboa, trouxe João Gonçalves sua mulher, Constância Rodrigues de Almeida (pessoa tão católica, como virtuosa), e três filhos que dela tinha, João Gonçalves, Helena e Breatiz, meninos de pouca idade. E deu licença el-Rei a toda a pessoa que quisesse vir com ele para povoação das ditas ilhas, assim a do Porto Santo como da Madeira; mandou dar os homiziados e condenados, que houvesse pelas cadeias e Regno, dos quais João Gonçalves não quis levar nenhum dos culpados por causa da fé, ou treição, ou por ladrão; das outras culpas e homízios levou todos os que houve e foram dele bem tratados; e, da outra gente, que por sua vontade queriam buscar vida e ventura, foram muitos, os mais deles do Algarve.

Levaram estes capitães gado e aves, animais domésticos e coelhos para lançar na terra. Chegados ao Porto Santo, foram dar em um porto da banda de Leste, onde acharam uns frades da ordem de São Francisco, que escaparam de um naufrágio, de que todos pereceram, senão eles, que acharam quase mortos, por não terem que comer; donde deram nome a este porto, que se ora chama o porto dos Frades.

Saídos todos em terra, pareceu bem a Bartolomeu Palestrelo a disposição dela, por ser fresca, de bons ares e sadia, e começou a povoá-la, tirando em terra a gente que quis ficar, e animais, galinhas e coelhos, os quais multiplicaram depois nesta ilha do Porto Santo de tal maneira, e em tanta quantidade, que foi a maior praga que houve na terra, porque não deixavam criar erva verde na ilha que a não comessem, e com paus e às mãos os matavam sem os poderem desinçar; e ainda hoje em dia há tantos, principalmente em um grande ilhéu, que apegado com a ilha está, que, dos muitos que se nele criam, tem nome dos Coelhos, e é o melhor refresco da terra, onde vai muita gente folgar, e dia se faz que se matam duzentos, sem os acabarem de destruir (52).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Nono 24

CAPÍTULO NONO

DA DESCRIÇÃO DA ILHA DO PORTO SANTO E DA ABUNDÂNCIA E MORADORES DELA (53)

A ilha do Porto Santo é pequena, mas fresca, de bons ares e sadia, ainda que não tem boas águas, por ser seca e de pouco arvoredo, e o principal (tirando os dragoeiros) é zimbro e urze. Está no caminho, quando vão de Lisboa para a ilha da Madeira, da qual está vinte léguas de porto a porto, quero dizer, do porto da Vila ao porto do Funchal, e de terra a terra são doze léguas. Está em trinta e três graus de altura, da parte do Norte. É pequena e quase redonda, de três léguas de comprido e uma e meia de largo, ou pouco mais. Está Nordeste Sudoeste sua compridão, que começa do porto das Cagarras, que está da parte do Oriente, ao Nordeste, até o ilhéu do Boqueirão, que está da parte do Ocidente, ao Sudoeste. E a largura pelo meio é da Vila, que está da banda do Sul, até a Fonte da Areia, que cai da banda do Norte; e quase toda é da mesma largura. E demora esta ilha Nordeste Sudoeste com os Cachopos e está de Lisboa cento e quarenta léguas.

No porto das Cagarras, assim chamado por haver ali na rocha muita criação delas, que está da banda do Oriente, ao Nordeste da ilha, vem ter ao mar de longe uma ribeira salgada; dele vindo, pela banda do Sul, para o Ocidente, perto de uma légua está uma enseada pequena, onde aboca uma ribeira de água salgada, ainda que vem de longe, dantre umas serras, e aqui chamam o porto dos Frades, pela razão já dita, e é bom porto.

Do porto dos Frades, pouco mais de meia légua, indo para o Ocidente pela mesma parte do Sul, está um ilhéu grande e redondo, meia légua afastado da terra, Norte e Sul dela, e alto das rochas todo à roda, que tem em cima grande campo, como de dois moios de terra, onde há muitos paus de dragoeiros, e por isso lhe chamam o ilhéu dos Dragoeiros; tem também zambujos, e criam-se nele muitas cabras, cagarras e coelhos de diversas cores.

Deste ilhéu dos Dragoeiros, a meia légua a Loeste, pela mesma banda do Sul, está um penedo grande e redondo como ilhéu pequeno, que (parece), por ali alguém se deitar a dormir, se chamou antigamente o Penedo do Sono, o qual está quase pegado na terra, porque de maré vazia fica em seco, e do porto das Cagarras até este penedo são tudo rochas altas e penedia ao longo do mar.

Do Penedo do Sono até ao ilhéu do Boqueirão, que será espaço pouco mais de légua e meia, que é a ponta derradeira do Poente da ilha, é tudo areia branca, sem ter nenhuma pedra, e é baía não muito curva, nem com grandes pontas ao mar, porque com qualquer tempo podem sair os navios do porto da Vila, que está no meio desta baía e praia, que, pela razão do porto já dita, se chama a Vila do Porto Santo, a qual tem a freguesia do Salvador, sem haver outra em toda a ilha, e a ela vêm ouvir missa todos os moradores, ainda que tenham sua habitação em diversas partes dela. E, antes de chegar à Vila, todas aquelas terras até a mesma Vila eram povoadas de dragoeiros quando se achou a ilha; chama-se ali o Vale do Touro, por se criarem nela touros e muito gado desde o princípio, quando o deitaram na terra.

Nesta Vila do Porto Santo, que está, da parte do Sul, no meio da praia já dita, não estão as casas perto do mar por causa da areia, que as atupira logo, mas haverá do mar às primeiras um tiro de besta. Terá a vila, pouco mais ou menos, quatrocentos fogos, afora outras pessoas que moram pelos montes, e, além da igreja, que é freguesia da Invocação do Salvador, que é boa, tem uma ermida de São Sebastião e outra de Santa Caterina. Está situada em terra chã e, pelo meio da Vila, corre do Norte ao Sul uma ribeira, todo ano, de água salgada, quase como a do mar, e, ainda que tal, regam com ela muitas hortas de couves e da mais hortaliça, que é estremada no gosto, posto que seja regada com água que o não tem. E ao longo desta costa, ainda que seja de areia, há muitas vinhas, que dão boas uvas; criam-se nelas muitos caracóis

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Nono 25

brancos, em tanta maneira, que, em partes, cobrem tanto o cacho das uvas, que lhe não aparece bago. Têm estas vinhas, da banda do mar, por tapumes muito bastos e altos espinheiros alvares, que se criam na areia, e, ainda que com o vento se atupam dela, crescem muito, por onde é bom tapume, e neles se embarram muitos coelhos, de que toda a terra é muito povoada, e com fisgotes e dardos os fisgam e matam nos espinheiros, onde também se criam muitas mélroas que fazem muito dano nas uvas e nas amoras, porque há ali muitas amoreiras e figueiras, de diversas castas, cujo fruto, por a qualidade da terra e por o deixarem bem madurecer, tem bom gosto.

Da Vila até ao cabo da praia, ao Ponente, desta mesma banda do Sul, haverá três quartos de légua; e no cabo da mesma praia, afastado de terra um tiro de besta, está um ilhéu alto das rochas, que tem meia légua de comprido e em cima grande chã de terra, onde criam muitos coelhos de diversas cores; e o mato dele é zimbro. Chama-se Boqueirão o espaço que há deste ilhéu à terra, por ser perto dela, e aqui, neste lugar do Boqueirão, que está ao Ponente, é o fim da compridão da ilha pela banda do Sul.

Indo derredor da ilha, pela banda do Noroeste, quase duas léguas deste ilhéu do Boqueirão está outro ilhéu pequeno, que se chama o ilhéu do Ferro, parece por se achar ali algum metal de pedra que se parecia com ele, ou por outra qualquer razão que seja; criam-se nele muitas cagarras e cenouras; não tem mato notável.

Indo voltando ao Norte quase duas léguas, correndo antre este ilhéu do Ferro e o seguinte, é a terra redonda; está outro ilhéu pequeno e muito alto das rochas perto da terra, que se chama o ilhéu da Fonte da Areia, por estar defronte de uma fonte, que sai no meio da rocha, de muito grossa água, que é doce, boa e sadia e de bom gosto, a qual rocha, desta parte, é de areia branca, e por isso se chama a Fonte da Areia, da qual bebem os moradores da vila, ainda que esteja légua e meia afastada do lugar da banda do Norte e tenham em outras partes água de poços, que não é em tanta abastança como esta, que, com a terra ser chã por aquela parte, é de bom serviço, e dela bebe o povo quase todo.

Do ilhéu da Fonte da Areia, menos de meia légua adiante, está para o Nascente, da parte do Norte, uma povoação de até quinze moradores, que se chama o Farrobo, por haver ali esta erva, assim chamada, com que os pescadores tingem as linhas com que pescam, onde se criou o profeta fingido que chamam do Porto Santo, como adiante direi.

Do Farrobo até a serra de Gilianes (que foi um homem antigo, que fez ali a primeira povoação, de que lhe ficou o nome) haverá meia légua. E da serra de Gilianes à Fonte dos Pombos haverá uma légua. Esta fonte está perto da rocha do mar, da banda do Norte; é de pouca água doce e chama-se Fonte dos Pombos por respeito de haver ali muitos para aquela parte, e parece que bebiam nela; mas esta água não serve senão para pastores, por estar muito longe da Vila.

Da Fonte dos Pombos, andando derredor até o Porto das Cagarras, onde se começa a compridão, haverá outra légua, porque, ainda que de diâmetro direito tenha esta ilha três léguas e meia de comprido, todavia, torneada ao redor com suas voltas, tem mais compridão. Mas, cortando a comprido pelo meio, quase por linha direita, tem de compridão as três léguas e meia, que disse; e indo do Porto das Cagarras, caminhando por dentro dela para o Ocidente até direito da Fonte dos Pombos e o pico do Castelo, que será légua e três quartos, tudo são picos e terra alta, mais de criações e matos de zimbros que terras lavradias, e é tudo massapés. E perto da Fonte dos Pombos, para a banda do Ponente, está um pico alto, de grossa penedia, que não tem mato, mas por a faldra o tem muito e grosso de zimbro, e ao pé uns grossos moledos de penedia branca, como baça, que parece não haver sido queimada, porque é lisa, e antre estes penedos há uma fonte de estremada água doce e boa, acompanhada de muitas rabaças; chama-se a Fonte dos Jaspes. Não sei se lhe puseram este nome por razão dos penedos, que quase brancos e lisos são e têm alguma aparência com eles; antre os quais penedos há muita norsa, que custa muito trabalho em revolver estes penedos para se poder dali tirar (54) e comer.

Esta norsa, que há no moledo da Fonte dos Jaspes, é uma fruta que se cria debaixo daqueles moledos (como antre penedos e biscoitos de pedra branca, uns muito grossos e outros pequenos, e a fonte, que ali está junto deles, onde vão caçar e folgar muitos àquela montanha); é fruta da feição de betatas (sic) e o gosto como de inhame, e da mesma humidade e viscosidade de inhame; e os braços que deita a erva, que dá esta fruta, são como os da erva que chamam legacão ou de hera, e as folhas também são semelhantes. Nascem muitas antre

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Nono 26

aqueles moledos, mas não são inhame, por não ter a folha e o braço tão grande, nem o talo tão grosso, nem são betatas, porque, ainda que têm alguma semelhança delas, têm diferença no gosto e substância e parecer de fora, porque criam umas escamas, como lepra, por cima, e deitam de si um humor viscoso, como inhame, o que não têm as betatas.

Indo desta Fonte dos Jaspes para a Vila, tudo são matos de zimbro e barbuzanos, zambujos e marmulanos, que dão fruto, como baga de louro, a qual, madura, é boa para comer, ainda que tem muito leite.

E, por este caminho, vindo sobre a Vila meia légua dela, ao pé de uma serra alta, que chamam a Feiteira, por ter muitos feitos, está uma igreja de Nossa Senhora da Graça, muito devota, e, apegadas nela, três fontes de boa (ainda que pouca) água, que vão buscar, à cabeça, da Vila e doutras partes.

E, tornando da Vila para o Norte um quarto de légua, nascem dois ou três olhos de água salobra, onde está feito um tanque grande para nele beberem os gados e alimárias de toda a sorte da maior parte da ilha, que se criam muito por toda ela, como é gado vacum, ovelhas e cabras, porcos e éguas, de que têm bons cavalos, e bestas muares e asnais, por ser a terra de bom pasto; a qual água salobra, que sai deste tanque, serve também para uso do serviço e lavagem da terra, e principalmente da Vila, e perto deste tanque estão umas matas (que assim têm o nome, porque tinham mato carrasquenho e são como os biscoitos desta ilha de São Miguel), em que há muitos cardos de espinhos de muito bom sabor, os quais, alporcados, vendem bem baratos, por a terra em muitas partes ser deles muito povoada.

Acima destas matas, ao Norte, estão umas chãs de terra, que chamam as Areias, por ser terra misturada com areia, que traz o vento daquela banda da Fonte da Areia, por serem as rochas daquela parte dela (como já disse), e estas terras dão muita e boa cevada, e acontece muitos anos dar um moio de cevada de semeadura nestas areias sessenta moios de colheita; também dão muito centeio e trigo, mas são mais naturais para cevada e centeio.

Da mesma Fonte dos Jaspes, indo para o Ponente, está no meio da ilha um pico muito alto e redondo, que é o mais alto da ilha, todo até o cume coberto de mato de zimbro, e em cima, no mais alto, faz um assento de terra pequeno, de quantidade de um quarteiro, onde se fizeram antigamente muitas casas de pedra e barro, que já agora estão arruinadas, as quais os moradores da ilha ali edificaram para nelas se acolher, como acolhiam, sendo cometidos dos castelhanos, quando havia guerras antre Portugal e Castela. Está este pico uma légua da Vila e chama-se do Castelo pela razão já dita e porque, na verdade, o é ele mui forte e defensável e dele se podem defender a todo o mundo. Dele até a Vila há umas terras muito chãs, mas a subida ao pico é de trabalhoso caminho; e estando no meio da ilha, dele para a banda do Ponente, passando pelo Farrobo até o ilhéu do Boqueirão, que é outra légua e meia, toda a terra é baixa, chã e golfeira, que do Sul ao Norte toda se lavra e dá muito pão, sendo dele para o Nascente tudo montes, serras e matos, e a terra, pela maior parte massapez, quase toda da qualidade de Alentejo.

Finalmente esta ilha do Porto Santo é mui sadia, de bons e frescos ares, ainda que é pequena, de três léguas e meia de comprido e uma e meia de largo, pouco mais ou menos (como já disse); e não tem águas, por ser seca e de pouco arvoredo, e o principal (tirando os dragoeiros) é zimbro e urze. E em muitas partes desta ilha produziu a Natureza muitos dragoeiros, do tronco dos quais se faz muita louça, e muitos são tão grossos, que se fabricam de um só pau barcos que hoje em dia há, que são capazes de seis, sete homens, que vão pescar neles, e gamelas que levam um moio de trigo. Tira-se desta louça bom proveito, de que se paga dízima a el-Rei, e se aproveitam muito do sangue do dragão, muito prezado nas boticas; criam estes dragoeiros uma fruta redonda que, madura, se faz muito amarela, e é mui doce, e no tempo que havia muitos dragoeiros engordavam os porcos com este fruto (que são como avelãs e, assim, se chamavam maçainhas); já agora há poucos e vão faltando, pelo muito proveito que se fazia nas gamelas deles, que são muito leves, como são secas, e também nas rodelas.

E, como já disse, pela maior parte da ilha, especialmente para a banda das serras e terras de massapez, há muitos cardos para comer, e soía a valer um saco deles um vintém, alporcados e muito doces, em alguns postos da terra. Tem também esta ilha, além das aves domésticas, muitas perdizes, e pombas, e coelhos, e rolas, poupas, e francelhos, lagartixas, e ratos pequenos, dos que cá chamamos morganhos, sem haver nela dos grandes, que quase em todas as terras vemos.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Nono 27

Foi povoada esta ilha de gente fidalga e nobre, cujos apelidos são Perestrelos ou Palestrelos, como outros dizem, Calaisas, Pinas, Rabacais, Concelos, Mendes, Vieiras, Crastos, Nunes, Pestanas, e de outras muitas nobres gerações.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo 28

CAPÍTULO DÉCIMO

DOS ILUSTRES CAPITÃES QUE HOUVE NA ILHA DO PORTO SANTO, DESDE O PRINCÍPIO DE SUA POVOAÇÃO ATÉ À ERA DE MIL E QUINHENTOS E NOVENTA (55)

Contente Bartolomeu Palestrelo, primeiro capitão do Porto Santo, com a ilha que lhe coube em sorte, povoou a vila de gente, e a ilha mandou lavrar e cultivar de sementes, com que tudo estava satisfeito, como já disse. Era fidalgo da casa do Infante Dom Henrique e foi casado com Breatis Furtada de Mendoça, de que não houve filho barão, senão três filhas, Catarina Furtada, que foi mulher de Mem Rodrigues de Vasconcelos, do Caniço, e Iseu Palestrela, que foi casada com Pero Corrêa, senhor da ilha Graciosa, e outra, que se chamou Breatis Furtada.

Andando assim o tempo (que tudo muda), ficou viúvo este capitão Bartolomeu Palestrelo desta primeira mulher, e casou segunda vez com Isabel Moniz, irmã de Garcia Moniz e de Cristovão Moniz, frade carmelita, que foi bispo de anel (56). Desta segunda mulher houve um só filho barão que se chamou, como seu pai, Bartolomeu Palestrelo, que sucedia na casa. Sendo este bem pequeno e de pouca idade, faleceu seu pai e, como sua mãe se enfadasse de morar no Porto Santo, houve um alvará de el-Rei, com que, sendo seu filho menino, vendeu a capitania a Pero Corrêa, capitão da Graciosa, que lhe caía em lugar de genro, por ser casado com Iseu Palestrela, filha de seu marido, e vendeu-lha assim como o marido a possuía por preço de trezentos mil réis em dinheiro contado e trinta mil de juro (57).

Governou Pero Corrêa alguns anos a ilha, até que, sendo Bartolomeu Palestrelo de idade que foi ao Regno e daí a África a servir el-Rei, e vindo uma vez de Larache, arribado à ilha da Madeira, pousou no lugar do Caniço com seu cunhado Mem Rodrigues de Vasconcelos, por cujo conselho, dando-lhe também para isso ajuda e todo o necessário, se pôs em preito com Pero Corrêa, que comprado tinha a ilha, e por demanda (visto como era menor, e el-Rei, em prejuízo seu, sem sua outorga dera licença para se vender a capitania) foi havida e julgada a venda por nula e de nenhum vigor, e que se descontasse pelas rendas o que se dera por ela, donde ficou o dito Bartolomeu Palestrelo investido e metido de posse da dita capitania do Porto Santo, que ficara de seu pai, a quem el-Rei a concedera de juro para seus filhos e descendentes por linha direita masculina, e nela foi este Bartolomeu Palestrelo confirmado por el-Rei (58).

Bartolomeu Palestrelo, segundo do nome e segundo capitão do Porto Santo, foi casado com Guiomar Teixeira, filha de Tristão Vaz, primeiro capitão de Machico; houve dela somente um filho, que se chamou Bartolomeu Palestrelo, como o pai, sem haver mais filhos de ambos, pelo que a ilha veio a ele per direita sucessão.

Bartolomeu Palestrelo, terceiro do nome e terceiro capitão do Porto Santo, foi casado com Aldonça Delgada, filha de Garcia Rodrigues da Câmara; dela houve um filho, que chamavam Garcia Palestrelo, que herdava a casa.

Este terceiro capitão, porque era primo com-irmão do capitão de Machico, tinha muita continuação em sua casa e, pelo conseguinte, muita conversação com Dona Solanda, irmã de Tristão Teixeira, das Damas, com a qual (dizem) que determinou de casar e matar sua própria mulher, que bem mal lho merecia. Vindo ao Porto Santo, tomando mui leve ocasião, matou sua mulher Aldonça Delgada e foi-se casar com Dona Solanda, sua prima, e, o peor que é, impetrou rescrito para poder casar com ela; porém, sempre andou homiziado, porque o capitão do Funchal trabalhou polo prender e o foi buscar ao Porto Santo, onde se escondeu. Houve, enfim, de vir preso por sua vontade a Machico, donde por seus modos alcançou perdão das partes e se foi livrar ao Regno.

Teve desta segunda mulher os filhos seguintes: Emanuel Palestrelo, que nunca casou e vive hoje pobre, ainda que rico de virtudes; houve mais Hierónimo Palestrelo que foi casado

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo 29

com Dona Hervira, irmã de Cristovão Martins de Grinão, por alcunha o Perú, e houve Dona Francisca Palestrela, que foi casada com João Rodrigues Calaça no Porto Santo. Estes filhos, que houve da segunda mulher, por sentença no seu livramento, foram julgados por bastardos em pena da morte da sua primeira mulher.

O morgado Garcia Palestrelo, porque herdava a casa, foi cometido para casar com uma filha de Diogo Taveira, desembargador e corregedor na jurdição do Funchal, com a qual casou, e dela houve os filhos seguintes: Diogo Soares, que herdou a casa, Ambrósio Palestrelo, que foi frade carmelita, e duas filhas, que foram freiras no mosteiro da Anunciada em Lisboa.

Este Garcia Palestrelo, em vida de seu pai (como dizem), porque em tudo se parecesse com ele, matou sua mulher também muito mal, pelo que não veio a ser capitão, e, como a mulher era filha de desembargador, foi acusado de maneira que morreu degolado por sentença. Depois de sua morte, a poucos dias, faleceu também o capitão seu pai, Bartolomeu Palestrelo, pelo que teve maneira o desembargador Diogo Taveira com que meteu de posse da capitania seu neto Diogo Soares, havendo sobre isso grandes demandas com os filhos de Dona Solanda, que, por alegar o desembergador que eram bastardos, foram sobre isso a Roma e lá foram julgados por legítimos, porém que a causa matrimonial se determinasse no foro contencioso, o que não teve effecto, porque neste meio tempo faleceu Hierónimo Palestrelo e Emanuel Palestrelo ficou carecido da vista e de todo cego, e a causa ficou sem se determinar, e a capitania com Diogo Soares, que estava já de posse dela, a qual governou muitos anos (59).

Bartolomeu Palestrelo, terceiro do nome e terceiro dos capitães, faleceu no Algarve em Aljazur, tendo de sua idade setenta anos, dos quais governou vinte e três. Por sua morte sucedeu na capitania Diogo Soares, primeiro do nome e quarto capitão desta ilha do Porto Santo. Foi casado com Dona Joana de Crasto (60), mulher mui principal e parentada na ilha do Porto Santo; houve dela os filhos seguintes: Diogo Palestrelo, que herdou a casa, e Emanuel Soares, que foi casado com Dona Maria Loba. e André Soares, e Dona Joana de Crasto, que casou no Caniço.

Diogo Palestrelo, o segundo do nome e quinto capitão do Porto Santo, vive hoje em dia, bom cavaleiro, brando e de boas artes; é casado na vila da Calheta com Dona Maria, filha de Gaspar Homem, fidalgo, morador na mesma vila, onde reside o mais do tempo, porque sua mulher não quere viver no Porto Santo. Porém, todos os anos, no verão, vai este capitão à dita sua ilha, por ser tempo de cossairos franceses, que muitas vezes a saqueiam, dos quais a ele defende mui valorosamente; e como aparecem franceses (de que naquela paragem andam muitos), logo se acha na praia, que tem quase três léguas de areal, donde em covas, que manda fazer, com arcabuzes, defende a desembarcação aos cossairos. E nunca se achou que, estando este capitão na ilha, fosse tomada de franceses, havendo sido saqueada já três vezes em sua ausência (61).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Primeiro 30

CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

DO QUE FIZERAM UM HOMEM E UMA MULHER NATURAIS DA ILHA DO PORTO SANTO ENGANADOS PELO ESPÍRITO MAU, A QUEM O POVO DEPOIS COMUMMENTE,

PELO NOME DA MESMA ILHA, CHAMOU PROFETAS DO PORTO SANTO (62)

Pois a Santa Igreja Católica, nossa piedosa mãe, com o dito de São Pedro, primeiro logotente (63) de Deus na terra e geral pastor seu, cada dia esperta e ensina aos que são suas ovelhas, dizendo que sejamos temperados e vigiemos, porque nosso adversário, o diabo, como leão rugindo e bramindo, anda derredor, buscando se alguma das ovelhas do católico curral se desmanda, saindo fora dele, para logo a tragar, ao qual resistamos, fortes na fé, para lhe escapar das unhas.

Não parece razão passar com silêncio o que aconteceu a um homem e uma mulher, naturais da ilha do Porto Santo, enganados pelo demónio, a quem comummente depois chamaram todos Profetas do Porto Santo, para que, com fazer experiência no perigo da cabeça alheia, saibamos melhor guardar a nossa e escapar dos laços que tão sotilmente sempre nos arma o imigo do género humano, para que, já que enganou a nossos primeiros pais e a outros, vendo nos seus enganos, saibamos fugir deles, pedindo para isso o favor divino, sem o qual nada sabemos, nem podemos.

Estando a ilha do Porto Santo próspera e abastada, e vivendo a gente dela contente e rica, por oculto juízo de Deus, ou por os querer castigar, ou humilhar em sua prosperidade, permitiu que o demónio antre eles urdisse e tecesse uma revolta nunca ouvida, como se colige da devassa que escreveu um Henrique Coelho, escrivão de Machico, e de outras informações de outras pessoas da ilha da Madeira dignas de fé, da maneira seguinte.

Na era de 1532 e 33 anos, na capitania de Machico, da ilha da Madeira e na ilha do Porto Santo estava por corregedor o licenciado João d’Afonseca, com alçada por el-Rei Dom João, terceiro do nome, que está em glória, o qual licenciado, por morrerem de peste na Vila de Santa Cruz da capitania de Machico no ano de mil e quinhentos e trinta e três, se foi para a Queimada, onde morou em umas casas perto da dita Vila de Santa Cruz, donde se saiu com seu meirinho, Álvaro Vieira, e, estando ali, aconteceu na ilha do Porto Santo este estranho caso.

Havia na dita ilha do Porto Santo, da banda do Norte, onde se chama o Farrobo, que é uma povoação de até quinze vizinhos, um homem honrado, cristão velho, chamado Bartolomeu Nunes, o qual tinha um filho, já homem, por nome Fernão Nunes, o qual filho, por se criar no ermo e ser montanhês, criador e lavrador, e ser homem já de idade para isso, sem se casar, e, de maravilha, ouvir missa (segundo se dizia), e muito poucas vezes ir à Vila, pelo que, por outro nome, era de todos chamado Fernão Bravo, do qual se suspeita que, por ser assim bravio e rústico solitário, lhe apareceu o demónio e lhe fazia dizer coisas notáveis e secretas, de tal modo que, sendo a terra povoada de gente muito nobre, fidalga, de bons entendimentos e mimosa, permitiu Deus que saíssem muitas vezes dos mimos e viços da terra, que naquele tempo era mui abastada e famosa na abundância e fartura dos moradores, pelo engano que o demónio fez a este Fernão Nunes, por alcunha o Bravo, pela razão dita, e ele a eles, crendo todos o que ele dizia, tendo-o por santo profeta.

Havia na dita ilha uma moça de idade de dezasseis ou dezassete anos, pouco mais ou menos, sobrinha de um Nuno Vaz, clérigo e beneficiado na vila da mesma ilha, por nome Filipa Nunes, que estava doente na dita vila, havia alguns anos, em cama tolhida, paralítica, sem se poder mandar, nem mover da cinta para baixo, a qual também era sobrinha do dito Fernão Nunes, o Bravo; o qual, depois de ser enganado pelo demónio, que lhe meteu em cabeça de o fazer adivinhador, para que o tivessem por profeta e, assim, infamar muita gente, por o mesmo

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Primeiro 31

diabo ser infame e querer ver todos infamados, como ele, por seu mandado e inspiração diabólica se veio do deserto, donde andava, uma noite, à vila ter com a sobrinha, com uma campainha tangendo. E, chegando onde ela estava, lhe disse que o Espírito Santo o mandava ter com ela, para que ambos pregassem ao povo daquela ilha e lhe dissessem seus pecados, e que com ele vieram os fiéis de Deus em procissão, em que ele tangia a campainha, com que fez ajuntar alguma gente do povo, amiga de novidades, que vinha a ver aquela. E Filipa Nunes lhe respondeu que o Espírito Santo lhe revelara que vinha ele daquela maneira. E, sendo ali junta muita gente em casa da dita Filipa Nunes, que acudia à campainha por ver o que aquilo seria, o tio se chegou à sobrinha e falaram ambos de parte pouco espaço, a qual prática acabada, se virou ele para os que aí estavam e lhe começou a dizer suas culpas, que tinham feitas, e pregar de maneira que se ajuntou toda a gente da ilha, juízes e vereadores, homens dos principais, altos e baixos, e todo o povo, a quem fez uma pregação, em que lhe descobriu seus pecados, dizendo: «tu, Fuão, fizeste isto, e tu estoutro; tu fizeste tal coisa em tal tempo, e tu estoutra»; assim, a todos e a cada um dizia suas culpas secretas, que fizeram com pretexto e engano, que fizessem penitência delas, com que todos, pasmados, o criam.

E vendo que já estava acreditado, fez um porteiro castelhano tecelão, por nome Francisco Fernandez, o qual, logo de seu mandado, lançou pregão: «ouvi o mandado do santo profeta Fernando e profeta Filipa, que todos vão em procissão a Nossa Senhora da Graça». Onde foi todo o povo com o vigairo e clérigos, e lá lhes disse coisas grandes de seus pecados, de modo que todos andavam confusos, espantados e desconsolados, sem comer; as mulheres deitaram no mar todas as posturas do rosto, sem curar de vestidos preciosos, antes os pobres que traziam despiam e ficavam em faldra de camisa, como fazendo penitência, sem comer, senão pouco, e em pé.

Estando um dia pregando, muitos se confessaram pubricamente de pecados graves e abomináveis que tinham feitos. E, porque estando o profeta Fernando pregando, um João Calaça, tabalião, estava rezando por um livro, como quem lhe não dava crédito a suas pregações; disse o profeta que aquele que rezava tinha o demónio no corpo, que lho tirassem. Saltaram, então, nele muitos homens e lhe deram tantas punhadas, que o mataram; ele, morto, disse o profeta que o levassem logo a uma ermida de São Sebastião, onde o deixassem estar, porque antes de três dias ressurgiria, e lá o levaram e deixaram.

Uns, com temor da morte deste João Calaça, não ousavam contrariar o que o profeta falso dizia, e outros, pelos secretos que lhe descobria, criam quanto lhe ouviam, obedecendo a seus mandados. Andavam após ele, ouvindo-o, deixando perder suas fazendas, sem as negociar e beneficiar. Tão cegos estavam, que as mulheres muito fidalgas e nobres iam à igreja em camisa por ante (sic) seus maridos com cestos grandes de vimes, como os em que nesta ilha apanham pastel, cheios de leite escorrido, e queijos, e pão, e outros mantimentos para comerem os que estavam na igreja de noite e de dia, ouvindo a pregação do profeta, e tão crentes estavam nele, que se afirma que os levou em procissão a um pico para os lançar pela rocha dele abaixo, dizendo-lhe que se haviam de deitar à (sic) voar dela para o céu; mas livrou-os Deus de tamanho perigo, não sei como.

Tanto pode a novidade no povo que, como diz Quinto Cúrcio, Nulla alia res magis multitudinem regit, quam superstitio; nenhuma outra coisa mais rege a multidão dele que a vã superstição.

Este profeta Fernando não fazia mais que aquilo que lhe dizia secretamente a sobrinha Filipa Nunes, profeta, dizendo ela que o Espírito Santo lho revelava, e fingia que não comia e que se mantinha na graça do mesmo Espírito Santo, por se acreditar com a gente, pelos pecados e fazendas alheias levadas, que ela e ele descobriam; e, por isso, iam tomar conselho com eles, para o que tinham o porteiro à porta, como se foram príncipes, que não deixava entrar pessoa alguma, senão quem a profeta mandava.

Conta-se também que, andando um mouro, pastor de ovelhas, que se chamava Barque, na serra como salvaje, o trouxeram para crer no profeta, dizendo-lhe que era homem santo e fazia milagres, ao que respondeu o dito mouro Barque, se o profeta sarasse uma negra de seu senhor, tão aleijada das pernas de seu nascimento, que andava de geolhos, que ele creria nele e o adoraria por santo, mas não de outra maneira, o que o profeta não fez; o qual dito de um mouro salvaje foi para mais confusão dos moradores, tão cristãos e discretos.

A cabo de alguns dias que durava esta abusão e desaventura, com que andava a gente atemorizada, por parecer já que andavam os demónios soltos naquela terra, o mais do tempo

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Primeiro 32

se ocupavam em fazer cruzes e pô-las sobre si e seus corpos, e polas ruas e casas, como que os viam, pelo que no dito ano de mil e quinhentos e trinta e três se embarcaram algumas pessoas da dita ilha em uma barca para a ilha da Madeira, em que somente ia um Joanne Anes, escrivão na dita ilha do Porto Santo, e um António Feijó e outro homem, a que não soube o nome, e três barqueiros os quais chegaram à vila de Machico aos seis dias de Fevereiro do dito ano e saíram em terra descarapuçados, cada um com uma cruz pequena de pau na mão, onde logo se ajuntou muita gente, vendo aquela novidade, para saber o que era; os quais disseram que iam dar novas ao corregedor João d’Afonseca que na ilha do Porto Santo estavam dois profetas, que tinham posto o povo em grande confusão do que diziam e faziam, com que andava a gente pasmada, sem comer, nem dormir. E por o corregedor estar na Queimada, como acima tenho contado, o dito Joanne Anes com os mais se tornaram a embarcar e se foram à cidade do Funchal a dar novas ao capitão e justiça dela, com que houve grande alvoroço e espanto em todo o povo.

Dando este rebate ao corregedor, o licenciado João d’Afonseca, logo ao outro dia pela manhã foi ter a São Sebastião, junto da vila de Machico, onde se ajuntou toda a gente principal da vila, e ali lhe fez o corregedor uma fala, em que declarou ser aquilo obra dos demónios e que ele, por sua pessoa, queria acudir a isso, como logo pôs seu dito por obra, embarcando-se no mesmo dia, levando consigo dois escrivães, João Simão e Henrique Coelho. E chegou ao outro dia seguinte à ilha do Porto Santo a horas de meio-dia e, tanto que foi sabida sua desembarcação, fugiu o profeta Fernando para a serra, e o corregedor, com ambos os escrivães, foi a casa da profeta Filipa Nunes, a qual achou na cama, e lhe disse que abusões eram aquelas que fizeram no povo, fazendo crer que não comia. E buscando-lhe a cama, de que a fez alevantar, donde dantes se não levantava, achou nela pedaços de bolos que ela comia, e logo a mandou à cadeia, enviando em busca do profeta Fernando à serra, onde era acolhido, ao seu meirinho, que o trouxe preso à mesma cadeia. E ao outro dia o mandou à prisão da vila de Machico, e logo começou a tirar devassa do caso, na qual se mostrou por testemunhas que o dito profeta Fernando, estando uma noite em casa da profeta Filipa Nunes, onde estava muita gente, e mulheres muito honradas e homens, todos descalços e em geolhos, em que entravam um Rodrigo Álvares, homem muito honrado e rico, e sua mulher, e Manuel de Crasto, almoxarife, e sua mulher, e outras muitas pessoas e mulheres nobres, ele, perante todos, chegou à mulher de Rodrigo Álvares e lhe meteu a língua na boca, dizendo a seu marido: «pesa-te, Rodrigo»? E ele lhe respondeu: «Deus o sabe»; e, então, o fez pôr de geolhos diante de si e lhe deu duas bofetadas. E disse a Manuel de Crasto que fosse buscar pão e vinho para comerem os que ali estavam, o qual foi e trouxe um saco de pão e um barril de vinho, que todos comeram. Depois de comer, mandou a Manuel de Crasto e a sua mulher que se despissem, o que logo fizeram, ficando em camisa, sem ninguém olhar, nem atentar para isso, como se fora no estado da inocência, e, assim, meios nus os mandou que fossem a Santo Espírito e que daí iriam para o Paraíso; e eles se foram despidos, sendo Inverno, em Fevereiro, e assim estiveram na dita ermida do Espírito Santo até ante manhã, em que então se foram para casa e não para a glória, como o profeta dissera.

Foi o corregedor a São Sebastião, onde estava o morto João Calaça, que já cheirava mal, o qual tinha os cabelos feitos em tranças, e o mandou enterrar honradamente, por ser homem honrado e muito aparentado na dita ilha, onde parece que morreu mártir, por não dar crédito a um truão e rústico enganado do diabo.

Mostrou-se mais, por inquirição, que em uma cevada, que estava em um sarrado (sic), fez debulhar mulheres e homens, dizendo que por isso lhe eram perdoados seus pecados.

Tanto era o atrevimento do demónio e o engano dos homens que até os eclesiásticos se enganaram, de tal modo que na Confissão da missa diziam São Pedro e São Paulo e o beato profeta Fernando, e assim o nomeavam no Intróito e orações.

Dizem que também foi, então, do Funchal à ilha do Porto Santo um frei Gaspar Gato, pregador da ordem de São Francisco, onde teve prática com o profeta Fernando e a profeta Filipa, e, vendo que era bulra (sic) tudo o que diziam, por lhe não saberem responder bem ao que lhe perguntava, nem ele, nem a sobrinha, disse que os prendessem e não cressem no que diziam, o que logo fizeram.

Ou fosse pelo dito do pregador, ou pela devassa que se tirou, o dito corregedor, o licenciado João d’Afonseca, prendeu o vigairo e clérigos e os levou presos todos com a profeta Filipa Nunes à cadeia da vila de Machico, depois de acabada sua devassa, que durou até dez dias

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Primeiro 33

de Março, que lá esteve; e, quando dantes chegou, a seis de Fevereiro do dito ano de mil e quinhentos e trinta e três, à ilha do Porto Santo, havia dezoito dias que duravam as abusões dos falsos profetas. E prendeu também ao porteiro, que, quando apregoava, dizia que manda o santo profeta Fernando tal coisa que logo fizessem, o que sem tardar se fazia, e dizia ele que bem aventurado fora em ser pregoeiro do santo profeta, o qual outras muitas coisas e abusões fazia fazer ao povo, de noite e de dia.

Tanto que foram trazidos os presos à vila de Machico, a Filipa Nunes, que dantes fingia que não comia, logo comeu de praça (64), dizendo que não sabia nada do que lhe diziam que fizera. O corregedor os mandou ambos presos a el-Rei com a devassa, que levou o escrivão Henrique Coelho e deu a Sua Alteza, que lho teve muito em serviço, com que foram sentenciados os profetas que ambos estivessem à porta da Sé de Évora em uma escada, cada um com sua corocha de papel na cabeça, com letras que diziam: «Profeta do Porto Santo», com um círio aceso, cada um, na mão, enquanto se disse a missa da terça, ela vestida, e ele nu da cinta para cima, e fossem soltos, visto ser obra dos demónios.

E quanto à morte de João Calaça, se não procedesse por ela contra pessoa alguma, por serem também obras do demónio que os cegou, a todos. E condenou el-Rei a todos os moradores da ilha do Porto Santo, por crerem as ditas abusões dos profetas falsos, em duzentos cruzados para uma obra da dita ilha, sc. os juízes, vereadores e pessoas da governança da ilha, cada um em dez cruzados, e o outro povo, segundo tivesse a fazenda, os quais duzentos cruzados se pagaram e, estando na dita ilha o dito escrivão Henrique Coelho, se arrecadaram e se entregaram a Estêvão Calaça, nela morador, para se gastarem em coisas necessárias à terra, como el-Rei mandava.

Os clérigos foram condenados em penas e castigados pelo provisor António Machucho, que, então, era em Portugal, da Sé do Funchal, por estar vacante. Estas e outras muitas coisas se passaram na verdade, como consta da devassa, que aqui não declaro. Do profeta Fernando dizem alguns que endoideceu, ou se fingiu doido para melhor se livrar; outros que morreu preso no Limoeiro; outros que, depois de sentenciado e penitenciado, se foi em romaria a terras estranhas, fazendo penitência, e, finalmente, nunca mais veio à ilha, nem apareceu, nem se viu. Mas a profeta casou e viveu em Portugal, sem tornar mais ao Porto Santo, onde tinha feito coisas não santas.

Alguns, por este feito, querem alrotar (65) dos moradores da ilha do Porto Santo, que não têm a culpa de seus antepassados, mas, ainda que a tiveram, não é ofício de homem cristão, humano e fraco, alrotar das culpas alheias, pois pode cair em outras semelhantes e maiores; e já que o cordão, que está torcido muitas vezes, se destorce, o que tem o telhado de vidro não devia tirar pedrada a telhado alheio.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Segundo 34

CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO

COMO CHEGARAM OS DOIS CAPITÃES JOÃO GONÇALVES ZARGO E TRISTÃO VAZ À ILHA DA MADEIRA, E DE ALGUMAS COISAS QUE FIZERAM E CASAS DE DEVAÇÃO, QUE

NELA FUNDARAM (66)

Deixando os dois capitães, João Gonçalves Zargo e Tristão (a quem muitos chamavam Tristão Vaz, mas nas doações dos Infantes e nas provisões, que el-Rei lhe mandava, não o nomeava mais que por Tristão da Ilha, como em seu lugar se dirá) a Bartolomeu Palestrelo na ilha do Porto Santo, beneficiando a terra e governando sua capitania, se partiram para a ilha da Madeira e, chegando a ela, o primeiro porto que tomaram foi o dos Ingreses, a que se pôs nome Machico, pelo Machim, ingrês, que na terra estava sepultado, como já tenho dito.

Saindo em terra, doendo-se deste Machim, primeiro descobridor dela, a primeira coisa, que se fez, foi traçar uma igreja da invocação de Cristo, como o ingrês pedia nas letras que ali deixara escritas, e, mandando cortar a árvore que estava sobre a sepultura, foi traçada a igreja, de maneira que sobre as mesmas sepulturas ficou a capela. E porque neste lugar a primeira missa, que se disse, foi da Visitação de Santa Isabel, ficou esta Casa da Misericórdia, onde hoje em dia fazem a festa por tal dia o provedor e irmãos desta confraria em Machico. E foi esta a primeira igreja que se fez naquela ilha da Madeira, e chamou-se de Cristo, porque a ilha era do Mestrado de Cristo (67).

Esta vila de Machico, cabeça e assento deste capitão primeiro, Tristão, (ali então fundada) ainda que seja pequena e de poucos vizinhos, é mui bem assentada e alegre, de muitas hortas e pomares, situada no meio de uma ribeira tão fresca como soberba, por ser mui espaçosa, amena e caudal, e não foi menos deleitosa aos olhos que de proveito, pelos canaviais de açúcar, que se nela depois prantaram, de uma parte e de outra regados com a mesma ribeira, que mui grande, larga e formosa parece, assim da terra como do mar, onde vai acabar e se mete na água salgada por antre a vila, que ali se fundou, em um recebimento de praia, tão soberba à vista de quem a ela chega, resguardada de todos os ventos e tormentas do Sul, que, com razão, se pode afirmar ser uma das mais formosas e alegres obras da Natureza, pela frescura da ribeira e remanso que faz o mar, quase como rio, pela terra entrando, onde podem seguramente ancorar grossas e poderosas naus. E foi esta sorte, que coube a Tristão, tão felice naquele tempo, como agora enganosa pola fertilidade que o resto da ilha de si mostrou por discurso do tempo na jurdição do Funchal, que coube ao Zargo, como, adiante, veremos.

Deste lugar de Machico se passou o capitão João Gonçalves para o Funchal, onde, abrigando os navios aos ilhéus que no cabo deste lugar estão, por haver ali uma formosa enseada, determinou fazer sua morada em terra, de madeira, a qual logo fez, apegada com o mar, em um lugar alto, onde depois a capitoa Constança Rodrigues fundou uma igreja de Santa Catarina (68).

Feita pousada neste lugar, em que agasalhou sua mulher e filhos, entendeu o capitão Zargo em fazer uma igreja que fosse princípio e fundamento da vila do Funchal, e, por estar segura e bem assentada, a mandou ordenar à beira do mar, no cabo do vale do Funchal, ao longo da primeira ribeira deste prado, onde fazia o mar contino (sic), a corrente da ribeira, uma abra de muitos calhaus e seixos miúdos, lavados da continuação das ondas dele, que nela batiam, e por esta razão houve nome esta primeira igreja do Funchal, vulgarmente, Nossa Senhora do Calhau, sendo seu orago da Natividade da Virgem, cuja festa celebra a Igreja em os oito dias de Setembro (69).

Daqui acordou o capitão, vendo que não se podia com trabalho dos homens desfazer tanto arvoredo que estava nesta ilha des (sic) o começo do mundo, ou da feitura dela, e para o consumir para se lavrarem as terras e aproveitar-se delas era necessário pôr-lhe o fogo. E,

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Segundo 35

como quer que com o muito arvoredo, pela muita antiguidade, estava dele derribado pelo chão e outro seco em pé, apegou o fogo de maneira neste vale do Funchal, que era tão bravo, que, quando ventava de sobre a terra, não se podia sofrer a chama e quentura dele, e muitas vezes se acolhia a gente aos ilhéus e aos navios até o tempo se mudar; e por ser o vale mui espesso, assim de muito funcho como de arvoredo, ateou-se de maneira o fogo que andou sete anos apegado pelas árvores e troncos e raízes debaixo do chão, que se não podia apagar e fez grande destruição na madeira, assim no Funchal como em o mais da ilha, ao longo do mar, na costa da banda do Sul, onde se determinou roçar e aproveitar (70).

Tinha el-Rei e o Infante avisos, cada mês, da fertilidade e frescura da ilha, e das muitas ribeiras e fontes de água, de que a terra era abundante, pelo que, cada verão, mandava navios com animais domésticos, ferro, aço e gado, que tudo frutificava grandemente, em tanto que de cada alqueire de trigo, que semeavam, colhiam pelo menos sessenta alqueires. E as rezes e o gado, ainda que mamavam, já pariam; e de tudo se dava em abundância, e não semeavam coisa que não multiplicasse em tresdobro com a muita fertilidade e grossura e viço da terra.

O Infante Dom Henrique, como era mestre e governador do Mestrado de Cristo, em cuja Ordem cabia esta ilha da Madeira, como ministrador dela, mandou a Sicília buscar canas de açúcar para se prantarem na ilha, pela fama que tinha das muitas ribeiras e águas que nela havia; com elas mandou vir mestres para temperamento do açúcar, se as canas nela se dessem; a qual pranta multiplicou de maneira na terra que é o açúcar dela o melhor que agora se sabe no Mundo, que, com o benefício que se lhe faz, tem enriquecido muitos mercadores, forasteiros e boa parte dos moradores da terra. Na qual havia tanta quantidade de madeira, tão formosa e rija, que levavam para muitas partes cópia de távoas traves, mastos (sic), que tudo se serra com engenho de água, dos quais ainda agora há muitos, da banda do Norte da mesma ilha.

E neste tempo, pela muita madeira que dela levavam para o Reino, começaram com ela a fazer navios de gávea e castelo d’avante, porque dantes não os havia no Regno, nem tinham para onde navegar, nem havia mais navios que caravelas do Algarve e barinéis em Lisboa e no Porto.

Depois que o fogo desapegou do arvoredo e da costa do mar, determinou o capitão fazer sua morada (como fez) em um alto, que está sobre o Funchal, e, logo defronte de suas pousadas, fundou uma igreja da invocação de Nossa Senhora da Concepção para seu jazigo (olhando, como prudentíssimo, para o fim logo no começo), a qual vulgarmente lhe chamam Nossa Senhora de Cima, por estar fundada em cima da vila, em um teso ao pé de um pico, onde depois seu filho, João Gonçalves, de raiz fez um convento de freiras de Santa Clara, da ordem de São Francisco da observância, tão magnífico na fábrica como ilustre nas muitas e virtuosas madres, que nele hoje em dia fazem vida de santas religiosas, porque, além de ser um dos grandes e famosos moesteiros (sic) do Regno de Portugal, é tão observante e experimentado na virtude, que deste convento levam algumas madres para reformação de outros virtuosos conventos (71).

A capitoa Constança Rodrigues, por ser mulher santa e muito devota da bem-aventurada Santa Caterina, ali, onde primeiro fez o capitão morada, quando chegou ao Funchal, mandou fazer uma igreja desta santa, e a par dela fez muitas casas para gasalhado de mulheres de boa vida, pobres, merceeiras, a quem deixou esmola para sempre terem cuidado de limparem e servirem aquela casa, como ainda agora se costuma. E, porque vieram frades com o capitão, da ordem de São Francisco, e os que achou no Porto Santo, mandou-lhe fazer um gasalhado no Funchal, onde depois, por tempo, se fez uma igreja de São João Baptista, pela ribeira, acima de Santa Caterina, onde estes frades se agasalharam em umas casas que, apegado com a igreja, fizeram com sua horta e frescura de água. Mas porque este lugar era ermo, e nele um frade (por induzimento do demónio, que sempre urde semelhantes teias) se enforcou por ser despovoado, estes religiosos ordenaram uma casa em baixo, na vila do Funchal, em chãos e terras defronte de Santa Catarina, além da ribeira, onde ora está fundada uma das melhores casas desta ordem, que a província tem em Portugal; o qual convento é da observância, tão sumptuoso como fresco, em que sempre estão perto de cinquenta frades, muitos letrados, religiosos de tanta virtude e exemplo, quanta se pode achar no mundo; e assim está esta ribeira com estes dois sumptuosos e aprovados moesteiros ornada, acompanhada e enobrecida de aquém e de além com tanta religião e virtude.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Terceiro 36

CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO

COMO O CAPITÃO JOÃO GONÇALVES ZARGO CORREU GRANDE PARTE DA COSTA DA ILHA, INDO TAMBÉM COM ELE O CAPITÃO TRISTÃO VAZ PARA REPARTIREM A ILHA,

E DO QUE LHE ACONTECEU ATÉ SE DESPEDIREM

Depois de ter o capitão João Gonçalves Zargo ordenadas as casas de devação (sic) e outras para gasalhado dos que vinham povoar, mandando chamar a Tristão Vaz para (descobrindo a terra) fazer antre ambos a repartição da ilha, determinou correr toda a costa dela, porque o fogo era já desapegado do lugar do Funchal, e ordenou repartir a terra com quem a aproveitasse, para que mandou fazer prestes certos batéis que haviam de ir por mar, e ele com alguns de cavalo e gente de pé por terra, uns diantes dos outros, por não haver ainda caminhos; e com a detença que tinham em partir as terras andavam pouco cada dia.

Chegando a um alto sobre a Câmara de Lobos, traçou ali onde se fizesse uma igreja do Espírito Santo; passando mais abaixo a umas serras (72) muito altas, ali traçou outra igreja da Vera Cruz. E todos estes altos tomou para seus herdeiros.

Daqui se meteu nos batéis para ver a terra do mar e mandou gente por terra, que caminharam com grande trabalho e perigo, não pelo haver na ilha de animais feroces, nem bichos peçonhentos e nocivos, como em outras partes, porque nesta fresca ilha se não achou outro género de bichos senão umas lagartixas pequenas de um dedo, que não fazem dano notável, nem são peçonhentas. Mas, tornando à gente que por terra descobriam, por ser mui fragosa a ilha, daqui para baixo, de altas rochas, profundas ribeiras, ásperos caminhos, espessos montados, passaram mal e puseram muitos dias no caminho até chegarem daí a três léguas a uma furiosa ribeira, na praia da qual os estava aguardando o capitão, que em terra desembarcara e tinha traçado uma povoação, a que deu nome Ribeira Brava, pela que corria neste lugar que aqui depois se fundou, tão nobre e fresca dos melhores da ilha, que, além de ter muitos frutos e mantimentos em abundância, é e foi sempre tão generosa com os moradores, que nela vivem, que, quando convinha (73) aos capitães do Funchal, que depois foram, socorrer os lugares de África com gente, deste só lugar tiravam tão nobres cavaleiros e gente lustrosa, que à sua custa iam servir a el-Rei e tinham tanto nome, como se ao diante verá no discurso da história, além de outra nobre gente, criados dos capitães, que sempre daqui os tiveram mui cavaleiros e de nobre geração.

Não é este lugar vila, pollo deixar de ser à míngua de muitos vizinhos e bom assento, e ser o somenos da ilha; antes é o mais bem assentado e magnífico de todos, senão por ser termo da cidade do Funchal e uma fresca quintã, donde os moradores da cidade acham e lhe vai o melhor trigo, frutas, caças, carnes e em mais abundância que em toda a ilha; e pode-se com razão chamar celeiro do Funchal, como a ilha de Sicília se chama de Itália.

Aqui se tornou o capitão a meter nos batéis e chegou até uma ponta, que se faz abaixo uma légua, que entra muito no mar, e, porque na rocha, que está sobre a ponta, se enxerga de longe e se vê claro uma veia redonda na mesma rocha com uns raios que parece Sol, deu-lhe nome o capitão a Ponta do Sol, onde também traçou uma vila, que depois se fundou, a primeira de sua jurdição. Aqui está a nobre e rica fazenda que se diz a Lombada do Esmeraldo, tão célebre por nome como por fama (74), pelos muitos açúcares que se nela recolhem, que já foi ano que deu vinte mil arrobas dele. A qual Lombada o capitão tomou para seus filhos, e depois correu tais transes, que agora nenhum deles a possui, por se dividirem e a venderem.

Daqui tornou o capitão a caminhar por terra, a cavalo, com os que com ele costumavam ir e, passando uma ribeira que está além desta Ponta do Sol, traçou uma igreja, em uma ladeira, do Apóstolo Santiago. E, além, acharam ainda o fogo que mandou pôr pela costa, pela qual razão não puderam passar, por estar o arvoredo muito cerrado e com grande fogo em parte dele,

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Terceiro 37

pelo que desceram a uma ribeira e, sempre ao som da água, foram dar no mar, onde acharam os batéis; ali deixaram os cavalos a quem os levasse por terra, como pudesse, e meteram-se outra vez nos batéis. E, correndo a costa bem duas léguas sem achar onde desembarcar, foram dar em uma grande abra, onde, desejosos de saber a terra, desembarcaram antre os penedos, fazendo ali à mão um desembarcadouro, a que o capitão pôs nome Calheta; e sobre esta Calheta tomou uma lombada grande para seu filho João Gonçalves. E nesta mesma ribeira da Calheta, para o Ponente, tomou outra para sua filha Breatiz Gonçalves. E logo aí, em outra lombada da mesma filha, em um lugar alto, de boa vista do mar e da terra, traçou de sua mão o mesmo capitão uma igreja de Nossa Senhora de Estrela e disse que esta igreja havia de deixar muito encomendada a seus filhos, porque havia muito tempo que desejava edificá-la em um lugar de seu gosto.

Neste lugar da Calheta, mais abaixo, chegado a uma formosa ribeira, se fundou a vila, que tomou o nome da Calheta, a mais fértil de todas as da ilha, por ter maior comarca. É esta vila tão nobre em seus moradores, como abastada pelos muitos e baratos mantimentos que nela se acham. Desta saíram em companhia dos capitães do Funchal muitos e nobres cavaleiros a servir el-Rei, à sua custa, nos lugares de África e nos socorros que os capitães levaram, onde todos, além de darem mostras de suas pessoas, gastaram muito do seu, porque eram ricos, pelas grossas fazendas que neste termo há, como é a do Arco, tão afamada, e outras, que andam agora divididas por diversos herdeiros. Esta vila da Calheta, e seu termo, foi o condado do ilustríssimo capitão Simão Gonçalves da Câmara, conde desta Vila Nova da Calheta, como se dirá em seu lugar.

Da Calheta passou o capitão abaixo, até à derradeira ponta sobre o mar, donde parece que não há mais terra; e, estando aqui, lhe trouxeram os do batel de Tristão e do batel de Álvaro Afonso um peixe, que parecia pargo de maravilhosa grandura e o maior que até àquele tempo tinham visto, por razão do qual peixe, ficou nome àquela ponta a do Pargo. Desta ponta do Pargo vira a terra para o Norte até outra ponta, que distará desta, uns dizem duas, outros três léguas, a qual mandou descobrir por Tristão, e, por ser ele o primeiro que chegou a ela, lhe ficou o nome que hoje tem, a ponta de Tristão, que jaz ao Noroeste. E daqui para trás traçou o capitão João Gonçalves a capitania de Machico, que ficou a Tristão, como trazia por regimento do Infante Dom Henrique, partindo a ilha de Noroeste a Sueste, que vem sair a outra ponta da banda do Sul, em que se fincou um ramo ou pau de oliveira, que viera do regno, por balisa desta jurdição, donde ficou à ponta nome ponta da Oliveira, e está ao mar de um lugar que chamam Caniço, por nele estarem as terras cobertas de um carriço, como canas delgadas, donde tomou o nome, ainda que corruptamente, porque esta erva, que chamam carriço, tem uns grelos como compridas canas; o qual lugar do Caniço é fim da jurdição de Machico e princípio da jurdição do Funchal.

Da ponta do Pargo se tornaram os capitães para o Funchal, fazendo o mais do caminho por mar por a terra ser ainda mui trabalhosa. E, despedindo-se, por então, um do outro, começaram, cada um em sua capitania, a entender no enobrecimento delas e pôr em obra a edificação das igrejas, e das vilas e lugares, e lavrança das terras (75).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Quarto 38

CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO

DE COMO O CAPITÃO JOÃO GONÇALVES ZARGO TRAÇOU A VILA DO FUNCHAL, QUE SE FOI ENOBRECENDO COM O CRESCIMENTO DOS FRUTOS E MORADORES DE

TODA A ILHA E FORAIS E LIBERDADES QUE OS REIS LHE DERAM

Indo-se o capitão Tristão Vaz para Machico, o deixemos, por agora, nele ocupado em mandar cultivar e beneficiar a terra para dar fruto, e edificar na vila e em outros lugares casas e povoações para povoar a ilha, por fazer menção do que também fazia o capitão João Gonçalves Zargo na sua jurdição do Funchal para o mesmo efeito (76).

Nesta jurdição do Funchal estão duas vilas e dois lugares, ao presente acima nomeados, além de outras aldeias, lugares e fazendas, povoadas ao longo da costa, de que não faço, por agora, menção, por terem seu nome fundado no que depois as fazendas e frutas da terra lhe deram, pelos nobres e ricos homens que os lavraram e possuíram, como é a Madalena (77), coisa tão singular e nobre, pela ermida que os moradores ali fizeram desta Santa, onde se colhe muito proveito de açúcares, e o Paúl, e outros lugares e fazendas conhecidas. Tem finalmente esta jurdição do Funchal catorze léguas da banda do Sul, e é o melhor de toda a ilha, e três da banda do Norte, pouco mais ou menos, que estes felicíssimos capitães possuem há mais de cento e setenta anos, sem intermissão alguma de sucessores (78).

Chegado João Gonçalves ao Funchal começou a traçar a vila e dar as terras de sesmaria, como tinha por regimento do Infante Dom Henrique, senhor da dita ilha da Madeira, e, conforme ao dito regimento, deu as terras que não eram lavradas por cinco anos, dentro nos quais se obrigavam aproveitá-las e lavrá-las, sob pena que não cumprindo neste termo de lhas tirarem e dá-las a quem as aproveitasse.

Foi assim tudo tanto em crescimento em ambas as jurdições, com a boa diligência de seus capitães, que em breve tempo se povoou e enobreceu a ilha toda.

E estando o Infante Dom Henrique no Algarve, em Aljazur, mandou ao capitão João Gonçalves umas lembranças, em que lhe encomendava muito a justiça, principalmente, e a lavrança da terra, e que lhe mandasse mostra dos frutos dela, pela fama que corria de sua fertilidade, e que lhe encomendava que, para se gastar o trigo que semeavam, seria bem pô-lo por preço de oito rs. o alqueire, para os lavradores terem algum proveito (porque dantes valia menos); e usava nestas lembranças destas palavras antigas: «Enviarmeis senhos (79) pedaços de paus de toda a ilha, e senhos ramos dela, e escreveime como hão nome, e o fruto também como se chama; enviame senhos pedaços de pedras, e um saco de terra, e lembrevos o pão para a novidade segundo vos falei, se o querem vender a quatro rs., que me apraz de lhos dar por ele; e sede bem lembrado que se me pague a dízima de toda outra coisa, quanto houver; e que façam canaviais nas outras povoações; e mandai a João Afonso que correja outra mó, e se faça um moinho de água, segundo o de Tomar; seja-vos em lembramento de mandardes o pastel, que se carrega; e dizei a João Afonso que mande algum, se está corregido». E outras coisas mais miúdas, que estão no cartório da cidade do Funchal, pelo qual se verá a fertilidade daquela próspera ilha e o seu fundamento. E de todas estas coisas sobejas não há na terra mais que açúcar e vinho, porque o mais não o dá a terra em abundância, antes vem tudo de carreto.

O ano seguinte mandou o capitão João Gonçalves ver que coisa era a ilha que aparecia defronte daquela, ao Sueste, e distará da ilha da Madeira cinco léguas, e, pela notícia que lhe deram dela como era alta, pequena e sem água, e de pouco proveito por ter muitas rochas, não curou de a mandar povoar, por não ser de qualidade para isso; antes daí à (sic) certos anos lhe mandou lançar gado, grosso e miúdo, pavões e outras aves, e animais mais de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Quarto 39

proveito, que multiplicaram na terra muito bem. E, por não se povoar esta ilha, deu-lhe nome a Deserta, da qual e de outras, que perto dela estão, direi adiante (80).

Povoada a vila do Funchal, a que o capitão deu o nome por se fundar em um vale formoso de singular arvoredo, cheio de funcho até o mar (como já tenho declarado), trabalhou (81) por manter todos em justiça, paz e quietação, e que vivessem (82) em serviço de Deus, para o que escreveu ao Infante lhe mandasse sacerdotes (além dos religiosos que trouxera) para o estado eclesiástico apascentar o povo em doctrina e ministério dos sacramentos da Santa Madre Igreja. E, como o Infante fosse governador e administrador do Mestrado de Cristo, de cuja Ordem são os freires da vila de Tomar, a requerimento do Infante, o Dom Prior desta Ordem, que Dom Frei Pero Vaz se chamava, mandou certos clérigos com um vigairo, beneficiados, para a vila do Funchal e a de Machico; os do Funchal serviram em Santa Maria do Calhau, onde um domingo diziam missa ao povo e outro domingo em Nossa Senhora da Concepção de Cima, porque estas duas igrejas eram as principais da vila. E por causa do capitão, que morava em Nossa Senhora de Cima, vinha o povo ouvir missa nesta igreja um domingo e outro não.

Depois, por discurso do tempo, que a terra foi mostrando seus frutos e dando fama deles no regno, e enobrecendo-se com moradores ricos, vendo o Bispo, que, então, era de Tânger, como esta ilha ia em crescimento e que não tinha bispo e prelado que a governasse, impetrou do Papa um breve, sem licença de el-Rei, para anexar esta ilha a Tânger, o que sabido pela Infanta Dona Breatiz (que, como tutora de seu filho, o Duque, governava a ilha), enviou uma provisão ao capitão e moradores do Funchal na era do Senhor de mil e quatro centos e setenta e dois, que ora está no Livro do Tombo da Câmara do dito Funchal, que tal Bispo não consentissem na ilha, nem o povo obedecesse a provisão sua, porquanto o estado eclesiástico pertencia à jurdição dos freires de Tomar, ao vigairo da qual Ordem e convento somente haviam de obedecer, por ser ilha do dito Mestrado e descoberta pelo Infante Dom Henrique, Mestre da Ordem e Cavalaria de Jesu Cristo. E, juntamente com esta provisão, veio outra do mesmo vigairo da vila de Tomar, notificando ao povo a provisão que o Bispo de Tânger tinha e como, indevidamente, queria usurpar o estado eclesiástico, que pertencia a sua Ordem, e que lhes notificava que a tal Bispo não obedecessem, e que se não agastassem, porque cedo, com o favor divino, esperava el-Rei, nosso Senhor, criar bispo da mesma Ordem na ilha. E o mesmo escreveu ao vigairo de Machico, que se chamava frei João Garcia e o primeiro que houve na mesma vila.

Crescendo e multiplicando o fruto da terra, assim iam crescendo as povoações e moradores com a fama de sua fertilidade, e os filhos do capitão João Gonçalves Zargo, fazendo-se homens, que foram servir a el-Rei em África, principalmente o morgado e o segundo filho, Rui Gonçalves da Câmara, que depois foi capitão desta ilha de São Miguel (como a seu tempo direi, quando dela tratar), em remuneração dos quais serviços el-Rei Dom Afonso, quinto do nome, no ano do Senhor de mil e quatro centos e sessenta e sete, confirmou sua (83) doação, que o Infante Dom Fernando tinha feita ao dito Rui Gonçalves, das saboarias pretas de toda a ilha da Madeira.

E os descobridores, pessoas nobres que em companhia do dito capitão João Gonçalves vieram, tiveram filhos, e muitas terras e propriedades, que grangearam, e geração mui nobre, como foi a de Gonçalo Aires, de quem procede a casta, que se diz na ilha da Madeira, a Grande (84), e a de João Lourenço, e Rui Pais, e Álvaro Afonso, que destes procedeu, então, a mais antiga e nobre casta da mesma ilha, excepto a dos capitães e seus filhos, com os quais se liaram depois alguns desta geração, assim pelas propriedades que estes aquiriram (sic), como por sua nobreza.

El-Rei Dom Afonso, quinto do nome, deu a esta vila do Funchal muitos e bons forais e liberdades, e que os moradores, nem mercadores que a ela viessem, não fossem obrigados a portagens e outras fintas que havia no Regno, e outros privilégios, como consta de seus alvarás, concedidos à mesma vila no ano de mil e quatrocentos e setenta e dois, que estão no Tombo da Câmara do Funchal, que sempre foi vila até o tempo de el-Rei Dom Manuel, que a fez cidade e a acrescentou, e enobreceu com obras que nela mandou fazer, e lhe confirmou liberdades e deu outras, como adiante, em seu lugar, se dirá, com as quais liberdades e com os fertilíssimos frutos da terra veio a ilha ser tão rica e populosa, como agora direi (85).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Quinto 40

CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

EM QUE SE COMEÇA A DESCRIÇÃO DA ILHA DA MADEIRA, COMEÇANDO PELA BANDA DO SUL, DA PONTA DE SÃO LOURENÇO, ATÉ À ENTRADA DA CIDADE DO

FUNCHAL (86)

A ilha da Madeira que, como tenho dito, lhe pôs nome assim o felicíssimo capitão primeiro dela, João Gonçalves Zargo, por causa do muito, espesso e grande arvoredo de que era coberta e toda cheia de infinidade de madeira, é alta, com montes e rochedos mui fragosos, que, por ser muito fragosa, dizem que seu nome próprio era, ou devera ser, ilha das Pedras; tão afamada e guerreira com seus ilustres e cavaleirosos capitães, e tão magnânimos, e com generosos e grandiosos moradores; rica com seus frutos; celebrada com seu comércio, que Deus pôs no mar oceano ocidental para escala, refúgio, colheita e remédio dos navegantes, que de Portugal e de outros regnos vão, e de outros portos e navegações vêm para diversas partes, além dos que para ela somente navegam, levando-lhe mercadorias estrangeiras e muito dinheiro para se aproveitar do retorno que dela levam para suas terras; saudosa com altíssimos montes e fundos vales, povoados de alto e frondoso arvoredo de diversas árvores; regada com grandes e frescas ribeiras de doces e claras águas; enobrecida com muitas e grandes povoações de soberbos e sumptuosos edifícios; esmaltada com ricas e formosas quintans; ornada de ricos e custosos pomares de esquisitas e diversas frutas; enfeitada com artificiosos e deleitosos jardins de várias e curiosas ervas e flores; um rubi, finalmente, que, com seu resplendor, cor e formosura, dá graça a toda a redondeza do anel do Universo em circuito, pois com seu licor e doçura, como com néctar e ambrosia, provê as Índias ambas, a Oriental aromática e a Ocidental dourada, chegando e adoçando seus frutos, de extremo a extremo, quase o mundo todo.

E ainda que os da ilha de Ormuz, que está na boca do mar Perseu, lhe chamam pedra do anel do Mundo, esta com muita mais razão, pois tem mais preminência (sic) na boca de todalas nações, não somente pedra desse anel grande, mas, pois o homem é um mundo pequeno, se pode com verdade chamar jóia de seu peito; que, por ser tal e parecer nele um único horto terreal tão deleitoso, em tão bom clima situada ou criada, disse um estrangeiro que parecia que, quando Deus descendera do Céu, a primeira terra em que pusera seus santos pés fora ela.

Está esta tão célebre ilha em altura de trinta e dois graus e dois terços desta nossa parte do Polo Setentrional. Tem da parte de Leste o cabo de Quantim em África (perto do cabo de Gué), que está com o cabo de São Vicente, Norte e Sul, em distância de oitenta léguas, e com esta ilha da Madeira, Leste Oeste, cento e dez léguas, e com o Porto Santo cem léguas. Tem figura de uma rica pirâmide, cujo basis está da parte do Ocidente, ainda que algum tanto rombo, com que também fica toda feita como uma folha de plátano, e o cume da parte do Oriente é a ponta de São Lourenço, a qual ilha com o Porto Santo está Nordeste Sudoeste, da mesma maneira que está o Porto Santo com a Barra de Lisboa, ou com os Cachopos, e são doze léguas de terra a terra; e tem três ilhas, de que adiante direi, que se chamam as Desertas e estão Norte e Sul com a mesma ponta de São Lourenço três léguas de uma terra a outra.

A Gran Canária está com esta ilha da Madeira ao Sul e à quarta do Sueste e, ordinariamente, quase todas as ilhas de Canária (como já disse acima) demoram desta ilha do Sul até o Sueste, pouco mais ou menos, e quem for por vinte e oito graus atravessará as ilhas Canárias todas; a Palma, que é uma delas e dista da cidade do Funchal setenta léguas, demora da mesma cidade ao Sul e quarta do Sudoeste, e, resguardando-se de irem ao Sudoeste, porque é derrota falsa, e errando a ilha, não a poderão tornar a tomar por causa dos ventos e aguagens que ventam naquelas partes. Tenerife está Norte e Sul com o porto da ilha da Madeira outras setenta léguas.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Quinto 41

Da parte do Norte não tem a ilha da Madeira carregações, para que navios possam carregar, senão no verão, porque a terra não é para isso, nem tem portos, mas tem bons abrigos para navios, quando há tempo contrário da parte do Sul, por ser alta.

Terá de comprido dezasseis léguas e meia e de largo quatro, pouco mais ou menos, ou, como outros querem, dezoito de comprido e perto de seis de largo; e principalmente dizem que tem esta largura, tomando a ilha pelo meio dela, para a parte de Loeste, que é a do Ponente, onde tem o basis rombo, mas para a parte de Leste vai aguçando até a ponta de São Lourenço e é mais estreita e delgada.

Sua compridão é de Leste a Oeste, da parte de São Lourenço, que está a Leste, até à ponta do Pargo, que está a Oeste, onde se acaba sua compridão. Tem uma grande baía da parte do Sul, que começa da Ponta de São Lourenço até à ponta do Pargo, que está uma légua antes de chegar à cidade, e terá de ponta a ponta cinco léguas; em toda esta costa se pode surgir, porque é bom surgidouro, de até vinte braças, a que se podem chegar os navios bem, sem temor dela.

Alguns dizem que a ponta de São Lourenço está a Lés-nordeste, e que demora o Porto Santo dela doze léguas ao Nordeste. Partindo da ponta de São Lourenço (que se chamou assim por ali o primeiro capitão, João Gonçalves Zargo, chamar por ele, acalmando-lhe o vento) pela banda do Sul para o Ocidente, uma légua da ponta está uma povoação de perto de quinze moradores, que se chama o Caniçal; são terras rasas e de pão. Do Caniçal até a vila de Machico há duas léguas, que são de terra muito alta, de rochas e picos e mato, e onde se emparelham com a vila, que é à boca de uma formosa e mui crescida ribeira, ao longo da qual a mesma vila está situada; faz a terra uma grande enseada com duas pontas, cuja boca terá um quarto de légua de largo, e da barra para dentro estão uns baixos no meio da enseada, sobre um dos quais (que de maré vazia descobre parte dele) está arvorada uma cruz por marca, com que se desviam os navios, para que, entrando no porto, não vão dar neles.

Este porto de Machico, além da grande majestade que tem (como já tenho dito), é muito bom com todos os ventos por ser a terra de uma e outra parte muito alta, e, como começam os navios a entrar da barra para dentro, ficam como em um manso rio, salvo quando aboca por ela o Lés-sueste que, então, se é muito rijo, não podem sair para fora e convém amarrar-se bem, porque, se se desamarram, não têm remédio senão enxorar pela ribeira acima e enfiar-se com ela, como já aconteceu muitas vezes.

Desta soberba entrada e nobreza desta vila já tenho dito acima. Terá de quinhentos até seiscentos fogos e uma formosa igreja, muito bem ornada com ricos ornamentos, antre os quais há uma rica charola, mais fresca e de mais obra que a da cidade do Funchal, ainda que mais pequena, em que levam o Santíssimo Sacramento, na procissão que se faz dia de Corpo de Deus.

Ainda que tem esta capitania de Machico outra vila, de Santa Cruz, que é maior que ela, esta foi a primeira cabeça de toda a capitania, pois ainda agora tem o nome dela, e também parece ser a primeira povoação, porque, como primeiro tronco e princípio, há nela muito fidalgos de geração e muita gente nobre, e ainda têm eles antre si que Machico é a gema da fidalguia de toda a ilha.

Tem esta vila pela ribeira acima dois ou três engenhos de açúcar, e vinhas e pomares de toda fruta, e boa, e bom açúcar; mas o vinho dizem ser o pior de toda a ilha, que, por ser tal, para poucas partes se carrega. Há também nesta vila muitas mulatas, e muito bem tratadas e de ricas vozes, que é sinal da antiga nobreza de seus moradores, porque em todas as casas grandes e ricas há esta multiplicação dos que as servem.

Para se regarem canas de açúcar nesta vila. e para o Caniçal, se tirou uma levada de água de tão longe, que do lugar, onde nasce, até à vila serão quatro léguas e meia, ou perto de cinco, na qual se gastaram mais de cem mil cruzados, por vir de grandes serras e funduras, e dizem que na obra dela se furaram dois picos de pedra rija, por não haver outro remédio. Rafael Catanho, genoês (87), com o grande espírito que têm quase todos os estrangeiros, e principalmente os desta nação, foi o primeiro que começou a tirar esta água, e depois el-Rei a mandou levar ao cabo; e, pelo muito custo que fazia, já não se usa.

Saindo desta vila de Machico (de cujos capitães direi adiante) meia légua para a parte do Ponente, está uma ribeira que se chama o Porto do Seixo, com que mói um engenho de açúcar dos herdeiros de George de Leomellim (88), ou de Mellim, como, outros dizem, genoês de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Quinto 42

nação, que é muito boa fazenda, junto do caminho que vai ao longo da costa desta banda do Sul, de que vou falando. Também há neste Porto do Seixo, pela ribeira acima, muitos vinhos de malvasias e vidonhos melhores que os de Machico, e muita outra fruta.

Do Porto do Seixo a meia légua está outro engenho de açúcar, que é dos Freitas, acima do caminho, e abaixo dele um moesteiro de frades franciscos, onde estão até oito religiosos de missa, que tem boa igreja, com boas oficinas e aposentos, de que António de Leomellim, do Porto do Seixo, homem fidalgo, rico e mui generoso é padroeiro, com quem ele reparte grandes esmolas de sua fazenda, além das que deixaram seus antepassados para aquela casa, que fizeram.

Do mosteiro um tiro de besta está a nobre e grande vila de Santa Cruz, a melhor de toda a ilha, situada em uma terra chã ao longo do mar, em que tem bom porto, a sua baía de um tiro de besta de largo e calhau miúdo, onde varam os batéis. Tem esta vila como oitocentos fogos, e rica igreja, e uma ribeira de água por meio dela, ao redor da qual há muitas vinhas de malvasias e de vinhos melhores que os de Machico, e muitas canas de açúcar, e uvas ferrais, e das mais frutas de peras e peros, e amexeas (sic), para a terra em muita abundância.

Desta vila para o Ocidente um quarto de légua está uma grande ribeira, de muita água, chamada de Boaventura (pela razão já dita), em que está um engenho de açúcar, e há por ela acima muitos canaviais dele e também muitos vinhos.

Andando mais adiante desta ribeira quase uma légua, está uma povoação de trinta vizinhos do mesmo termo de Santa Cruz, que se chama Gaula, que tem muitas vinhas de malvasias e muitos outros vidonhos.

De Gaula um tiro de besta, indo para a cidade, está uma grande ribeira, muito funda, que se chama do Porto Novo, por o ter muito bom para carregar os vinhos, que há nela, de boas malvasias, que são as melhores da ilha, e de outros vidonhos, que em aquela ribeira se colhem cada ano mais de trezentas pipas de vinho; e tem casais por ela acima, e muita fruta e muita água boa.

Meia légua mais adiante está a fazenda de João Dornelas (sic), do Caniço, homem fidalgo, casado com Dona Mécia, irmã de Dom Luís de Moura, estribeiro-mor do Infante Dom Duarte e pai de Dom Cristovão de Moura, muito privado do grande Rei Filipe e casado com uma filha de Vasqueanes Corte-Real, com a qual lhe fez el-Rei mercê da capitania da ilha Terceira, por falecimento do capitão Manuel Corte-Real, de que não ficou herdeiro; a fazenda de João Dornelas é uma quintã com seu engenho de açúcar e vinhas, e foi casa muito abastada (89).

Desta casa para o Ocidente um quinto de légua, pegado com o caminho, está a fazenda das Moças, filhas de um João de Teives (sic) (que assim se chamaram estas nobres fêmeas, ainda que velhas morreram, por permanecerem sempre, sem casar, na primeira limpeza, com muita honra e virtude e santo exemplo de vida), que é um engenho de açúcar, e boas e chãs terras de canas, e tem dentro, apegado com umas grandes casarias, uma rica igreja (90).

Daqui, adiante, quase meia légua está uma aldeia de duzentos fogos com uma igreja da invocação do Espírito Santo, que se chama o Caniço, em uma ribeira que corre do Norte para o Sul, acompanhada de muitas vinhas de muitos vidonhos e de boas malvasias; ao mar deste lugar está a ponta da Oliveira, onde se prantou uma, por balisa da repartição das duas capitanias, que por esta ribeira se partem, ficando a de Machico ao Nascente e a do Funchal ao Ponente, e por ela dizem que vai a demarcação da borda do mar do Sul até à outra banda do Norte; porque deste Caniço até o longo do mar haverá um quarto de légua, onde está o porto onde se carrega tudo o que há nesta parte, e chama-se Caniço de Baixo, a respeito do outro, que Caniço de Cima é chamado.

Do Caniço a um tiro de besta está uma azenha, a par do caminho, que mói com pouca água, que traz para os moradores do mesmo Caniço. E mais adiante uma légua, uma igreja de Nossa Senhora das Neves, à vista do Funchal, sobre uma ponta que se chama o Garajau, uma légua antes de chegar à cidade, na qual, ao longo do mar, estão alguns dragoeiros, que a fazem mais formosa.

Primeiro que cheguem a esta igreja um tiro de besta, estão no caminho umas árvores altas, chamadas barbuzanos, em cuja sombra costumam descansar os caminhantes, onde se conta que, vindo, de noite, um clérigo de missa do Caniço para o Funchal, debaixo das árvores achou um companheiro que lhe falou e, começando a caminhar ambos, emparelhando com uma

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Quinto 43

igreja que está à borda do caminho e tem uma cerca de muro derredor, cometeu o clérigo ao companheiro que fossem fazer oração, o qual lhe respondeu que já lá fora. Foi, contudo, o clérigo a fazer a sua e, saindo da cerca, achou o companheiro, que lhe pediu a loba e lha levou às costas, e, começando a caminhar por uma ladeira abaixo por antre umas vinhas até uma ribeira seca, que está no fim da ladeira, onde faz um remanso como terreiro, ali o cometeu que lutasse com ele, sendo alta noite. Vendo o clérigo tal cometimento em tal lugar e tais horas, respondeu que vinha cansado do caminho e que não fazia a caso lutar, tendo ruim suspeita da companhia, e tornaram a andar indo ainda ladeira abaixo até chegar à rocha do mar, que é muito alta, ao longo da qual está o caminho; chegados à rocha, o tornou a cometer que lutassem, e o clérigo lhe pediu a loba e se começou a benzer e arrenegar do diabo, e ali lhe desapareceu e se deitou pela rocha abaixo com grande ruído, vindo o clérigo ao Funchal, que é dali uma légua. Dizem alguns que, por ser grande lutador este clérigo, o queria levar o demónio pelo erro que tinha, porque este é seu costume, e que se deixou cair, lutando ambos à primeira queda e, quando veio à segunda, por o clérigo o achar muito rijo, vendo-se levar para a rocha, disse «Jesus me valha», e que a esta palavra fugira o demónio. Mas o que primeiro se disse se tem por mais verdadeiro.

Meia légua de Nossa Senhora das Neves está uma grande ribeira seca, que não corre senão no Inverno, que se chama a Ribeira do Gonçalo Aires, onde dizem que aparece uma fantasma em figura de um sapateiro, algumas vezes com formas às costas. Há por esta ribeira acima muitas vinhas. E um terço de légua adiante dela está uma igreja de Santiago, um tiro de besta de outra, do Corpo Santo, que está pegada com as primeiras casas da cidade do Funchal; chama-se ali o cabo do Calhau.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Sexto 44

CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO

DA DESCRIÇÃO DA NOBRE CIDADE DO FUNCHAL E DO QUE HÁ PELA COSTA DA IGREJA DO CORPO SANTO, ONDE ELA COMEÇA, ATÉ À PRAIA FORMOSA, QUE ESTÁ

ALÉM DELA

Da ponta do Garajau, que está ao Nascente, até uns ilhéus, que estão ao Ocidente, perto da terra, e a ponta da Cruz, que é quase uma légua e meia, faz a terra uma enseada muito grande e formosa, e do Corpo Santo a São Lázaro e as Fontes de João Diniz, que estão ao longo do mar, que é um quarto de légua, há pela costa calhau miúdo e areia, o qual é o porto da cidade, onde ancoram naus e navios, que ali carregam e descarregam, tão povoado e cursado sempre deles, com tanto tráfego de carregações e descarregas, que parece outra Lisboa. E deste quarto de légua de calhau miúdo e areia pela costa é a compridão da grande e nobre cidade do Funchal, ali situada em lugar baixo, em uma terra chã, que do mar se mostra aos olhos mui soberba e populosa, tão bem assombrada nos edifícios como nos moradores, não somente dela, mas também de toda a ilha. Está assentada antre duas frescas ribeiras, a de Nossa Senhora do Calhau, a Leste dos muros com esta igreja, que é freguesia fora deles, e a ribeira de São Pedro, ou de São João, ermidas que estão para o Ponente, porque ambas elas estão ali, no cabo da cidade, ficando a ribeira fora dos muros antre elas, e a igreja de São Pedro dos muros para dentro àquem da ribeira, e São João de fora deles, da batida de Loeste: das quais, para o Ponente, até Câmara de Lobos são terras de canas de açúcar e de novidades de pão, vinhos e frutas. E, para mais fresquidão, vai pelo meio dela a ribeira de Santa Luzia (assim chamada por estar sobre ela no monte uma ermida desta Santa), com a qual moem quatro engenhos de açúcar, que estão dentro na cidade, que a enobrecem muito, um de Simão Achioli (91) que é agora de seu filho Zenobre Achioli (92), florentim (93) de nação, e outro acima, que se chama do Caramujo, outro de Duarte Mendes de Vasconcelos, e mais acima outro de Simão Darja (94); com a qual moem também os moinhos com pedras alvas, com que se fazem boas farinhas; da qual saem as mais das levadas com que se rega a flor e o melhor dela de canas, vinhas e frutas; e por ela acima se colhem cada ano quatrocentas pipas de vinho extremado de bom e grande cópia de frutas de espinho e outras; e há muitas hortas de couves murcianas e outra hortaliça que ela rega.

Está a cidade amurada, da ribeira de Nossa Senhora do Calhau, junto da qual está uma fortaleza nova, até à fortaleza velha, onde tem o capitão sua morada, donde defende o mais da cidade que fica fora do muro, da banda de Loeste até São Lázaro, e, pela ribeira de Nossa Senhora do Calhau, vai o muro em compridão perto de meia légua pela terra dentro, a entestar com rochas mais ásperas, fortes e defensáveis que ele mesmo, (sic) o qual, fabricado com rubelos e seteiras, da banda da ribeira tem três portas, em que estão suas vigias e guardas, pelas quais se serve a cidade, que fica da banda de Loeste deste muro para dentro e para fora. E no muro da banda do mar tem uma porta de serventia, junto de Nossa Senhora do Calhau, e outra, mais no meio da cidade, junto dos açougues, e outra, que é a mais principal, aos Varadouros, defronte da rua dos Mercadores.

Meio tiro de besta desta porta principal está a casa da Alfândega, mais próspera e de melhores oficinas que a da cidade de Lisboa, bem amurada de cantaria e fechada pela terra e pelo mar, que está junto dela e nela bate muitas vezes, quando há aí maresias.

Adiante logo da Alfândega um tiro de besta está a Fortaleza Velha, que é a principal, situada sobre uma rocha, e tem pela banda do mar seis grandes e formosos canos de água, que dela sai e nela nasce, na mesma rocha sobre que é fundada, e de nenhuma maneira se pode tomar nem tolher, pela banda da terra, de nenhuns imigos; a qual fortaleza tem, pela parte do mar, dois cubelos, como torres mui fortes, que guardam o mesmo mar e a artilharia, de que estão bem providos, e, pela banda da terra, outros dois, que guardam toda a cidade por

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Sexto 45

cima, por estarem mais altos que ela, em a qual parte tem também um muro muito alto e forte, com uma fortíssima porta de alçapão; e, assim como tem dentro água, não lhe faltam atafonas, fornos e celeiros para recolher os mantimentos, e ricos aposentos, onde o capitão pousa, adornados com seu jardim e frescura (95).

A primeira rua, das mais principais dos muros para dentro, é a dos mercadores e fanqueiras, ingreses e framengos e outros forasteiros, e de homens ricos e de grosso trato, que vai de Nossa Senhora do Calhau até à fortaleza, e no começo dela, junto de Nossa Senhora do Calhau, está uma não muito grande, mas formosa e cercada praça, de boas casas sobradadas, algumas de dois sobrados, com um rico pelourinho de jaspe, do qual uma grande e larga rua, que se chama a Direita e é a maior da cidade, vai ter ao pinheiro, que é uma árvore que está no cabo dela, a mais grande e formosa que há na mesma cidade. E nesta rua tem o ilustríssimo Bispo Dom Hierónimo Barreto seus aposentos muito ricos, com seus frescos jardins de trás, que entestam com a ribeira de Santa Luzia; e logo mais acima, indo pela mesma rua, está a casa e igreja, da invocação de São Bartolomeu, dos padres da Companhia de Jesu, de muita virtude, exemplo e doctrina, sofredores de muito trabalho por salvar as almas, de que direi adiante; e defronte desta casa, da outra banda, mora Dona Maria, mulher que foi de Duarte Mendes, homem fidalgo, em sumptuosas casas dentro em uma cerca bem amurada, onde tem um engenho de açúcar e casas de purgar açúcares. E, indo mais acima pela mesma rua, está uma boa igreja de São Bartolomeu, e daí até o cabo dela são tudo casas de homens honrados, no fim da qual está um engenho de açúcar de Simão Darja, que chega à ribeira; na qual rua mora também o generoso e rico Zenobre Chiol (96), que tem ali seu engenho de açúcar, que parte com a mesma ribeira.

Desta rua dos Mercadores, além da rua Direita, sai outra, não tão comprida, de outros de menos trato, como é fruta, pano de linho e coisas de fancaria, que vêm de fora, no cabo da qual está um poço, pelo que se chama rua do Poço Novo, logo além está outra, que sai desta primeira dos Mercadores e se chama de João Esmeraldo, por ele ter ali seu aposento, antigo, mui rico, com casas de dois sobrados e piares (97) de mármores nas janelas, e em cima seus eirados com muitas frescuras; e na mesma rua estão ricas casas e aposentos, onde mora o nobre Pero de Valdavesso e Francisco de Salamanca, e outras nobres pessoas. Outra sai desta primeira, chamada rua do Sabão, que serve de lógeas e granéis de trigo, onde mora um Tristão Gomes, que chamam o Perú, o qual tem umas ricas casas de dois sobrados, com poço dentro e portas de serventia, com muitos abrolhos de ferro da banda de fora, e defronte dele, algum tanto mais acima, estão uns paços muito grandes, em que, o mais do tempo, habitam mercadores muito grossos, ingreses.

Desta rua do Sabão sai uma, que se chama do Capitão, por ser a mais direita serventia para sua casa, onde mora uma nobre mulher em ricos aposentos, e, logo mais adiante, Martim Vaz de Cairos em umas casas como paços muito grandes, onde tem uma comprida sala, em que jogam a péla, e janelas de boa vista para a Sé. Nela moram outras pessoas honradas, o cabo da qual entesta com a fortaleza.

E desta rua saem serventias para a Sé, que é uma igreja mui populosa, bem assombrada e fresca, e tem uma formosa torre, muito alta, de cantaria, com um formoso coruchéu de azulejos, que, quando lhe dá o raio do Sol, parecem prata e ouro, em cima do qual está um sino de relógio, tão grande, que levará em sua concavidade trinta alqueires de trigo, de tão soberbo e grande tom, que se ouve de duas léguas, onde acode a gente a qualquer rebate de guerra, quando se ele tange; e, mais abaixo, na torre, estão três janelas, onde estão quinze sinos.

O corpo da igreja, que está sujeita à torre, é grande, com seu adro, também espaçoso, e cercado, em partes, de muro, e com dez degraus, per (sic) que sobem a ele, fora do qual tem um campo tão grande, que correm nele touros e cavalos, jogam as canas e fazem outras festas.

Está esta igreja (que é da invocação de Nossa Senhora da Estrela) arrumada de Leste a Oeste, com a porta principal para o Ponente e as duas portas travessas de Norte a Sul; estão guarnecidos os altares (que são nove) de ouro e azul, com três ricas capelas, afora a principal, onde tem o coro, do arco para dentro, com seus assentos custosos e bem lavrados de rica macenaria (98), e no cruzeiro se diz a Epístola e Evangelho em seus púlpitos. Tem daião, dignidades, cónegos, mestre de capela e cantores de boas e delicadas vozes, todos com

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Sexto 46

honesta renda, mas não com quanta merecem, por serem ministros mui doctos, virtuosos, destros e escolhidos, como agora o é o ilustríssimo prelado deles, Dom Hierónimo Barreto (99).

Além da Sé, para o Ponente, um tiro de besta esforçado está defronte o moesteiro de São Francisco da observância, de boas oficinas, como um dos mais nobres e graves do regno, que terá até cinquenta religiosos. Tem uma igreja muito grande e lustrosa, e principalmente depois que a acrescentou e a levantou o padre frei Diogo Nabo, guardião dela e comissairo de toda a ilha, como ordinariamente o são os guardiães da mesma casa, em a qual há oito capelas mui ricas e dois altares, afora o da capela-mor, e grande cerca, dentro da qual tem água de levadas, com que regam muita hortaliça de couves murcianas, berengelas e cardos e da mais que há, e pomar de árvores de espinho, palmeiras, aciprestes, pereiras, romeiras e toda frescura que se pode ter de frutas e ervas cheirosas, sem ter necessidade das de fora; tem também dentro muitas uvas, e é a gente de tanta caridade, que no verão ajuntam de esmolas trinta pipas de vinho. Dizem missa uma hora ante manhã, onde concorre muito povo; dão muitas esmolas a sua portaria; tem o púlpito, e sempre antre eles há quatro, cinco pregadores. E nesta rua, que vai da Sé para o moesteiro não há mais que um aposento com uma cerca, onde moram João Dornelas e António Barradas, homens mui principais que governam a terra, e o demais são hortas de hortaliça para os moradores da cidade.

Pelas costas da capela-mor de São Francisco, vai uma rua, que se chama do seu nome, ter ao moesteiro das freiras, na qual mora Manuel Vieira, homem principal, em uns ricos aposentos, e no cabo dela está situado o moesteiro das freiras da observância, de grandes rendas e de maiores virtudes, onde haverá setenta religiosas, das quais são sessenta de véu preto, sobre uma rocha mui forte, muito amurado, com boas vistas para o mar e poucas para a terra, por causa dos seus muros serem altos e de pedra e cal, ainda que não é muito grande cerca. E, logo, por vizinho tem o ilustre Francisco Gonçalves da Câmara, tio do Capitão Conde, que haja glória, em uns paços grandes e sumptuosos, o qual governava e governa a capitania pela doença e falecimento do mesmo conde, seu sobrinho.

Deste moesteiro das freiras meia légua para o Norte está uma ribeira, que se chama de Água de Mel, e por ela acima muitas vinhas de bons vinhos e canas de açúcar, muitos castanheiros e nogueiras, e formosas quintãs, que há muitas perto e derredor da cidade.

Do meio desta rua de São Francisco se aparta outra, também principal, de homens mui honrados, que vai ter a São Pedro; chama-se a Carreira dos Cavalos, pelos costumarem correr nela. Logo, na entrada, mora Francisco George, mui nobre e principal, em uns aposentos frescos e ricos, e adiante Tomé Sardinha, casado com uma colaça de João Gonçalves da Câmara, morgado do Capitão Conde defunto (que depois teve a capitania pouco tempo e já também o chamou Deus para o seu Regno), também em uns sumptuosos paços, e, logo defronte dele, em outras ricas casas, Pero Gonçalves, escrivão dos quintos, homem muito honrado e querido de todos e bem julgado. No fim desta rua mora um Pero Pimentel, também dos principais, que se recolhe dentro de uma cerca de muita frescura de vinhas e canas. Mais adiante, mora André de Betancor, fidalgo dos maiores que há na ilha e morgado, filho de Francisco de Betancor e de Dona Maria, todos naturais desta ilha de São Miguel, em outras casas, como paços, muito boas e frescas, e tem, por vizinho, defronte a casa do bem-aventurado São Pedro, e uma fresca ribeira, que se chama, como tenho dito, de São João, ou de São Pedro, a qual casa de São Pedro é o cabo da cidade da banda do Ponente, donde se começa o muro que vai entestar com a rocha, por onde não podem subir nenhuns imigos.

Da porta principal da Sé sai uma rua, não muito grande, que se chama de João, ou de Manuel Tavila (100), por ele morar nela, onde moram pessoas de muita qualidade, cónegos e clérigos, e este Tavila em casas de muito preço. E acima dela, em uma rua que chamam das Pretas, mora Gaspar de Aguiar, fidalgo e rico, em umas casas mui grandes. E também desta rua descende outra, que chamam a dos Netos, homens mui principais e cavaleiros, Miguel Rodrigues Neto, George Pestana, Francisco Moniz, em boas e frescas casas com seus jardins e canaviais para trás. Desta rua sai outra, que vai ter aos moinhos; e, antes que cheguem a eles, está um engenho de açúcar, arriba do qual, fora da cidade, estão seis casas de moinhos, que moem com a levada com que todos os engenhos, atrás ditos, se servem, que são cinco por todos e estão abaixo deles ao longo desta ribeira, que se chama de Santa Luzia, como já disse.

Do Corpo Santo se começa uma rua que chega a Nossa Senhora do Calhau, que vai de Leste a Oeste dentro dos muros, que, por começar dela, se chama de Santa Maria, onde

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Sexto 47

pousa António Ferreira, contador da cidade, em umas casas mui ricas, com seus jardins de trás, e em outras Francisco de Medeiros, homem fidalgo, e Dona Maria, mulher que foi de António de Aguiar, em outras casas grandes e formosas, com boa vista para o mar; da qual vai outra rua para o Norte, chamada da Olaria, em que estão umas casas de Mem de Ornelas, fidalgo, casado com uma filha de António Correia, e na mesma rua outras casas grandes, em que mora Bento da Vega, escrivão, homem mui honrado, e no cabo dela outras formosas casas, defronte da Misericórdia, em que por vezes pousam muitos fidalgos por elas serem para isso e terem a vista que têm, que é a mesma ribeira e um poço, debaixo das janelas, que lhe fica ao Sul da que está da banda do mar.

A Casa da Misericórdia é de ricas oficinas e de mais ricas esmolas e obras de caridade, que nela se fazem pelos provedores e irmãos, curando muitos enfermos e remediando muitos pobres e necessitados, não somente da mesma ilha, mas que vêm de fora, de diversas partes e navegações, ter a ela, que é rica e abastada, e piedosa escala e refúgio de todos.

Estas são as ruas principais desta cidade, afora muitas menores e travessas, que todas estão calçadas de pedra miúda, e de tal maneira que, quando chove, fica lavada e limpa a cidade e, com as muitas águas que a regam no verão, sempre aprazível e fresca.

Mas, tornando à ordem que pela costa levo da igreja do Corpo Santo, onde, antes que na cidade entrasse dois tiros de besta, está a igreja de Nossa Senhora do Calhau, que é agora freiguesia, onde está a casa da Misericórdia, junto da ribeira de João Gomes, pela qual acima há muitas vinhas de malvasias e vidonhos, em que se colhem cada ano duzentas pipas de vinho. Passando esta ribeira de João Gomes por uma ponte de pau muito grande e forte, entram na praça do Funchal. E, vindo da praça para o Ocidente, um tiro de pedra está a ribeira de Santa Luzia e, passada outra ponte quase dois tiros de besta para o Ocidente, está logo a Sé. Da Sé para o Ponente um tiro de besta está o moesteiro de São Francisco; dele para o mesmo Ponente dois tiros de besta está a ribeira de São Pedro, por estar ali sua igreja, que é agora freiguesia, pela qual ribeira acima há muitas vinhas, que dão cada ano mais de duzentas pipas de bom vinho. Dela para o Ocidente, passando e dobrando a ponte da Cruz, pouco menos de uma légua está a praia que se chama Formosa, por não haver outra semelhante em toda a ilha, que terá como um quarto de légua de areia (101).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Sétimo 48

CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

EM QUE SE VAI CONTINUANDO A DESCRIÇÃO DA ILHA DA MADEIRA PELA BANDA DA COSTA DO SUL, DESDE A PRAIA FORMOSA, UMA LÉGUA ALÉM DA CIDADE DO FUNCHAL, ATÉ À PONTA DO PARGO, QUE É O FIM DA ILHA DA PARTE OCIDENTAL

Indo da Praia Formosa para o Ocidente um quarto de légua, está uma grande ribeira, que se chama dos Acorridos, pela razão já dita, que vem de montes muito altos e bravas serranias e é muito larga e chã, que, sem falta, terá de largo um tiro de arcabuz, e toda esta largura ocupa tanto a água quando vem cheia, que parece um bom rio. Tem ao longo do mar uma praia de areia e, perto dele, dois engenhos de canas de açúcar, um de Manuel da My (sic) e outro de António Mendes, muito nobre fidalgo, ambos portugueses; por esta ribeira acima há muitas vinhas de malvasias e bons vidonhos, e canas de açúcar.

É tão estranha ribeira, de grande e de muita água quando chove, que toda a lenha que se gasta nos dois engenhos que estão nela e em outros dois, que tem Câmara de Lobos, que está perto, trazem por ela abaixo, que podem ser oitenta mil cárregas de azémala (sic) cada ano, antes mais que menos. E tem esta ordem para trazer esta lenha: tendo-a cortada nos montes, a põem em lanços perto das rochas da ribeira, e cada senhorio da lenha, que a mandou cortar, tem posto sua marca em cada rolo, que, pela maior parte, é toda lenha grossa, pondo uma mossa, outros duas, outros três ou quatro, e tanto que chove se ajuntam como cem homens das fazendas, indo-se aos montes e serranias, onde têm suas rumas de lenha posta, e lançam-na à ribeira pelas rochas abaixo, que são muito altas; a água, como é muita, traz aquela multidão de lenha e muitos daqueles homens trazem uns ganchos de ferro metidos em umas hastes de pau compridas, com os quais desembarcam e desembaraçam a lenha, que vem toda pela ribeira abaixo, e, se (como acontece muitas vezes) acerta de cair algum deles na ribeira, com aqueles ganchos apegam dele por onde se acerta, ainda que o firam, com que, ou morto ou vivo, o tiram fora da água, e acontece algumas vezes morrerem alguns homens neste grande trabalho. Vindo com esta lenha pela ribeira abaixo com grande arruído e pressa, e comidas e bebidas, que para este efeito ajuntam e o trabalho requer, quando chegam junto dos engenhos, onde a ribeira espraia e faz maior largura, espalha-se a água, por ser a ribeira muito chã, e, ficando quase em seco, dali a tiram com os mesmos ganchos, e cada um dos senhorios, por sua marca, aparta a sua, pondo-a em rumas muito grandes para o tempo da açafra do açúcar. Mas acontece algumas vezes, chovendo em demasia na serra, que enche a ribeira muito e leva muita cópia desta lenha ao mar, em que se perde grande parte do custo que têm feito.

Perto da fonte, onde nasce a água desta ribeira dos Acorridos, se tirou a levada dela para moer o engenho de Luís de Noronha, e dizem que do lugar donde a começaram de tirar até onde vai ao engenho e regar os canaviais, há bem quatro léguas, por se tirar de tão grande fundura da ribeira em voltas, que, para chegar arriba, à superfície da terra, para começar a caminhar, atravessando lombas, fazendo grandes rodeios per cima, pela serra, por onde vai esta levada, tem de alto mais de seiscentas braças, da qual altura, que é muito íngreme, se tira a água em cales (102) de pau, em voltas, até se pôr na terra feita; e sem falta custou chegar pô-la em tal lugar passante de vinte mil cruzados, afora o muito mais que fez de custo levada dali quatro léguas, além de muitas mortes de homens, que trabalhavam nela em cestos amarrados com cordas, dependurados pela rocha, como quem apanha urzela, porque é tão alcantilada e íngreme a rocha em muitas partes, que não se faziam, nem se podiam fazer de outra maneira estâncias para assentar as cales sem passar por este perigo. Tem duzentos e oitenta lanços delas, por onde vai esta água, que, postos enfiados um diante do outro, terão um quarto de légua de comprido. São de tavoado de madeira de til, que, pela maior parte, tem cada távoa vinte palmos de comprido e dois e meio de largo; e, depois de assentadas estas cales na rocha, fazem o caminho por dentro delas os levadeiros, que continuamente têm cuidado de as

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Sétimo 49

remendar e consertar, alimpando-as também da sujidade e pedras que acontece cair nelas, e fazer outras coisas necessárias à levada, pelo que têm grossos soldos, por terem ofício de tão grande trabalho e tanto perigo.

Nesta rocha está uma furna muito grande, que serve de casa para os levadeiros e para guardar nela munições necessárias de enxadas, alviões, barras, picões e marrões e outras ferramentas; e nela se metem cada ano dez, doze pipas de vinho para os que trabalham na levada e outras pessoas que a vão ajudar a reformar, quando quebram alguns lanços de cales. E é coisa monstruosa a quem vê isto com seus olhos a estranha e aventureira invenção, que se teve para se tirar dali esta água.

Tem o senhor desta levada alvará de el-Rei para que os seus levadeiros e homens, que trabalham nela, possam tomar para comer cabras e porcos, que há muitos naquelas serras, ainda que seus não sejam, sem por isso serem crimemente acusados, mas que os donos dos tais gados serão pagos do seu, sem crime da justiça.

Da mesma ribeira, mais abaixo para o Sul, tirou António Correia outra levada para regar as terras da Torrinha, que estão sobre Câmara de Lobos, também de muito custo.

Indo da ribeira dos Acorridos para o Ocidente um quarto de légua, está uma aldeia, que chamam Câmara de Lobos, perto do mar, que tem uma calheta pequena e uma furna, onde dormiram, ou dormem ainda, lobos, de que tomou nome o lugar e os capitães da ilha, os Câmaras, pelos achar nela o primeiro capitão, João Gonçalves Zargo, quando ali desembarcou a primeira vez, como já tenho contado. Tem esta aldeia como duzentos fogos e uma só rua principal e muito comprida, e no cabo dela a igreja, muito boa e bem consertada. Tem mais dois engenhos de açúcar, um, que foi de António Correia, e outro de Duarte Mendes, e muitas canas e vinhas de boas malvasias, e muitas frutas de toda sorte, e muita água.

Dois tiros de besta de Câmara de Lobos para o Norte, pela terra dentro, está um moesteiro da invocação de São Bernardino, de frades franciscos, em que estão continuamente sete ou oito frades, bons religiosos, muito abastado de toda a fruta e vinhos. Acima dele estão os pomares do Estreito, que têm muita castanha e noz, e peros de toda sorte, muito doces, e vinhas e criações, e uma freiguesia, que se chama o Estreito, de até trinta fogos, cuja igreja é de Nossa Senhora do Rosairo.

De Câmara de Lobos para o Ocidente ladeira acima está uma lombada (que assim se chamam as lombas de terra naquela ilha), que parte com a rocha do mar e é a mais alta de toda a terra, chamada Cagagirão e, por outro nome, a Caldeira (por uma cova, que tem ali a terra, que é agora dos herdeiros de António Correia, homens mui principais e generosos), que dá muitas e boas canas de açúcar. E parece que daqui tomaram o nome os Caldeiras da ilha, se o não trouxeram do Regno, que nela há muitos, e gente muito honrada. De maneira que de Câmara de Lobos a uma légua está a quintã de Luís de Noronha, senhor da levada da ribeira dos Acorridos, que já disse, em que tem um engenho e grandes casarias de seus aposentos, e sua ermida, perto da fazenda, com seu capelão, para que ouçam missa os que trabalham nela, para que cumpram com o precepto da Igreja os domingos e festas, e o mesmo se há-de entender de todas ou as mais das fazendas da ilha, que estão fora da cidade e vilas, ou aldeias, porque todas têm suas igrejas para este efeito.

Tem esta quintã boas terras de canas e de trigo e centeio, mas vinhas poucas, por ser a terra alta, ainda que ao longo do mar tem o mesmo Luís de Noronha uma fajã de grande pomar e vinhas de muito preço, e passatempo, que dá cada ano quarenta, cinquenta pipas de malvosias. E está a ribeira dos Melões, que parece que os há naquela parte muitos e, sobretudo, estremados, que dá também muitas canas e, em parte, algumas vinhas.

Indo da quintã do Noronha para o mesmo Ocidente meia légua, está um lugar de cem fogos espalhados, a que chamam o Campanairo; tem a igreja junto do caminho, da invocação do Espírito Santo. São terras de criações e lavoura de trigo e centeio, por ser gente montanhesa, dados mais a criar gado que a cultivar vinhas, nem outras fruteiras, mas, contudo, isto se há-de entender que neste e em todos os lugares da ilha houve sempre, e há hoje em dia, gente honrada e fidalga e de altos pensamentos.

Ao Ocidente, uma légua do Campanairo, está a Ribeira Brava que por extremo tem este nome; é uma aldeia que terá como trezentos fogos, com uma igreja de São Bento e bom porto de calhau miúdo, que, pela chã da ribeira acima, tem as casas, e muitas canas de açúcar, e dois engenhos, e pomares muito ricos de muitos peros e peras, nozes e muita castanha, com

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Sétimo 50

que é a mais fresca aldeia que há na ilha, pelo que, e pelo merecer, por ter bom porto e ser muito viçosa, já muitas vezes tentaram os moradores de a fazerem vila. Tem também muitas vinhas, ainda que o vinho não é tão bom como é o do Funchal. A ribeira é tão furiosa, quando enche, que algumas vezes leva muitas casas e faz muito dano, por vir de grandes montes e altas serras, e por ser desta maneira lhe vieram a chamar Brava.

Neste lugar nasceram os Coelhos, cónegos da Sé do Funchal, estremados homens de ricas vozes; um deles, chamado Gaspar Coelho, foi mestre da capela da Sé muitos anos sendo cónego, e Francisco Coelho, seu irmão mais moço, sendo cónego, foi também mestre da capela de el-Rei na corte.

Da Ribeira Brava meia légua está a ribeira da Tabua, com uma freiguesia de quase trinta fogos; teve já dois engenhos e tem muitas vinhas e canas e frutas, mas o vinho é semelhante ao da Ribeira Brava, sua vizinha. Desta ribeira da Tabua são os Medeiros, gente nobre e honrada.

Da Tabua pouco mais de meia légua está a Lombada de João Esmeraldo, de nação genoês (103), que chega do mar à serra, de muitas canas de açúcar e tão grossa fazenda, que já se aconteceu fazer João Esmeraldo vinte mil arrobas de sua lavra cada ano, e tinha como oitenta almas suas cativas antre mouros, mulatos e mulatas, negros, negras e canários. Foi esta a maior casa da ilha e tem grandes casarias de aposento, e engenho, e casas de purgar, e igrejas. E depois do falecimento de João Esmeraldo, ficou tudo a seu filho Cristóvão Esmeraldo, que o mais do tempo andava na cidade do Funchal sobre uma mula muito formosa, com oito homens detrás de si, quatro de capa e quatro mancebos em corpo, filhos de homens honrados, muito bem tratados, e trazia grande contenda com o Capitão do Funchal sobre quem seria provedor da Alfândega de el-Rei, que é uma rica coisa de renda de Sua Alteza e ricas casarias. Casou João Esmeraldo na ilha com Ágada de Abreu, filha de João Fernandes, senhor da Lombada do Arco.

Da Lombada de João Esmeraldo um quarto de légua está a vila da Ponta do Sol, que se chama assim por ter uma ponta ao Ocidente da vila, que tem o parecer que já disse, aonde dá também o Sol primeiro que na vila, quando nasce. Tem esta vila como quinhentos fogos e boa igreja; é povoada de gente nobre, por ser das mais antigas da ilha, mas os vinhos não são tão bons como são os do Funchal (104).

Acima da Ponta do Sol para o Norte da vila está um lugar, que se chama os Calcanhos, que tem um engenho, e muitas frutas, e ricas águas, e vinhas, e terra de lavoura de trigo e centeio, onde há uma honrada geração de homens nobres, que se chamam os Escovares.

Meia légua da vila da Ponta do Sol, ao longo do mar, está a freiguesia da Madalena, de até trinta fogos; tem um engenho, que foi de um Manuel Dias, e boa fazenda de boas terras de canas e muita água e fresca. Há nesta freiguesia uma ermida de Nossa Senhora dos Anjos que, tirando ser pequena, é uma rica casa com um retábulo pequeno e fresco e bem ornado, junto da qual está uma fresca fonte, debaixo de uns seixos, antre uns canaviais de açúcar de mui formosas canas.

Da Madalena um quarto de légua está a Lombada que foi de Gonçalo Fernandes, marido de Dona Joana de Sá (105), camareira-mor da Rainha. É muito grossa fazenda; tem engenho de açúcar e muitas terras de canas, e grandes aposentos de casas e igreja com seu capelão.

Um quarto de légua desta Lombada de Gonçalo Fernandes está outra, que se chama o Arco, ou Lombada do Arco, que foi de João Fernandes, irmão de Gonçalo Fernandes, fazenda também muito grossa, que tem engenho e muitas terras de canas, e grandes aposentos de casas e igreja e capelão. E adiante direi o que em estas duas Lombas aconteceu a um António Gonçalves da Câmara, filho de Gonçalo Fernandes e de sua mulher, a camareira-mor da Rainha.

Da Lombada do Arco, indo para o Ocidente até à vila da Calheta, de que foi conde o ilustre Capitão Simão Gonçalves da Câmara, haverá uma légua. Está esta vila por uma ribeira acima, que tem as rochas tão altas, que acontece às vezes caírem pedras da rocha e derrubar as casas dela. Terá quatrocentos fogos e a igreja, da invocação do Espírito Santo, e o porto, vindo da vila para o Nascente um quarto de légua, que é uma estrita (sic) calheta, onde varam os barcos. Acima da vila, pela terra dentro um quarto de légua, está o engenho dos Cabrais e, perto dele, está outro do doutor da Calheta, físico, chamado mestre Gabriel (106).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Sétimo 51

E logo perto de uma légua da Calheta está a fazenda de João Rodrigues Castelhano, que se chamou assim por falar castelhano, sendo ele genoês de nação, que é grossa fazenda de canas com seu engenho e capelão; este João Rodrigues casou duas filhas no Funchal muito ricas, e são agora as melhores fazendas da ilha. Teve muitos escravos, cinco dos quais lhe mataram um feitor, mas ele os entregou à justiça e foram enforcados na vila da Calheta.

Da fazenda deste João Rodrigues Castelhano obra de meia légua está outro engenho, de Diogo de França, que teve doze filhos, nobres e ricos, boa fazenda de canas e vinhas, e águas, e frutas.

Daqui a meia légua está uma freiguesia, que se chama o Jardim, de quarenta fogos, com uma igreja da invocação de Nossa Senhora da Graça; também tem engenho, terras de pão e vinhas, e, abaixo do Jardim para o mar, está uma grande fajã, que se chama o Paúl, com um engenho, que é de Pero do Couto, homem muito rico e possante, e boa fazenda de açúcar, mas tem perigoso caminho por terra, por ser a rocha muito alta para descer abaixo.

Do Jardim para o Ocidente até chegar à Ponta do Pargo, que é o fim da ilha da banda do Sul e também é freiguesia de duzentos fogos, haverá duas léguas; a igreja é da invocação de São Pedro. São terras lavradias de trigo e centeio e criações de gado e porcos; tem muitas frutas e águas. E por aqui acabo de dar conta da parte do Sul desta ilha o melhor que pude saber na verdade.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Oitavo 52

CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO

DA DESCRIÇÃO DA ILHA DA MADEIRA PELA COSTA DA BANDA DO NORTE, TORNANDO A COMEÇAR DA PONTA DE SÃO LOURENÇO E ACABAR NA PONTA DO

PARGO

Tornando à ponta de São Lourenço, que está da parte do Oriente, e começando andar dela para o Ocidente da ilha pela costa da banda do Norte (que, como tenho dito, toda tem bom e seguro surgidouro e bom abrigo para os navios, quando os ventos ventam da outra parte, por ser a terra muito alta), da mesma ponta de São Lourenço para o Ocidente perto de duas léguas está uma aldeia, que se chama o Porto da Cruz (pela razão que já tenho dito), que tem junto do mar um engenho que foi de Gaspar Dias; é grossa fazenda, com boas terras de canas e muitas águas. Haverá neste lugar trinta fogos espalhados, afora a gente da fazenda, e são os moradores todos criadores, porque os matos são em toda a ilha gerais a todos para criarem neles.

Do Porto da Cruz a Nossa Senhora do Faial (por ali o haver grande) haverá uma légua. Terá esta freiguesia como cem fogos; a igreja está antre duas ribeiras muito altas das rochas; tem muita fruta de espinho, de cidras e limões, peras e peros e maçãs, e castanha e noz. Sendo a igreja de bom grandor, dizem que toda se armou de um grandíssimo pau de cedro, que se achou perto dela; pelo seu dia, que vem a oito de Setembro, se ajuntam de romagem de toda a ilha passante de oito mil almas, onde se vê uma rica feira de mantimentos de muita carne de porco e vaca, e chibarro, a qual é uma extremada carne de gostosa naquela ilha, ainda que em outras muitas terras e ilhas seja a pior de todas. Ali se ajuntam muitos cabritos e frutas, e outras coisas de comer, para comprarem os romeiros, que muitas vezes se deixam estar dois, três e mais dias em Nossa Senhora, descansando do trabalho do caminho, porque vêm de dez e doze léguas por terra mui fragosa; e juntos fazem muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, frautas (107), rabis e gaitas de fole; e pelas faldras das ribeiras, que têm grandes campos, no dia de Nossa Senhora e em seu oitavairo, se alojam (108) os romeiros em diversos magotes, fazendo grandes fogueiras antre aquelas serranias. Dizem que ali apareceu Nossa Senhora, onde tem a igreja.

Tem esta freiguesia dois engenhos de açúcar, um de António Fernandes das Covas, que está perto de Nossa Senhora, e outro de Luís Dória (sic). No fim das ribeiras (que ambas se vão ajuntar em uma), perto do mar, tem bom porto. Está nesta freiguesia uma serra de água, que foi um grande e proveitoso engenho, em que dois ou três homens chegam por engenho um pau de vinte palmos de comprido e dois e três de largo à serra, e, por arte, um só homem, que é o serrador, com um só pé (como faz o oleiro, quando faz a louça) leva o pau avante e a serra sempre vai cortando e, como chega ao cabo com o fio, com o mesmo pé dá para trás, fazendo tornar o pau todo, e torna a serra a tomar outro fio; de maneira que quem vir esta obra julgará por mui grande e necessária invenção a serra de água naquela ilha, onde não era possível serrarem-se tão grandes paus, como nela há, com serra de braços, nem tanta soma de tavoado, como se faz para caixas de açúcar, que se fazem muitas, e para outras do mais serviço, que vem ser cada ano muito grande soma. Tem esta freiguesia grandes montados de criações à (sic) muitos proveitosas.

De Nossa Senhora para o Ocidente a uma légua está uma freiguesia da invocação de Santa Ana, que terá até quarenta fogos. São terras de lavrança de muito pão e criações; tem muita castanha e noz, e muitas águas e frutas de toda sorte.

De Santa Ana a meia légua está a freiguesia de São Jorge, de cento e cinquenta fogos, a par do mar, com muito bom porto; tem muitas vinhas de bom vinho de carregação, e muitas terras de lavrança de pão e criações, e muita fruta de toda sorte, com muitas águas.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Oitavo 53

Adiante de São Jorge uma légua e meia está a freiguesia da Ponta Delgada (assim chamada por ser ali um passo muito perigoso, que se passa por riba de dois paus, que se atravessam de uma rocha a outra, e em tanta altura fica o mar por baixo, que se perde a vista dos olhos, onde está um porto, em que desembarcam e embarcam com vaivém, a modo de guindaste), com uma igreja da invocação de Jesu, (sic) de até sessenta fogos e bom porto, e vinhas, e criações, e lavrança de pão e frutas de toda sorte, e muitas águas, onde tem duas serras de água.

Neste lugar reside António de Carvalhal, homem tão cavaleiro como esforçado por sua pessoa, nobre e magnífico por sua condição e grande virtude, com a qual, por sua magnificência, tem acquirido (sic) tanta fama e ganhado tanto nome com as vontades dos homens, que por isso lhe obedecem, e, se for necessário dar um brado, ajuntará quinhentos homens da banda do Norte a seu serviço para qualquer feito de guerra, como já lhe aconteceu, ou para qualquer outro feito; e não sem razão, porque sua casa é hospital e acolheita de todo pobre, hospedagem de caminhantes e refúgio, finalmente, de necessitados. Assim despende sua fazenda toda (que muita possui desta banda) nestas obras, que em sua casa se gastam cada ano trinta moios de trigo, afora outros muitos que empresta, e com ele socorre a quem tem necessidade, que todos recolhe de sua lavoura. É filho de Duarte Ribeiro e casado com Dona Ana Esmeralda, filha de Cristóvão Esmeraldo, provedor que foi da Fazenda de Sua Alteza nesta ilha da Madeira e na do Porto Santo (109). É tão forçoso, que anda pelas serras da ilha da Madeira, que são mui ásperas, a cavalo, sem ter conta com cilha porque as pernas lhe servem disso; é homem grande, seco, largo das espáduas e bem proporcionado em todos os membros, pelo que tem tanta força que, indo um dia por antre um mato a cavalo, passando por baixo de uma árvore, lançou as mãos a um ramo grosso e, cingindo o cavalo com as pernas pela barriga, o alevantou do chão mais de um palmo. E, estando mancebo em casa de seu pai, estava o pai em uma sua eira, ao redor da qual andavam umas porcas (110), às quais arremetendo um grande e furioso cachaço, cometeu a feri-lo e, fugindo o velho ao redor de um penedo, o cachaço o ia seguindo; chegando neste tempo o filho, António do Carvalhal lhe lançou mão das orelhas e, não o podendo bem ter, disse ao pai, que cansado estava, lançasse mão do manchil que na cinta tinha e o matasse antes de lhe fugir, o que o pai logo fez (111).

Veio depois a ter tanta força que, apertando um homem pelo pulso, lhe fazia perder o alento; e por mostrar suas forças ao Bispo Dom Jorge de Lemos, não podendo um ferrador ferrar duas mulas bravas, as tomou ele ambas pelas orelhas e as fez estar quedas até que as ferraram. E, andando no paço, sendo mancebo e moço-fidalgo, em o moesteiro de Santo Augostinho, em Santarém, outros moços fidalgos junto do Entrudo se puseram todos contra ele às laranjadas, e ele (vendo-se perseguido deles, arremeteu a uma de duas pedras de atafona que viu estar ali perto e, metendo o braço pelo meio de uma delas e alevantando-a, se escudou com ela quase tão facilmente como com uma rodela. E, estendendo os dedos de uma mão sobre o pescoço de uma galinha viva e alevantando com a outra o dedo do meio, da pancada que dá com ele, deixando-o cair, mata a galinha. E, mandando um dia a mulher buscar meia dúzia de galinhas grandes, de boa casta, para criar, trazendo-lhas, lhas amostrou, e ele, tomando-as todas juntas em uma mão pelos pescoços, lhe sacudiu os corpos no chão, ficando-lhes os pescoços na mão, dizendo: «tomai aí vossas galinhas»; e muitas outras coisas faz de grandes forças. E da campãa (sic) de uma sepultura de dura pedra, onde estava esculpido um carvalho com suas landes, as quebrava com os dedos e dava aos moços fidalgos, seus companheiros, como fruta.

E é tão animoso e valente cavaleiro, que na era de mil e quinhentos e sessenta e nove, dia da Visitação de Santa Isabel, estando em sua casa em Machico, onde, então, era provedor da Misericórdia, jantando com mais de vinte hóspedes à sua mesa, antre os quais estava o reverendo padre pregador Frei Manuel Marques, da ordem de São Francisco, que foi comissairo neste bispado de Angra, porque o levava ali António do Carvalhal a pregar aquele dia, e dando-lhe rebate que vinham demandar o porto de Machico franceses com sete velas, de que era capitão o grande cossairo Jaques Soria, o qual havia sido sota-capitão do Pé de Pau, quando foi saquear a ilha da Palma no tempo que França tinha guerra com Carlos Quinto, imperador e Rei de Castela, António do Carvalhal se alevantou da mesa e acudiu logo ao porto, onde acudiam também todos, assim os da vila como os de fora, com tanto ânimo e esforço que mais não podia ser.

E podia-se ver quem era António do Carvalhal na confiança que todos tinham dele, que, com o ter ali presente consigo, estavam tão contentes e seguros como se tiveram muitos mil

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Oitavo 54

homens, e ele com todos estava determinado e oferecido a morrer, em tanto que rogou ao padre Frei Manuel Marques que visse a peleja de longe e, se o visse morrer, lhe pedia que fosse consolar sua mulher. Estando, assim, ele e os outros apostados a morrer por defender a desembarcação aos franceses, dali a pouco, chegando os imigos ao porto, puseram bandeira branca de paz e mandaram um batel a terra, dizendo que não vinham de guerra, e pediram que lhe dessem água a troco de homens que traziam cativos de um navio que tomaram, indo da mesma ilha para Portugal, antre os quais ia o mestre-escola e um Fuão Mendes e um pregador de S. Francisco, chamado Frei João de S. Pedro, natural do Funchal, com um companheiro Frei Hierónimo, os quais levou à Arochella (112), dando outra gente por água, e não a estes, que não quis, então, dar por lhe dizerem no navio que eram gente de grande resgate. E não curaram de apertar muito com eles os de Machico, por estarem sem tiros de artilharia e haverem medo de os imigos lhe esbombardear as casas.

Uma légua além da Ponta Delgada está a freiguesia de S. Vicente, de duzentos e cinquenta fogos, com grandes terras de lavranças de pão, e criações e muitas frutas de castanha, noz e de outra sorte, muitas vinhas, e muitas águas, e duas serras de água.

De S. Vicente a três léguas está o Seixal, que é freiguesia de até vinte fogos, com uma igreja da invocação de São Braz. Tem muitas terras de grandes criações, e lavrança de pão, e vinho, e fruta de toda sorte.

Do Seixal a meia légua está a Madalena, que é freiguesia de trinta fogos, que tem muitas criações e lavoura de pão, e muitas águas. Está esta freiguesia, pela terra dentro, perto de meia légua na ponta de Tristão, que se chama assim por ele a descobrir primeiro, onde se partem as capitanias pela banda do Norte, porque por esta parte se estende mais a capitania de Machico que pela banda do Sul, onde começa na ponta da Oliveira, pela que ali mandou prantar o capitão João Gonçalves, como tenho dito, que está ao mar do lugar do Caniço ao Sueste, vindo dela a demarcação pelo meio da terra, que são grandes serranias do Nascente para o Ponente, pela banda do Norte, até chegar a esta ponta de Tristão, que está ao Noroeste; sendo estas duas pontas, a da Oliveira, da banda do Sul, e a de Tristão, da parte do Norte, as balisas e extremos da repartição destas duas capitanias do Funchal e Machico, ficando a ilha partida de Noroeste a Sueste, como estão estas pontas, e, tirando catorze léguas, da banda do Sul, que é o melhor de toda a ilha, e três da banda do Norte, da jurdição da capitania do Funchal, todo o mais da ilha fica da jurdição da capitania de Machico.

Desta ponta de Tristão, que está ao Noroeste, da parte do Norte, vira a costa para o Sul, fazendo a terra, ou a figura de pirâmide dela, sua basis, ou pé, e assento por espaço de três léguas, que, segundo alguns, há dela e desta freiguesia da Madalena, pela banda do Ocidente, até a ponta do Pargo, onde acabei a banda do Sul e acabo agora a descrição de toda a ilha pela costa dela, com que fica com a figura de pirâmide, que já disse, um lado da qual é da ponta de S. Lourenço, que está ao Oriente, até à ponta do Pargo, que está ao Ocidente, pela banda do Sul, e o outro lado é da mesma ponta de S. Lourenço, do Nascente, até à ponta de Tristão, que está ao Ocidente, pela batida do Norte; e a basis é desta ponta de Tristão até à ponta do Pargo, que outros dizem ser duas léguas, com que fica com figura de pirâmide, mas, por nesta basis não ir a terra cortando direita, senão com algum rodeio curva e no meio larga e na ponta aguda, fica toda esta ilha da Madeira parecendo mais folha de plátano que pirâmide. E, ainda que, como pirâmide se acha pintada em algumas cartas de marear, em outras tem figura de folha de álamo, porque, como esta árvore, está prantada e alevantada no meio das águas do grande mar Oceano Ocidental, em bom clima, e regada com muitas e frescas ribeiras e, abundantemente, dá seus frutos mui perfeitos a seu tempo.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Nono 55

CAPÍTULO DÉCIMO NONO

DA DESCRIÇÃO DA ILHA DA MADEIRA PELO MEIO DA TERRA; E DE DUAS COISAS QUA FEZ UM MARCOS DE BRAGA, O VELHO, DE GRANDE ÂNIMO E FORÇAS, UMA NA

SERRA E OUTRA NA CIDADE; E DE UMA GRANDEZA DE ÂNIMO, QUE MOSTROU DOMINGOS DE BRAGA, SEU FILHO

Tomando a terra desta ilha pelo meio, da ponta de S. Lourenço, que está ao Nascente, à ponta do Pargo, que jaz ao Ocidente, toda é terra de grandes serranias e altos montes, alta em tanta maneira, que faz abrigo aos navios, que se chegam a ela da banda do Norte, ventando muito do Sul, até dez léguas da terra.

Toda esta ilha é fragosíssima e povoada de alto e fresco arvoredo, que, por ser tal, se perdem alguns caminhantes nos caminhos, e aconteceu já alguns, perdidos, neles morrerem. E não, tão somente, há pelo meio e lombo da terra grandes e alevantadas serranias, mas também grotas e altas funduras, cobertas de matos e grossos paus e arvoredo de til, que, quando o serram, dentro, no cerne, é muito preto e cheira mal; deste pau se faz muito taboado para caixas de açúcar e solhado de casas e madres, e dele é a maior parte da lenha que se queima nos engenhos. Também há outro pau vermelho, que se chama vinhático, de que se fazem as caixas para o serviço de casa, que são muito boas, mas as feitas dele para o mar são muito mais prezadas.

Outros paus há de aderno, de que se faz muita madeira para pipas para vinho e mel, mas para o mel são melhores que para o vinho, não porque a qualidade da madeira o faça ruim, mas porque é muito rijo e seco e não revê (113) tanto o mel nele, como o vinho, que o faz humedecer, e algumas vezes o deita pelo meio do pau, o qual pau aderno é tão rijo, que se fende à cunha.

Há também muitos folhados, que crescem muito direitos e grossos, de que se faz a armação para as casas, e muitas vezes de um pau fazem três e quatro pernas de asnas, mas não é tão rijo como o desta ilha de São Miguel; é brando de cortar, quase como o cedro, e dele se fazem os temões para servirem na lavoura.

Há outro pau, azevinho, muito rijo, de que se fazem os cabos de machado, mas não é branco como é o desta ilha. Também há paus de louro, e nas faldras da serra, da banda do Sul, muita giesta, que é mato baixo, como urzes, que dá flor amarela, de que gastam nos fornos e dele se colhe a verga, que esburgam como vimes, de que se fazem os cestos brancos, mui galantes e frescos, para serviço de mesa e oferta de baptismos e outras coisas, por serem muito alvos e limpos, e se vendem para muitas partes fora da ilha e do reino de Portugal, porque se fazem muitas invenções de cestos, mui polidos e custosos, armando-se, às vezes, sobre um dez e doze diversos, ficando todos juntos em uma peça só; e para se fazerem mais alvos do que a verga é de sua natureza, ainda que é muito branca, os defumam com enxofre.

Há também muita madeira de barbuzano, de que, pela maior parte, fazem os tanchões para as latadas, por ser pau muito rijo e durar muito no chão. E não faltam muitas urzes, de que se faz o carvão para os ferreiros e fogareiro.

Tem finalmente esta ilha tantos matos e rochas, tantos montes e grotas, que afirmam todos que, das dez partes da ilha, não aproveitam as duas, porque a maior dela são serranias, terras dependuradas, rochas e grotas e ladeiras, e não há terra chã, senão a bocados, mas esses são tais, que valem mais que outro tamanho ouro; e, geralmente, não tem preço a substância, que tem todas as coisas, que esta ilha de si está produzindo, quer por natureza, quer com arte.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Nono 56

É terra massapez pela maior parte, mais que terra preta, e outra, como ruiva, se chama salões; toda se rega com a grande abundância das águas que tem, que, como veias em corpo humano, a estão humedecendo e engrossando e mantendo, com que se faz rica, fresca, formosa e lustrosa; e com ser tão alta, não se vai com elas ao mar (como esta de S. Miguel faz em grande quantidade, quando chove), e depois de estar a terra farta de água, levarão um rego dela sem se sumir duas, três e mais léguas.

Tem muita hortaliça de muitas couves murcianas, mas não espigam, pelo que sempre vem a semente delas de Castela; cria muitas alfaces e boas, e outras muitas maneiras de hortaliças toda regada com água, como as canas, afora os muitos pomares que tem de fruta de espinho e ricos jardins de ervas cheirosas, em tanto que dizem os mareantes que, mais de dez léguas ao mar, deita esta ilha de si uma fragrância e um confortativo e suave cheiro, que parece cheirar a flor de laranja. Em muitas partes desta ilha há muitas nogueiras e castanheiros, que dão muita noz e castanha, em tanta maneira, que vale o alqueire a três e quatro vinténs e se afirma que se colhe em toda ela de ambas estas frutas de noz e castanha, juntamente cada ano, passante de cem moios; também dá amêndoas, e de tudo carregam bem as árvores.

Há nesta ilha da Madeira muito sumagre, que serve para curtir couro, principalmente o cordavão (114), porque o faz muito brando e alvo; este sumagre se pranta em covas pequenas, como quem pranta rosas e vinha; tem a haste, como feitos (115), e a rama semelhante ao mesmo feito; dá-se em terras altas e fracas; colhe-se cada ano, cortando-se rente com a terra para não secar a soca dele e poder tornar a arrebentar, por ser planta que dura muitos anos na terra. É novidade de muito proveito, porque multiplica tanto, que se enchem os campos dele como enchem as roseiras, e lavra a raiz por baixo da terra, e o que se dá na ilha é muito fino e, apanhada a rama, que é o dito sumagre, se deita ao Sol, seca, se mói em engenho de água, assim como se mói o pastel nesta ilha, e se faz em pó, e, moído, o carregam para diversas partes em sacas e pipas.

Criam-se também na ilha da Madeira alguns gaviões e açores, que parece que vêm ali com tormentas de alguma terra perto, que está por descobrir, bilhafres, francelhos, corujas, e há nela muitas perdizes, pavões, galipavos, galinhas de Guiné, e as outras domésticas, pombos trocazes, pretos e brancos, patas e adens, pombas bravas e mansas, muitos melros, canários, pintassirgos (sic), toutinegras, lavandeiras, tentilhões, codornizes, rolas, poupas e coelhos, cagarras, afora gaivotas, estapagados e outras aves do mar.

E porque não passe com silêncio uma coisa notável que fez um Marcos de Braga na serra, e outra na cidade, direi aqui ambas, brevemente.

Veio de Portugal à ilha da Madeira um Marcos de Braga, homem nobre e principal, rico e abastado, e morava fora da cidade do Funchal perto de uma légua, pela terra dentro, para a banda do Norte, em uma quintã sua, e teve dois filhos, um, por nome Marcos de Braga, o Moço, e outro, Domingos de Braga, todos homens principais, e de grandes estaturas e muito forçosos. O Marcos de Braga, pai destes, era tão sedeúdo (116) de cabelo, que até as unhas, pela banda de fora, e no rosto, até junto dos olhos, era coberto de cabelos, e, sendo de idade de sessenta anos para cima, lhe aconteceu na serra da ilha da Madeira, junto da qual morava, o que agora direi.

Havia um mulato cativo, fugido de seu senhor e alevantado no mato, o qual, para granjear de comer, se vestiu de peles de animais, que matou, e se cingiu de chocalhos, que para isso buscou, e, andando no ermo, saía desta maneira, a modo de salvage, aos caminhos e salteava os mateiros e caminhantes, que pelo caminho passavam, e os roubava do que levavam, e tanto dano fazia por aquela parte, que já nenhuma gente ousava passar por ali, porque, em vendo-o, se espantavam dele, cuidando que era salvage ou diabo, pelo verem alto de corpo e disfarçado daquela maneira; o qual mulato era de idade de trinta e cinco anos, pouco mais ou menos, e quem quer que o via fugia dele como do diabo e deixava o que levava e ele tomava o que queria, e aqueles, que alcançava, a que não achava que comer, lhe dava muitas pancadas.

Vindo isto ter a notícia de Marcos de Braga, determinou de querer saber o que era, e assim o fez; porque, partindo só de sua casa, se foi ao lugar que lhe disseram onde esta salvaje (117) saía a fazer seus saltos e, fazendo-se caminhante, o mulato salvage lhe saiu ao caminho com grande estrondo e matinada e terror para o espantar, como fazia a todos os que por ali caminhavam, e, arremetendo ao dito Marcos de Braga (que lhe não fugiu, como os outros faziam), se abraçou com ele, e tanto andaram a braços até que o mulato caiu no chão debaixo,

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Nono 57

e aí o despiu das peles que trazia, e o amarrou e levou para casa, e o meteu a lavrar com um boi em uma canga e arado, e, lavrando o mesmo Marcos de Braga com o arado, quando picava o boi, nomeava-o por seu nome, dizendo «ei raiado», e quando picava ao mulato, dizia «ei diabo»; e assim o teve alguns dias em casa e o sogigou, e livrou do trabalho, que naquela serra padeciam os caminhantes que por ela passavam, até, depois de o ter bem castigado, tornar o mulato salvage a seu senhor.

Sendo este mesmo Marcos de Braga de idade de setenta anos e mais, estando em sua quintã recolhido, sem ir à cidade por causas crimes que tinha, no ano em que nasceu o Príncipe Dom João, filho de el-Rei Dom João, terceiro do nome, e pai de el-Rei Dom Sebastião, fazendo-se festas de seu nascimento na cidade do Funchal, antre as quais correndo-se muitos touros grandes e bravos, o dito Marcos de Braga mandou pedir licença às justiças para vir ao corro, onde se corriam os touros, que era no terreiro defronte da Sé, dizendo que também queria ajudar a festejar as festas do nascimento do Príncipe, e, dando-lha a justiça licença e seguro que viesse, veio ele, e recolheu-se em uma casa do mesmo terreiro, e pediu à justiça que mandasse deixar para derradeiro o mais bravo touro que antre os outros estivesse, e assim foi que ficou um touro marchano pintado, que veio de cabo de Gué para esse mesmo efeito das festas do Príncipe, o qual touro, tanto que foi solto no campo, meteu tanto temor a todos, que pessoa nenhuma ousou esperá-lo no corro, nem chegar a ele, para lhe tirar com garrocha, e, ficando o corro todo pelo touro, saiu o dito Marcos de Braga da casa donde estava, vestido em corpo em um pelote preto de petrina e abas muito compridas, como se, então, costumava, trazendo somente um pau grande e grosso na mão, como tranca. E assim se foi, pelo corro passeando, para onde o touro estava e, antes de chegar a ele, arredado bom espaço, o touro virado para ele lhe acenava com a cabeça, como que já o levava nos cornos, e Marcos de Braga esteve quedo, esperando a determinação do touro, e, vendo que o não cometia, deu mais algumas passadas adiante, chegando-se mais a ele, e pondo a ponta do pau no chão diante de si, tendo-o com uma mão, com a outra acenou ao touro e, tanto que o touro viu o aceno, arremeteu a ele e, cuidando que o levava, deu com a testa no pau, como em uma torre imóbil, ficando sempre tão firme o dito Marcos de Braga e com tanto acordo, que, tomando-o por diante pelos cornos e abaixando-lhe a cabeça para baixo, meteu o touro os cornos no chão e, dando uma volta por cima da cabeça, ficou de costas, com o pescoço quebrado.

Então, se tornou Marcos de Braga mui quieto para a casa dondo saíra, pondo grande espanto nas gentes de seu grande ânimo e forças, sendo de tanta idade. E foi esta uma das coisas mais louvada e nomeada que se naquelas festas fizeram.

Mas, se as forças corporais do pai, Marcos de Braga, o Velho, são ocasião para louvar muito a Deus, que as deu tão excessivas, maior motivo nos darão para engrandecer e amar ao mesmo Senhor, dador de todo bem, as forças da alma, que deu ao filho, Domingos de Braga, que imitou bem a seu pai, não somente nas forças do corpo, mas parece que sobrepujou na magnanimidade e grandeza do ânimo em se vencer a si mesmo, perdoando a seu imigo, que o tinha ofendido, em tempo que se pudera vingar dele, como agora contarei.

Pero Ribeiro, pai de António de Carvalhal, era cunhado de Domingos de Braga, filho de Marcos de Braga, o Velho, o qual Domingos de Braga foi homem grande de corpo e de tantas forças, que atirava com uma pedra a um touro e lhe metia os testos para dentro e o derribava. Andando estes dois cunhados, ambos, em grandes demandas sobre fazenda de heranças, o Pero Ribeiro, com um galego seu criado, tomou a Domingos de Braga dentro em uma casa e lhe deu tanta cutilada, que o deixou por morto e, dizendo-lhe o galego: «senhor, matai-o, que tem sete fôlegos, como gato», respondeu que tão mortos fossem seus pecados como ele ficava. E idos de casa, o Domingos de Braga, como era homem de grande esforço e grandes forças, arrancou uma távoa do sobrado da casa, em que ficava como morto, e lançou-se em baixo na lógea, por saber que nela estava muita quantidade de linho, e, embrulhando-se nele, com o sangue que dele corria, se apegou o linho de maneira que as feridas se estancaram, o que vendo ele, com muito ânimo levando a porta da lójea, que para a rua estava, com as mãos, e botando-a fora do coice, se foi a uma ermida, que perto estava, e, achando-a fechada, lhe fez o mesmo que à da lógea e, tirando-lhe a porta do coice, se meteu debaixo do altar. Ao dia seguinte, indo o vigairo ali dizer missa e espantando-se muito de ver a porta daquela maneira, lhe rogou Domingos de Braga que se calasse e, contando-lhe seus trabalhos e mostrando-lhe suas feridas, lhe pediu de comer, por não haver comido depois do jantar do dia passado até aquelas horas e por estar fraco do muito sangue que se lhe fora; o vigário lhe deu pão e vinho

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Décimo Nono 58

e lhe trouxe uma égua, na qual se foi para sua casa, que tinha na cidade do Funchal três léguas da Ponta Delgada, onde isto aconteceu.

Depois de curado e são, ele com seu irmão Marcos de Braga, o Moço, e com parentes e criados, que seriam por todos até vinte, se foi a casa do cunhado, Pero Ribeiro, para o matar, em vingança do que lhe fizera, e, achando-o, lhe disse o velho Pero Ribeiro: «Filho, não me mates», ao que lhe respondeu: «Confessai que o que me haveis feito o fizestes não como cavaleiro, e que agora vos dais por morto, e que eu vos faço mercê da vida». E, respondendo Pero Ribeiro que tudo isto confessava, se foi Domingos de Braga sem lhe fazer mais mal, ainda que seu irmão, Marcos de Braga, o importunava que o matasse, pois por morto o deixara a ele, ao que respondendo Domingos de Braga que o matassem seus pecados, estiveram estes dois irmãos muitos anos que se não falaram, por causa deste feito tão heróico e magnânimo de Domingos de Braga, com que se pudera chamar, como Júlio César, esquecedor das injúrias, e, todavia, foi seminário de ódio que seu irmão, por isso, lhe teve, devendo-o amar e estimar mais pelo mesmo caso.

Muitos homens forçosos e grandiosos, desta maneira, fidalgos e esforçados cavaleiros, houve e há na mesma ilha da Madeira, de nobre progénie e heróicos feitos, que, por serem tantos e não poder eu saber todos, não digo seus apelidos, nem conto suas façanhas, forças e valentias, polas não obscurecer, dizendo o pouco que delas sei, em comparação do muito que eles fizeram.

Afora o que se recolhe na terra, há mister a ilha da Madeira cada ano doze mil moios de pão para seu mantimento e, se lhe vão de fora menos mil, passa medianamente com onze mil, e com dez mil passa mal, ainda que com eles se sustenta (118).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo 59

CAPÍTULO VIGÉSIMO

DOS CAPITÃES, FILHOS E NETOS, E MAIS POSSUIDORES E GOVERNADORES DA JURDIÇÃO DE MACHICO ATÉ A VINDA DE TRISTÃO VAZ DA VEIGA (119)

Partida a jurdição de Machico, que foi primeiro descoberta, Tristão povoou a sua capitania e comarca, que será de quatro léguas de comprido da parte do Sul, pouco mais ou menos, e o melhor de sua jurdição, e catorze da parte do Norte (como tenho dito), que, se não é de tanto proveito, é de grande jurdição e tem muito arvoredo, donde se faz muita madeira, grossos eixos, grandes madres, e muita lenha vem para os engenhos, casas e provimento de toda a jurdição do Funchal (120). E, além disto, se recolhe muito trigo, da banda do Norte, em muitos e bons lugares, como é São Vicente, o Porto da Cruz, São Jorge e a Ponta Delgada.

Depois que o Infante Dom Henrique mandou as canas de Sicília para se povoarem na ilha (121) e de Candia mandou trazer bacelos de malvasia para se prantarem, deu-se tudo tão bem nela, que, depois de se prantar no Funchal, trouxeram a pranta a Machico, que prendeu de maneira que, do primeiro açúcar que se vendeu na ilha da Madeira, foi na vila de Machico, onde se começou a fazer; recolheram treze arrobas dele, que se vendeu cada arroba por cinco cruzados, e mais se comprou por mostra, para se ver a formosura dele, que por mercadoria. O vinho malvasia é o melhor que se acha no Universo e leva-se para a Índia e para muitas partes do Mundo; e por estes frutos é a ilha mui célebre por toda parte. Nesta jurdição de Machico há só duas vilas da banda do Sul, Machico e Santa Cruz, donde se colhe muito proveito de açúcar e vinho, trigo e gado.

Este capitão de Machico, Tristão, foi tão estremado por seu esforço, naquele tempo que servia o infante Dom Henrique, que comummente lhe chamavam Tristão, sem mais sobrenome, por honra de sua cavalaria, porque el-Rei, por ele ser tal, lhe deu por armas em um campo azul uma ave fénix ardendo em uma fogueira, dando a denotar ser ele um dos melhores cavaleiros de seu tempo; e por essa razão o nomeavam por seu nome, somente, que era Tristão, porque era um fénix na cavalaria, e, assim como esta ave é uma só no Mundo, assim ele era um só cavaleiro de seu nome Tristão. Isto davam a demonstrar muitas provisões e cartas, que el-Rei lhe escrevia e os Infantes, e sempre o nomeavam por Tristão da Ilha, cavaleiro de sua Casa, e ele em seu testamento assim se nomeia, sem mais ornato de cognome, porque desta maneira se divisava em suas armas, que era (como tenho dito) uma ave fénix, a qual seus descendentes sempre trouxeram em suas armas, quarteadas com outras que ajuntaram da parte feminina, dos Teixeiras, que são uma cruz aberta e uma flor de lis, que hoje estão esculpidas no arco de sua capela, que se diz de São João Baptista, que está na igreja mor de Machico (122).

Alguns querem dizer que veio este capitão à ilha da Madeira com sua mulher e filhos na era de mil e quatrocentos e vinte e cinco anos, no mês de Maio, mas, ou viesse então ou quando tenho dito atrás, ele foi casado com Branca Teixeira, mulher fidalga, que procedia da casa de Vila Real, e dela houve quatro filhos e oito filhas: Tristão Teixeira, que disse das Damas, que herdou a casa, e Henrique Teixeira, que foi casado com Breatiz Vaz Ferreira. Foi este segundo filho grande lavrador e homem dado muito a agricultura, e, por essa inclinação, foi bem rico e enobreceu a vila de Machico, assi de muitos engenhos de açúcar como de canaviais, gado e pão, montados, que mandava roçar e aproveitar. Houve este Henrique Teixeira de sua mulher os filhos seguintes: João Teixeira, o Velho, e Pero Teixeira, e Henrique Teixeira, e Maria Teixeira, que foi casada com João de Abreu, e Breatiz Teixeira, que foi mulher de João do Rego, cavaleiro do Algarve.

O terceiro filho deste capitão Tristão se disse João Teixeira, casado com Filipa de Mendonça Furtada; foi grande caçador e inclinado a montear, e por essa causa havia na vila de Machico uma coutada sua, no Caniçal, de tanta caça de coelhos, perdizes, pavões e muitos

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo 60

porcos javaris (sic), que se afirma que era a melhor coutada de todo Portugal, o que dá a entender uma carta que hoje em dia está na Câmara de Machico, que escreveu El-Rei Dom Manuel aos oficiais dela, em que lhe encomenda muito que tenham estreita conta com a coutada dos filhos do primeiro capitão, que ninguém entre nela, porque lhe inculcavam e afirmavam que, se ele acertasse vir à ilha, em nenhumas outras terras podia montear e caçar senão nesta do Caniçal e campos de Santa Caterina. E, por ser esta jurdição de tanta caça, havia em Machico homens desta nobre geração, tão caçadores de gaviões, lebreus e cães de filha, que foi uma das nobres coisas do Regno, e dia se fazia que matavam duzentos coelhos, afora muitas perdizes e porcos monteses e outra muita caça, e todos vinham e entravam na vila a cavalo, com os gaviões na mão, que mais parecia uma nobre corte que vila de tão poucos vizinhos. Teve João Teixeira de sua mulher os filhos seguintes: João Teixeira e Tristão de Mendonça, e Dona Solanda, que foi casada com o terceiro capitão do Porto Santo (como já tenho contado), e Policena de Mendonça, que dizem que morreu de paixão, por não casar com um certo fidalgo, e Dona Filipa de Mendonça, que foi casada com Diogo Moniz Barreto, e Dona Luzia de Vasconcelos, que morreu sem casar.

O quarto e último filho do capitão Tristão se chamou Lançarote Teixeira; foi um dos melhores ginetairos da ilha, porque, além de por sua inclinação ser mui bom cavaleiro, tinha mui grande mão para domar cavalos e era dado muito a isso, em tanto que em seu tempo se ajuntavam na vila de Machico sessenta cavaleiros, de esporas douradas, mui bem postos, e encavalgados por indústria deste Lançarote Teixeira, que, quando vinha um dia de São João ou de Corpo de Deus, eram os cavaleiros tantos para jogos de canas e escaramuças, que mais parecia exército de guerra que folgar de festa; e, além de todos serem mui destros nesta arte, ele, todavia, se divisava antre todos, que se pode com razão dizer que foi luz e ornamento de Machico.

Foi casado este Lançarote Teixeira com Breatiz de Goes, da qual teve os filhos seguintes: António Teixeira, detrás da ilha, e Francisco de Goes, o Velho, e Augustinho de Goes, e Lançarote Teixeira de Gaula, e Dona Joana, mulher de Vasco Martins Moniz, e Dona Caterina, mulher de Garcia Moniz, do Caniçal, e Judite de Goes, que casou no Algarve, e Helena de Goes, que casou com Fernão Nunes de Gaula, e Ana de Goes, mulher que foi de Gonçalo Pinto, e Iria de Goes, que foi casada com seu primo João Teixeira, e, ultimamente (123), houve Breatiz de Goes, que não foi casada.

Das filhas deste primeiro capitão de Machico, a primeira houve nome Tristoa Teixeira, que foi casada com um fidalgo genoês, por nome Micer João; houve mais Isabel Teixeira, que foi mulher de João Fernandes de Lordelo; e outra, que se chamava Branca Teixeira, que morreu sem casar, a que comummente chamam a Mestra, pela virtude que tinha em curar, a qual foi instituidora da capela dos Reis, que está na igreja mor de Machico, a que deixou sua fazenda, onde hoje em dia há missa quotidiana. Houve outra filha, que se disse Caterina Teixeira, mulher que foi de Gaspar Mendes de Vasconcelos; houve mais Guiomar Teixeira, que (como já disse) foi casada com o segundo capitão do Porto Santo. Teve mais outra filha, que se chamou Solanda Teixeira, e outra, que chamavam Caterina Teixeira, que seu pai levou ao Regno e em Lisboa casou com um homem fidalgo; e outra que se chamou Ana Teixeira (124).

Este capitão Tristão, por uma desgraça que aconteceu em sua casa a um Tristão Barradas (125), homem havido por fidalgo, o qual este capitão castigou em sua casa e o teve aferrolhado com uma braga, moendo em um moinho farinha, el-Rei o mandou ir à corte e que levasse consigo sua filha Caterina Teixeira (como fica dito); esteve preso em Lisboa, pelo castigo que fez ao Barradas, e, por sentença, foi degradado por certos anos para a ilha do Príncipe; e, antes que fosse, casou el-Rei sua filha mui honradamente. Alguns anos esteve neste desterro, no fim dos quais el-Rei o mandou vir e o restituiu outra vez na capitania; e governou ainda muitos anos depois disso (126).

Depois que foi restituído na capitania, por certos negócios que tinha no Algarve, se foi este Tristão, primeiro capitão, a Silves, onde faleceu da vida presente, deixando povoada sua jurdição com filhos e filhas e tão nobre geração, como ficou dele, tendo de sua idade mais de oitenta anos, dos quais governaria cinquenta, pouco mais ou menos.

Morto Tristão, primerio capitão, sucedeu na casa seu primogénito filho, Tristão Teixeira das Damas, primeiro do nome e segundo capitão de Machico. Chamou-se das Damas, porque foi mui cortesão, grande dizedor e fazia muitos motes a damas e era muito eloquente no falar; foi mui valido, presado e ufano de sua pessoa, e de bons ditos, e sobretudo bom cavaleiro (127).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo 61

Foi casado com Guiomar de Lordelo, dama da Excelente Senhora; dela houve Tristão Teixeira, que se disse governador, que herdou a casa, e Guterre Teixeira, que foi casado com uma filha de Antão Álvares, de Santa Cruz, e Dona Violante Teixeira, que foi mulher de João Rodrigues Negrão, filho de Garcia Rodrigues da Câmara, a qual casou segunda vez com Vasco Moniz Barreto, filho de Vasco Martins Moniz.

Este Tristão Teixeira das Damas foi casado segunda vez com Alda Mendes, irmã do Bispo da Guarda, de que não houve filhos, e, por capítulos que dele deram falsamente a el-Rei, foi chamado por ele e deixou seu filho morgado por governador da jurdição e foi-se livrar ao Regno, onde andou alguns anos limpando-se do que lhe punham invejosos e, ainda que teve nisto muito trabalho e gastou muito do seu, todavia se livrou muito bem e com muito sua honra, tirando sua fama a limpo, e trouxe uma sentença que fosse preso ao Regno quem falsamente o acusava (128). Em vida deste segundo capitão de Machico foi o doctor Álvaro Fernandes por corregedor com alçada a toda a ilha da Madeira, onde esteve e ministrou justiça alguns anos, e depois dele foi por corregedor a toda a ilha Fernão de Perada.

Depois que Tristão Teixeira das Damas, segundo capitão de Machico, veio livre do Regno e governou algum tempo, o levou a morte, que a todos leva, e jaz enterrado na capela da invocação de São João, que ele mandou fazer para jazigo dos capitães e sucessores seus, que está na igreja mor de Machico, onde se diz missa quotidiana da renda, que para isso obrigaram os capitães desta jurdição e andou anexa sempre ao morgado, de que é hoje em dia ministrador Tristão Castanho (sic) (129), que descende do tronco destes capitães. E no arco desta capela estão esculpidas as armas desta casa.

Por morte de Tristão Teixeira das Damas, sucedeu na casa Tristão Teixeira, governador, segundo do nome, e terceiro capitão de Machico, o qual se disse governador por razão que na vida de seu pai, estando ele no Regno livrando-se, governou a capitania alguns anos. Foi casado com Grimaneza Cabral, filha de Diogo Cabral, sobrinha do capitão do Funchal, da qual houve Diogo Teixeira, que herdou a casa, e Dona Maria Cabral, que foi casada com Chirio (sic) Catanho, irmão de Rafael Catanho e de Frederico Catanho, capitão da guarda de el-Rei Francisco de França; houve dela Hierónimo Catanho, muito afamado por sua gentileza, arte e discrição. Houve mais este capitão Tristão Teixeira, governador, Caterina Teixeira, que morreu moça, e Maria Teixeira e outra sua irmã, que foram freiras no convento do Funchal.

Na vida deste capitão, terceiro de Machico, foi por juiz de fora da cidade do Funchal e ouvidor desta capitania o bacharel Rui Pires, que serviu os ditos cárregos três anos e mais. E depois dele foi por corregedor de toda a ilha da Madeira o doctor Diogo Taveira, no qual tempo morreu o dito capitão Tristão Teixeira, governador, e jaz sepultado na capela de São João com seu pai.

Morto Tristão Teixeira, sucedeu na capitania Diogo Teixeira, seu filho, primeiro do nome e quarto capitão da jurdição de Machico; foi homem imperfeito do juízo, porque, sendo menino, lhe caiu de um telhado uma telha na cabeça, estando no colo de sua ama, de que ficou alienado do juízo e quase mentecapto. Contudo, porque na casa não havia filho barão que herdasse a capitania, governava tão mal, que em seu tempo se perdeu, como vemos muitas vezes perderem-se grandes coisas pelo mau governo delas. Foi casado com Dona Ângela Catanha, filha de Rafael Catanho, e dela houve duas filhas (se a corrupta fama o consente); uma delas se chamou Dona Margarida, que foi casada com António Vieira, meirinho da jurdição de Machico, e outra se chamou Dona Maria, que ainda vive.

Por este capitão não ter juízo para governar, el-Rei D. Manuel e el-Rei D. João, terceiro do nome, lhe quiseram tirar a capitania, e sobre isso o mesmo Diogo Teixeira trouxe demanda com el-Rei até o ano de mil e quinhentos e trinta e seis, e neste tempo, que durou esta demanda antre el-Rei e o capitão Diogo Teixeira, foi por corregedor à capitania de Machico o doctor Francisco Dias, que esteve nela com o dito cárrego nove anos, e, depois deste, foi por corregedor à mesma capitania de Machico o licenciado Antão Gonçalves, que esteve nela perto de três anos.

E depois deste licenciado ser ido para Portugal, foi por corregedor à dita capitania o licenciado João da Fonseca, o qual esteve nela com o dito cárrego três anos, e neste tempo ele foi tirar a devassa (130) do profeta do Porto Santo, como já tenho, atrás, contado.

Depois de acabados os três anos do licenciado João da Fonseca, foi por corregedor a esta capitania o licenciado Afonso da Costa. E todos estes tempos dos corregedores se arrendaram

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo 62

as rendas da dita capitania de Machico por el-Rei, da qual renda se davam cada ano duzentos mil réis para mantimento e sustentação do dito Diogo Teixeira, que estava em Portugal, em poder de Rafael Catanho.

E no ano de mil e quinhentos e trinta e seis, por dia do Espírito Santo, este Diogo Teixeira, quarto capitão da dita capitania, foi ter à vila de Machico, por lhe ser julgada a capitania por sentença da Relação, levando consigo Dona Ângela Catanha, filha de Rafael Catanho, e lhe foi entregue a capitania e rendas dela, contanto que a justiça pusesse el-Rei à custa das rendas do dito Diogo Teixeira, por ele não ser para mandar justiça, nem fazer ouvidor.

Esteve este capitão na posse da dita capitania até o ano de mil e quinhentos e trinta e oito, no qual tempo pariu sua mulher, Dona Ângela, as duas filhas, que tenho dito, Dona Margarida e Dona Maria; e el-Rei Dom João, terceiro do nome, lhe tirou a capitania e rendas dela, por lhe afirmarem alguns o que, porventura, suspeitavam e de certo não sabiam, mandando o mesmo Rei entregar Diogo Teixeira a João Simão de Sousa, que em aquela capitania fora escrivão, o qual Simão de Sousa teve o dito Diogo Teixeira, capitão, em seu poder, assim na vila de Santa Cruz como na cidade do Funchal, até o ano de mil e quinhentos e quarenta, em o qual tempo estava na ilha da Madeira o doctor Gaspar Vaz, desembargador, com alçada em toda a ilha (131).

No mesmo ano de mil e quinhentos e quarenta faleceu na cidade do Funchal, onde estava, este Diogo Teixeira, quarto capitão da jurdição de Machico, sem lhe ficar filho macho, nem irmão, nem herdeiro que lhe sucedesse na casa; e foi levado seu corpo à vila de Machico, por mandado do dito desembargador, e foi enterrado na cova e capela de seu pai e avós, sendo homem (segundo diziam) de cinquenta e cinco anos.

Por morte deste quarto capitão, Diogo Teixeira, ficou a casa e herança à Coroa, por não lhe ficar sucessor varão.

No ano de mil e quinhentos e quarenta e um fez el-Rei Dom João terceiro mercê desta capitania a António da Silveira, capitão que foi de Diu, na Índia, por serviços que lhe tinha feito (132). E no mesmo ano foi Diogo de Frágoa tomar posse por ele, e por seu logotente (sic); levou por ouvidor ao licenciado Luís Manriques, que nela serviu de ouvidor seis anos, e, acabados, serviu o licenciado António Gramaxo um ano e mais, e no ano de mil e quinhentos e quarenta e nove o dito António da Silveira, com licença de el-Rei Dom João, vendeu esta capitania ao Conde do Vimioso, Dom Afonso Portugal (que foi cativo em África na batalha sem ventura pouco há passada), a retro por seis anos, por trinta e cinco mil cruzados; e no mesmo ano foi à capitania de Machico Paulo Pedrosa, criado do Conde do Vimioso, a tomar posse dela, e com ele por ouvidor o licenciado Luís da Rocha, que serviu de ouvidor três anos, até o ano de mil e quinhentos e cinquenta e dois, em que faleceu António da Silveira, sem tirar a capitania, pela qual razão ficou com o Conde do Vimioso, que a governava por seu logotente (133).

No ano de mil e quinhentos e cinquenta e quatro foi por ouvidor a esta capitania Bernardim de Sampaio, que esteve por ouvidor e logotente até o ano de mil e quinhentos e cinquenta e seis anos, em que o prenderam no mês de Fevereiro do dito ano, e esteve preso na cadeia da vila de Santa Cruz por uma querela que uma mulher dele deu, e foi levado a Portugal e lá se livrou. Depois de Bernardim de Sampaio, serviu de ouvidor e logotente na dita capitania Tomé Álvares Usademar um ano e mais, após o qual, no ano de mil e quinhentos e cinquenta e sete, foi com os mesmos cárregos o licenciado Francisco do Amaral, que serviu até o ano de mil e quinhentos e sessenta, no qual ano foi à ilha da Madeira por desembargador com alçada o licenciado Simão Cabral e prendeu o dito ouvidor Francisco do Amaral, tirando devassa do ferimento de Jácome Dias, corregedor que foi na cidade do Funchal, e levou o dito licenciado Francisco do Amaral preso a Portugal, por rezão deste ferimento, e lá se livrou; o qual Jácome Dias, corregedor, feriram na vila de Machico uma noite à porta da casa do Conselho, onde pousava, então, vindo ali fazer umas diligências por mandado de el-Rei.

Logo sucedeu por ouvidor e logotente nesta capitania Sebastião Coelho, que serviu perto de três anos, até o ano de sessenta e dois, em que se foi para Portugal, e não houve nela ouvidor e, se alguns foram depois, eu não sei os nomes deles. E por falecimento do Conde do Vimioso, Dom Afonso Portugal, foi capitão de Machico o Conde seu filho, Dom Francisco, que em batalha naval foi morto junto desta ilha de São Miguel, vindo na armada francesa; e também por sua morte vagou esta capitania e ficou à Coroa (134). E em tal estado esteve, que nem se achava nesta populosa jurdição de Machico pessoa que, boamente, pudesse sustentar um cavalo (excepto duas ou três pessoas); toda esta monarquia se converteu em pobreza e foi um

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo 63

sonho passado para os trabalhos que depois padeceram toda a gente desta tão nobre geração e tão próspera capitania. E, se tudo sobejou aos progenitores, bem o pagaram depois os descendentes, que estão postos no extremo grau de pobreza, porque nunca foi coisa sobeja que por tempo não faltasse. Estas voltas dá o Mundo, em que tanto confiamos, sem jamais nos acabarmos de desenganar de seus enganos (135).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Primeiro 64

CAPÍTULO VlGÉSIMO PRIMEIRO (136)

EM QUE A VERDADE COMEÇA A CONTAR A PROGÉNIA E HERÓICOS FEITOS DE TRISTÃO VAZ DA VEIGA, QUINTO (137) CAPITÃO DA JURDIÇÃO DE MACHICO E ÚLTIMO

POSSUIDOR DELA, POR MERCÊ DE SUA MAJESTADE DO SEU CONSELHO, E GENERAL DA MILÍCIA EM TODA A ILHA DA MADEIRA

Quem bem considerar as coisas humanas achará claramente quão fracas, várias, transitórias e de pouca dura e estimação sejam todas, pois no melhor tempo se acaba tudo e não fica senão um fumo do fogo que houve e uma obscura lembrança delas para mores saudades. Tudo são uns estados tão empinados e logo postos por terra, uns princípios que não tiveram cabo nem fim com o terem logo no começo, uma fruta colhida em verde que logo se murcha, umas flores da erva maravilha, que com a quentura do Sol desfalece, grandes e populosas cidades tão prestes arruinadas e assoladas, desejos insaciáveis de ambição, privança e mando tão cedo enfastiados com a grave e perigosa doença, que sobrevém, ou morte, que vem asinha, empinados pensamentos tão abatidos e derribados com a miséria humana, altas monarquias tão aniquiladas e desfeitas com a ligeira volta da fortuna, soberbos e alevantados edifícios tão brevemente e em pouco tempo humilhados e desfeitos, umas altas e fortes torres com um raio e um só momento abrasadas, uns castelos de vento do ar com que se alevantaram levados, um corpo de hercúleas forças feito nada e cinza no melhor de suas vãs esperanças e fera valentia, uma Babilónia com linguagens tão diversas confundida, um mundo de antes com águas e enchentes alagado, um mando de Romanos quase já esquecido, uns Imperadores logo sem império e alguns cativos de seus súbditos e imigos, umas voltas não cuidadas, uns estragos tão repentinos, uma aniquilação de quanto vemos, temos e valemos.

E quem tiver olhos para ver, ouvidos para ouvir, e entendimento para entender verá, ouvirá, entenderá que tudo o desta vida não é outra coisa senão uma estátua de vidro, que se quebra com pequena queda, ou, parecendo-lhe ser de ouro ou prata, ou ferro ou cobre, se lhe atentar para os pés e fundamento, lhos há-de ver de fraco e quebradiço barro, que mal com estes metais se amassa e gruda, pelo qual, quebrando ele com o mais pequeno golpe ou revés da contrária fortuna, quebram todos, convertendo-se tudo na fria e baixa terra de que foi composto, ou nada, de que, de princípio, foi criado. E é tanta a desaventura humana, que, ainda que homem se veja no tão claro espelho destas coisas e exemplos, de que se está pasmando, de virar o rosto se esquece logo de quem é, e quem foi, ou haja sido. E, pois, temos cabedal tão fraco de casa e exemplos tão domésticos antre nós, como esta volta, ou não sei se diga aniquilação, dos capitães de Machico, que agora acabei de contar, não busquemos os estranhos e emprestados.

Como uma tão louvada e estimada Constantinopla, que, depois de Roma, não havia outra no Mundo que em tanto poder e honra se haja visto, situada em terra frutífera e abundosa, e ennobrecida de grandes e mui sumptuosos edifícios, que foi assento e cabeça do Império muito tempo, e nela houve muitos concílios gerais e foram destruídas e extirpadas grandes heresias, passando por tão prósperos casos, sendo tão poderosa e cristã, veio a parar em tão grande desaventura e cativeiro, como agora está, sobretudo, feita turca, assim, para passar pela lei destas coisas, a tão próspera, fértil, abundosa, rica, ennobrecida capitania de Machico, com seus ilustres capitães e magníficos e grandiosos moradores, foi com a volta da adversa fortuna tão asinha tão desfeita de seu princípio tão soberbo, que, posta depois em alguns estranhos, quase parecia outra do que dantes era e, a quem bem a conhecia, mui estranha e tão trocada (ainda que não na fé, na pompa e honra), porque seus capitães, que nela sucederam, por serem maiores senhores em outra parte, a não governam em pessoa, senão por seus ouvidores e logotentes (como tenho contado), que todo, com tantas mudanças e misérias que o tempo ou a fortuna traz consigo, esteve mudada até ficar à Coroa. Tanta

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Primeiro 65

variedade tem o Mundo, sem constância, em quanto nele se acha, sem se achar em coisa sua firmeza, nem sossego.

Quem vir no arrepiado frio do Inverno as árvores secas, sem formosura alguma, os campos sem verdura, os tempos chuvosos, as águas turvas, os ares obscuros, as nuves (sic) negras e carrancudas, o espantoso e furioso ronco dos horrendos trovões, os raios de fogo dos terribilíssimos coriscos, matando a alguns humanos e brutos, consumindo licores, derretendo metais, assolando soberbos edifícios e fendendo as inexpugnáveis e altas torres, dirá que toda a máquina do Mundo se arruina e todo se acaba, e cuidará que tudo é uma sombra de morte, sem esperança de tornar a viver o que assim vê amortecido, mas tornando a voltar o Sol no Zodíaco sobre a mesma zona ou cinta de terra, começando a comunicar-lhe seu calor com seus dourados raios, logo verá tudo se vir dourando, abrolhando e revivendo com novas prantas e cores, e o que dantes parecia triste e feio tornado alegre, formoso e deleitoso.

Assim, ainda que acabei, Senhora, de contar agora como se extinguiu a capitania de Machico no quarto capitão dela, sem lhe ficar herdeiro, e dos mais capitães, quinto, sexto e sétimo, que fora de sua geração foram, sem ir a ela, até outra vez ficar à Coroa, dizendo que estas voltas dá o Mundo, querendo entender de bem para mal, agora, tornando a dizer a volta que deu de mal para bem, vos contarei uma coisa estranha, de quanto maior bem tem presente em o ilustre capitão Tristão Vaz da Veiga, que Sua Majestade proveu nela, do que foi grande o mal de sua extinção e perda, porque nele tornou a reviver o que desta capitania estava morto e enverdecer com novas e alegres prantas e frutos o que parecia de todo seco e sem nenhuma esperança de vida, para com maior bico, honra e lustro ficar, como agora, muito mais lustrosa, formosa, sumptuosa e engrandecida, e poder pretender mor lugar em toda parte com o calor e sombra de seu valoroso capitão, o grande Tristão Vaz da Veiga, de cujos heróicos feitos e gloriosas vitórias (como vós, Senhora, melhor sabeis) está cheio o Céu e a Terra, desde o Japão até a China, da China a Malaca, de Malaca até o Gange, do Gange até o Tejo e do Tejo até os derradeiros limites do mar e da terra; o qual guardou Deus no Oriente de tantos perigos, para com as proesas, pérolas e riquezas da Índia Oriental, como com saudáveis drogas, em nossos tempos curar, honrar, enriquecer e engrandecer esta tão enferma pobre, desamparada e abatida capitania (assim sabe Deus tirar de males bens, de perdas ganhos, de tormenta bonança e de trabalhos descansos), de cujos heróicos feitos, se eu não disser como eles merecem e se lhe deve, não vos espanteis, Senhora, pois eles são tais, que mais são para deles nos poder maravilhar que podê-los contar.

Como adiante direi, o primeiro capitão do Funchal, João Gançalves Zargo, depois de descoberta e povoada a ilha da Madeira, por ser a terra nova e não haver nela com quem pudessem casar suas filhas segundo o merecimento de suas pessoas, mandou pedir a El-Rei homens conformes a sua qualidade para as casar com eles, e Sua Alteza lhe mandou quatro fidalgos, donde procedeu a mais ilustre geração da ilha, um dos quais foi Diogo Cabral, irmão do Senhor de Belmonte, com o qual casou o dito capitão a sua primeira filha, chamada Breatiz Gonçalves da Câmara, de que houve um só filho, chamado Manuel Cabral da Veiga, que casou com Antónia de Lemos, da qual houve a este valoroso capitão Tristão Vaz da Veiga, de cujos avós (que pela parte masculina se chamaram e são Veigas, como, claramente, parece per papéis e escrituras antigas), se acha memória até el-Rei D. João o primeiro, sendo todos fidalgos e conhecidos em Lisboa, onde o mais do tempo residiram. E um frade fidalgo, natural da ilha da Madeira, curioso e lido, mostrou há poucos anos a descendência destes Veigas, de mais de duzentos anos antes de Portugal ser Reino, de gente muito ilustre e poderosa, mas, como naquele tempo não se sabia pesar nem prezar quanto aquelas coisas montavam, não se viram nem se encomendaram à memória com aquela diligência que fora necessária para agora as poder contar com suas particularidades, pelo que não farei mais que apontá-las, o que é coisa averiguada e sem dúvida que de mais de oitocentos anos a esta parte há nos Reinos de Espanha memória de gente muito ilustre e insigne deste nome de Veiga, e hoje há casas deles muito notáveis em Castela; que sejam os de Portugal deles, ou eles dos de Portugal, não o posso afirmar, ainda que, por algumas conjecturas, parece trazerem sua origem de Castela.

Seu avô, deste valoroso capitão Tristão Vaz da Veiga, pai de seu pai, como tenho dito, casou com uma filha de Diogo Cabral, fidalgo dos da casa de Belmonte, que veio casar à ilha da Madeira com a filha mais velha do primeiro capitão dela, João Gonçalves, o Zargo; e por esta via tem o capitão Tristão Vaz da Veiga parentesco com esta casa da ilha da Madeira (138).

Sua mãe era Lemos, dessa casa da Trofa por uma parte; por outra descendia dos Taveiras e de Leão, bisneta de Nuno Gonçalves de Leão, chançarel-mor que foi em tempo de el-Rei D.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Primeiro 66

João o segundo, em cuja Crónica se lê que o fez ele alevantar de uma mesa em que se julgava um feito em que o mesmo Rei era parte; e por esta de sua mãe é também neto de Luís Pires de Buacos (sic), o qual, per escrituras e papéis, consta que era fidalgo em tempo de el-Rei D. Afonso o quinto, em que o serviu nas guerras que teve em Castela, e que era senhor de alguns lugares no termo de Coimbra e, segundo o que dos mesmos papéis se colige, era estrangeiro, creio que alemão; e quanto a sua progénia, isto é o que se sabe e o que, com verdade, se pode afirmar.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Segundo 67

CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

DE DIVERSOS SERVIÇOS QUE O CAPITÃO TRISTÃO VAZ DA VEIGA FEZ À COROA NA ÍNDIA ORIENTAL E NO CERCO DE MAZAGÃO, E EM OUTRAS PARTES

Vindo ao processo da vida deste valoroso capitão Tristão Vaz da Veiga, de nove anos começou ir ao paço e servir de moço-fidalgo de el-Rei D. João o terceiro, que está em glória, e nele se criou, servindo o Príncipe D. João, seu filho, até entrar em idade de dezasseis anos, em que se embarcou para a Índia, no ano de cinquenta e dois, e nela o serviu por discurso de muitos anos em coisas mui importantes, que contá-las pelo miúdo fora processo largo. Apontarei brevemente algumas das mais notáveis em que se achou, em todas as quais foi sempre capitão de fustas, galés, galeões e naus, capitão-mor de armadas e capitão de fortalezas, ou capitão-geral em uma só. Foi no ano de cinquenta e três, por soldado do Viso-Rei D. Afonso de Noronha, de Goa até Diu a socorrer Ormuz, que estava cercado de galés de Turcos, e de Diu, tornando-se o Viso-Rei, mandou ao socorro dela com boa parte da armada a D. Antão de Noronha, seu sobrinho, que depois foi também Viso-Rei da Índia, e em Ormuz (por ele entrar a ser capitão da fortaleza) entregou a armada a D. Diogo de Noronha, com o qual se achou, quando pelejou com quinze galés de Turcos, que desbaratou e fez fugir para Bassorá, tomando-lhe duas naus de munições que consigo traziam; assim que nesta só viagem foi soldado destes três capitães Noronhas.

Deste ano de cinquenta e três até o de sessenta, em que se veio para Portugal, serviu em diversas coisas e se achou em partes, onde pelejou muitas vezes no mar e na terra; andou de armada na costa do Malavar (sic) em tempo do Viso-Rei D. Pedro Mascarenhas, e ele o mandou dar mesa aos soldados na fortaleza de Diu. Achou-se nas guerras da terra firme, sendo governador Francisco Barreto, na batalha de Pondá e em todas as mais coisas que sucederam per espaço de ano e meio que a guerra durou, no qual tempo deu mesa em Goa a duzentos soldados, por mandado do mesmo governador.

Em tempo de Francisco Barreto, foi de armada ao estreito de Ormuz por capitão de um galeão, sendo capitão-mor D. Álvaro da Silveira, filho do Conde da Sortelha, em que andaram muitos meses; e depois, por mandado do mesmo Francisco Barreto, foi a socorro da fortaleza de Chaúl, de que era capitão Garcia Rodrigues de Távora, que estava cercada do Iniza Maluco, e foi o primeiro que em um navio ligeiro com quarenta homens lá chegou de Goa, e nela esteve até que o mesmo governador chegou de Goa com toda armada e fez alevantar o cerco; e daí, por seu mandado, foi com gente correr as terras de Baçaim e socorrer a fortaleza de Assarij, donde tornaram a Goa, que, então, acharam de guerra, como atraz disse.

Achou-se com o Viso-Rei D. Constantino na tomada de Damão e, per seu mandado, ficou na mesma fortaleza, dando mesa a duzentos soldados, sendo capitão dela D. Diogo de Noronha; e, per seu mandado, foi a socorro da fortaleza de Velsar, que estava cercada de muita gente de pé e de cavalo de Cambaia, e com muito perigo a socorreu e descercou; e depois, em companhia do mesmo D. Diogo de Noronha, se achou per duas vezes no desbarate de muita gente de pé e de cavalo, em que havia muitos abexis (139), turcos e outros estrangeiros nas mesmas terras de Damão.

No ano de sessenta, se veio da Índia para este Reino por capitão da nau Tigre, que o Viso-Rei D. Constantino lhe deu, não sendo de vinte e quatro anos, vindo no mesmo ano nas mesmas naus muitos fidalgos muito principais.

Andando em Portugal em seu requerimento, sucedeu o cerco de Mazagão o ano de sessenta e dois, ao qual a Rainha D. Caterina, que, então, governava, o mandou de socorro; e para isso lhe deram uma caravela da armada, que andava no estreito de Gibaltar (sic), na qual foi e levou alguns fidalgos e mundos (sic) criados de el-Rei e seus; e foi o primeiro navio que lá

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Segundo 68

chegou de socorro de Lisboa; no dia do primeiro combate foi ferido de uma arcabuzada pela garganta; e quanto para a defensão daquela fortaleza montou sua pessoa e conselho digam-no os que se nela acharam e também o diriam as cartas que lá teve da Rainha e do Cardeal D. Anrique, e de outras pessoas insignes.

No mesmo ano, tendo a Rainha D. Catarina recado que ia uma armada grossa de ingreses à Mina, o mandou por capitão-mor de outra no galeão S. Mateus, que era um navio de quinhentos tonéis, com mais quatro caravelas e duas galés, que era a maior armada que até então fora àquelas partes; na qual partiu de Lisboa e, sendo arredado da costa mais de cem léguas, lhe deu uma tormenta tão rija, que forçou a todos os navios da sua companhia arribarem, e ele o fez também depois de ficar só, e, porque a mesma tormenta deu à armada inglesa e a desbaratou, se assentou mandar-se outra armada mais pequena, e se escolheu para isso outra pessoa, e ele ficou.

O primeiro despacho que teve, governando a Rainha D. Caterina, foi a capitania da fortaleza de Chaúl, que não aceitou; deu-lhe, então, duas viagens de capitão-mor da Sunda, China e Japão, com as quais foi para a Índia no ano de sessenta e quatro, em companhia do Viso-Rei D. Antão de Noronha. Estas viagens da China estavam, então, em grandíssima reputação, tanto que até aquele tempo a ninguém se tinha dado mais de uma, e esta se dava a fidalgos mui principais, que a D. João Pereira, filho segundo do Conde da Feira, se deu uma só, e a João de Mendoça Jehu (sic), que depois foi governador da Índia, outra, e a D. João de Almeida, irmão do contador-mor, outra, e a outros fidalgos de tanta qualidade como estes se deu também uma só a cada um.

Chegado à Índia, foi entrar nas suas viagens no ano de sessenta e cinco, e, depois de vir de Japão no ano de sessenta e oito, teve, na China, no porto do Nome de Jesus na ilha de Amacao (sic), onde está a povoação dos portugueses, uma briga muito grande com um Alevantado muito poderoso, do qual teve vitórias muito notáveis, com grandes perigos de sua pessoa, em que Deus lhe fez muitas mercês, parte do sucesso da qual direi brevemente.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Terceiro 69

CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO

DE UMA GRANDE VlTÓRlA QUE O CAPITÃO TRISTÃO VAZ DA VEIGA TEVE NA CHINA DE UM PODEROSO COSSAIRO CHIM, E COMO DEIXOU QUASE ACABADA UMA

FORTALEZA NO PORTO DO NOME DE DEUS, ONDE OS PORTUGUESES ESTÃO NA CHINA

Fazendo este capitão suas viagens na China, onde, até então, quase não queriam consentir os portugueses por comércio, deixou feitas paredes, que podiam muito bem ter nome de fortaleza, consentidas dos mandarins da China, que, até aquele tempo, com trabalho e peitas os deixavam fazer uma casa de palha; e a coisa foi desta maneira. Chegou ele de Japão ao porto do Nome de Deus, onde os portugueses estavam na China, na entrada do ano de sessenta e oito e achou nela por capitão-mor D. António de Sousa, que fora fazer a viagem por D. Diogo de Meneses, e, porque os direitos não eram ainda feitos, e sem isso se não faz fazenda, não se pôde aviar a tempo de poder passar à Índia, nem a Malaca. Foi-lhe forçado ficar invernando na China.

Andava nela havia muitos anos um cossairo, de nação chim, que, começando de pequenos princípios, estava, então, tão poderoso, que era senhor de todo o mar dela, e, como não tinha quem lhe estorvasse acabar de o ser senão os portugueses, determinou de vir sobre a povoação, em que eles aí viviam, e, para isso, escolheu o tempo em que nela achasse menos gente, que é partido o capitão-mor para Japão. São, então, todos os navios da monção passada idos para fora, e os da que vem não são chegados.

A doze de Junho apareceu diante do porto com perto de cem velas, em que haveria mais de quarenta navios muito grandes, e veio surgir obra de uma légua do porto; ao outro dia, em amanhecendo, veio a desembarcar em terra; haveria na povoação menos de cento e trinta portugueses, em que havia alguns muito velhos e outros muito moços; deles mandou Tristão Vaz da Veiga à sua nau, que no porto tinha, trinta e cinco ou quarenta para a defenderem e ele, com os que ficavam, se foi a receber os imigos fora da povoação um pedaço e aí esperou que se alargassem das suas embarcações e, como os teve arredados delas, deu neles, e prouve a Nosso Senhor que, sendo três ou quatro mil homens, em que havia de mil e quinhentas espingardas para riba, e eles tão poucos, que não chegavam a noventa portugueses e os seus escravos, lhe deu vitória deles e os fez embarcar quatro vezes naquele dia, com lhe matar muita gente e lhe tomar muitas espingardas e armas, que deixavam, por ficar mais leves, e com tanta pressa, que se lhe viraram algumas embarcações das em que vinham e se afogaram muitos.

Parece que foi coisa toda de Deus esta vitória, porque ver que num campo muito largo e de outeiros muito grandes quatro portugueses, que, quando chegavam ao alto, se não podiam ter em pé, faziam fugir tanta gente, não parece coisa senão toda sua. Não lhe custou esta vitória tão barata, que lhe não matassem treze ou catorze homens, três deles portugueses e os outros escravos; feriram-lhe quarenta ou cinquenta de uns e de outros; à sua parte lhe couberam duas espingardas, mas ambas lhe fizeram pouco dano.

Este dia lhe ficaram os imigos cobrando medo, de maneira que não ousaram mais de os cometer senão de muito longe. Intentou, então, seu capitão ver se lhe podia tomar a nau e pelejou com ela per dois ou três dias, primeiro com navios de remo, trabalhando de a meter no fundo com artilharia, que meteu neles, e, depois, com seis navios, os maiores da sua armada, encadeados uns nos outros, cometeu abalroá-la, mas os que estavam nela lha defenderam de maneira que ele ganhou tão pouco no mar como na terra e numa parte e na outra perdeu seiscentos homens, segundo depois se soube. Teve-os assim oito dias, nos quais esteve Tristão Vaz com sua gente sempre de dia e de noite no campo, com assás trabalho, fora da

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Terceiro 70

povoação, para que lha não queimassem, porque é ela muito grande e mui espalhada e as casas são de madeira e de palha.

No fim deles lhe mandaram os mandarins de Cantão um homem com chapas que não pelejassem com Tristão Vaz, e a ele que não pelejasse com o cossairo, que ia para obedecer a el-Rei da China; este homem dos mandarins andou da sua armada para o campo, onde Tristão Vaz estava, com recados, e consertou as pazes antre eles; como foram feitas escreveram-se algumas vezes e mandaram presentes um ao outro, e foi-se, coisa que Tristão Vaz desejava, porque, além da povoação estar a muito perigo, chegava-se o tempo de virem os navios da outra costa, que, como vêm de diversas partes, chegam cada um per si, e estava receoso de o ver tomar alguns, sem lhe poder valer.

Partido ele deste porto, foi-se na volta de Lamao, que é uma ilha arredada sete ou oito léguas da povoação dos portugueses, que nela estava determinado ver-se com os mandarins de Cantão para fazerem seus partidos; e, como cossairo sagaz, andou-os entretendo com esperanças de se reduzir à obediência de el-Rei, para fazer o que fez, que foi ir dar na cidade de Cantão, que é muito grande e nobre, saqueou-lhe os arrabaldes todos e queimou-lhos, tomou-lhe toda a armada, que tinha no rio e varada, que eram mais de cem navios, em que havia muitos muito grandes; escolheu os melhores deles, queimou os que lhe não serviram, e teve-os assim de cerco quinze ou vinte dias. Veio esta nova a Macau a Tristão Vaz, e, juntamente, diziam que haviam de tornar outra vez sobre os portugueses.

Era já neste tempo chegado D. Melchior Carneiro, que el-Rei D. Sebastião mandou por bispo daquelas partes; pareceu, então, a todos que deviam fazer algum forte na povoação para se defenderem, até virem os navios da outra costa e ajuntar gente na terra. O Bispo e os padres da Companhia aconselhavam a Tristão Vaz que a (sic) mandasse fazer e incitavam aos homens que o ajudassem; e, como ele pretendia que o forte, que se fizesse, não fosse somente para remédio da necessidade presente, ordenou que fosse de parede de taipa.

Começou de pôr as mãos à obra e fez-se muita em poucos dias, com a boa ordem que nisso teve; ajuntou todos os portugueses de cinco em cinco e de seis em seis, metendo os ricos com os pobres e os de muita família com os de pouca, para que ficassem iguais numa coisa e na noutra, e fez destas vinte companhias, dando cuidado de cada uma ao que deles lhe parecia mais diligente, fazendo dez companhias destas da mesma maneira dos cristãos da terra, e a cada uma delas repartiu um pedaço de muro. Os padres da Companhia e os de S. Pedro também fizeram sua parte; cresceu a competência de maneira antre eles que cada um havia a obra por sua própria e tinha por honra acabar primeiro seu lanço. Desta maneira, não havendo apercebimento algum, com as portas das tábuas, que despregavam delas, dentro em dezasseis dias se fizeram duzentas e setenta e uma braças de parede de taipa, de seis palmos por baixo e cinco e meio por cima e catorze e quinze de alto.

Andando assim na força deste trabalho, ainda lhe foi necessário, a Tristão Vaz, mandar dar noutro cossairo, que, com vinte e três navios, andava roubando aquela terra, tão perto da povoação, que impedia virem os mantimentos. Pediram-lhe este socorro com muita instância os mandarins; mandaram alguns navios ao porto; mandou Tristão Vaz meter em quatro deles cinquenta portugueses e alguns cristãos da terra e escravos; partiram em anoitecendo de Macau; de madrugada, deu no ladrão, tomou-lhe onze navios dos vinte e três, que tinha, com muita gente e munições; os doze se acolheram, por mais ligeiros.

Em tanto é tido o valor dos portugueses em todalas partes, que um Rei de tamanhos Reinos, como os da China, não é poderoso contra um cossairo, que se lhe levanta, sem ajuda e favor do braço português; têm eles caído tanto nesta verdade, que um dos trabalhos, que os capitães-mores da China têm agora, é escusarem-se de lhe darem estes socorros, que muito amiúde lhe pedem.

Tornando às paredes, há nelas quatro baluartes quadrados, e a pressa não sofreu fazerem-se em outra forma, com uma cava por fora, que se fez da terra, que se tirou para as paredes e o sítio, da maneira que, desejando Tristão Vaz de fazer um recolhimento pequeno, para o acabar mais depressa, não o pôde traçar de menos de quatrocentas braças de circuito, por causa de um outeiro, que está sobre o porto, que, não o metendo dentro, ficava-lhe tudo o que fizesse muito sujeito, e também por outra parte era necessário não ser pequeno, porque aquela povoação vai crescendo muito (140). Há já nela muitos casados, assim portugueses como da gente da terra, e havia naquele porto neste tempo cinco mil almas cristãs, que não podem caber em pequeno lugar. Era uma piedade, enquanto o ladrão ali esteve, ver andar

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Terceiro 71

tantos mininos (sic) e tantas mulheres desagasalhados, sem terem onde se recolher; ao menos, Tristão Vaz houve deles tanta, que, não estando por capitão-mor, ainda que o pudera ser, conforme a uma provisão de el-Rei D. Sebastião, enquanto não houvesse outro, deixou a sua nau, em que tinha toda sua fazenda, que não era pouca, bem receoso de lhe acontecer desastre, e quis antes defender em terra a eles, que os houve por fazenda mais para estimar que a que ele tinha na sua nau. Não acabou toda a obra até a cerca ficar cerrada, por arrecear que os mandarins o não consentissem; contentou-se com fazer o lanço dito, porque o que ficava por fazer é pela banda do mar, onde cada homem tem feito seu cais, à sua porta. Determinava ele de os obrigar que os alevantassem de maneira que lhe ficassem em cais e em muro; e o que, então, fez fazer nela abastava para se defender e muito facilmente acabaria de se fortificar.

Estando a coisa neste estado, chegou Manuel Travassos por capitão-mor e bem quisera acabar a obra, mas entendeu que os mandarins de Cantão, por então, não tomariam bem acabar-se de fazer a fortaleza, e a Tristão Vaz assim lhe pareceu, que havia de sobreestar até haver outra ocasião; e esta ficava o capitão-mor esperando; e, por entanto, estando Tristão Vaz ainda na China, se ordenou num ajuntamento de todolos portugueses que dos navios que viessem ao porto se tirasse um cerco tanto cada ano, para se sustentarem aquelas paredes e haver depósito de pólvora e munições para o que fosse necessário. Prazerá a Nosso Senhor que será aquilo começo de os Reis de Portugal virem a ter naquelas partes muitas fortalezas e cidades; e foi uma grande boa ventura ser Tristão Vaz o que as começou a fazer nela, porque ali está aparelhada uma mui grande conquista, assim espiritual como temporal, que a esta se há-de seguir a outra, e sem ela, se não for por via de milagre, se tem por impossível. São muitos reinos muito grandes e ricos, de terra muito fértil e sadia e de gente muito fraca e tiranizada, que de puro medo obedecem ao seu rei, sem lhe terem nenhum amor.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Quarto 72

CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTO

DE DUAS NOTÁVEIS VlTÓRIAS QUE TRISTÃO VAZ DA VEIGA TEVE, UMA DA ARMADA DE EL-REI DO ACHÉM, E OUTRA DOS JAUS QUE PUSERAM CERCO A MALACA, SENDO

ELE CAPITÃO DELA

Depois, no processo das viagens que Tristão Vaz fez à China, sucedeu ter no mar uma milagrosa vitória de uma muito poderosa armada de el-Rei do Achém, em que recebeu grandíssimas mercês de Deus.

Após esta, sucedeu na capitania de Malaca, e, sendo capitão, teve dois cercos, um de Jaus (141), outro de Achéns; também Deus lhe fez notáveis mercês. Destes três sucessos, abreviados em elegante estilo (que aconteceram em tempo de António Moniz Barreto, governador que foi na Índia), em que vai a história breve, dizendo a verdade e substância da coisa, sem se deter em contar golpes, fez o doctor e curioso Jorge de Lemos um livro, que se imprimiu em Lisboa no ano de oitenta e cinco, ao qual me remeto (142). E são tantas e tão grandes as façanhas que fez em armas, com forças, ânimo, prudência, estremados conselhos e ardis de guerra, que não só um breve livro, mas muitos mui compridos e uma copiosa e notável crónica se pode fazer de seus heróicos feitos, do qual livro notei algumas cifras, que agora contarei.

No primeiro cerco de Malaca se há-de notar que, depois que na Índia Oriental o Iza-Maluco e o Hidalcão e Cota-Maluco, reis mouros da província do Decão, se conjuraram contra o nome cristão e portugueses, que lá estavam, e assentaram para este efeito parcialidade com o Samorim de Calecut e com o tirano da ilha de Samatra, chamado Achém, para, por mar, com suas armadas, e, por terra, com seus exércitos, fazer cada qual num mesmo tempo a guerra que pudessem às fortalezas chegadas a seus Reinos, que os Portugueses sonhavam. Determinado o ano em que o haviam de pôr por obra, desceu nele o lza-Maluco sobre Chaúl, o Hidalcão sobre Goa (donde o Vizo-Rei D. Luís de Ataíde presidia), o Samorim sobre Achale e o Achém sobre Malaca. E, sendo destruída a armada do Achém pela armada de que era capitão-mor Luís de Melo da Silva, com que se encontrou, deixou, por então, de cercar Malaca, e reforçando sua armada e provocando a Rainha do Reino de Japara, poderosa em senhorio naquela região de Jaoa (143) proibisse (sic) aos seus ir com mantimentos a Malaca, e o ajudasse a cercá-la, o que ela começou a ordenar, defendendo os mantimentos e preparando-se para ajudar nesta empresa.

Mas o Achém, com socorro do Cota-Maluco, um dos da liga, não esperou pelo da Rainha e, logo, no ano seguinte, da era de setenta e três, foi aportar em Malaca, a treze de Outubro, em uma armada de noventa e tantas velas, em que entravam vinte e cinco galés, trinta e quatro fustas grandes, com muitos navios, outros, a que chamam lancharas, e algumas embarcações mais pequenas, e em todas vasilhas e naus de seus bastimentos levaria sete mil homens de peleja. Na noite que esta frota chegou, desembarcou o Achém da banda de Malaca e, mandando pôr fogo a essa povoação, que toda ardera, se logo não sobreviera uma grande chuva, daí a dois dias pelejou esta armada com as naus que estavam no porto, trabalhando polas queimar pelo escuro, mas vendo que lhes não fazia dano, antes o recebia, se foi com a mor parte dela ao rio de Muar, cinco léguas de Malaca; dele mandava até a ilha Grande, que dista duas léguas desta cidade, tolher a entrada aos navios que iam com mantimentos, com muita vigilância, que nem a pescar saíam da terra os pescadores, que era o mais apertado e trabalhoso cerco que podia ser, por Malaca se não sustentar senão de mantimentos que de fora lhe vão, e não lhe terem entrados nenhuns havia dias, afora outras muitas calamidades que antre si padeciam, e sobretudo sem esperança de socorro da Índia.

Estando, assim, Malaca tão afligida e fraca, Deus, que acode nas maiores pressas, moveu o coração do Vizo-Rei, que fez ir Tristão Vaz da Veiga, quase na fim da monção, na sua nau, não

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Quarto 73

se esperando já nenhuma nesse tempo, porque, sendo ele vindo o ano atrás à Índia da China, onde acabou as duas viagens de Japão (de que lhe el-Rei D. Sebastião fizera mercê por seus serviços, por importar, então, cem mil cruzados cada uma), soube como mandava el-Rei navegar de Malaca para Portugal uma nau com pimenta do Sul e mais drogas, que nele havia; pelo que se contratou com o Vizo-Rei D. António de Noronha (que no governo tinha sucedido a D. Luís de Ataíde) por ir a Sunda fazer dez mil quintais de pimenta.

Feito o contrato, partiu de Goa na sua nau nos derradeiros dias de Setembro de setenta e três, com muitos soldados de sua obrigação, e levou nela D. Francisco Anriques, provido da capitania de Malaca, por ele lhe caber entrar, o qual, tomando a posse a dois de Novembro, aos três convocou a conselho, o Bispo da mesma cidade e os vreadores dela e alguns fidalgos, e outras pessoas principais, para nele consultar do remédio que se poderia ter para lançar a armada dos imigos donde estava. E assentado que o melhor e mais assazoado (sic) era expedir-se Tristão Vaz da Veiga na sua nau, com alguns navios mais, que se lhe negociariam, lhe pediu o Capitão (todos presentes) quisesse ir servir naquela tão duvidosa e arriscada empresa, com que o convidava; pois de o assim fazer podia resultar (como se cuidava) reviver o povo, que via agonizar e fenecer, sem golpe ainda de terçado dos Achéns, que tão afiado o traziam, para, depois daqueles ensaios da morte, da defeza cruel dos mantimentos, o passarem todos pelos fios dele.

Praticados também outros danos, que podiam fazer os Achéns, vendo Tristão Vaz o estado em que a cidade estava e a eficácia, com que se lhe pedia fosse com tão pouca armada pelejar com outra sem comparação maior, assentou ir nela, havendo que lhe não atribuiria ninguém a temeridade própria pelo perigo presente, e sabido em que se ia meter, senão à confiança que em Deus punha, por cujo serviço se arriscava, porque a armada, que se lhe dava, era a sua nau, e um galeãozinho de um mercador de Cochim, e três galeotas velhas sem apostiças, e cinco fustas, umas e outras desaparelhadas, mal marinhadas e peor petrechadas, sem haver em cada uma mais que duas arrobas de pólvora, de bombarda e meia de espingarda, com muito pouca artilharia, sem comitres, e a chusma era de escravos, que os moradores para este efeito emprestaram, sem terem nenhuma disciplina da navegação, por uso ou engenho. E em todas e na nau e no galeão se embarcaram trezentos soldados de Sardos, e sem paga. Assim partiu a 15 de Novembro, com tão fraco aparelho e poder contra o grande do inimigo, protestando nunca pedir a el-Rei satisfação pela boa fortuna deste serviço que lhe ia fazer, se lha Deus desse, confessando-se e comungando, e ordenando, antes que partisse, as coisas da sua alma, e dispondo o mais que para aquele transe lhe pareceu necessário.

O dia que partiu surgiu três léguas da cidade, para acabar de recolher a armada, que não saiu logo toda com ele, ou pelo pouco gosto que tinha de o seguir em jornada tal, ou pelo aviamento vagaroso que se lhe dava, pela falta que de de (sic) tudo havia. Ela junta, mandou fazer sinal, e levando-se em rompendo a menhã (sic), navegou para o Rio Formoso, que está doze léguas de Malaca, por lhe afirmarem as espias que estava nele a armada imiga. Tanto que a descobriu, viu assomar a dianteira dela, que seria de vintantos (sic), navios ligeiros; deixando a Manuel Ferreira por capitão da sua nau, com instrução do que devia fazer no conflito, se meteu em uma galeota das que consigo levava, que era de Aires Pinto, para ordenar a sua armada e animar os soldados, (por que, vendo-o antre si tão companheiro, como cada qual deles, pelejassem mais confiados) e principalmente por lhes dar a entender em seu bom semblante que não era tão espantoso o imigo, como se em Malaca pintava, pois queria achar-se com eles, não só como seu capitão-mor, mandando da sua nau, senão também como soldado, pelejando numa galeota com a espada na mão, e correndo o alcance deste garfo da armada, a voga arrancada (porque entendia que, se a desbaratasse, ficava mais fácil o desbarato da que restava), se ajuntou ela toda e foi velejando para fora apavorar e atemorizar a armada portuguesa.

Entendendo o capitão-mor Tristão Vaz da Veiga, pelo muito discurso que tinha da guerra, que na determinação sua estava o temor dos imigos e na dúvida confiança, lembrou aos capitães e soldados suas obrigações e os exortou, persuadiu e moveu à peleja e, alvoraçando-os com palavras animosas, se fez logo na volta deles; e, indo pouco menos de uma légua, viraram, parecendo-lhes que poderiam tomar o balravento à nossa armada.

Tristão Vaz, pronosticando a tal princípio um fim felice, bradou, por acrescentar os espíritos aos companheiros que arreceavam os mouros a batalha, pois com tanta ventage (sic) se queriam também valer do vento, afirmando-lhes mais que isso mesmo o levava ajudar-se da sua nau e do galeão para os render a pouco custo. Unida, pois, esta pequena armada à nau e

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Quarto 74

ao galeão, descaiu o Achém com a sua sobre ela e, ficando ambas encaradas e fronteiras, se tratou (sic) uma muito crespa e belicosa batalha.

O capitão-mor pôs a proa da galeota, em que ia, na galé da capitaina do Achém, tão descompassada de grande, que foi maravilha poder-se desbaratar com duzentos homens de peleja, que nela trazia, e os sete navios mais de remo nas outras galés, que os cometeram. Mas Deus, que, manifestamente, pelejava pelos seus fiéis, quebrantando e abatendo a feroz arrogância deste imigo, as desbaratou de modo que fugiram todas, vendo perdido o pendão do seu general e virar a galé destroçada, deixando quatro galés abrazadas e sete embarcações, outras de serviço, que traziam por popa, cada uma sua, e mais para se reformarem e se cevarem de gente, quando dela tivessem necessidade.

E, porque se armava da banda de Samatra um tempo borrascoso e desconversável e a noite se chegava, se abrigou Tristão Vaz com a armada de remo ao socairo da nau e do galeão, porque a escuridão e o cansaço da briga e o descuido de soldados vitoriosos não fossem causa de algum infame desastre; e, por celebrar mais a vitória que Deus lhe tinha dado, se deixou estar nesta paragem três dias, com mais resguardo, cuidado e ordenança do que inda a tivera em cometer o imigo, esperando para cada (sic), quando o ele quisesse, tornar a buscar, o qual perdeu setecentos homens de peleja, entre mortos sós cinco soldados, e feridos cinquenta; donde se pode coligir que no espírito veemente, como diz o salmista, venceu este grande capitão Tristão Vaz da Veiga a armada do Achém, e não no poder humano, com que pelejou. Acabados os três dias, mandou voltar as bandeiras para Malaca, com muitos sinais de alegria, e ela a teve assaz com sua chegada e com a certeza de sua tão assinalada vitória.

No segundo cerco de Malaca, sendo capitão o mesmo Tristão Vaz da Veiga, não eram passados muitos meses depois do assombramento mortal da armada do Achém, evaescido (sic) e desfeito, quando sobressalteou outro assaz nocivo a este cansado e miserável povo. Porque a Rainha de Japara, que tinha prometido a este imigo ajudá-lo na conquista de Malaca (como no intervalo de tempo que ele gastou, de sôfrego e cubiçoso, em a guerrear, havendo que a poderia tomar sem sua ajuda, estivesse ordenando a gente que havia de mandar para ela), a mandou de indústria tanto que a teve ordenada e prestes, conquanto sabia de seu destroço e desbarato; que havia que não poderia recolher-se tal, que peor não ficasse a cidade e, pela mesma rezão (sic), que lhe seria mais fácil tomá-la e defendê-la com seu poder ao próprio Achém; levada desta imaginação, que revelou e comunicou aos seus capitães, mandou navegar uma armada de quase de trezentas velas, em que entravam setenta ou oitenta juncos (que são naus à sua usança de trezentas, quatrocentas e quinhentas toneladas), e outras embarcações, que chamam calaluses, com quinze mil jaus de peleja, gente escolhida e de nação soberba, de que era o general que aí dá mão regedor principal do seu Reino; e chegou a Malaca a cinco de Outubro do ano de setenta e quatro.

Quis Deus nestas angústias e aflições tomar por instrumento do alívio delas Tristão Vaz da Veiga, porque, sendo partido, depois de desbaratar a armada do Achém, para a Sunda a cumprir com a obrigação de seu contrato, aconteceu não achar lá comodidade para isso e voltar a tempo que pudesse servir neste cerco; porque D. Francisco Anriques, por sua doença, de que faleceu em Novembro do mesmo ano de setenta e quatro, tinha cometido em sua vida o governo da fortaleza a Tristão Vaz e nomeado em seu testamento por capitão dela, por virtude de uma provisão do Vizo-Rei, contendendo, contudo, por seu falecimento o alcaide-mor Pero Carvalho pertencer-lhe a capitania, por rezão de seu cargo, e o licenciado Martim Ferreira também, por ser veador da Fazenda, se pôs a questão, em parecer do Bispo e de alguns religiosos e pessoas principais, diante do Santíssimo Sacramento, e depois de ventilada e discutida antre eles, saiu eleito Tristão Vaz que, começando fazer seu ofício como via que o pedia a importância do cerco, avisou logo dele por suas cartas, pola via de Charamandel (144), a António Moniz Barreto, que de Dezembro de setenta e três sucedera na governança da Índia a D. António de Noronha. O qual, sabida por ele a nova do cerco na fim de Fevereiro, espalhou com muita brevidade cartas a diversas partes, para que mandassem muitos mantimentos a Malaca, e assim o fizeram todos, e tanto insistiu o Governador nisto, pela experiência que tinha dos dois cercos de Diu, e do de Mazagão, e de outros muitos transes em que se achara, que pediu para isso à Câmara de Goa vinte mil pardaus de empréstimos, dando para segurança da paga a Duarte Moniz, seu filho, de sete ou oito anos, em penhor, e mandou uma armada para socorro de Malaca, e por capitão-mor dela a D. Pedro de Meneses, que partiu de Goa aos dezassete de Abril, com quinhentos soldados, e D. Miguel de Castro provido da capitania

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Quarto 75

dessa fortaleza, com cem soldados, e Francisco de Melo com outros tantos em outra nau, em que ia fazer a viagem de Japão e devia, forçado, tomar Malaca.

A gente da banda de Malaca, quando os Jaus chegaram, estava toda recolhida na fortaleza e a da banda de Ilher por recolher; desta desembarcação, fora de toda a povoação e tão subitamente, que entraram até a porta da fortaleza, junto ao baluarte Santiago, sem acharem resistência, mataram neste furioso ímpeto alguma gente da terra, homens e mulheres, e D. António de Castro, que acudiu ao rumor, acelerado, desarmado, com dez soldados; a menhã já clara se desembarcou o campo, e foi-se o General chegando com ele à fortaleza e, depois de alojado, assentou seus arraiais ao contorno dela, em lugares mais apropositados para seu intento, fazendo suas estâncias e tranqueiras; uma, que estava a trinta passos do baluarte S. Domingos, quebravam os de dentro as avessadas pela tomar.

Tristão Vaz proveu logo os baluartes de capitães, soldados e gastadores e mandou pôr em ordem a artilharia, cometendo a guarda da pólvora a pessoas de confiança, assim por quão perigosa ela é, como também por pouca e as casas todas serem cobertas de palma seca, e espalhou muitos jaus, que na terra havia casados e com filhos, pelos baluartes, antre os soldados, longe donde tinham suas habitações: os de um bairo (sic) (145) no baluarte de outro, que mais remoto lhe ficava, e os de outro noutro, dividindo e apartando os parentes e amigos, com lhes dar a entender que esse era o estilo da guerra, porque juntos não imaginassem alguma treição (146) e conspirassem para dar entrada aos imigos, cujos parentes e amigos eram muitos deles. Isto feito, se recolheu certa cópia de soldados, para acudir com eles onde fosse necessário e, por cevar os mais, pelo alvoroço que neles via, mandou a João Pereira e ao licenciado Martim Ferreira dar nesta tranqueira com cento e cinquenta soldados, fiando a dianteira de Diogo Lopes, que tinha por sobrenome o Soldado. Saíram e tomaram-na, matando setenta jaus, e ferindo muitos outros, e fazendo fugir os mais. Vieram-se à fortaleza com esta vitória, desmanchada e queimada a tranqueira, e com sete berços, que nela tomaram.

Consirando (147) os jaus que a sua salvação estava nas suas embarcações, pelos almazens que aí traziam e, porque nelas se haviam de tornar, se lhes a fortuna fosse adversa, meteram-nas com águas vivas no rio dos Malaios, pouco mais de meia légua da fortaleza. Visto seu fundamento, em que nenhum resguardo tiveram, mandou Tristão Vaz buscá-los ao rio por João Pereira, com uma galé e quatro fustas e alguns batéis e manchuas; chegando, queimou trinta e tantos juncos e outros navios, que estavam todos bem providos de mantimentos, de que se tomaram alguns, que foi boa ajuda para os cercados; não pôde entrar o rio mais a pôr o fogo aos outros, que ficaram, porque, de águas quebradas e mortas, é mau de navegar, por ser muito aparcelado e a barra baixa. Por esta destruição cerraram os Jaus a barra e a fecharam com grades de madeira, e atravessaram o rio com uma estacada, e ao longo dela fizeram uma tranqueira para se defender, fabricando sobre navios alguns castelos de pau, para os chegarem ao baluarte de Santiago e o queimarem.

Mandou Tristão Vaz João Pereira lá em batéis apavesados e alguns balões e manchuas (porque deste rio se provia a cidade de muitas coisas e refrescos, que ele, em si, tem); foi, tomou a tranqueira, desfez as estacadas e queimou os castelos, e, como os Jaus entendiam o muito que lhes importava ser senhores do rio, porque impediam com isso não se aproveitarem os da fortaleza dele, e eles, que lograriam tudo o que dava, empregaram todas suas forças em o fortificar, para o que numa noite o cruzaram com outras estacadas muito grandes, e com tranqueira e gente, assestando nela artilharia miúda, para sua defensão.

Tornou Tristão Vaz mandar João Pereira nos batéis e manchuas e, remetendo à tranqueira, se retirou com morte de dois homens e alguns feridos, e um deles era Manuel Ferreira, que ia por capitão num dos batéis, a que se lhe deram três perigosas frechadas. Insistindo, contudo, Tristão Vaz em se tomar, mandou a Fernão Peres de Andrade se metesse no rio em uma naveta artilhada, com arrombadas por amor de sua artilharia, e levou consigo os batéis, bem consertados, e outras embarcações; metendo-se, houve ao abalroar uma crua e aporfiada briga, que durou espaço; todavia, foi ganhada a tranqueira, desfeitas as estacadas e morta muita gente, ficando o rio por nosso.

Custou cada uma destas saídas três até quatro soldados; e não custar mais, sendo os Jaus, com que iam pelejar, tão esforçados, como são, foi por querer Deus guardar aos seus, e também porque, além de não terem muita notícia da arte militar, os atalhava Tristão Vaz, antecipando-os com armada, com que mandava dar neles, primeiro que se pusesse de todo por obra qualquer que fantasiavam e maquinavam, para poder, depois de seguros os

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Quarto 76

alojamentos, arvorar escadas e tomar a fortaleza a escala vista, porque tinham naquele tempo os muros muito baixos e em muitos lugares não havia senão paus, que cingiam de um baluarte ao outro, e os Jaus não usam de artilharia grossa para com ela bater, porque tudo cuidam que podem render a puro braço, sem artifício nenhum.

Mandou o Capitão Tristão Vaz a João Pereira se deixasse estar com a armada de remo e com a naveta na boca do rio, para lhes não poder entrar socorro de mantimentos, dos quais indo eles tendo falta, e vendo a porta fechada aos que de fora esperavam e o pouco nojo que podiam já fazer à fortaleza, conjecturando pelo intentado, mandou o Dato (que é como bispo antre eles) pedir pazes com muitos cumprimentos e perdões do cerco, dando que mais propriamente se puderam os seus chamar cercados, se na fortaleza houvera mais sãos que doentes para os maltratarem, porque a armada os tinha encerrados e como presos em seus arraiais e embrenhados nos matos, por estarem escaldados das saídas e da lavoura de arcabuzaria.

Mandou-lhe o capitão Tristão Vaz por resposta que lhas faria, contanto que lhe dessem os cativos e armas e o galeão, com a artilharia que tomaram, nem dos seus portos do reino de Japara (sic), e que não navegariam nunca de Malaca para o Achém sem cartas do capitão (148), e que se haviam de sair dentro em três dias, navegando direitos para a Jaoa, pelo estreito de Sabão, não tomando terra nenhuma àquem dele; e que, para firmeza de assim haverem de cumprir, haviam de dar arreféns logo, porque presumia Tristão Vaz que, com pretexto de paz, se quereriam ir reformar a alguma parte para tornarem com os Achéns. Parecendo aos Jaus mui duras e pesadas as condições, não as quiseram aceitar, deliberando-se antes esperar pelos Achéns; só os cativos disseram que dariam; não lhes mandou Tristão Vaz dar disso reposta (sic).

Daí a cinco dias ou seis, tornou o Dato a repetir sua porfia por cartas, afirmando que tinha os Jaus brandos para deles fazer o que quisesse, o que não poderia ser depois de chegados os Achéns, por que esperava, como poderiam ver per uma carta sua, que lhe fora dada e o mesmo Dato mandou à fortaleza.

Pareceu ao capitão Tristão Vaz boa ocasião das pazes para se poder prover, durante o trato delas, dos mantimentos que a Rainha mandara aos seus em seis juncos (que, vindo demandar o rio, viraram para Jor, trinta e quatro léguas de Malaca, por haverem vista da armada de João Pereira), porque sabia, por espias, que, mandando-o nela lá, os tomaria sem muita dificuldade; portanto, admitindo ao Dato a falar nas pazes, mandou a João Pereira um regimento cerrado, com uma carta de fora, em que o avisava que, sem estrondo nenhum e com muito segredo, se fosse ao rio de Muar (porque, se o povo o vira absente, afracara) e lá o abrisse e fizesse o que lhe nele mandava. Dizia-lhe o capitão no regimento que tinha sabido dos seis juncos que estavam em Jor, sem muita gente de guarda, esperando por reposta do recado que mandaram ao seu (pelo qual lhe faziam saber que havia dias estavam aí com o provimento para o exército retraídos, por causa da armada que viram, indo buscar o rio, para que, tanto que tivessem nova estar desimpedido, partirem a toda a fúria), e que os cometesse logo em chegando, encomendando-lhe que os não queimasse, senão depois de canjar e baldear os mantimentos todos ao maior, pela muita fome e carestia que havia na cidade, posto que fosse também sua tenção pôr nela os Jaus, com lhos mandar tomar.

Foi João Pereira na galé e quatro fustas e fez tudo como lhe era mandado. Tanto que voltou com o junco carregado de mantimentos, assistiu o Capitão em pessoa à desembarcação deles, sem consentir a nenhum soldado levar nem um arrátel de arroz, dando-lhe lugar para tirar drogas, que também tomaram, e todo o mandou meter debaixo de uma chave, que consigo trazia, do almazém de el-Rei, para se distribuir per sua lista pela gente de guerra necessitada, sem se lhe poder furtar. Com estes mantimentos e recato, que neles havia, se alevantaram os moradores e vigiavam e trabalhavam com mais fervor.

Todavia, mandou o Capitão a João Pereira desocupasse o mar, porque corriam os recados das pazes, e por ver se era fingido o requerimento delas, a fim de se suspender o dano que os Jaus padeciam, e se se quereriam ir logo sem as concluir, tirado o sobrosso da nossa armada, porque desejava o Capitão muito que se fossem eles antes da vinda do Achém.

Tanto que os Jaus viram o mar desembaraçado e o calor e diligência, com que o capitão provia em tudo, pela nova, que tiveram, dos mantimentos que mandara tomar a Jor dos seus próprios juncos e o estrago da sua gente, e como persistia ainda nas condições, alevantaram o campo de noite e, antes de amanhecer, se saíram. Mandou o Capitão a João Pereira que os

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Quarto 77

seguisse e desse na reçaga (149) da sua armada; deu e desbaratou alguns juncos e outros navios, em que matou muita gente. Desta afrontosa fugida se pode inferir que, se a cidade não estivera tão doentia e não tivera por tão certa a nova da vinda do Achém, bastava a guerra, que Tristão Vaz mandava fazer aos Jaus com a armada de remo, para dos quinze mil, que foram cercar Malaca, não escapar nenhum, porque passavam de seis para sete mil os que morreram a ferro e fogo e doença, e chegaram com menos ainda ao seu reino, porque, como eram poucas as embarcações e menos os mantimentos, e os mais deles se embarcassem anovelados uns sobre outros e fossem combalidos já e inficionados da contagião do ar corrupto do lugar paulado e brejoso, em que estiveram, foram alijindo (sic) pelo mar corpos mortos e meios vivos, por incuráveis e prejudiciais à saude dos sãos.

Foi Deus, enfim, servido, passados três meses que o cerco durou, de desopressar esta fortaleza, dando-lhe muitas vitórias, estando ela em si tão pouco defensável e menos para não esperar nenhuma, porque o cerco foi de súbito, a cidade estava mui falta de mantimentos e de presídios de soldados, com poucas munições e mal amurada, e quase vendida por uns Guelias, naturais e gentios, e mais gente morta de doença que de feridos de imigos, e a que ficava tão debilitada de tudo, que era uma mágoa vê-la; para se não restaurar tão prestes, lhe não deixaram os Jaus fora coisa que não arrincassem (sic), e disso devastando, e arrancando todas as árvores de fruto, que de uma e outra parte do rio estavam prantadas, para daí a muitos anos se não poder aproveitar de nada.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Quinto 78

CAPÍTULO VIGÉSIMO QUINTO

DE OUTRA GRANDE VITÓRIA QUE O CAPITÃO TRISTÃO VAZ DA VEIGA ALCANÇOU DOS ACHÉNS NO SEGUNDO CERCO DE MALACA

O Achém, que estava à mira, esperando recado por suas espias do sucesso dos Jaus, com o mesmo pressuposto que a Rainha teve, quando os mandou, sabendo de seu destroço, tanto que se certificou que eram idos e muito mal hospedados, partiu com treze (150) velas para Malaca, em que iam algumas naus e galeotas, e quarenta galés com muita e mui grossa artilharia, e ao derradeiro de Janeiro de setenta e cinco apareceu com esta armada defronte da fortaleza, despregadas as bandeiras, que nela trazia. E como o Capitão Tristão Vaz sabia que havia este imigo de vir e esperava por ele, se desvelava sempre em ter muita vigia nos muros e muita mais na pólvora e mantimentos, e, porque os tinha mandado buscar a Pegú e a Bengala, e era tempo já de chegarem as naus que o traziam, assentou, com o parecer dos capitães, ter no mar João Pereira na galé, Bernardim da Silva na caravela, e Fernão de Palhares numa nau, que para isto se comprou, e meteu em todas cento e vinte soldados, para, com o favor da artilharia de um dos baluartes, que mais sobranceiro lhes ficava, e de outra, que mandou trasplantar (sic) na sancristia (sic) da casa de Nossa Senhora do Monte, se puder segura (sic) por alguma via o mar onde lhe haviam de entrar esses mantimentos e onde haviam de ir pescar para se poderem sustentar, porque carnes não as tinha a cidade, legumes e verdura não a deixaram os Jaus.

O primeiro de Fevereiro fez o Achém mostras de sua guerreira armada com muita ufania, para acanhar e rebotar os espíritos aos portugueses, e, logo ao outro dia, remeteu toda à galé, caravela e à nau, que estava antre a ilha, onde as naus surgem, e a terra; e disparando, ao modo de chuva granizada, uma inflamada tempestade de horrendíssimas bombardas, foi repassada e arrombada a galé com um grande pelouro. E querendo, contudo, João Pereira renovar a batalha, nem às cutiladas pôde ter alguns soldados, que o desamparavam, vendo-se toldados de uma mui negra e grossa nuvem do fumo da artilharia e atroados do espantoso tom dela, e por caírem mortos setenta e cinco companheiros da galé, da caravela e da nau; aos capitães aconteceu o mesmo que a João Pereira com os soldados. Acabaram todos três neste crudelíssimo cometimento dos achéns, pelejando cada um na praça do seu navio valorosíssimamente. Escaparam cinco a nado, e cativaram-se quarenta, e os navios foram metidos no fundo pelos achéns, porque, quando quiseram salhar a artilharia deles e tirá-la para a recolherem nas suas galés, lho não consentiu a do baluarte e a da sancristia, que os varejava muito rijo, e os imigos nenhum (sic) detrimentos receberam.

Foi este monstruoso desbarato muito para se sentir, tanto pela ousadia e brio que eles ficaram ganhando, como medo os da fortaleza, por se verem acurralados e metidos antre paredes muito fracas de seiscentas braças de âmbito e roda, não havendo mais que cento e cinquenta homens, contando velhos e doentes, para os vigiar e guardar, porque os mais dos soldados, acabado o cerco dos Jaus, se foram escondidos em alguns navios, que daí partiram para a Índia, por cima de todas as inteligências (151) e cautelas que Tristão Vaz teve para deixarem de ir. E mandou nas naus dos mercadores aviso, por suas cartas, ao Governador deste terceiro cerco, tendo-lho mandado primeiro por um balão muito ligeiro, que expediu com um homem português, inda que sabia bem que lhe não podiam ser dados (sic) (152) senão em Maio, em que a monção faz termo, e não podia chegar o recado a tempo que o pudessem socorrer, mas com tenção que, se fosse tomada Malaca, se resolvesse o Governador e se preparasse para em pessoa a ir conquistar de novo, pois ficava com a candeia na mão, com a armada perdida, o imigo dominando o mar, e os cercados em cama pelo hospital e por suas casas, sem mais remédio que o que Deus, por sua misericórdia, lhe quisesse dar.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Quinto 79

Posto que visse o capitão Tristão Vaz não estar a fortaleza para se defender, assim pelo desastrado caso da galé, caravela e da nau, como por essa pouca gente, que havia, andar toda esmaiada e amortecida com os males tão encapelados e sobresseguidos, que uns a outros se alcançavam, sem a deixarem respirar, nem tomar fôlego, fazia, todavia, tudo o que convinha, tirando da fraqueza forças, com os olhos na Providência Divina, por que os imigos não barrutassem (153) seu pernicioso estado. Pelo que mandava sair alguns soldados aos achéns, que desembarcavam da banda de Malaca, instruindo-os no que haviam de fazer, sem passarem de uma certa demarcação; e permitia Deus que virassem eles todas as vezes que lhe os nossos saíam nestes entretimentos de gosto seu e enfadamentos dos da cidade. Gastaram dezassete dias, sem nunca serem convidados da artilharia dela, senão quando cometeram os três navios, porque tinha três bombardeiros somente e a mor parte da pólvora gastada.

Isto, que por mera necessidade se fazia, obrigou ao bárbaro suspeitar que se lhe tramava dentro alguma cilada; e desta suspeita tomou motivo para dar às velas para Samatra, contentando-se da vitória que tivera da galé, nau e caravela, e havendo-a por tamanha, como Tristão Vaz a perda delas e dos soldados, que o penetrou mais e o jarretou, por degenerarem do valor com que tinham contrastado em todos os recontros, adversando e reprimindo os imigos, sem embargo de se não deixar de entender que foi mercê de Deus para os nossos dar essa vitória aos achéns. Porque, depois dos imigos idos, a oito dias, chegaram as naus de Pegú e Bengala com mil moios de arroz, com que se a cidade remediou e cobrou alento, e nos primeiros dias de Abril entraram duas naus da China, com o grosso das fazendas de todos os mercadores da Índia; estas e essoutras (sic) houveram de cair na gorja ao Achém, se detivera, e a fortaleza estivera por sua e os templos do Senhor profanados a nenhum custo seu, cuja lembrança compungia, cauterizava, enternecia e desentranhava com importável (sic) dor os peitos cristãos daquele povo, principalmente do Eclesiástico, que estava numas perpétuas preces, acompanhadas de muitos suspiros e lágrimas suas e do tenro coração das mulheres e mininos, que, exalados e mirrados, as frequentavam sempre com saluços apressados e brandos gemidos, não se esquecendo, por isso, de às suas horas recorrerem os doentes com o ministério devido, porque, como as vigias e fomes foram muitas e continuadas por longo espaço, enfermaram todos, e os mais de comer animais imundos, por se não poder ir pescar ao mar e o campo estar ermo, deserto e crestado dos Jaus, e o arroz, mantimento comum e peculiar de todos os povos dessas partes do Sul (porque em nenhuma se dá trigo, senão na China), ser tão pouco o que nestes cercos houve, que valeram um cruzado duas gantas dele (que medida (sic) de que se em Malaca usa, de sete o alqueire), valendo, de ordinário, na paz setenta até cem gantas de arroz.

E, quando as novidades escapavam, ellisas (sic) (154) e salvas das injúrias do tempo, se achavam, por esse preço, cento e vinte, e cento e quarenta; mas tão delapidada e suadida e faminta estava a cidade dele, que, nem com a enchente que nela entrou de Pegú, de Bengala e da Índia, pôde arribar à sua geral valia de setenta gantas por cruzado, porque a alteração, que houve, foi a pressa do vagar, hoje seis, amanhã oito, outro dia doze, quinze, vinte, até trinta, sem passar desta contia (155) muitos meses, de modo que destas faltas e outras infelicidades mui íntimas, a que o incauto e pobre vulgo quase sempre está mais sujeito que os outros homens, se originaram tantas mortes, que de uns e de outros morriam cada dia sessenta e setenta, e algumas vezes aconteceu estar o Sacramento para ir dar o pasto celeste às almas, que estavam em vésperas de desampararem os atribulados e lamentáveis corpos, e andar a campainha duas e três vezes pelas ruas, sem acudirem homens para levar o pálio, sendo a devação tanta desta pomposa e angélica solenidade nessas partes todas, que em qualquer se revolve logo a maior e a melhor parte e a mais fautosa (156) para acompanhar este Diviníssimo Cordeiro, preço de nossa redenção. E soube-se em quinze de Março que não havia vinte sãos que pudessem subir aos muros, por onde se pode afirmar que foi grande mercê de Deus satisfazerem-se os achéns com essa pequena vitória, inda que, para o como a cidade estava lastimada e chagada, foi a maior que podia ser.

Destes tão compridos trabalhos participou Tristão Vaz da Veiga mais, por carregarem todos sobre ele como capitão, pelo que, em nove meses que o foi, até Junho, em que a armada da Índia chegou com D. Miguel de Castro (que o desobrigou da menagem que tinha dado da fortaleza, que até àquela hora sustentara, e a defendera dos imigos a seu pesar, deles), adoeceu três ou quatro vezes, mas não de modo que o necessitasse ao avorrecimento da cama, inda que lha pedia a debilidade do corpo, porque entendia que, se buscara o mimo dela sem ter conta com o espírito, que o violentava a se mostrar muito robusto, pronto e alegre aos

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Quinto 80

soldados que o ajudavam defender a fortaleza, pasmaram e esmoreceram, porque alimentava quase todos com o seu, em que gastou, pela obrigação de capitão e de cristão, vinte mil cruzados, como se pode crer que gastaria em tanto tempo quanto estes alternados cercos dos achéns e jaus duraram, dado que, dum ao outro, e depois, se intervalassem alguns meses, pois em todos despendeu, e na armada, em que tinha pelejado com os achéns, porque da fazenda de el-Rei se não gastaram nela mais que trezentos cruzados. E, posto que os casados, que o acompanharam nos navios de remo, fizeram a despesa deles à sua custa, todavia, Tristão Vaz contentou os soldados (inda que não por pago geral, estipêndio e soldado) (sic), e no disarso (sic) (157) dos cercos ajudou também a João Pereira, Bernaldim da Silva e a Fernão Peres de Andrade, por fidalgos pobres, e a nau, que os Achéns queimaram e meteram no fundo, era sua; assim que, com a pessoa e fazenda, serviu a seu Deus e ao seu Rei muito inteiramente.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Sexto 81

CAPÍTULO VIGÉSIMO SEXTO

DE ALGUMAS COISAS NOTÁVEIS QUE FEZ TRISTÃO VAZ DA VEIGA E COMO ERA TRATADO PELOS VIZO-REIS DA ÍNDIA E POR EL-REI, QUE O FEZ DO SEU CONSELHO;

COMO OS GOVERNADORES O FIZERAM CAPITÃO DA TORRE DE S. GIÃO

No ano de mil e quinhentos e setenta e oito se embarcou este generoso capitão Tristão Vaz da Veiga da Índia, na nau S. Pedro, para este Reino. Perdeu-se nela nos baixos de Pero dos Banhos, que estão em cinco graus e meio da banda do Sul. O que naqueles baixos lhe sucedeu, o modo como fez fazer outra nau, em uma ilha deserta, dos pedaços da nau perdida, o como o (sic) botaram ao mar, e como se mantiveram na ilha, os trabalhos que nela passaram e na viagem até tornar à Índia, foi coisa de que também se pudera fazer uma particular história para louvor de Deus, que tamanhas mercês lhe fez naquela perdição e triste naufrágio, em que lhe foi necessário usar de grandíssimas e sotis (sic) invenções e artifícios para fazer trabalhar cinco meses e meio contínos (sic), que na ilha estiveram, trezentas e sessenta e tantas almas e, ainda assim, lhes faltava o tempo, e, se alguns deles não trabalharam, todos perderam. Chegaram na nova nau a Cochim, donde escreveu a Goa ao Vizo-Rei D. Luís de Ataíde, que, então, da segunda vez governava a Índia.

Tanto que o Conde de Atouguia, Vizo-Rei, soube em Goa que era tornado a Cochim, per muitas cartas suas apertou com ele, com grande instância, que ficasse na Índia e se não tornasse a embarcar para o Reino, metendo nisso por terceiro ao Arcebispo de Goa, D. Anrique de Távora, que, ao tempo, estava em Cochim, e ao Provincial da Companhia de Jesu, (sic), e a outros religiosos e pessoas graves, oferecendo-se dar-lhe a conquista do Reino e fortaleza perdida de Maluco, que lhe el-Rei mandava que fizesse, ou a empresa da conquista do Achém a Samatra, se ele não fosse em pessoa a fazê-la, e, indo em pessoa, lhe oferecia ficar ele governando a Índia. A nada disto acudiu e se veio para este Reino, onde chegou o ano de setenta e nove.

O como os Vizo-Reis da Índia o tratavam nela e a confiança que dele tinham, bem o mostram três provisões que levou de três Vizo-Reis da Índia, quando foi fazer as viagens da China. A primeira foi do Vizo-Rei D. Antão de Noronha, no ano de setenta e cinco, a segunda do Vizo-Rei D. Luís de Ataíde, do ano de sessenta e nove, da primeira vez que governou a Índia, e a terceira do Vizo-Rei D. António de Noronha, do ano de sessenta e três, em que o declaravam por capitão-mor na Sunda, China e Japão, para onde ia, como el-Rei o tinha feito, e nos outros portos e partes por onde passasse, quase Vizo-Rei, como qualquer, e com tudo isso mais se presava ele de nunca lhe ser necessário usar de alguma destas provisões, que dos Vizo-Reis lhas passarem (sic), aos quais foi sempre imediato, que só eles tinham jurdição nele, sem quererem que outrem a tivesse.

No ano de sessenta e nove, que chegou a Portugal, lhe cometeu el-Rei D. Anrique que fosse ser Capitão de Arzila; escusou-se; e, porque ele ouvia mal, pediu-lhe tempo para lhe responder por escrito; e respondeu desta maneira:

«A dor, que tenho de não servir a Vossa Alteza no que me manda, é a maior pena que, por isso, se me pode dar. As razões de o não poder fazer são estas: Se Arzila, onde Vossa Alteza me manda, estivera cercada, ou houvera certeza de que o havia de ser, de muito boa vontade fora servir a Vossa Alteza nela, mas as coisas deste Reino e de África estão em estado que nenhum receio se pode ter disso pôr; e não é razão que Vossa Alteza me tenha ocupado num lugar de guerra, não a tendo; que meus trabalhos passados parece que obrigam a Vossa Alteza a querer que gaste eu o que me fica da vida, servindo-o em grandes perigos, se os houver, ou descansando, para o poder melhor fazer quando eles sobrevierem. Arzila é um lugar que todo homem entende que Vossa Alteza o tem somente para o largar em tempo conveniente, pois está claro que de nenhuma coisa serve a estes Reinos, senão de os fazer

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Sexto 82

pensionairos em sessenta ou setenta mil cruzados, que se gastam nele. Não deve Vossa Alteza de querer de mim, que tantos lugares defendi e ajudei a defender a Mouros, que lhe vá agora entregar este, que é coisa que eu em nenhuma maneira poderei acabar comigo. Afora isto, tenho cunhadas e sobrinhas viúvas e solteiras, cujos pais e maridos são mortos em serviço de Vossa Alteza, e Lourenço da Veiga, meu irmão, ocupado nele no Brasil; as quais todas pendem de mim só, e em tempo que Deus nos está castigando com pestes e ameaçando com outras coisas, não é razão que Vossa Alteza queira, deixando tantas coisas desamparadas, servir-se de mim em coisa para que bastam outros homens. E, finalmente, porque entendo que não cumpre a serviço de Vossa Alteza, nem convém a minha honra ir eu a Arzila, peço muito por mercê a Vossa Alteza que escuse de mo mandar, e que, pois cá se oferecem perigos maiores e mais perto, Vossa Alteza me não queira arredar tanto de si».

No fim da petição que deu de seus serviços a el-Rei D. Anrique em Lisboa, quando veio da Índia, a qual depois tornou a dar a Sua Majestade em Elvas, lhe dizia que mais lhe devia Sua Majestade pela isenção e liberdade com que falara e aconselhara sempre aos seus Vizo-Reis na Índia, que pelos serviços que lhe nela fizera, sendo tão abalizados, de tal maneira falava com os Reis e tão liberto, e tanto respeito lhe tinham eles.

O mesmo Rei D. Anrique, estando em Almeirim para fazer as Cortes que aí teve, parecendo-lhe razão que entrasse ele nelas, pois se haviam de tratar matérias tão graves, o fez do seu Conselho, sem ele per si, nem por outrem lho pedir; esteve nestas Cortes e nelas foi um dos trinta eleitos do estado da Nobreza.

Durando as Cortes em Almeirim, a Câmara da cidade de Lisboa fez lembrança aos Governadores da importância da Fortaleza de S. Gião, nomeando-se três pessoas que lhe parecia que podiam bem ter cargo dela, e estes foram D. Diogo de Sousa, que hoje é vivo, pessoa de tantas qualidades, o outro D. Diogo de Meneses, Governador que fora da Índia, que o Duque de Alva depois mandou degolar em Cascais, e o outro foi ele, a quem os Governadores encarregaram dela, tomando-lhe a menagem e juramento costumado.

Nesta fortaleza esteve, fortificando-a com muito trabalho de sua pessoa, até D. António (158), Prior do Crato, se alevantar em Santarém, o qual, vindo a Lisboa, o apertou com muitas cartas e recados por pessoas graves, estando já recebido por Rei, que lhe entregasse a dita fortaleza, o que não fez per muitos dias; antes escreveu a Setúval aos Governadores, pedindo-lhe o provessem das coisas necessárias para defensão da fortaleza, como muitas vezes lhe tinha pedido, antes de D. António se alevantar, os quais lhe não mandaram coisa alguma e se foram, com medo de D. António, para Castela, deixando-o sem pólvora, sem água e sem gente; e tornando D. António de Setúval a Lisboa, o tornou apertar que lhe desse a fortaleza, e vendo ele que ele estava recebido por rei em Lisboa e que não tinha na fortaleza mais que sessenta homens, a maior parte dos quais tinham suas mulheres e filhos nos lugares derredor e desejando de se entregar, havendo naquele tempo com toda inteireza e singeleza de ânimo defendido aquela fortaleza pelos Governadores, que lha entregaram, vendo também que não tinha munições nem mantimentos para se defender, lhe escreveu uma carta em que lhe entregou a dita fortaleza, da qual lhe não fez menagem, nem juramento. Per algumas vezes o viu e lhe aconselhou sempre que se entregasse a Sua Majestade, que estava perdido e não tinha com que se defender, que não quisesse ser ocasião de se perder e saquear Lisboa e todo o Reino. E sempre lhe respondeu que nisso andava e disso tratava, e que o havia de fazer andando o tempo; veio o Duque de Alva a cercá-lo e, depois de o bater três dias, teve modo de per umas mulheres, que fingiam ir ver uma filha e genro, que na fortaleza tinham, lhe mandou uma sentença, dado (sic) em Crasto Marim pela maior parte dos Governadores, a quem ele tinha feito a menagem da fortaleza, na qual julgavam o Reino por El-Rei Filipe, Nosso Senhor, e lhe mandavam entregá-la ao Duque, desobrigando-o da menagem e juramento que tinha feito. Vendo isto, lha entregou com consentimento de todos os que nela estavam. No processo de todas estas coisas, desde que chegou da Índia até a entrega desta fortaleza ao Duque de Alva, houve muitas coisas (159) mui notáveis, dignas deste excelente capitão, que são compridas para eu contar. O cronista destes Reinos devia fazer delas copiosa relação, com que pudera enriquecer e realçar sua Crónica Real.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Sétimo 83

CAPÍTULO VIGÉSIMO SÉTIMO

COMO SUA MAJESTADE FEZ MERCÊ A TRISTÃO VAZ DA CAPITANIA DE MACHICO E O FEZ GENERAL DA MlLíCIA EM TODA A ILHA DA MADEIRA, E DE ALGUMAS COISAS

INSIGNES QUE ELE ATÉ AGORA TEM FEITAS COM ESTE CARGO

A vinte e cinco de Fevereiro do ano de mil e quinhentos e oitenta e dois (160) el-Rei D. Filipe, Nosso Senhor, havendo respeito aos muitos e grandes serviços que tinha feitos nas partes da Índia e no cerco de Malaca, sendo capitão dele, este valoroso capitão Tristão Vaz da Veiga, fidalgo de sua Casa e Conselho, e ao modo em que procedeu no tempo das alterações do Reino e na entrega da fortaleza de S. Gião, em que estava por capitão, lhe fez mercê da capitania de Machico, da ilha da Madeira, que vagou pelo Conde do Vimioso, de juro e herdade para ele e seus sucessores, conforme à Lei Mental, com declaração que, movendo-se-lhe ela demanda alguma, lhe assistirá o Procurador de Sua Majestade e lhe fará mercê de satisfação equivalente.

E porque o Conde de Vimioso, D. Afonso, per licença de el-Rei D. Sebastião, tinha vendido duzentos mil réis de juro sobre Machico a um mercador por nome Luís Pinto, Sua Majestade mandou dar de sua Fazenda os mesmos duzentos mil réis de juro, para que lhe ficasse Machico inteiro e desembaraçado; e, juntamente com lhe fazer mercê de Machico, lha fez também de uma comenda de duzentos mil réis; e estas duas coisas acrescentam a mercê e, per conseguinte, realçam os merecimentos per que se lhe fez.

Depois da morte do Conde João Gonçalves, foi capitão-mor da Guerra o desembargador João Leitão; depois veio com este cargo o Conde de Lançarote, D. Agostinho Ferreira, que agora é Marquez de Lançarote e Senhor de Forteventura; ido o Conde, ficou por capitão-mor da Guerra o mesmo João Leitão (161).

E, depois, vendo Sua Majestade quanto cumpria a seu serviço e defensão da ilha da Madeira haver nela pessoa que entendesse nas coisas da guerra e a pusesse em ordem, qual convém que nelas haja para este efeito de sua defensão, confiando deste excelente capitão Tristão Vaz da Veiga que o serviria nisto como dele esperava, o enviou à dita ilha por Geral e Superintendente das coisas da guerra de ambas as capitanias dela, e que servisse de alcaide-mor da fortaleza da cidade do Funchal, de que lhe mandou passar carta em Lisboa a dezanove de Outubro do ano de mil e quinhentos e oitenta e cinco (162); com os quais cargos entrou na ilha da Madeira a vinte e dois de Novembro do ano de mil e quinhentos e oitenta e cinco; e do que, até agora, nela tem feito no exercício da guerra, na obediência, que nela se deve ter, e nas vigias, e em todo o que cumpre ao serviço de Deus e de Sua Majestade ser tudo acertado, dão certo testemunho seus heróicos feitos, sempre acertados, passados e presentes, porque quem tem tanta experiência, saber, poder, forças e bondade não pode deixar de acertar em tudo, pois todas suas obras são endereçados para muita glória de Deus e bom serviço do Rei e grande bem do próximo e de todos; com cuja presença não somente está restituída a Capitania de Machico a novo ser e honra, já esquecida de seu passado naufrágio e de sua infelice fortuna passada, mas toda a ilha da Madeira está revestida de nova grandeza e formosura, e engrandecida e melhorada, com ter em si um tão excelente e valoroso capitão, de tantas partes e avantagens que a acabou de fazer muito mais avantejada de todalas ilhas do Mar Oceano Ocidental, debaixo de cujo só nome, quanto mais presença, amparo e sombra, podem dormir sem sobressalto, quietos e seguros, seus ditosos moradores, de que começou dar verdadeiro testemunho isto, que agora direi.

Estando este valoroso Capitão Tristão Vaz da Veiga na mesma ilha da Madeira o ano de oitenta e sete, dia da Ascensão, veio um atrevido cossairo ter a ela e, mandando-lhe per um escrito pedir vinte pipas de vinho e de água, de que tinha necessidade, ameaçando-o, se lhas não mandasse, que lhe mataria muita gente e derribaria muitas casas, ele, sem fazer rumor,

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Sétimo 84

mandou que lhe não fosse a resposta e, se quisesse desembarcar, estivesse a gente bem negociada em parte que a artilharia lhe não fizesse nojo. Ancorou o cossairo no porto da vila de Santa Cruz, da sua jurdição, donde começou a disparar muitas peças de artilharia.

Em uma ponta do porto estiveram escobertos alguns mosqueteiros da própria jurdição e com tiros o puseram em tanta opressão, que lhe não deram lugar a levar âncora, resguardando-se com colchões e lonas pelo bordo da nau, para que pudessem levar a amarra, sem lhe darem lugar os muitos pelouros que lhe davam, e foi tanta a pressa dos mosqueteiros, que a não puderam levar, senão a rasto, até o pego, onde a acabaram de recolher; levantando-se do porto, determinou de, por algum modo, se vingar; como era poderoso, nomeando-se por um grande capitão e, segundo o que diziam os homens que dentro estiveram, trazia como cento e sessenta homens de peleja. Andou à vista três ou quatro dias, a ver se lhe vinha cair nas mãos alguma presa com que se reformasse do que havia mister, e, por fim, correndo-lhe mal a sua fortuna, entrou à meia noite dentro no porto da cidade do Funchal com duas lanchas, que trazia, e algum homem da terra por guia (segundo se entendeu), e, cortando a amarra a um navio carregado de vinhos, o levou consigo, deitando-se ao mar a nado alguns homens que dentro estavam, e, levando-o do ilhéu para fora, entrava no porto uma caravela de Lançarote, carregada de trigo, que também levou com a gente dela.

Sabendo isto, Tristão Vaz se levantou da cama com muita pressa, mandando vir trinta soldados da fortaleza, e se foi à praia a fazê-los embarcar em barcos com outra mais gente após eles. Indo o seu alferes com os soldados, se tornou logo, dizendo que os não podia alcançar. Ouvindo isto, Tristão Vaz mandou que logo se embarcasse com a mesma gente em uma urca de Frandes, que estava no porto, e em outra charrua fez embarcar todos os seus criados brancos, nomeando-os por seus nomes, dizendo que não queria que os seus ficassem em terra. Também mandou embarcar alguns portugueses, onde iriam até duzentos homens.

Fazendo-se as naus à vela já manhã clara, se foram chegando ao imigo e, acalmando-lhe o vento, se começaram a rebocar com alguns batéis, e o ladrão também fazia outro tanto com suas duas lanchas, levando o navio dos vinhos à toa; foram andando para ele os portugueses cinco ou seis léguas ao mar, indo o cossairo despedindo muitos pelouros às naus, sem elas lhe tirar algum, por não haver para quê até chegar mais perto.

Indo já o dia em crescimento, sem ter vento para poderem chegar e os dos batéis, enfadados de as rebocar, sem haver cabeça que os regesse, estava Tristão Vaz em terra vendo-se de tal maneira, que se pôs em ir às naus; entendendo isto o capitão dos soldados, João Daranda, disse que não havia de haver no mundo ir Sua Senhoria, mas que ele iria; e logo foi em um batel, chegando lá às três horas depois do meio-dia.

Logo, com muita pressa, mandou rebocar as naus, o que vendo o imigo capitão, se saiu fora e fez uma prática aos seus, dizendo-lhe que vissem o que faziam, porque ali vinha o Geral da terra e, por isso, apertavam tanto com ele que todos morressem e nenhum houvesse que tornasse pé atrás, e soubessem que, se os tomassem, todos haviam de ser enforcados e, quando a sua desaventura quisesse que fossem rendidos, pusessem fogo à nau e a si próprios, para que se queimasse tudo e nada lhe tomassem, e fosse fama a Inglaterra que morreram todos e nenhum se rendera; dizendo mais, diante dos portugueses, que tinha tomado na caravela do trigo, que, pois vinha o Geral da terra, lhe largassem a presa e ordenassem de se guardar; e logo a largaram, sem se aproveitarem de coisa alguma, nem do vinho, de que eles tinham mais necessidade. Acabando de largar ambos os navios, se puseram a tirar muitas bombardadas e arcabuzadas às naus até quase noite; então, disse o capitão João Daranda que, pois era noite e o imigo tinha largada a presa, não curassem de mais.

Assim se tornaram contentes com a presa para a cidade, alvoraçada de verem uma coisa na ilha feita, que outra semelhante se nunca fez em tempo de outros capitães.

Tristão Vaz fez aos mestres das naus fazer conta do que tinham gastado de pólvora e mantimentos, que deram à gente, e dos barcos que as rebocaram e levaram os soldados a elas, e, feita, lhe mandou pagar à custa daqueles vinhos e trigo, que já era perdido; fizeram pagamento a todos, com que ficaram contentes.

O imigo, correndo-lhe mal sua fortuna, se foi logo, sem fazer mais prejuízo a coisa alguma.

O nome e fama, antre todalas nações celebrado, dos heróicos feitos do valoroso capitão Tristão Vaz da Veiga (que não sofre embuçados nem desembuçados, como estes cossairos, à

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Sétimo 85

sua porta), tão temido também em África, França e Inglaterra, como nas outras partes do Universo, fez a este cossairo não somente soltar a presa, mas fugir dele, sem mais aparecer em sua presença, porque, se se detivera naquele porto, não há dúvida senão que não escapara de ser rendido ou destruído.

O mesmo Tristão Vaz da Veiga, para mais defensa da terra, mandou fazer uma trinchêa (163), da fortaleza nova até Santiago, de madeira, de uma banda e de outra entulhada de calhau; ele mesmo andava trabalhando nela com o cesto às costas, com que fazia trabalhar melhor toda a gente; com a qual trinchêa está mui fortificada a cidade da parte do mar.

No mês de Junho de mil e quinhentos e oitenta e oito, na ilha da Madeira, andava um ingrês, defronte do porto, roubando os navios que iam e vinham, e, tendo tomado um, carregado de trigo, que vinha de Lançarote para a mesma ilha, o Governador Tristão Vaz da Veiga mandou negociar uma nau, que no porto estava, e nela se meteram cinquenta soldados portugueses da terra e se fizeram à vela às dez horas da noite, e foram amanhecer com a nau ingresa, a qual, vendo a outra, se foi para ela e a nossa fingiu que fugia. Chegando à fala, mandou o ingrês que amainasse, e, aparecendo sós dois homens, disseram que o não podiam fazer, porque vinham todos doentes, por causa da viagem comprida, o que eles ouvindo, fizeram por chegar e abalroaram nossa nau muito descuidados. Os portugueses entraram de súpito (sic) dentro, na sua nau, e mataram-nos à espada, escapando sós nove que se botaram ao mar, e, enlevados na briga e pressa de despejar a nau, porque se ia, como foi, ao fundo, por causa das bombardadas que lhe deram, o navio que traziam tomado, em que iam oito ingreses que não sabiam marear as velas, fugiram, e, dando tratos aos que ficaram na mar, que foram tomados, disseram que eles levaram um embaixador de D. António ao Turco.

Dali a poucos dias foram também tomados os que iam fugidos no navio de Lançarote, e todos andam na galé, que se fez por ordem do General Tristão Vaz da Veiga, que saiu uma peça muito bem feita, com dezassete remos por banda, e tira uma grande esfera de bronço para defensão da costa, com uma fragata de doze remos por banda, que também mandou fazer para andar vigiando por fora e para ajuda da galé, a qual foi lançada ao mar dia de Santo António, treze dias de Junho de oitenta e nove, e feita com o dinheiro da imposição da dita ilha, que Sua Majestade deu para as fortificações da terra, com cuja fama e medo não ousam já agora os cossairos aportar por ali.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Oitavo 86

CAPÍTULO VIGÉSIMO OITAVO

DAS FElÇÕES, CONDIÇÕES, RENDAS E ARMAS DE TRISTÃO VAZ DA VEIGA

Este temido e afamado Capitão Tristão Vaz da Veiga é homem de corpo alto, não em demasia, bem feito, algum tanto espadudo (sic); nem é magro, nem tem grossura que lhe desfaça a perfeição do corpo; tem a cabeça redonda e bem feita, uma testa sobre grande, as sobrancelhas vultosas e grandes, o nariz tirado até ponta, somente no meio com uma pouca coisa de nó, e da parte direita tem nele uns sinais azuis de pólvora; os bigodes compridos, a barba bem feita e redonda, à portuguesa, e meia branca. Será, nesta era de mil e quinhentos e noventa (164), de idade de cinquenta e três anos; é algum tanto seco do rosto; todas as feições tem bem proporcionadas e na garganta, como rico colar de ouro, o sinal de uma arcabuzada que passou de parte a parte, a qual (como tenho dito) lhe deram quando foi em socorro ao cerco de Mazagão.

É de condição benigna para todos, amigo de fazer bem a pobres, muito recto e inteiro nas coisas da consciência e da justiça, confessa-se e conversa mui particularmente com os padres da Companhia de Jesu. É cortesão, e tão cortês do seu chapéu, que não há menino, pequeno nem grande, nem branco nem preto, a que ele o não tire. É zeloso e amigo de sair ao cabo com todas as coisas do serviço de el-Rei, temido em seu mando, querido de todos aqueles que o vêem e conversam, mui esforçado e magnânimo, afábel, bem acondiçoado, caritativo, sofrido, discreto, prudente, de grande entendimento e conselho, e, logo no aspecto, está representado quem é e se faz respeitar, alegre, bem assombrado, muito grave e não severo, e tão benigno, que se faz amar de todos os que o tratam, cujos corações atrai a si, como pedra de cevar o aço. É muito grandioso e liberal de condição, amigo de ninguém fazer serviço a el-Rei sem que se lhe pague. Tem grande casa, bem alfaiada com riquíssimas e curiosas peças, farta e abastada, serve-se com gente honrada e de primor, um veador, dois escudeiros, cinco pajes e doze escravos índios. Tem muita renda em Lisboa, assim de casais e quintas, como casas na cidade, e outro pedaço de renda em Arronches, e na ilha Graciosa cada ano quarenta moios de trigo, parte de seu património. Tem o hábito de Cristo, com duzentos mil réis de tença, até lhe el-Rei fazer mercê de comenda, de que ele seja contente, porque já enjeitou algumas por não serem à sua vontade; tem mais de renda de Capitão de Machico como novecentos mil réis, e de ordenado, de el-Rei, de General, mil cruzados; e terá por tudo cada ano três contos de renda.

Cometendo-lhe muitos ilustres casamentos, até hoje está solteiro, porque se resolveu em não casar até se ver em Portugal, e porque em tempos tão revoltos não lhe parece tomar obrigações, e tamanhas, como são as do casamento, sem conseguir o fim que as faz toleráveis. Ajudou a esta determinação haver perto de dois anos que Sua Majestade lhe fez mercê de lhe dar licença para se ir da ilha, e não acaba de lhe mandar quem fique com o cargo que nela tem; há novas que, sem falta, lhe irá sucessor na primeira ocasião de embarcação segura, que, a mais tardar, se espera será em companhia das naus, que hão-de ir para o Brasil ou Índias.

Finalmente, sua progénia, deste generoso Tristão Vaz da Veiga, de todas as partes é tão ilustre quanto é a todos notória, e seus feitos tão heróicos e tantos, que não sei que mais podiam fazer os maiores e mais valorosos capitães do mundo, de que os livros estão cheios; e de seu saber, singular conselho, prudência, afabilidade e cortesia posso afirmar que não sei, nem vi outro tal, porque nele se acha ilustre sangue, cristandade, verdade, exemplo e bondade, e, sobretudo, uma estranha humildade e quanto eu pudera desejar em um varão consumado.

Além das armas dos Cabrais e Lemos, que lhe pertencem, tem este excelente capitão Tristão Vaz da Veiga as armas dos Veigas que são: o escudo de ouro e azul; o primeiro quarto de cima de ouro com uma águia cinzenta, com as asas abertas; o segundo azul com três flores

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Oitavo 87

de liz de ouro em triângulo, uma em cima e duas no basis; e da banda de baixo, o terceiro de azul com outras três flores de liz de ouro, da mesma postura, e o quarto de ouro, com outra águia semelhante à primeira; o elmo com guarnição de ouro por baixo e na viseira; paquife de ouro, vermelho e verde, com dois penachos azuis e um branco no meio; por timbre, uma águia da cor e feição das outras duas.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Nono 88

CAPÍTULO VIGÉSIMO NONO

DOS IRMÃOS DO CAPITÃO TRISTÃO VAZ DA VEIGA E SERVIÇOS QUE FIZERAM À COROA

Se Tristão Vaz da Veiga é valoroso capitão nas armas e mais partes tão abalizadas, não foi, nem é, só em sua progénia, porque seus pais e avós tiveram também outras semelhantes, que não conto por não fazer longo processo; só direi, brevemente, algumas de seus irmãos.

Seu pai, Manuel Cabral da Veiga, teve de Antónia de Lemos, sua legítima mulher, sete filhos e uma filha.

O mais velho, chamado Diogo Vaz da Veiga, esteve em Arzila dois anos, servindo uma comenda; depois, serviu em algumas armadas. Foi três anos capitão de uma galé e aconteceram-lhe boas venturas. Faleceu de menos de quarenta anos, estando eleito por Capitão de Tânger, e não lhe ficaram filhos.

O segundo se chamou Lourenço da Veiga. Sendo mancebo, serviu algum tempo em Arzila e em Tânger, onde foi ferido; depois, andou em algumas armadas por soldado e foi capitão-mor de uma, em que o mandaram em busca de um cossairo, que tomou o galeão e matou (165) a D. Luís Fernandes de Vasconcelos, quando ia para o Brasil; e foi capitão-mor de outra armada para a Mina, e capitão-mor de outra, que veio a estas ilhas dos Açores esperar as naus da Índia, aonde, antes disto, tinha ido por capitão de uma nau. Ultimamente, o mandou el-Rei D. Sebastião por Governador do Brasil, onde esteve quatro ou cinco anos, e lá faleceu, sendo de cinquenta e um anos, já em tempo de el-Rei D. Filipe, nosso senhor. Ficaram-lhe seis filhos e duas filhas. O mais velho, por nome Fernão da Veiga, foi duas vezes por capitão à Índia em uma nau, e, estando para entrar e ir por capitão-mor, faleceu em Lisboa. Outro, chamado Diogo Vaz da Veiga, estava com seu pai no Brasil quando morreu e veio por capitão de uma armada de lá para o Reino; tinha o hábito de Aviz, com duzentos mil réis de renda; depois foi servir a el-Rei à Índia, onde foi morto a ferro dos mouros; e lá estão, também no mesmo serviço do Rei, dois mais moços, Manuel Cabral da Veiga e Sebastião Vaz da Veiga, com cargos honrosos, afora Tristão Vaz da Veiga (166), que também lá foi morto pelos mouros; o mais pequeno, chamado Luís da Veiga, é religioso. Das duas fêmeas, a mais velha, D. Maria, é casada com João Taveira; a mais moça, por nome D. Filipa, com Diogo das Póvoas, provedor da Alfândega de Lisboa.

O terceiro por nome Luís da Veiga, foi com seu irmão Tristão Vaz da Veiga para a Índia, ambos juntos, no ano de cinquenta e dois, e no mesmo foram de socorro a Ormuz, que estava cercado de Turcos, e lá, no de cinquenta e três, faleceu de febres.

O quarto, Tristão Vaz da Veiga, capitão de Machico, de que já tenho dito.

O quinto se chamou Hierónimo da Veiga, que, sendo moço, serviu nas galés com seu irmão Diogo Vaz, onde mostrou bem de sua pessoa, na tomada de Xaramet Akais, cossairo turco. Foi para a Índia em companhia de D. Constantino, no ano de cinquenta e oito, e com ele se achou na tomada da cidade e fortaleza de Damão, em Cambaia, e nela ficou dando mesa a muitos soldados; faleceu em Goa, de doença, daí a dois anos.

O sexto, Simão da Veiga, gastou os anos e a vida em serviço da Coroa de Portugal: sendo moço, andou por soldado nas armadas e foi na da tomada do Penhão de Beles (167), serviu em Tânger, foi por capitão de um galeão com seu irmão Lourenço da Veiga em busca de Jaques Soria; foi por capitão de outro galeão à Mina, também com seu irmão. Depois foi capitão-mor de uma armada à Mina e de outra à costa de Portugal, e naquele verão tomou oito ou nove navios de cossairos franceses. Foi por capitão-mor da armada de alto bordo, quando a primeira vez el-Rei D. Sebastião foi a Tânger, e no seu galeão veio el-Rei, quando se tornou para o

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Vigésimo Nono 89

reino; e, ultimamente, foi com o mesmo Rei a África, onde o mataram, como os que de lá escaparam sabem. Foi homem de que se fazia muita conta, muito temido e esforçado por sua espada. Era casado com D. Isabel, de que lhe ficaram quatro filhos e duas filhas; destes, o mais velho, que se chamava Manuel Cabral da Veiga, do hábito de Cristo, com duzentos mil réis de renda, acabou na armada em Inglaterra, sendo já casado.

O sétimo se chamou Gaspar da Veiga; este, sendo de quinze anos, o levou seu irmão Tristão Vaz da Veiga consigo ao terço de Mazagão e lá, no primeiro combate, lhe deram uma arcabuzada nos peitos; ficou-lhe o pelouro e parte do cossolete dentro do corpo, e desta ferida, que nunca se lhe cerrou, morreu na Índia daí a dois anos, sendo de dezassete.

A filha, chamada D. Brízida Cabral, casou com Francisco Botelho de Andrade, camareiro e guarda-roupa-mor do Infante D. Luís, de que houve filhos, e o mais velho, chamado Diogo Botelho de Andrade, também acabou com el-Rei D. Sebastião.

Isto é o que brevemente soube na verdade e digo, sem nenhum afeite (168), dos irmãos do capitão Tristão Vaz da Veiga, e daqui se verá que toda esta geração de Veigas gasta a vida no serviço desta Coroa, e estão apostados a morrer por seu Deus e por seu Rei na guerra. O mesmo pudera dizer de seus avós, pai, tios, sobrinhos, primos e mais parentes, que, por ser breve, calo, cujos heróicos feitos deviam contar os cronistas do Reino em suas Reais Crónicas, onde eles merecem ter seu lugar.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo 90

CAPÍTULO TRIGÉSIMO

DOS FILHOS E FILHAS QUE TEVE O PRIMEIRO CAPITÃO DO FUNCHAL, JOÃO GONÇALVES ZARGO (169)

Dito tenho da pouca dita que tiveram os primeiros capitães de Machico, pois se extinguiu sua progénia no quarto capitão, que não deixou sucessor seu naquela capitania da parte do Norte desta ilha da Madeira. Agora direi, pelo contrairo, a boa ventura que nisto coube aos capitães do Funchal, da banda do Sul, de quem até aqui não faltou herdeiro. Pelo que notai também, Senhora, que, ainda que as prantas da banda do Norte têm menos dita, ou sorte, pois as açouta o vento em tal maneira, que ficam sem folha, sem flor e sem fruto, como se o fogo se lhe pusera, com que ardem e secam, como estes primeiros capitães de Machico (que tinham da mesma parte do Norte da ilha a maior parte), feneceram e acabaram com a tribulação e mal que sobre eles do Setentrião veio; todavia, a banda do Sul, que não é tanto inimiga de nossa natureza, mas mais criadora e conservadora dela, e conforme e macia à vida humana, de tal modo favoreceu, alimentou, criou e conservou aos ilustres Capitães do Funchal, a quem coube, por sorte mais ditosa, que dês o primeiro João Gonçalves Zargo até o derradeiro deste tempo (que foi o muito ilustre João Gonçalves da Câmara, filho mais velho e herdeiro da casa do ilustríssimo Conde da Calheta, e seu filho, tenra pranta, indo sempre de bem em melhor, se assim for adiante), nunca faltou capitão sucessor de tão alta e ilustre progénia, nem faltaram moradores à sua sombra, que com seus grandiosos e honrosos feitos engrandeceram e engrandecem aquela rica jurdição de felicíssima sorte, cuja alta progénia e sucessão irei, Senhora, contando, não como eles todos juntos e cada um, por si, merecem, mas como a minha fraca e ruda língua o puder contar, conforme ao que deles li em sua história recopilada ou coligida (depois de composta brevemente, primeiro, por Gonçalaires Ferreira) com mais curiosidade e erudição pelo reverendo cónego Hierónimo Leite, capelão de Sua Majestade (170), e como também ouvi de outras pessoas dinas (171), de fé e procurei com grande trabalho saber na verdade, sem poder minha baixeza chegar ao altíssimo cume dos grandes merecimentos de seus heróicos feitos.

O felicíssimo capitão João Gonçalves Zargo, em tudo quanto tenho contado desta ilha da Madeira, e no que está por contar dela, foi o que, com sua boa e felice ventura, descobriu esta ilha, e com sua prudente diligência a cultivou e povoou, e com seus heróicos feitos a engrandeceu, e com sua valia a ennobreceu, e como manilha deu lustro, graça, preço e valor a todas as figuras e coisas que dela contei e por contar tenho, sendo tronco e raiz felicíssima, donde tão altas, generosas e ilustres prantas procederam, como agora direi, pois já de suas coisas atrás tenho dito.

Era casado João Gonçalves Zargo (172), ao tempo que foi à ilha da Madeira, com Constança Roiz de Almeida, mulher mui principal, devota, santa e mui virtuosa, como sempre mostrou no discurso de sua vida.

Dela houve este primeiro capitão três filhos e quatro filhas. Houve João Gonçalves da Câmara, que herdou sua casa, e o segundo, que foi Rui Gonçalves da Câmara, que depois foi capitão desta ilha de São Miguel, de quem tratarei adiante, quando dela contar, o qual foi casado com dona Maria Betancor, filha de Micer Maciote de Betancurt, com a qual houve em casamento muita fazenda na mesma ilha da Madeira, além da que tinha de seu património, e não houve filhos dela. O terceiro filho que houve João Gonçalves, o Zargo, foi Garcia Roiz da Câmara, que foi casado com Violante de Freitas, de que houve Aldonsa Delgada, que casou com Garcia Palestrelo, morgado do Porto Santo, como já tenho dito.

As filhas do Zargo, por ser a terra nova e não haver na ilha com quem pudessem casar, segundo o merecimento de suas pessoas, mandou o dito capitão Zargo pedir a Sua Alteza homens conformes à sua qualidade para lhe dar suas filhas em casamento, e el-Rei lhe

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo 91

mandou quatro fidalgos, donde procedeu a mais ilustre e nobre geração da ilha. A primeira, que Breatiz Gonçalves da Câmara havia nome, foi casada com Diogo Cabral, irmão do Senhor de Belmonte, de que houve Grimaneza Cabral, que foi mulher de Tristão Teixeira, terceiro capitão da jurdição de Machico, como tenho contado; houve mais um só filho macho, que se chamava João Roiz Cabral, casado com Constança Roiz, a Moça; teve mais Joana Cabral, mulher de Duarte de Brito, e houve mais outra filha, a que não soube o nome, mãe de Tristão Vaz da Veiga, e outra casada com Rui de Sousa, o Velho, e outra casada com Rui Gomes da Gram, guarda-mor da «Excelente Senhora», e a outra, que casou com Vasco Moniz, de Machico.

A segunda filha do Zargo se chamava Isabel Gonçalves da Câmara. Foi casada com Diogo Afonso de Aguiar, o Velho; teve dele os filhos seguintes: Diogo Afonso de Aguiar, o Moço, que se chamou como o pai, e Pedro Afonso de Aguiar, o Raposo, armador-mor do Reino, e Rui Dias de Aguiar, o Velho, e Inês Dias de Câmara, que foi casada com um fidalgo de Évora por nome Foão de Camões, e Constança Rodrigues de Câmara, que nunca casou.

A terceira filha de Zargo se chamava Caterina Gonçalves de Câmara, mulher de Garcia Homem de Sousa, de quem houve uma só filha, que se chamou Lianor Homem, mulher que foi de Duarte Pestana. Estes quatro (173) fidalgos nomeados mandou el-Rei, por lhes fazer mercê, à ilha para casarem com estas senhoras, das quais houveram geração mui principal, que hoje são liados a esta casa dos Câmaras; e Garcia Homem de Sousa, por ter diferenças com seus cunhados, é o que fez uma torre, que está junto da Madre de Deus.

Depois que João Gonçalves Zargo casou suas filhas e fez as povoações de sua jurdição, e aproveitou as terras e as deu de sesmaria, sendo seu filho primogénito já em idade para governar a ilha, foi Deus servido de o levar para si, havendo muitos anos de sua idade, dos quais governou a ilha quarenta.

Era tão velho, que se fazia levar em colos de homens ao Sol, onde estava sustentando a velhice, com muito perfeito juízo e praticando e governando justiça. Tão grande cavaleiro foi e teve tanto nome e fama de esforçado e excelente capitão, que, havendo no tempo de sua velhice guerras em Portugal com Castela, vindo os castelhanos à ilha com suas armadas para destruírem a terra, ele se mandava pôr a cavalo, assim velho; e como os castelhanos sentiam que ele era o que regia sua gente, desistiam de entrar na terra, nem ousavam sair e pôr pé nela. Jaz enterrado este primeiro capitão, João Gonçalves Zargo, na capela-mor de Nossa Senhora da Concepção, que ele mandou fazer para seu jazigo e de seus descendentes, onde ora é o mosteiro das freiras (174).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Primeiro 92

CAPÍTULO TRIGÉSIMO PRIMEIRO

DA VIDA E FEITOS DO SEGUNDO CAPITÃO DO FUNCHAL, JOÃO GONÇALVES DE CÂMARA, SEGUNDO DO NOME, CHAMADO DA PORRINHA, E DE ALGUMAS COISAS QUE

EM SEU TEMPO ACONTECERAM (175)

Morto o bem afortunado capitão João Gonçalves Zargo, herdou sua casa e capitania seu primogénito filho, que, como ele, se chamava João Gonçalves de Câmara, segundo do nome e segundo capitão da ilha da Madeira. Chamavam-lhe comummente João Gonçalves da Porrinha, por razão de um pau que costumava trazer na mão em sinal de castigo contra os malfeitores, e, por esta insígnia, se disse o da Porrinha.

Foi este capitão muito cavaleiro e esforçado, como mostrou em muitos serviços, que fez em África a el-Rei, principalmente em Cepta e Arzila, quando el-Rei Dom Afonso, quinto do nome, tomou esta forte vila. Vindo, pois, à ilha, já casado, (porque recebeu sua mulher na cidade de Cepta), por morte de seu pai governou a ilha, no qual tempo havia guerras em Portugal com Castela, pelo que foi àquela ilha, como dantes, uma grande frota de castelhanos de muitas velas, com muita gente, para a senhorear ou destruir e, não havendo naquele tempo mais artilharia na terra que um trabuco, que estava no cabo da vila do Funchal, com esta bombarda, somente, e com seu esforço, com que animava a gente, não somente defendeu a ilha, mas antes fez muito dano aos navios dos castelhanos e os afugentou, sem ousar nenhum deitar gente em terra; com a qual perda os castelhanos, por se refazerem, acossados e quase desbaratados, foram cometer a ilha do Porto Santo, e a tomaram, o que sabido por João Gonçalves, armou certos navios com gente, besteiros e poucos espingardeiros, e foi buscar os castelhanos ao Porto Santo, onde estavam já senhores da terra, e pelejou tão animosamente, que, a mal de seu grado, os fez embarcar com perda de muitos e cativou alguns, além de outros, que feriu e matou, e assegurou a ilha.

No tempo de el-Rei Dom João, segundo do nome, estando a flor da fidalguia de Portugal cercada com muito aperto no rio de Larache por el-Rei de Fez, e tão oprimidos e necessitados, que conveio ao mesmo Rei Dom João ir socorrê-los em pessoa, chegando el-Rei já ao Algarve para passar a África e acudir a esta pressa (sic), um dos senhores, que primeiro foi ter com ele e lhe acudiu com muita gente luzida em uma frota da ilha, foi este capitão João Gonçalves da Porrinha, ao qual el-Rei foi receber a cavalo à praia e lhe teve em grande serviço aquele socorro, largando-lhe palavras de muito agradecimento, dizendo-lhe pubricamente que, estando mais longe dele que todos os outros fidalgos, ele chegara primeiro, e lhe fez, por isso, muitas honras e grandes mercês.

Além deste socorro, fez João Gonçalves outros muitos, por si e por seu filho herdeiro, Simão Gonçalves, como foi em Arzila, e a Graciosa, e o Castelo Real, e Cabo de Guel (176) em que gastou muito de sua fazenda. E no Algarve, onde se ajuntaram todos os senhores de título e grandes do Regno para o socorro acima dito, el-Rei, por fazer honra a João Gonçalves da Porrinha, quis que à mesa lhe deitasse água às mãos, sendo presentes senhores de títulos, e porque el-Rei sabia honrar os cavaleiros, quis dar esta honra a João Gonçalves, que o era singular, e agradecer-lhe o socorro, que lhe fazia com tanta presteza, de tanta e tão boa e luzida gente.

Casou em Cepta João Gonçalves da Porrinha com Dona Maria de Noronha, filha de João Hanriquez, que foi filho de Dom Diogo Hanriquez, Conde de Gigam (177) e filho natural de Dom Hanrique, Rei de Castela. E houve dela os filhos seguintes: João Gonçalves de Câmara, que faleceu moço, andando no Paço, e Simão Gonçalves de Câmara, que herdou a casa por falecimento do pai, e Pero Gonçalves de Câmara, que foi casado com Dona Joana de Sá (178), filha de João Fogaça e da camareira-mor, que foi da Rainha Dona Caterina, mulher de el-Rei Dom João, terceiro do nome, de que houve António Gonçalves de Câmara, monteiro-mor de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Primeiro 93

el-Rei Dom Sebastião, e João Fogaça, que morreu solteiro, e Pero Gonçalves de Câmara, por alcunha o Porrão, e houve três filhas que foram freiras no Funchal, donde levaram duas para reformação do moesteiro (sic) da Esperança em Lisboa, onde uma, que Dona Helena se chamava, foi muitos anos abadessa. Teve mais João Gonçalves da Porrinha o quarto filho, que se chamou Emanuel de Noronha, que foi casado a primeira vez com Dona Breatiz de Meneses, neta do Conde Dom Duarte, de que houve os filhos seguintes: António de Noronha, que casou em Castela, e Dona Maria, que casou com Dom Simão de Castelbranco. Casou a segunda vez com Dona Maria de Taíde (sic), filha do Senhor da Ericeira, da qual teve os filhos seguintes: Luís de Noronha, comendador de S. Cristovão de Nogueira, de Riba do Douro, Dona Ana, mulher de Pedro Afonso de Aguiar, e Dona Joana, Dona Cecília, Dona Elvira, Dona Bartolesa, Dona Constança, Dona Antónia (179).

Este Emanuel de Noronha, filho do capitão da Porrinha, foi mui esforçado cavaleiro e fez muitos e bons serviços a el-Rei, especialmente no cerco de Safim, quando Nuno Fernandes de Taíde, capitão desta cidade, por estar em aperto do grande cerco dos mouros, despachou um navio à ilha da Madeira, donde lhe acudiu com muita gente nobre, e lhe mandou a capitoa (mulher de Simão Gonçalves de Câmara, capitão e governador da justiça, que naquele tempo era naquela ilha, por ele, então, andar na Corte) uma grande companhia de soldados à sua custa, de que ia por capitão Emanuel de Noronha, irmão do mesmo capitão, em companhia do qual foram a Safim muitos parentes seus, fidalgos cavaleiros, que à custa de sua fazenda serviram a el-Rei, porque eram muito ricos; e neste cerco e em outros recontros, em que com os mouros se acharam, deram mostras de singulares cavaleiros. Antre os quais foi Dom João Hanriquez, sobrinho de Emanuel de Noronha e filho de Dona Filipa de Noronha, sua irmã, e mulher de Dom Hanrique Hanriquez, senhor das Alcáçovas, que neste cerco o fez como valoroso cavaleiro. Foi também Dom Francisco de Noronha e Dom João de Noronha, castelhano (que depois se achou também no da Mamora), e foi mais João Dornelas, um esforçado cavaleiro e de muito nome e fama antre os mouros, todos naturais e casados na ilha da Madeira, os quais, por razão de suas pessoas, juntamente com Emanuel de Noronha, Nuno Fernandes de Taíde, capitão de Safim, depois de repartidas as estâncias da cidade, quis que ficassem estes fidalgos com ele de fora da repartição (onde entrava também Nuno Gato e Lopo Barriga), para nos combates acudir aos lugares, onde houvesse mais pressa.

Foram também da ilha outros fidalgos em companhia de Emanuel de Noronha, esforçados cavaleiros naturais da Calheta, para servirem a el-Rei à sua custa neste cerco, antre os quais foi Francisco de Abreu e seus irmãos, António de Abreu e Hierónimo de Abreu, filhos de João Fernandes do Arco, aos quais, por serem estremados cavaleiros e esforçados capitães, deu Nuno Fernandes uma estância da banda da porta da Guz (sic), desde a torre que está junto do mar, até porta de Guarniz, na qual estância havia cinco torres e oitenta braças de muro, que eles, com seus soldados, bem e valorosamente defenderam.

Deu mais Nuno Fernandes a guarda de nove torres e cento e trinta e seis braças de muro a João de Esmeraldo, natural da Ribeira Brava, filho de João Esmeraldo, o Velho. E mais para cima da cidade, guardava Luís de Atouguia, filho de Francisco Álvares, provedor da Fazenda de el-Rei na mesma ilha, natural da Ribeira Brava, em cuja capitania caíam nove torres com cento e três braças de muro. Da primeira torre de Alcáçova até a torre grande era a estância de João de Freitas, que guardou juntamente com seu irmão Antão (180) de Freitas, ambos naturais da ilha, da Vila de Santa Cruz. E porque Pero de Brito, irmão de Jácome (181) Mendes de Brito, da mesma ilha e da Ribeira Brava, um singular e abalisado cavaleiro, chegou a Safim depois de ser feita a repartição das estâncias, Nuno Fernandes lhe deu três torres, antre as de Dom Bernaldo e Dom Garcia.

Neste cerco de Safim, além dos capitães nomeados a que foram repartidas as estâncias, se acharam outros muitos fidalgos e cavaleiros da ilha da Madeira, que o fizeram, como se deles esperava.

Estes foram Hanrique de Betancor, António Mendes e seu irmão (182), e João do Rego da Madureira, Francisco de Velosa, António Correia, de Câmara de Lobos, Bernaldim de Brito (183) e Cristóvão de Sande, pai de António de Sande, que morreu na Índia, que todos pelejaram como bons cavaleiros, afora outros da ilha, a que não soube o nome, que defenderam mui esforçadamente a cidade dos contínuos e apertados combates que os mouros lhe deram, sem poderem romper lanço de muro; antes se afastavam dele com as diversas máquinas de fogo, que lhe estes cavaleiros lançavam, o que vendo os mouros quão provida estava a cidade de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Primeiro 94

socorro e que trabalhavam em balde com o esforço desta nobre gente, houveram por bom conselho levantarem o cerco e foram-se com perda de muitos dos seus.

Depois de levantado o cerco e os mouros recolhidos em sua terra, quis Nuno Fernandes dar mostra desta nobre e luzida gente da ilha da Madeira, para o que, no ano do Senhor de mil e quinhentos e onze, esperando tempo oportuno, foi dar sobre cinco aduares e, antes que a eles chegassem, mandou Manoel (sic) de Noronha (filho do capitão João Gonçalves da Porrinha, de que tratamos) e com ele cento e oitenta de cavalo, os mais deles da ilha, indo-lhe nas costas, e detrás deles, com a peonagem, André Caldeira e João de Freitas, da ilha.

Mas Manuel de Noronha, como era mancebo desejoso de ganhar honra em companhia de seus parentes e homens naturais, se adiantou bem meia légua de toda a outra companhia, dando com tanto ímpeto e esforço nos mouros, que fez estrago neles e destroçou os aduares, matando e cativando muitos, até que chegou Nuno Fernandes, com o seu guião, a tempo que deixava já Manuel de Noronha desbaratados os imigos e trazia obra de cem almas cativas, com muito gado grosso e miúdo, o que fez muita inveja aos outros. Contudo, Nuno Fernandes o recebeu com muita alegria e lhe deu muito louvor, principalmente, porque lhe não mataram mais que um criado de João Dornelas e dois escudeiros da ilha, a que não soube o nome. Os homens da ilha de nome, que se acharam neste feito de Manuel de Noronha foram Pero de Brito e Mem de Brito, seu filho, e Francisco de Abreu e seus irmãos, e João Desmeraldo, e João Dornelas, que veio ferido de uma lançada nos peitos, João de Freitas, João do Rego de Madureira, Francisco de Velosa, António Mendes, Cristóvão de Sande, António Correia, Luís de Atouguia, Hanrique de Betancor e outros cavaleiros, a que não alcancei o nome.

Houve mais João Gonçalves da Porrinha uma filha, por nome Dona Filipa de Noronha, que foi casada com Dom Hanrique Hanriquez, Senhor das Alcáçovas, de quem houve Dom Fernando Hanriquez, e Dom André Hanriquez, e Dom João Hanriquez, que ficou na ilha, pai de Dom Afonso Hanriquez.

Houve mais outra filha o capitão João Gonçalves, por nome Dona Mécia de Noronha, que foi casada com Dom Martinho de Castelbranco, Conde de Vila Nova de Portimão e veador da Fazenda de el-Rei Dom João segundo e de el-Rei Dom Manuel, de que houve os filhos seguintes: Dom Francisco de Castelbranco, que foi o mais velho e herdou sua casa, e foi camareiro-mor de el-Rei Dom João terceiro, e houve Dom Afonso de Castelbranco, meirinho-mor, Dom João de Castelbranco, e a Dom António de Castelbranco, daião (sic) (184) da Sé de Lisboa; e houve filhas: Dona Maria de Noronha, que casou com Dom Nuno Álvares Pereira, irmão do Marquês de Vila Real, e outra filha, que foi mulher de João Roiz de Sá, alcaide-mor do Porto, e outra filha, que casou com Dom Rodrigo de Sá, alcaide-mor de Moura, e outra filha, que foi casada com o pai de Alonso Peres Pantoja.

Houve mais este capitão João Gonçalves de sua mulher Dona Maria de Noronha outra filha, que chamaram, como sua mãe, Dona Maria de Noronha, que foi casada com o Marichal (sic), de que houve os filhos seguintes: o filho mais velho, que herdou a casa, que se chamou Fernão Coutinho, que foi Marichal e morreu na Índia; e houve uma filha, que foi mulher de Luís da Silveira, Conde de Sortelha, e houve outra, que não foi casada e morreu sendo dama do Paço.

Teve mais o capitão João Gonçalves outra filha, que se chamou Dona Constança de Noronha, que nunca quis casar, mas, por falecimento do Capitão, seu pai, se recolheu com as freiras no moesteiro e convento do Funchal, com licença e rescrito que houve do Papa, onde sempre viveu santamente, não querendo ser freira professa, porque sempre era enferma. Outra filha houve também João Gonçalves, que havia nome Dona Isabel, que foi a primeira prelada e abadessa que houve no mesmo moesteiro do Funchal, e afora outras duas filhas, que se chamaram Dona Elvira e Dona Joana, que foram freiras professas (185), houve outra, que faleceu moça, a que não soube o nome.

Teve mais João Gonçalves da Porrinha um filho natural, por nome Garcia de Câmara, ao qual amava e mandou criar como seu filho legítimo, que foi pai de João Gonçalves de Câmara, de Santa Cruz; e tanto queria a este filho Garcia de Câmara, que não consentia que na criação e tratamento dele houvesse diferença dos legítimos, ainda que bastardo fosse, e até hora de sua morte o teve em sua casa, mui querido da Capitoa e seus irmãos, como o amor que seu pai lhe mostrava o pedia, e ele sempre o soube merecer por sua brandura e cortesia, posto que ficasse pobre a respeito do muito que o pai lhe desejou.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Primeiro 95

Querendo este Capitão João Gonçalves ir à Corte, antes que fosse, mandou ordenar a fábrica do moesteiro das freiras do convento de Santa Clara, em Nossa Senhora da Concepção, e acima da vila do Funchal, obra tão necessária, como proveitosa para recolhimento de suas filhas e de outras de homens principais, que fazem santa vida, recolhidas, a imitação da bem-aventurada Santa. E no ano de mil e quatrocentos e noventa e dois começou a edificar esta obra sua filha, Dona Constança de Noronha, com muita diligência, e devação (186), tendo todas as coisas necessárias, que lhe seu pai deixara preparadas. E no ano de mil e quatrocentos e noventa e sete, sendo já vindo do Regno o Capitão, tornou lá por uma filha freira, que tinha na Concepção, em Beja, que havia nome Dona Isabel de Noronha, e com ela trouxe quatro freiras professas no dito moesteiro (187). Ordenado tudo isto pelo Capitão, por virtude de um rescrito, que impetrou do Papa, para trazer estas freiras, estiveram alguns dias em casa do Capitão com Dona Constança, sua filha, e um domingo, na octava de Todolos Santos, entraram e tomaram posse do moesteiro para sempre. E, juntamente com estas, meteu o capitão outras duas filhas suas, que haviam nome Dona Elvira e Dona Joana, que depois foram professas; as quais, todas, antre si, elegeram por sua prelada e abadessa a Dona Isabel de Noronha, filha do Capitão, pela virtude grande que dela conheciam; e só este moesteiro de religiosas há em toda a ilha.

Este Capitão João Gonçalves foi espelho dos Capitães das ilhas que até seu tempo foram, porque, além de ser esforçado cavaleiro, foi mui devoto e amigo da religião cristã, e sempre procurou aumentar o culto divino, e prosperar sua ilha com religiosos e clérigos letrados, para o que pediu a el-Rei Dom João segundo que, por estar vaga a vigairia (sic) de Santa Maria do Calhau, provesse nela clérigo letrado para doctrina do povo. E no ano de mil e quatrocentos e noventa, por confiar el-Rei muito na consciência de frei Nuno Cão, o mandou à ilha por vigário desta igreja, com bom ordenado, que hoje em dia tem o Daião (sic) da Sé do Funchal, que ele foi o primeiro que serviu, depois de criada a Sé com cónegos e dignidades, sendo mestre em Teologia, mui bom letrado e mui privado de el-Rei; o qual frei Nuno veio confirmado pelo prior e vigairo do convento da vila de Tomar, da Ordem de Cristo, de cujo mestrado é a ilha (188).

Depois de ter ordenado as coisas de sua capitania o Capitão João Gonçalves, e posto em bom estado assim as coisas eclesiásticas como seculares, e a ilha em prosperidade e em crescimento cada vez mais, tendo casados e agasalhados todos seus filhos, foi Deus servido levá-lo para si, para lhe dar o galardão, que suas obras mereciam. Estando ele mui próspero e rico, faleceu uma sexta-feira, vinte e seis de Março, na era do Senhor de mil e quinhentos e um, tendo de sua idade oitenta e sete anos, dos quais governou a ilha trinta e quatro. E, por seu falecimento, ficou muita fazenda de móveis e de raiz, que partiu irmãmente com seus filhos. Faleceu na vila do Funchal, cuja morte foi mui sentida do povo, porque era mui benquisto, e comummente altos e baixos choravam, porque era amparo de muitos. Foi seu encerramento mui solene, como o pedia o tempo, com toda a cleresia e religiosos da vila, e o povo todo, que, com lágrimas e orações, o acompanhava.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Segundo 96

CAPÍTULO TRIGÉSIMO SEGUNDO (189)

DE ALGUNS FEITOS DO TERCEIRO CAPITÃO SIMÃO GONÇALVES DE CÂMARA, CHAMADO O MAGNÍFICO, E DE ALGUMAS COISAS QUE EM SEU TEMPO

ACONTECERAM, E DOS FILHOS QUE HOUVE DE SUA PRIMEIRA MULHER, E COMO FOI FEITA A VILA DO FUNCHAL CIDADE

O filho deste segundo Capitão João Gonçalves, chamado Simão Gonçalves de Câmara, o Magnífico, por morte de seu pai foi confirmado por Capitão, no mesmo ano, por el-Rei Dom Manuel, sendo em idade de quarenta anos, pouco mais ou menos, o qual foi chamado Magnífico, porque nunca pessoa alguma se chegou a ele pedir alguma coisa que lha negasse, por ser mui grandioso e de singular condição, sem nunca saber poupar o que tinha, despendendo tudo comummente com muita prudência em serviços de seu Deus e de seu Rei, em que foi tão solícito e diligente, que nove vezes foi a África com muita gente à sua custa, com socorro, como adiante se verá. A primeira foi estando el-Rei Dom João segundo em Santiago de Cacém, donde o mandou socorrer a Arzila, que estava cercada, e levou trezentos homens, que tomou a soldo no Regno, onde estava, em vida de seu pai, com a qual gente esteve seis meses à sua custa em Arzila, no fim dos quais, depois de ter feito boas cavalgadas e dado mostras de sua cavalaria, o mandou el-Rei vir.

Depois, no ano de mil e quatrocentos e oitenta e oito, o mandou o próprio Rei D. João em socorro a Graciosa, onde foi com oitocentos homens, e esteve neste cerco com esta gente a maior parte do Inverno, em o qual tempo, tão trabalhoso, tinham os mouros cercado a Graciosa.

Logo no ano seguinte de mil e quatrocentos e oitenta e nove (porque seu pai era já morto) (190), lhe escreveu el-Rei Dom João uma carta à ilha e, por ela, o mandou chamar para as festas do Príncipe Dom Afonso, seu filho, dizendo-lhe na carta que em vir a elas, como se dele esperava, receberia tamanho serviço como se fora para se achar com ele em uma grande batalha, pelo que se fez prestes o dito Simão Gonçalves, como cumpria para tão grande acto, onde se ajuntavam todos os grandes do Regno. E, como ele era grandioso de coração e generoso de condição, despendeu nestas festas muito de sua fazenda, porque deu de vestir a muitos fidalgos e gente que levou em sua companhia, com muito aparato de criados e librés de brocado, e gastos que fez, mostrando-se tão lustruso, como cavaleiro, nos cavalos, jaezes e outros custos, que foram avaliados em grande soma de dinheiro. que ele não estimava pela grande e larga condição que tinha.

Governando já a ilha Simão Gonçalves de Câmara, por morte de seu pai, no ano do Senhor de mil e quinhentos e oito, el-Rei Dom Manuel, pelos serviços que os Capitães da ilha tinham feito à Coroa e pelo amor que ele a ela tinha (porque antes de ser Rei foi dela Senhor), mandou uma provisão aos moradores do Funchal, que havia por seu serviço, por respeitos que a isso o moviam e por fazer mercê ao capitão Simão Gonçalves e moradores, de fazer cidade a vila do Funchal, confirmando os forais e liberdades que el-Rei Dom Afonso quinto havia concedido a esta ilha e vila, e acrescentando outros, que hoje em dia tem. Donde não pagam direito dos mantimentos, com pacto dos quintos dos açúcares, que são direitos reais.

E mandou el-Rei logo, à custa de sua fazenda, fazer uma Alfândega, que se fez mui grande e mui custosa, e um magnífico e sumptuoso templo, com sua torre muito alta e soberba, que fez acabar para ser Sé Catedral, com dignidades e cónegos, obra tão acabada, como ele costumou sempre mandar fazer nas coisas de que tinha gosto. A qual Sé é tão perfeita e tão lustrosa, que se não sabe agora em Portugal outra, ainda que não grande, melhor acabada e tão bem assombrada. E a cidade, como já disse, será ao presente de dois mil vizinhos, e tem duas freguesias, e na Sé dois curas.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Segundo 97

No mesmo ano de mil e quatrocentos e oitenta e oito (191), tendo Diogo de Azambuja ganhado a cidade de Safim (quando foi chamado do Castelo Real, que está à terra da ilha Mogador doze léguas de Safim), porque os mouros tinham morto Aldear Rahmão, seu tirano, mandaram os cabeceiras de Safim chamar o dito Diogo de Azambuja que se viesse apoderar da cidade, porque os matadores do tirano queriam ser vassalos de el-Rei de Portugal, temendo os parentes do mesmo tirano. O que Diogo de Azambuja fez, vindo com cento de cavalo, que os mouros (depois de o ter na cidade), arrependidos de os ter metidos nela, determinaram matar. O que sabido por Diogo de Azambuja, se recolheu em sua torre, das mais fortes de Safim, com casa de trato de portugueses, com porta para o mar.

E despachou logo uma caravela para a ilha da Madeira, e, por um cavaleiro, escreveu ao capitão Simão Gonçalves o extremo e necessidade em que ficava, e como os mouros da comarca se chegavam para os tomar às mãos e vinham com pregões de gazua (que é, segundo eles cuidam, como antre nós, indulgência plenária), para os matarem. O que sabido pelo capitão Simão Gonçalves, mandou logo trezentos homens, que fez na ilha dentro em três dias, e, após estes, se foi ele, em pessoa, com novecentos homens em treze navios, com muitos mantimentos, e chegou a Safim com tempos contrairos véspera de Natal do ano de mil e quinhentos e nove, onde esteve três meses com estes mil e duzentos homens à sua custa, além de outras pessoas nobres, que com ele foram a serviço de el-Rei, dos quais foi um João Dornelas; com o qual socorro, não somente assegurou a cidade, mas também pôs os mouros em serviço de el-Rei e fez tributários, estar a obediência do capitão; nem se quis partir dali até tudo ficar seguro e sujeito a serviço de el-Rei Dom Manuel, que estimou este socorro em muito e escreveu ao mesmo Simão Gonçalves de Câmara grandes agradecimentos, mandando-lhe que se viesse para ele, o que logo fez, indo-se a Évora, onde el-Rei, então, estava, que lhe fez muitas honras e mercês, encomendando-lhe muito o socorro do Castelo Real e de Santa Cruz de Gué, o que ele fez com muito cuidado, e por duas vezes o mandou cercar (192), estando por capitão Diogo Lopes de Sequeira e no Castelo Real Diogo de Azambuja, antes que viesse a Safim. E a cada um destes socorros mandou o capitão Simão Gonçalves trezentos homens, e cinquenta, mui luzida gente, à sua custa, e estiveram lá muitos meses.

Era casado a este tempo o capitão Simão Gonçalves de Câmara com Dona Joana, filha de Dom Gonçalo de Castel-Branco, governador de Lisboa, senhor de Vila Nova de Portimão, e dela tinha os filhos seguintes: João Gonçalves de Câmara, que herdou a casa, e Manuel de Noronha, Bispo que foi de Lamego, um virtuoso prelado, o qual foi camareiro do secreto do Papa Leão décimo, que, se vivera mais tempo, sempre o fizeram grande na Igreja de Deus, e governou seu bispado em Lamego (no qual deu sempre mostras de mui prudente e mui católico pastor) em muita doctrina e exemplo, e foi um dos afamados prelados de seu tempo por sua grande virtude. Enquanto serviu o Papa, houve dele um regresso para as igrejas e cargos que vagassem em Portugal (que pertencessem a data do Papa), para os dar e tomar para si, e para quem quisesse, dos quais alguns vagaram, que deu, primeiramente, a seus parentes, depois a outros de sua obrigação. Deu a Martim Gonçalves de Câmara, seu sobrinho, uma conezia em Silves no Algarve, e o arcediagado de Baldigem, de seu bispado de Lamego, e uma igreja de Santiago de Britidande, e outra de Pina Flor (193), que tudo rendia quinhentos mil réis em portátiles. Deu a Luís de Noronha uma igreja que anda anexa à sua comenda de São Cristóvão de Nogueira. Foi, finalmente, um mui ilustre prelado e de muito primor. Houve do Papa licença e faculdade para poder testar certa cópia dos bens acquiridos (sic) no bispado e, quando faleceu, deixou uma capela perpétua com seis capelães, de sessenta mil réis de renda cada um ano, e que fossem estes capelães mestres em qualquer ciência, até de Gramática, para ensinarem de graça no bispado, e que fosse ministrador desta capela o Capitão, herdeiro da ilha.

No ano de mil e quinhentos e dezasseis trouxe de Roma este Manuel de Noronha o capelo de cardeal ao Infante Dom Afonso, que lhe mandou o mesmo Papa Leão décimo, a quem ele servia de secretário, e de sua mão o recebeu o Infante em Lisboa, sendo presente el-Rei seu pai, com o título de Bispo Zagitano, Diácono Cardeal de Santa Luzia, e por grande honra o mandou o Papa por ele, com tenção que el-Rei, por isso, lhe fizesse grandes mercês (194).

(195) Era homem Dom Manuel de Noronha, Bispo de Lamego, que viveu com grande conta, peso e medida. Antes que fosse Bispo de Lamego, dotou à Misericórdia da cidade do Porto, onde era cónego, sessenta mil réis de renda para se casarem quatro orfãs cada ano, duas de escudeiros e duas mecânicos (sic), e, depois de Bispo, fez o mesmo no seu bispado e dotou à Misericórdia de Lamego outros sessenta mil réis, que se repartissem pela mesma maneira a

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Segundo 98

outras quatro orfãs, as quais saem por sortes e, saídas as sortes, vão o provedor e irmãos da Misericórdia saber de sua virtude e costumes e, achando serem virtuosas, casando, lhe dão esta esmola a cada uma.

Cada ano cinco vezes, ordinariamente, dizia missa em Pontifical, sc. Natal, Páscoa, Pentecostes, Nossa Senhora de Agosto e dia de Todolos Santos, e nestes dias fazia certas e grossas esmolas particulares, a pessoas necessitadas e honradas, de dinheiro, que lhe mandava dar em suas casas; e, ainda que por alguma ocupação, ou por estar absente, (196) não dissesse missa em Pontifical, não deixava por isso de mandar dar as mesmas esmolas naqueles próprios dias cada ano.

Fez muitas obras boas e grandes, em seu tempo, na Sé de Lamego. Deu-lhe muitos e ricos ornamentos e mandou fazer os órgãos, que são coisa muito para ver, porque era muito inclinado à música, e, por isso, tinha grande capela em sua casa, antes de ser Bispo e depois de o ser, de muitos cantores portugueses e castelhanos, a que dava bons prémios e partidos. Fez as crastas da Sé com suas varandas. Mandou alevantar a torre em grande altura, mais do que era, e fez uma capela para si, em que está sepultado, na crasta da Sé, muito rica e formosa, da invocação de São Nicolau, e deixou nela capelães com honestos mantimentos, que rezam o ofício divino cada dia, e tem missas cantadas de prima e terça, ordinariamente. Fez casas de colégio, muito boas, perto da Sé, em que pousam estes capelães para nelas lerem e ensinarem, como já disse. Trouxe um chafariz de água, de pedra de Estremoz, branca e formosa, que está defronte das suas casas, junto da Sé e do Colégio. Fazia muitas esmolas, outras a pessoas honradas e fidalgas, secretamente, que sabia ter necessidade, e também outras ao mosteiro de São Francisco, que está no meio da cidade. Quando sabia de alguns delinquentes e que viviam mal, mandava-os chamar a sua casa e com amor e caridade os amoestava e repreendia, que emendassem suas vidas e costumes, e, se o não faziam, os mandava prender e castigava. Reformou e alevantou e consertou algumas ermidas fora da cidade, como Nossa Senhora dos Meninos, Nossa Senhora de Santo Estêvão, e fez fazer a igreja do Espírito Santo, pegado com a cidade. E era muito inclinado a coisas do culto divino. Fez seu testamento muito copioso e tão discreto, espiritual e bem ordenado, que diziam homens doctos que era para se imprimir, no qual mandou pagar a seus criados e repartir muitas esmolas, deixando à Sé sua tapeçaria, com que toda se arma pelas festas. No tempo que foi Bispo, que poderiam ser vinte anos, pouco mais ou menos, fez sempre muitos bens e honrou muito a seus criados, a uns dando de sua fazenda e a outros benefícios e casais, e dinheiro.

Teve, finalmente, grande casa, capelães e criados. E foi um dos mais insignes bispos do Regno.

Houve mais Simão Gonçalves (desta primeira mulher) outro filho, que se chamava João Roiz de Noronha, que foi casado com Dona Isabel de Abreu, filha de João Fernandes do Arco, da ilha da Madeira, de quem não houve filhos. Este João Roiz de Noronha foi capitão de Ormuz, na Índia, em tempo do governador Dom Duarte de Meneses, seu cunhado, que foi no ano de mil e quinhentos e vinte e um. E, antes que entrasse na fortaleza, o foi do mar da costa de Diu e serviu bem a el-Rei até ser capitão de Ormuz, onde prendeu o tirano Raes Xarafo e o teve a bom recado na fortaleza até chegar o Viso-Rei, seu cunhado Dom Duarte de Meneses, o qual, chegado, pôs as coisas de Ormuz em paz e sossego.

Houve mais Simão Gonçalves de sua mulher Dona Joana uma filha, por nome Dona Filipa de Noronha, que foi casada com Dom Duarte de Meneses, filho herdeiro de Dom João de Meneses, Conde Prior, que tinha muitos cargos honrosos, sc. era Conde de Tarouca e dom Prior do Crato, capitão de Tânger, comendador de Sesimbra e mordomo-mor de el-Rei Dom Manuel; pelos quais cargos, que tinha, embarcando sua filha, mulher do Conde de Abrantes, Dom Lopo de Almeida, de Lisboa para Abrantes, e perguntando um homem cuja filha era, respondeu outro dizendo que era filha de cinco pais, pelos cinco cargos que tinha. E, ordenando el-Rei Dom Manuel de mandar um homem a Roma a coisas de muita importância, se conta que perguntava a fidalgos quem mandaria, e um lhe disse: eu nomearei a Vossa Alteza cinco homens, que cada um é muito para isso: o Conde de Tarouca, o Prior do Crato, o Capitão de Tânger, o Comendador de Sesimbra e o mordomo-mor de Vossa Alteza. Respondeu el-Rei: tudo isso ele merece e muito mais. Com o qual Dom Duarte de Meneses, (que foi capitão de Tânger e governador da Índia), filho herdeiro deste Conde Prior, casou o capitão Simão Gonçalves sua filha Dona Filipa de Noronha a troco, porque João Gonçalves de Câmara, irmão de sua mulher, casou com sua irmã Dona Lianor de Vilhena. Houve esta Dona

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Segundo 99

Filipa de seu marido, Dom Duarte de Meneses, dois filhos, Dom João de Meneses, capitão de Tânger, e Dom Pedro de Meneses.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Terceiro 100

CAPÍTULO TRIGÉSIMO TERCEIRO (197)

DOS PRIMEIROS BISPOS, QUE FORAM À ILHA DA MADEIRA, E AJUDA QUE DEU O CAPITÃO SIMÃO GONÇALVES NA TOMADA DE AZAMOR, E DA CRIAÇÃO DO BISPADO

DA CIDADE DO FUNCHAL E PRIMEIRO BISPO PROPRIETÁRIO DELA. E DE UMA ESCONJURAÇÃO QUE FEZ O PRIMEIRO MESTRE ESCOLA A UMA FANTASMA (198)

Neste mesmo ano de mil e quinhentos e oito veio à ilha da Madeira, por ordem do convento de Tomar, um Dom João Lobo, Bispo de anel, que foi o primeiro que entrou nela. E porque el-Rei Dom Manuel, depois de ter feito cidade no Funchal, determinou suplicar ao Papa que criasse na ilha Sé de dignidades e cónegos, enquanto isto não tinha efeito, ordenou o Vigairo de Tomar mandar este Bispo (como mandou) para crismar e dar ordens e executar todos os ministérios competentes ao Bispo, enquanto o não era o mesmo Vigairo, que el-Rei tinha em vontade apresentar e eleger na criação da Sé do bispado. Com a vinda deste Bispo, desistiu o de Tânger do requerimento, que fazia, e de vir à ilha, como ordenava (199). E, chegado o Bispo Dom João, o foram receber o mestre frei Nuno Cão com toda cleresia, e lhe fizeram muitas festas, por ser o primeiro que na ilha fez ofício em pontifical.

Depois de andar a ilha toda, não como visitador, senão provendo as igrejas e vilas dela, para crismar, benzer ornamentos e consagrar cálices, correndo a terra, na Lombada do Esmeraldo consagrou a igreja, que está naquela fazenda, e foi a primeira que consagrou na ilha. E, depois de estar algum tempo nela, fez volta para o Regno, deixando as coisas do bispado e das igrejas em bom regimento e ordem.

E no ano seguinte de mil e quinhentos e dez vieram os mouros cercar Safim, donde mandou o capitão Nuno Fernandes pedir socorro à ilha, e, porque o Capitão estava na corte, a Capitoa ordenou uma boa companhia de gente luzida, de que foi por capitão Manuel de Noronha, irmão do mesmo Capitão Simão Gonçalves, como dito tenho, quando falei em Manuel de Noronha.

Ordenou el-Rei Dom Manuel mandar tomar a cidade de Azamor no ano de mil e quinhentos e treze, para o qual negócio elegeu Dom James, seu sobrinho, Duque de Bragança, o qual levou, afora a gente do mar, dezoito mil homens de pé, de que os quinze mil iam a soldo de el-Rei, e os três mil eram do Duque, que fez vir das suas terras. A esta jornada o Capitão Simão Gonçalves de Câmara mandou seu filho herdeiro, João Gonçalves, com vinte e um navios, seiscentos homens de pé e duzentos de cavalo, de que os oitenta eram criados seus, encavalgados à sua custa, e os demais seus parentes e achegados, que todos iam debaixo da bandeira deste seu filho e ele lhes dava de comer, assim a estes, como a todos os fidalgos, cavaleiros e escudeiros que queriam ir à sua mesa.

E conquanto o Duque de Bragança é tão grande senhor e poderoso, como se sabe, não levou mais que três mil homens à sua custa, e Simão Gonçalves de Câmara mandou esta armada com a gente que tenho dito, onde foram mui nobres cavaleiros, daqui se pode coligir quão liberal sempre foi e quão zeloso do serviço de el-Rei, principalmente no que tocava ao de Deus contra os infiéis, e nestas larguezas e magnificências gastava sua fazenda, porque seu grande coração aspirava a coisas árduas, grandes e de capitão valoroso. E isto só encomendou a seu filho, que nos trabalhos fosse companheiro, e no tratamento e gasalhado brando, nos cometimentos o primeiro, no fazer das mercês pródigo. O que o filho mui bem tomou, porque, além de fazer nesta jornada grandes gastos, tratou a todos, com muita cortesia e brandura, fazendo-lhe também muitas mercês, e, por isso, ganhou a vontade dos homens, que o serviam com muito amor. Depois de ganhada a cidade de Azamor, deixou-se ficar nela com sua gente, com a qual se achou em perigosas entradas e honrosos recontros com os mouros, como em seu lugar se dirá.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Terceiro 101

No ano seguinte de mil e quinhentos e catorze, a suplicação de el-Rei Dom Manuel, foi criada a Sé da cidade do Funchal pelo Sumo Pontífice Leão décimo, aos doze dias do mês de Junho do dito ano, e foi nomeado por Bispo, nesta criação, Dom Diogo Pinheiro, vigairo que fora da vila de Tomar, da Ordem e Cavalaria de Nosso Senhor Jesu Cristo, do mestrado da qual era a ilha da Madeira (200). E este foi o primeiro Bispo proprietário que houve na dita ilha. E, depois de confirmado o bispado, e consagrado, mandou tomar posse ao Funchal, e, investido nela, a presentação de el-Rei, foram feitos e confirmados quatro dignidades e doze cónegos, que na mesma criação vinham que se fizessem para serviço da Sé, a qual governou este prelado com muita justiça e virtude e edificação, ainda que nunca foi à ilha. Mas no ano de mil e quinhentos e dezasseis (por ele ser ocupado no serviço de el-Rei, que era desembargador do Paço e impedido com negócios do Regno) mandou à cidade do Funchal um Bispo, que se chamava Dom Duarte, que, por ele não poder vir, crismou e deu ordens e regimento na Sé, e executou outros ministérios competentes a seu ofício e cárrego. E consagrou a Sé da cidade do Funchal, um dia de São Lucas, dezoito de Octubro (sic), com muita solenidade, e benzeu um dos sinos que puseram na torre da mesma Sé e fez outras coisas muito necessárias.

Este primeiro Bispo, Dom Diogo Pinheiro, mandou à ilha seu provisor e vigairo geral, e governou o bispado doze anos, no fim dos quais faleceu na era do Senhor de quinhentos e vinte e seis (201), sendo homem de boa idade. E em seu tempo suplicou ao Papa, com aprazimento de el-Rei, para acrescentar mais na Sé e fazer uma dignidade mestre-escola, que foi um João Roiz Borio (o primeiro que este cargo serviu), para a dita Sé ser bem servida, porquanto a terra multiplicava em fertilidade e frequência de muitos mercadores e multiplicação do povo.

Este primeiro Mestre-escola, João Roiz Borio, foi homem ciente nas coisas necessárias a seu cargo e, sobretudo, mui esforçado de sua pessoa, pelo que, andando naquele tempo uma fantasma no mosteiro das freiras da cidade do Funchal, que tinha assombradas as madres do convento, que não podiam dormir com os terramotos que fazia na igreja e no mosteiro, de tal maneira, que se atreveu uma noite, revestido, com o Santíssimo Sacramento nas mãos, i-la esconjurar, em que teve assaz trabalho, ficando depois muito atromentado (sic) de medo, como alguns dizem; dizendo também o povo (que sempre acrescenta nas histórias, não sei com quanta verdade) que se pusera a este trabalho por livrar um irmão da Cadeia, que estava sentenciado à morte, e por isso lhe foi perdoado. E veio a fantasma falar com ele de sorte que mandou desenterrar um certo homem honrado e virtuoso (que dizem ser fidalgo de geração), que era morto e ali enterrado, o qual, depois de tirado dali, o foram enterrar em um caminho, acima do mosteiro, que vai para o norte, em umas chãs de terras que chamam a Achada, antre vinhas, e hoje em dia está uma cruz de pau, posta no lugar onde enterraram os ossos deste defunto. De maneira que nunca mais apareceu, nem fez terror, como dantes fazia. Pode ser que o Diabo (como às vezes costuma), por infamar este homem, tomaria aquele corpo fantástico e se faria em sua forma, porque era muito virtuoso em sua vida; outros dizem que na hora da morte duvidara do Santíssimo Sacramento, que, por isso, lho acharam na boca, quando o desenterraram, e outras coisas particulares, que neste caso se contam, que eu (por não saber a certeza delas) não conto (202).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Quarto 102

CAPÍTULO TRIGÉSIMO QUARTO (203)

DO SOCORRO QUE DEU O CAPITÃO SIMÃO GONÇALVES NO TERCEIRO CERCO DE ARZILA, INDO AGRAVADO DE EL-REI PARA CASTELA, E OUTRAS VEZES OUTROS; E DO

PRESENTE QUE MANDOU AO PAPA LEÃO DÉCIMO; E COMO FOI LOUVADO SEU ESFORÇO DO XARIFE (204)

Sendo depois capitão de Arzila Dom João Coutinho, filho do Conde de Borba, el-Rei de Fez e seu irmão Moleinacer, Rei de Meniques (205), vieram a terceira vez cercar Arzila no ano de mil e quinhentos e dezasseis, com mais de cem mil homens. Dom João Coutinho avisou logo a el-Rei deste cerco, por ser tão temeroso, além de o fazer saber a um feitor, que el-Rei tinha em Málaga, que lhe mandou duzentos homens.

Neste tempo, tinha el-Rei mandado à ilha da Madeira, para a jurdição do Funchal, um corregedor, por nome Diogo Taveira (206), por certas razões que a isso o moveram, em despeito do capitão Simão Gonçalves, que estava na ilha; agravado do qual, determinou de se ir com toda sua casa para Castela, porque, pelos serviços que tinha feitos a el-Rei, não lhe merecia meter-lhe corregedor na sua jurdição, sendo ele governador da justiça em toda sua capitania. E, com este agravo, se embarcou em duas caravelas com tenção de passar a Castela; o qual, indo assim da ilha, acertou com temporal ir ter a Lagos, do Algarve, onde, sabendo deste cerco, mandou apregoar soldo a dois cruzados por mês e se partiu logo para Arzila com setecentos soldados, que ajuntou em três dias, pagos à sua custa, e foi socorrer a vila de Arzila, levando, além disso, muitos mantimentos.

Depois de ser lá, com sua ajuda e de outros fidalgos, que foram ao socorro, e com o que el-Rei mandou por Diogo Lopes de Sequeira, el-Rei de Fez mandou levantar o cerco, tomando caminho para Alcácer Quebir, e, ao tempo que se os mouros quiseram levantar, ficou a cava desfeita e muros derribados por algumas partes; nisto, veio nova da morte e desbarato do capitão Nuno Fernandes de Ataíde, pelo que pareceu ao Capitão de Arzila que os mouros tornariam a continuar o cerco e, pondo Dom João isto em conselho com muitos fidalgos, que aí eram vindos ao socorro, quais deles ficariam e com quanta gente para reformar os muros e cava, alguns, que para isso foram requeridos pelo Capitão de Arzila para ficarem na vila até de todo cessar a necessidade, se escusaram, o que vendo o capitão Simão Gonçalves, se ofereceu ao Conde para ficar em Arzila todo o tempo que fosse necessário, dizendo que para o que cumpria ao serviço de Deus e de el-Rei, seu Senhor, não lhe lembrariam agravos, nem pouparia dinheiro, nem fazenda, e mandou logo apregoar soldo (para fazer mais quinhentos homens) a quatro cruzados por mês, para a paga dos quais mandou trazer dois mil cruzados, o que foi causa e exemplo de ficarem em Arzila mais algum tempo muitos dos que estavam para se ir.

E este oferecimento de Simão Gonçalves não aceitou o Conde do Redondo, Capitão de Arzila, vendo a grande despesa que lá (207) tinha feita e cada dia fazia com a gente que tinha; e lhe respondeu que a todos os outros obrigaria, mas a ele por nenhum caso o consentiria.

Deixando, pois, Simão Gonçalves as coisas de Arzila seguras, se foi a Sevilha, onde el-Rei Dom Manuel lhe escreveu uma carta, com grandes promessas e esperanças de lhe fazer as honras e mercês que tais serviços mereciam, mandando-lhe que viesse logo e tornasse para o Regno, que ele o despacharia conforme a seus merecimentos.

Assim que este capitão foi tão esforçado e liberal e contínuo em acudir aos rebates e cercos de África, e tão leal português e bom vassalo, que, pospondo (208) todo o agravo que de el-Rei tinha, indo, como foi, para outro Regno, não deixou de oferecer sua pessoa e fazenda para serviço de el-Rei, tendo mais respeito ao que se devia a sua ilustre pessoa que aos agravos de el-Rei, que, a fim (209), lhe logo satisfez, porque (como diz o doctíssimo e reverendíssimo Dom

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Quarto 103

Hierónimo Osório, ilustre Bispo de Algarve, merecedor por suas heróicas virtudes e ciceroniana facúndia de muitos maiores coisas), os fidalgos de Portugal hão-se com o seu Rei nos agravos como os mimosos filhos com os pais, que se aqueixam de qualquer coisa deles e fazem grandes casos e queixumes do que lhe fazem; porém, quando o negócio o pede, oferecem a vida pelos servir. Assim foi este agravado Capitão, que maiores eram as queixas, que de el-Rei tinha, do que, na verdade, o caso o pedia; porém, como mimoso filho, foi logo chamado do seu Rei e satisfeito do que pedia e desejava, que assim mereciam seus serviços.

Além destes socorros, que dito tenho, fez outros Simão Gonçalves de Câmara, assim à cidade de Safim como à Azamor e Arzila, por si e por seu irmão, Manuel de Noronha, que a Capitoa despachou e mandou com setecentos homens, gente mui luzida, à sua custa, como já fica relatado. E, assim, acudiu sempre com muita gente e navios a todos os rebates e cercos, que, em seu tempo, houve nos lugares de África, que dito tenho, e no Castelo Real, e do Cabo de Guel e Aguz, Mazagão, Cepta, Tânger, Alcácer Ceguer, ele, em pessoa, ou seu filho herdeiro; ou, quando não podia ir, mandava seus parentes e amigos, no que despendeu de sua fazenda, segundo se achou, por lembrança, nos serviços que alegou, oitenta mil cruzados, dos quais, quando faleceu, ficou devendo cinquenta mil, de que o Capitão Conde, seu neto, pagou dezanove mil, porque já seu pai, João Gonçalves de Câmara, tinha pago a demasia.

E isto, além de gastar sua renda toda nas tais despesas, que, naquele tempo, era a melhor renda de Portugal, tirando a do Duque de Bragança e Mestre de Santiago. E não foi muito de ver e gastar tudo isto, segundo sua condição alexandrina, porque, somente por isso, morreu pobre, por não poupar as despesas que tinha, grande casa, criados mui principais e de grande fausto e primor, e uma capela de muitos cantores e capelães, que competia com a de el-Rei, de que era mestre da capela um Diogo de Cabreira, castelhano, mui destro na arte de canto de órgão e tal, que o próprio Rei lho pediu para cantor para sua capela. E a estes todos dava de comer e todo o necessário.

E tão generoso foi, que, tendo seu filho Manuel de Noronha, Bispo que foi de Lamego, em Roma, que servia de secretário do Papa Leão, despachou da ilha um criado seu, por nome João de Leiria, homem muito honrado, prudente, e gentil-homem, o qual mandou a Roma visitar o Papa com um grande serviço, que, além de um cavalo pérsio, que lhe mandou de muito preço, lhe levava de cabresto um mourisco muito gentil-homem e alto de corpo, vestido em uma marlota de girões de seda; levou mais muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio, todo feito de açúcar, e os cardeais iam todos feitos de alfenim, dourados a partes, que lhe davam muita graça, e feitos de estatura de um homem, o que foi tudo metido em caixas emborulhados (sic) com algodão, com que foram mui seguros e sem quebrar até, dentro, a Roma, coisa que, por ser a primeira desta sorte que se viu em Roma, estimou-a muito o Papa, e cada uma peça, por si, foi vista pelos cardeais e senhores de Roma, sendo presente o Papa, que louvava muito o artifício, por ser feito de açúcar, e muito mais louvava o Capitão que lhe tal mandava, largando muitas palavras perante todos em louvor deste ilustre Capitão.

E recebeu com muita benignidade o embaixador João de Leiria, que foi muito acompanhado com muitos criados, vestidos (210) de veludo preto, à portuguesa, em companhia do qual ia um cónego da Sé do Funchal, chamado Vicente Martins, natural do Algarve, que ia por acessor e secretário da embaixada, para fazer a fala do Papa em latim. Era este cónego a melhor voz de contrabaixa que até seu tempo houve em Portugal, e mui destro no canto, além de ser bom latino; e diante do Papa mostrou sua habilidade na capela, com que foi muito louvado e estimado de todos, e lhe faziam em Roma bom partido por sua fala; contudo, o Papa, por ser do Capitão, lhe fez muitas mercês e lhe deu uma conezia, além da que tinha na cidade de Coimbra, e dois benefícios, outros símplices, que comia em portátiles (sic). E a João de Leiria fez muita honra e mercê, louvando muito as grandezas do Capitão e prometendo-lhe satisfazer as lembranças desta embaixada, que parecia mais de rei que de vassalo seu.

E o Papa escreveu uma carta, por João de Leiria, ao Capitão, a substância da qual era: Que se devia de ter por bem-aventurado, pois lhe deu Deus dera um filho tão virtuoso e de tantas partes, quais tinha Manuel de Noronha de Câmara, ao qual, se Deus lhe desse vida, ele faria grande na Igreja de Deus, por ser disso merecedor. E, sem falta, assim fora, se Deus não ordenara outra coisa com levar o Papa para o regno dos Céus em tempo que Manuel de Noronha veio a Portugal, onde o pudera fazer grande na Igreja, como tinha escrito.

Com esta carta veio mui satisfeito João de Leiria, e muito mais com as honras e mercês que o Papa lhe fez, e, fazendo volta por Génova, daí se passou a Espanha, donde veio ter à ilha; e

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Quarto 104

foi bem recebido do Capitão Simão Gonçalves, que sabia mui bem pagar semelhantes trabalhos e disso se prezava, e ficava tão contente de dar quanto tinha, como se possuíra quanto há no mundo, que isto têm os liberais, viverem sempre na vontade ricos e contentes, porque ainda que dêem quanto têm, fica-lhe o que mais vale, que é o contentamento de o ter dado (211).

Com estas e outras obras, dignas de sempre estarem vivas na memória dos homens, tinha tanto nome e fama este Capitão, por toda Europa e África e parte de Ásia, que dizia o Xarife por ele (praticando com os seus xeques e alcaides em coisas de guerra) que, se tivera três capitães como o da ilha da Madeira, tão cavaleiros e poderosos, que se não (sic) (212) contentara com ser Rei de Castela e Portugal, porque nunca veio pôr cerco aos lugares de África, que tinham os cristãos ocupados, que deixasse de achar o Capitão da ilha com sua gente, tão destros e cavaleiros, que era a causa principal porque logo alevantava o cerco, que assim os achava aferrados consigo, como abelhas, sem poder fazer a sua, e se tornava com perda dos seus, pelo esforço e cavalaria deste valoroso capitão.

Testemunho destas palavras foi Inácio Nunes, língua deste Regno, que as ouviu por sua viva voz dizer ao Xarife e deu testemunho disso em um estromento que desta prática tirou, e, por ser homem calificado (213) e de tanta verdade, que por ela servia a el-Rei nas partes de África, faço esta lembrança, por que a tenham os descendentes deste ilustre Capitão e vejam quão excelente foi sempre na cavalaria e liberalidade, com que dava lustro a seus feitos e com que acquiriu (sic) toda esta fama. Porque o dar procede de grande ânimo e, comummente, os homens avaros da fazenda são pródigos da honra, e, pelo contrário, os que têm a fazenda em pouco estimam a honra em muito.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Quinto 105

CAPÍTULO TRIGÉSIMO QUINTO (214)

DOS FILHOS QUE TEVE O CAPITÃO SIMÃO GONÇALVES DA SEGUNDA MULHER, E COMO CESSOU MILAGROSAMENTE A PESTE QUE HOUVE NA CIDADE DO FUNCHAL

POR INTERCESSÃO DE SANTIAGO MENOR, QUE FOI ELEITO POR PADROEIRO; E COMO E ONDE FALECEU O CAPITÃO E DE OUTRAS COISAS QUE NA ILHA

ACONTECERAM (215)

Foi casado Simão Gonçalves de Câmara a segunda vez com Dona Isabel da Silva, filha de D. João de Ataíde, que foi Regedor da Justiça, filho herdeiro do Conde de Tarouca (216), com a qual casou per dote e arras e dela houve os filhos seguintes: João Gonçalves de Ataíde, que morreu mancebo, sem casar, e houve mais Luís Gonçalves de Ataíde, que ainda vive, senhor da ilha Deserta, casado com Violante da Silva, filha de Francisco Carneiro, secretário que foi de el-Rei, o qual ofício não serviu por ser surdo, e, por ele, o serviu seu irmão Pero de Alcáçova; dela houve João Gonçalves de Ataíde e Martim Gonçalves e outros mancebos de muita esperança, por seu valor, discrição e arte.

Houve mais o Capitão Simão Gonçalves três filhas desta segunda mulher, que se chamaram Dona Breatiz, que hoje vive freira no mosteiro de Santa Clara do Funchal, mulher mui antiga, dotada de toda a virtude e um dos esteios desta santa casa, onde foi muitas vezes abadessa; as outras haviam nome Dona Isabel de Noronha e Dona Maria de Noronha, também freiras professas do moesteiro do Funchal, onde as meteu seu pai com boas rendas, que para isso lhe aplicou, em que viveram sempre mui virtuosa e santamente.

Teve mais o Capitão Simão Gonçalves um filho natural, que hoje em dia vive, que se chama Francisco Gonçalves de Câmara, o qual, ao presente, é Capitão-geral da Guerra por provisão de el-Rei, pelo assim pedir o Capitão Conde, seu sobrinho, por sua indisposição. É homem mui ardiloso em todos os exercícios de guerra, mui temperado e de muita virtude, e pouco mimoso; foi criado em aspereza, fora das delícias de seus irmãos, pela qual razão é sofredor de trabalhos e mui esforçado cavaleiro, como mostrou na entrada dos franceses na cidade do Funchal, onde feriu mui honrosamente o capitão francês Visconde de Pompador na entrada da fortaleza, servindo de Capitão-geral (como servia e agora serve) em absência e por falecimento de seu sobrinho, onde mostrou ânimo de valoroso capitão, e por tal lhe deu el-Rei o hábito com certa tença e que não pagasse por oito anos quinto e dízima de sua fazenda, que boa parte possui no termo do Funchal, de açúcares e vinhos. Por morte de seu pai, o Capitão João Gonçalves, seu irmão, o casou rico com Dona Francisca de Velosa, da qual não houve filhos.

No ano de mil e quinhentos e vinte e um, quando el-Rei Dom Manuel faleceu, havia no Funchal grande mortindade (sic), de peste, de que Deus nos livre; e, porque havia anos que andava na cidade, o Capitão Simão Gonçalves e a Câmara, por sortes, elegeram por Padroeiro da mesma cidade o Apóstolo Santiago Menor, no cabo da qual lhe fizeram uma boa casa, onde foram em procissão, e, porque, sem embargo disso, a peste não cessava, no ano do Senhor de mil e quinhentos e trinta e oito inspirou Deus em todos, em um coração e vontade, que não houvesse guardas mores, nem pequenas, e na mesma procissão, que se fez por seu dia, o primeiro de Maio, lançaram pregão que todos os feridos deste mal e sãos fossem juntamente, misturados, à sua casa, onde lhe ofereceram no altar as varas dos guardas, que hoje aí estão por memória, e, quando tornaram, vieram os feridos todos sãos; e daquele dia até hoje, pelos merecimentos do bem-aventurado Santiago Alfeo (sic) (217), não houve mais peste na ilha da Madeira; bendito seja o Senhor, pelo que se faz, em lembrança desta mercê, muita festa a este Santo por seu dia, como que fora dia de Corpo de Deus.

Sentindo-se já Simão Gonçalves de Câmara vencido da idade (posto que nada o vencia), vendo que seu filho era já casado e tinha muitos filhos, e era de muita idade, e pelo amor que lhe tinha e ele merecia, rogou-lhe que quisesse governar a ilha e que ele se contentava com

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Quinto 106

uma certa porção cada ano, porque se queria recolher no fim de seus dias, para sua quietação, em um lugar afastado dos negócios do governo e da mesma ilha, com seu filho Manuel de Noronha, que, então, residia no Porto e tinha lá boas rendas de igrejas, com o qual propósito renunciou o governo da Ilha por sua procuração em seu filho, João Gonçalves de Câmara (218).

E na era de mil e quinhentos e vinte e oito veio tomar posse da ilha seu filho, que residia na Corte. E no mesmo ano foram ambos para a cidade do Porto, e o Capitão velho, Simão Gonçalves, se foi aposentar em Matosinhos com seus criados, que para isso escolheu, de que confiava muito, pelo amor que lhe eles tinham, onde esteve um ano; e, conquanto estava apartado dos negócios humanos, nunca se apartou dele aquela grande e liberal condição, que sempre nele morou, e quando lhe mandavam o dinheiro para sua despesa, fazia-o contar perante si por seus criados, que ao circuito dele estavam, e, antes que dele se apartassem (219), ali logo o repartia, a quem dava vinte, a quem quarenta, a quem cem cruzados; e, assim, muitas vezes os despendia, sem lhe ficar para sua despesa vintém, que era causa de os tornar a pedir emprestados aos mesmos criados, até que lhe tornasse a provisão, de que ele para si resguardava a menor parte.

Antre esta fama de grandezas e liberalidades, salteado o felicíssimo Capitão Simão Gonçalves de Câmara da temerosa morte, que a ninguém perdoa, deu fim a seus dias na entrada do ano de mil e quinhentos e trinta, dando sua alma a Deus, que lha dera, em idade de sessenta (220) anos, dos quais governou a ilha vinte e seis, ditosamente. Mandou que seus ossos fossem trasladados e trazidos à ilha e postos no convento de Santa Clara, na capela onde jaz seu pai e avô; os quais, quando chegaram ao Funchal, foram levados ao moesteiro com muita solenidade pelo reverendo Cabido da mesma cidade e por toda a cleresia e religiosos, que havia na terra, e lhe fizeram as exéquias funerais com muita majestade e cerimónias, misturadas com muitas lágrimas, que todos por ele derramavam, porque foi comummente benquisto e amado do povo.

Na corte estava João Gonçalves de Câmara, seu filho, ao tempo que faleceu, e logo, no ano seguinte, se fez prestes para ir à ilha governar a capitania.

Morreu Simão Gonçalves tão pobre, que, por sua morte, esteve num ponto e termo a ilha de se vender a capitania dela por dívidas que tinha, das quais era uma as arras que havia de tornar de sua mulher a Luís Gonçalves de Ataíde, seu filho, e, por este respeito, foi necessário desmembrar desta capitania a ilha Deserta, que era do morgado; e, porque Luís Gonçalves de Ataíde se contentou com ela, lhe foi dada pelo dote e arras de sua mãe Dona Isabel da Silva. segunda mulher do dito capitão Simão Gonçalves; a qual ilha Deserta ele agora possui, e rende duzentos mil réis um ano por outro, e muito mais rendera, se fora granjeada (221), mas, porque os feitores, que a negoceiam, são liberais esperdiçadores do que lhe não custou dinheiro, estes duzentos mil réis, um ano por outro, piedosamente vêm à mão do dito Luís Gonçalves de Ataíde.

Foi Simão Gonçalves homem prudente, de claro e bom juízo; as mais das coisas, que intentou por seu parecer, lhe sucederam bem (222). Foi músico de vontade, pelo que teve grande capela de estremados cantores e tangedores, a que fazia grandes partidos. Era mui caridoso e fez, enquanto viveu, muitas esmolas e, sobretudo, era muito devoto das chagas de Nosso Senhor Jesu Cristo, e quem lhe rogava por elas lhe concedia tudo, posto que fosse muito. Foi grande perseguidor dos mouros, na destruição dos quais, para lhe fazer guerra, gastou muito de sua fazenda em armas, soldados e armadas, com que, contra eles, acudiu em África por serviço de Deus e de seu Rei, como no discurso desta história fica dito; pela qual causa, el-Rei lhe deu um alvará de lembrança para ser conde, com lhe dar a cidade de Safim para si e para um filho, o qual alvará se perdeu, e no requerimento de seus serviços o grande João Roiz de Sá deu testemunho disso, que o vira per uma carta. em que afirma ser verdade. E, pelas obras pias que fez e devação que tinha às Chagas, lhe prosperou Deus sempre todas suas coisas, e é de crer que, por sua misericórdia, lhe daria a glória.

Por morte do Bispo Dom Diogo Pinheiro, o primeiro que foi na ilha da Madeira e de toda a costa, desde o Cabo do Bojador até às Índias inclusive, e das Ilhas dos Açores e do Cabo Verde, e de todas as terras descobertas e por descobrir, ficou sede vacante até o ano de mil e quinhentos e trinta e sete, que foi por espaço de dez anos, pouco mais ou menos; nos quais, por dissenções e desavenças que houve no Cabido e capítulos que se deram a el-Rei uns dos outros, (cujo instrumento principal dizem ser o Arcediago Amador Afonso), el-Rei Dom João terceiro, vendo estas desordens, mandou fazer saber ao Cabido que, para mais serviço de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Quinto 107

Deus, queria fazer lá no Regno um provisor para governar o bispado e para despachar as apelações que iam das ilhas e da Índia, porque era grande opressão, que se dava às partes, irem à ilha para proverem nelas os visitadores e Cabido, o qual, consentindo no que pedia el-Rei, se fez, então, um provisor em Lisboa, que se chamava Afonso Mexia, que foi pouco tempo. Depois se fez outro, que havia nome Custódio Dias, que foi Bispo de anel, que também teve o cargo pouco. E logo se fez outro, que se dizia António Machucho, em cujo tempo foi ter à ilha da Madeira por daião Gaspar de Carvalho.

Neste ano de mil e quinhentos e trinta e um foi da cidade do Funchal Simão de Miranda com uma boa companhia de soldados, que mandaram os da Câmara da cidade à sua custa, de que ele foi por capitão, não estando o Capitão na ilha, e el-Rei escreveu à Câmara uma carta de agradecimentos por este socorro, que mandaram a Cabo de Guel.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Sexto 108

CAPÍTULO TRIGÉSIMO SEXTO (223)

DO QUE FEZ ANTÓNlO GONÇALVES DE CÂMARA, FILHO DA CAMAREIRA-MOR DA RAINHA DONA CATERINA, NA ILHA DA MADEIRA, E DO QUE MAIS LHE ACONTECEU,

CASANDO NELA, E FORA DELA (224)

Contado tenho acima como o Capitão Simão Gonçalves, primeiro do nome e terceiro Capitão da ilha da Madeira, chamado, por suas obras, o Magnífico, de sua primeira mulher, Dona Joana, filha de Dom Gonçalo de Castelbranco, Governador de Lisboa e Senhor de Vila Nova de Portimão, houve um filho, que se chamava João Roiz de Noronha, que serviu bem a el-Rei e foi Capitão-mor do mar na Índia e, depois, Capitão de Ormuz, em tempo do Governador Dom Duarte de Meneses, seu cunhado, no ano de mil e quinhentos e vinte e um. Este João Roiz foi casado com Dona Isabel de Abreu, filha de João Fernandes, senhor da Lombada do Arco, da ilha da Madeira, de que não houve filhos. Com uma irmã da qual, chamada Águeda de Abreu, filha do mesmo João Fernandes, casou João Esmeraldo, de nação genoês (225), senhor da Lombada de seu nome na mesma ilha. Também tenho dito que, da freiguesia (sic) da Madalena a um quarto de légua, está a Lombada que foi de Gonçalo Fernandes, marido de Dona Joana de Sá (226), camareira-mor da Rainha Dona Caterina, e outro quarto de légua além desta Lombada de Gonçalo Fernandes, da Serra de Água, para a parte do Ocidente, está outra Lombada, que se chama o Arco, que foi de João Fernandes, pai destas duas irmãs, que agora disse, irmão do dito Gonçalo Fernandes, pai de António Gonçalves de Câmara, monteiro-mor de el-Rei, primo com-irmão das mesmas duas irmãs.

Isto pressuposto, nestas duas lombadas, antre os moradores delas, aconteceu o que, Senhora, vos contarei, para verdes e apregoardes melhor pelo Mundo a prudência e virtude das mulheres e a valentia e esforço dos homens, e as grandezas desta ilha da Madeira, tão grande e rica e poderosa em suas coisas, como magnífica e ilustre em seus moradores (227).

No ano de mil e quinhentos e trinta e um, porque Dona Isabel de Abreu, mulher que foi de João Roiz de Noronha, filho do Capitão Simão Gonçalves, por falecimento do dito seu marido e de seu pai João Fernandes, estava viúva e rica e possuía a Lombada do Arco, o que vendo António Gonçalves de Câmara, que morava ali perto, por ajuntar estas duas fazendas, que eram mui grossas, lhe veio a querer bem, desejoso de casar com ela. E dizem que, por meios de uma moura, de casa de Dona Isabel, privada sua, que, por certo dinheiro, lhe deixou uma janela aberta, teve maneira com que entrou de noite com ela, com tenção de a receber por mulher.

Vendo-se Dona Isabel salteada dele, como era mui virtuosa e discreta, dissimulou com ele, dizendo que lhe não convinha fazer casamento daquela maneira, que ela queria ser sua mulher e ao outro dia, pela manhã, a viesse receber, para o qual haveriam depois rescrito de Roma; com estas e outras palavras vencendo-se António Gonçalves, se tornou sem tocar nela e, ajuntando ao outro dia perto de cinquenta homens de cavalo da Ponta do Sol e Ribeira Brava, que logo acudiram a seu chamado, foi com grande pompa e aparato para a receber, como lhe tinha dito, mas ela zombou dele, fazendo-se forte em suas casas com sua gente, que tinha muita. Achando-se António Gonçalves zombado, injuriado e afrontado, se tornou para sua fazenda, embarcando-se dali a poucos dias para Lisboa, onde andou dois anos, a cabo dos quais se tornou para a ilha.

Aconteceu um dia que, fazendo Dona Isabel uma romaria, ou (como outros dizem) indo de sua casa, ricamente ataviada e muito acompanhada, para a Calheta, a um baptismo, para que a convidaram, passando por junto da fazenda de António Gonçalves, por ter por ali o caminho, sabendo-o ele e tendo para si que se lhe mostrava e queria já consentir no casamento (porque quem ama tudo suspeita), ajuntando muito prestes muita gente com muitas armas, que lhe não faltavam, se foi ao caminho e, tomando a mula, pelas rédeas, em que ia Dona Isabel, a levou e

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Sexto 109

meteu em suas casas contra vontade de seus parentes e dos seus, especialmente não consentindo nisso Águeda de Abreu, sua irmã, mulher de Cristóvão Esmeraldo; de que logo foi recado à cidade e, vindo o Ouvidor da Capitania do Funchal com muita gente, por não estar, então, o Capitão na ilha, achou António Gonçalves com outra tanta mui armada, sem lhe querer obedecer enquanto ele mandava, fazendo-se forte em suas casas, às quais, querendo o ouvidor chegar por força, se começou travar uma escaramuça temerosa e perigosa antre ambas as partes, pondo-se o risco de haver antre uns e outros muitas mortes; o que vendo António Gonçalves e Dona Isabel, por evitar tanto dano, de que seriam causadores, saíram ambos a umas varandas, donde falaram ao Ouvidor, perguntando-lhe que queriam, que ele estava com sua mulher, dizendo Dona Isabel o mesmo, que estava com seu marido e bem se podia tornar embora.

Despedindo-se o Ouvidor com isto e tornando-se já para o Funchal, disse Dona Isabel a António Gonçalves que, pois vinham ali com o Ouvidor muitos parentes seus e amigos, não era razão que se tornassem, sem comer, tão comprido caminho e, já que tudo estava em paz, os convidasse; parecendo bem estas palavras a António Gonçalves, mandou logo abrir as portas, dizendo que entrassem todos para comerem e descansarem.

Entrando o Ouvidor com sua gente, alcaides, meirinhos e juízes de todas as vilas e lugares daquela capitania na sala, arremeteu Dona Isabel e apegou-se com ele, dizendo e aqueixando-se que, forçosamente, a tinham naquela casa, que lhe valesse com justiça. Trouxe-a, então, o Ouvidor consigo, com obra de cento e cinquenta homens de guarda, para o Funchal, e, por ser tarde, se foram aposentar na fazenda de Cristóvão Esmeraldo, marido que fora de Águeda de Abreu, irmã desta Dona Isabel.

Vendo-se António Gonçalves, com aquele virtuoso e prudente engano, esbulhado de sua posse e despojado da esposa, que tanto amava e desejava, naquela noite ajuntou oitenta homens bem armados da Ribeira Brava e Ponta do Sol e Calheta, antre os quais entravam muitos fidalgos, seus amigos, e muitos homiziados, alguns por mortes de homens, e outros, ladrões, que vinham emmascarados (sic), por não serem conhecidos, com grande cópia de mantimentos, e, não contente com isto, mandou buscar à cidade (sem haver que lho tolhesse, por estarem ali todos os oficiais da justiça como presos) dois falcões pedreiros, com muita pólvora para derribar as casas onde estava o Ouvidor com Dona Isabel e sua gente, alguma dela posta em campo, fazendo-se forte ao derredor delas.

E António Gonçalves, com os seus em seu cerco, mui determinado com mão armada de lhe fazer muitos danos, até lhe tomar as águas, que vinham para a fazenda, e mandar cevar os falcões e atirar à câmara, onde Dona Isabel estava, tendo no campo sua gente de guerra com esta estância de artilharia, bandeira arvorada, acometendo com tudo isto, a som de tambores, as casas de Águeda de Abreu, e foi tal o desafio, que se acharam quatro irmãos, dois da banda de António Gonçalves e outros dois do outro bando, com que parecia mais que civil batalha; mas, vendo os fidalgos da parte de Dona Isabel as perdas e danos, que desta briga resultavam, e mortes, que a muitos podiam recrescer e suceder ao diante, havendo seu conselho (como se estiveram retidos em África, sem esperar socorro), visto a desordem da maneira que acometia António Gonçalves, depois de disparada a artilharia, intervindo nisso alguns parentes dela, vendo também que não parecia mal o casamento antre duas tão abalizadas pessoas, começaram de haver correios e recados e tratar pazes antre eles e, havendo já oito dias que estavam cercados, vieram, finalmente, a concerto de suceder (228) Dona Isabel, pelas amoestações (sic) que seus parentes e não parentes lhe fizeram, ao que António Gonçalves de Câmara pretendia. Mas, não se querendo ele confiar mais a terceira vez dela, como bem experimentado já dos outros dois enganos, senão determinado de a levar consigo a seu arraial, deu-lhe ela, então, três fidalgos em arreféns, com promessa de ao outro dia se irem receber à sua fazenda, o que foi cumprido e feito, acompanhando-os a ambos mais de duzentos de cavalo.

Chegada Dona Isabel de Abreu e António Gonçalves de Câmara a sua fazenda e recebendo-se ambos, foram feitas grandes festas e vodas (229), em que comeram todas aquelas pessoas que os acompanharam.

Estavam na sala primeira dos seus paços quatro potes de prata fina, em quatro cantos dela, que levaria cada um deles três almudes de água, com quatro púcaros de prata, cada pote com o seu, presos com cadeias do mesmo; e toda aquela gente honrada, que se achou naquele banquete, que seriam mais de duzentas pessoas, afora outros e servidores, que eram mais de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Sexto 110

outros tantos, comeram todos em baixela de prata, sem se antremeter no serviço coisa de barro, nem estanho, onde se gastaram ricos e esquisitos manjares de toda sorte, como os sabem muito bem fazer as delicadas mulheres da ilha da Madeira, que (além de serem comummente bem assombradas, muito formosas, discretas e virtuosas) são estremadas na perfeição deles e em todalas invenções de ricas coisas, que fazem, não tão somente em pano com polidos favores, mas também em açúcar com delicadas frutas.

Contudo, não consentindo neste casamento Águeda de Abreu, nem sendo contente de sua irmã se ir com António Gonçalves, uns dizem que, daí a poucos dias, fretou um navio e se foi a Lisboa; outros dizem que escreveu este caso a seu marido, que lá estava, na Corte; outros que já neste tempo era viúva e em pessoa se foi queixar ao Regno, e, entrando no Paço, chamou «aque (sic) d’el-Rei», e, tendo portaria para falar, como era muito discreta e grave, e mulher entrada na idade, com grande sentimento contou a el-Rei tudo o que passava e a afronta que lhe fizeram em sua fazenda, e como lhe tomaram as águas, com que moíam, e quiseram derribar as casas, contando outras forças e injúrias.

Outros dizem que não foi, mas que pôs grande diligência, com que fez saber a Sua Alteza tudo quanto passava (tanto esquecimento tem uma coisa que parece acontecer ontem, que já hoje há dela tantas opiniões tão diversas), de maneira que, com suas inteligências, que teve neste caso (ou fosse ao Regno ou escrevesse), acabou tanto com el-Rei (que era amigo de fazer justiça e desafrontar agravados), que, estranhando muito isto e querendo castigar a António Goncalves, logo mandou um corregedor à ilha, que era desembargador e doutor, chamado Gaspar Vaz, e um meirinho, que chamavam o Carranca; uns dizem que com cento, outros que com trezentos homens, soldados de sua guarda, para o prenderem, o que sabido por ele, secretamente mandou levar sua mulher Dona Isabel, ao moesteiro das freiras do Funchal e se pôs a monte com muita companhia.

O desembargador, como era homem bem inclinado, fazendo seus autos e tirando suas devassas, se tornou para o Regno sem poder prender a António Gonçalves, que muito prestes deu consigo em Canária, e daí em África, onde serviu a el-Rei muitos anos com muita gente e cavalos, à sua custa, e por rogos e petições de sua mãe, que era camareira-mor da Rainha, se foi pacificando a coisa por tempo (que é o que tudo cura) e, ainda que muitos dos de sua companhia foram desterrados e sentenciados à morte, por António Gonçalves (como alguns dizem) se embarcar em um navio, em que foi com socorro ao Cabo de Gué, na opressão em que estava aquele ano de mil e quinhentos e quarenta, em que foi ganhado dos mouros, que ele já achou tomado, e por outros serviços, que em África fez a el-Rei, com muitas despesas, e por intercessão de sua mãe (230), que trabalhou muito em seu livramento, houve de el-Rei perdão e que se livrasse por justiça, o que ele fez, vindo-se de África meter no castelo e prisão, e, chamando-se às ordens, foi livre, sendo seu juiz o Arcebispo do Funchal, Dom Martinho de Portugal.

Não houve António Gonçalves filhos de sua mulher, Dona Isabel, que viveu com ele alguns anos, no fim dos quais faleceu da vida presente. E no tempo que estas coisas aconteceram, estava a mãe do Capitão na ilha e, não estando ele presente, mandava seu ouvidor por ele.

Depois de viúvo, António Gonçalves de Câmara (por concluir aqui logo toda sua história, ainda que era o que se segue de tempo futuro a respeito do em que isto atrás dito passou) foi à Corte, onde andou alguns anos. E no de mil e quinhentos e cinquenta e cinco, pouco mais ou menos, tornou de Lisboa à ilha da Madeira (já em tempo do Capitão Simão Gonçalves, que foi depois Conde da Calheta), casado segunda vez com Dona Margarida de Vila Verde, dama da Rainha, filha de Dom Pedro de Vila Verde, capitão dos ginetes, trazendo-a consigo, para o recebimento da qual mandou el-Rei ao Capitão do Funchal que se fizessem muitas festas e não trabalhassem seis dias, para mais as solenizarem, o que tudo se fez com muita diligência e amor, ajuntando-se cavaleiros de toda a ilha, ricamente guarnecidos, trazendo com os mais deles dois e três cavalos a destro, com ricos jaezes e suas cobertas, e moxilhas (sic) de veludo, e cabeçadas, e esporas douradas, cada um com dois, três, quatro, cinco e seis criados, todos vestidos de libré de seda de várias cores e modos; porque, como se ajuntavam de todas as partes da ilha, cada um, a porfia, inventava novas invenções e trajos para vestir mais galante e, como se põem os olhos muitas vezes mais nos criados que nos senhores, esmeravam-se em tudo.

Além dos da cidade, que foram muitos e galantes, da vila de Santa Cruz vieram dez ou doze muito bem ataviados, e de Machico e das mais partes da sua capitania, que havia de ser contra

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Sexto 111

bando dos da capitania do Funchal, vieram muitos e destros cavaleiros, antre os quais vinha Francisco de Leomellim, filho de Pero de Leomellim, do Porto do Seixo, perto de Santa Cruz (como já fica dito), o qual havia dois anos que era chegado de África, onde, dantes, alguns estivera cativo (sic), e, tendo seu pai juntos quinze mil cruzados para seu resgate, quis Nosso Senhor que fugiu com o mouro de sua guarda. Veio este cavaleiro às festas ricamente vestido, com três poderosos cavalos, que todos cansou na escaramuça e jogo de canas, em que se estremou antre todos, porque era tão destro no jogo delas e tão bem se adargava, que lhe não dava cana, nem nas unhas do cavalo.

Antre eles, houve outros, do outro bando, dos Betancores, da Ribeira Brava, que mui bem o imitavam. Fizeram-se grandíssimas festas de muitas lutas, de ricos prémios, grandes fogaças, grossas dádivas, que dava o Capitão Conde a quem derribava algum grande lutador, por ele ser muito afeiçoado à luta.

Ordenaram-se muitas soiças (231) de arcabuzeiros, e danças, em que iam os mais vestidos de seda, por mandar el-Rei que os vestidos dela, que para estas festas se fizessem, pudessem todos trazer depois sem pena, até se romperem; pelo qual gastaram neles, à sua parte, somente os oficiais mecânicos mais de dois mil cruzados, ainda que o Capitão da sua bolsa supria a todas as partes. E a maior parte das comidas para a gente, que vinha de fora às festas, toda foi à sua custa.

Acabadas as festas, se foi António Gonçalves de Câmara e sua mulher, Dona Margarida de Vila Verde, para a sua Lombada do Arco, que é uma grossíssima fazenda, onde se dizia que ajuntara sua mulher uma pipa de dinheiro em pouco tempo, porque tinha na fazenda vendas de todas as coisas, para que os que trabalhavam nela não as fossem comprar fora; mas António Gonçalves, que mais sabia espalhar que ajuntar, não negando nada a todos, não deixava sempre de usar de sua magnífica condição, nobre e grandiosa, porque mais gosto tem o liberal em espalhar que o avaro em ajuntar.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Sétimo 112

CAPÍTULO TRlGÉSIMO SÉTIMO (232)

DA VIDA E FEITOS DO QUARTO CAPITÃO DO FUNCHAL, JOÃO GONÇALVES DE CÂMARA, TERCEIRO DO NOME

João Gonçalves de Câmara, terceiro do nome e quarto capitão, veio a segunda vez governar a ilha no ano de mil e quinhentos e trinta e dois, porque, por renunciação do pai, quando com ele foi ao Porto, ficou por logotente um seu ouvidor, que trouxe do Regno para este efeito, que se chamava Francisco Jorge.

Foi este Capitão João Gonçalves dos bons cavaleiros de seu tempo, e mui privado e accepto (233) a el-Rei. Quando foi, em vida de seu pai, na tomada de Azamor, levou consigo da ilha da Madeira duzentos homens de cavalo e seiscentos de pé (como já fica dito) e partiu do Funchal com vinte navios e uma caravela de mantimentos e, indo ter a Lisboa com esta gente, foi beijar a mão a el-Rei, que lhe fez muita honra. E por se virem para ele muitos criados seus, lhe mandou el-Rei dar mais duas naus e quatro caravelas bem armadas, com a qual frota foi em companhia do Duque de Bragança, que, chegados à barra do rio de Azamor, por o tempo lhe ser contrário para entrar pelo rio, foram desembarcar a Mazagão, que é duas léguas da barra de Azamor, onde, ao desembarcar da gente, pelo perigo que havia dos muitos mouros que queriam tolher a desembarcação, foi dada a guarda do campo a este grande Capitão João Gonçalves de Câmara, a qual teve de maneira que a gente desembarcou sem perigo dos mouros, que muitos havia pelo campo. E ao dia seguinte (que era de menos perigo) se deu a guarda do campo ao Conde de Borba e ao capitão dos genetes (sic), e daqui se foram à cidade de Azamor e a tomaram, como se relata copiosamente, e por singular estilo, na Crónica de el-Rei Dom Manuel. E neste campo e entrada mostrou João Gonçalves obras de magnânimo capitão e excelente cavaleiro, e liberal senhor com dar mesa a todos os fidalgos que a ela quisessem comer, além de sustentar a gente, que levava mui custosamente e com muito aparato, tratando a todos com muita cortesia, qual se esperava de tão ilustre pessoa.

Depois de ser tomada a cidade de Azamor, porque o Duque de Bragança se foi para o Regno, deixou por Capitão dela Dom João de Meneses, o qual, como era generoso (234), no ano seguinte de mil e quinhentos e catorze, em Abril, determinou em companhia de Nuno Fernandes de Ataíde, Capitão de Safim, ir buscar os alcaides de el-Rei de Fez e Miniques (235) ao pé da Serra Verde, em terra de Duecalla, e levou consigo oitocentas lanças e mil homens de pé, com os capitães que estavam em Azamor, antre os quais foi João Gonçalves de Câmara, com toda sua gente da ilha, e Rui Barreto, e o Regedor João da Silva, e Álvaro de Carvalho, com a gente que tinham (236). Chegados quatro léguas do arraial dos alcaides, veio ter com eles Nuno Fernandes de Ataíde, e logo ali acordaram que no quarto da prima dalva (sic) (237) dessem sobre os alcaides, que tinham gente sem número, que fizeram para vir cercar Azamor.

Caminhando assim toda (238) uma sexta-feira de Endoenças, ordenaram suas batalhas em cinco azes, das quais as três eram da gente de Dom João, ele em uma, João Gonçalves de Câmara em outra, e João da Silva, Rui Barreto com Álvaro de Carvalho na terceira; e Nuno Fernandes com sua gente nas duas (239).

Tocadas as trombetas abalaram contra os mouros, que em quatro batalhas esperavam os nossos.

Dom João, com seus capitães, arremeteram com tanto esforço, que romperam as batalhas dos mouros e os fizeram voltar todos para a Serra. No alcance dos quais foram até chegar ao rio Seco, donde não quis passar Dom João, por entender o perigo que nisso ia; porém, seus capitães, como iam com fúria, passaram o rio Seco, o que visto pelos mouros, quão poucos estes eram, e que também Nuno Fernandes não quisera passar o rio, voltaram sobre os

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Sétimo 113

nossos, que já se vinham recolhendo aos guiões dos capitães-mores, dando neles com tanto ímpeto, que os guiões de Álvaro de Carvalho e de João da Silva se perderam.

Mas João Gonçalves de Câmara pelejou de maneira que não perdeu o seu e se veio recolhendo seu passo cheio com sua gente para Dom João, fazendo de quando em quando voltas sobre os mouros, de que se saiu a seu salvo, ainda que veio ferido de uma seta no braço esquerdo, que trouxe pregada nele com a adarga, também coberta de setas, até se acabar a batalha.

Dos mouros morreram (segundo se depois soube) mais de dois mil e seiscentos, antre os quais foi um dos alcaides de el-Rei de Fez, e outro foi derrubado, que se salvou, deixando a lança e adarga e cavalo. Morreram sete xeques da Xerquia e seiscentos e cinco (240) espingardeiros e foram feridos mais de quatro mil. Os cativos passaram de duzentas e oitenta almas.

E dia de Páscoa florida entraram todos os capitães (depois de despedidos de Nuno Fernandes e partida a presa), com todos os seus em Azamor.

No mesmo ano, depois desta batalha, saindo os fronteiros, que em Azamor estavam com o Capitão da mesma cidade, foram sobre uns aduares, quarenta léguas pela terra dentro, e passaram os Montes Claros, em cuja companhia foi o Capitão João Gonçalves de Câmara, com duzentos de cavalo, que levava consigo da ilha, e alguns poucos de pé. Chegados aos aduares e dando nos mouros, coube ao dito João Gonçalves encontrar-se com um alcaide de el-Rei de Fez, que tinha mil e duzentos de cavalo, os quais, com sua gente, de seu guião, João Gonçalves rompeu e desbaratou de maneira que os fez fugir e foi no alcance, matando e cativando neles.

Neste tempo, o Capitão de Azamor mandou recado aos capitães que se recolhessem, por não se desmandarem, e parece que, ou por descuido do Capitão, ou por negligência de quem levou o recado, não o deu ao dito Capitão João Gonçalves, o que visto por ele, como tinha o ponto na honra, além de o merecer por sua pessoa, pôs-se em um alto com seu guião recolhendo sua gente, com tenção de vir tomando o caminho para Azamor, sem o Capitão, ao longo da praia do mar, que era mais breve para trazer os cavalos folgados, se fosse necessário para alguma peleja, se ali sobreviesse. E, estando ali posto para recolher os seus, que se vinham para ele, viu estar cercado de muitos mouros e quase desbaratado deles o Regedor João da Silva, a que logo acudiu com muita pressa e fúria, com os que consigo tinha, como se de novo entrara na batalha; deu nos mouros de maneira que os pôs em fugida e salvou o Regedor, tirando-o dantre os imigos, que o tinham quase cativo. Donde, daquele dia por diante, todos os que o dito João da Silva viveu (agradecido daquele socorro em tal tempo), chamou ao Capitão João Gonçalves seu padrinho. Neste recontro e batalha pregaram os mouros a mão com duas setas a João Gomes, camareiro do dito Capitão João Gonçalves, na haste de seu guião, que levava, o qual João Gomes era muito cavaleiro, natural de Setúvel.

E, como João Gonçalves era cheio de primor (por mais rogos que João da Silva com ele teve), nunca quis vir em companhia do Capitão de Azamor, antes tomou seu caminho ao longo do mar, como tinha ordenado, pelo qual chegou a Azamor primeiro que os outros, onde, depois de vindo, o Capitão teve muitos cumprimentos com João Gonçalves, que ele muito bem tomou, porque de sua condição era brando e de coração singelo, sem dobrez de má vontade, o que eu queria ver em todos os homens, quanto mais nos que têm nome, cárrego e fidalguia (241).

Nesta e em outras entradas se achou este valoroso Capitão João Gonçalves, verdadeiro ramo de seu pai, triunfando sempre dos mouros e trazendo deles grandes despojos, em catorze meses que residiu em Azamor e esteve nela por fronteira com duzentos homens de cavalo e seiscentos de pé, que sustentava à sua custa com muita despesa, levando consigo esta gente da ilha e oitenta criados seus, antre os quais sempre se achava seu aio, Martim Anes, natural da Ribeira Brava, um bom cavaleiro, a quem o Capitão por sua pessoa era mui afeiçoado, e por seu conselho fazia muitas coisas. Achando-se com ele nas entradas e escaramuças que fazia, nas quais, andando um dia envolto o dito Martim Anes com os mouros em companhia do seu capitão, achou um paje do mesmo João Gonçalves, que servia da lança, por nome Aires Hanriques (pai de Aires Hanriques, o Moço), aos botes com um mouro, que derrubara do cavalo, fazendo-se conhecer ser mais merecedor dele que o mouro, que o perdeu com a vida, o que visto por Martim Anes, que já o vinha socorrer, o levou ao senhor, dando-lhe muito louvor do que lhe vira fazer, e o Capitão o armou logo cavaleiro.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Sétimo 114

Nesta companhia, que todos saíram a salvo, se acharam (além dos nomeados), da ilha, Gaspar de Betancor e Francisco de Betancor, e Diogo de Barros e seu irmão Pero Gonçalves de Barros, esforçados cavaleiros, naturais da Ribeira Brava; o qual Diogo de Barros era tão conhecido dos mouros e tinha tanto nome antre eles de bom cavaleiro, que o temiam como a mesma morte, e, sendo uma vez com outros cavaleiros na tomada de uns aduares, onde os mouros traziam seu gado seguro dos cristãos, cercado de fossos e cequias (sic), e matamorras cobertas de terra, os cristãos, contudo, deram sobre eles, onde este Diogo de Barros, pela experiência que tinha das covas, entendeu que ali estavam e saltou-as no seu cavalo e, vendo que arreceava de fazer o mesmo seu irmão mais velho, Pero Gonçalves de Barros, como era assomado de condição e bom cavaleiro, tornou atrás e por força o fez saltar, dizendo-lhe que, se o não fizesse, enrestaria a lança nele, porque nos perigos da guerra se haviam de conhecer os cavaleiros e, por grandes que fossem, neles se haviam de divisar e sinalar os Barros; e, dizendo isto, ambos saltaram os fossos, dando Santiago nos mouros com muita fúria, fazendo neles bravo estrago, onde os desbarataram.

Era o Capitão João Gonçalves tão cavaleiro e tinha tanto primor e ponto na honra, que, quando foi com o Duque de Bragança na tomada de Azamor, andando Rui Barreto, por mandado do Duque, recolhendo o campo, envolto antre os nossos e de galope, acertou, perpassando pelo dito João Gonçalves, tocar-lhe com o conto da lança (sem atentar nele), dizendo: «recolher, cavaleiros, recolher»; ao que o Capitão João Gonçalves respondeu, descarregando-lhe com a lança por cima da cabeça: «tomai, porque vos não vades gabar na guarda-roupa de el-Rei do que fizestes»; ao que, advertindo Rui Barreto, vendo ser o Capitão João Gonçalves de Câmara, disse com muita humildade: «dai, Senhor, dai, que bem o mereço, pois não atentei o que fazia», coisa que foi mui louvada a Rui Barreto, porque, segundo era assomado e o havia com João Gonçalves, que era estremado cavaleiro, pudera-se dali seguir muita desordem; onde se cumpriu o provérbio que quando um não quere, dois não baralham.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Oitavo 115

CAPÍTULO TRIGÉSIMO OITAVO (242)

DOS FILHOS QUE TEVE JOÃO GONÇALVES DE CÂMARA, TERCEIRO DO NOME E QUARTO CAPITÃO DO FUNCHAL, E DE OUTRAS COISAS, QUE EM SEU TEMPO FEZ, E

LHE ACONTECERAM ATÉ SEU FALECIMENTO (243)

Era João Gonçalves de Câmara casado ao tempo que seu pai faleceu com Dona Lianor de Vilhena, filha de Dom João de Meneses, Conde de Tarouca, Prior do Crato, mordomo-mor de el-Rei, senhora de muita prudência, virtude e magnificência, com a qual casou a troca (sic), como atrás tenho dito.

Houve dela Simão Gonçalves de Câmara, que herdou sua casa, e Luís Gonçalves de Câmara, o qual Luís Gonçalves foi padre professo da Companhia de Jesú, de boas letras e muita virtude e autoridade, e de rara capacidade em todo género de negócios, assim de religião como de governo, e foi coluna da religião e tido nela sempre em grande conta. Ainda em tempo do bem-aventurado padre Inácio de Loiola, fundador da dita Companhia, o fez em Roma ministro da Casa Professa, onde residia o dito fundador e Geral, e daí o mandou com grandes poderes a visitar a província de Portugal, e veio a este Regno com dez ou doze da Companhia, de várias nações, cumprindo o ofício de visitador com muita satisfação e consolação dos religiosos desta província.

Foi o dito padre chamado e importunado de el-Rei Dom João, terceiro do nome, para seu confessor, no que nunca consentiu; e el-Rei, com sua mansidão, disse: «Louvado seja Deus, que não me querem confessar». E sabendo isto o padre Inácio, lho estranhou muito por carta sua, dizendo que, ainda que teve boa tenção, o não houvera de fazer, por el-Rei ser tão benemérito da Companhia, que era como pai dela, além do muito fruto que daí se podia seguir, e lhe mandou, em virtude de obediência, que se fosse aos pés de el-Rei oferecer para tudo o que Sua Alteza quisesse. E assim o fez, de que el-Rei ficou satisfeito, e, por já ter confessor, o não quis ocupar nisso.

Foi também o dito padre Luís Gonçalves à África sobre o resgate dos cativos, onde padeceu muitos trabalhos.

E na segunda eleição do segundo Geral, indo a Roma, lá na congregação foi eleito por assistente e conselheiro do Geral da Companhia Diogo Laynez, homem de grandes letras e fama em toda Itália, França e Alemanha, de que deu grandes mostras por duas vezes no Concílio Tridentino, antes de Geral e depois de o ser; e, estando em Roma o dito padre Luís Gonçalves, como é costume dos assistentes, a Sereníssima Rainha de Portugal Dona Caterina o mandou pedir ao Geral para mestre de el-Rei Dom Sebastião.

E, vindo a este Regno, logo de pouca idade o começou a ensinar em todo género de doctrina, de que um rei tem necessidade, e também foi seu confessor, e daí lhe tomou tanto amor e crédito, que em tudo ouvia primeiro seu parecer, até que o mesmo padre, sendo já el-Rei de vinte e dois anos, e vendo vários intentos de muitos, que ele não podia atalhar, por justos respeitos, se afastou da Corte e se recolheu ao Colégio de Évora, e, depois, se foi para Coimbra, onde lhe sobreveio uma grave enfermidade, e, julgando os médicos que lhe era necessário ir-se a Lisboa, por lhe ser quase natural para poder restaurar-se, o fez. E no Colégio de Santo Antão, estando antre seus irmãos da Companhia, e muito consolado e conforme com a vontade de Nosso Senhor, recebeu todos os Sacramentos com muita devação (sic) e acabou em paz, dando sua alma a seu Criador, que é de crer lhe dará o prémio de muitos trabalhos, que tinha passado por amor dele e de sua Igreja e bem deste Regno, porque, por seu conselho, neste Regno sempre foram as religiões, viúvas e pobres favorecidos, e as igrejas e os prelados delas, para com toda liberdade e zelo castigarem os seus súbditos revéis,

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Oitavo 116

no que, depois de sua morte, houve assaz de mudança, como a triste e infelice experiência das coisas e caído estado deste Regno o têm bem mostrado.

El-Rei Dom Sebastião sentiu muito sua morte, pelo muito amor e respeito que lhe tinha, e se recolheu, por esta razão, alguns dias em Nossa Senhora do Espinheiro, de Évora, dos frades de São Hierónimo. E poucos anos havia que, sendo o dito seu mestre eleito em capítulos para ir a Roma à eleição do terceiro (244) Geral, por nenhum caso quis consentir nisso, e assim o mandou dizer ao capítulo, que o não havia de largar, mostrando com palavras notáveis a muita estima em que o tinha e quanto sentiria sua ida, e do mesmo parecer foi o Sereníssimo Cardeal Infante Dom Henrique, que, então, estava em Évora, onde se fazia o capítulo provincial, e assim foi outro eleito em seu lugar. E, na verdade, a sua tenção era deixar o Rei e desassossegos da Corte e ir viver quieto em Roma os últimos anos de sua vida, mas o Senhor, por outra via, neste Regno lhe cumpriu os seus desejos, levando-o (segundo cremos) à Roma Triunfante, como agora, pouco antes, acabei de contar; que, pelos merecimentos de sua pessoa e muita prudência, sendo padre da Companhia de Jesú, homem de muita virtude e ciência, e mui docto nas letras sagradas, foi mestre de el-Rei Dom Sebastião (245).

Houve mais o capitão João Gonçalves de Câmara outro filho, que chamaram Fernão Gonçalves de Câmara, que os mouros mataram em Tânger, onde deu mostras de esforçado cavaleiro.

E Martim Gonçalves de Câmara, clérigo, muito bom letrado, doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra, onde também, por quem era e pelas muitas virtudes e letras, que tinha, foi rector, e depois presidente da Mesa da Consciência, e escrivão da puridade de el-Rei Dom Sebastião, e presidente dos desembargadores do Paço e do Conselho Real, quando el-Rei não estava presente, e, finalmente, foi vedor da Fazenda, e governava o Regno.

Porque foi o mais privado homem que se soube em Portugal com nunca querer mais rendas e ofícios dos que tinha, desprezando mitras (246) e arcebispados e bispados, como foi o de Évora e de Coimbra, contentando-se com uma certa renda, com que se sustenta ainda hoje, como qualquer fidalgo sem pompa e aparatos supérfluos, antes, se, por força el-Rei lhe fazia mercê de alguma renda ou benefícios, ele lhe beijava a mão e mandava chamar os mais pobres fidalgos da Corte e repartia tudo com eles.

Sempre trabalhou por fazer justiça a todos e tratar verdade, sem nunca pedir nada para si, nem para seus parentes, do que foi bem taxado dos que não tinham tão acertada e atentada condição, como a sua, dizendo que pudera poer os seus no mais alto grau que quisera, segundo foi aceito de el-Rei e ele por seu conselho se regia; porém, como pretendia mais quietação que imizades, que de semelhantes casos se seguem, enjeitou tudo, e, sendo lançado de toda a privança e cargos que tinha, sem nele haver nunca deméritos, antes raros serviços e trabalhos passados pelo bem comum da pátria, nunca, nesta volta da fortuna, mostrou sinal de tristeza ou pena de tão inopinado sucesso, que a muitos causou a morte, mas sempre mostrou grande constância e ânimo desprezador de todas as honras do mundo, e, por esta causa, cobrou, então, maior nome e fama e foi mais conhecida sua virtude. Tanto que os povos nas Cortes de el-Rei D. Hanrique (sic) não pediam outro senão Martim Gonçalves para governador e defensor do Regno, pela grande inteireza que tinha na justiça e zelo da pátria; donde está agora com aquilo que dantes tinha, quando não tinha os cargos que apontei, que será pouco mais de seiscentos mil réis de renda, porque, quem de verdade pretende a herança do Céu, pouco caso faz do que a Terra rende. E parece que neste tempo, em que quase todos os mundanos vão por outra via e navegam por diferente derrota, tão Norte Sul desta, achando uma pessoa, como esta, ornada de tantas e tão abalizadas virtudes juntas, ou se pode ter por santo, ou se deve chamar mais homem do Céu que da Terra (247).

Houve mais o capitão João Gonçalves outro filho, que se chamou Rui Gonçalves da (sic) Câmara, que ora é capitão de Ormuz, e o foi de outra parte (248) na Índia, onde fez muitos serviços a el-Rei, principalmente no cerco de Chaúl, sendo Vizo-rei Dom Luís de Ataíde, e capitão da fortaleza e cidade, e da banda do Norte, Dom Francisco Mascarenhas, no ano de mil e quinhentos e setenta, quando o Melique veio cercar Chaúl com cem mil homens de pé e de cavalo; onde levou trinta soldados à sua custa e pelejou mui esforçadamente, defendendo uma estância aos imigos, que se dizia o baluarte de S. Francisco, em que foi queimado de pólvora no rosto e corpo e em uma mão, defendendo seu terço com muito saber e valentia, e tanto confiava o capitão-mor no seu esforço, que, sendo-lhe dito, que os mouros entravam pelo baluarte de São Francisco, que acudisse depressa, e perguntando ele quem guardava aquela

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Oitavo 117

estância, e, sendo-lhe dito que Rui Gonçalves de Câmara, tornou ele dizendo: «ora deixai, que os mouros não são entrados», dando a entender que era tão cavaleiro, que, se entrassem, ele os tornaria a lançar fora, como fez, apesar de seu grado, defendendo sempre a estância mui animosamente.

E, assim ferido, como estava, estando a costa cheia de imigos, porque o cerco era grande, se ofereceu vir em uma fusta dar nova ao Vizo-rei e avisá-lo deste cerco para lhe mandar socorro, como fez daí a poucos dias, não sendo bem são; tornando-o o Vizo-rei a mandar com gente a Chaúl, onde tinham já os imigos tomado a paragem de duas ruas, estando mui abarbados com os nossos, o capitão Dom Francisco mandou ao dito Rui Gonçalves, que fosse fora dar em umas casas de Apolinário Mendes, donde os imigos faziam à cidade muito dano, e saindo com seus soldados na Semana Santa, quinta-feira de Endoenças tomou aos mouros a passagem de uma tranqueira, que era serventia da guarda da artilharia grossa, e, com somente dez ou doze companheiros, que levou, deu neles, entrando-lhe as tranqueiras, que eram por ruas estreitas, e lhe matou obra de quinhentos mouros, todos à espada, tomando-lhe muitas armas e bandeiras e guiões, recolhendo-se a salvo.

E tornou a fazer outros saltos pela porta falsa da sua estância, que tinha no corpo da igreja de São Domingos, em que matou e queimou muitos mouros nas capelas e na outra banda do corpo da igreja (249), donde já os mouros lhe tinham derribado toda a armação; ele a fortificou logo, com uma tranqueira (250) de madeira grossa com entulho, e fez um baluarte sobre a capela-mor, onde assentou duas peças de artilharia, com que fazia muito dano ao imigo, o que ele vendo, mandou passar sobre o dito Rui Gonçalves toda a sua artilharia grossa e o bateu mui de propósito, quebrando-lhe as duas peças de artilharia e dando-lhe tão fortes combates, que, por muitas vezes, ficou tão raso e aberto, que bem podia entrar um grande tropel de gente de cavalo; mas ele se houve tão bem na defensão, que nunca os imigos ousaram entrar, e os seus soldados não podiam já vencer o trabalho, por ser mui grande e rija a bateria que lhe davam, com não dormir as mais das noites, trabalhando de dia, durando-lhe esta bateria por espaço de quatro meses e tirando-lhe com pelouro de cinco, seis palmos de roda, afora outra artilharia miúda.

Além destas coisas, se achou Rui Gonçalves em outras muitas, como quando foi em companhia do Vizo-rei Dom Luís à Costa do Comará, ou Conará, com uma galé de duzentos e cinquenta soldados, à sua custa, e quando o mesmo Vizo-rei cercou a fortaleza de Onor, que tomou, em a qual lhe encomendou uma estância muito perto dos imigos, e dali foi com o próprio Vizo-rei a Barçalor, onde saiu Rui Gonçalves em terra e pelejou esforçadamente com os imigos e ajudou a despejar a fortaleza, que tomou aos mouros, e trabalhou com sua companhia na obra de três baluartes, que o Vizo-rei aí mandou fazer, não despindo as armas de noite e de dia com contínuo trabalho; nos quais serviços e noutros, que a el-Rei fez e faz, mostrou e mostra claramente o grande esforço de sua pessoa, e nas coisas da guerra é tão experimentado, que se tem hoje pelo melhor cavaleiro da Índia, onde ainda dá mostras de seus heróicos feitos. Viu muitos regnos e partes do Mundo, nunca foi casado e ainda vive solteiro em Ormuz, onde serve de Capitão.

Teve mais o Capitão João Gonçalves uma filha, por nome Dona Isabel de Vilhena, que casou com o Almirante de Portugal, Dom Lopo de Azevedo, de quem houve dois filhos, Dom António de Azevedo, que herdou a casa, e Dom João de Azevedo. Outras filhas teve mais João Gonçalves, que foram freiras, Dona Joana de Vilhena, Dona Maria, Dona Filipa, Dona Mécia, todas religiosas no moesteiro de Santa Clara do Funchal, das quais só é viva Dona Mécia, refúgio e empara (sic) deste convento, por sua virtude, prudência e regimento com que o governa, sendo muitas vezes abadessa, com a prelazia da qual o moesteiro é bem regido e abastado, como se vê por experiência.

Houve mais o Capitão outras duas filhas, Dona Margarida, que é freira em Estremoz, e Dona Constança de Vilhena, que não casou e está recolhida no moesteiro de Odivelas, em Lisboa.

Estando o Capitão João Gonçalves de Câmara, terceiro do nome, e dos capitães da ilha o quarto, na mesma ilha, amado e benquisto dos seus e dos mais onde a fama de sua ilustre pessoa alcançava, com seus filhos e filhas vivos, dotados de toda virtude, que parece se não podia desejar mais que o regno da corte do Céu, para o qual houve Deus por seu serviço levá-lo desta vida, em idade de quarenta e sete anos, dos quais governou a ilha oito, faleceu na era do Senhor de mil e quinhentos e trinta e seis, e (segundo afirma) de mal de peste, de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Oitavo 118

que Deus nos guarde, que muito aceso andava no Funchal, de que morria naquele tempo muita gente.

Jaz sepultado no moesteiro de Santa Clara, na capela-mor, com seu pai e avós, em Nossa Senhora de Cima; acompanharam-no em seu encerramento todolos fidalgos, cavaleiros e parentes seus, e os cidadãos e criados de sua casa, e toda a cleresia, o reverendo Cabido e os religiosos de São Francisco, e gram parte do povo, com muitas lágrimas e dor, que cada um tinha pela perda de um tão bom capitão e tão amigo de seus criados e de todos, como ele sempre foi (251).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Nono 119

CAPÍTULO TRIGÉSIMO NONO (252)

DA VIDA E ALGUNS FEITOS DE SIMÃO GONÇALVES DE CÂMARA, CONDE DA CALHETA E QUINTO CAPITÃO DO FUNCHAL (253), SEGUNDO DO NOME, E DE SEU

CASAMENTO

Morto este quarto Capitão João Gonçalves de Câmara, tão ditoso e venturoso em seus esforçados feitos, cujo galardão levou consigo e terá lá no Céu, e com a mui ilustre progénie de filhos tão cavaleiros, sábios e virtuosos, que cá deixou na Terra, seu filho herdeiro, Simão Gonçalves de Câmara, segundo do nome e quinto Capitão da ilha, em idade de vinte e quatro, indo para vinte e cinco anos, indo-se logo para o Regno confirmar na capitania e casar, deixando por seu ouvidor e logotente Gaspar de Nóbrega, foi confirmado nela (254).

No qual ano de mil e quinhentos e trinta e três (sendo seu pai vivo), estando a vila de Santa Cruz de Cabo de Gué, que outros chamam de Guel, em muito aperto, cercada dos mouros que a combatiam, pediu licença ao pai para se achar neste cerco e imitar os altos feitos do tronco ilustre donde procedia e, convocando alguns fidalgos cavaleiros e parentes seus, partiu do porto do Funchal em seis navios, em que levou seiscentos homens para este socorro, todos à sua custa, com muitos mantimentos e gente mui lustrosa.

Chegados ao porto de Cabo de Gué, achou os cristãos mui atribulados do trabalho, que os combates lhe davam, dos mouros, que lhe tinham já morto o capitão da vila, que se chamava Simão Gonçalves da Costa. Porém, com a vinda e socorro do novo Simão Gonçalves de Câmara, cobraram tanto ânimo e esforço, que se deram logo por restaurados e os mouros por vencidos, de quão quebrados tinham os ânimos, porque os imigos, além de terem morto o capitão, tinham derribado um lanço do muro da vila; que, a tardar Simão Gonçalves, tinham as portas da morte abertas e o remédio fechado.

Mas tanto que chegou o novo socorro, como quer que este capitão Simão Gonçalves era mancebo desejoso de se ver em semelhantes recontros, para lustro do que seu coração lhe pedia, com a flor da gente que da ilha levava, arremeteu aos mouros, que logo se afastaram dos muros, sentindo sua vinda. E não somente os fez fugir, senão porque eles tinham feito no pico (que é um padrasto que tem a vila) umas albarradas de pedra ensossa (255), onde tinham assentada a artilharia e trabucos, de que os da vila recebiam grande dano e cruéis mortes, com muito ânimo e valoroso coração arremeteu ao pico com sua gente e desfez as albarradas, pondo tudo por terra e assegurando os cristãos do dano que recebiam; com as quais obras, desesperados os mouros de tomar a vila com tal socorro, alevantaram o cerco e se foram.

Recolhidos os mouros para suas terras, mandou Simão Gonçalves fazer de novo o lanço da vila que estava derrubado, porque logo levou da ilha uma caravela carregada de cal para o que fosse necessário; e, posta em termos de se poder bem defender, se tornou para a ilha, deixando por Capitão da vila de Cabo de Gué a Rui Dias de Aguiar, seu parente, até el-Rei mandar o contrário e o haver por bem, o que sabido por Sua Alteza, aprovou tudo o por ele feito, com que serviu Rui Dias alguns anos de Capitão até el-Rei mandar Dom Gotterres; e estimou este socorro tanto, que escreveu a Simão Gonçalves cartas de muitos agradecimentos, e que seria lembrado de tamanho serviço.

Acharam-se nesta jornada muitos homens fidalgos, nobres e cavaleiros, da ilha, antre os quais foi da Ribeira Brava Manuel de Barros, e Gaspar Vilela, o qual levou neste socorro quinze homens à sua custa (256), onde esteve cinco meses servindo el-Rei.

E nesta companhia foram também Dom João Hanriquez, Simão de Miranda, João Fernandes de Abreu, Luís Dorca (sic) (257), todos naturais da ilha, e por estes serviços que Gaspar Vilela fez neste e em outros socorros, em que se achou (como foi na tomada de Tunes com o Infante Dom Luís no ano de mil e quinhentos e trinta e cinco, e no de trinta e um, quando

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Trigésimo Nono 120

foi a Safim com seu irmão Pero de Vilela, e sendo capitão Hierónimo de Melo, onde levaram sessenta homens à sua custa) lhe fez el-Rei mercê do hábito de Cristo com uma comenda, que lhe rende bem no Regno, que ele bem mereceu por estes serviços que fez à Coroa, onde deu mostras de esforçado cavaleiro.

No socorro de Cabo de Gué foram também com o capitão Simão Gonçalves de Câmara Manuel Bogado (258), Lopo Rabelo (sic) e outros muitos nobres, de que não alcancei saber os nomes.

No ano de mil e quinhentos e trinta e oito, estando este ilustre Capitão Simão Gonçalves de Câmara no Regno por casar, pela fama que corria de sua magnífica condição e heróicos feitos, foi requerido com muitos e grandes casamentos com senhoras de muito estado.

Porém, como ele não queria fazer nada de si sem licença de el-Rei e da Rainha, que o traziam nos olhos, Sua Alteza o casou com Dona Isabel de Mendonça, filha de Dom Rodrigo (259), de Mendonça, Senhor de Moró em Castela, a qual era donzela da Rainha Dona Caterina, e com ela viera a este Regno, a quem amava como filha.

Foi esta senhora dotada de muita virtude (260), e nela doctrinou seus filhos, sendo muito católica cristã, emparo (sic) de muitas viúvas e orfãs, e remédio de muitos pobres. E, porque a Rainha a tinha a seu cárrego e lhe queria muito, a deu por mulher a Simão Gonçalves de Câmara, Capitão da ilha.

E o derradeiro dia de Setembro do dito ano, dia do bem-aventurado São Hierónimo, se fizeram os contratos de seu casamento, e se deu com ela um grande dote, que foi tudo estimado em oitenta mil cruzados, que lhe el-Rei deu em juro e em dinheiro e em ofícios, e, além disso, a casa do dito Capitão fora da Lei Mental duas vezes, coisa que raramente se concede. E aos quatro dias do mês de Octubro do mesmo ano de trinta e oito, em dia de São Francisco, foi o Capitão recebido com ela e trouxe-a para sua casa, acompanhada de toda a Corte, vindo-lhe o Infante Dom Luís à parte direita e o Arcebispo de Lisboa à esquerda, com todos os fidalgos do Regno, que se acharam presentes.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo 121

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO (261)

DO ARCEBISPO E MAIS BISPOS QUE FORAM À ILHA DA MADEIRA E HOUVE NELA ATÉ O TEMPO DO BISPO DOM HIERÓNlMO BARRETO (262)

Neste ano de mil e quinhentos e trinta e oito, porque el-Rei Dom João, terceiro do nome, tinha feito mercê do bispado do Funchal a Dom Martinho de Portugal, e, porque era tanto seu parente, lho deu com título de Arcebispo, por ser também a ilha de grande província de todalas terras descobertas até a China, inclusive, e a esta ilha, metrópole das ditas terras, vinham as apelações e agravos de todalas partes no mar adjacentes.

E, porque havia muito que a sede estava vacante, mandou o Arcebispo, neste mesmo ano, um Bispo à ilha e dois visitadores para visitarem o arcebispado.

O Bispo (que Dom Ambrósio se chamava) crismou e deu ordens e fez todos os ofícios competentes ao cargo pontifical do dito Arcebispo. E, porque ainda neste ano e princípio dele picava a peste na cidade do Funchal, o Bispo Dom Ambrósio saiu e desembarcou com os visitadores (que Jordão Jorge e Álvaro Dias haviam nome) em Machico, onde estiveram até passar o mês de Maio e dia do bem-aventurado Santiago Alfeo, no qual teve Nosso Senhor por bem e seu serviço levantar o mal, por rogos e merecimentos do Santo Apóstolo, sem nunca mais o haver na ilha, como fica dito.

Passado o perigo do mal contagioso, vieram os visitadores à cidade e executaram em toda a ilha seu ofício, não com aquele mimo com que o bispado estava criado, antes com muito rigor e aspereza, porque os calos, que os vícios tinham feito nas almas dos delinquentes, era necessário desfazê-los com a trementina (263) do castigo e não com óleo de brandura e piedade, pelo que estavam malquistos.

O Bispo Dom Ambrósio, antes de um ano acabado, como não teve mais que fazer, foi-se para o Regno, e os visitadores não tardaram muito após eles; porém a caravela, em que ambos embarcaram, se foi perder com eles e os mais, que nela iam, e com quanta fazenda da ilha levavam, na costa de Sines, na ilha Pessegueira, sem escapar viva pessoa.

Todo o tempo que o Arcebispo governou o arcebispado foi mui felice, porque amava muito o seu Cabido e trabalhava pelos acrescentar em rendas e honras e descanso, dando-lhe liberdades e privilégios largos, e constituições compatíveis, reguladas pelos outros bispados; e concedeu aos capitulares três meses de estatuto, que ficou por regimento dos outros bispados, que deste se desmembraram, além de meios dias de barba e dias de hóspedes e lavagens de sobrepelizes, e outras liberdades que gozavam, porque queria o Arcebispo que, ainda que os benefícios fossem de pouca renda (que cada cónego não tinha mais de doze mil réis cada ano), que, no administrar deles e na solenidade e aparato dos ofícios divinos, se regesse tudo pelo melhor e mais nobre arcebispado do Regno (264).

E ainda que haja alguma intermissão de anos, em que aconteceram outras coisas, que adiante contarei, por dizer dos mais prelados todos juntos, sem misturar as coisas sagradas com leigais e profanas, contarei aqui juntamente todos os mais prelados, que à ilha da Madeira foram, e houve e há nela, até o ano presente de mil e quinhentos e noventa (265). E assim ficará dito atrás o que, pela ordem dos anos, se houvera de contar adiante.

No ano de mil e quinhentos e quarenta e sete foi Deus servido chamar para si o Arcebispo Dom Martinho, prelado de tanta virtude e sangue, por cuja morte ficou a sede vacante até o ano de mil e quinhentos e cinquenta e um. E neste meio tempo foram provisores neste bispado, primeiramente, o arcediago Amador Afonso, que o foi dois anos, e depois o tesoureiro Pero da Cunha (266) e o cónego Lopo Barreiros.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo 122

E, logo, no ano seguinte de quarenta e oito, sendo a sede vacante, foi de Canária à ilha da Madeira um Bispo castelhano de anel, que às Canárias fora dar ordens, chamado Dom Sancho, e, porque já havia anos que ao bispado não fora Bispo para crismar e dar ordens e fazer outras coisas necessárias, mandou o Cabido e o convento de São Francisco pedir licença ao Regno para este Bispo castelhano executar nela o ofício pontifical, principalmente para consagrar a igreja do moesteiro do bem-aventurado São Francisco, por ser tão antiga casa e de tanta devação na cidade; a qual licença concedida, deu na mesma cidade ordens a muitas pessoas e correu a ilha toda, crismando comummente a todos os que disso tinham necessidade. O que feito, quando da ilha se foi, por lhe contentar a fertilidade, frescura dela e conversação da gente nobre, foi ter a Lisboa com propósito de pedir a el-Rei aquele bispado, alegando para isso o serviço que nele tinha feito, o que vendo Sua Alteza, e como era castelhano, mandou-lhe satisfazer muito bem seu trabalho e houve por escusada sua petição, visto como não era natural e no Regno havia muitos que o mereciam.

E, porque Dom Gaspar, frade da ordem de S. Augustinho de Nossa Senhora da Graça, era confessor de el-Rei e doctíssimo na Sagrada Teologia, fez-lhe mercê do o fazer Bispo da ilha da Madeira, e neste próprio ano suplicou ao Papa que, por as províncias e ilhas descobertas serem mui remotas daquela ilha, era muito serviço de Deus fazerem em todas estas partes bispos e desmembrá-los do arcebispado da ilha, e que ela ficasse em bispado, como as ilhas dos Açores e a ilha de São Tomé e a Índia. E, porque o Castelo de Arguim estava perto da dita ilha da Madeira mais que de outra parte alguma, que ficasse sujeito ao mesmo bispado com a ilha do Porto Santo, e, daqui por diante, ficou a ilha em bispado da província e metrópoli (sic) de Lisboa, aonde vão apelações dele.

E no ano de mil e quinhentos e cinquenta e dois mandou o dito Bispo Dom Gaspar (que, depois, foi de Coimbra) à ilha, por seu provisor e vigairo geral da vara, António da Costa, licenciado em Cânones, daião que era da ilha Terceira e depois foi chantre do Funchal, e por morte do daião Filipe Rebelo foi daião da mesma cidade do Funchal, servindo sempre de provisor até a vinda do ilustríssimo e reverendíssimo Bispo Dom Hierónimo Barreto, e faleceu na era de setenta e seis (sic); no qual tempo serviu, sempre mui inteiramente o cargo de provisor, visitando por especial mandado dos prelados de seu tempo todo bispado e castigando e emendando os delinquentes com muita prudência, porque era singular letrado, e foi mui temido, e, por essa razão, abstero (267) de sua condição (268).

E, porque o Bispo Dom Gaspar era muito aceito a el-Rei, vagando na era de mil e quinhentos e cinquenta e seis o bispado de Leiria, lhe fez mercê dele e, por sua renunciação, a fez também do Bispado do Funchal a Dom Jorge de Lemos, frade domínico, que dele foi depois tomar posse no ano de cinquenta e oito, que, por haver muito que na ilha não residia prelado, antes ele se podia dizer ser o primeiro que, com verdadeiro nome dele, àquela terra ia, como proprietário.

Foi mui bem recebido e governou o bispado cinco anos, nos quais se houve como prudente e virtuoso prelado, e se soube sair e expedir de muitos trabalhos e enfadamentos, que lhe neste tempo aconteceram, dos quais se desfez com muita sua honra.

Este foi o primeiro Bispo proprietário que foi à ilha e houve de Sua Alteza renda para mestre de capela, que trouxe consigo, em cujo tempo lustrou muito a música naquela terra, porque o Bispo favorecia os cantores e músicos por o ele ser muito de sentido, pelo que fez uns capítulos, para regimento da Sé, dos ofícios de que era mui afeiçoado, e não passava domingo e dia santo que a eles não fosse presente. Fez de novo (para melhor apascentar as ovelhas no grémio e pasto espiritual) na cidade do Funchal duas freiguesias, Nossa Senhora do Calhau, com vigairo e cinco beneficiados e um sancristão (sic) com honesta renda, e outra em S. Pedro (269). E, pela desmembração dos benesses e emolumentos destas freiguesias, houve de el-Rei para o Cabido cinquenta e dois mil réis, com obrigação das missas de todos os dias, que eram da obrigação do daião, que fez dois curas na Sé, com muito boa renda do pé do altar.

Depois de ter postas em boa ordem e reformadas as principais coisas do bispado, como seus espíritos aspiravam a mais subidas coisas, foi-se para o Regno na era de sessenta e três, donde mais não tornou à ilha, assim por que neste tempo vieram os cossairos saquear a terra, como por outros inconvenientes que o moveram renunciar o bispado.

Foi este prelado mui isento de condição e algum tanto áspero dela, por castigar seus súbditos com severidade; porém, sempre fez o que devia, dando o prémio a quem o merecia e castigando os obstinados. Teve grande casa, muitos criados, os quais todos tratava com muita

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo 123

polícia. E, sendo no Regno, o fez el-Rei Dom Sebastião seu esmoler-mor. Renunciou o bispado no ano do Senhor de mil e quinhentos e sessenta e nove. E em quinze de Novembro do dito ano foi a renunciação aceita pelo Papa e, em seu lugar, confirmado Dom Fernando de Távora, também frade domínico, e pregador de el-Rei Dom Sebastião (270).

Consagrado o Bispo Dom Fernando de Távora, ao tempo que devia de ir à ilha, veio não gostar dela, nem dos negócios que lhe cresciam do bispado, por ser de sua condição quieto e dado ao estudo das letras sagradas, criado sempre na quietação e recolhimento de sua cela, pelo que veio aborrecer a gente, e não se sabe, se por esse desgosto, se por, na verdade, carecer da vista, tomou por ocasião dizer que era cego e não se atrevia reger o bispado; e, enfim, veio a renunciá-lo e recolher-se em uma quinta no lugar de Azeitão, afastado do concurso da gente, que ainda lá o buscavam sobre negócios da ilha.

Aceita a renunciação, esteve o bispado assim alguns anos, até que Deus foi servido dar-lhe outro prelado que o governasse: este foi também de nobre geração e clérigo da ordem de São Pedro, como agora direi, por dizer logo de todos os Bispos da ilha neste lugar, já que comecei a falar deles (271).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Primeiro 124

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO PRIMEIRO (272)

DA VIDA E COSTUMES DO BISPO DA ILHA DA MADEIRA, DOM HIERÓNIMO BARRETO (273)

Na era de mil e quinhentos e setenta e três foi consagrado o Bispo Dom Hierónimo Barreto (274) e, como quer que sua virtude era de mais anos que os de sua idade, depois de eleito e despedidas as letras, esperou alguns dias, ou dispensou o Papa com ele na idade, para perfazer trinta anos. E este só argumento basta para julgar o mundo qual era sua virtude, pois, por ela e por seus merecimentos, mereceu ser eleito para tal cargo. E aquele, que não chegava a trinta anos, dava de si mostras, pela prudência e moderação de seu ânimo, gravidade de sua pessoa e, finalmente, pelo exemplo de sua vida, ser homem de cinquenta anos (275).

Este Bispo Dom Hierónimo Barreto era de gente principal dos Barretos do Porto, onde seu pai teve sempre cargos honrosos, assim de el-Rei como da cidade, e a sua família é tida em muita conta, porque o Padre João Nunes, da Companhia de Jesu, e irmão de seu pai, foi coluna da religião e grande servo de Deus, e andou em África em tempo de el-Rei Dom João, terceiro do nome, ocupado no resgate dos cativos, onde os consolava e esforçava. Era letrado e bem entendido e, por sua fama, a instância do dito Rei, foi feito Patriarca do grande reino do Preste com outros dois Bispos da Companhia de Jesu, com o qual patriarcado chegou a Goa, onde, esperando reposta (sic) do Preste, se deteve alguns anos, morando sempre no Colégio com grande exemplo de vida, e, por se dilatar e impedir a ida sua para o Preste, entendendo que el-Rei Dom João o queria fazer Arcebispo de Goa, insistiu muito em o estorvar por todas as vias, dizendo que se aceitara o patriarcado era para trabalhos e martírio, mas que seu intento era acabar em pobreza na Companhia e que per nenhum caso aceitaria arcebispado tão honroso. E assim lhe cumpriu o Senhor seus desejos, porque faleceu em Goa, depois de ter feito grandes obras de serviço de Deus, e deixou grande fama de sua virtude. Este foi o bom tio do Bispo Dom Hierónimo.

Teve também outro tio, irmão de seu pai, por nome Afonso Barreto (276), também sacerdote da Companhia de Jesu, de muita virtude, teólogo, pregador e bom grego e humanista, que na religião teve muito nome e acabou santamente no Colégio de Santo Antão.

Teve também outro tio, irmão de seu pai (segundo minha lembrança), por nome Mestre Belchior, da Companhia de Jesu, homem de grandes letras e virtude, e de bom púlpito, o qual na Índia foi Provincial e, tendo este cargo, foi a Japão, passando muitos trabalhos pelo aumento daquela cristandade, e sempre nos cargos, que teve, mostrou muita caridade e mansidão, fortaleza nas adversidades e zelo das almas, e de todos era mui amado e estimado. Por vezes foi rector e, sendo-o, depois, de Cochim, acabou santamente, havendo muito trabalhado por espaço de muitos anos naquelas partes, de modo que foi uma coluna da Companhia.

Destes bons troncos e progénia (277) veio o Bispo (278) da ilha da Madeira Dom Hierónimo Barreto, de modo que daquela nobre família dos Barretos (se é licito) (279) se pode dizer: O quam pulchra est casta generatio; oh, quão formosa é esta casta geração!

Este Bispo, desde moço, se criou no colégio de Coimbra na doctrina e leite dos padres da Companhia e aí aprendeu o latim, sendo mui casto e recolhido, continuando sempre os Sacramentos com muita devação. Daí se passou aos Cânones, onde cursou alguns anos e se fez bom letrado, sendo mui diligente e curioso; e de todos os estudantes era amado e acatado, por ser afábel (280), alegre e mui honesto em sua conversação e se tratar com muita limpeza e honestidade, dizendo missa, ordinariamente, todos os dias com grande devação; e, sendo el-Rei Dom Sebastião informado de suas letras e virtude e bons costumes, o chamou per carta sua (bem fora ele de tal imaginar) e o nomeou por Bispo da ilha da Madeira, a qual eleição bem

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Primeiro 125

parece que foi de Deus, pelo muito fruto que tem feito; e (como já disse) inda o Papa dispensou com ele na idade para ser Bispo, que lhe faltava um ano, e, contudo, se houve de maneira como Bispo de muita idade na inteireza e prudência, zelo, autoridade e magnanimidade, que sempre mostrou (281). Dele se pode bem dizer aquilo de Salamão (sic) no Livro da Sabedoria, no capítulo quarto: Senectus venerabilis est, non diuturna, nec numero annorum computata, cani enim sunt sensus hominis, et aetas senectutis vita immaculata: «a venerável velhice é não a de muito tempo, nem a contada por número de anos, porque os sentidos do homem são as cans e a idade da velhice a vida sem mácula».

Foi à ilha na era do Senhor de mil e quinhentos e setenta e quatro, em véspera de Todolos Santos, o derradeiro dia de Octubro do dito ano, e achou o bispado, ainda que posto em boa ordem, pela que deixou Dom Jorge de Lemos, não porém naquela que se requere para bom regimento e salvação das almas e proveito dos súbditos, porque lhe faltavam Constituições Sinodais, que é o leme desta nau da Igreja militante e governo dela, as quais ele ordenou e fez com assaz estudo, prudência e moderação, fundadas todas no Sacrossanto Concílio Tridentino e nos Sagrados Cânones, em cuja Faculdade e profissão ele foi assaz perito e eruditíssimo letrado, formado na Universidade de Coimbra.

E, movido mais no serviço de Deus e na salvação das almas e proveito das ovelhas, promulgou as ditas Constituições o ano de mil e quinhentos e setenta e oito (282) juntos todos os vigairos e beneficiados do bispado, presente o reverendo Cabido e beneficiados da Sé. Aos dezoito do mês de Octubro do dito ano se leu no púlpito da Sé do Funchal a primeira sessão e, recebidas, por elas se rege agora ao presente o clero todo e se julga e guarda conforme a elas, que santas e compatíveis são (283). Entrando no bispado, o visitou e reformou com muito zelo e, por ser grande zelador do culto divino, assim da fábrica de el-Rei, como por outras vias e do seu, ajuntou dez ou doze mil cruzados, que empregou todos em ornamentos para a sua Sé e mais igrejas; foi tão inteiro e constante que, pondo o rosto a alguns negócios de pessoas nobres e poderosas, dizendo-lhe: «Senhor, olhe que o podem matar», ele, com muita alegria, respondeu: «Que mor bem-aventurança poderia eu ter, que morrer por fazer o que devo e sou obrigado?» E, como era conhecido (284) este seu zelo e constância, se renderam (285) muito, tendo-o em grande conta e crédito assim eclesiásticos como seculares. Tratava (286) todos como pai, com muita mansidão e caridade. Era (287) contínuo no coro e ofícios divinos, muito largo em socorrer a todo género de pobres, nos quais gastava (288) toda sua renda, de antemão, e ainda do seu património; era (289) grande amigo e favorecedor de clérigos castos e honestos e, se ia algum (290) lá de outro bispado, o retinha com afagos e promessas e logo lhe dava o que pediam, de maneira que era tido por bispo santo; sua casa sem pompa, sua cama como de um religioso, seu trato e serviço muito chão, e os seus andavam de comprido e todos aprendiam. Todos os dias dizia missa com muita devação e era muito devoto e amigo dos padres da Companhia, onde tinha seu confessor e com eles comunicava suas coisas, que era certo indício e sinal de sempre acertar, pois tinha tão virtuosos e letrados conselheiros. Era tão contínuo e devoto este prelado no que tocava seu cargo e ofício pontifical, que mais parecia nos trabalhos companheiro que prelado e senhor; assistia na Sé muitas matinas do ano para ver com os olhos a modéstia e devação com que se rezavam as horas canónicas, na perfeição das quais tinha especial cuidado. Nas festas principais não perdia missa, que não dissesse em pontifical com muito aparato e devação. Não se lhe passava, por negligência, ano que não visitasse seu bispado, pessoalmente, para conhecer suas ovelhas e elas a ele. Ordenou, para melhor serviço da Sé e regimento dela, dois meios cónegos, além dos outros dois meios que havia, e fez um altareiro, para ter cargo dos altares, conforme ao missal novo. Trabalhava em tudo o que podia dar a execução o Concílio Tridentino.

Era muito amigo da virtude e favorecia e fazia mercês a quem a seguia; pelo contrário, aborrecia e castigava os viciosos, não consentindo no bispado pecado público, e trabalhava por desarreigar da terra vícios ou faltas donde procedesse escândalo. Era muito dado às letras e à virtude, certo em suas palavras, honesto em suas obras, brando na condição, amigo de honrosos trabalhos, imigo de ociosos descansos e ia à mão a seus apetites com tanto recado, que não há dúvida senão que tinha um coração velho e um corpo novo, e que, se não tinha cans na cabeça, que as tinha nos costumes; pelas quais obras tinha ganhado grande fama de virtude e santidade, não somente no regno de Portugal, senão nos estranhos, além do que ganhava para com Deus, por cujo puro amor fazia quanto fazia, e de quem esperava de tudo o verdadeiro galardão (291). Pelas quais razões lhe fez Sua Majestade mercê do bispado do Algarve, que depois regeu como sempre governou o do Funchal, enquanto residiu nele; e faleceu santamente (292).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Segundo 126

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SEGUNDO

DA VIDA DE D. LUÍS DE FIGUEIREDO DE LEMOS, BISPO DO FUNCHAL, QUE AO PRESENTE GOVERNA O BISPADO (293)

Quem ouvir o que agora acabei de dizer do Bispo passado cuidará que não se poderá achar outro seu igual; mas, como Deus é todo poderoso e bom, não só para fazer um bom, senão muitos, e nunca deixou o Mundo desamparado de um caudilho que logo o não provesse de outro, como a Adão sucederam os Patriarcas, seus descendentes, de um em outro até Noé, e de Noé seu filho Sem, e dele outros que governaram a Terra, e em sua Igreja Católica Romana, depois de S. Pedro, sucederam outros santos e supremos padres na sua Cadeira, a todas as da Terra superior, assim na da ilha da Madeira, após um bom prelado, pôs outro em nada a ele segundo, de mais experiência no governo e maduro conselho, ornado de outras heróicas e abalizadas partes, como se verá no que dele irei dizendo.

Porque, por renunciação do bispado do Funchal que fez o Bispo D. Hierónimo Barreto, por lhe dar Sua Majestade o do Algarve, lhe sucedeu nele D. Luís de Figueiredo de Lemos, de grandes letras e virtudes, que agora a governa. O qual é filho de Miguel de Figueiredo de Lemos e de Inês Nunes Velha, sua mulher, ambos de ilustre progénia, como contarei, quando tratar da ilha de Santa Maria, donde ele é natural, da qual, inda que pequena, saiu coisa tão grande, como é este senhor, em virtudes, letras e condição, que o extremou Deus para honra e louvor seu e das ilhas todas dos Açores, pois foi o primeiro Bispo natural, que delas saiu e nelas nasceu, tão benemérito do tal cargo e de outros muitos maiores.

Nasceu este senhor na Vila do Porto, da ilha de Santa Maria, em uma sexta-feira, vinte e um de Agosto da era de mil e quinhentos e quarenta e quatro. Antes de seu nascimento, havendo dois anos que sua mãe era casada, por logo não haver filhos, lhe disseram algumas nobres parentas suas que, por ela ser mulher de dias, já não havia de parir, ao que respondeu que não era velha para deixar de parir, e não desejava mais que parir um só filho e fosse Bispo, o que parece que foi profecia ou pronóstico do que havia de ser, pois dali a um ano o pariu. E, ainda que depois houve (afora ele) quatro filhos machos e cinco filhas, todos os quatro, sendo já quase homens, faleceram, um na Índia, em serviço de el-Rei D. Sebastião, de cuja casa era seu moço de câmara, e os outros faleceram na mesma ilha, e uma das filhas; e a ele só guardou Deus para muito se servir dele em muitos cargos, que teve e pode ter.

Sendo este senhor de idade de cinco anos, o pôs seu pai na escola aprender a ler e escrever e, chegando a doze anos, aprendeu Gramática na mesma ilha, com um bom mestre, chamado João Roiz da Veiga, castelhano, e na terra e em Vila Franca, desta ilha de S. Miguel, onde o mestre se passou, aprendeu com ele até cinco anos; sendo de dezassete, se foi a Lisboa, onde aprendeu no Colégio de Santo Antão mais dois anos, em que também ouviu Retórica e Grego, em as quais coisas aproveitou tanto, que levava a seus condiscípulos lugares e prémios.

Dali se passou a Coimbra, onde, ouvindo oito anos contínuos Cânones e Leis, se graduou com grande aplauso dos mestres e doutores daquela Universidade, e fez o auto da aprovação em lugar do licenciamento, conforme aos estatutos da Universidade; e os tais gozam dos mesmos privilégios e acabam o estudo; esta ordem têm quase todos, senão (294) os que são muito ricos ou querem seguir as escolas, que (?) gastam mais tempo e dinheiro nos graus.

Antes de tomar ordens, depois de ele ter tomado o grau de bacharel em Cânones, aquelas férias foi a Lisboa. E pousando com D. Luís Coutinho, filho de D. Francisco Coutinho, Comendador que ao tal tempo era da ilha de Santa Maria, muitas vezes, como ele era seu parente, latino e curioso, tratavam nas letras e em seus negócios e, como D. Luís via que ele já era bacharel e dizia que havia de ser clérigo, pareceu-lhe que errava e que melhor era ser leigo

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Segundo 127

e servir a el-Rei, tratando de o persuadir muito a isso, pelo que lhe desejava, e, antre outras muitas rezões (sic), dizia que, sendo leigo, tinha mais certo o caminho de valer e ter bem de comer, por, como ele era homem de qualidade, el-Rei se havia de servir dele logo e chegaria a ser Desembargador do Paço, pois esta via era corrente e certa em tais pessoas, mas por clérigo tudo era mais duvidoso, e que não lhe negava que poderia ser bispo, mas já aqueles quinze anos o não podia ser. Puderam tanto as rezões de D. Luís, que lhe tirou a determinação de ser clérigo e ficou nisto perplexo.

Assim tornou para Coimbra e chegou a escrevê-lo a seu pai, o qual, vendo isso, o reprendeu (sic) grandemente por carta, e com isto se resolveu; antes da reposta (sic) de seu pai passaram muitos meses, nos quais encomendou a Deus o negócio, pedindo-lhe que o determinasse no que fosse mais seu serviço, tomando a S. Pedro por intercessor, e todas as vezes que ia por onde estava sua imagem, como passava muitas pelo Colégio de S. Pedro, cuja imagem está em cima da porta, ainda que fosse com estudantes, depois de tirar o barrete, interiormente lhe fazia oração, pedindo-lhe que inspirasse nele se havia de ser de sua Ordem; daí a poucos tempos, com isto e com a carta de seu pai, se resolveu firmemente e tomou ordens de Epístola; parece que foi inspiração do Santo, porque logo teve sua igreja e sempre usou da jurdição sua, e, depois da igreja de S. Pedro, foi para a do Salvador, e da do Salvador foi para a de Nossa Senhora da Assunção, de que é a advocação do Funchal, como é o orago da igreja de Santa Maria, em que foi baptisado.

Há se de notar que este senhor, estando em Coimbra já bacharel, antes de ter de todo acabado o estudo, tendo el-Rei D. Sebastião encomendado ao Bispo D. Gaspar de Faria que buscasse um homem para a ilha de S. Miguel, em que estivera para a dividir do bispado de Angra e fazer dela uma administração, por importar muito o governo dela, estimulado o Bispo de el-Rei, por cartas, que provesse de quem governasse esta ilha, mandou saber a Coimbra que estudante canonista haveria lá do bispado que servisse; apontaram-lhe nele, pela fama que corria de suas letras, virtude e bom exemplo, com que todos e mui graves letrados afirmavam que havia de fazer muito fruto na Igreja de Deus; mandou-lhe pedir, então, que quisesse ir para a dita ilha, fazendo-lhe grandes promessas, no que ele se não resolveu; e alguns seus mestres o tiravam disso, que não viesse às ilhas, pelo concepto que dele tinham.

Estando a coisa nestes termos, escreveu-lhe seu pai que se ordenasse, pois já era agraduado, para o que fez em Coimbra papéis de vita et moribus, autorizados com testemunhos de alguns dos seus mestres, e os enviou a seu pai, para mandar pedir ao Bispo reverendas para todas as ordens.

Sucedeu que vindo os papéis ter a esta ilha de S. Miguel em tempo que aqui estava o Bispo, seu pai se achou na Ponta Delgada, também, e falou ao Bispo mostrando-lhe os papéis. Como o Bispo entendeu que ele era o seu filho, de que tinha informação, e mandando pedir o acima, folgou muito e logo chamou o escrivão da Câmara, mandando-lhe que passasse reverendas para todas as ordens; e, praticando mais com seu pai, lhe descobriu sua tenção, pedindo-lhe que lhe escrevesse que viesse. Respondeu que não lhe parecia teria efeito, porque seu filho havia de ficar no Regno, por um seu tio, seu irmão António de Lemos, Prior de Recardães, desejar de lhe dar as suas igrejas; e também ele queria que seu filho servisse a el-Rei, como seus avós, mas que não deixaria de lhe escrever, agradecendo-lhe tudo.

Vendo o Bispo a dificuldade de seu pai, depois mandou ao escrivão da Câmara que fizesse as reverendas para ordens de Epístola e Evangelho somente, e que as de missa reservava, assim por justos respeitos, serviço de Deus e descargo de sua consciência; tornando seu pai ao outro dia visitá-lo, lhe tornou o Bispo a encomendar que lhe escrevesse; e, dando-lhe o escrivão da Câmara as reverendas para Epístola e Evangelho somente, queixou-se, dizendo que o Bispo mandara que as fizesse para todas as ordens, e tornou ao Bispo, o qual lhe disse que, para seu filho vir, tornara a mandar aquilo; desta maneira lhas enviou, e tomou ordens de Epístola em Portalegre do Bispo D. André, e tornou a Coimbra concluir seus autos, donde aquele verão se espediu (sic) com tenção de não vir às ilhas, e requerer despacho.

Era já a armada partida e, chegando a Lisboa, a achou arribada; ali, dois seus parentes lhe persuadiram que viesse com eles ver seu pai e mãe, e que tornaria nela; dando conta disso a D. Luís Coutinho, que morreu com el-Rei D. Sebastião, pareceu-lhe bem, encomendando-lhe que tornasse logo, para requerer; e, vindo à Terceira para se ordenar e agradecer ao Bispo a vontade que tinha de lhe fazer mercê, estava esperando ainda por ele. Então o mandou a esta ilha de S. Miguel, havendo um ano que esperava com a igreja de S. Pedro, da cidade da Ponta

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Segundo 128

Delgada, para lha dar, como deu, e o fez juntamente Ouvidor do Eclesiástico de toda a ilha, dizendo-lhe que el-Rei lhe tinha encomendado esta ilha e que buscasse um homem de confiança que a governasse, fazendo-lhe o Bispo muitas promessas e abundâncias.

Depois do Bispo D. Gaspar de Faria falecido, tornou a Lisboa, onde tomou ordens de Evangelho e missa e, vendo-o, algumas pessoas graves disseram que havia de montar muito. Falou a el-Rei D. Sebastião, pedindo-lhe que o tomasse por seu desembargador, por ser homem letrado nobre, e que seus avós sempre o serviram; remeteu-o ao doctor Paulo Afonso, ao qual deu seus papéis; saiu com despacho, em que o tomou Sua Alteza por seu capelão; com o melhor foro da Casa do Rei e com a maior moradia costumada, s. (295) mil réis por mês, alqueire de cevada por dia, uma vestiaria cada ano.

Foi-se depois a Coimbra e a visitar seu tio; estando lá, teve recado que em Lisboa se tomava secreta informação dele por mandado de el-Rei; tornou a Lisboa, falou ao licenciado Marcos Teixeira, porque lhe disseram que isto correu; disse-lhe que falasse ao doutor Paulo Afonso, e que havia boa informação e el-Rei se queria servir dele; foi falar a Paulo Afonso; disse-lhe, depois de outras palavras, se queria passar o mar, a servir a el-Rei, e, como ele não sabia o que era e aquilo se lhe perguntava confusamente e de repente, interiormente sentiu uma grande repugnância, e, assim, respondeu com uma velocidade e veemência não costumada que, se fosse para passar o mar longe e passagens perigosas, por nenhum modo iria, mas, para perto e sem perigo, o faria (representando-se-lhe logo nesta reposta a ilha da Madeira, aplicando-se-lhe a vontade a isso, quase pronosticando o sucesso (296)). Tornou-lhe Paulo Afonso: «Como é passar o mar, logo é perigo.» Disse ele: «Para perto não». E vendo sua repugnância, disse que se ofereceria outra coisa coisa (sic) (297). Depois se soube que era inquisidor da Índia, porque el-Rei queria mandar dois, e ele fosse o presidente, se quisesse ir; e assim era rezão.

Correndo alguns dias, lhe tornaram a dizer, pois não queria ir para a Índia, que para o Regno era necessário, e assim estava assentado. Continuou com Paulo Afonso, que tinha dele grande concepto, o qual daí a dias lhe mandou recado que se detivesse e, falando-lhe, disse que esperasse certos dias, porque tinha mandado recado e escrito sobre ele ao Cardeal D. Henrique, lnquisidor-mor, que ao tal tempo estava em Évora, e levara as cartas um Manuel Antunes, secretairo do Conselho Geral da lnquisição, e lhe encomendara a brevidade da reposta.

Esperou aqueles dias e outros tantos. Continuando com Paulo Afonso, dizia-lhe que não podia tratar, que esperasse, e, tardando e fazendo-se prestes a armada, se determinou mais na resolução e importunou a Paulo Afonso que o deixasse vir, por lhe revelar a vinda, e que Sua Alteza lhe desse licença para isso e o despachasse como a quem tornava, porque a armada estava de partida e depois, sem ela, não poderia vir, e que aviaria seus papéis, e, se, entretanto, viesse recado do Cardeal e ele fosse necessário, deixaria tudo e faria o que Sua Alteza lhe mandasse.

Com esta rezão se aquietou Paulo Afonso, persuadindo-lhe que não tornasse para as ilhas, que o despacho que el-Rei lhe queria dar importava mais, repetindo isto três vezes, tornando-lhe que assim o faria, mas que queria estar aviado. Então, o despachou el-Rei, mandando-lhe, por sua provisão, que levava gosto de tornar a servir em S. Miguel enquanto o bispo (298) estava vago, e que lhe faria mercê cada vez que lha pedisse, havendo respeito à boa informação que tinha dele. Então, lhe disse Paulo Afonso que importava muito o governo desta ilha e que el-Rei estivera para fazer nela uma administração; desta maneira houve licença e despacho para tornar, com a condição acima de fazer o que Sua Alteza mandasse, antes que a armada fosse partida.

O Cardeal não mandava reposta, porque estava para vir a Lisboa espedir-se de el-Rei, que ia para África, e, tendo seu fato embarcado e a armada prestes, chegou o Cardeal a Enxobregas, um dia à tarde; ao outro, às onze horas, havendo somente meia que lhe estava embarcado, com o Capitão de Santa Maria, Braz Soares de Sousa, e, para dar a armada à vela, chegou ao navio recado de Paulo Afonso que não se embarcasse e lhe fosse falar às duas horas, mas, como ele já estava daquela maneira e para dar à vela a armada, seu fato e moços embarcados, teve conselho que respondesse como já por então, não era possível e que depois tornaria, porque lhe diziam que era mais sua honra tornar chamado. De todos estes sucessos escapou por vir governar as ilhas; parece que Deus assim o queria, e se servia disso.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Segundo 129

Escusando-se assim, por temer viagem tão comprida e perigosa e não contentar a seu pai e mãe, que o queria ter mais perto, se tornou para esta ilha de S. Miguel com a igreja e ouvidoria, que dantes tinha; os quais cargos serviu tão bem e com tanta inteireza e prudência, que, provido o bispado do Bispo D. Pedro de Castilho, merecedor de grandes coisas, estando na cidade de Angra e vagando a dignidade de adaião, o mandou chamar e lha deu, mandando-lha negociar a Portugal e a Roma.

Estando com esta dignidade, passou o Bispo D. Pedro a visitar a esta ilha de S. Miguel, trazendo-o consigo por seu visitador e, visitando esta e a de Santa Maria, se cerrou a ilha Terceira e alterou por parte de D. António, pelo que não puderam tornar a ela. Então o fez o Bispo seu vigairo geral e provisor e, depois, indo-se para o Regno, Governador do bispado, com aprovação de Sua Majestade, porque, sendo eleito o Bispo D. Pedro para Leiria, tinha el-Rei ordenado que se pedisse provisão ao Papa para ele gorvernar o bispado de Angra Auctoritate (299) Apostolica. E, porque depois sucedeu eleger Bispo de Angra, cessou isto e, quando o Bispo D. Pedro de Castilho se quis ir para o Regno, ele lhe disse que também queria ir com ele, e o Bispo lhe tornou que não podia ser e que um deles havia de ficar no bispado. O qual cargo de governador teve algum tempo nesta ilha de S. Miguel, até que se passou à ilha Terceira, depois de ser tomada pelo Marquês de Santa Cruz e reduzida ao serviço de Sua Majestade.

E lá governou também o dito bispado com cargo de provisor e vigairo geral, com tanta prudência, saber, mansidão, antre o golfo de tantas alterações e contendas, assim no eclesiástico como no secular, que, correndo a fama de suas coisas tão bem feitas e acertadas, logo no Maio seguinte teve avisos, por duas ou três cartas do Bispo D. Pedro de Castilho, que Suas Majestade e Alteza estavam bem informados dele e que se apercebesse que havia de ser cedo chamado para coisa de honra e proveito, e, quando foi aquele ano a armada em que vieram os frades tomar as casas pela Observância, tornou-lhe o Bispo a escrever que lhe parecia que Sua Majestade o mandava chamar naquela armada e, se não fosse, assim devia ser quando viesse o Bispo de Angra, que se esperava vir de Setembro por diante, e que estivesse aviado para ir na embarcação em que ele viesse.

Dilatou-se a vinda do Bispo, dilatou-se chamarem-no, em Portugal se suspeitou que era para o Bispado de Cepta (300), que estava ao tal tempo vago; sucedeu apropinquar-se a vacatura da do Funchal e nele a proveram, porque entendo que Deus quis antes que ele o fosse governar, para melhor o servir e salvação de sua alma e de suas ovelhas.

Também o Arcebispo de Lisboa, D. Jorge de Almeida, que Deus tem, inquisidor-mor, tinha dele informação e notícia, e no tempo acima, quando ele estava em Angra, soube que determinava de o chamar para a lnquisição, se se não metera em meio o provimento que el-Rei fazia do bispado; e, então, lhe mandou Sua Majestade do Reino a eleição do dito bispado do Funchal, e foi chamado, para se mandar confirmar por Sua Santidade.

Partiu da cidade de Angra no mês de Agosto para Lisboa, embarcado na armada que vinha da Mina, de que era capitão-mor Bernardim Ribeiro Pacheco, e, chegado ao Regno, foi recebido com muitas honras do Cardeal e dos Senhores do Governo, que, com muito aplauso, tratavam todos suas coisas; quando foi beijar a mão ao Cardeal, lhe mostrou Sua Alteza (301); folgou muito com sua vinda, dizendo-lhe que Sua Majestade estava informado de como havia procedido em seu serviço.

Foi este senhor eleito Bispo do Funchal no mês de Março de oitenta e cinco; partiram suas letras para Roma a cinco de Outubro do dito ano e chegaram a Lisboa a cinco de Março de oitenta e seis; mandou-lhas o secretairo de Sua Majestade, Lopo Soares, dia de Cinza da mesma era, estando ele ao ofício em Santa Catarina de Monte Sinai. Consagrou-se Domingo da Rosa, que é o quarto da Quoresma (sic) da mesma era, no mosteiro da Trindade, em Lisboa, sendo de idade de quarenta e um anos e seis meses, a qual ofício esteve muita gente e durou muito tempo, por ser grande. Consagrou-o o Bispo daião da Capela de el-Rei, D. Manuel de Ciebra, Bispo que foi de Ceita (sic) e ora é da Capela, e deputado da Mesa da Consciência; um dos padrinhos foi o Bispo novo de Ceita, D. Diogo Correa, cunhado do secretairo Lopo Soares; o outro padrinho foi o Bispo Zelandês, que há muito tempo está acolhido de sua terra neste Regno. Deu de jantar a mais de cento e cinquenta pessoas, no que tudo houve muita abastança de todo género de pescados e esquisitas (sic) manjares e muitas coisas doces; juntou ali D. Jerónimo Coutinho, Comendador da ilha de Santa Maria, que foi por capitão-mor da armada da Índia o dito ano de oitenta e seis, e D. Afonso de Noronha, filho de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Segundo 130

Dona Joana de Vilhana (sic), filha de Dona Filipa de Noronha, e D. Jerónimo Lobo, e D. Manuel de Castro, e outros fidalgos, em que fez muito custo.

Mandou procurações para tomarem por ele posse do bispado ao adaião Dom Francisco Hanriques, pessoa de muito ser e nome, e em sua absência, ao doutor Gonçalo Gomes, mestre-escola da Sé, teólogo de boa doctrina e exemplo, que servia de provisor; partiram os papéis de Lisboa domingo de Pascoela, chegaram o sábado seguinte ao Funchal, logo ao domingo de Pastor Bonus, antes da terça, junta toda a cidade, por o adaião estar enfermo, tomou o dito mestre-escola a posse, no qual dia se celebrava na mesma Sé a festa da Encarnação de Nossa Senhora.

Depois de consagrado, o mandou Sua Alteza fazer o ofício na Capela domingo de Ramos, em pontifical, e mesmo fez quinta-feira de Endoenças e dia de S. Pedro e S. Paulo, vinte e nove de Junho. Foi despachado com setecentos cruzados para ajuda de suas letras e sagração e, acrescentando o bispado e bem favorecido em tudo quanto pedia, partiu de Lisboa um domingo, vinte e sete de Julho de oitenta e seis, em companhia da armada, na zabra Júlia, que Sua Alteza mandou aparelhar bem para o levar, acompanhado também de outro bom navio armado, por nome Santo António, bom de guerra, e com bonança, mas não sem algum perigo de cossairos, que ao redor da ilha da Madeira andavam; chegou a ela a quatro de Agosto, véspera de Nossa Senhora das Neves. Tanto que na cidade do Funchal se soube de sua chegada, quebravam os sinos com repiques, e alvoroçaram-se os corações de todos para receberem um tão excelente prelado.

O Capitão-geral da Guerra, Tristão Vaz da Veiga, ilustre fidalgo, de grande nome e fama nas armas, que já governou a Malaca, Capitão que ora é da jurdição de Machico, com João de Aranda, Capitão da Fortaleza e dos soldados espanhóis, que nela estão, varão de muito ser, esforço, nobreza e brandura, foi logo a bordo, alcatifado com muitos barcos, em que ia muitos fidalgos da terra, e no mar lhe beijou a mão, e o mesmo fez o Cabido e toda a cleresia e homens nobres; e, por ser antes do meio-dia, para dar lugar a que todos fossem comer, deferiu o senhor Bispo sua saída para depois de véspera, no qual tempo o Capitão da Guerra mandou fazer muito aparato de fogo e armar soldados para o recebimento, que foi feito às quatro horas depois do meio dia, com tanto estrondo de bombardas das fortalezas, arcabuzes e mosquetes dos soldados, repiques das igrejas e folias do povo, que parecia a máquina do Mundo arruinar-se.

Saiu este senhor, vestido de chamalote de águas, com seu roxete (302), grave e bem assombrado, na praia, nos Varadouros, onde o estavam esperando o Cabido e a Câmara, preparados com solene procissão; logo, na borda do mar, foi lançada uma rica e grande alcatifa e sobre ela um cochim de veludo verde, sobre o qual se pôs de giolhos para adorar a Cruz, que o adaião da Sé lhe ofereceu a beijar. Depois de feita esta cerimónia, foi recebido do Capitão-geral e da Câmara, cujos Juízes e Vreadores (sic), como se fora procissão de Corpo de Deus, se acharam com varas (inda que não todos, porque eram alguns dos oficiais fora da cidade e não souberam o tempo da chegada). Depois de agasalhar benignamente a todos, foi ele recebido debaixo de um rico pálio de brocado, cujas varas levavam os reverendos dignidades da Sé, por se não devertir (303) a ordem da Câmara, que levavam varas vermelhas da governança. Nesta ordem, com este solene aparato e honrosa procissão de graves e reverendos sacerdotes e bizarros soldados, que em fileiras, adiante, iam tirando as munições de fogo, com muito concurso de gente e aplauso de todos, que em vozes altas diziam: «Por bem seja chegado tão ilustre Prelado», com as sonoras vozes da cleresia, que, cantando, diziam: «Sacerdos, et Pontifex, et virtutum Opifex, Pastor bone in populo, ora pro nobis Dominum (sic)», e com música e psalmos, indo detraz dele o Capitão-geral Tristão Vaz da Veiga, o levaram à Sé, à porta da qual estava já revestido o adaião com capa de brocado, hissope de prata na mão, e o tesoureiro com turíbulo dourado com incenso. Da mão do adaião tomou o hissope e, lançando primeiro a si próprio água, depois a lançou ao povo, que cercado o tinha, e, benzendo o incenso, foi incensado, e na mesma ordem, chegou ao coro do altar-mor, que todo estava ornado de seda, e o provimento (sic) alcatifado; sobre isto uma cadeira de pontifical, de brocado, ante a qual estava um estrado de cochins de veludo cremesim, onde se prostrou de giolhos, adorando o altar; e, cantada uma antífona, disse o adaião a oração acostumada e ele a oração da festa das Neves, e, acabada, deitou a benção ao povo solenemente; depois se assentou na cadeira dourada, onde veio todo o Cabido por suas antiguidades, começando do daião, e todos os capitulares lhe beijaram a mão, e a mais cleresia, por sua ordem, reconhecendo-o por prelado e o senhor (sic) visitou a capela do

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Segundo 131

Santíssimo Sacramento e, acabado isto, foi levado, e acompanhado do Capitão Tristão Vaz da Veiga e do capitão da Fortaleza e vreadores, com muito concurso de povo, às suas pousadas, que tomadas estavam na rua das Pretas, ornadas com rica tapeçaria e guodemecis (sic) (304), onde ficou agasalhado.

Foi visitado primeiro do vigairo do Calhau e seus beneficiados no dia seguinte de Nossa Senhora, e, logo, do Cabido, depois, da Câmara e seculares e da cleresia e nobres das vilas e lugares de toda a ilha; a todos fez muita honra, como pai e senhor tão benigno. Afirmam muitos e apregoam que cedo terá outros maiores cargos, que merece.

Logo, dia de Nossa Senhora da Assunção (orago da Sé) disse missa em pontifical, com que o povo se alegrou muito, recebendo sua santa e episcopal bênção.

Todos (por sua boa condição, virtude, saber e experiência) conceberam dele grandes e certas e não fructadas (sic) esperanças: os trataria como filhos, porque tem tanta providência nas coisas, que nenhuma das que releva lhe fica por alto que logo não proveja; testemunho dá disto verdadeiro levar ele consigo, quando foi para o bispado, a bula da Cruzada e um físico (305), para que, assim como ele ia por médico das almas, o tivessem também do corpo, coisa que outros prelados não fizeram.

Depois de chegar ao bispado, o terceiro domingo daque Advento, que se seguiu, fez a primeira pregação, tomando por tema: Confessus est, et non negavit. E prega muitas vezes, com grande erudição e zelo da salvação das almas.

Um domingo da procissão do Santo Sacramento, trinta e um de Maio de oitenta e sete, pregou altamente na Sé, em que mostrou sua rara habilidade, e, geralmente, foi louvado de todos e, no remate, acompanhado até suas pousadas do adaião, mestre-escola, cónegos, capelães e outros.

No exame dos ordenantes, pela Trindade, em que foram juntos o doutor mestre-escola, o licenciado Baltazar Pardo, vigairo-geral, e o licenciado Arais (sic), em que houve assás de argumentos antre todos, inferidos do mesmo exame, em todos a resolução deste doctíssimo prelado foi seguida e confessada por eles, dizendo que aos prelados, que são príncipes de Deus, lhe são comunicadas as coisas sobrenaturais, quando convém.

Acomoda-se a seus súbditos e eles lhe têm muita obediência e, pela boa ordem que tem em proceder na correcção das vidas e costumes, monda as silvas, que acha em seu bispado, com pouco trabalho. Logo como chegou à ilha, foi ver o bispado e proveu em algumas coisas tocantes aos ornamentos das igrejas; depois visitou e fez a devassa geral com muita inteireza e suavidade, levando consigo, e assistindo com ele, o doutor Gonçalo Gomes, mestre-escola, pessoa exemplar e de muitas letras, que serviu de provisor e foi visitador do Bispo passado, e agora é seu.

Por não achar penitenciária na Sé, como chegou, pediu a Sua Majestade licença para a criar, conforme ao Concílio Tridentino, e anexar ao mestre-escolado, nomeando logo nela ao dito doutor mestre-escola, por suas letras, virtude e exemplo; e foi assim despachado e provido e por ele confirmado.

Quando veio ao bispado, por ser antigo e de tanto nome, e em que houve prelados tão insignes, pareceu-lhe que estivesse ocioso, mas achou-se enganado, por o estado das coisas não ser o que convinha; primeiramente, achou acanhada a justiça eclesiástica e com pouco uso e ordem judicial, no que logo entendeu, trabalhando de a pôr em seu lugar devido, confirmando-a com regimentos doctos e estatutos necessários, que fez e compôs em cinco meses o melhor que pôde, conforme a direito e experiência, que tinha, e haviam em outros bispados; e assim fez in praticando, e seguindo-se a ordem judicial igualmente em todos os que, por provimentos de devassas de visitações, se livravam; parecia isto ao princípio agro e novo, mas cumpriu-se, e já parece bem, e foi de muito efeito, porque com isso houve grande reformação na justiça e costumes.

Também não havia no bispado ouvidores, como antigamente houve, e tudo ocorria ao provisor e vigairo-geral, e, por ser a terra grande e dificultosa, das partes remotas poucas pessoas se atreviam a ir requerer justiça, principalmente em casos leves, e também poucas vezes a experimentavam; pelo que criou na ilha duas ouvidorias, com seus territórios e oficiais necessários, uma em Machico e Santa Cruz, outra na Calheta, outra na ilha do Porto Santo, e a do Castelo de Arguim, que já havia.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Segundo 132

Por ser necessário e achar faltas em os modos de visitarem os visitadores, fez para isso particular e novo regimento, com seus títulos divididos, em que estão cifradas todas as constituições e estatutos tocantes a obrigação da administração dos sacramentos, e as mais que têm o clero e mistros (sic) eclesiásticos e ouvidores em suas ouvidorias, por bem das almas e bom governo das igrejas e fregueses.

Não achou em as igrejas do bispado livros de provimentos de visitações, como é costume em os bem governados, nem havia esse modo de prover em as coisas, e assim eram as visitações de pouco effecto, principalmente para a temporalidade das igrejas e coisas pertencentes ao culto divino, do que estavam muito faltas, e não obrigavam aos administradores a proverem com o que deviam em suas capelas e altares. Pôr isto em ordem e reduzi-lo a estilo custou muito trabalho.

Todas as igrejas do bispado visitou pessoalmente, e nelas deu livros de visitações, e proveu nelas com estatutos gerais e particulares, em que se acudiu aos descuidos dos rectores (306), ao bem das almas, aumento do culto divino e coisas a ele pertencentes, e a autoridade e respecto (sic) dos ministros, e outras coisas muitas necessárias, e alguns abusos dificultosos de extirpar, que se vão reduzindo a bom uso com alguns modos. Como a terra e a gente dela foi tão abundante e poderosa, e houve nela pouca residência de prelados, não é muito isto. Os seus antecessores, que nela foram, fizeram um pedaço e o que puderam.

Muitas igrejas fez acrescentar e reformar, por estarem arruinadas, e assim de muito tempo introduzir em obrigação dos povos isto, com effecto é costa arriba; ofício de executor, das visitações sobre as coisas de reformação das capelas, sancristias e outras, tocantes à obrigação de Sua Majestade, e fábricas, porque, sem esta ordem, nada se fazia, nem executava, e estavam as coisas em um infelice estado em as igrejas remotas e de montes; e assim tem isto quase reformado e recuperado, e provido de ornamentos, abundantemente, as igrejas de fora e, por ordem das suas visitações, são passadas de Sua Majestade muitas provisões per retábulos, sanchristias e algumas capelas, que não havia em muitas igrejas.

Quando foi ao bispado achou muitas igrejas, paróquias dos montes, sem pastores próprios, e de muitos anos algumas, porque, por sua pobreza, as não queriam aceitar os que as mereciam, e assim, como rejeitadas, se serviam por curas mercenários, os quais, como as haviam de deixar e andavam ao que melhor lhes vinha, procuravam proveo (sic) pelo bem delas, ao que acudiu, tanto que chegou, lembrando-lhe aquilo do Evangelho: bonus Pastor ponit anima sua pro ovibus suis, mercenarius autem videt lupum et fugit; e com brevidade as proveu de próprios pastores, com desenganos e promessas de lembranças, com o que se entenderam todos; e, logo na primeira visitação, tratou das necessidades e pobrezas delas e das mais semelhantes do bispado, e, por ordens e bons modos, que considerou, acrescentou um pedaço em os ordenados, que Sua Majestade, per suas visitações, mandou prover assim e fez mercê, com o qual acrescentamento as rejeitadas são já cobiçadas de muitos, e outras semelhantes o mesmo. Com isto se restauraram vinte quatro freguesias, das pequenas, e se acudiu ao bem das almas dos fregueses, e nas mais delas obrigou fazer casas aos vigairos, para melhor residência e perpetuação, de maneira que o prelado, que dantes rogava com elas, agora é rogado; e ia-se perdendo em os clérigos a curiosidade de saberem casos, tão pouco se lhe dava das igrejas; agora, com isto e seus espertos, que, como vigilantíssimo pastor, faz com viva eficácia e grandíssimo zelo da honra de Deus e salvação de suas ovelhas, há um grande geral cheio que os continuam (sic).

A igreja de S. Pedro da cidade criou em a igreja parroquial, e colegiada, e quatro beneficiados, com seu vigairo e um coadjutor, com vinte mil réis de ordenado em cada um ano. Já assim se serve. E em a igreja colegial de Nossa Senhora do Calhau acrescentou mais dois beneficiados, porque tinha quatro somente, coadjutor com os mesmos vinte mil réis; e em as vilas, que não tinham coadjutores, criou quatro, com o mesmo ordenado, e acrescentou o de certos ministros da Sé e de outras igrejas, e vou (sic) (307) provendo em os mais que têm necessidade.

E, pelo descuido que achou em os curas e rectores no vigiar sobre suas ovelhas e saber de suas vidas, proveu, com estatuto e capítulo de visitação geral em as freguesias da cidade e vilas e lugares grandes, que cada mês, e nas freguesias dos montes de três em três meses, se informassem e corressem as ruas e soubessem por bom modo dos pecados públicos, e, chamando as tais pessoas, as repreendessem e admoestassem como pastores e curas de suas almas, e dos que publicamente perseverassem, passassem certidão, com os nomes das

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Segundo 133

testemunhas que do caso soubessem, e a enviassem ao provisor, para sobre isso prover, e que no fim do mês, ou dos três meses, lhe fizessem certo, por sua carta, do estado das coisas. Vai isto montando muito; deixo continua (sic) esmolas, que faz, e outras muitas coisas que pudera dizer, todas de muita importância para bem das almas e do culto divino, antre elas era a do efeito de suas visitações e execução delas em a reformação dos costumes, o que tudo se deve atribuir à graça, misericórdia e bondade de Deus, que tal prelado criou para bem de seus povos.

Da ilustre progénia deste senhor direi adiante, quando tratar da ilha de Santa Maria, sua natural pátria, onde recitarei um capítulo, que dele despois, por alto estilo, com contraponto deste meu cantochão, compôs o doctíssimo doutor Daniel da Costa, médico de Sua Majestade, pessoa nobre, de grandes letras e virtudes, residente na cidade do Funchal, para maior clareza da fidalguia, vida, virtudes e costumes do mesmo senhor.

Pelas quais coisas, a ilha da Madeira se pode, antre todas as outras ilhas do mar oceano ocidental, com verdade engrandecer, gloriar, jactar, e dizer que, assim como é extremada em tudo, assim tem pastor extremado, e todos os bens temporais e espirituais lhe foram concedidos de Deus com tão insigne prelado, que viva muitos anos para glória do mesmo Senhor, que lho deu, e bem e salvação sua e de seus súbditos (308).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Terceiro 134

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO TERCEIRO (309)

DE OUTROS HONROSOS FEITOS DO CAPITÃO SIMÃO GONÇALVES, CONDE DA CALHETA, E DOS FILHOS QUE TEVE (310)

Tornando a continuar a história do capitão Simão Gonçalves, que ficava casado em Lisboa, segundo tenho dito, logo no ano de mil e quinhentos e quarenta e um tornaram os mouros cercar a vila de Cabo de Gué, não estando este capitão na ilha, porque neste tempo se fazia prestes para vir a ela com sua mulher e um filho, que já tinha, o herdeiro da casa, como veio logo no ano seguinte.

E, porque os capitães e naturais da ilha eram acostumados serem os primeiros que acudiam aos cercos e trabalhos de África, ordenou-se, em ausência de seu Capitão, uma caravela, em que foram muitos e bons cavaleiros e homens nobres da terra, antre os quais foi Francisco de Betancor, natural desta ilha de São Miguel, com outros seus primos e Gomes Ferreira (311). E desta vez foi Deus servido (por desordem do capitão Dom Guterre) a vila de Cabo de Gué ser entrada dos mouros, e ficaram lá os mais deles mortos e outros cativos, antre os quais, que foram cativos, se achou Francisco Leomelim (sic), homem fidalgo e esforçado cavaleiro, que com uma caravela, à sua custa, foi de Santa Cruz, da jurdição de Machico, com muita gente nobre e de sua criação, que todos lá ficaram e ele foi cativo com Manuel de Câmara, capitão desta ilha de São Miguel, que lá, então, se achou, o qual, por serviço de el-Rei, foi do Regno, donde andava, a este cerco e tomada do Cabo de Gué, e depois resgatado (312). E Francisco Leomelim fugiu, que com ele estava.

No ano seguinte de mil e quinhentos e quarenta e dois foi à ilha da Madeira o seu Capitão Simão Gonçalves de Câmara, no recebimento do qual se fez muita festa e houve canas e touros e se guardou aquele dia, por ser de somana (sic), e levava a Capitoa consigo seu filho morgado, João Gonçalves de Câmara, que herdou a casa, extremado cavaleiro.

Depois de João Gonçalves de Câmara, houve o capitão Simão Gonçalves outro filho, chamado Rui Dias de Câmara, o qual esteve alguns anos em Tânger por fronteiro, vencendo uma comenda velha, de que el-Rei fez mercê, de trezentos e oitenta mil réis com o hábito, no qual tempo mostrou assaz o esforço de seu ânimo, quando se achou com seu Capitão em muitos recontros e escaramuças que teve com os mouros, onde lhe mataram dois criados, um por nome Pero Pinto de Barros, homem mui principal e criado de el-Rei, além de ser estremado cavaleiro, e outro, chamado Diogo Fernandes, filho de um homem honrado desta ilha de São Miguel.

E nesta cavalgada mostrou Rui Dias bem o esforço de seu ânimo, com que valorosamente, com outros criados, fizeram todos obras dignas de memória, saindo dela com muita honra, porque, perdendo o cavalo na batalha e ficando em pé, se tornou pôr a cavalo em um dos mouros, que andavam (sic) solto pelo campo, e assim se salvou. O mesmo Rui Dias de Câmara foi cativo na batalha que el-Rei D. Sebastião deu em África, no ano de setenta e oito, em que, pelos pecados dos portugueses e não por falta de esforço de seu rei, foi desbaratado, pois se afirma, pelas coisas que lhe viram fazer na mesma batalha, em África, e, antes dela, em Portugal, que era este rei o mais valente e esforçado homem de sua pessoa que no mundo havia. E Rui Dias de Câmara, na dita batalha, em que o acompanhava, e servia ao mesmo Rei, foi ferido de muitas feridas, de que (segundo dizem) ficou aleijado da mão direita, que lhe atravessaram com uma arcabuzada, e duas feridas nas pernas, que tudo foi sinal de seu esforço, pelejando como esforçado cavaleiro, que por tal estava conhecido dantes em Tânger, quando lá esteve por fronteiro (313).

Houve mais o capitão Simão Gonçalves duas filhas, Dona Aldonça de Mendonça, que casou com Dom João Mascarenhas, capitão dos ginetes, e Dona Lianor de Mendonça, casada

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Terceiro 135

com Dom João de Almeida, senhor do Saldoal (sic) e Punhete e alcaide-mor de Abrantes. Teve mais no Regno, depois de viúvo, um filho natural, chamado Fernão Gonçalves de Câmara, moço de grandes esperanças e felice memória, grande engenho e rara habilidade, que ora está estudando na Universidade de Coimbra (314). Houve mais duas filhas, que são freiras no moesteiro do Funchal, Dona Joana, dotada de toda a virtude, ornada de toda a discrição, ciência e brandura, qual se requere em uma perfeita religiosa, das quais ela alcançou o sumo grau; outra se chama Dona Inês, não de menos virtude e graça; no qual moesteiro estão recolhidas com suas tias, freiras professas, dando de si exemplo e edificação de muita santidade, rogando a Deus pelo povo e alma de seu pai, que, em sua vida, sustentava aquela santa casa. Houve também outro filho natural, irmão desta freira Dona Joana, que se chamou Pero Gonçalves de Câmara, que faleceu moço, estando em Coimbra.

No ano de mil e quinhentos e cinquenta e cinco, aos vinte e cinco de Maio, por certos respeitos, foi necessário ao capitão Simão Gonçalves de Câmara partir-se para o Regno com toda sua casa, mulher e filhos; e ficou por logotente da capitania, e por Capitão-geral, seu tio Francisco Gonçalves de Câmara, como já está referido.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quarto 136

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO QUARTO (315)

COMO FOI SAQUEADA A CIDADE DO FUNCHAL POR FRANCESES, COSSAIROS LUTERANOS, SEGUNDO A INFORMAÇÃO DOS MORADORES DA PARTE DO SUL (316)

Não há quietação nem descanso nas coisas deste mundo; antes, quando parece que o há maior, está tudo quanto ele tem em vésperas de maior ruína e presto se torna a sua quietação desinquietação, e o descanso trabalho, e alegria tristeza, o riso choro, o ganho perda, o contentamento pesar, o gosto da vida um desgostoso enfadamento dela e um importuno avorrecimento de quanto nela se possui, porque uma só repentina e salteadora mudança muda, desbarata, consume e põe por terra toda sua firmeza. Não (317) somente vemos isto nos estranhos e vizinhos, mas em nossas casas, nos nossos lares, debaixo de nossos telhados experimentamos muitas vezes semelhantes misérias, sem acabarmos de crer, nem entender, que ninguém em seu estado e descanso pode estar seguro. Mas, para que melhor vigiemos, pois vemos arder as casas de nossos vizinhos, que estão tanto à porta, vos contarei, Senhora, um cruel estrago e um desaforado roubo, que desaforadas consciências e diabólicos ministros nesta ilha da Madeira, de que vou contando, fizeram, estando a cidade do Funchal no mais alto e próspero estado que podia ser, mui rica de muitos açúcares e vinhos, e os moradores prósperos, com muitas alfaias e ricos enxovais, muito pacífica e abastada, sem temor nem receio do mal que não cuidavam.

Descuidados os naturais de a fortuna virar a vela de sua prosperidade, foram saqueados dos luteranos, como agora contarei, conforme à informação que disso tenho dos da parte do Sul, e depois direi a dos morados (sic) da banda do Norte, ainda que ambas, em algumas coisas, vão Norte e Sul uma da outra, pelo que direi ambas, pois não sei adivinhar qual a certa, e de cada uma delas podereis tomar e aceitar o que melhor vos parecer, suprindo o que uma calou com o que outra diz.

Aos três dias de Outubro do ano de mil e quinhentos e sessenta e seis, véspera do seráfico S. Francisco, aportaram a esta ilha da Madeira oito (sic) (318) poderosos galeões de França, em que vinham por todos mil soldados arcabuzeiros, afora outra gente do mar, com tenção de saquear a dita cidade, pela fama que de sua riqueza soava, no porto da qual não ousaram desembarcar e foram deitar âncora na Praia Formosa, uma légua abaixo do Funchal, que terá como um quarto de légua de areia, e tem a terra tão alta, que, ainda que sejam naturais, não podem subir senão pela rocha, por estreito caminho, e perigoso, e os estrangeiros com piloto da terra. Vinha por capitão-mor destes cossairos Monseor (sic) de Moluco (319), gascão de nação, e, como vinham apercebidos para o efeito que tiveram, desembarcaram sem resistência alguma, porque não havia suspeita que queriam cometer a cidade, pois não havia guerra antre França e Portugal; mas, como eles eram alevantados e luteranos, deram-se tanto à pressa aquele próprio dia, que desembarcaram às nove horas dele, marchando logo por terra toda esta légua, que disse, que, quando foi à véspera, estavam já na cidade, onde não acharam mais resistência que na entrada dela, em uma igreja de S. Pedro, por donde era seu caminho direito, onde o Capitão e Governador, Francisco Gonçalves de Câmara, logotente de seu sobrinho, com o alvoroço da nova que eram entrados os imigos e vinham perto, com pouca gente, que com muita pressa pôde ajuntar, lhe saiu ao encontro e dali, da sua estância, que tinha daquém da ribeira de S. Pedro, tendo os franceses defronte, lhe deteve e defendeu o passo da ponte por espaço quase de uma hora, mandando-lhe tirar um falcão, e, segundo alguns dizem, dando o pelouro em uma pedra, se quebrou uma racha, que foi dar em uma perna do Capitão-mor francês, de que morreu depois na fortaleza, dali a três dias; outros dizem de sua morte outra coisa, como adiante direi.

Em este tempo, subiram os imigos pela ribeira arriba até S. João, e, defronte, estava um caminho por uma rocha, não visto nem cuidado dos naturais, que tinha a saída acima em terra

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quarto 137

chã, junto do moesteiro das freiras; e os que por este atalho subiram cercaram o moesteiro, e um Sebastião Mendes, natural da mesma ilha, achando-se dentro, tendo as portas da cerca fechadas, atirou três ou quatro tiros, para que os imigos entendessem haver dentro, na cerca do moesteiro, gente de guerra, o que não estava, e, subindo acima do muro um dos imigos, para descobrir a gente que dentro podia estar, o mesmo Sebastião Mendes, que nesta hora (320) estava subido no campanairo, vendo-o assomar sobre o muro, o derribou com um tiro de arcabuz; pelo que, cuidando os franceses haver gente de guerra dentro, correram à cidade e largaram o moesteiro, com tenção de tornarem a ele depois de tomada a fortaleza. As freiras se saíram, então (321), fora, com cruz alevantada, sem impedimento de pessoa alguma, levando consigo o guardião, Fr. Baltezar Curado.

Descendo a outra manga (322) dos franceses abaixo, à fortaleza (pela resistência que dito tenho), indo já pela freiguesia de S. Pedro, vinham entrando e matando a gente, a ninguém perdoando, antre os quais mataram a Fr. Álvaro de Miranda, frade de S. Francisco, na Carreira dos Cavalos, com uma lança e uma adarga nas mãos, dizendo aos naturais: «Hoje é o dia em que havemos de mostrar sermos filhos de nossos pais; lá vos havinde», e, em dizendo isto, veio um pelouro perdido e o derribou morto no chão, até chegarem defronte da fortaleza, onde já acharam a companhia que pelo moesteiro havia ido, e ambas juntamente acometeram, estando já recolhido nela o Capitão Francisco Gonçalves de Câmara, com alguma gente, em a qual nenhuma resistência houve, porque, ainda que nela havia muita artilharia, não tinha pólvora, nem pelouros, mas, sem embargo de toda esta fraqueza, à entrada dela, pela janela da sala da banda de S. Francisco, entrando o Capitão dos franceses, dizem alguns que, estando Gaspar Correia, homem fidalgo e rico, natural da mesma terra, defendendo o passo da janela, lhe deu com uma alabarda per uma coxa, com que logo o derribou, e durou três dias, depois de ferido.

E sendo a fortaleza rendida, por não haver nela gente de peleja, mais que vestidos com seus capuzes e espadas na cinta, os quais se haviam nela metido, mais cuidando poderem salvar sua pobreza, que consigo haviam levado, que defendê-la. Depois disto, assossegados, alevantaram no mesmo dia e instante por Capitão-geral a Fabião de Moluco, de idade de vinte anos, irmão do capitão morto, que (como alguns dizem) um deles era Visconde de Pompador, ou de Pompada.

Antre os que morreram na fortaleza foram Gaspar Corrêa, todo crivado de pelouros, por haver ferido ao Capitão-mor, e Luís da Guarda, alcaide da dita cidade do Funchal, Martim Gonçalves, clérigo, um frade do Cartaxo, da ordem de S. Francisco, e outros, a que não soube o nome, que por todos foram oitenta, quarenta nobres e quarenta do povo, aos quais todos despiram nus, achando-lhe muito dinheiro e peças de prata e ouro, e os deitaram do baluarte das Fontes no mar. E o Capitão Francisco Gonçalves de Câmara foi muito ferido dentro na fortaleza, onde se havia recolhido com sua mulher, D. Caterina Mondragão, acompanhada com muitas mulheres da terra, às quais se não fez agravo nenhum, antes serviam os imigos a Dona Caterina como ela merecia.

Mataram na entrada da cidade, té (sic) ficarem em posse dela, quase duzentos portugueses, e dos seus morreram cinquenta e o Capitão-mor.

A Francisco Gonçalves de Câmara, pelo que fez nesta entrada e por outros serviços, deu el-Rei o hábito com tença, e que não pagasse por três anos, e, segundo outros dizem, por oito, dízimo nem quinto de sua fazenda, que boa parte possui, no termo do Funchal, de açúcares e vinhos.

Ao outro dia, à noite, depois da entrada dos franceses, foi ter António de Carvalhal, com quase quinhentos homens, que ajuntou da banda do Norte, aposentando-se na ribeira de Água de Mel, na quintã de Francisco de Betencor de Sá, meia légua da cidade, e mandou recado aos das vilas de Machico e de Santa Cruz que se ajuntassem com suas armas em o pico de Lopo Machado, sobre a ermida de Nossa Senhora das Neves, determinando-se o dia em que podiam uns, por uma parte, e ele, pela sua, dar em os imigos.

E, não vindo a efeito a determinação de António de Carvalhal com os mais, por não terem outras armas senão meias lanças e espadas ferrugentas e serem homens pouco experimentados na guerra, e estarem os imigos já fortalezados na cidade, os quais, como mais destros, se começaram a desmandar, fazendo algumas saídas pelos montes, como foi, indo depois à igreja de Nossa Senhora do Monte, meia légua da cidade à banda do Norte, um francês, tomando a imagem da Senhora (que é de vulto de pau), a despiu, dando com ela, para

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quarto 138

a despedaçar, em uns degraus de pedra forte; os próprios degraus se fizeram pedaços, ficando ela inteira, sem quebrar coisa alguma, mas não tardou muito que quem tal insulto cometeu não levasse a paga, porque, tornando-se ele para baixo, topou com um homem em sua casa, chamado António Mendes, que dizem ser pastor, o qual lhe disse, vendo-o só, apartado dos outros, que entrasse e tomasse o que quisesse, e, em se virando o francês, lhe deu o pastor com um manchil, que trazia, e o fendeu pela cabeça, de que logo ali morreu, e no mesmo lugar lhe queimaram os portugueses depois o corpo, cuja alma queimam e queimarão os demónios eternamente no Inferno, onde jaz sepultado. Foi depois, por este feito, este pastor armado cavaleiro pelo Capitão Simão Gonçalves de Câmara e mandado a África, por ser homem valente, com seu filho, Rui Dias de Câmara, que lá foi fronteiro muitos anos. Também desmandando-se outro francês na ermida de Nossa Senhora das Neves, à banda do Nordeste, despiu a Senhora e roubou sua igreja, ao qual saiu ao caminho um português, homem fidalgo da geração dos Freitas, e o matou, tomando-lhe os vestidos que levava da Senhora.

Não somente houve estrago nos templos e coisas da cidade, mas não faltaram também trabalhos nos campos e serras, porque quem cuidava achar nelas abrigo achava muitos choros e fomes, e moças donzelas e formosas, sem lembrança nem socorro de pai, nem de mãe, com os seus vestidos de seda rotos dos matos por onde caminhavam, sem saberem por que parte fugiam, nem terem quem as guiasse, correndo-lhe o sangue dos pés, não costumados a tais caminhos, por serem de nobre geração, e outras paridas no ermo, sem lume, nem companhia alguma, nem com que se sustentar a si, para poder criar seus tenros filhos, e outras comendo à sexta-feira carne, e ao sábado sem pão, sem saberem parte de seus maridos, se eram vivos, nem os maridos delas, o que era ainda mais para chorar, e muito maior mágoa e morte viva que a morte dos mortos e perda das fazendas.

Assim ficaram os naturais desterrados e os cossairos senhores da cidade, onde estiveram de assento onze dias (323), nos quais carregaram as naus de quanta riqueza havia na ilha, que ali principalmente estava, não podendo levar muito açúcar e ricos e odoríferos vinhos, por lhe não caberem nas naus, que abarrotadas estavam de móveis de muito preço, porque, pela maior parte, pelo trato dali, a mais e maior riqueza daquela terra eram jóias e ricas peças de móveis ricos, que mandavam trazer de Frandes e outras partes pelos contratantes e forasteiros, a troco de mercadoria da terra e de suas novidades, sem estimarem, nem sentirem a compra e custo de semelhantes coisas, ainda que custosas; porque casa houve de que levaram alcatifa, que custou e valia oitenta mil réis.

No rol da confissão, no ano de 1552, se acharam na cidade do Funchal, antre negros e negras e mulatos cativos, dois mil e setecentos, e, depois, no mesmo ano, foram ter a ela quatro navios com trezentos escravos, que fizeram por todos três mil.

Quando saquearam os franceses a cidade do Funchal, indo, tão carregados de fato, quase metidos no fundo, deixando muita riqueza na terra, que não puderam levar, de vinhos e peças ricas de móvel, levaram mais de trezentos negros consigo, que lhe não aproveitavam, pois lá em França há muita gente da terra que serve por pouco preço, pelo que há infinitos serventes, sem terem necessidade do serviço dos negros, que (como se diz) são lá todos forros.

Queimaram umas casas grandes de dois sobrados que estavam juntos das casas do Bispo, que tinham além de sessenta pipas de vinho, e nos sobrados muito ouro e prata, e muitas peças de pano fino, e grande cópia de alfaias de casa, que ali de muitas tinham juntas, pelo não poderem embarcar com a pressa ao recolher, pelo receio que tinham da vinda da armada de Portugal, e por estarem detrás da ilha António de Carvalhal, com quatrocentos ou quinhentos homens, para vir sobre eles, e Leomelim e o Freitas com muita gente; puseram fogo às ditas casas e queimaram vinho e tudo o que nelas estava; e tiravam o torno às pipas, como lhe não contentava; não queriam comer senão galinhas e galipavos, fazendo mais perda em tudo que o proveito que levavam. E ao recolher, matavam os franceses toda a gente da terra que os ia ver embarcar, sem perdoar a ninguém, nem a mulheres nem mininos, nem a velhos nem a moços, nem a negros e escravos, porque de todos se temiam. E no fim dos onze dias se fizeram estes franceses à vela, sem fazer muito dano nas pousadas, senão nos templos, onde queimaram e espedaçaram as imagens, desfizeram altares e profanaram relíquias, fazendo mais males por obras do que se podem de homens imaginar, nem de cristãos crer, nem por palavras contar (324).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 139

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO QUINTO (325)

DA ENTRADA DOS COSSAIROS NA CIDADE DO FUNCHAL, SEGUNDO A INFORMAÇÃO DOS MORADORES DA BANDA DO NORTE (326)

Os moradores da banda do Norte contam este saco, dizendo que no ano de 1566, a dois dias do mês de Octubro, partindo do porto da vila de Santa Cruz um Diogo Pestana e outros honrados homens com suas mulheres, naturais e vizinhos da ilha do Porto Santo, em um barco do cunhado de um Leonel Gonçalves, defunto, uma quarta-feira pela manhã já clara, com bom tempo, que tinham, chegaram prestes lá aquele mesmo dia e, sendo perto do porto, descobriram oito naus, que estavam ancoradas nele, e, olhando para a vila, viram que ardiam duas casas junto da igreja e, vendo tal novidade, logo suspeitaram o que podia ser, entendendo que eram ingreses luteranos, e disseram ao arrais do barco que os lançasse em uma ponta escusa, que mais para trás está na ilha, porque se queriam pôr onde sabiam que podiam ver o que podia acontecer em tal ensejo.

O arrais, acabado de os lançar em terra, se fez de volta para Santa Cruz por ir dar aviso do que vira. E os franceses das naus os viram, e, tomando prestesmente uma lancha, com gente com seus arcabuzes e mosquetes, os foram seguindo, e os do barco fugindo-lhe à vela e a remos, e, por mais espingardadas e arcabuzadas que lhe atiravam, ainda que sentiam passar por cima de si os pelouros e a vela passada com eles per muitas partes, não quiseram cessar de remar e trabalhar por andar e passar o caminho, indo os cossairos após eles, continuando seus tiros, até que aprouve a Deus se tornaram já cansados de tirar e remar, vendo que nisso nada aproveitavam. E, pela pressa que os franceses lhe davam, chegaram a Santa Cruz a horas da trindade e, com a mesma pressa, o arrais fez saber diante de todo o povo o que passava a Tomé Álvares, Capitão-mor das duas vilas, Santa Cruz e Machico, o qual, vendo em tal coisa, como esta, haver perigo na tardança, acordou de mandar logo o dito arrais no próprio barco e lhe deu uma carta, que escreveu sobre o giolho, para o Capitão-mor da cidade do Funchal, Francisco de Câmara, a quem dizem que se deu às dez horas da noite, e respondeu pela manhã, por lhe não parecer que importava tanto perigo.

Entretanto, o Capitão Tomé Álvares, em Santa Cruz. mandou recado a Francisco Leomelim, ao Porto do Seixo, onde tem seu assento, e a António de Freitas que logo fossem a Machico, e pusessem bom recado na defensão da terra, e que encarregassem ao Ouvidor em tudo, e apercebessem a gente, e tomassem armas, e mandassem, sob pena de morte, que ninguém fugisse, e logo pela manhã fossem ter com ele o dito Francisco Leomelim e António de Freitas, e o Ouvidor ficasse lá com toda a gente e fizesse ir à vila todos os do Caniçal. Tudo isto foi feito e o porto de Santa Cruz todo estava cheio de gente, sem ninguém dormir aquela noite.

Os lugares por onde pareceu que pudessem entrar se atrincheiraram com barcos cheios de pedras, e com traves e pipas e com quanto se pôde haver, em a qual obra nem as mulheres ficaram sem trabalhar toda aquela noite.

Vindo a manhã do terceiro dia do dito mês e ano, as oito (327) naus começaram aparecer pela ponta de S. Lourenço, e, indo a entrar por ela pouco a pouco, enfiadas umas detrás das outras, em carreira, todos estavam cuidando que com eles queriam ter a contenda e, apercebido o Capitão Tomé Álvares com os homens e moços para se pôrem em defensão, animou tão bem a todos, que ninguém ficava que não fosse ao porto e às partes, onde mandava com grande ânimo.

Francisco Leomelim e António de Freitas foram ter com o Capitão-mor, sendo de parecer que se mostrasse a gente toda com bandeiras e recado, por que as naus sentissem que estavam apercebidos e esperando que a gente se repartisse em dois ou três lugares em que podem desembarcar; e logo foi tudo feito. E, porque as naus tinham tempo Nordeste bem

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 140

fresco, mui prestes passaram (328) por direito (329) da vila de Machico, sem fazerem jeito nem carena de irem sobre eles, e assim estavam já avisados por Francisco Leomelim e o Freitas, de parte do Capitão-mor Tomé Álvares, que, se as naus viessem para baixo e não fizessem jeito de vir sobre o porto de Machico, viessem todos até descobrirem fora da ladeira alta, que está, indo para Santa Cruz; e assim se fez, porque tinham recado que, se o inimigo quisesse tomar porto, ali acudissem todos; pois, vendo assim sua direita rota, os franceses, em suas naus, passaram por Santa Cruz bem desviados do porto, sem mostra alguma de querer tomar terra em toda aquela costa, porque iam mui largos; mas, como foram em direito da ponta do Garajau, puseram as proas direitas à cidade e assim mostravam que iam a ela, o qual visto pelos de Santa Cruz, diziam que sem falta eram navios portugueses, que deviam ir para S. Tomé ou Brasil, e que o arrais não houvera bem visto o que era quanto ao fogo e incêndio das casas no Porto Santo, porque se aquelas naus foram de imigos, como ele dizia. não se foram meter na baía e porto da cidade.

O Capitão Francisco de Câmara, pela manhã, disse ao povo: «Que faremos? Que tenho este recado do Capitão de Santa Cruz e Machico». Andando nisto, se descobriram as oito naus, que não eram pequenas e vindo como direitas ao porto, com carena de o querer tomar, a fim de desaperceber e assegurar os da terra como traziam cuidado; chegando perto dele a tiro de bombarda, tornaram poor (sic), as proas mais ao mar para botar por fora dos ilhéus.

O Capitão, com muitos fidalgos da cidade, e Genobre Chiole (330), o Capitão Aguiar, Favela, Vieira, João Esmeraldo e muitos mais, que isto viram, estavam dentro do baluarte, onde estava a artilharia. O condestable da fortaleza, que era um português já entrado em dias, grande bombardeiro, disse ao Capitão: «Senhor, estas naus são de ruim título; quero-lhe tirar e lançarei uma no fundo». Disse-lhe o Capitão: «Não hái (sic) para quê, que el-Rei não me manda atirar às naus que passam, tirai-lhe um tiro por alto, farão salva, que ainda parece que vão a pousar». Tirou-se o tiro e nenhuma delas respondeu (331), mas logo começaram de se arredar; o condestable lhe tornou a replicar lhe desse licença para lhe tirar, que bem visto era serem de ruim título, e que lançaria ao fundo a qualquer que desse e que detrás de um tiro fosse outro; ao qual não quis consentir Luís da Guarda, meirinho, que, pelo Capitão, aquela hora foi mandado aí para defender ao condestable que não atirasse, o primeiro homem que, depois, nesta fortaleza, ao entrar dos franceses, por saltar do próprio baluarte do muro em baixo, fugindo, ficou sem vida. O Capitão Francisco Gonçalves, com ajuntar e pôr em ordem alguma gente, gastou toda a manhã.

Estavam surtas três naus, uma que ia (332) para S. Tomé, grande, e duas para o Brasil, com mais uma caravela de Setúval, que de partida estava para o Regno, cujo senhorio e piloto era um bom homem falto de um olho. A nau de S. Tomé tinha muita gente e honrado e valoroso capitão, e as duas naus do Brasil o mesmo. Pediram estes capitães a Francisco Gonçalves de Câmara que, se não tinha armas em abastança para a gente da terra, que eles lhe dariam muitos piques e arcabuzes, e o mesmo os do Brasil, ainda que não estavam tão apercebidos, e que aí estavam com suas pessoas e armas ao seu serviço, pois nisso serviam a el-Rei Nosso Senhor; Francisco Gonçalves disse que o aceitava, se lhe fosse necessário.

E, como as naus passassem abaixo já dos ilhéus neste tempo e fossem perto de terra, suspeitando os da ilha o que podia ser, se foram, gente de cavalo e de pé, direitos à Praia Formosa, onde viram perto de terra ancorar as naus, e, como já os soldados vinham em as lanchas às ilhargas das naus, logo vieram a saltar em terra em o areal da Praia Formosa. Saídos os soldados, os capitães lhe deram ordem que fossem saindo um ruim passo que tinham de subir; ali, subidos poucos e poucos, começaram de subir por uma das ladeiras daquele vale, que ali se faz; o Capitão-geral, vendo das naus ir gente de cavalo e de pé, ali, sobre aquele vale, acabou mui depressa de lançar em terra o resto que ficava; os da terra não faziam mais que chegar ao cabo do vale e, como vissem os soldados franceses armados, se tornavam a recolher para trás, dando recado uns aos outros.

Chegou nova à cidade como eram em terra os imigos, armados de armas brancas, arcabuzes e grande estrondo, com que os da terra perderam o tino, sem se acordarem de fazer, nem ajuntar gente, nem mandar tirar das naus as armas que lhe davam e resistir ao encontro que se lhe oferecia; o Capitão Francisco Gonçalves de Câmara mandou pôr três peças de falcões perto de S. Pedro, sem poder ter a gente que não fugisse.

Deu grande ousadia aos franceses ver que chegavam os da ilha a olhar, à boca do vale, por onde iam ganhando terra e tornavam para trás; assim, cobravam logo a portela, descobriram

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 141

os caminhos das serras e do mato cheios de gente fugindo. Como isto viram, o seu Capitão-mor perguntou a alguns portugueses, que traziam consigo, que vizinhança podia ter aquela cidade; disseram-lhe que não passava de mil e duzentos; pois disse ele: «Eles vão fugindo para a serra, vamos nós entrar na cidade, quem vola quita»; e, assim, foram logo marchando com boa ordem; em pouco espaço chegaram à ponta da Grota e ribeira de S. Pedro; ali lhe tiraram da outra parte, onde a artilharia estava assestada (333), que era um pedreiro e dois falcões, e, como o Capitão ouviu o tiro e sentisse que havia artilharia, tornou atrás, sem virar as costas, senão assim com o rosto em os portugueses, e todos os seus fizeram outro tanto. E não tardou muito que lhe não tirassem outro tiro e, assim, tornou atrás outras três ou quatro passadas e, daí a pouco, viu pôr fogo a outra peça e não disparou; e esteve mais espaço que dantes, aguardando se lhe tiravam, o qual nunca mais fizeram; então, conhecendo que não tinha contradição, nem quem lhe resistisse, disse: «Avans, avans (sic), que se agora non la pilhas, non la pilharás». E mais vinha este Capitão sem armas, só com um montante nas mãos, esgrimindo, e animando os seus, e dizendo: «Avans, avans», com um pequeno ferraguello (sic) (334) de grã, brochado ao pescoço; e, movendo a bom passo todos detrás, depôs seu Capitão em ordem, a caravela, que surta estava no porto, que era do homem falto do olho, de Setúval, que os viu mover à pressa, que bem se descobriam do porto e ancoradouro, lhe tirou com uma peça um tiro, e o pelouro deu em uma pedra de penedo junto do caminho, e das rachas, que saíram, uma chegou a dar em um dos giolhos do Capitão e lhe fez tal dano, que daí a três ou quatro dias, pouco mais, morreu na fortaleza, porque lhe entraram os herpes.

Vindo, assim, toda esta gente a entrar já na ribeira de S. Pedro, ordenou o Capitão de repartir os seus em três partes: mandou duas bandeiras por cima de um outeiro, que sobe pela ribeira, que se faz à banda do Norte, e uma pequena subida por detrás do outeiro (caminho e segredo que poucos da terra sabem, descoberto por algum natural, que consigo traziam, ou por um Gaspar Caldeira, africano, natural de Tânger, que depois, por ser guia destes cossairos, foi morto por justiça em Lisboa (335), e outras duas bandeiras mandou por baixo de toda a cidade, que é por Santa Caterina e por S. Lázaro; e ele, com quatro bandeiras, pelo direito caminho da Carreira, por onde a artilharia estava desamparada de capitão e gente. Já a este tempo Francisco Gonçalves de Câmara, com mais de trezentos homens da terra e das naus, estavam recolhidos a sua fortaleza, e muitas mulheres honradas da cidade com eles.

Vindo o Capitão francês caminho direito, sem fazer caso da ferida de sua perna, viu vir uma procissão de frades franciscos, com cruz levantada, direito a eles, que o comissário, chamado Fr. Baltezar Curado, mandou, e o que trazia a cruz era um animoso varão, que em Mazagão havia feito façanhas contra os mouros, chamado Fr. Álvaro de Miranda. Levando este padre a cruz, assim levantada, o Capitão lhe mandou tirar às arcabuzadas a todos, o que vendo os frades, viraram com a cruz e, indo-se acolhendo, deu um pelouro a Miranda por detrás do toutiço e saiu-lhe pelos olhos, com que logo caiu morto, e deram em outros cinco frades e todos morreram à saída da rua da Carreira dos Cavalos.

Os imigos, que foram por baixo, deram na casa de Gaspar Correia, grande rico, que, de perto do muro da fortaleza, acabava, então, de chegar a ela, o qual, defendendo a entrada como bom cavaleiro, morreu, matando-o seus imigos, e não entraram por aquele passo arriba, que faz ali um topo, até ele morrer bem a sua porta.

A este tempo, os que vieram por cima, também, à subida daquele passo, lhes teve o encontro um esforçado cavaleiro, chamado Gaspar de Braga, o qual, até o matarem, ninguém pôs o pé em cima de todo, e ele feriu e matou alguns; e como era só, e os imigos lhe tiravam todos, lhe acertaram dar por um lugar, que logo caiu morto.

Estes, subidos, foram por o moesteiro das freiras, que no caminho estava, e, vendo que estavam ainda dentro, se puseram a querer entrar com elas. Tem este moesteiro à porta da portaria um espaçoso pátio, que toma as portas da igreja, assim a travessa como a principal; este pátio tem só uma porta à parte do Nordeste, com muro tão alto, que não podem entrar por ele senão pondo-se um homem sobre os ombros de outro, não havendo escada; acertou um homem chegar, então, a socorrer as freiras em aquela necessidade, que estavam já com a porta aberta para saírem, fugindo, e o Padre Curado com seus frades, que escaparam do moesteiro, metido em um canavial de açúcar, perto deste moesteiro das freiras. Vendo este homem que os franceses desciam pela costa abaixo, fechou e trancou muito prestes a porta do pátio, e, não na achando aberta os franceses, nem a podendo derribar, que era forte e estava bem trancada, subiram uns sobre os outros para saltar lá, onde este homem só no pátio estava; o qual, como os via assomar, lhe atirava com pedras, que com as unhas arrancava da

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 142

calçada do pátio, pelo que ninguém lhe entrou dentro, ainda que por muitas partes foi cometido, té que já sendo as outras companhias chegadas à fortaleza, que daquele lugar bem se via, deixaram esta contenda e se foram ajuntar com os outros.

E, assim, começaram dar logo tais surriadas à fortaleza com sua arcabuzaria, que ninguém que estivesse dentro ousava aparecer, por que melhor e mais à sua vontade as dessem; assim, entraram nas casas de Manuel Damiel e nas das Gamas, uma das quais é agora mulher de Francisco Mendes Pereira, contador que foi (336) da Fazenda de el-Rei nesta ilha de S. Miguel. E, como daqui varejassem bem o cubelo e as mais partes do forte, tiveram lugar de subirem muitos soldados franceses sobre o muro, que não era mais alto que doze palmos por aquela parte de além da porta do baluarte, que é a banda do Norte; e, como foram dentro ou em cima do andor do muro, puderam bem tirar de arcabuzadas aos que estavam com as peças de artilharia aguardando a entrada da fortaleza, os quais, vendo os franceses em cima, desampararam aquele lugar, e, como já desconfiados de remédio, se acolheram com as mulheres dentro nas casas do Capitão, que antre elas andava em pé, dando a cada um lugar conveniente, e aos estrangeiros nas lójeas das casas de baixo, onde estiveram até à morte.

Desamparado já aquele lugar, os franceses desceram abaixo pelas escadas de pedra e, atirando às portas, entrou o Capitão primeiro e foram direitos onde estavam os tiros, e Luís da Guarda, meirinho, saltou do muro para a banda do mar, que mais baixo era, e, por ser homem grande e pesado, arrebentou e acabou. Mataram o condestable, com o seu botafogo na mão e, não havendo ali mais que fazer, se foram às lójeas, em que os estrangeiros estavam, assim os daquelas naus, que muitos eram, como outros, onde foram todos mortos à espada, senão só um Gago de Frias, da Vila Franca, desta ilha de S. Miguel, que tinha uma bolsa com treze mil réis, que lhe deram a guardar os Quintais, homiziados pela morte de um homem, que mataram, descendo para a praia da dita vila, o qual Gago disse ao Capitão-geral: «Senhor, não me mates; vês aqui esta bolsa com muito dinheiro», ao qual o Capitão disse: «Não hajas medo; apega-te neste meu talabarte», e, apegando-se por detrás, ia o Capitão adiante, como um Satanás, andando feito grande carniceiro, acabando de levar a vitória té o fim.

Morreram naquelas lójeas duzentos e cinquenta homens e, antre eles, dois clérigos, letrados portugueses, que iam em a nau S. Tomé, e o capitão dela com todos os seus, e um honrado homem, letrado, jurista, e outros. Acabados de meter a cutelo estes de baixo, subiu o Capitão com a espada ensanguentada diante dos seus arriba, onde começou a matar, e sempre o Gago pegado ao cinto e a bolsa ao pescoço, como preço de seu resgate e vida na mão, e, como fosse matando alguns, que diante e às ilhargas via, chegou a uma grande sala, onde as mulheres estavam todas, honradas, pedindo misericórdia, e o Capitão Francisco Gonçalves da Câmara antre elas, ao qual o Capitão francês tomou pela mão e lhe quis dar com a espada, mas as mulheres disseram: «Senhor, não o mates, que é o Capitão»; e logo o Capitão francês cessou de ferir e matar e assegurou as mulheres que não houvessem medo, entregando ao Capitão Francisco Gonçalves a guarda delas. E ali escapou um frade sem barba, ainda que era já velho, chamado Medina, vestido e toucado como mulher, antre as mulheres.

O Capitão deu a guarda da fortaleza a um seu sobrinho, e, então, disse ao Gago: «Companhão, da-me el tu dineiro»; tirando o Gago a bolsa pela cabeça, lha deu. O Capitão, vendo aqueles treze mil réis todos em ouro, o tomou pela mão e lhe deu um lenço, dizendo que o trouxesse na mão solto, para que ninguém lhe fizesse mal, mandando dali, donde estava, que lançassem bando que começassem o saco da cidade antes da uma hora depois de meio dia, e ele se curou de sua ferida do giolho.

Dentro da fortaleza se acharam mais de trezentos homens mortos, por todas as casinhas, os quais mandou o Capitão enterrar fora, logo aquele dia, em grandes covas, no adro de S. Francisco e dentro da igreja.

As freiras e o Curado, com alguns frades e o homem que as defendeu, enquanto isto do baluarte passou, saíram por antre os canaviais e se acolheram e não pararam até o seu Curral, que dista bom pedaço da cidade, e, assim, se foram, deixando tudo no moesteiro, sem salvar nenhum ornamento; salvo a custódia do Santíssimo Sacramento, que um padre comungou, e alguns cálices, que puderam levar nas mangas, tudo o mais foi roubado.

No mosteiro dos frades ficou o vigairo da casa, chamado Fr. João dos Reis, e o sancristão, que era sacerdote de missa, mui bem disposto mancebo e bom religioso, natural de Portalegre, chamado (me parece) Fr. Rodrigo de Portalegre, os quais ficaram na casa por não terem lugar

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 143

de se saírem, porque estiveram escondendo o tesouro em um lugar que ninguém dera com ele; e, acabando de esconder, deram os franceses com eles, e o sancristão se acolheu rijamente à torre dos sinos e o vigairo à sua cela, porque era velho, fazendo conta que por tal escaparia da morte e não lhe fariam nenhum mal.

O sancristão acolhendo-se à torre dos sinos e os franceses dentro da sancristia todo foi um, e sentindo que subia por uma escada, por onde de dentro da sancristia sobem à torre dos sinos daquele moesteiro, subindo detrás dele, o Fr. Rodrigo se defendeu quanto pôde, atirando-lhe pedras e ladrilhos de cima até se lhe acabar tudo o com que lhe podia atirar e, já cansado, segundo se presume, o tomaram e trouxeram à crasta e ali lhe perguntaram pela prata e ouro daquele mosteiro e casa, e ele lho negou, dizendo que nada sabia dele; os quais lhe tornaram a perguntar e a requerer que lho desse em suas mãos, e, finalmente, não querendo, o mataram e despedaçaram e fizeram em postas, e com elas atiravam às paredes e com a cabeça jogavam por todas aquelas quadras da crasta. Antes este padre quis sofrer martírio e tal morte que entregar os vasos e cruzes, dedicadas a Deus e a seu culto, a infiéis luteranos, profanadores e destruidores das coisas sagradas.

Andando pelo mosteiro revolvendo, como acabassem aqui, acharam o Fr. João dos Reis, vigairo da casa, lançado em sua cama, mais fora de si de medo que acordado, e entendendo os franceses que estava doente, não lhe fizeram mal, mas, fazendo-o erguer, o trouxeram à crasta e lhe mostraram o que tinham feito ao sancristão, por lhe não querer dar nem dizer onde estava o tesouro, que assim fariam a ele, se lhes não desse tudo. Não quis o velho tardar em o fazer, mas logo lho foi amostrar, ainda que estavam jurados, ele e o Fr. Rodrigo, de antes sofrer morte que descobrir àqueles luteranos nenhuma coisa mais que as de comer e beber. E havido à mão o tesouro, que rica coisa era, tanta prata e ouro quanto aquele mosteiro tinha, fizeram grande gasalhado e honra ao dito vigairo e, assim, lhe servia, ele e um frade leigo, que na horta se achou, de cosinheiros e pateiros; e acertou haver muito que comer em aqueles dias, porque acharam carneiros e galinhas, novilhas e marrans e outras carnes, que tudo tinham preparado para uma profissão de um frade, filho de vizinho e rico; era dia de seu Padre S. Francisco.

Outros lhe coube irem à Sé, por entenderem que haviam de achar nela o tesouro; indo lá, tomaram no caminho Pero Cardoso, escrivão da Câmara daquela cidade, levando-o consigo, para que lhes mostrasse onde achariam o tesouro e coisas de dinheiro. Entrando na Sé, se foram à sancristia, quebrando as portas, lançando tudo por terra, não acharam nada; aconteceu que se puseram a cavar na capela-mor e a revolver as pedras das sepulturas, e, cavando em uma, onde o daião estava sepultado havia meio ano, até dar no corpo, que lhes cheirou mal, tornaram logo a tapar a cova e foram da outra ilharga, onde havia pouco dias que era sepultado o tesoureiro, dignidade da Sé, e cavaram até dar no corpo, que deu de si mau cheiro, e, ainda que viram as cortinas em que o tesouro estava envolto, que antre estas duas covas destes dois defuntos o sancristão daquela igreja havia escondido, envolto nas cortinas do guardapó do retábulo, em que estava metido todo o ouro e prata do serviço daquela Sé, cálices, cruzes, lampadairos, custódias, pomas, galhetas, turíbulos, caldeirinhas, navetas, maças e, finalmente, tudo o que de prata havia, e, ainda que andaram com as enxadas sobre ele e às ilhargas, foi o Senhor servido não fosse entregue em sujas e infernais mãos e, posto que vissem um pedaço da cortina, que de sarja amarela e vermelha era, não entenderam que estava tal coisa dentro, suspeitando ser também corpo morto, e assim ficou o tesouro da Sé livre, por Deus o guardar; e cobriram outra vez as sepulturas ambas.

Os frontais, capas, vestimentas, pálios e mais ornamentos de brocado e seda, tudo foi levado dantes à serra, em bestas, e, não achando algumas destas coisas que pretendiam, andavam feitos leões, dando cutiladas nas imagens, e tantas deram em uma de S. Roque de vulto, que no altar do cruzeiro, da banda do Nordeste, estava, que lhe cortaram braços e pernas. Pero Cardoso, escrivão, não esperava senão quando lhe haviam de fazer outro tanto, mas quis Deus que nunca lhe puseram mão para o maltratar. Logo se foram à capela do Santo Sacramento; rombaram as grades de ferro até quebrarem a fechadura e entrados dentro ao Sacrairo, onde acharam um cofre pequeno, fechado, de maravilhoso feitio e obra, o qual el-Rei D. João III deu ao Capitão Simão Gonçalves de Câmara, com grandes relíquias, das que o Santo Padre, o Papa Paulo III, Ihe mandara, e o cofre havia trazido da Índia D. Afonso de Noronha, e o deu a el-Rei por coisa muito prezada, e era de rico e fino marfim, semeado de muitas pedras ricas, por sotil artifício feito; mas, como não era de ouro, esbarraram com ele na parede, despregando-se as missagras com que se cerrava, quebrando-se muitas peças dele;

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 144

as relíquias saltaram fora, pelo chão, de que o Cardoso ficou muito triste, e eles cuidaram que ali ia o Santíssimo Sacramento, segundo as blasfémias que os desaventurados diziam. O Cardoso, que bem sabia o que era, quando viu que eles aquilo tinham em tão pouco, lhe pediu licença para o apanhar do chão e o guardar; eles lha deram de boa vontade, dizendo: Coje, coje, e guarda para ti esso; apanhou e recolheu com assaz lágrimas o escrivão aquelas relíquias, tornando-as ao cofre, e levou consigo tudo.

Subiram daí aos órgãos, que sobre o altar de S. Roque estavam, onde acharam a Sebastião Mendes, tangedor da Sé, coxo e tolheito de ambas as pernas, que não andava senão sobre duas muletas, ao qual, levado abaixo, perguntaram pelo tesouro, que lho mostrasse, do que ele bem sabia, mas escusou-se por boa arte, dizendo que não cuidassem que os cónegos, e capelães, e tesoureiros, e moços daquela Sé, sendo tais e tantos, deixassem nada por levar, que tudo haviam levado, cada um seu pouco, e mais lhes fazia a saber que todolos ornamentos daquela Sé, que de brocados e ricas sedas eram, tudo levaram para o Faial, onde se achariam e toda a cleresia, porque havia lá lugares, onde podiam estar sem os poderem achar, nem os diabos; e isto lhe disse tão livre como se com eles se criara; os luteranos o creram e se riram bem dele quando mais lhes disse: «Aqui, ainda que caveis toda a digreja, não haveis de ver senão o que haveis de ser».

O saquo (sic), a este tempo, devia de andar muito aceso na cidade, todos a carpentejar para roubar. A notícia disto chegou a Santa Cruz às duas horas depois de meio-dia, ao tempo que na cidade tais estrondos se faziam e pelos matos e caminhos tantos ais se davam; como a nova certa chegou a Santa Cruz que à uma hora do dia toda a cidade, desde S. Pedro até Santiago, era e fora tomada dos franceses, e andavam já no saquo dela, nem haviam deixado praça nem beco, rua nem travessa, casa nem templo, que não andasse cheio deles, porque das Neves e de cima de um monte, onde se paravam a olhar para trás, como outra mulher de Loth com os grandes terremotos que ouvia foi tornada em sal, assim estes, não em sal, mas em espanto, contavam uma coisa duas vezes e três, fazendo ajuntar assim todo o povo.

Perguntou Tomé Álvares aos que viu que melhor o podiam informar quantas bandeiras viram na cidade; disseram que sem falta oito, mas que pareciam ser dois mil franceses, e assim o afirmaram e que por sem dúvida tinham o Capitão Francisco Gonçalves ser morto, com quantos com ele entraram na fortaleza, porque muito prestes fora ganhada, e contando algumas particularidades, Tomé Álvares, que bem atentado era e animoso, fez chamar a Francisco Leomelim e António de Freitas e apartou-se com eles, e, como falaram um pedaço, mandou ajuntar toda a gente de Machico e do Caniçal, de Santa Cruz e de Gaula, finalmente de todo o termo e vilas, os quais todos juntos, lhes disse assim, perto do Sol posto: «Já vedes, senhores, em que trabalho está o Funchal, entrado de franceses luteranos. Que conta daremos de nós, e em a que seremos tidos, pois vemos nossos vizinhos tão maltratados e fora de suas casas lançados, com tanta desonra e afronta, por oitocentos franceses luteranos, que mais não são nem podem vir em aquelas naus que vimos passar? Vamos; ajuntar-se-ão connosco os da cidade, que andam fugidos, indo estes senhores Francisco Leomelim e Antonio de Freitas por vossos capitães, aos quais rogo e peço se encarreguem deste cárrego e assim a todos rogo os sigais, e escolhais para esta jornada, e eles convosco cumprais com o serviço de Deus e de el-Rei, Nosso Senhor; eu confio que Deus nos há-de dar estes inimigos de sua Cruz em nossas mãos. E, querendo todos isto que vos peço, ninguém há-de dormir esta noite, mas há-de estar aparelhado para ir amanhecer perto da cidade; e António Gramaxo (337), juiz, e Pero Corrêa (337) e seu parceiro, vereadores, ficaremos sós cá para mandar de comer e beber a todos mui cumpridamente à custa do concelho e Câmaras destas duas vilas; e ninguém tenha esta noite cuidado de mais que de aparelhar bem suas armas, que eu confio que, das outras vilas da Ponta do Sol e Calheta, e Ribeira Brava, Paúl, S. Vicente e Faial, já agora António do Carvalhal tem juntos os moradores todos para fazerem o que nós pretendemos; e creio eu que para tudo isto e para todo o que vos tenho dito e pedido não haverá quem diga de não». Ao qual todos responderam que eram muito contentes e que eles com Francisco Leomelim e António de Freitas e com Sua Mercê, e com quem ele mais mandasse, iriam morrer de boa vontade em tão justa jornada.

E, isto assim assentado e determinado que, desde a meia-noite até às duas horas, todos seriam juntos na praça de Santa Cruz e que os tambores dariam sinal, tudo se fez como se disse. Veio a meia-noite, os tambores se tocaram e todos bem aparelhados não viam a hora de já se verem na cidade. Sendo as duas horas chegadas, a gente de Machico chegou e Francisco Leomelim e António de Freitas com eles, e já vinham azémalas (sic) carregadas de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 145

mantimentos, fazendo luar até passar o Porto Novo, que é antre o Caniço e Santa Cruz; posta a Lua, indo muitas vezes empeçando, caindo e alevantando-se, lhe amanheceu na Charneca do Caniço, além da fazenda e casa do Dornelas, e, antes que o Sol nascesse, já estavam ao Palheiro do Ferreiro, que é meia légua da cidade do Funchal, o qual Palheiro do Ferreiro é um lugar que se não pode ver da cidade, porque antre o Camacho e o Morro das Neves, que atravessa todo aquele campo Norte-Sul como um serro ou serreta, e (sic) a cidade demora dali ao Sudoeste e fica de todo o ponto escondida; e os Capitães, Leomelim e o Freitas, escolheram aquele lugar ali por não serem descobertos, até terem recado de António de Carvalhal que pela serra haviam homens ido lá ver o que ordenavam e faziam; e, porque uma coisa tão importante, como esta, não se fizesse às escuras, e com sombra e cor de temeridade, acordaram de estarem ali aquele tempo que fosse necessário, maiormente que havia ali lenha e água, e era lugar onde muitos da cidade vinham a parar, fugindo para o Camacho e para outras partes daquela serra; e eram tantos os que com suas mulheres e filhos vinham, que era mágoa vê-los.

Os Capitães mandaram logo pôr guarda aos caminhos que iam para a cidade e proibiram que ninguém fosse dali para baixo, e os que dela iam os fizessem passar por ali, e assim se fazia; e os Capitães os mandavam apartar com suas mulheres para o Camacho, pouco arriba além donde estava a gente armada, e lá lhes mandavam dar mantimentos. E, como foi já perto de meio-dia, mandaram que descansasse a gente até vir recado de António de Carvalhal, de mandado do qual, já tarde, chegou um homem a fazer a saber aos Capitães como, em dando-lhe o recado que os franceses eram entrados na cidade, logo mandara ajuntar os de S. Vicente e os do Faial e mandara recado até o Paúl que ele vinha por Ponta do Sol e Ribeira Brava e Calheta e até a noite que vinha seria em Câmara de Lobos, e que ele tinha homens que lhe ajuntassem gados, e assim o fizessem Suas Mercês fazer, para o soltarem à entrada da cidade, porque com ele podiam fazer mais e melhor guerra, e que sabia que o inimigo não tinha forças para resistir a eles; e que mandassem ajuntar a gente da cidade, que andava espalhada, para se acharem juntos com o socorro que lhe ele queria dar, e, assim, como homens marcados pelejassem.

Francisco Leomelim e António de Freitas mandaram vir os homens da cidade, que por aqueles campos estavam tristes, e lhes disseram: «Amigos, já vedes como nos hemos dispostos a vos vir ajudar e socorrer, toda Santa Cruz e Machico, com todos os termos e gente deles, com nossas armas e pessoas, e com nossos filhos e criados, que nas vilas não ficam mais de três homens, que nos mandam fazer e trazer de comer; também temos recado de António de Carvalhal que, pelo mesmo respeito, se move e traz toda a gente que na banda do Norte há, e desde o Paúl até Câmara de Lobos vem ajuntando todos e os traz consigo; será esta noite no Pico do Cardo para cá, com seiscentos homens que pode trazer. Nós aqui vimos até quinhentos, que fazemos soma de mil e cento; de vós outros se ajuntarão outros mil, e que não sejam senão seiscentos, temos gente de sobejo para oitocentos patifes, que os mais são canalha, de que dez não valem um; queremos amanhã, Deus querendo, por não poder ser antes, dar Santiago sobre eles; a isto somos vindos, ajuntai-vos e não arreceeis, e não passeis mais avante, que Deus é connosco, e se vos lançaram fora de vossas casas, assim os lançaremos fora delas e sereis reduzidos à vossa cidade, pelejando como bons cavaleiros, e nós queremos ser os dianteiros, como vereis».

Ouvindo tudo isto muitos da cidade, que ali estavam dantes, e outros, que então chegavam, todos falaram como doentes, dizendo:

«Senhores, já agora é impossível fazer-lhe ninguém nojo, nem mal, porque estão apoderados de toda a cidade; têm as ruas fechadas e trancadas, até a artilharia miúda, berços e falcões, quantos estavam na Fortaleza, têm fora postos por diversas partes, porque moços, que todo o dia, ontem e hoje, lá trouxeram consigo a apanhar fato, que lhe fugiram e vieram ter connosco aí abaixo, nos têm (338) dito isto que lá passa; escusado é agora falar em ir cobrar a cidade, que nem vinte tantos, como aqui estão, o poderão fazer, e fiquem-se embora, que nós havemos de ir ainda lá, a essas defesas (339) e monte do Camacho, a pôr em cobro as mulheres e filhos, e buscar vida nesses matos até que esta praga se vá».

Quando lho isto ouviram, os Capitães deixaram-os ir, e não curaram deles, nem seus ditos, mas antes lhe pesou por haverem cometido a tal gente tal coisa. Muitos diziam: «Para que é pôr a vida, nem morrer por estes, pois eles, que têm a razão de pelejar, fogem?»

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 146

Os Capitães não consentiram que se falasse nisto, mas que aparelhassem as vontades com mais amor e esforço por honra de Deus e bem da pátria, que aqueles não eram necessários, e assim tomaram dizer: «Pois que aguardamos já aqui a noite, desçamos de noite, ou, em amanhecendo, daremos sobre eles».

Logo daí a pouco, sendo já tarde, chegou outro recado, como quatro ou cinco homens, dos que António de Carvalhal havia mandado saber sobre a Praia Formosa se estavam aí as naus e o que pudessem saber da cidade e da gente de Santa Cruz e dos mais; os homens toparam além da dita Praia dois franceses, com cada um seu barril de pólvora, quanto podiam levar para a cidade, e desfecharam neles os arcabuzes; provando suas espadas, os tomaram; deram também nova que António de Carvalhal se apressava mais e estava já perto de Câmara de Lobos, e que os franceses não tinham pelouros, nem pólvora, e, por mais que fizessem, não tinham com que atirar, pelo que era fácil coisa vencê-los, por também andarem bêbados, perdidos, dormindo aqui, caindo acolá.

Com estes contos passaram aquela noite, para, em chegando recado de António de Carvalhal, entraram uns por Valverde, outros pela Concepção, outros por S. Bartolomeu e que António do Carvalhal viria pelo mosteiro das Freiras e pela Carreira, e os da cidade, se se ajuntassem trezentos ou quatrocentos, iriam por Nossa Senhora do Calhau; e, pois as naus não eram ainda idas, nem podiam ir da Praia Formosa, onde estavam ancoradas no ancoradouro, bem perto da costa, que neles haveria bem pouco que fazer, pois não tinham pólvora, nem munição.

Aquela noite se puseram alguns a olhar do Morro o que faziam na cidade e viram muitos fogos assim na praça, como no varadouro e na fortaleza e nas ruas, onde faziam guarda e tinham vigias; pela manhã tocaram seus tambores, deram sua alvorada. Então, chegou o ouvidor do Capitão Francisco Gonçalves, com seu recado ao Capitão Leomelim e António de Freitas, e lhe disse sua embaixada em alta voz, que ouviram todos ao redor daquele campo, regelados do frio de toda a noite, passada batendo os dentes, dizendo, assim, a cavalo, como chegara: «Senhores Capitães, sabendo do Capitão-mor dos franceses, lá nas casas do baluarte, Francisco Gonçalves, Capitão, que ora está preso, vós serdes juntos e vir António do Carvalhal com muita gente, quanta pôde haver dessoutras vilas, que esta noite veio perto de Câmara de Lobos, me mandou dizer por um dos portugueses, que lá puderam entrar, onde ele estava, que me mandava que logo viesse a lhes pedir e rogar e requerer que em nenhuma maneira do mundo daqui se descubram, nem se mostrem, nem apareçam, nem desçam mais abaixo, porque lhe tem jurado o Capitão-mor francês, que lhe outorgou vida a ele e a muitos homens e mulheres honradas da cidade, que estavam dentro na sala grande das casas do Capitão, que por todos e todas, antre homens e mulheres, são mais de cem pessoas, que, se alguém de toda a ilha move e vem contra eles, que a ele, Francisco Gonçalves, e a todos os mais, homens e mulheres, não deixará a vida, mas meterá a cutelo, e que eles se querem logo partir, se bem lhes estiver, e que, pois já o mau recado é feito, não dêem aso, nem sejam causa que se façam outros, e que isto lhe pede e requere da parte de el-Rei comigo; para me todos serem testemunhas, o digo e requeiro em voz que todos me ouçam, Quanto a António de Carvalhal, que esperais, lá lhe são a fazer o mesmo requerimento, e fiquem Vossas Mercês em paz». Os Capitães não lhe responderam de sim, nem de não, dizendo: «Nessa coisa tomaremos assento e o serviço de el-Rei se fará».

Logo se mandou recado a Tomé Álvares do que passavam; e não se consentiu que a gente se descompusesse; mas que, com o parecer de António do Carvalhal, se fossem e que o acertado era ir sobre os inimigos, pois tinham ainda ensejo, e que, se muito tardassem, eles se trinchariam (sic) de maneira que lhes não pudessem depois fazer dano, e assim foi.

Era já alto dia, o recado do Carvalhal nunca veio, a gente com isto arrefecia; os franceses cobraram mais alento, suspeitando-se, e assim foi, que em barcos mandaram trazer pólvora e munição, que as naus não vieram ao porto até a segunda-feira à tarde, que lhes veio tempo.

Os Capitães, vendo que o Carvalhal não vinha, mandaram dois homens saber o que era e, como iam pelo mato, tardaram mais em ir e vir; tudo foi façamos, não façamos; vamos, não vamos; foi-se a coisa arrefecendo de tal modo que, quando veio ao domingo, pela manhã, daí por diante se foram muitos para suas casas para Santa Cruz, por ouvir missa, na qual vila era a matinada já da gente da cidade, que por os caminhos da serra lá foram ter, que quase não havia casa alguma desocupada, e, assim, foi levar má noite e parir filha; não quererem ser socorridos, o ensejo passou e não tiveram mais outro.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 147

Quando veio ao domingo, à tarde, muitos se foram ver suas casas, mas, logo, à segunda-feira tornaram e estiveram até terça pela manhã; e, vendo-se os Capitães sem recado do Carvalhal, tornaram a pôr cobro nas vilas.

Os franceses, como lhe vieram as naus ao porto da cidade, começaram a semear que o primeiro que haviam de fazer havia de ser irem sobre Santa Cruz e destruir e matar e roubar todos.

Assim que tornados os Capitães, cessou tudo; estiveram ali meia légua da cidade cinco ou seis dias sem fruto nenhum; gastar-se-iam mais de cinquenta cruzados ao concelho, além do que os Capitães e os homens ricos gastaram; todos os dias iam e vinham éguas e mulas carregadas de mantimentos.

Dois mancebos de Santa Cruz mataram um francês abaixo de Santiago, que ia da cidade com eles por ver mundo, o qual em breve perdeu a vida, porque os mancebos traziam o feito cuidado; e, descendo por uma ladeira, que ali se faz, o que vinha diante lhe disse: «Senhor francês, vedes aquelas casas que ali estão? Lá podeis crer que achareis muito dinheiro»; e, olhando o francês para cima, o que isto lhe disse se abraçou com ele por ambas as pernas e puxou tão rijo por elas, que deu com o francês em terra, tamanho como um filistim (sic), e o que vinha detrás lhe tomou o arcabuz, que das mãos lhe havia caído, e, dando-lhe com ele na cabeça, o atordoou, e o outro tirou rijo da espada do dito francês (que eles não traziam arma), e assim o mataram, onde ficou até a véspera de S. Lucas, que a perversa canalha se foi; então o queimaram ali mesmo, como também queimaram a outros, que acharam por diversas partes mortos.

Só isto fizeram de proveito Santa Cruz e Machico, com todos seus termos, fazerem o que deviam aos vizinhos e a seu Rei, a Deus e a suas consciências, em socorrer a tal tempo que às mãos os tomaram, porque nenhum frasco de pólvora tinham aquele dia, nem aqueles três; sabido isto ser certíssirna verdade, e a que lhe traziam, lhe tomaram os homens de António de Carvalhal no caminho; não faltou gente, que toda esteve junta, por seu mandado, a daquelas duas vilas, Ponta do Sol e Calheta, mas não ousaram cometer a cidade por os franceses não matarem o Capitão Francisco Gonçalves de Câmara e homens e mulheres que ficaram com ele, e assim ficou tudo frustrado e descomposto.

Estiveram muito à sua vontade os franceses quinze dias na cidade do Funchal, enchendo e carregando seus navios, naus de bom porte, e tanto tiveram que carregar, que não lhe coube em suas oito naus. Tomaram uma caravela, que no porto estava, latina, de António do Carvalhal, fazendo-a redonda, a qual com a nau de S. Tomé, que também tomaram, carregaram à sua vontade de açúcares, muitas roupas, de algumas vinte lógeas, de panos finos, que estavam cheias até as portas, outras roupas, tapeçaria desta cidade, que era muita, cofres cheios de dinheiro, prata e ouro, baixelas de muitos, que ricas havia, sedas, brocados e toda a roupa melhor de linho; de tudo isto tanto, que não lhes foi necessário ir saquear a Santa Cruz e Machico, como eles cada hora diziam; além disso, muitas vezes lhe veio à mão o que eles não iam buscar, porque os navios, que vinham de mar em fora carregados de diversas mercadorias, lhes caíam nas mãos, e assim lhes houvera de cair Francisco de Mares (sic) (340), provedor da Fazenda de el-Rei nesta ilha de S. Miguel, e Belchior Homem, vigairo que era de Vila Franca, que, vindo para cá do Regno e indo lá ter com tempos contrários, foram avisados da Calheta. Crê-se, e sem falta foi assim, que importou o que levaram e saquearam um milhão de ouro.

Quis Nosso Senhor que o cofre de el-Rei escapou maravilhosamente. E, estando até o dia da entrada destes franceses na cidade, o provedor da Fazenda se descuidou tanto, que já eles saqueavam, quando ele o fez levar a oito homens, chapeado de ferro, que levava dentro sessenta mil cruzados, em uns paus, quatro de cada banda, e já que chegavam perto da casa do caldeireiro João Delgado (341), da parte do Oriente, já no arrabalde, quase na cidade, freguesia de Nossa Senhora do Calhau, os foram os franceses seguindo, tirando-lhe com arcabuzes. O provedor, que a cavalo ia, temendo que lhe dariam indo assim mais asinha, apeou-se e se ajuntou com os homens, que o cofre levavam, andando mais até chegar detrás da casa do Dornelas; a este tempo, um francês, mais gentilhomem e mais bem disposto, cavalgou no cavalo do provedor e tornou, correndo para baixo, e disse aos outros: «Deixai-os ir, que levam um morto a enterrar». E com isto ninguém deles mais foi por diante atrás dos que o cofre levavam, que, como ouviram isto, tiveram mais alento até chegarem às paredes do canavial, que detrás das casas do Dornelas estavam, onde o lançaram como da parede em

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 148

baixo, e, por temerem fossem descobertos de outros franceses, que pela parte da outra canada iam, acordaram de meter o cofre mais para dentro, junto a um modelo de pedras, que antre as canas estava, e ali o deixaram, até que da meia-noite por diante o provedor o tornou com os oito homens a levar além da fazenda do Espindulla (sic), onde descansaram e, depois, foram até onde estava o licenciado Luís Preto, provedor dos Resíduos. Ali, o provedor da Fazenda mandou estes homens que o fossem esperar a Santa Cruz, no mosteiro dos Frades, que, como fosse pela manhã, seria com eles; chamou, então, a Pero Corrêa, provedor da fazenda do Espindulla, e ao provedor dos Resíduos, e a João Martins, escrivão da Fazenda, e a Cristóvão Martins, e o senhor do engenho das Moças do Caniço, e ao irmão de Pero Corrêa, e ao vigairo de Nossa Senhora do Calhau, Rafael Luís. Todos estes tomaram o morto e o foram enterrar em um vale, abaixo daquelas casas, onde o deixaram, levando Pero Corrêa cargo de o vigiar, o qual nunca de sua quintã se saiu, enquanto os franceses tiveram a cidade.

Eles se foram véspera de S. Lucas, à sexta-feira, pela manhã, e antes, dois dias, mandaram lançar bando que toda pessoa que quisesse mercar trigo, e vinho, e porcos, bestas asnais, e resgatar seus cavalos, pudessem ir, ou mandar comprar, o trigo a real de prata o alqueire, e a pipa de vinho a mil réis, e os porcos cevados a cruzado, e os cavalos e bestas muares a cruzado, e quem isto quisesse podia ir de paz seguro, sem armas, com dinheiro na mão, e, não querendo, lhes faziam a saber que haviam de matar a todas as alimárias, e derramar o vinho, e o trigo queimar.

Traziam estas novas destes bandos os portugueses, que lá tinham consigo cativos, e outros, que de sua vontade se foram a eles. Soube isto o padre Curado lá no Curral das Freiras, onde estava, e mandou um homem com recado ao padre guardião do mosteiro de S. Francisco de Santa Cruz, onde o provedor, então, se achou, dizendo que sabia que à sexta-feira se partiam os franceses, que ele fosse em pessoa a estar dentro no mosteiro das Freiras, tanto que eles fossem embarcados, porque tinha notícia que haviam ficado muitas coisas ainda no dito mosteiro e que era necessário pôr guarda nelas, e não se achou nele senão tudo estragado, toda a roupa de sustância levada, assim da igreja, como das freiras.

Acabaram de embarcar os franceses ao meio-dia. Já a este tempo pessoas da cidade começavam a entrar nela. Dois mercadores de Guimarães, que tinham na rua do Sabão suas lógeas de mercadorias de pano de linho e de buréis, uma defronte da outra, acharam as portas ferrolhadas e fechadas como as deixaram, sem lhes faltar nada, nem nelas haviam tocado, fazendo ali a guarda e tendo suas trincheiras de pipas e pedras; tanto foi o que na cidade saquearam, que ali não lançaram mão de desfechar aquelas duas portas, nem lhe tocar. Os mercadores louvaram a Nosso Senhor por a mercê que lhes fizera em não serem roubados, mas tenho para mim que, ainda que as abriram, como eram buréis e pano de linho e obra de ferro, que não lhe tocaram nelas, porque muito disto ficou na cidade, de que eles não fizerem conta, que de panos de Covilhã e baetas de Inglaterra se achou depois grande quantidade.

Falar nas coisas dos estragos e insultos que nos templos fizeram é grande dor e mais para chorar que contar: as imagens da Sé quebradas; a de Nossa Senhora de vulto não se achou, nem quem dissesse que fora dela; a de S. Roque cheia de muitos golpes e feridas; os órgãos queimados e derretidos; os sinos, derribados da torre, em baixo, que eram mui grandes todos (afora um muito grande que não puderam descer), queimados e derretidos. Na Sé jogavam e tinham camas e torpezas e, finalmente, tal a deixaram, que mais parecia, aquele dia que se foram, estrebaria que templo de Deus. Todos os outros, da mesma maneira.

Pelas ruas, praças e becos era um insofrível fedor, e não sei como se não corrompeu o ar e, de inficionado, como não gerou peste. Todo género de animais domésticos havia mortos pelas ruas, além de catorze ou quinze corpos de homens, que jaziam por elas e pelas casas, mortos de muitos dias, cujo fedor era tanto, que não se podia sofrer, os quais logo enterraram, e os outros animais lançaram no mar. A pena das fronhas juncava as ruas e os monturos eram tantos e tão fedorentos, que se não sabe dizer; e tudo se queimou e se soltaram depois as levadas, que regam os açúcares, e lavaram toda aquela sujidade.

Logo aquele dia, antes que aquela péssima gente levasse âncora, porque todos foram embarcados do meio dele até depois de véspera, os seus barcos e suas lanchas andavam de um navio em outro e, depois disto, estiveram quedos mais de uma hora. Passado este tempo, se via que lançavam tanta roupa ao mar de colchões e cobertores, e toda a roupa, tanta, que todo aquele ancoradouro era cheio dela, que andava sobre o mar, tardando nisto mais de outra hora; e, querendo saber o porque lançavam esta roupa fora, disseram que não lhes cabia

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Quinto 149

dentro dos navios a que os marinheiros tinham bem agasalhada por sua, e como a dos soldados foi, e não acharam lugar onde se agasalhasse, lançaram fora a dos marinheiros para agasalhar a sua, que era mais razão, como se usa; e assim foi que, acabado de alijar tanta coisa que lhe era volume e empacho para se poder navegar, ou marear as velas, nem servir-se do navio, tocaram as trombetas e tambores por espaço de meia hora, com grande festa, e, logo, cessando isto, começaram a disparar sua artilharia toda com pelouros para terra, com tanto estrondo e força, que parecia quererem bater a cidade. Não partiram senão já bem de noite, e a capitaina fez forol, levando a via do Sueste, que é derrota de Lançarote, e as outras seguiam sua capitaina. E assim se partiram véspera de S. Lucas, sexta-feira, de noite (342).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sexto 150

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SEXTO (343)

DE OUTROS DANOS E PERDAS QUE SE ACHARAM FEITAS NA CIDADE DO FUNCHAL, E DO SOCORRO (344) QUE CHEGOU À ILHA DEPOIS DE PARTIDOS OS IMIGOS (345)

Partidos os franceses com suas naus bem carregadas e cheias, como tenho dito, fazendo forol indo na volta do Sueste, pareciam levar a rota de Lançarote, como, de feito, levaram.

Aquela noite de sua partida, que foi véspera de S. Lucas, o mesmo dia de S. Lucas, pela manhã, muitos vieram ao varadouro e porto onde eles embarcaram por ver o que saía à costa daquelas roupas e coisas que daquelas naus haviam lançado, porque, como, à vista de todos os que já na cidade estavam e já vinham para ela, dos lugares donde haviam estado aqueles dias de sua miséria e desterro, tanta coisa andava no mar sobre a água, que todo aquele ancoradouro era cheio. Cuidavam que tudo sairia à costa e pela manhã se acharia na praia daquele porto do Funchal, por fazer tempo quieto e bonançoso; mas de quanto se esperava ver fora, que assaz fora bom para seus donos e a muitos ficara remédio com que se cobriram, não se achou, nem saiu a terra mais que dois ou três cobertores e um ou dois colchões do muito que haviam lançado fora; parece que, como se embebeu e encheu de água, se foi ao fundo e assim se perdeu tudo, e o que se achou foi o que eles não puderam levar, cansados já de embarcar tanto.

Estavam perto do mar muitos quartos cheios de carne em salmoura e os mais de carne de porco; também algumas pipas de biscoito e muitas de vinho e algumas de mel; estavam, assim mesmo, duas peças de artilharia mui grossas, que haviam levado da fortaleza, cuidando de as embarcar, ou lançar dentro no mar, que não fossem vistas, nem achadas, mas, como tão grandes e pesadas fossem, não podendo delas fazer o que cuidavam, as atupiram, pelas bocas, de calhau, atochando-o e metendo-o com mastos (sic) de barcos, de tal maneira, que ninguém julgava prestarem para se poderem servir delas, porque além de serem atupidas, de tal arte eram também, pelas escorvas, acravadas com brocas de fino aço, temperado, e metido com força de malho, de modo que o buraco, que, da escorva, antes era redondo, estava quadrado, com tanta força e violência atochados (sic). E da mesma maneira estavam outras seis peças, tamanhas e tão grossas como estas, na fortaleza, que atupiram e encravaram, a fim de jamais prestarem, nem com elas atirarem.

Eram e são estas peças de vinte e quatro e vinte e cinco palmos de comprido, e de três em grosso pela culata (sic) até os bulhões, e vêm acabar na boca, de dois palmos e meio todo o grosso, de maneira que são das maiores que há neste Reino, mais compridas que o tiro de S. Miguel, que está na fortaleza da Ponta Delgada nesta ilha, e mais grossas.

Assim que isto só foi o que ficou no porto e o que se achou, tudo se pôs em cobro, ainda que a carne não faziam caso dela, dizendo que aqueles cães a deixariam, por ventura, acinte cheia de rosalgar, para matar a quem a comesse, o qual não era assim; e não sei o que dela se fez, creio que se aproveitaria, depois de feita experiência, na falta que havia e houve naqueles dias, até se prover a cidade de mantimentos ordinários, como depois se proveu.

Este dia de S. Lucas, que ao sábado era, se alimpou e lavou bem a cidade, templos e casas, praças e ruas, queimando todos os monturos, cães, e gatos, e porcos, e todas as alimárias, que estavam por eles, e mortos e enterrados, e sepultados todos os corpos de portugueses mortos, que nas casas achavam, e fora da cidade, em algumas casas de quintãs, onde orredor (346) da cidade se haviam acolhido, e os que viam serem de franceses os queimavam.

E, acabando de ser todo queimado quanto disto havia, foram abertas as levadas de água e soltas pela cidade, para que todo fosse lavado e purificado, que, como já atrás fica dito, toda esta cidade do Funchal se rega por altos e baixos, por ruas e becos, e assim ficou este dia tudo

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sexto 151

acabado de alimpar, e as sepulturas no adro e mosteiro de S. Francisco acabadas de cobrir e assentar, que toda a igreja e adro eram cheios de covas abertas, cada uma das quais onde vinte e mais corpos eram lançados; e no primeiro adro, onde está a primeira cruz, havia cova aberta, que era de espaço de uma grande casa, onde diziam os portugueses, que com os franceses andavam, que eram lançados mais de oitenta homens, que dos mortos da fortaleza ali lhe mandaram os franceses trazer e enterrar, e muitos deles os ajudavam; e os mais enterraram dentro do outro adro e igreja e crasta do dito mosteiro.

Este dia se desenviolaram os templos e se preparou tudo o melhor que pôde ser para ao domingo se celebrar, ainda que na Sé não se celebrou, por não se poder aquele dia tudo purificar, nem alimpar.

Este dia se viram o provedor dos Resíduos, o licenciado Luís Preto, e o Padre Frei Manuel Travassos, e o síndico das freiras, Manuel Vieira, e Genobre Chiole, com Gonçalo Pires, escrivão dos Contos, que ainda de suas casas, à Carreira, onde morava, não havia saído fora, porque, de mais de ser velho, não estava também disposto, e dois capitães franceses o tomaram em suas casas e o asseguraram que nenhum mal receberia deles, e pousaram com ele dentro sem lhe fazer nenhum dano.

Este Gonçalo Pires afirmou aos ditos provedor dos Resíduos, e a Fr. Manuel Travassos, guardião, e aos mais, como aqueles dois capitães, que em sua casa tivera por hóspedes, lhe certificaram que não traziam, nem trouxeram, pensamento de entrar na ilha da Madeira, mas, de caminho, ver se podiam haver naquelas quintãs e lugares, onde saíram, algum vinho e gados para sua viagem, e que iam direitos à Mina, e que aquela cidade do Funchal se lhes havia entregado de sua livre vontade; indo-se à Praia Formosa descobrir e fugir para trás, onde, por ordem de seu Geral, foram todos desembarcados e, subindo a ladeira da Praia, viram os caminhos cheios de homens e mulheres a fugir para a serra e que, sabendo seu Geral a cópia e número da vizinhança daquela cidade não chegar a dois mil vizinhos e vendo, por vista dos olhos, todos os caminhos, que para o mato iam, serem cheios dos que, fugindo, iam da cidade, tomara conselho com os capitães, e se deliberaram de ir sobre ela, visto a pouca resistência e defesa que nela podia ficar, pois todos fugiam, e que nunca tiveram para si que aquela cidade fosse entrada com muitos mais dos que eles eram, e assim não traziam esse propósito, senão depois que viram que não lhe ficava resistência, e que iam mui ricos do saquo que nela houveram, sem lhes matarem mais de quatro soldados e seu Geral, por se não haver querido curar de um golpe que uma lasca de uma pedra lhe deu em um giolho o dia da entrada, o qual tiro, que fez saltar a lasca, viera do mar, de um navio, que àquela hora se fazia à vela, e atirara, e por isto se afirmou ser a caravela de Setúval a que atirou, cujo piloto e senhorio era um bom homem, falto de um olho, a que não soube o nome; este atirou a estes, quando já queriam entrar na cidade; cuido seria nos que vieram pela banda de Santa Caterina, que descobre ali o porto em claro. Não lhe quiseram estes capitães dizer seus nomes, nem menos o nome do Geral, senão que era um grande senhor e bom soldado e que sua morte havia de ser bem sentida em França, e seu corpo ficava sepultado em um templo, em lugar onde nenhum daria com ele e que só os capitães o sabiam, que o haviam sepultado, sem nenhum outro francês o saber, e que a um seu sobrinho ali haviam alevantado por Geral, que era um mancebo mui bem disposto e um bom capitão de guerra. Assim mesmo, lhe certificaram que o dia de S. Francisco, quando os de Santa Cruz e Machico foram em socorro dos da cidade, que foi logo ao outro dia depois de eles haverem entrado, se vieram sobre eles, eram todos despachados e mortos, porque nenhum tiro, nem carga de pólvora, tinham em frasco, nem barril, nem outra arma de que usar, senão suas espadas, e tão cansados e desvelados, que duzentos portugueses bastavam para os cativar e prender, ou para não deixar nenhum deles a vida, e que não abastava ter nisto muita conta os capitães e oficiais em proibir aos seus não se lançassem ao vinho, que seriam facilmente perdidos por o daquela terra embebedar muito; sem embargo disso, não ficaram trinta homens que aqueles dois dias prestassem; e, se os herpes caíram na perna do seu Geral, não fora senão porque aquelas três noites arreo não dormiu, nem sossegou, fazendo trincheiras e repairos, cuidando nada disto lhe bastasse, por haver tido notícia de virem sobre ele toda a gente da ilha. É de crer que o medo, que tomou com esta nova, lhe fez espasmar a ferida, e assim lhe saltaram os herpes e morreu logo daí a cinco dias. Também lhe disseram estes capitães como o seu Geral fizera com Francisco Gonçalves da Câmara, que com as mulheres cativo estava, mandasse dizer aos que vinham que não aparecessem, porque, logo, em se descobrindo, todos os que estavam em prisão com ele seriam mortos e que por demais era sua vinda. porque estavam tão fortes os franceses, que diziam que nem a todo Portugal tinham medo. Mas a verdade era estarem

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sexto 152

rendidos, e mais, quando souberam que a pólvora, que esperavam, lhes era tomada e os que a traziam mortos e presos, dos quais António do Carvalhal se havia bem de informar da necessidade em que estavam, e o tempo indisposto para as naus virem ao porto e também receosos de lhas tomarem, indo de noite a elas lá na Praia Formosa, onde ancoradas estavam, por não terem nelas gente que as defendesse. Nestes e em outros receios estiveram aqueles três dias ou quatro, antes que de pólvora e de munição fossem providos. Os da terra haviam dito aos Capitães de Santa Cruz, Leomelim e Freitas que, de noite, em sete ou oito barcos, que havia em Santa Cruz e Machico, indo homens de feito, podiam entrar e abordar as naus do imigo e pô-las em cobro, o qual seria melhor e mais bem acordado feito que naquela conjunção se poderia fazer, porque, bem olhado, as naus não podiam ter em si mais que a gente de marinhagem e, posto que alguma mais tivessem, seriam tão poucos, que bem poderiam os da terra dar com eles, acometendo-os por muitas entradas, ao que os Capitães responderam que seria temeridade fazer tal acometimento, porque não era de crer que não estivessem eles a tudo aparelhados, o que não estavam, pelo que estes capitães certificaram ao dito Gonçalo Pires, escrivão dos Contos.

E nisto e noutras coisas, que se disseram, se passou aquele dia de S. Lucas. Ao outro, que era domingo, se apregoou haver no moesteiro de S. Francisco missa e pregação de um frade domínico, bom letrado, que dantes pregava na Calheta e na Ponta do Sol, vilas do termo do Funchal, e como, do povo, que já era junto, muita parte dele soube que havia missa e pregação no mosteiro, se ajuntou a gente cedo, por não errarem a hora, pois não havia sinos com que se tangesse à missa, que todos eram quebrados e derretidos e os que ficaram sãos não eram para poder tanger, por estarem derribados.

Pregou o padre (sic) mui bem, tomando por tema aquilo de S. Augustinho: «Os males que padecemos, nossos pecados os mereceram». Provou como os pecados daquela cidade foram os que haviam trazido os luteranos a ela, a fazer tal estrago de vidas e fazendas e tais insultos e sacrilégios nos templos de Deus e coisas dedicadas ao culto divino, não ficando nenhum estado sem particular reprensão, com grande choro dos circunstantes; deteve-se o padre muito em consolar ao povo, dizendo-lhe que muito lhe seriam prestadias aquelas lágrimas, se tivessem paciência e melhorassem as vidas, ainda que muito mais consolados ficaram, se ouviram a Fr. Martinho Tamayo, que era o pregador do Funchal, frade do mesmo hábito, grande letrado, também castelhano, como este, o qual se havia partido também para Lisboa em o navio do aviso da entrada do Funchal, que de Santa Cruz havia partido logo ao segundo dia ou terceiro da entrada dos luteranos da cidade, de que adiante direi.

Acabada a pregação e saídos da missa aquele domingo, vieram os cónegos e o daião, vigairo geral, desenviolou a Sé e os outros templos, em que dali por diante se tornaram a celebrar os divinos ofícios.

Aquela semana os Capitães Francisco Leomelim e António de Freitas prenderam a Francisco de Porras, filho da Capitoa da ilha do Faial, uma destas dos Açores, e a outro homem nobre, os quais, segundo se achou, foram muito culpados, por se haverem lançado com os franceses e enganado a muitas pessoas, assegurando-os que tornassem para a cidade, onde depois eram avexados; os Capitães, por esta causa, os embarcaram presos em uma caravela, que viera da ilha de Canária, para Lisboa, e enviaram cartas com recado do que passara e como havia já alguns dias que os franceses eram partidos, além (como alguns dizem) de outro recado, que dantes tinham mandado ao Reino em outra caravela que se achou em Machico, que, brevemente, dentro em quatro ou cinco dias, chegou a Portugal e deu aviso a el-Rei e ao Capitão Simão Gonçalves de Câmara, que neste tempo lá estava na Corte.

Foi levado o Porras a Lisboa e lá sentenciado a degolar, e, por ter padrinhos, não o degolaram, mas foi degradado para o Brasil, ou S. Tomé, e veio a morrer enforcado na Terceira, por mandado do Marquês de Santa Cruz, no mês de Julho do ano de 1583, quando se fez justiça do Conde, que queria ser, chamado Manuel da Silva, e dos mais que ali acabaram; e também acabou este Porras seus caminhos. E parece isto não carecer de mistério: ser preso em Santa Cruz, por se haver lançado com os franceses, e ao cabo de dezasseis anos ser tomado antre franceses, em ajuda dos revéis, e condenado à morte, sendo enforcado por mandado do Marquês de outra vila de Santa Cruz.

Isto feito, daí a dois dias veio uma grossa armada de oito galeões grossos e algumas caravelas e zabras, a qual, em Lisboa, se fez com a presteza possível, como lá se soube da

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sexto 153

entrada dos franceses no Funchal; era Geral Sebastião de Sá, do Porto, capitães seu irmão, Pantalião de Sá, e outros, a que não soube os nomes.

Veio nesta armada João Gonçalves da Câmara, morgado, filho de Simão Gonçalves, Capitão do Funchal e ilha da Madeira, e com ele o Capitão Alexandre Moreira, que era capitão em Tânger, ou em Mazagão, Gaspar Luís, por Sargento-mor, para pôr boa ordem nas coisas da guerra, como pôs, e outros três capitães da infanteria, dos do número, o Salvaguo, e Hipólito (segundo cuido) e D. Enhigo, e outros ilustres capitães e fidalgos, que com João Gonçalves da Câmara e Sebastião de Sá vinham, cuidando empregaram bem a vida em serviço de Deus e de el-Rei, D. Luís de Cascais e D. Luís Coutinho, Comendador da ilha de Santa Maria; os mais destes senhores e morgados vinham à sua custa. O Grão-capitão Francisco do Rego de Sá, desta ilha de S. Miguel, que daí foi por capitão em um dos galeões de el-Rei em seguimento dos franceses (347).

O primeiro que aportou no Funchal foi João Gonçalves da Câmara, morgado da ilha, que, pelo que lhe cabia, partiu dois dias antes que a outra frota em dois navios com muitos parentes e amigos seus a socorrer a sua cidade, sem esperar por armada nem mais ajuda que a que levava de seu esforçado coração, o que não deixou de ser julgado por temeridade, pois tão ousadamente se oferecia a tão evidente perigo, mas ele, entendendo que nas coisas de importância a determinação há de ir diante do conselho, principalmente naqueles negócios em que não convém haver detença, quando nelas está o perigo deles, portanto, não curando de considerações em tão urgente negócio, pelo que cumpria a sua honra, além de o cometer como cavaleiro, vinha com tenção, dois dias antes de sair em terra, com sua companhia, juntamente, e com os naturais, dar em os franceses, que havia seis dias, quando ele chegou, que eram já partidos para Canária; e na Gomeira e Lançarote se detiveram alguns dias em se arrumar e resgatar alguns escravos e fato, donde vieram na volta destas ilhas dos Açores, e daí se foram a suas terras.

Chegada esta grossa armada, com muitos fidalgos e gente ilustre, ao porto do Funchal, parecia e mostrava serem mui pesantes por não virem a tempo que acharam os franceses nele. Perguntou o Geral, logo, como saiu em terra, pela rota que os franceses haviam levado, e disseram-lhe que, a juízo de todos, estariam em Lançarote e em algumas das outras ilhas de Canária, resgatando fato e vendendo escravos, de que iam cheios, que, para se poderem marinhar, lhe fora forçado, antes de partidos daquele porto, lançarem ao mar a soma de roupa já dita, e que, sem dúvida, lá seriam, por não terem outro lugar donde pudessem resgatar e vender mais à sua vontade que naquelas ilhas. E assim era, que lá foram vender muitas coisas do que levavam, como depois se soube.

O Capitão-mor mostrou ter grande desejo de ir logo após eles; aquele dia não saíram em terra mais que os capitães e alguns fidalgos, por onde todos entendiam que toda a armada se levantaria logo em seguimento dos franceses, mas não foi assim, que consentiu o Capitão-mor que saíssem os soldados em terra, ao outro dia, e foi tal a desordem que, sem falta, fora muito melhor não haver vindo aí; foi outro saquo na terra, em especial nas coisas dos mantimentos e nos canaviais de açúcar, sem ser possível aqueles seis dias embarcar-se soldado nenhum; tudo era fazerem arruídos, feitiços e assomadas e não darem nada por Geral nem capitães; ao cabo de oito dias se embarcaram mal, e por mal cabo (como dizem), porque se iam os soldados embarcar, e tudo era ir a Machico, e a Santa Cruz, e tornar à cidade do Funchal, porque se fez a armada à vela, por caso do tempo contrário, para estarem sobre âncora.

Ida a armada em busca dos franceses a via de Lançarote, ficou no Funchal o morgado João Gonçalves da Câmara, filho de Simão Gonçalves da Câmara, Capitão da ilha, e o capitão Alexandre Moreira, e Hipólito, Salvago, e D. Enhigo, todos capitães do número, e Gastrur (348) Luís, sargento-mor de toda a ilha, e também Francisco Osório, que nesta ilha depois foi sargento-mor; ficou também Pantalião de Sá e Loronha, (sic), todos para porem cobro na terra e dar boa ordem nas coisas da guerra, e ensinarem nisto a todos os moradores daquela cidade e de toda a ilha, o qual se fez cumpridamente, porque nisto, de contínuo, se excitavam todos os dias de festas e alguns de semana.

Estavam (como já disse) as peças, que havia, de artilharia, muito grandes e grossas, todas acravadas e atupidas, que para nada podiam servir, senão para se derreter e fazer outras. Quis saber João Gonçalves da Câmara, com todos os demais capitães, se teriam algum remédio para poderem servir, porque sem elas nenhuma defensão tinha aquela cidade contra imigos, que esperavam vir sem falta, segundo havia notícia, principalmente ingreses, de que tinham

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sexto 154

mais receio; porque não havia muitos anos atrás que naquela cidade haviam enforcado dezassete, de seu poder absoluto, e, sem esperarem sentença do Desembargo de El-Rei, mandaram deles fazer justiça, pelo que se dizia que, por serem alguns destes mortos pessoas de sorte e bem aparentados, correndo a nova disto a Inglaterra, os ingreses tinham jurado satisfazer-se e, como, então, tinham tal oportunidade, por estarem dos franceses saqueados e destruídos e sem artilharia nenhuma, podiam mais a seu salvo vir e acabá-los de destruir, principalmente depois que uma caravela chegou ao porto, que vinha da Gomeira, onde os franceses que saquearam o Funchal foram ter, depois de estarem em Lançarote surtos muitos dias, da qual caravela se soube certo que a nossa armada chegara ao porto de Lançarote dois dias depois de partidos os franceses, donde mais começaram a murmurar do capitão Sebastião de Sá, por se deixar estar ali tantos dias surto, com tão grossa armada e tão luzida gente.

Também se soube por outra caravela, que da Palma veio, que chegara a nossa armada a Gomeira um dia depois que os ditos franceses se haviam partido, os quais, da Gomeira, se vieram na volta destas ilhas dos Açores e, sem chegar a elas, se foram para França, e a nossa armada foi em seu seguimento e alcance para a Costa de Guiné, Norte e Sul uma da outra, sem jamais ambas se encontrarem.

Esta caravela deu também novas como os franceses iam dizendo que logo os ingreses e eles haviam de tornar sobre a ilha da Madeira, e apoderar-se dela, e tomá-la para França, pois nela não ficava nenhuma defensão de artilharia, porque de tal modo a deixavam entupida e acravada, que nunca mais prestaria senão para se fundir, o qual tarde se faria, e que eles haviam de ser senhores daquela ilha e fortificá-la de tal sorte, que nenhum poder humano lha ganhasse.

E na mesma caravela da ilha da Palma veio um regedor dela, chamado João de Vilhalobos, em nome de toda a ilha, a oferecer-se à ilha da Madeira para todo o que lhe cumprisse, que, como bons vizinhos, estavam prestes a socorrê-la, assim com suas pessoas e armas, como com dinheiro e mantimentos, dando a entender o muito que lhe pesava de seu mal e dano, como magoados da mesma dor e trabalho; teve o Funchal isto em grande conta e mercê e assim o agradeceram ao dito regedor, o qual também lhes afirmou o mesmo que os franceses iam dizendo.

Havendo todas estas notícias, estando em tal receio e sendo as peças de bronço (349), que acravadas lhe ficaram, tão boas e grossas, que nenhumas do Reino são melhores, e que tanta falta faziam, e necessidade delas tinham, buscavam modo como se desencravassem e desatupissem, até que o acharam, como agora direi.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sétimo 155

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SÉTIMO (350)

COMO FOI DESENCRAVADA A ARTILHARIA GROSSA DA ILHA DA MADEIRA POR UM GASPAR BORGES, GRANDE E ENGENHOSO ARTÍFICE (351)

Estando com toda esta artilharia grossa encravada e atupida e, com tais avisos e em tal necessidade, procurando remédios como se desencravasse, e havendo-se já sobre isso tomado parecer com todos os capitães que na armada vieram, e com os homens principais e de muitos anos da Índia e de Itália, não podendo de sua indústria dar ordem a desencravar nem desatupir as ditas peças, foi dito ao Capitão João Gonçalves de Câmara que, se um Gaspar Borges, grande e engenhoso artífice de coisas de ferro e de outras matérias, que, então, estava na ilha, as não desencravasse, não acharia outrem que lhe desse a elas remédio, pelo qual o mandou chamar. E, dizendo-lhe o que dele queria e esperava, que era ver desatupidas e desencravadas aquelas peças tão grossas de artilharia de bronço, de cuja obra dependia a defensão daquela cidade, sobre o qual disse estar informado que só ele, antre todos os que naquela ilha estavam e na armada haviam vindo, lhe podia dar remédio, lhe respondeu Gaspar Borges que lhe era necessário ver bem as peças, para dizer se era possível desatupi-las e desencravá-las. Disse-lhe o Capitão que as visse logo.

Vendo-as, apalpou com um cinzel as brocas e achou serem de aço temperado, muito rijas, e estarem cravadas com tanta força, que os buracos das escorvas, que dantes eram redondos, estavam quadrados pola força das brocas, que quadradas eram; conjecturou consigo que com uma de duas maneiras era possível desencravá-las, e, tomando bem o pulso à coisa, oferecendo este caso a Deus, que dá tudo, achou o remédio como e com que as havia de desencravar e desatupir, sem ver impedimento algum para se deixar de pôr em execução seu intento.

E logo foi ter com o dito Capitão, que com muitos senhores e capitães o esperava ao Varadouro, e dizendo-lhe que as peças teriam remédio, se foi o Capitão a ele com os braços abertos, e, abraçando-o, o alevantou no ar, dizendo: «Grande alegria e contentamento é o que me destes; pois assim é, dizei-me quanto vos hei-de dar polas restaurardes de modo que possam servir como dantes». Disse-lhe que bem merecia o que valia a melhor peça delas, mas que se contentaria com mil cruzados, porque com menos lhe não pagavam. Disse o Capitão: «Jesu, Mestre! Eu cuidei que com trinta cruzados vos pagava». Respondeu: «Senhor, esses hei eu mister para fazer os instrumentos com que se hão de desencravar». Disse, então, o Capitão: «Desse-vos logo o dinheiro que houverdes mister para esses pertrechos (sic) que dizeis, e olhai que fazeis nisto um notável serviço a El-Rei Nosso Senhor, e que vos há-de ser bem pago». Ao que respondeu que o serviço ele confiava em Deus de o fazer do modo que era necessário e que assim esperava também alcançar o prémio conforme a sua indústria e trabalho. Estavam presentes a tudo isto mais de duzentas pessoas, assim capitães, como outros fidalgos.

E, logo, se pôs em obra de levar as duas peças (que junto da água, ao Varadouro, estavam), com muitas juntas de bois, à fortaleza, onde as mais estavam, e, sendo lá, e ele com elas, Francisco da Câmara, que ainda não saía fora de casa por estar ferido e maltratado dos franceses, o mandou chamar, para conhecer quem era o que havia de fazer coisa que todos e ele duvidavam. Indo ante ele, que, com mais de outros quarenta fidalgos, estava assentado em uma grande sala, e outros em pé, lhe disse:

«Mestre, todos folgamos (352) muito com a boa nova que destes ao senhor Capitão João Gonçalves, e eu mais que todos a estimo, pelo muito que me cabe em ver tornadas a seu uso as peças da artilharia deste baluarte, que, segundo me dizem, estão perdidas, para não prestarem mais, se vós as não desencravais e desatupis, sendo tão necessárias para a defensão desta cidade e as melhores do Reino; mandei-vos chamar para vos conhecer e, já

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sétimo 156

em vos ver, entendo, e tenho por sem dúvida, serem as peças todas remediadas, no que fazeis a El-Rei Nosso Senhor muito serviço, e a esta cidade mui grande amizade, e, além de tudo, escusais despesas e gastos, que em as levar a fundir ao Reino se haviam de fazer, pois para outra coisa, sem vós, não prestam; o que todo vos há-de ser bem pago e agradecido, e eu, porque assim o espero, que as haveis de dar prestadias, como dantes eram, além do que EI-Rei Nosso Senhor e o senhor João Gonçalves de Câmara, Capitão desta ilha, que vos encarregou (353) nesta obra, vos derem, vos prometo trinta mil réis para calças, e olhai que diante todos estes senhores vo-los prometo; portanto, ponde os ombros à obra e levai-a com presteza avante, e o dia que acabardes de desencravar todas as peças vinde aqui, que eu vos darei os trinta mil réis que vos prometo, assim como dito é».

Disse Gaspar Borges que beijava as mãos de Sua Mercê pola mercê e a aceitava, e que tivesse por certo que, tendo saúde, as veria cedo desencravadas e aproveitadas da maneira que dantes eram, ainda que era bem dificultoso negócio, por serem com brocas de aço temperado cravadas.

Logo, ao outro dia, lhe mandou dar o Capitão João Gonçalves de Câmara seis mil réis para preparar os instrumentos com que se haviam de desencravar, e, acabados, começou por um dos caminhos e meios dos dois que tinha imaginado, o primeiro dos quais foi em vão, porque com ele não se puderam desencravar, ainda que foi disposição e melhor preparação do que se esperava para pola outra via se desencravarem, a qual preparação foi desta maneira.

Fez tão descobertas as brocas, que nos tiros estavam, como dois dedos, cavando no bronço com cinzéis em quadra, de modo que ficasse como escorva para se cevar por ali com o polvorinho e pudesse caber uma tenaz de malheiro, ainda que era mais grossa, as bocas da qual fez de aço bem picadas, fazendo fazer e trazer uma polé de aspas, pela qual puxavam oito homens, estando os tiros cobertos com fogo de grossa lenha, os quais, sendo tão quentes como convinha, apegando com a tenaz na broca, puxando os homens, não se fez coisa alguma no tirar das brocas; os tiros estavam escorados e, ainda que o não estiveram, por serem de cento e quarenta e cinco até cento e cinquenta quintais cada um, por sua grandura e peso, podiam deixar de ser escorados, mas antes consentiam arrastar-se puxando e aferrando bem com a tenaz polas brocas, que desencravar-se. Fez o mestre isto de noite, por lhe aplicar melhor o lume, certificando o Capitão João Gonçalves de Câmara dele, que o fogo lhes fazia mais proveito que pedra, porque, ao menos, gastava o salitre e sujidade que em si tinham.

Como o Capitão João Gonçalves e Francisco Gonçalves, seu tio, com os mais capitães, vissem que daquela sorte não se pudera desencravar a artilharia, (ainda que Gaspar Borges já a este tempo a tinha desatupida (354), desconfiaram todos de a ele desencravar; mas, rindo-se ele, lhes dizia com alegre rosto: «Certo que agora quero obrigar a cabeça a El-Rei Nosso Senhor e a Vossa Mercê que as hei-de dar desencravadas, e as brocas na sua mão, e as que quiser que se convertam em pó ficarão assim nele convertidas, e as que quiser tirar inteiras já digo que inteiras as hei-de dar nas mãos de Vossa Mercê e do senhor capitão Francisco Gonçalves de Câmara, por não perder a promessa de Sua Mercê dos trinta mil réis». Do que todos zombaram e se foram descontentes.

Teve o mestre cuidado de fazer suas águas fortes muito mais que as da botica, comprando cera e fazendo seus vasos, tendo tudo a ponto. E não quis aqueles três ou quatro dias ir ao Paço dos Capitães; só o capitão Alexandre Moreira, que lhe era mui afeiçoado, ia à sua tenda, por se desenfadar e falar castelhano com ele, e também italiano, e outras vezes o mandava chamar ao cubelo, onde tinha seu alojamento e pousada, e aí lhe rogava que lhe declarasse como havia de tirar aquelas brocas dos tiros, que o tinha por impossível, ele e os mais capitães, ainda que havia certificado ao Capitão João Gonçalves que, sem falta, pois ele lhe havia oferecido a cabeça, lhas daria tiradas fora.

Respondeu-lhe o mestre que, em lhe oferecer a cabeça, se perdia pouco perdendo-a e mais se perdia em não se aproveitarem aquelas tão grossas e necessárias peças, mas que, assim como lho tinha prometido, o havia de cumprir, com ajuda do Senhor, e que estudassem em lhe dar bom galardão de tão proveitosa obra, como lhe fazia, e tão difícil a todos, e, pois haviam visto com que arte e indústria as havia desatupido, que assim com outra melhor as daria desencravadas, e que, se Suas Mercês entenderam alguma coisa de Filosofia, lhes provara, por regras e princípios necessários de outorgar, como não podia ser o contrário, senão serem desencravadas as peças e tiradas as brocas com os dois dedos, que lhe amostrou da sua mão, mas que, como careciam de entender princípios, conclusões e pressupostos, não era muito

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sétimo 157

negarem o que, se entenderam, haviam de conceder; e que, pois isto tinha (355) já chegado a termos de ele obrigar a cabeça e redundava o bem desta obra em serviço de el-Rei e tão grande proveito daquela cidade, que avisasse e pedisse ao senhor João Gonçalves de Câmara, a cujo cárrego estava o prover em todo, mandasse fazer portas e fechar o baluarte, porque não havia de estar aplicando as coisas com que se haviam de desencravar à vista de ninguém, por não dar matéria a que se falassem ignorâncias, e, como estivessem fechadas, em breve espaço veria feito o que tanto desejava.

Vindo o mestre a sua casa, depois de passado isto pela manhã com Alexandre, a horas de jantar, foi chamado de parte do Capitão João Gonçalves, ao qual achou jantando com Alexandre e com todos os capitães. Fez-lhe muito gasalhado, rogando-lhe declarasse o como havia esta segunda e última vez de desencravar as ditas peças, ao que respondeu que a Sua Mercê não convinha saber o como se haviam de fazer, senão recebê-las acabadas para lhe gratificar e pagar bem seu serviço, como lhe tinha prometido, o qual veria sem falta acabado de fazer, assim como ele se tinha (356) oferecido, para o qual lhe mandasse dar o baluarte fechado, como ao capitão (357) Alexandre havia pedido avisasse a Sua Mercê, e, desta maneira, brevemente seriam todas as peças desencravadas.

Foi tanto o que matinou que lhe revelasse o como havia de pôr isto em efeito e com quê, e tanto o que o persuadiu o capitão Alexandre que o fizesse, por dar gosto ao dito João Gonçalves e a todos os circunstantes, que lhe foi forçado revelar-lho. Mas primeiro lhe disse que, já que lhe faziam força em declarar seus segredos, se tinha por ditoso em dar primeiro o todo que a parte, e, pois assim eram servidos, havia de ser com seu encárrego, e lhe haviam de conceder certos pressupostos e conclusões necessárias, das quais lhe proporia poucas e as mais claras para que o entendessem, e, entendidas, concederiam o que todos os que sabem concedem. Assim o começaram todos a escuitar, e ele começou a dizer:

«O primeiro que quero e convém que concedam é: que toda a coisa, que se move, há-de ter movedor dentro de si que a mova, ou fora de si». Disseram que o não entendiam. Disse-lhes: «Todo animal tem movedor dentro de si para se mover, o qual animal morto, fica o corpo sem mover-se e o movimento fora de si, como a pedra, quando é movida com o braço que a tira ou deita fora do lugar onde estava». Disseram que assim era. Disse-lhes mais: «Toda a coisa que vem de potência em acto e de não ser a ser há mister coisa que a tire da tal potência e lhe dê tal ser, e, se tem impedimento, o que tira o tal impedimento se diz tirar da potência em acto». Não entenderam esta.

Disse-lhes: «O que Vossas Mercês querem eu o tenho em mim, que entendo-o como a coisa que pedem há-de ser; o impedimento é dilatar o que hei-de fazer, ou não o querer fazer, de modo que, havida a matéria e posta em obra, se tira o defecto (358), e assim sai a coisa de potência em acto e do não ser a ser, pois em mim está o entendê-la e o poder fazê-la, ainda que o meu poder seja limitado, não mais de para fazer quanto me é outorgado».

Entenderam e concederam que era assim, mas que inda não estavam satisfeitos. Respondeu: «Ainda não têm razão de o estar; mas, por que melhor o entendam, hão-de conceder que quatro são a metade de oito e cento a metade de duzentos». Disseram: «Assim é». «Pois parece a Vossas Mercês, lhes disse ele, que, se alguém negasse que quatro não eram a metade de oito e cem a metade de duzentos, que se podiam bem rir do tal e tê-lo por puro ignorante»? «Sim», disseram eles.

Disse ele: «Pois assim é do que negasse o que digo, havendo concedido que aquele, que pode e quer, tem poder de tirar a coisa da potência em acto e do não ser a ser; e este que a tira de sua privação, que é do não ser a ser, é o obrador, e a substância, ainda que seja substância criada, como é o homem, a imitação de Deus, que é substância incriada e é o que tirou todas as coisas do não ser ao ser, vendo que o ser daquelas era melhor que a privação delas, e que é causa eficiente e preservante por quem todas as coisas são regidas e governadas, uma causa necessária de ser, sem o qual nenhuma coisa pode ser, e assim todas as coisas são por ele; este Senhor teve por bem dar ao homem entendimento, que veio dele, com o qual contempla as coisas e as alcança e compreende, tanto quanto é possível à natureza criada. E, pois, fica já dito o que foi necessário conceder, agora quero declarar a Vossas Mercês o remate de como, não por milagre, senão naturalmente, por coisas palpáveis, visíveis e naturais, se hão-de desencravar e tirar as brocas das peças, que tão difícil parece, e assim o é ao que não entende».

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sétimo 158

«Hão-de saber e conceder o que a todos, em geral, é notório e visto: cair raios de fogo do Céu (onde algumas vezes vêm pedras que chamam de corisco), os quais raios, se acontece caírem e darem em algum sino de metal, o derretem, mas a corda no sino, nem a correia de couro, com que está atado o badalo, nenhum dano recebem; e já se acharam homens mortos de raios com o ouro e prata, que dentro nas bolsas tinham, derretido, ficando sãs as bolsas e os cordões delas inteiros».

Perguntaram os capitães por que causa aquele raio fazia aquilo, desfazendo o rijo e duro, sem fazer dano ao fraco e brando; aos quais respondeu que era sua propriedade aquela de ofender e obrar com maior força onde achava mais resistência, o que lhe vinha da própria natureza do fogo de que era o dito raio. «Pois, aplicando isto a nosso propósito, hão-de saber que os materiais e águas com que hei-de tirar e gastar as brocas da artilharia (que agora estão mais dispostas para isso por estarem já destemperadas e capazes de se poderem melhor gastar, pois, caminhando para este fim, foi a causa por que aguentei as peças de bronço naquele lugar onde me era necessário), as águas fortes (torno a dizer), que para isto hei-de fazer e aplicar às mesmas brocas, são da mesma natureza de que é o raio, com tão grande ímpeto expelido, e com a violência e força do mesmo fogo lançado para baixo, posto que estoutra água e composição seja cá artificialmente feita, todavia, são de uma natureza, e, assim, gastam estas águas fortes as coisas mais rijas e se conservam e estão quietas na coisa branda; e, para mais clareza desta verdade, saibam que tenho já feitos tantos vasos de cera quantas são as peças que se hão-de desencravar, para em eles estarem as águas fortes estilando-se e caindo pouco a pouco por aquelas espirações que as brocas fazem antre os ângulos e quinas das quatro quadras em aqueles côncavos, que a broca, por ser quadrada, não encheu de todo; e agora tenho já feitas as ditas águas fortes postas em redomas de vidro, que é matéria a que a água forte nada empece. E, porque não é necessário trazer mais provas para esta obra, pois as ditas sobejam, Vossas Mercês se dêem por satisfeitos de sua dúvida, e creiam que as coisas artificiais também são naturais em suas operações, e não esperem que os homens façam milagres, que só Deus os pode fazer. E assim não há que nisto o senhor Capitão João Gonçalves da Câmara e Vossas Mercês mais queiram saber, nem me deter».

Ao qual o dito Capitão disse que já não tinha dúvida alguma mais de que ficariam os buracos das escorvas muito maiores que dantes, pelo que foi necessário tornar-lhe a replicar e dizer o dito Gaspar Borges que já lhe tinha provado que aquelas águas, que ele havia de aplicar, não empeciam, nem ofendiam senão a seu contrário, e que, destas três matérias, cera, bronce e aço, o aço era o mais forte e portanto as águas fortes, daquele modo compostas, ofendiam a ele, e ao bronce não, estando ambos juntos, pelo que ficariam os buracos das escorvas da maneira e tamanho que dantes eram. E assim foi. Acabaram, então, de crer ser possível desencravá-las. E Alexandre disse ao Capitão João Gonçalves que oferecia sua cabeça por ele.

E mandando fazer portas ao baluarte, se lhe deu e entregou fechado, para que pusesse em execução a obra, em que pôs tanta diligência, que, dentro em três somanas (sic) depois disto deu todas as sete peças e a quebrada, acabadas de desencravar de todo, e tiradas as brocas com a mão, gastadas todas ao redor quanto foi necessário comer-se para saírem com a mão, ou com dois dedos.

E uma delas, que fez converter em pó, deixou ficar para mostrar ao Capitão e a todos aqueles senhores, como lhes tinha (359) dito; e as sete brocas, tiradas fora, todas, uma manhã, levou ao Capitão João Gonçalves de Câmara, que encontrou, indo da Sé com uns noivos, por padrinho de um tambor que aí se casou, acompanhado de muita gente principal e capitães, e diante de todos, e de Francisco Gonçalves da Câmara, seu tio, lhe pediu alvíssaras; e dizendo ele: «De quê?» Respondeu: «Do que Vossa Mercê tanto desejou, e o senhor Francisco Gonçalves de Câmara, que já sua artilharia é desencravada, como eu prometi; eis aqui as brocas tiradas somente a mão.

Tomou-lhe, então, o dito Capitão João Gonçalves as brocas com sua mão, que de dois palmos e quase meio eram de comprido cada uma, e, olhadas e vistas muito bem, lhe disse: «Certo que as alvíssaras vós as mereceis muito boas e que el-Rei Nosso Senhor, além de tudo, vos faça grandes mercês; e as brocas tanto as quero, que as não hei-de soltar da mão até tornar a casa, para as meter em um cofre e mandar a Sua Alteza, e vós, mestre, sereis bem pago».

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Sétimo 159

E, porque o dito mestre lhe tinha já dito que a outra broca, que havia feito converter em pó, Sua Mercê com os senhores capitães Francisco Gonçalves e Alexandre a fossem ver no mesmo tiro, disse que, tornando donde iam, seriam todos lá, e assim foram. Então, com uma broca, que o mestre para isso tinha feita, começou a furar diante deles e tirou aquele aço, todo em pó, em espaço de três Credos, de modo que ficaram todos espantados e os capitães João Gonçalves e Alexandre o abraçaram com muita festa. Mas nem ele, nem seu tio Francisco Gonçalves, lhe deram nada de alvíssaras, nem os trinta mil réis que para calças lhe tinha (360) prometido. E, antre tantos grandes, só o dayão ... (361) da Costa lhe mandou de alvíssaras um lombo de porco e antrecostos, que era no tempo deles, e um barril de bom vinho, oferecendo-se-lhe que o ocupasse no que houvesse mister dele. Pero Nunes Florença lhe mandou outro barril de vinho bom a sua pousada.

Às peças desencravadas logo lhes fizeram repairos novos. E, indo um domingo, ante missa, ao baluarte com procissão, provaram todas, e, porque os artilheiros e bombardeiros não ousavam pôr-lhes fogo, o mesmo Gaspar Borges lho pôs, e, a dito de todos, chegaram mais longe que nunca. Foi grande a festa que aquele dia se fez, por terem sua artilharia tão bem reformada e restituída. Mas nem os Capitães, nem Genobre Chiole, que se mostrava mui contente, lhe mandaram dar um jantar por isso.

Partiu-se daí a poucos dias o Capitão João Gonçalves de Câmara para o Regno, e levou as brocas, deixando encomendado ao Capitão Francisco Gonçalves lhe fizesse pagar muito bem; o qual fazendo que se avaliasse o que merecia por ferreiros, foi avaliado a tostão por dia. Não o quis receber, tirando estromento do que importava ao serviço de Deus e de el-Rei, o qual tem com o alvará do dinheiro que lhe mandavam dar, contia somente de até doze mil réis.

A Justiça e Capitão lhe encarregaram a arcabuzaria; ensinou certos serralheiros do Funchal a consertá-la. Mandou-o prender o capitão Francisco Gonçalves, dizendo que vendia arcabuzes para estas ilhas dos Açores.

Fez a era de oitenta e quatro (362) dezassete anos que serviu em coisa tão importante e ainda não tem outra coisa recebida.

Veio a esta ilha de S. Miguel por carta do Capitão Manuel da Câmara, que haja glória, para no que se oferecesse servir aqui a el-Rei, de quem não tem recebidas mercês algumas, mantendo-se, entretanto, na esperança de as ir requerer, ainda que o Capitão Manuel da Câmara lhe fez grandes promessas por parte de el-Rei.

Faz nesta era de 84 (363) dezasseis anos que nela reside, onde deu traça ao que cumpria no assentar as peças da artilharia no baluarte da cidade da Ponta Delgada, em tempo que começava o Mestre das Obras de el-Rei (364). Desencravou uma peça grossa, por mandado do senhor Conde D. Rui Gonçalves da Câmara, que achou encravada em absência de seu pai, dizendo-lhe que ele punha tudo em portacolo, para por el-Rei lhe serem feitas mercês. Ensinou a todos os serralheiros da cidade de Ponta Delgada o conserto e feitio da arcabuzaria e armas, tanto que o que dele não aprendeu não o sabe bem fazer, como é notório. Fez as balanças da Alfândega desta ilha e da Terceira, peças reais e de grande desengano, assim para as partes, como para o proveito da Fazenda de el-Rei. Fez o relógio da cidade e o de Vila Franca; renovou o da Ribeira Grande, tudo em preços baixos, a respeito da delicada obra que faz; fez alguns ferros de hóstias para as igrejas desta ilha e de todo este bispado, e o que cumpre de armas, espingardas novas, assim de pederneira, como de fogo, grades para a Alfândega e para a capela do Santo Sacramento da vila da Ribeira Grande, que não acabou (365), e outras obras, em nobrecimento e honra da terra e serviço de el-Rei. E, contudo, vive pobre, tendo tão rico engenho.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Oitavo 160

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO OITAVO (366)

DO SOCORRO ESPIRITUAL QUE NA ARMADA DE PORTUGAL FOI À ILHA DA MADEIRA, DEPOIS DE SAQUEADA A CIDADE DO FUNCHAL

Ficaram deste saquo os naturais tão pobres e desbaratados, que ainda hoje em dia não podem bem alevantar a cabeça desta aleijão. Bem se diz que ninguém diga bem estou, ou desta água de tribulação não beberei.

Vedes aqui estes ricos e quietos cidadãos, estando tão fora de temer o mal que lhe veio, nem arrecear de perder quanto possuíam, quase em um momento foi sua cidade entregue a estranhos, seus templos profanados, suas casas roubadas, suas fazendas esbulhadas, e em pouco espaço perderam tudo quanto por longos tempos ajuntaram, não lhe ficando mais certos haveres que um sonho do que foi, as tristes lembranças dos bens passados, as grandes mágoas do que perderam tão presto e umas crescidas saudades do que já em algum tempo tiveram.

Ajunta o homem sem acabar, nem deixar de ajuntar, e não sabe para quem; adquire o avaro para esperdiçar o pródigo; ganha o fiel para roubar e desbaratar o ladrão; edifica o benfeitor para derribar o preguiçoso; pranta o curioso para dissipar e cortar o desfadado e desasado; inventa o ardiloso para contraminar o tredor; ajunta o ganhado para espalhar e deitar a perder o perdido. Espelho é não obscuro, exemplo é este mui claro, para que, vendo-se nele, só procurem os homens ajuntar boas obras e virtudes, que não se perdem, e entesourar somente no Céu seu tesouro, onde a ferrugem o não gasta, a traça o não come, e o ladrão o não furta, e todo descanso e bemaventurança se possui, sem nenhum sobressalto de a perder jamais em algum tempo, nem momento.

Mas como nosso bom e piedoso Deus, ainda que alguma vez permita e dê trabalhos para castigo de alguns males ou prova dos bons, sabe deles tirar descansos e, às vezes, dá por eles, como deu a Job, dobrados bens, se tirou a estes nobres cidadãos a riqueza temporal e ricas jóias e alfaias, acudiu logo, em lugar delas, com outras, sem comparação alguma, de inestimável preço, e, por coisas temporais, deu espirituais de muito maior valia: porque, na companhia de João Gonçalves da Câmara, quando foi a este socorro, no seu navio e à sua mesa levou um padre da Companhia, chamado Francisco Varea (367), com um companheiro castelhano de muita veneração e doctrina, enviado pela Província de Portugal, que por serviço de Deus ia pregar à ilha e consolar a gente, onde fez muito fruto, que não foi pequeno remédio para o povo, segundo tinham quebrados os ânimos com a perda de sua fazenda e dos altares profanados. E este padre foi o primeiro que desta santa Religião foi à ilha, por cuja devação se moveu o povo pedir a el-Rei que houvesse deles um Colégio, para a doctrina e ensino (sic) (368) de seus filhos.

E na era de mil e quinhentos e setenta, na Coresma (369), foram lá seis destes religiosos, o rector dos quais se chamava Manuel de Sequeira (370), e o prefeito Pero Coresma, e outro padre Belchior de Oliveira, com outros três irmãos, a quem Sua Alteza deu de renda cada ano seiscentos mil réis, com a qual renda e outras esmolas, que se lhe ajuntaram, no ano de mil e quinhentos e setenta e oito acabou de fazer um Colégio outro rector, que a este sucedeu, por nome Pero Roiz, padre de muita virtude e erudição, em que fundou um magnífico templo, tão bem assombrado como capaz de muita gente, onde pregam, e confessam, e fazem sua santa doctrina, para ajudar a salvar a muitos.

E no Colégio ensinam Teologia Moral aos clérigos, e Latim e Retórica aos leigos, envolto tudo com muito bons costumes e virtudes, de que são singular exemplo onde quer que se acham (371). Não sei qual destas coisas foi maior para esta ilha da Madeira, se o que perdeu com a chegada dos cossairos, se o que ganhou com a vinda destes religiosos. Oh!

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Oitavo 161

bemaventurada e mais que ditosa perda, pois mereceu ter e alcançar tal e tanto ganho que, por ser espiritual, lhe vieram e acresceram com ele todolos mais bens temporais, como às vezes permite Deus uma queda para melhor se levantar quem a deu e nunca mais cair, e uma perda grande para ganho mais seguro, e um áspero açoite para merecimento mimoso e doce.

E, como a fértil Itália, acabando de ser assolada e desbaratada muitas vezes por imigos, que com poderosos exércitos a ela de fora foram, e com guerras civis e domésticas, que antre si excitaram seus naturais e moradores, logo era restaurada com sua grossura, como se nunca por ela tal passara, assim a populosa cidade do Funchal, sendo esbulhada dos cossairos, tão prestes tornou a ser tão rica, ou mais do que era, com a fertilidade da terra, que parece engrossar tanto com a doctrina e exemplo destes servos de Deus da Companhia de Jesu, que ninguém a julgará que em algum tempo foi roubada. Antes agora está mais fortalecida e poderosa, cercada de fortes e inexpugnáveis muros, provida de mais munições e armas, habitada e defendida de valorosos e limpos corações, que é a mais certa e segura valentia, guardada com maior vigia e mais multiplicadas sentinelas, que ciam as almas dos lobos do Inferno, que são mais para temer, quanto mais dos cossairos do mar e dos enganos da terra.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Nono 162

CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO NONO (372)

COMO O CAPITÃO SIMÃO GONÇALVES DA CÂMARA FOI FEITO CONDE DA CALHETA, E DE OUTRAS MERCÊS QUE LHE EL-REI FEZ, E DE SUA IDADE, COSTUMES E

FALECIMENTO (373)

Pelos serviços que o Capitão Simão Gonçalves de Câmara a el-Rei tinha feitos e pelos seus merecimentos, além dos que no discurso desta história tenho dito de seu pai e avós, lhe fez Dom Sebastião mercê de o fazer Conde de Vila Nova da Calheta, da sua ilha da Madeira, no ano do Senhor de mil e quinhentos e setenta e seis, e lhe deu os ofícios do dito Condado, com se chamarem os ditos oficiais, em todos os autos e escrituras, termos, mandados pelo Conde nosso Senhor e por seu filho herdeiro, depois que Deus for servido levá-lo desta vida.

E, porque no Funchal (cidade que seus avós fundaram) havia vinte e um tabaliães do judicial e oito das notas e seis inquiridores, houve el-Rei Dom Hanrique por bem no ano de mil e quinhentos e setenta e nove, por certos respeitos que a isso o moveram e por mais serviço de Deus, reduzi-los em dez escrivães do judicial e quatro notairos e três inquiridores, que agora servem. E em satisfação do que lhe tirou e desmembrou da sua data e apresentação, lhe deu também os ofícios dos dois escrivães dos órfãos da cidade, e o ofício do meirinho da serra, da jurdição do Funchal, e o ofício do escrivão da almotaceria, e das armas, que fosse da sua apresentação, e, além destes, todos os do judicial desta sua jurdição.

Tinha o Conde cada ano quatro contos de renda bem feitos, e os melhores e bem pagos que há no Regno, em que entrava a renda dos moinhos, a qual não se paga em trigo, que se come do gorgulho, nem em outros frutos, como têm muitas comendas de Portugal, senão em dinheiro de contado; e foi um dos Senhores que melhor tinha provida sua casa e fartos os criados, que há no Regno todo (374). Por seus vassalos se intitulava desta maneira: o Conde Simão Gonçalves de Câmara, do Conselho de el-Rei Nosso Senhor, Capitão e Governador da Justiça na ilha da Madeira, na jurdição do Funchal, Vedor de sua Fazenda em toda a dita ilha e na do Porto Santo, Senhor das ilhas Desertas, etc. E com el-Rei em suas provisões e cartas lhe poer Dom Simão Gonçalves, ele não queria aceitar o dom, nem o consentia aos filhos, que o têm por direito.

No ano de mil e quinhentos e setenta e oito lhe deu o ar e lhe tolheu um braço e perna, pela qual razão foi impedido da doença para alguns actos corporais, mas não que perdesse um ponto do juízo, para governar, e de memória, para reger e prover tudo, e em uma cadeira, onde se fazia assentar, foi sempre tão temido e venerado, assim doente e velho, como quando era são e mancebo.

Teve de idade sessenta e oito anos, os quais perfizera acabados dia da Vera Cruz, de Maio do ano de mil e quinhentos e oitenta, se a morte o não levara alguns dias antes. Dos quais, governou a ilha quarenta e quatro anos, com muito aplauso do povo.

Foi homem que sempre amou a verdade e perseguiu malfeitores. Teve grande e rara memória, porque aquilo que viu, ou uma vez leu e ouviu, cinquenta anos atrás, assim o tinha representado nela presente, como se passara ontem. Foi mui prudente e de muito primor, grande conselho, católico e amigo de Deus, e, pela honra e fé da Santa Madre Igreja, se soubera quem sentira mal dela, ou não seguira seus preceptos, o castigara e prendera e disseram à Igreja, por mais obrigações que lhe tivera.

Foi muito cortês e agradecido; fazia muita honra aos homens e todo género de pessoa agasalhava, principalmente a sacerdotes e ministros da Igreja, a que sempre teve muita reverência. Era amigo de seus criados e de seus aios (375) e a todos trabalhava por casar honradamente e ricos, por não terem necessidades, e lhe dava ofícios na ilha, que todos eram seus e de sua apresentação, como já disse. Foi homem mui lembrado e agradecido dos

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Nono 163

serviços que lhe faziam, pagando muito bem o trabalho alheio, assim a quem o servia, como aos mecânicos que lhe faziam obras, tratando-os com muito gasalhado e cortesia, com que todos, se ele quisera, folgaram de o servir de graça, cuidando que ainda lhe ficariam devendo dinheiro, amor e obediência.

E, com ser viúvo vinte anos, pouco mais ou menos (porque morreu a capitoa Dona Isabel de Mendonça em treze de Setembro de mil e quinhentos e sessenta e um anos), ficando ainda em idade para poder casar, o não quis fazer.

Nunca estranhou coisas humanas, principalmente cometidas por fraqueza, perseguindo e estranhando muito as cometidas por malícia ou engano. Doutrinou sempre seus filhos, enquanto meninos, em muito virtuosas artes, instruindo-os na virtude e castidade, donde depois vieram dar no que se sabe dos seus costumes e vida. E, sobretudo, tinha em muita veneração os pregadores e religiosos, e toda a pessoa virtuosa (376). Era muito amigo de Deus e devoto de ouvir missa, não somente em todos os dias de obrigação da Igreja, mas em outros da semana, e, por ter seus aposentos perto do mosteiro de São Francisco, cumpria bem com esta sua obrigação e devação, indo lá muitas vezes visitar os religiosos da casa, com que particularmente conversava, mostrando-lhe entranhável amor, que procedia do divino que em seu peito ardia, com que lhes fazia muitas esmolas e boas obras, como também as mandava fazer em sua casa a todo género de pobres, com muita caridade e liberalidade, como convinha a seu nome e devação; além das quais, fazia outras, extraordinárias, a particulares pessoas, pobres e honradas, vestindo-as de custosos panos; muitos dos quais comiam com ele, igualmente, à sua mesa, ao menos ao jantar, em que os importunava que comessem bem, como ele comia.

Ele e a Capitoa (que também era inclinada a obras de caridade) faziam muitos concertos, e, se casava alguma pobre e por causa da pobreza o marido a não queria receber, logo lá ia, ou os mandava chamar, acabando tudo, suavemente, com boas palavras e grossas dádivas de dez, vinte, trinta mil réis, segundo a qualidade dos desposados.

Era inclinado a ter sua casa, em que morava, sempre acompanhada, para o qual mandou fazer dos muros adentro um jogo de pela, em que gastou mais de quinhentos cruzados, onde iam folgar muitos da cidade e de toda a ilha, e, por este e por outros desenfadamentos que tinha e ordenava das portas adentro, sempre estava cheia sua casa de gente de toda sorte, tratando e falando a todos com cortesia, sem consentir que pessoa alguma tivesse a cabeça descoberta quando com ele falava, ainda que fossem moços dos oficiais, que iam buscar o prémio de seus trabalhos, aos quais logo mandava pagar e não havia de dizer «tornai cá», nem «Fuão tem cargo de pagar isso», como alguns senhores usam, e, se alguma vez remetia a outrem que pagasse, havia ele de saber depois se era cada um pago de seu jornal.

Amava tanto a todos, e de todos era tão amado, que de boa vontade ofereceriam as vidas por ele, como se viu quando uma vez veio surgir ao porto do Funchal, com sete galeões muito poderosos, um cossairo de França, chamado Pé de Pau, depois de ter roubada a ilha da Palma, uma das Canárias; o qual visto pelo dito Capitão Simão Gonçalves de Câmara e reconhecida a armada dos contrairos, com muito esforço mandou logo despejar seis naus dos franceses, que estavam no porto carregando de açúcar, e as encheu de gente portuguesa e com muitas munições de guerra, enviando batéis com recado ao dito cossairo que não quisesse sair em terra com sua gente, porque ele estava aparelhado para castigar a quem lhe quisesse fazer agravo; ao que o Pé de Pau respondeu que mais queria servi-lo que agravá-lo, e assim o cumpriu, ainda que de sua licença saíram em terra a comprar mantimentos e vender muitas coisas que traziam (377) duzentos franceses, trazendo a Jaques Soria por seu capitão para os castigar, se se desmandassem. E, em oito dias que esteve surto no porto Pé de Pau, o Capitão Simão Gonçalves vigiava e mandava vigiar a cidade, de noite, com suas estâncias, sem embargo da amizade e paz que o cossairo lhe prometera; e, passando em uma noite muito escura, por uma porta da vigia um negro de ruim lingoage, cuidando as vigias que era língua francesa, deram rebate ao Capitão, o qual mandou dar repique no sino e, ainda que era meia-noite, em que todos ordinariamente repousam, em menos de uma hora se ajuntaram com seu Capitão quase quatro mil pessoas, em que provou o amor que todos lhe tinham, porque onde o ele há está toda liança.

Servia-se com os filhos dos melhores e mais honrados da terra e, se eram tais, fazia-lhe muito bem, assim no tratamento de suas pessoas, como em os casar rica e honradamente; e, também, se se desmandavam em alguns vícios, ou em quererem tratar mal alguma pessoa de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Nono 164

palavra ou obra, ainda que fosse muito pobre e de menos valia, castigava-os muito bem por sua mão e, se se não emendavam, os deitava fora de casa.

Sempre tinha sua estrebaria cheia de bons cavalos e mulas, em que os seus amos e pessoas honradas tinham muito certas as cavalgaduras em qualquer tempo, para onde quer que necessárias lhe fossem.

Dava este Capitão a todo homem cadeira e, acabando de comer, se ia assentar à mesa com os seus moços e lhe perguntava se queriam comer mais ou outras iguarias. Somente estranhava aos homens, a que mandava dar cadeira, se tinham alguma falta, como bulir com os pés, ou trocá-los, ou outras coisas, descuidos ou despejos que diante senhores se não usam. No mais era muito cortesão e, às vezes, muito colérico, quando convinha. Não bebia vinho, senão água serenada em poços; não trazia de inverno vestido mais que sobre a camisa um roupão de pano fino, e de verão um de chamalote; o mais do tempo sem nada na cabeça, por ser muito cálido. Falava atabalhoadamente; era homem que buscava todos os modos de passatempo e folgava de o conversarem; e visitava aos mais da terra, porque, estando só, se dormia logo.

Era afeiçoado a ver folgares, touros, lutas e jogar canas e todas as mais festas e jogos para alegrar o povo; e nos dias de lutas, principalmente nos de São Sebastião e São Brás, se ajuntavam no terreiro, defronte de suas casas, muita gente de toda a ilha, e, se vinha algum grande lutador e havia outro que lhe dava duas quedas, lhe mandava dar a capa que tinha coberta, além de grandes fogaças, que de sua casa estavam prestes, com marrãs mortas, e também algum dinheiro para todos os lutadores. Em todas as festas principais do ano, principalmente na do Natal, havia em sua casa custosas consoadas, com ricas frutas e curiosos jogos e autos de toda sorte.

Antre outras virtudes e bons costumes, que tinha (como tenho dito), não bebia vinho, mas, como era homem grande e grosso, comia muito, porque a natureza lho requeria, e nada era avaro para consigo nem com outrem, contra a condição dos que têm este vício de avareza, que muitas vezes até para si são escassos.

Não era interesseiro em suas rendas e prois, que da capitania lhe podiam vir, mas muito favorável ao povo e liberal em seus partidos, em tanta maneira, que foi parte principal em se haver uma provisão de el-Rei, que tem a ilha, em que Sua Alteza há por bem que se lhe não pague nenhum direito de qualquer coisa de mantimento que vier para a terra, de fora, como são carnes, azeite, trigo, queijos e outras semelhantes, nem consentiu haver dízimo, de lenha, nem conhecença, em as quais coisas perdia cada ano, de sua redízima, mais de duzentos mil réis, com que a ilha fica muito favorecida e melhorada no preço das ditas coisas, e mais abastada e melhor provida delas, por não haver nela tributo nem direito, por respeito deste liberalíssimo Capitão, bem contrário do que alguns senhores costumam usar em suas terras. E, não contente com isto, não consentiu haver taxa no povo para fortificações da terra, e, as que se faziam, trabalhava com el-Rei que as mandasse fazer à sua custa, ou das imposições. Também houve uma provisão de Sua Alteza que os navios da ilha se não possam tomar para nenhuma parte, ainda que sejam necessários para o serviço de el-Rei, e por isso a terra tem continuamente dez ou doze navios, que a provêm do necessário de todas as partes.

Arrendava seus moinhos a rendeiros por preços medianos, onde há casa de peso para pesar o trigo que se vai moer e se torna a pesar a farinha, e, se acaso havia falta nos moleiros, logo os mandava ou deixava castigar, sem querer que se dissimulasse nada com eles em seus erros, nem com os rendeiros, se se descuidavam em ter bem apercebidas as moendas, para que o povo não fosse roubado, nem enganado com ruins e mal aproveitadas farinhas, além de os moleiros restituírem logo a farinha que faltava; em todo o qual sempre mostrou ser justo e liberal; e de qualquer destas coisas, onde quer que estão, por muito bem que se diga, mais é (378).

Teve mui grande casa e muitos e honrados criados, aos quais sempre honrou e estimou muito, fazendo deles muita conta, folgando de ser compadre de seus filhos e acompanhá-los em suas vodas, achando-se (como já disse) em desposouros e casamentos que ele mesmo ordenava, e honrando todos pessoalmente. Com as quais obras ganhava a vontade dos cidadãos e do povo, que o tinha em muita veneração, obedecendo com muito amor a seus mandados. Era mui prudente no conselho e diligente na execução dele e suave na conversação; finalmente, ele foi um homem onde Deus ajuntou muitas coisas boas, que por muitos se acham repartidas.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quadragésimo Nono 165

Faleceu este ilustre e grandioso primeiro Conde da Calheta e quinto Capitão da ilha da Madeira, Simão Gonçalves de Câmara, segundo do nome, em uma sexta-feira, quatro dias do mês de Março da era de mil e quinhentos e oitenta anos, da mesma doença de parlesia, que havia dias que tinha, e foi enterrado no mosteiro das religiosas de Santa Clara da cidade do Funchal, junto das sepulturas de seus antecessores, com grande pranto e sentimento de todo o povo que, pela perda de tão bom e amado senhor, ficou cheio de muita dor e saudade (379).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo 166

CAPÍTULO QUINQUAGÉSIMO (380)

DA VIDA E ALGUNS HERÓICOS FEITOS DO MUITO ILUSTRE JOÃO GONÇALVES DE CÂMARA, SEGUNDO CONDE DA CALHETA E SEXTO CAPITÃO DA ILHA DA MADEIRA,

QUARTO DO NOME, E DE SEU FALECIMENTO (381)

Por morte do Capitão Conde, herdou a casa, capitania e condado seu filho morgado, João Gonçalves de Câmara, que neste tempo do falecimento de seu pai estava no Regno; o qual fora ter à ilha da Madeira, com seu pai e mãe, no ano de mil e quinhentos e quarenta e dois e casou depois com Dona Maria de Alencastro, filha de Dom Luís de Alencastro, neto de el-Rei Dom João, segundo do nome, e (segundo dizem) neta de el-Rei Chiquito de Granada, e, depois, estando no Regno, foi com grande custo e armada, e muita companhia de fidalgos, socorrer a cidade do Funchal, quando foi saqueada dos cossairos, como tenho contado.

A Capitoa da ilha da Madeira, mulher do Conde Simão Gonçalves de Câmara, mãe de João Gonçalves de Câmara, era castelhana, cujos ossos foram levados, depois dela morta, à mesma ilha, da qual se afirma ser parenta da Rainha e sua dama, que veio com ela de Castela, e, quando faleceu em Lisboa, deixou a Rainha por sua testamenteira, que, morta ela, lhe levou logo todos os seus filhos e filhas para casa e tanto se enxergou o muito que lhe queria, que não tomou suas filhas por damas, antes as tinha defronte de si assentadas em outro estrado e as casou com os principais homens de Portugal: uma delas, chamada Dona Aldonça de Mendonça, com Dom João Mascarenhas, capitão dos genetes, e outra, por nome Dona Lianor de Mendonça, com Dom João de Almeida, senhor do Sardoal e Punhete e alcaide-mor de Abrantes, como já tenho dito.

E, se a Rainha honrou muito as filhas, não menos honra fez e fazia fazer aos filhos, e principalmente a João Gonçalves de Câmara, morgado, fazia também el-Rei e a dita Rainha muitas honras. E, depois que a vinte dias de Janeiro do ano de mil e quinhentos e cinquenta e quatro pariu a Princesa, mulher que foi do Príncipe Dom João, seu filho, que está em glória, um filho, a que se pôs nome Dom Sebastião por nascer em dia deste glorioso mártir, antre as oito e as nove horas do dia, e por razão de ser neto do magnânimo Imperador Carlos quinto, quando aos vinte e sete dias do dito mês e ano, à tarde, foi baptizado na varanda de baixo da Casa da Ribeira e foram padrinhos el-Rei Dom João, terceiro do nome, seu avô, e o Infante Dom Luís, e madrinhas a dita Rainha, sua avó, e a camareira-mor, que o levava a baptizar, dizem que o levou nos braços este ilustre Capitão, João Gonçalves de Câmara, e o Cardeal Dom Hanrique o baptizou, e Dom João Portugal, clérigo bispo, e o filho do Mestre de Santiago, dom Gemes (382), e o filho do Conde mordomo-mor, também clérigo, todos três levaram a oferta e prata para o baptizar.

Quando este Rei de ânimo invencível, dom Sebastião, foi ver África com muitos fidalgos do Regno e morgados, foi João Gonçalves de Câmara com ele, com muitas tendas cavalos e criados, e gastou nisso muito do seu, desejando oferecer-se ocasião em que mostrasse o esforço de sua pessoa e imitasse os heróicos feitos de seus predecessores por serviço de Deus e do mesmo Rei, em que sempre andava. Em tanta conta tinha el-Rei Dom Sebastião a este ilustre Capitão, João Gonçalves de Câmara, e a seu irmão, Rui Dias de Câmara, que, quando jogava as canas ou fazia algum outro folgar a pé ou a cavalo, sempre os trazia junto de si mui privados.

E quando o dito Rei a segunda vez passou a África, estava lá Rui Dias, segundo filho do Capitão Conde, e foi cativo na batalha e aleijado do braço direito (como já tenho contado). João Gonçalves de Câmara, sendo morgado e herdeiro da casa do condado da Calheta e capitania da ilha da Madeira, que estava em Lisboa preparando-se para acompanhar a el-Rei naquela jornada, com grande custo e maior ânimo foi impedido, porque não quis consentir o dito Rei que fosse com ele, antes lhe mandou que fosse guardar a ilha, e levou consigo a África a Dom

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo 167

João, seu cunhado, casado com Dona Aldonça, filha do Capitão Conde, o qual Dom João foi morto na dita batalha.

E estando, em Dezembro de mil e quinhentos e setenta e nove anos, o Conde (sendo ainda vivo) muito anojado, por ter por morto ao dito seu genro e cativo e aleijado a seu filho Rui Dias, e também porque seu filho morgado, João Gonçalves de Câmara, não tinha nenhum herdeiro, sendo casado havia dias (como atrás disse), e muito triste disto e entrevado no dito tempo, lhe vieram três alegres novas juntamente: uma, que seu genro, Dom João, era vivo; outra, que seu filho Rui Dias era já livre do cativeiro e resgatado por cinco mil cruzados e estava em Belém, em uma quintã de seu filho, João Gonçalves de Câmara; a terceira, que o dito seu filho tinha já um filho morgado, de que Rui Dias fora padrinho no baptismo, por chegar do cativeiro de África um dia antes que o baptizassem, a tempo em que ainda foi seu padrinho; dignas, por certo, e merecedoras eram os obras deste Capitão Conde que Nosso Senhor lhe mandasse, por elas, estas e outras novas de seu gosto.

Além de ser este ilustre Conde e Capitão João Gonçalves de Câmara muito estremado cavaleiro e de esforçado ânimo para qualquer honroso feito, era de tão brando coração para todos, que de ninguém, que o conhecesse, deixava de ser amado; era grave, prudente, docto e curioso em tanta maneira, que por esta razão amava, honrava e favorecia muito aos dotados de semelhantes partes. Trazia no seu escritório o «Descobrimento da ilha da Madeira», o mais verdadeiro que se até agora achou, o qual dizem que foi feito por Gonçalo Aires Ferreira, que foi a descobrir a mesma ilha com o primeiro Capitão, João Gonçalves Zargo; e, como este «Descobrimento» competia aos Capitães da dita ilha, eles o traziam nos seus escritórios, como coisa hereditária, de descendentes em descendentes, e, sendo pedida informação desta ilha da Madeira de minha parte ao reverendo cónego da Sé do Funchal, Hierónimo Dias Leite, tendo-o ele visto em poder do dito Capitão João Gonçalves de Câmara, lho mandou pedir a Lisboa, onde, então, estava, e ele o mandou trasladar pelo seu camareiro, Lucas de Sá, e lho mandou escrito, em três folhas de papel, da letra do dito camareiro, e, por sua carta (porque o «Descobrimento» não faz menção disso), lhe mandou dizer que Gonçalo Aires Ferreira, que fora um dos criados que o Zargo, primeiro Capitão, lá levara, escrevera tudo aquilo que viu pelos seus olhos e, como não era curioso nem homem docto, o notara com ruda Minerva e mal composto, pelo que, ajudando-se o dito cónego dos tombos das Câmaras de toda a ilha, que todos lhe foram entregues, concertasse e recompilasse tudo o melhor que pudesse, como, de feito, docta e curiosamente recompilou e compôs (383).

E, porque Gonçalo Aires Ferreira, que a este «Descobrimento» deu princípio, foi um dos principais homens que houve na dita ilha, donde procede a mais nobre, grande e antiga geração que há nela, os parentes, havendo notícia deste papel e carta, que ao dito cónego de Lisboa viera, onde diz que Gonçalo Aires era criado do dito Zargo, levaram-lhe um alvará do Infante Dom Hanrique, que o mandou a este descobrimento, feito na era de mil e quatrocentos e trinta, dizendo que o Gonçalo Aires não era criado do Capitão, senão companheiro, como constava do filhamento do dito alvará, em que lhe chama companheiro do dito Zargo. E só isto vai mudado do primeiro papel e original, que começa pela primeira pessoa do plural, dizendo: «Chegamos a esta ilha, a que pusemos nome da Madeira, etc.».

Este Gonçalo Aires, da Casa do Infante Dom Hanrique, foi o primeiro homem que na ilha da Madeira teve filhos, e em memória disso, como primeiro que naquele mundo novo povoava, ao primeiro filho chamou Adão e à primeira filha Eva, pois foram os primeiros que nasceram naquela terra novamente descoberta e pelo mar oceano adjacente.

Este Adão Gonçalves Ferreira, primeiro filho de Gonçalo Aires Ferreira, teve nobre geração, e sua irmã, Eva Gomes, donde procede a geração que na ilha da Madeira chamam a Casta Grande, e também os Ferreiras desta ilha de São Miguel, que nasceram de João Gonçalves Ferreira, pai de Afonso Gonçalves Ferreira, e outros Ferreiras, de cuja progénie, armas e fidalguia e como procedem da grande casa de Drumond e da casta de reis de Escórcia adiante direi em seu lugar, quando tratar desta dita ilha.

E o Gonçalo Aires Ferreira, tronco nestas de todos eles, dizem que fez o «Descobrimento da ilha da Madeira», na verdade, escrito (como disse) em três folhas de papel, que o reverendo cónego, e não menos docto que curioso, Hierónimo Dias Leite, Capelão de Sua Majestade (384), depois recompilou, acrescentou e lustrou com seu grave e polido estilo, e escrito em onze folhas de papel mo enviou, sendo-lhe pedido de minha parte por intercessão do nobre Belchior Fernandes de Crasto, morador na cidade de Ponta Delgada, desta ilha em que estamos, e por

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo 168

lho mandar pedir, a meu rogo, o mui magnífico Marcos Lopes Anriques, mercador de grosso e honroso trato que foi nesta ilha de São Miguel, mui estimado e amado nela por suas boas partes e magnífica condição, que agora reside em Lisboa com grande casa e maior nome. De cuja escritura e de outras muitas informações que procurei haver de diversas pessoas da ilha da Madeira e de outras partes, todas dignas de fé, e de outras coisas que vi e li, coligi eu e compús todo este processo do descobrimento da dita ilha, ordenando, arrumando, diminuindo, acrescentando (385) e pondo tudo em capítulos da maneira, que, Senhora, vos estou contando.

Este ilustre Capitão João Gonçalves de Câmara, sabendo da morte de seu pai, mostrou aos Governadores, que governavam o Regno depois do falecimento de el-Rei Dom Henrique, suas patentes, que tinha, como el-Rei Dom Sebastião o tinha feito conde e sucessor de seu pai no condado da Calheta, as quais não quis mostrar e teve secretas, sem ninguém, nem o mesmo pai saber disso, até depois dele falecido, e daí por diante se chamou Conde da Calheta.

Mas, como não há bem que muito dure, ainda que vos disse que as fruteiras da parte do brando e mimoso Sul são melhor favorecidas da quentura, que nos é mais conforme, que o frio do áspero e arrepiado Norte, todavia da mesma parte acontece, às vezes (ainda que raramente), vir um furacão bravo que leva couro e cabelo e quanto diante se acha, arrancando e destruindo altíssimas árvores, que dantes pareciam perpétuas e imóveis, como nesta tão próspera capitania pouco tempo há se provou, porque (segundo se conta), estando dando de si grandes esperanças o ilustre João Gonçalves de Câmara, já segundo Conde da Calheta e sexto Capitão da ilha da Madeira, da parte do Funchal (386), quarto do nome, em Almeirim, onde se fora despedir de seu tio Martim Gonçalves de Câmara e dos Governadores, de que alcançou tantos privilégios para se partir a governar sua capitania, (como alguns dizem) indo ali na procissão que se costuma fazer em dia de Corpo de Deus (e, segundo outros, estando em outra parte), lhe deu o mal de peste, de que faleceu ao sábado seguinte, quatro dias do mês de Junho do ano de mil e quinhentos e oitenta, sendo homem de meia idade, deixando um filho, seu herdeiro, de idade de seis meses, pouco mais ou menos, chamado Simão Gonçalves de Câmara, como o Conde seu avô, havendo sido capitão sós três meses inteiros, porque tanto havia que seu pai, o Conde Simão Gonçalves de Câmara, era falecido, com grande dor e mágoa dos Governadores e fidalgos do Regno, de todos os quais era mui estimado e querido, pelas boas partes de que Deus e a Natureza o dotaram, e muito mais dos povos da ilha da Madeira, seus súbditos, que estavam esperando ser alegres com sua visita e presença e ficaram cheios de tristeza e saudade com sua tão acelerada e intempestiva morte em terra alheia.

Oh! três e quatro e cem mil vezes bemaventurados aqueles que, em tempo de tanta angústia do Regno, intempestivamente morreram, pois, como este Capitão Conde, escaparam dos revoltosos trabalhos da breve e miserável vida e, como ele mesmo, foram gozar na eterna dos descansos eternos (387).

Ficou dele no Regno um filho menino, morgado, como tenho dito, por nome Simão Gonçalves de Câmara, tenra e nova pranta, do qual pende, como por um fio, a progénia, por linha direita masculina, dos ilustres Capitães desta ilha da Madeira, a que Nosso Senhor dê vida, e guarde esta pequena relíquia deles para consolação de seus povos, a quem também ofereço isto que de sua terra aqui digo, sem embargo de estar oferecido ao ilustre Rui Gonçalves, Capitão de São Miguel, seu parente, pois ambos procedem de um mesmo tronco e, ainda que têm diversas casas e ilhas, de uma somente descendem e tudo é um mesmo sangue e progénia, porque, posto que apartados passeiem em grandes e espaçosas salas, com título de estreito parentesco e largo amor e louvor, estão liados e juntos em uma mesma Câmara.

Sendo Simão Gonçalves de Câmara, filho de João Gonçalves de Câmara, agora pequena e tenra pranta, depois que foi julgado Portugal ser do Católico Rei Filipe, Senhor nosso (388) e teve a posse dele, mandou a ilha da Madeira por Capitão-mor e Governador dela o desembargador João Leitão, que também tinha cargo da Fazenda de el-Rei e da Judicatura e morava na fortaleza, donde se saiu, ficando com todos os cargos dantes, excepto a Capitania-mor da Guerra, depois que chegou à ilha, de mandado do mesmo rei Filipe, por Capitão-mor dela e da do Porto Santo, dom Augustinho Herrera, Conde de Lançarote e Senhor de Forteventura; no qual tempo, na era de mil e quinhentos e oitenta e dois anos, foi, da banda do Norte, António do Carvalhal à cidade do Funchal, com trezentos homens, que manteve à sua custa cinco meses, do de Maio até Setembro, em serviço do Católico Rei Filipe, para ajudar a

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo 169

defender a desembarcação dos franceses da armada de Dom António, que em aquele tempo na ilha se esperava.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 170

CAPÍTULO QUINQUAGÉSIMO PRIMEIRO (389)

DO DESCOBRIMENTO DAS ILHAS CHAMADAS DESERTAS, E CUJAS SÃO E DO QUE NELAS HÁ, E DE ALGUMAS COISAS DE OUTRAS DUAS ILHAS CHAMADAS SALVAGES (390)

Depois que o felicíssimo primeiro Capitão da ilha da Madeira, João Gonçalves Zargo, chegou ao Funchal e traçou ali a vila, que agora é uma populosa e rica cidade, e deu as terras de sesmaria, como tinha por regimento do Infante Dom Hanrique, Senhor da dita ilha da Madeira, logo no ano seguinte mandou ver que coisa era uma ilha, que aparecia defronte desta ao Sueste e distara dela cinco léguas, e, pela notícia que lhe deram dela os que a foram descobrir, como era alta, pequena e sem água, e de pouco proveito, por ter muitas rochas, não curou de a mandar povoar, por não ser de qualidade para isso; antes, daí a não sei quantos anos, lhe mandou lançar gado grosso e miúdo, e pavões e outras aves de proveito, que multiplicaram na terra muito bem. E, por não se povoar esta ilha, deu-lhe nome Deserta, a qual terá duas léguas de comprido e o terço de uma de largo; em cima é terra chã, e toda derredor muito alta das rochas. Tem muito gado vacum e ovelhum e cabras bravas pelas rochas, onde também criam muitos pavões bravos e cagarras, e grande cópia de galinhas de Guiné e outras mansas, perdizes e pombas, sem haver nela coelhos nem ratos.

Já tenho dito que Simão Gonçalves de Câmara, terceiro Capitão da ilha da Madeira, foi casado a segunda vez, depois de viúvo, com Dona Isabel da Silva, filha de Dom João de Ataíde (sic), que foi Regedor da Justiça, filho herdeiro do Conde de Tarouca (391), com a qual casou por dote e arras, e o segundo filho, que houve, foi Luís Gonçalves de Ataíde, que ainda vive, casado com Dona Violante da Silva, filha de Francisco Carneiro, secretário que foi de el-Rei, e dela houve João Gonçalves de Ataíde, Martim Gonçalves e outros mancebos de muita esperança, pelas boas partes e habilidades de que são dotados.

E, por falecimento de Simão Gonçalves, pai de Luís Gonçalves de Ataíde (pelos grandes gastos que ele tinha feitos com sua magnífica condição, de que, por excelência, alcançou cognome de Magnífico), esteve a ilha em termos de se vender a capitania dela por dívidas que tinha, das quais era uma as arras que havia de tornar de sua mulher a Luís Gonçalves de Ataíde, seu filho, pelo qual respeito foi necessário desmembrar da capitania da ilha da Madeira esta ilha Deserta, que era do morgado; e, porque Luís Gonçalves de Ataíde se contentou com ela, lhe foi dada pelo dote e arras de sua mãe, Dona Isabel da Silva, segunda mulher do dito Capitão Simão Gonçalves, a qual ilha Deserta ele agora possui, e é senhor dela, que lhe rende duzentos mil réis um ano por outro, e muito mais rendera se fora bem granjeada, pelo muito gado vacum e miúdo e muitas aves domésticas e bravas e outros emolumentos que tem, como urzela muito boa, lã mui fina, de que se faz pano, e outras coisas que, granjeadas bem, foram de mais proveito, mas, porque os feitores que a negaceiam são liberais esperdiçadores do que não é seu, piedosamente um ano por outro vem os duzentos mil réis à mão de Luís Gonçalves de Ataíde, senhor dela (392).

Mas, ainda que alguma coisa esperdiçam os pastores, outras aproveitaram e defenderam alguns no tempo passado, porque, como a ilha é toda, por derredor, torneada com altas rochas e não tem mais que um estreito caminho por onde sobem, por um regato acima que vai em voltas, aconteceu no ano de mil e quinhentos e cinquenta e três vir ter a ela um homem português, que se chamava...... Penteado (393), natural de Vila do Conde, alevantado de Portugal, por ser inimigo de cossairos, e trazia, então, um galeão ingrês e duas naus e, como sabia bem a terra, porque dantes navegava para Frandes com uma nau sua e vinha muitas vezes carregar de açúcar à ilha da Madeira, lançou como oitenta ingreses, arcabuzeiros e frecheiros, no calhau da Deserta, com alguns cães de filha, com tenção (como dizem) de irem tomar gado para favorecer sua armada, que ia para o resgate da Mina. Quis sua mofina, ou seu pecado, que foi visto de dois pastores, que estavam em cima, e, começando a subir os

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 171

ingreses armados, começaram os pastores inermes a deitar pedras pelo regato abaixo, com as quais, quebrando as rochas, os ajudavam com terra e com outras que de si sacudiam, de tal maneira que os imigos se tornaram a embarcar com mais pressa da com que subiram, E, vindo os pastores abaixo, depois de eles embarcados, acharam um cão de filha e muitas frechas, que com a pressa deixaram, e muito sangue, no calhau, dos imigos feridos.

Semeia-se na Deserta pouco trigo e cevada, por causa de guardar os pastos para os gados que nela se criam. Tem sempre oito homens, com um feitor e uma igreja, onde soía estar um clérigo para lhes dizer missa, e outro feitor no Funchal para receber o que dela vai e os prover do necessário. Bebem eles e os gados água salobra, por a não haver nela doce.

Apegado com esta o terço de meia légua jaz outra ilha, mais pequena e estreita para a banda do mar, de uma légua, ou pouco mais, de comprido, que também tem gado miúdo e fina urzela, de que se tira proveito: chama-se Cu de Bugio, pela aparência que disso tem quem bem olhar da ilha Deserta, que mais parece calos deste animal que ilha, nome posto pelos antigos, sem mais outra razão alguma; onde se criam muitas cabras bravas nas rochas, que, a tempos, vão tomar com cães.

Antre a Deserta e a ilha da Madeira jaz um ilhéu grande, de comprimento de meia légua, que se chama o ilhéu Chão, pelo ele ser em si, além de o parecer, e distará da ilha da Madeira quatro léguas, e meia da Deserta, alto de rochas, mas em cima terá como três moios de terra chã. Pode-se semear nele um moio de terra muito boa, e muitas vezes foi lavrada e semeada, mas por estar sujeito aos ventos e desabrigado este ilhéu de árvores (onde fazem as tempestades muito dano), não se colhe dele proveito, nem se semeia. Tem, todavia, alguns coelhos e cagarras. Chamam-se estas ilhas Desertas, tomando as duas o nome da primeira a que o Capitão João Gonçalves Zargo pôs nome Deserta. Como do nome da ilha Terceira, chamam alguns ilhas Terceiras a todas as outras dos Açores.

Estão todas três Norte e Sul com a ponta de São Lourenço e, arredando-se desta ponta um tiro de besta, onde está uma baixa que haverá cinco léguas de canal antre a ponta e o ilhéu Chão, pode toda maneira de navios e naus passar seguramente pelo canal que está antre elas.

Da baía da cidade do Funchal, da ilha da Madeira, ao Cu de Bugio, que está com ela Noroeste-Sueste, haverá treze léguas, e a Deserta com Cu de Bugio está Norte e Sul e Noroeste Sueste com a ilha da Madeira, e são seis léguas antre ela e a mesma ilha da Madeira; e desta Deserta ao ilhéu Chão está um canal estreito, por onde não passam senão barcos pequenos, o qual ilhéu está também na mesma rota de Noroeste Sueste com a ilha da Madeira.

Estas ilhas todas são morgado dos Capitães da jurdição do Funchal, por onde se pode coligir dever-se a eles a glória deste descobrimento, pois, com estas ilhas jazerem defronte de Machico e mui perto dele, em comparação do Funchal, todavia, nunca os Capitães de Machico tiveram jurdição, posse, ou propriedade nelas, que todas são dos Capitães do Funchal, pela qual razão seus descendentes se intitulam Senhores delas, como já tenho dito (394).

Ao Sul da ilha da Madeira, antre ela e as Canárias, que todas demoram dela (como disse), pouco mais ou menos, do Sul até o Sueste, estão em trinta graus duas ilhas, que se chamam as Salvagens (sic), por serem ermas e desconversáveis, assim de navegação como de gente, e uns perigosos baixos, em distância de trinta léguas da mesma ilha da Madeira e três léguas antre si uma da outra; as quais pode ser que serão do número das doze que diz João de Barros que se dizem Canárias. Terá cada uma compridão de meia légua. A que está da banda do Sudoeste, que é a mais pequena, tem muitos baixos, e quem quiser passar por antre elas achegue-se bem à ilha da banda do Nordeste, que é a maior, sem medo, e não terá perigo. Estão Norte e Sul com o Cu de Bugio.

Os baixos destas Salvagens são peores que as Formigas, da ilha de Santa Maria, porque, além do que deles aparece sobre o mar, há, ao Noroeste da mais pequena, uma restinga de outros baixos, de compridão de meia légua.

Quem for da Alegrança a Loés-noroeste dará nas Salvagens, a maior das quais tem algum gado e uma fonte, que enche somente, cada dia, três ou quatro jarras de três canadas de água doce das botijas, chamadas meias arrobas, que vêm com azeite de Castela.

E estas ilhas, chamadas Salvagens, que parece que se deviam achar depois das Canárias por castelhanos, têm o Senhor castelhano, como também já agora a ilha da Madeira, com suas

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 172

adjacentes e estas ilhas dos Açores, com as mais ilhas da Ponente, com todas as terras e mares que, dantes, pertenciam aos Reis de Portugal com o mesmo Regno, por permissão divina e ocultos juízos de Deus são de el-Rei de Castela. Com que parece ficar este glorioso, católico e poderoso Rei o maior senhor do mundo.

Isto desta ilha contei à Fama, mas o superior Senhor do Céu e da Terra mandando já sobre nós a sombra da noite, nos fomos recolhendo à minha cova e comendo de caminho, por antre a sombra das árvores, não os delicados e doces manjares e cordeais conservas da ilha da Madeira, mas camarinhas e murtinhos, de muito menos suavidade e doçura, contentando-nos, por intervalos da noite e sono, com praticar coisas de ciências, que são mais cordial manjar do entendimento, até que pela manhã seguinte nos tornamos ao lugar costumado, onde, assentadas ambas, lhe comecei a contar o que sabia da ilha de Santa Maria, aqui vizinha, pelo modo seguinte (395).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 173

N O T A S

(1) Vid. «Notícia bibliográfica das «Saudades da Terra», de João de Simas, no Livro III, ed. de 1922, pág. CXCIII. (2) Prefácio do Livro II das «Saudades da Terra», ed. de 1873, pág. 7. (3) «Apontamentos de História Insular», pág. 8. (4) Vid. a este respeito o que diz o Dr. J. Franco Machado na sua Introdução ao «Descobrimento da Ilha da Madeira,

discurso da vida e feitos dos capitães da dita Ilha», de Jerónimo Dias Leite, pág. XCIX. (5) O Dr. Cabral do Nascimento refere nos seus «Apontamentos de História Insular», a pág. 33, que na Biblioteca

Municipal do Funchal existe um apógrafo deste manuscrito intitulado «História do Descobrimento da Ilha da Madeira e da descendência nobilíssima de seus valorosos capitães». Com o mesmo título possuía um outro o Dr. Álvaro Rodrigues d’Azevedo, como observa aquele escritor, e do qual também dá conta o Dr. J. Franco Machado, a pág. XIV da sua edição do «Descobrimento», de J. Dias Leite.

(6) Vid. «O Descobrimento» de Jerónimo Dias Leite, o original e as cópias, por Fernando d’Aguiar, em Arquivo Histórico da Madeira, vol. VIII, pág. 103.

(7) Vid. «Descobrimento da Ilha da Madeira», de J. D. Leite, pág. CIII e CIV. (8) Vid. «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XIII, pág. 51. (9) Vid. «Descobrimento da Ilha da Madeira», de J. D. Leite, pág. XVI e seguintes. (10) Vid. «Arquivo Histórico da Madeira», vol. VII, pág. 127. (11) Por exemplo, João Cabral do Nascimento, nos seus «Apontamentos de História Insular», pág. 8 e seguintes. (12) Vid. a revista «Ultramar», n.º 3, pág. 45 e 46. (13) A propósito deste mercador, vid. no «Arquivo Histórico da Madeira», vol. III, pág. 180, um artigo de Eugénio

Andrea da Cunha e Freitas. (14) Vid. obra citada, vol. I, pág. 221, da edição de 1924. (15) Vid. «A Ilha da Madeira, Terra do Senhor Infante», do Padre Pita Ferreira, pág. 91. (16) Vol. I, n.º 4. (17) Vid. Padre Eduardo N. Pereira no «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XIII e o que diz o Prof. Damião Peres em

«História dos Descobrimentos Portugueses», ed. de 1943, pág. 51. (18) «D. Francisco Manuel de Melo e o Descobrimento da Madeira», de António Gonçalves Rodrigues, pág. 41. (19) «Descobrimento da Ilha da Madeira» de J. D. Leite, pág. XC. (20) «O Arquipélago da Madeira, Terra do Senhor Infante», pág. 120. (21) Vid. «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XII, pág. 35. (22) Vid. «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XIII, pág. 51 e seguintes. (23) Vid. obra citada, ed. de 1945, pág. 55 a 65. (24) «Escritura» que trazia o descobrimento da Madeira. (25) Vid. pág. 152 deste volume. (26) Vid. obra citada, pág. 122. (27) O Sr. Padre Pita Ferreira ocupou-se igualmente do texto de Alcoforado nas suas «Notas para a História da Ilha da

Madeira», Funchal, 1957. (28) No Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, comemorativo do V Centenário da morte do Infante

D. Henrique, o Sr. Jean Fontvieille apresentou uma comunicação, em que dá conta de uma cópia da «Relação» de Francisco Alcoforado, encontrada na Biblioteca—Museu do Palácio Ducal de Vila Viçosa, que lhe pareceu ser da segunda metade do século XVI, por conseguinte, anterior à da Biblioteca Nacional de Madrid, que o Dr. João Franco Machado e o Prof. António Gonçalves Rodrigues revelaram em Portugal. Na opinião do Sr. Jean Fontvieille, o manuscrito de Madrid é cópia do de Vila Viçosa e este teria pertencido a D. Francisco Manuel de Melo, aquela «joia preciosa», de que fala o celebrado polígrafo quando alude ao documento que serviu para compor a sua «III Epanáfora». (Vid. «Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos», vol. III, 1961).

(29) Livro I das «Saudades da Terra», ed. de 1966, pág. CXVII. (30) Vid. obra citada, pág. 61 e 62. (31) Vid. Livro II, 2.ª ed., pág. CXXXI, nota do Prof. D. Peres. (32) No original, à margem, outro punho que não o de Frutuoso escreveu «D. Fernando», certamente induzido pelo

erro que o autor aqui cometeu, chamando «D. Beatriz» (que foi a mulher do Infante D. Fernando) à mulher do Infante D. João.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 174

(33) O mesmo que varão. (34) Houve aqui manifesta confusão do autor entre o Infante Santo, D. Fernando e o seu homónimo, filho do Rei D.

Duarte. (35) Adiante, Frutuoso dá a data exacta da morte do Infante D. Henrique. (36) No original a palavra «quinhentos» está riscada e substituida na margem por «400», por mão que não parece ser

do autor. (37) No original está escrito à margem: «Porto Santo se descobriu no ano de 1417», por letra e tinta que não são do

autor (a mesma que escreveu «400», a que se refere a nota anterior). (38) No original está escrito «francês» pelo punho do autor, palavra que foi riscada mais tarde (o que se depreende da

tinta) e substituída por «ingrês» (o mesmo que «inglês»), escrita com caligrafia diferente e tinta mais recente da que o autor empregou.

(39) Grafia arcaica de Ceuta. (40) Como anotou o Prof. Damião Peres na sua edição do Livro II, das «Saudades da Terra», o Dr. Álvaro Rodrigues

de Azevedo desfez qualquer valor histórico que esta narrativa pudesse possuir. (41) Na margem, a mesma letra que escreveu o que se refere nas notas anteriores, apôs «em Julho de 1419». (42) O mesme que rebocar. (43) A propósito deste Gonçalo Aires e da sua categoria em relação a João Gonçalves Zarco, vid. a argumentação do

Sr. P.e Pita Ferreira na sua obra «O Arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante», pág. 87, ed. da Junta Geral do Funchal, e o que, em sentido oposto, escreveu o Sr. P.e Eduardo C. N. Pereira no «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XIII, pág. 68.

(44) No original, em vez de «ela» estava escrito «a névoa», palavras que foram apagadas (embora ainda legíveis) e substituídas por «ela», nas entrelinhas, com letra e tinta iguais às das emendas já verificadas no Livro primeiro e que são do próprio punho do autor.

(45) Idem. (46) À margem, no original, alguém escreveu «2 de Junho de 1419», por letra que não é do autor, mas, depois, com

outra tinta, «Junho» foi emendado para «Julho». Contudo, o que está no texto e Frutuoso escreveu é «Julho» e assim aparece no «Descobrimento da Ilha da Madeira», do Cónego Jerónimo Dias Leite, donde esta parte da Crónica é, por assim dizer, um decalque. E, a propósito, vid. as notas da autoria do Dr. João Franco Machado, que se contêm nas páginas 3, 4 e 5 da sua edição do referido «Descobrimento», em que se esclarece o sentido do começo do último período de fls. 32 deste «Livro Segundo das Saudades da Terra» e se identifica o piloto João Damores (assim chamado pelo dito Cónego e por Frutuoso) com o castelhano João de Morales.

(47) É «nenhuma», como se lê no «Descobrimento», de Dias Leite. pág. 11. (48) No «Descobrimento» do Cónego Dias Leite. Gonçalo Aires não é mencionado como «amigo». Vid. fls. 12 dessa

edição. (49) Na mesma obra diz-se «fuliando», como anota o Dr. J. Franco Machado. (50) «Cabo do Girâo» em J. D. Leite, pág. 14 do «Descobrimento da Ilha da Madeira». (51) É Perestrelo. (52) Embora neste capítulo Frutuoso continue a seguir Jerónimo Dias Leite, a digressão do autor das «Saudades da

Terra» acerca das armas que poderia usar João Gonçalves Zarco (pág. 20 a 21) não consta do «Descobrimento da ilha da Madeira».

(53) Para a redacção deste capítulo Frutuoso não se serviu apenas do Cónego Jerónimo Dias Leite, que, aliás, é muito pouco prolixo no que se refere à descrição da ilha de Porto Santo, (Vid. «Descobrimento da Ilha da Madeira», de J. D. Leite, pág. 16 e 17.

(54) No original está escrito «tirrar», (55) Esta data não é a que o autor primitivamente escreveu, pois que, no original, a «Quinhentos» seguia-se «oitenta e

quatro»; deste número, «oitenta» foi emendado para «noventa» e a palavra «quatro» aparece riscada. Ao lado, alguém acrescentou, a tinta diferente e por algarismos, «1590». D’aqui se conclui que a data que Frutuoso pôs no título deste capítulo, quando o escreveu, foi «mil e quinhentos e oitenta e quatro». (Vid. a parte final do cap.º XLVII, em que se diz «nesta era de 84 »). Todo ele é decalcado em Jerónimo Dias Leite.

(56) Vid. «O arquipélago da Madeira, terra do Senhor Infante» de P.e Pita Ferreira, pág. 55 e seguintes, a propósito da filiação de Isabel Moniz e de Bartolomeu Perestrelo em Porto Santo e sua família.

(57) Vid. «Livro II das Saudades da Terra», ed. do prof. Damião Peres, pág. 67, acerca da venda da capitania do Porto Santo a Pedro Correia.

(58) Vid. as notas do Prof. Damião Peres, ao tratar este capítulo na sua edição do Livro II das «Saudades da Terra». (59) A demanda foi julgada a favor de Diogo Soares, como observa o Sr. Dr. Damião Peres, ao transcrever a carta de

confirmação da posse da capitania, em nota publicada a fls. 69 e 70 da sua edição deste Livro II. (60) Grafia antiga de «Castro». (61) O Sr. Dr. Damião Peres estranha as boas referências de Frutuoso a Diogo Perestrelo, atribuindo-as a deficiência

de informação, em nota publicada a fls. 70 do Livro 2.º das «Saudades da Terra», edição de 1925. Embora o documento em que aquele autor se baseia para refutar as afirmações de Frutuoso — a carta enviada a

Filipe I pelos oficiais da Câmara de Porto Santo em 5 de Março de 1586 — contenha acusações graves contra aquele capitão donatário, em grande parte determinadas pela sua posição de antigo partidário de D. António, Prior do Crato, é de notar que a data de tal documento é posterior ao ano de 1584, em que, como já se disse, Frutuoso escreveu este capítulo.

(62) Esta narrativa não consta do «Descobrimento da Ilha da Madeira», do Cónego Jerónimo Dias Leite. (63) O mesmo que «loco-tenente». (64) Publicamente. (65) Zombar. (66) Neste capítulo volta Frutuoso a seguir quase na íntegra o «Descobrimento» de Jerónimo Dias Leite.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 175

(67) Vid. «Elucidário Madeirense», do P.e Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes, vol. 1.º, pág.

298, ed. de 1924 e também «O Arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante», do P.e Pita Ferreira, pág. 125, em que o autor refuta o parecer do Dr. Álvaro Rodrigues d’Azevedo, nas suas «Notas» ao Livro II das «Saudades da Terra», de ter sido esta capela fundada pela Ordem de Cristo.

(68) Vid. «Elucidário Madeirense», do P.e Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes, vol. 2.º, pág. 417, ed. de 1925 e «O arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante», do P.e Pita Ferreira, pág. 325, onde vêm notícias mais circunstanciadas acerca desta capela e respectiva bibliografia.

(69) Vid., acerca do local e da fundação desta igreja, as obras citadas, designadamente a última, pág. 135 e seguintes.

(70) Sobre o incêndio a que se refere esta passagem, vid. «Nota XIII», do Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo na sua edição deste Livro II e a citada obra do P.e Pita Ferreira a pág. 161 e seguintes.

(71) Vid. a propósito desta igreja o «Elucidário Madeirense», vol. 2.º, ed. de 1925, os artigos dedicados a «Santa Maria Maior (Freguesia de)» e «Santa Clara (Igreja de)» e ainda o citado livro do P.e Pita Ferreira ao tratar da igreja de Nossa Senhora do Calhau.

(72) Em J. Dias Leite vem «terras» e não «serras». (73) Deve ser «convinham», isto é, vinham juntamente, acorriam, como anota o Dr. J. Franco Machado e vem no texto

de J. Dias Leite. (74) Camões, na 5.ª Estância do Canto V dos Lusíadas, referindo-se à Madeira, diz ser ela — «mais célebre por nome

que por fama», a mesma frase que, com pequena variante, Frutuoso aqui usa para a Lombada do Esmeraldo. (Vid. nota do P.e Fernando Augusto da Silva a fls. 11 do seu opúsculo «A Lombada dos Esmeraldos na Ilha da Madeira», ed. de 1933).

(75) Segundo o Dr. João Franco Machado, com este período termina a transcrição da «Relação de Alcoforado», a que mais adiante se alude, como sendo a notícia do descobrimento da ilha da Madeira cuja autoria Jerónimo Dias Leite e Gaspar Frutuoso atribuíram a Gonçalo Aires Ferreira. Vid. «Arq.º Histórico da Marinha», tomo IV, pág. 329 (Nota da pág. 25 do «Descobrimento» de J. Dias Leite).

(76) O Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo nas suas «Notas» ao Livro II das «Saudades da Terra», pág. 673 e o P.e Pita Ferreira a pág. 31 da sua citada obra transcrevem a carta dada por D. João I a João Gonçalves Zarco para servir de regimento na divisão e aproveitamento das terras.

De muito interesse é a nota da autoria do Prof. Damião Peres, constante de pág. 24 a 30 da 2.ª edição deste Livro II e demonstrativa da luta travada no tempo do Rei D. Manuel entre a coroa e os capitães donatários, «estes defendendo as suas prerrogativas e aquele procurando diminuir-lhas» até o triunfo completo do poder real.

(77) Em J. Dias Leite «Madanela». (78) J. Dias Leite, donde este passo é extraído, diz «há cento e cinquenta e nove anos», donde o Dr. J. Franco

Machado conclui que o «Descobrimento» de J. Dias Leite foi escrito em 1579. (Vid. «Descobrimento», de J. D. Leite, pág. 25, última nota).

(79) Senhos vem do latim singuli, que significa «cada um». (80) Aqui Frutuoso suspende a transcrição de J. D. Leite, para retomá-la no cap.º LI, referente aos ilhéus das Desertas

(Nota do Dr. J. F. Machado a pág. 27 do «Descobrimento»), que ele próprio desenvolveu. (81) A seguir à palavra «trabalhou» está no original a palavra «o capitão», que depois foi riscada com tinta mais

escura. (82) A seguir a «vivessem» está a palavra «todos», que também foi riscada com tinta mais escura que a do texto (a

mesma a que se refere a nota antecedente). (83) «Uma» e não «sua» em J. D. Leite, pág. 29. (84) Vid. a obra citada do P.e Pita Ferreira, cap.º V, em que se discute a origem nobre deste Gonçalo Aires. (85) Em Jerónimo Dias Leite seguem-se dois parágrafos sobre João Gonçalves Zarco, que Frutuoso transcreveu no

cap.º III deste Livro, como anota o Dr. J. Franco Machado, e nesta edição se encontram a pág. 26 e 27 (edição de 1968; pág. 11 e 12 desta edição). Aliás, em todo o texto deste cap.º XIV, Frutuoso arrima-se no «Descobrimento da Ilha da Madeira».

(86) Os capítulos que tratam da descrição topográfica da Ilha da Madeira não constam do «Descobrimento» de J. D. Leite.

(87) O mesmo que genovês. (88) D’onde vem «Lomelino». (89) Toda a parte do período que se segue a João Dornelas foi escrita pelo punho do autor e em letra mais miúda para

caber no espaço entre o mesmo período e o período seguinte, certamente depois deste livro estar concluído, isto é, depois de 1584.

(90) Na 2.ª edição deste Livro II, feita sobre uma cópia existente na Biblioteca da Ajuda, diz-se que esta igreja é da «Madre de Deus», mas no original nada disto se encontra, nem sequer vestígios de qualquer acrescentamento, que, por ter sido escrito em letra muito miúda, fosse hoje ilegível.

(91) Este apelido foi escrito por Frutuoso primeiramente com a forma de Chiori, a qual modificou posteriormente, antepondo-lhe um A e substituindo o r por l com tinta diferente da usada no manuscrito.

(92) Idem. (93) Frutuoso escreveu primeiramente -«genoês», mas depois riscou a palavra e, por cima, nas entrelinhas, com a

tinta já citada, escreveu «florentim» com a letra miúda que muito se assemelha à dos termos que lavrou nos livros do Registo Paroquial da Ribeira Grande, e com a qual fez os numerosos acrescentamentos que existem no manuscrito original.

(94) Será «Dória»? (95) Vid. nota n.º 1 da autoria do Prof. Damião Peres, na sua edição deste Livro II, pág. 103, acerca da fortaleza da

cidade do Funchal. (96) Deve ser «Acchioli». (97) O mesmo que pilares. (98) É marcenaria.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 176

(99) Por este passo se conclui que Frutuoso escreveu estes capítulos antes da nomeação de D. Luís de Figueiredo de

Lemos para bispo do Funchal, e por conseguinte, antes de 1586; aliás, D. Jerónimo Barreto foi transferido para a diocese de Silves em 1585.

(100) Deve ser «Favila». (101) Este capítulo, em que se descreve a cidade do Funchal, também não consta do «Descobrimento», de Jerónimo

Dias Leite. (102) O mesmo que calhas. (103) O P.e Fernando Augusto da Silva e Carlos d’Azevedo Menezes no seu Elucidário Madeirense, vol. 1.º, pág. 361,

dizem que este João Esmeraldo era flamengo. Vid. igualmente do primeiro d’aqueles autores «A Lombada dos Esmeraldos na ilha da Madeira», pág. 18, em que se publica o alvará de brazão de armas, mandado passar por D. Manuel a 16 de Maio de 1522.

(104) Vid. nota n.º 1 da fol. 114 da 2.ª edição deste Livro II, em que o Prof. Damiâo Peres transcreve a carta régia de 2 de Dezembro de 1501, pela qual o lugar da Ponta do Sol foi elevado à categoria de vila. Já o Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo publicara o texto da referida carta, registada no Arquivo da Câmara do Funchal, numa das suas notas às «Saudades da Terra». Naquela nota, o Prof. Damião Peres refere-se à suspensão em 1546 dos direitos da vila da Ponta do Sol, inerentes à sua categoria, por causa da sua «desobediência e resistência ao Capitão».

(105) Vide nota n.º 3 da pág. 82. (106) Vid. Livro II das «Saudades da Terra», ed. do Prof. Damião Peres, em que nas pág. 118 e 119 se transcreve a

carta régia de 1 de Julho de 1502, em que o lugar da Calheta foi elevado à categoria de vila. (107) Flautas. (108) O mesmo que acampar ou abarracar. (109) Desde o começo do período até «Porto Santo», sobre António de Carvalhal, tudo foi transcrito do

«Descobrimento», de Jerónimo Dias Leite, pág. 101 e 102, como, aliás, já o Dr. J. Franco Machado anotara. (110) No original parece estar escrito «porcas saídas» (?) mas o autor, ou alguém por ele, riscou a última palavra, que

dificilmente se lê. (111) Nesta passagem, no original, são várias as palavras riscadas e substituídas por outras escritas nas entrelinhas,

com a letra extremamente miúda que conhecemos, com o único fito, parece, de melhorar a sintaxe. A tinta de tais riscos e emendas é mais escura, igual à que foi empregada em outros riscos e emendas deste Livro, que devem ter sido feitas pelo próprio Frutuoso.

(112) É a Rochela. (113) Do verbo rever, que significa coar e ressumar. (114) É cordovâo. (115) O mesmo que fetos. (116) O mesmo que cabeludo. (117) O mesmo que selvagem. (118) Tudo o que se relata neste capítulo não consta do «Descobrimento» de J. D. Leite. (119) O título deste capítulo foi acrescentado no original com «até a vinda de Tristâo Vaz da Veiga», por letra que não

é de Frutuoso, mas da pessoa que escreveu os capítulos XLII, XLIII e o começo do XLIV. Todo este capítulo, embora com alguns acrescentamentos, é, por assim dizer, decalcado em Jerónimo Dias

Leite. (120) A carta de doação da capitania do Machico, com data de 8 de Maio de 1440, vem publicada na 1.ª edição deste

Livro II, pág. 456. Acerca da partilha das duas capitanias da ilha da Madeira entre João Gonçalves Zarco e Tristâo, a que Frutuoso mais detalhadamente se refere a pág. 33, 34, 49 e 50 deste volume, vid. a conferência do Sr. P.e Eduardo Nunes Pereira, intitulada «Infante D. Henrique e Geografia Histórica das Capitanias da Madeira», no «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XII.

(121) No seu estudo «O Açúcar, sua origem e difusão», o Sr. Dr. Carlos Montenegro Miguel aceita a afirmação de Frutuoso, ou melhor, de J. D. Leite de que o Infante D. Henrique importou da Sicília as canas de açúcar para se plantarem na ilha (Vid. «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XII).

(122) O Dr. João Franco Machado na sua edição do «Descobrimento da Ilha da Madeira», de Jerónimo Dias Leite, a propósito do verdadeiro nome do 1.º capitão de Machico, manda consultar Jordão de Freitas, «Serras de Água nas Ilhas da Madeira e Porto Santo», separata da «Revista de Arqueologia», tomo III, 1937, pág. 5, nota 8, «Arquivo Histórico da Madeira», vol. III, pág. 123, e a nota VIII, da sua autoria, dada em «Apêndice» àquela edição.

(123) Em Jerónimo Dias Leite «finalmente» e não «ultimamente» como é mais compreensível. (124) Vid. nota n.º 5 de pág. 43 de «O Arquipélago da Madeira, Terra do Senhor Infante», em que o seu autor, citando

o «Nobiliário da Ilha da Madeira» de Henrique Henriques de Noronha, diz que foi com esta Ana Teixeira que se deu o episódio amoroso, a que, adiante, Frutuoso se refere de maneira velada e J. D. Leite laconicamente alude ao falar de Catarina Teixeira, dizendo que seu pai a levara ao Reino «por certo desastre».

(125) Aliás, Diogo Barradas, como se vê na carta de perdão passada em Lisboa aos 17 de Fevereiro de 1452, publicada pelo Prof. Damiâo Peres na sua edição deste Livro II, pág. 138 e 139, nota n.º 1, que esclarece o assunto.

(126) Vid. «O Arquipélago da Madeira, Terra do Senhor Infante», do P.e Pita Ferreira, pág. 49, em que se chama a atenção para o erro de cronologia aqui cometido com respeito ao pretenso degredo do 1.º capitão do Machico na ilha do Príncipe, que só foi descoberta em 1471. Vid. na mesma obra e na mesma página a carta de perdão, que o referido autor transcreve, datada de 17 de Fevereiro de 1452, como se disse.

(127) O Dr. João Franco Machado refere que no «Cancioneiro Geral» se podem ver algumas das suas composições e cita, a propósito, a «Gente do Cancioneiro», de Braamcamp, na «Revista Lusitana», vol. X, pág. 262, e ainda a nota VIII da sua autoria no já referido «Apêndice» ao «Descobrimento da ilha da Madeira», de Dias Leite.

(128) Vid. «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XI, em que o P.e Pita Ferreira num estudo sobre este Tristão «das Damas», referindo-se aos crimes de que o acusaram, publica a carta de perdão do rei D. Manuel, de 11 de

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 177

Fevereiro de 1496, pela qual se prova que J. Dias Leite, onde Frutuoso se informou, «foi enganado ou voluntariamente quis deitar um véu sobre as quedas» deste capitão de Machico.

(129) É Catanho, como se pode ver na edição do «Descobrimento da ilha da Madeira», de J. Dias Leite, pág. 107. (130) No original, começa com esta palavra a série de folhas deste livro, que não foram escritas por Frutuoso, a qual

abrange parte deste capítulo XX e vai até ao começo do capítulo XXXI. Pela necessidade de introduzir, depois deste Livro estar já escrito pelo cronista, os capítulos referentes a Tristão Vaz da Veiga, que são 14 folhas, o autor da interpolação viu-se compelido a cortar a 10.ª folha do caderno n.º 9 do manuscrito, que continha a parte final deste capítulo, escrita por aquele, e a 1.ª do caderno n.º 12, em que Frutuoso deveria ter escrito o capítulo que trata dos filhos do 1.º capitão do Funchal e o começo do seguinte, os quais, com as alterações introduzidos na numeração dos capítulos, consequência da referida interpolação, têm hoje os números XXX e XXXI.

(131) As dissenções deste capitão Diogo Teixeira com a Coroa não vêm mencionadas no «Descobrimento» de J. Dias Leite. Vid., a este propósito, a nota n.º 1 do Dr. Damião Peres, na sua edição deste Livro II, pág. 142.

(132) Vid. a fls. 142 da 2.ª ediçâo deste Livro a carta de doação da capitania a António da Silveira, publicado pelo Prof. Damião Peres.

(133) Jerónimo Dias Leite ao referir-se a D. Afonso de Portugal, Conde de Vimioso diz «que hoje este dia está cativo em África» (Vid. «Descobrimento da ilha da Madeira», pág. 109). Não menciona, no entanto, loco-tenentes e ouvidores que a governavam em nome daquele titular, aqui citados por Frutuoso, nem como é óbvio, a sucessão do filho, D. Francisco de Portugal, e o subsequente sucesso do seu falecimento na batalha naval de Vila Franca.

(134) Daqui até ao final do penúltimo período é por assim dizer um decalque do fim do respectivo capítulo de Jerónimo Dias Leite.

(135) Todas as informações de Frutuoso, neste capítulo, sobre as pessoas, que, em serviço de justiça, estiveram na Madeira, não constam do «Descobrimento» de J. D. Leite.

(136) Desde a parte final do capítulo XX até ao começo do XXXI tudo está escrito por letra diferente da de Frutuoso. Como se disse, são um caderno e 4 folhas que foram incluídos posteriormente (desde a pág. 92 do manuscrito até 106, exclusive), encontrando-se ainda os resquícios das folhas arrancadas, pois que foi preciso ao autor desta pretensa fraude, possivelmente o próprio cronista, mandar copiar o final do cap.º XX, todo o cap.º XXX e o título e o começo do cap.º XXXI, que são já da sua própria autoria e existiriam de começo no manuscrito com a sua letra, como o demonstram as emendas da numeração dos capítulos que se seguem a este último.

Pela grande semelhança que se nota entre a letra, em que foram escritos tais capítulos, e a do P.e Simão Tavares, beneficiado da Matriz da Ribeira Grande, que a partir de 1589 lavrou numerosos termos do respectivo registo paroquial, poderá supor-se que, a pedido de Frutuoso, fosse este padre o copista dos capítulos que foram introduzidos na obra, com certeza nunca antes de 1590, data que, expressamente, se menciona no cap.º XXVIII.

(137) Aliás oitavo, porque, como relata Frutuoso no capítulo antecedente, a Diogo, Teixeira, 4.º capitão, sucederam na capitania de Machico António da Silveira, D. Afonso de Portugal e D. Francisco de Portugal, estes últimos Condes de Vimioso. É estranho que Frutuoso, se da fraude cometida no manuscrito teve conhecimento, do que, aliás estamos convencidos, não tenha emendado tal erro.

(138) Acima o autor destes capítulos diz que Tristão Vaz da Veiga é filho de Manuel Cabral da Veiga e neto de Diogo Cabral; aqui já diz que o avô é que casou com uma filha de Diogo Cabral.

(139) O mesmo que abexins. (140) Desde o período que termina em «segundo depois se soube», não há ponto algum no manuscrito, apenas

vírgulas e dois pontos, o que nos faz crer que estes capítulos não foram escritos por Frutuoso, que, geralmente, é meticuloso na pontuação.

(141) Assim designavam os portugueses os habitantes da ilha de Java. (142) Como diz o Sr. Dr. Damião Peres na edição de 1925 deste Livro II, trata-se da História dos cercos que em tempo

de António Moniz Barreto, governador que foi dos estados da Índia, os Achens e Jaos puseram à fortaleza de Malaca, sendo Tristão Vaz da Veiga capitão dela, impressa, de facto, em Lisboa em 1585. Por aqui se vê que estes capítulos referentes a Tristão Vaz da Veiga foram redigidos após a confecção deste Livro II das Saudades da Terra, que data, como anotamos no cap. VIII, de 1584.

(143) Deve ser Java. Vê-se bem, no original, que foi má leitura do copista, que transcreveu estes capitulos, que não são de Frutuoso.

(144) Será Coromandel? (145) Deve ser bairro. (146) É traição. (147) O mesmo que considerando. (148) No original (que parece cópia mal feita do verdadeiro original) há manifestamente troca ou confusão de frases

neste período. (149) Palavra antiga que significa rectaguarda. (150) No original está escrito «treze velas»; contudo, logo a seguir fala em quarenta galés, o que mais me confirma na

suposição de que esta parte do manuscrito é cópia mal feita de um original, cuja autoria não é de Frutuoso. Conviria analisar o estilo e compará-lo com o do resto da obra. Para a edição deste Livro, publicada em 1925, os capítulos de Tristão Vaz da Veiga foram extraídos da edição de Álvaro Rodrigues de Azevedo, como diz Damião Peres, visto que a cópia da Biblioteca da Ajuda não os traz.

(151) Nas duas edições deste Livro II em vez de «inteligências», como está no original, vem «diligências». (152) Tanto na edição de Álvaro Rodrigues de Azevedo, como na do Dr. Damião Peres a seguir a «dados» figura a

palavra «socorros», a qual, no entanto, não existe no original. (153) Sic; contudo, é «barruntassem» e não «abarrotassem», como vem nas duas edições já publicadas deste Livro.

O «Grande Dicionário Português», de Fr. Domingos Vieira, transcreve dos «Cercos de Malaca» de Jorge de Lemos, a frase, empregada neste texto.

(154) Será «ilesas»? (155) É quantia.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 178

(156) Será faustosa, ou então adjectivo derivado de «fauta». (157) Será «discurso palavra», que o copista dum manuscrito primitivo, lesse erradamente? (158) É de notar que neste relato sobre os feitos de Tristão Vaz da Veiga, que não deve ter sido redigido, ou feito, por

Frutuoso, D. António nunca é antecedido de «Senhor», como quase sempre ele o fazia. (159) A frase «desde que chegou da Índia» até «muitas coisas» está no original intercalada e escrita à margem pela

mesma letra do texto, dando a impressão de ter havido aqui um salto motivado pela repetição da palavra «coisas», o que nos confirma na suposição de serem estes capítulos uma cópia.

(160) Tristão Vaz da Veiga foi feito capitão do Machico em 1582. Tendo sido este livro das Saudades da Terra escrito em 1584, é estranho que Frutuoso, nos capítulos do seu

próprio punho, nunca a isso se refira. É verdade que só em 1585 ele tomou posse da capitania como sabemos pelo documento transcrito a págs. 178, nota n.º 1, pelo Dr. Damião Peres, na sua edição do Livro II das Saudades da Terra.

(161) Vid. a propósito de João Leitão, como capitão-mor de Machico, o que diz o Dr. Damião Peres na sua já citada nota n.º 1 da pág. 178 da sua edição deste Livro II.

(162) Tristão Vaz da Veiga foi nomeado general e superintendente militar da Madeira em 1585, um ano depois de escrita esta parte da crónica.

(163) O mesmo que trincheira. (164) Por esta data se vê que os capítulos sobre Tristão Vaz da Veiga foram redigidos seis anos depois de escrito

este Livro II pelo punho de Frutuoso, se acaso a fraude não foi cometida mais tarde e a data de 1590 figura apenas para que se acredite terem tais capítulos sido escritos ainda em vida de Frutuoso. — Mas, a contestar esta hipótese, está a entrelinha «capelão de Sua Magestade», no cap.º XXX, na tal letra miúda com que Frutuoso fez numerosas emendas e acrescentamentos.

(165) A frase «que tomou o galeão e matou a Dom Luís» foi acrescentada à margem, no original, por letra e tinta diferentes, em virtude de ela ter escapado a quem redigiu (ou copiou?) o texto.

(166) A frase que vai desde «e Sebastião Vaz da Veiga» até «Tristão Vaz da Veiga» foi escrita à margem pelo próprio punho de quem escreveu esta parte da crónica, com todo o aspecto de lhe ter escapado, quando a redigiu ou copiou.

(167) É o Penhão, a que o autor se refere no Livro III, ed. de 1922, pág. 96, isto é, a Penedia de Velez de Gomera, na costa de Marrocos.

(Nota de Alexandre de S. Alvim, em pág. 187 do Livro II, edição de 1925). (168) O mesmo que enfeite. (169) Este capítulo. embora escrito pela mesma letra dos de Tristão Vaz da Veiga por figurar numa das 4 folhas que,

juntamente com um caderno, foram incluídas no manuscrito, deve ser da autoria de Frutuoso e copiado de uma das folhas arrancadas; deveria seguir-se imediatamente ao capítulo XX (que trata dos capitães do Machico), com o número XXI, que é o que condiz com a primitiva numeração, que a partir do capítulo XXXII aparece sempre emendada.

(170) «capelão de Sua Majestade» está em entrelinhas no original com letra muito miúda e igual à das entrelinhas e emendas frequentes nesta obra, e que facilmente se identificam com a letra dos termos do Registo Paroquial da Matriz da Ribeira Grande, lavrados por Frutuoso. Sendo assim, conclui-se que a introdução dos capítulos sobre Tristão Vaz da Veiga foi cometida com o consentimento do autor.

(171) O mesmo que dignas. (172) A partir deste período recomeça o decalque, por assim dizer, «ipsis verbis» do «Descobrimento da ilha da

Madeira», de J. Dias Leite. Contudo, Frutuoso não transcreveu aqui o que o autor do «Descobrimento» diz de Rui Gonçalves da Câmara, 3.º capitão-donatário de S. Miguel.

(173) O autor refere-se sempre a quatro filhas do Zarco e a quatro fidalgos, que com elas foram casar à Madeira, mas na resenha dessas filhas e respectivos maridos e descendências, não menciona a quarta filha, que parece ter sido a mais velha, nem o seu casamento. Jerónimo Dias Leite, a fls. 16 do «Descobrimento da Ilha da Madeira», refere essa quarta filha, cometendo, no entanto, o lapso de a omitir mais adiante, quando fala dos maridos que foram do Reino para casar com elas. Essa quarta filha, segundo as «Genealogias da Ilha da Madeira», de João Agostinho Pereira d’Agrela, (manuscrito existente na Biblioteca Pública de Ponta Delgada), é Helena Gonçalves da Câmara, que casou com Martim Mendes de Vasconcelos. Vid. «O Descobrimento» de Jerónimo Dias Leite, o original e as cópias, de Fernando d’Aguiar (Arq.º Histórico da Madeira, vol. 8.º, pág. 110).

(174) Em Jerónimo Dias Leite esclarece-se que é o mosteiro de freiras de Santa Clara. (175) O título deste capítulo e o princípio dele até «segundo do nome» ainda estão escritos por letra diferente da de

Frutuoso e num dos cadernos de papel introduzidos posteriormente. A letra de Frutuoso volta a aparecer no caderno 12.º e folhas 106 do manuscrito. Este capítulo, antes da fraude, deveria ter o número 22.º, o que é confirmado pela numeração do capítulo seguinte, onde o 3, do 23, apesar de raspado, ainda está bem visível. Ao escrever este título, esqueceram ao copista as palavras «do Funchal», que foram acrescentadas, nas entrelinhas, em letra miúda, que parece de Frutuoso.

(176) Será Cabo de Gué? (177) Deve ser Gijon. (178) Em vez de «D. Joana de Sá, filha de João Fogaça e da camareira-mor» leia-se «D. Joana d’Eça, filha de João

Fogaça, camareira-mor». É como está no «Descobrimento da ilha da Madeira», de J.D. Leite, a pág. 37. De facto, D. Joana d’Eça foi camareira-mor da Rainha D. Catarina e a seu respeito Frutuoso fez confusão quando a pág. 46 e 96 diz que foi casada com Gonçalo Fernandes. D. Joana d’Eça, camareira-mor da Rainha D. Catarina, casou com Pedro Gonçalves da Câmara, filho do 2.º capitão-donatário do Funchal, como está nesta pág. e é confirmado por Henrique Henriques de Noronha no seu «Nobiliário da Ilha da Madeira». Foram pais de António Gonçalves da Câmara, de que trata o cap.º XXXVI deste L.º II, cuja mulher, D. Isabel de Abreu, não era sua prima, como erradamente diz Frutuoso. (Vid. Nota VIII, do Dr. A.R. d’Azevedo, a fls. 837 da sua edição deste L.º II). Cf. Braancamp, « A gente do Cancioneiro», na «Revista Lusitana», vol. X, pág. 262.

(179) J. Dias Leite diz que todas foram freiras (Vid. «Descobrimento da ilha da Madeira», pág. 37).

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 179

(180) «António de Freitas», em J. Dias Leite. (181) «Joane Mendes de Brito», em J. Dias Leite. (182) J. Dias Leite acrescenta «filho de Rui Mendes de Vasconcelos, e Simão Anrrulho (sic) e seu irmão», o que prova

que houve lapso de cópia da parte de Frutuoso. (183) Ao trasladar J. Dias Leite, Frutuoso saltou «e Henrique de Perada e Mem de Brito, filho de Pero de Brito», lapso

de cópia, por atracção dos vocábulos «irmão e Brito», que se repetem. (Vid. a última nota da pág. 139 do «Descobrimento», de J. Dias Leite).

(184) No Dicionário de Vieira aparece a forma «adaião», que significa deão. (185) «E houve outra que se finou na Concepção em Beja», em J. Dias Leite e, por lapso, Frutuoso não transcreveu. (186) O mesmo que devoção. (187) Frutuoso omitiu igualmente os nomes destas freiras: Maria Façanha, Ana Travassos, Dona Joana de

Albuquerque e Dona Maria de Melo e outras moças, suas parentes. (Vid. «Descobrimento», de J. Dias Leite, pág. 43).

(188) Vid., a este propósito, «O Padroado da Ordem de Cristo na Madeira» do P.e António Brásio, no «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XII, pág. 191, em que se verifica a intervenção vigorosa de D. Beatriz, Duquesa de Viseu, na defesa dos direitos da Ordem de Cristo na jurisdição espiritual destas ilhas.

(189) Vê-se claramente no original que a numeração deste capítulo foi alterada, distinguindo-se ainda, por debaixo do número actual, o primitivo, isto é, 23 (em algarismos árabes), que deveria seguir-se ao 21.º (que agora tem o número 30.º e se refere à progénie de João Gonçalves Zarco), e ao 22.º, actual 31.º, que diz respeito ao 2.º capitão do Funchal, os quais devem ter sido escriturados por Frutuoso e substituídos por cópias a quando da introdução dos capítulos referentes a Tristão Vaz da Veiga. Daqui se conclui a interpolação praticada, pois que tais capítulos (os respeitantes a Tristão Vaz da Veiga) não existiam quando Frutuoso redigiu este Livro II.

(190) Em Jerónimo Dias Leite lê-se «porque seu pai era já muito velho». (191) É como está no original e não 1508 como vem na edição do Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo (Vid. nota do Dr.

J. F. Machado, a pág. 47 do «Descobrimento», de J. D. Leite). Contudo, J. D. Leite diz «no mesmo ano de octo» e daí o lapso de Frutuoso.

(192) Em J. Dias Leite «o mandou descercar», como é óbvio (Vid. pág. 48 do «Descobrimento»). (193) Em J. Dias Leite, pág. 49, «Pena Fiel». (194) Diz o Dr. J. Franco Machado, em nota da pág. 50 do «Descobrimento», de J. Dias Leite, que a afirmação de que

D. Manuel de Noronha trouxe capelo de Cardeal ao Infante D. Afonso no ano de 1516 não é exacta, parecendo ser extractada de Damião de Goes (Crónica de el-Rei D. Manuel, parte II, cap. XLII.

(195) Tudo quanto aqui se refere a D. Manuel de Noronha não consta de J. Dias Leite, pois que no «Descobrimento» segue-se a continuação do relato dos filhos de Simão Gonçalves da Câmara.

(196) Forma antiga de «ausente». (197) Esta numeração foi também alterada, parecendo ainda divisar-se a antiga, isto é: 24.º. (198) Este capítulo é decalcado em J. Dias Leite, que no «Descobrimento» faz parte do cap.º dedicado a Simão

Gonçalves da Câmara, 3.º capitão-donatário. (199) Vid. a este respeito o que diz Frutuoso a pág. 35 deste Livro II. E, a propósito da atitude, aí referida, da Infanta

D. Beatriz, Duquesa de Viseu, como tutora de seu filho D. Diogo, administrador apostólico da Ordem de Cristo, na defesa dos direitos da espiritualidade da mesma Ordem nas ilhas Atlânticas, vid. no «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XII, o trabalho do P.e António Brásio, «O Padroado do Ordem de Cristo na Madeira».

(200) Vid. a propósito da criação da diocese do Funchal «O Padroado da Ordem de Cristo na Madeira», pelo P.e António Brásio, no «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XII, pág. 191.

(201) Aliás, 1525, como observa o Dr. Franco Machado, em nota da pág. 53 do «Descobrimento». (202) Como anota o Dr. J. Franco Machado, este episódio está mais desenvolvido em Frutuoso do que em J. Dias

Leite. (203) A numeração foi igualmente alterada; ainda se distingue a antiga numeração: 25. (204) Este capítulo, em J. Dias Leite, figura no que ele dedicou ao capitão Simão Gonçalves da Câmara. (205) É Mequinez. (206) Vid. a nota n.º 1 de fls. 210 da 2.ª edição deste Livro II, em que, a propósito da nomeação de Diogo Taveira

como corregedor, o Prof. Damião Peres transcreve um documento comprovativo dos abusos cometidos pelo capitão-donatário.

(207) «Já» em J. Dias Leite, pág. 55. (208) Assim está no manuscrito original das «Saudades da Terra», tal como vem em J. Dias Leite. (209) «Que assim» e não «a fim lhe logo satisfez», em J. Dias Leite, o que está mais compatível com o que se segue. (210) Em J. Dias Leite «vestido», porque se refere ao embaixador (Nota do Dr. J. F. Machado, pág. 58 do

«Descobrimento»). (211) Como diz o Dr. J. Franco Machado, aqui, como em outros passos, Frutuoso refunde a redacção original,

constante do «Descobrimento», acrescentando-a. (212) Com efeito, no manuscrito original está a negativa «não», como em J. Dias Leite, sendo o copista das

«Saudades» o autor do lapso. (213) O mesmo que qualificado. (214) A numeração foi alterada; devia ser o antigo 26.º. (215) Neste cap.º Frutuoso seguiu igualmente J. Dias Leite na parte que se refere a Simão Gonçalves da Câmara. (216) À margem, está escrito no original o seguinte, por letra muito diferente da do autor e bastante posterior: «Este

D. João de Ataíde era herdeiro da casa de Atouguia e não de Tarouca e por isso seu neto João Gonçalves veio a ser Conde de Atouguia, e é um neto deste que hoje vive. A este D. João chamaram o S.º (Santo?) por suas grandes virtudes». Também o Dr. J. Franco Machado, em nota da pág. 60 da edição do «Descobrimento» de J. Dias Leite, fez o mesmo reparo, dizendo tratar-se do Conde de Atouguia e não de Tarouca.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 180

(217) Assim está no manuscrito original, ao contrário do que supõe o Dr. Franco Machado em nota situada na pág. 61

da edição do «Descobrimento», de J. D. Leite. (218) Vid. nota n.º l da pág. 216 da 2.ª edição deste Livro II, a propósito da renúncia da capitania do Funchal, por parte

de Simão Gonçalves da Câmara. (219) Assim está no manuscrito original das «Saudades da Terra», tal como em J. Dias Leite (Vid. nota de fls. 62 do

«Descobrimento da ilha da Madeira». (220) «Sessenta e sete», em J. Dias Leite (fls. 63 da edição publicada) e assim deve ser. (221) A seguir a «granjeada», em Jerónimo Dias Leite segue-se «porque tem muito gado vacum e miúdo, muitas aves

domésticas» etc., que Frutuoso transpôs para o cap.º 51.º deste Livro das «Saudades da Terra». Assim anotou o Dr. J. Franco Machado na sua edição do «Descobrimento».

(222) Assim está em J. Dias Leite e não como aparece na 2.ª edição deste Livro II. (Vid. nota da fl. 64 da edição do «Descobrimento»).

(223) A numeração foi alterada. Este capítulo deve ser o antigo 27.º, pois que o algarismo 7 está ainda bem visível. (224) Frutuoso deu a este assunto um desenvolvimento que não se regista no manuscrito de Jerónimo Dias Leite (Vid.

pág. XCIX da «Introdução». da autoria do Dr. J. Franco Machado, à edição do «Descobrimento da Ilha da Madeira»).

(225) João Esmeraldo era de origem flamenga e não genovês (Vid. «A Lombada dos Esmeraldos na ilha da Madeira» do P.e Fernando A. da Silva, pág. 18).

(226) Vid. nota 3 da pág. 82. (227) A respeito do episódio que segue, vid. «A Lombada dos Esmeraldos na ilha da Madeira», do p.e Fernando

Augusto da Silva. pág. 24. (228) Significa ceder. (229) Grafia antiga de bodas. (230) Dona Joana d’Eça (Vid. «A Lombada dos Esmeraldos na Ilha da Madeira», do P.e Fernando Augusto da Silva,

pág. 27. (231) Exercícios militares. (232) Numeração alterada no original; deve ser o antigo capÍtulo 28.º. No título deste capítulo, Frutuoso chama a João

Gonçalves da Câmara «Capitão da ilha da Madeira», mas a expressão «da Madeira» foi riscada a tinta mais escura e a palavra «ilha» rasurada em parte e substituída por «funchal». A emenda parece ter sido feita pelo próprio Frutuoso.

(233) O mesmo que aceito. (234) Em J. Dias Leite «guerreiro». (235) Miquinez. (236) Assim está no manuscrito original e em J. Dias Leite. (237) Assim está em J. Dias Leite. (238) «Todos» em J. Dias Leite. (239) Vid. nota do Dr. J. Franco Machado, a pág. 69 do «Descobrimento» a propósito de um evidente salto de linha

que aquele autor verificou no manuscrito de Jerónimo Dias Leite. (240) Em J. Dias Leite «seiscentos e cinquenta». (241) Esta última frase desde «o que eu queria» foi acrescentada por Frutuoso ao texto de J. Dias Leite, como anota o

Dr. J. F. Machado. (242) Também a numeração foi alterada; deve ser o antigo capítulo 29.º; a cabeça do 9 está bem visível. (243) Da mesma forma que na epígrafe do capítulo anterior, Frutuoso escreveu primeiramente «capitão da ilha da

Madeira», emendando depois para «do Funchal». (244) No original «terceiro» está riscado e à margem escrito por outra letra e tinta «quarto». (245) Como diz o Dr. J. F. Machado em nota da pág. 73 do «Descobrimento» de J. D. Leite, Frutuoso neste passo

aproveitou a oportunidade para desenvolver a biografia do P.e Luís Gonçalves da Câmara. (246) «Muitos», em J. D. Leite. (247) Aqui, igualmente, Frutuoso se alongou na descrição dos méritos do P.e Martim Gonçalves da Câmara. (248) Em J. Dias Leite «Barcellor», e não «outra parte». (249) No manuscrito original das «Saudades da Terra», não falta esta passagem, como erradamente supõe o Dr. J. F.

Machado, em nota da pág. 75 do «Descobrimento», de J. D. Leite, devendo o lapso, a que se refere, atribuir-se às cópias que serviram para as edições deste Livro II.

(250) «Trincheira», em J. D. Leite. (251) Talvez propositadamente, Frutuoso, ao enumerar os filhos do 4.º Capitão do Funchal (e o mesmo fez J. D.

Leite), não citou Nuno Gonçalves da Câmara, cuja viúva, D. Maria de Noronha desposara em segundas núpcias um homem de condição inferior à sua e, por tal motivo, foi castigada de forma violenta e cruel pelo cunhado Martim Gonçalves da Câmara, que, usando do despotismo com que governava em nome de D. Sebastião, não só a encarcerou numa prisão da Torre de Belém, como a expôs à vergonha de atravessar as ruas de Lisboa entre esbirros, sobre uma mula, com as mãos manietadas. A família de D. Maria de Noronha queixou-se ao Rei e a própria Rainha D. Catarina, que não esquecia os agravos que sofrera do valido, protestou contra tamanha injúria, feita a uma dama da Nobreza. Parece ter sido este incidente o pretexto de que D. Sebastião se serviu para afastar Martim Gonçalves da Câmara, que, tendo já perdido muito do ascendente que exercia no espírito do monarca, caiu definitivamente em desgraça e nunca mais voltou ao Paço. (Vid. «D. Sebastião», de Queiroz Velloso, pág. 211 e 212). Dada a admiração que Frutuoso nutria pelo célebre jesuita, não é de estranhar que procurasse fugir a citar pessoas, que estavam na origem do motivo que mais directamente provocou a sua queda.

(252) Também a numeração foi alterada; deve ser o antigo n.º 30. De facto, o 3 está intacto e ao zero foi juntado um traço para fazer o 9.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 181

(253) Da mesma forma que nos títulos dos capítulos 37.º e 38.º o autor escreveu «ilha da Madeira» em vez «do

Funchal», achando-se hoje riscada a primeira designação e escrita ao lado a segunda. (254) Em nota do Prof. Damião Peres, pág. 236 da 2.ª edição deste Livro, sabe-se que a doação da capitania só foi

confirmada por escrito em 1542. (255) Vid. em «Descobrimento», de J. Dias Leite, a última nota da pág. 79 que diz o seguinte: «em sosso, sem

argamassa», expressão que Frutuoso traduz indevidamente por «ensoça» (Nota do Dr. J. Franco Machado). Contudo, no «Grande Dicionário Português», de Fr. Domingos Vieira, fala-se em «parede ensossa» ou «ensoça», como parede feita de pedra assentada, sem cal nem argamassa.

(256) Como verificou o Dr. J. F. Machado, Frutuoso, ao transcrever este passo do «Descobrimento» de J. D. Leite, saltou as palavras seguintes: «e quando se veio o sr. Capitão para a ilha ele ficou servindo el-Rei em companhia de Rui Dias d’Aguiar, donde depois se foi para o Regno, e no ano de trinta e quatro, vieram pedir socorro de Safim, porque os mouros tinham morto o capitão D. João de Faron e o adail Lopo Barriga, no qual socorro foi o dito Gaspar Vilela com seis homens à sua custa». Diz o Dr. J. F. Machado em nota da pág. 80 do referido «Descobrimento» que «esta omissão, conquanto não afecte a sintaxe, desfigura profundamente a verdade do sucedido».

(257) Deve ser Dória. (258) Deve ser «Vogado», como vem em J. D. Leite. (259) Assim está no manuscrito original, de acordo com J. D. Leite. (260) Idem. (261) Foi alterada a numeração; deve ser o antigo 31.º. (262) No original e pelo punho de Frutuoso o título deste capítulo terminava com a frase «que agora a governa», que

se seguia a «Bispo», a qual foi riscada e substituída por «Dom Hierónimo Barreto». Note-se que os riscos que cobrem aquela frase são da mesma tinta dos que riscaram a «ilha da Madeira» nos capítulos 37.º, 38.º e 39.º, e «Dom Hierónimo Barreto» está com letra igual à das emendas e acrescentamentos verificados frequentemente no manuscrito original das «Saudades da Terra», que são de próprio autor.

(263) O mesmo que terebintina. (264) Transcrevemos parte da nota do Dr. J. F. Machado, constante da pág. 83 do «Descobrimento» de J. D. Leite:

«Para não «misturar as coisas sagradas com as profanas», Frutuoso suspende aqui a transcrição que vinha fazendo e segue com os mais passos do nosso ms. relativos ao estado eclesiástico da Ilha, quebrando assim com a natural ordem cronológica estabelecida por Jerónimo Dias. Por isso só no cap.º XLIII das «Saudades» vem transcrito o parágrafo seguinte». Este refere-se a novo cerco da Vila de Cabo de Gué pelos mouros no tempo do 5.º Capitão-donatário Simão Gonçalves da Câmara e ao socorro com que logo lhe acudiram alguns fidalgos da Madeira, juntamente com o Capitão-donatário da ilha de S. Miguel, Manuel da Câmara.

(265) No original a data de 1580, que foi a que Frutuoso escreveu primeiramente, está bem visível, pois que por debaixo da emenda «noventa» distingue-se «oitenta». Daqui se conclui que Frutuoso escreveu 1580 por extenso e deixou um pegueno espaço em branco, para preencher com a unidade, provavelmente quando acabasse a obra. Está esta emenda de acordo com todas as outras que ele fez para convencer o leitor de ter sido escrito este Livro II em 1590, data em que foram introduzidos os capítulos dedicados a Tristão Vaz da Veiga.

(266) É Pero da Canha (Vid. pág. 87 do «Descobrimento» de J. D. Leite). (267) O mesmo que austero. (268) Na transcrição que Frutuoso vai fazendo de J. D. Leite, o período que se segue no «Descobrimento» foi

transferido para o cap.º XLIII. (269) Vid. a este propósito a edição das «Saudades da Terra», do Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo, pág. 547, o

«Elucidário Madeirense», do P.e Fernando Augusto da Silva, vol. II, pág. 425, 450 e 464, e «O Arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante», do P.e Pita Ferreira, pág. 265.

(270) Em J. D. Leite segue-se a notícia do saque dos corsários franceses, que Frutuoso transcreveu e desenvolveu no cap.º XLIV.

(271) A frase «por dizer logo de todos os bispos da ilha neste lugar, já que comecei a falar deles» foi acrescentada no original com a dita letra muito miúda, que é de Frutuoso.

(272) Também com a numeração alterada; deve ser o antigo 32.º. (273) O primitivo título deste capítulo, escrito pelo punho de Frutuoso, é o seguinte: «Da vida e costumes do

Ilustríssimo e Reverendíssimo Bispo da Ilha da Madeira Dom Hierónimo Barreto, que neste presente tempo governa o bispado». A mesma mão que riscou palavras dos títulos de capítulos anteriores riscou neste «Ilustríssimo e Reverendíssimo» e tudo que se segue a «Dom Hierónimo Barreto»; essa mão deve ser a de Frutuoso, porque a tinta é a mesma; estes cortes, e os que se registam no decorrer do capítulo, devem relacionar-se com a introdução nesta obra, depois de completada, do capítulo respeitante ao Bispo Dom Luís de Figueiredo Lemos, que é o que se segue com o n.º 42.

(274) No manuscrito, Frutuoso antepôs aqui a Bispo os qualificativos de «Ilustríssimo e Reverendíssimo» e fez seguir Dom Hierónimo Barreto da frase «que hoje preside no dito bispado», palavras que foram riscadas depois, mas que figuram igualmente no «Descobrimento» de J. D. Leite.

(275) Esta passagem encontra-se no manuscrito original, ao contrário do que supõe o Dr. J. F. Machado em nota da pág. 94 do «Descobrimento» de J. D. Leite. Todos os dados biográficos que se seguem não constam do «Descobrimento».

(276) Frutuoso escreveu «Francisco Barreto», mas depois «Francisco» foi riscado e substituído, na margem, por «Afonso», com letra que não parece do autor.

(277) Frutuoso escreveu «casta» no lugar de «progénia» (sic), palavra esta que foi escrita por cima da outra (que está riscada) com letra igual à das muitas emendas existentes no Livro I e no título do cap.º 40.º deste Livro.

(278) «Bispo», no original, está precedido de «ilustre», qualificativo que foi riscado pela mesma mão e tinta que fizeram as emendas e riscos do cap.º precedente, a qual mão deve ser de Frutuoso.

(279) («Se é lícito)» está em entrelinhas pela mesma letra das emendas.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 182

(280) O mesmo que «afável». (281) No original a palavra «mostrou» está precedida de «até agora», escrito por Frutuoso e que se acha riscado. (282) Em J. Dias Leite «o ano passado de quinhentos e setenta e oito» (pág. 95 da edição do «Descobrimento da ilha

da Madeira»). (283) O que se segue até ao período que começa em «Era tão contínuo e devoto este prelado» não consta do

«Descobrimento», de J. D. Leite. (284) No original, Frutuoso escreveu «é conhecido» pois se refere ao bispo que ao tempo ocupava a diocese do

Funchal, mas depois «é» foi emendado para «era», como está ainda bem visível. (285) Frutuoso escreveu «tem-se rendido», o que depois alterou riscando «tem» e substituindo «rendido» por

«renderam». (286) Frutuoso escreveu «trata a todos», o que foi depois alterado para «tratava todos». (287) Frutuoso escreveu primeiramente «é», o que foi emendado, como está bem visível. (288) No original Frutuoso escreveu «gasta», acrescentando depois a última sílaba de «gastava». (289) «Era» e «ia» no original são palavras que substituíram outras pre-existentes. (290) Aqui, no original, começa um caderno escrito por letra muito diferente da de Frutuoso, evidentemente

introduzido, depois de concluído este Livro II, com o propósito de nesta obra figurar o cap.º 42.º, referente ao Bispo do Funchal D. Luís de Figueiredo Lemos. A mutilação do manuscrito com tal objectivo é bem visível, pois que lá está uma parte da margem da folha que foi cortada e seria escrita pelo punho do cronista.

(291) Como anota o Dr. J. F. Machado, a matéria que se segue em J. D. Leite é objecto do cap.º XLIX deste Livro II. (292) J. D. Leite escreveu o seu «Descobrimento» em 1579, data em que D. Jerónimo Barreto era ainda Bispo do

Funchal. Por conseguinte, este último período deve ter sido apenso pelo próprio Frutuoso. (293) Todo este capítulo está escrito por letra muito diferente da de Frutuoso, a mesma que figura na última parte do

capítulo anterior, em que foi necessário substituir o que aquele escrevera na respectiva folha, cujos vestígios de ter sido cortada à tesoura ainda estão bem patentes. O 2 da numeração do capítulo parece ter sido escrito por cima de 1.

(294) «Senão» e «muito» (que antecedem «ricos») foram escritos nas entrelinhas pela mesma letra muito miúda que encontramos em numerosas emendas e acrescentamentos no Livro I e, com menos frequência, neste Livro II, e que deve ser de Frutuoso, pela sua semelhança com a dos termos do Registo Paroquial da Matriz da Ribeira Grande.

(295) A saber (Scilicet, sc.). (296) No original, não fecha o parêntesis, certamente por descuido do copista, ou de quem redigiu este capítulo. (297) A palavra «coisa» no original, está repetida, igualmente por engano do copista. (298) Sic — Deve ser «Bispado», e está «bispo», certamente, por engano do copista. (299) No original está escrito «Actoritate», o que deve ser erro do copista. (300) Grafia arcaica de Ceuta. (301) Sic — Falta aqui uma palavra, outro lapso do copista. (302) O mesmo que roquete. (303) O mesmo que divertir. (304) Deve ser guadamecis, ou guadamecins. (305) No texto original «um físico» está escrito em entrelinhas e na mesma letra miúda que já conhecemos, a

substituir a seguinte frase, que foi riscada: «o doutor Daniel da Costa, insigne físico de que a terra carecia, e fez-lhe esta mercê»; a seguir foi escrito nas entrelinhas «para», a fim de ajustar o final do parágrafo à emenda.

(306) O mesmo que reitores. (307) No original está escrito «vou». Pôe-se, assim, a hipótese de ter sido o próprio Bispo D. Luís de Figueiredo quem

fez a primeira redacção deste capítulo, escapando ao copista, ou a quem o redigiu definitivamente, esta forma verbal da primeira pessoa do singular.

(308) Pode muito bem aventar-se a hipótese de ter sido o próprio Bispo D. Luís de Figueiredo o autor deste capítulo, já pela abundância enfadonha de pormenores, que a ele dizem respeito, já pela primeira pessoa do singular «vou», a que se refere a nota antecedente. Pela confusão de certos períodos, erros de sintaxe e lapsos no vocabulário, não foi certamente esta narrativa redigida por Frutuoso; tem, antes, todo o aspecto de cópia de um original, que lhe tenha sido enviado para ser incluído nas «Saudades da Terra».

(309) A numeração do capítulo deve ter sido alterada, pois claramente se vê que antes foi o 42.º, o mesmo número do capítulo precedente. Será este capítulo o antigo 33.º, isto é, antes da introdução no manuscrito dos capítulos referentes a Tristão Vaz da Veiga.

(310) Na edição de 1925, este capítulo está muito mutilado; o copista do apógrafo da Biblioteca da Ajuda, em que ela se baseou, reduziu-o à expressão mais simples.

(311) Em J. Dias Leite acrescenta-se «e Diogo Lopes, de Câmara de Lobos, e Francisco de Braga, do Funchal» (fls 84 do «Descobrimento da ilha da Madeira»).

(312) Em J. D. Leite «e depois resgatado a seu salvo por bem pouco dinheiro». (313) Acerca das alterações aqui introduzidas por Frutuoso, com respeito a Rui Dias da Câmara, vid. nota do Dr. J. F.

Machado de pág. 85 do «Descobrimento» de J. D. Leite. (314) Vid. nota do Dr. J. F. Machado a fls. 86 do «Descobrimento», a propósito de Fernão Gonçalves da Câmara,

como estudante da Universidade de Coimbra. (315) A numeração foi alterada, pois claramente se vê que está emendada. Seria o antigo capítulo n.º 34. (316) Diz o Dr. J. F. Machado, em nota da pág. 90 do «Descobrimento», que na notícia do saque dos franceses,

Frutuoso, apesar do desenvolvimento que lhe dá, respeita, quanto possível a redacção de J. D. Leite. (317) Em «Não» acabou o caderno escrito por letra estranha e com o qual foi introduzido o panegírico do bispo D.

Luís de Figueiredo Lemos neste Livro II; em «somente» entra-se de novo na parte da obra escrita pela mão de Frutuoso.

(318) Oito, como vem em J. D. Leite e não três, como se lê nas duas edições do Livro II.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 183

(319) É Bertrand de Montluc. (Vid. «Elucidário Madeirense», do P.e Fernando A. da Silva e Carlos Azevedo de

Menezes, vol II, pág. 457). (320) O autor escreveu «tempo», palavra que foi riscada e substituída nas entrelinhas por «hora», pela letra miúda

nossa conhecida. (321) «Então» está nas entrelinhas na tal letra miúda, a substituir «neste tempo», que está riscado e foi escrito pelo

autor. (322) «A outra manga» foi escrito nas entrelinhas pela mesma letra, que é, afinal, de Frutuoso. (323) Em J. D. Leite «dezasseis dias», a pág. 91 do «Descobrimento». Vid. a este respeito a nota do Dr. J. F.

Machado. Porém, no capítulo seguinte Frutuoso diz que os corsários estiveram 15 dias na cidade do Funchal. (324) Sobre os intuitos dos corsários franceses que atacaram a Madeira em 1566, vid. a nota XXIX do Dr. Álvaro

Rodrigues d’Azevedo na sua edição deste Livro II, e também «Piratas e Corsários nas Ilhas Adjacentes», de Eduardo C. N. Pereira, ed. de 1965, pág. 53 e seguintes.

(325) A numeração foi alterada; vê-se claramente que o 4 substitui um antigo algarismo; o 5 é do punho de Frutuoso. Teria sido o capítulo 35.º.

(326) A narrativa deste capítulo não consta do «Descobrimento» de J. D. Leite. (327) O autor escreveu primeiramente «nove», mas depois, com outra tinta, este número foi emendado para «oito». (328) Frutuoso escreveu «prepassaram», mas depois foi riscado «pre», com tinta mais recente. (329) Parece que Frutuoso escreveu «indireito», mas pela mesma mão a que se refere a nota anterior o in foi riscado. (330) Deve ser Zenóbio Achioli. (331) Frutuoso escreveu «atirou», mas alguém riscou esta palavra e substituiu nas entrelinhas por «respondeu», com

letra parecida com a do capítulo referente ao bispo do Funchal D. Luís de Figueiredo. (332) A expressão «que ia» foi acrescentada à margem pelo mesmo punho que fez as emendas deste capítulo. (333) Frutuoso escreveu «preparada», palavra que foi riscada e substituída nas entrelinhas por «assentada», tudo da

mão já citada. (334) Deve ser ferragoulo. (335) Gaspar Caldeira foi justiçado em Lisboa a 18-2-1568; cortaram-lhe as mãos, sufocaram-no e foi esquartejado.

(Vid. tomo 5.º, vol. 1.º, pág. 326, título Caldeiras, da «Pedatura Lusitana», de Cristóvão Alão de Morais). O Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo, na sua nota n.º XXIX da 1.º edição deste Livro II, também considera este Gaspar Caldeira como um dos instigadores do saque da ilha da Madeira pelos corsários franceses em 1566, por motivo de ressentimentos que tinha do governo de Portugal. Da mesma opinião são os autores do «Elucidário Madeirense», vol. II, pág. 457.

(336) No original a seguir a «contador» foi acrescentado em entrelinhas «que foi», por letra e tinta iguais às das outras emendas deste capítulo.

(337) Estes dois nomes foram precedidos de «senhor» pelo autor, palavra que depois foi riscada com tinta diferente e posterior.

(338) Estava escrito «hão», mas depois foi emendado para «têm», por letra diferente. (339) Frutuoso escreveu -devezas-, mas o «v» foi emendado para «f», por letra diferente. (340) Deve ser «Mariz». (341) No original, a seguir a «João Delgado» está escrito, por mão do autor, «que haja glória», frase que foi depois

riscada com tinta tnuito diferente da do texto. (342) Este capítulo, no original, tem várias palavras emendadas além das que apontei, e todas sem importância,

porque se destinavam a melhorar a forma; contudo, as emendas foram feitas por letra que não se parece com a do autor.

(343) A numeração foi alterada (somente o algarismo 4, porque o 6 é da mão do autor). Este seria o antigo capítulo 36.º.

(344) No original Frutuoso escreveu a seguir a «socorro» a palavra «temporal», que depois foi riscada com a mesma tinta empregada nas emendas registadas no capítulo anterior. E Frutuoso escreveu «temporal», porque mais adiante, em outro capítulo, fala em socorro espiritual.

(345) Na sua quase totalidade, este capítulo não consta do «Descobrimento», de J. D. Leite. (346) O mesmo que arredor (advérbio). (347) A narrativa que se segue até ao fim do parágrafo consta do «Descobrimento» de J. D. Leite, pág. 92. (348) Está escrito «Gastrur», mas deve ser «Gaspar», como atrás é mencionado. (349) O mesmo que bronze. (350) A numeração foi alterada apenas no 4; o 7 está pela mão do autor e não foi rasurado, o que se vem verificando

desde o capítulo 45.º. Deve ser o antigo capítulo 37.º. (351) Este capítulo não consta do «Descobrimento» de J. D. Leite. Vid. a seu respeito o que diz o Dr. João Franco

Machado em nota de fols. L do seu Prefácio, ao «Descobrimento». (352) Frutuoso escreveu «havemos folgado», mas, depois, com a tinta e já citada letra que parecem ser do autor, foi

riscada a palavra «havemos» e alterada «folgada» para «folgamos». (353) Frutuoso escreveu «há encarregado», mas da mesma forma que já citamos o texto foi alterado. (354) Seguem-se no original as seguintes palavras, que foram riscadas por tinta diferente: «pelo modo que adiante

direi». (355) Frutuoso escreveu «havia», que foi riscado e substituído por «tinha» pela letra e tinta empregadas nas emendas

destes últimos capítulos, que parecem ser as que escreveram os capítulos dedicados a Tristão Vaz da Veiga. (356) A este passo aplica-se a observação constante da nota anterior. (357) Frutuoso escreveu «senhor», que foi riscado e substituído, nas entrelinhas, por «capitão» pela mão que fez as

emendas já observadas. (358) Grafia antiga de «defeito». (359) Aqui se aplica a mesma observação feita atrás («tinha» por «havia»). (360) «Tinha» por letra diferente substitui «havia», que Frutuoso escrevera.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 184

(361) No original segue-se a «dayão» um espaço em branco para preencher com um nome que Frutuoso ignorava. (362) Frutuoso escreveu no original o seguinte: «Faz esta era de oitenta e quatro», mas a mesma tinta, já citada neste

capítulo, alterou o faz para fez e riscou esta, a fim de dar ao leitor a ideia de uma época posterior àquela em que esta parte da crónica foi escrita. (Vid. nota n.º 1 à epígrafe do capÍtulo X deste Livro).

(363) Na cópia sobre que foi feita a edição de Álvaro Rodrigues de Azevedo, que é a de Pereira d’Agrela, terá sido omitida intencionalmente a «era de 84» e substituída a expressão por «hora»? No manuscrito original, «84» não foi riscado, sem dúvida por lapso da pessoa que fez as emendas frequentemente citadas nestes últimos capítulos e que, pela letra e tinta, parecem ser feitas pela mesma pessoa que escreveu os capítulos sobre Tristão Vaz da Veiga.

(364) No original há um espaço em branco no sítio onde devia estar escrito Pedro de Maeda, nome que Frutuoso certamente conhecia, tanto que vem mencionado na cópia sobre que se fez a segunda edição deste Livro II; de facto, tal espaço em branco tem mostras evidentes de ter sido rasurado ou atacado por qualquer ingrediente que destruísse a tinta.

(365) «que não acabou» está escrito nas entrelinhas por tinta diferente, mas por letra igual à das emendas do Livro I, isto é, muito miúda e confundindo-se com a de Frutuoso, para não dizer que é dele próprio.

(366) A numeração foi alterada (apenas o 4, porque o 8 está da mão de Frutuoso). Seria o antigo capítulo 38.º. (367) Na cópia de J. A. Pereira de Agrela vem certamente «Varca» como está nas duas edições já existentes deste

Livro II; contudo, no original, tanto pode ler-se «Varea» como «Varca». No «Descobrimento», de J. D. Leite, donde este passo foi transcrito, lê-se «Varea».

(368) No original, Frutuoso não omitiu as palavras «e ensino», como supõe o Dr. J. F. Machado a pág. 93 do «Descobrimento», de J. D. Leite.

(369) O mesmo que Quaresma. (370) «Serqueira» em J. D. Leite (pág. 93). (371) Daqui em diante são considerações da autoria de Frutuoso. (372) A numeração foi alterada (apenas o 4, porque o 9 está por mão de Frutuoso). Seria o capítulo 39.º. (373) Tudo o que se segue consta do «Descobrimento», de J. D. Leite, pág. 96 e seguintes. (374) A omissão a que aqui se refere o Dr. J. F. Machado na edição do «Descobrimento», pág. 97, não existe no

manuscrito original das «Saudades da Terra»; proveio, certamente, da cópia ou cópias que serviram para as duas edições deste Livro II.

(375) «E os de seus avós» em J. D. Leite. (376) Os dados biográficos que se seguem não constam de J. D. Leite. (377) Segue-se no original um pequeno espaço em branco que nunca foi preenchido. (378) Aqui recomeça a informação de J. D. Leite, que vai até ao fim do parágrafo. (379) Na segunda edição do Livro II, este capítulo n.º 49, que foi extraído da cópia da Biblioteca da Ajuda, está muito

mutilado. Não só há períodos incompletos, como omissão de parágrafos inteiros. (380) Numeração alterada, porque pela de Frutuoso deveria ser o n.º 40; as emendas estão bem visíveis. (381) Este capítulo não consta de J. D. Leite, que escreveu o seu «Descobrimento» em 1579, por conseguinte ainda

em vida do 1.º Conde da Calheta. (382) Sic; mas no original está escrito ao lado «James». (383) Acerca da autoria deste «Descobrimento», que Frutuoso atribui a Gonçalo Aires Ferreira, vid. «D. Francisco

Manuel de Melo e o descobrimento da Madeira», do Prof. António Gonçalves Rodrigues, que o identifica com a «Relação» de Francisco Alcoforado, de que fala aquele escritor seiscentista na sua «Epanáfora Amorosa». Vid. a este respeito, ainda, o Dr. J. Franco Machado na «História da Expansão Portuguesa no Mundo», vol. I, pág. 278, e a edição, deste mesmo historiador, do «Descobrimento da Ilha da Madeira», de Jerónimo Dias Leite, pág. XC, em que se reconhece a autenticidade da «Relação» de Alcoforado. A este assunto igualmente se referem o Prof. Damião Peres em «História dos Descobrimentos Portugueses», pág. 47, e o investigador madeirense P.e Eduardo N. Pereira que, baseando-se em Álvaro Rodrigues d’Azevedo, Duarte Leite, Damião Peres, António Álvaro Dória. etc. e desenvolvendo vasta argumentação, repudia inteiramente, não só a veracidade da narrativa de Machim e Ana d’Arfert, de que J. Dias Leite e Frutuoso se fizeram eco, mas também a atribuição a Alcoforado da autoria do referido «Descobrimento», que, no dizer de Frutuoso estava na posse dos Capitães Donatários do Funchal (Vid. «Arquivo Histórico da Madeira», vol. XIII, pág. 51 e seguintes); no mesmo sentido se pronuncia o Dr. Ernesto Gonçalves, no seu artigo «Ocupação da Madeira e Porto Santo («Arquivo Histórico da Madeira», vol. XII, pág. 242 e 243). Por seu turno, o Sr. Cónego Pita Ferreira, na sua obra «A Ilha da Madeira terra do Senhor Infante», enfileira ao lado do Prof. António Gonçalves Rodrigues e do Dr. J. Franco Machado para considerar como autêntica a «Relação» de Alcoforado e levar em conta de fantasia, por parte de Frutuoso ou de alguém que, possivelmente, o informasse (o Bacharel Gonçalo Aires Ferreira, residente nesta ilha de S. Miguel), dar como autor do referido documento Gonçalo Aires Ferreira, que J. Dias Leite chama sempre criado e não amigo de João Gonçalves Zarco.

(384) «Capelão de Sua Majestade» foi escrito nas entrelinhas pela letra muito miúda e tinta que conhecemos das emendas e acrescentamentos do Livro I e de algumas deste Livro, isto é, a mesma letra que escreveu igual frase no capítulo 30.º, e que deve ser de Frutuoso.

(385) «Acrescentando» no original está a substituir outra palavra que se não lê já; foi escrita por Frutuoso, porque a letra é a mesma, o qual apenas alterou as primeiras letras, pois que «entando» é a parte da palavra que permanece da primitiva redacção.

(386) «Da parte do Funchal» está nas entrelinhas, escrito pela mesma mão e tinta citadas nas notas precedentes. (387) É de notar a omissão deste último período e de outros que se referem, ainda que vagamente, à crise da

independência, na cópia em que se fez a 2.ª edição deste Livro II; tal omissão tem todo o aspecto de propositada.

(388) «Senhor nosso» está escrito nas entrelinhas pela mesma letra muito miudinha, a que já tenho feito referência e que atribuo ao punho de Frutuoso.

(389) A numeração foi alterada apenas no primeiro algarismo; este capítulo teria anteriormente o n.º 41.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 185

(390) Para a redacção deste capítulo, Frutuoso aproveitou em parte o que diz J. D. Leite no seu «Descobrimento», a

fls. 27 da edição publicada em 1947. (391) Vid. a nota n.º 6 de fls. 93 deste volume. (392) Os três períodos que se seguem não existem na 2.ª edição deste Livro II. (393) No original deixou Frutuoso, antes de Penteado, um espaço em branco, certamente para o preencher com o

nome que, então, ignorava. (394) Termina aqui este Livro II das Saudades da Terra, na 2.ª edição, datada de 1925, que, como se sabe, na maioria

dos seus capítulos foi feita sobre a cópia existente na Biblioteca da Ajuda. (395) Este último parágrafo não figura na 1.ª edição deste Livro.

SAUDADES DA TERRA Livro Segundo

Capítulo Quinquagésimo Primeiro 186

AQUI TERMINA O

LIVRO SEGUNDO

DAS SAUDADES DA TERRA

DE GASPAR FRUTUOSO

DADO AGORA À ESTAMPA EM EDIÇÃO INTEGRAL PELO INSTITUTO CULTURAL DE PONTA DELGADA

AOS 15 DE DEZEMBRO

DO ANO DE 1968

NESTA ILHA DE S. MIGUEL

DOS AÇORES