Reality Shows
Transcript of Reality Shows
Licenciatura em Jornalismo
Unidade curricular: Análise dos Média
Docente: Professora Doutora Ana Teresa Peixinho
Alunos: Rui Tomás, Inês Marinho e Pedro Milheirão
Coimbra, 2 de junho de 2015
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Índice
Conteúdo Índice ....................................................................................................................................2
Introdução ............................................................................................................................3
A evolução tecnológica e a “caixa mágica”...........................................................................3
História dos reality shows.....................................................................................................5
Tipologia ...............................................................................................................................6
Indústria das celebridades e sobre-exposição ......................................................................6
O que é, então, um reality show? .........................................................................................7
Privacidade – o paradigma mudou? .....................................................................................9
Uma perspetiva mais crítica ...............................................................................................10
Conclusão ...........................................................................................................................12
Referências bibliográficas ...................................................................................................13
Anexo I ...............................................................................................................................14
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Introdução
Neste trabalho propomo-nos a discutir um assunto que pode, muito bem, estar
mais camuflado na nossa realidade do que aquilo que imaginámos: a vida dos reality
shows. Numa sociedade em constante formação e formatação, devido a todas as
tecnologias cada vez mais penetrantes no nosso meio, o mundo contemporâneo sofre uma
reviravolta naquilo que se pensavam ser cânones incontornáveis. Porém, a fuga não linear
dos aparelhos eletrónicos veio revolucionar não só a comunicação como a perceção que
temos pelo mundo, isto é, as mensagens chegam-nos de uma forma diferente do
antigamente.
Espiar o outro sempre foi algo proibido e punível de crime. Mas e se a
comunicação social nos oferecesse isso a um simples clique? É assim que esta nova
tendência dos reality shows ecoa na nossa realidade. Introduzem o gosto pelo que é alheio
e excitam massas famintas pela vigilância alheia. Dentro destes programas existem
personagens principais que brilham nas luzes da ribalta e conquistam o coração de
inúmeros fãs. Mas por quanto tempo terão estas personagens a fama que as guiou a
entrarem num programa que só lhes vai retirar privacidade?
A partir destas questões, pretendemos com o nosso corpo de trabalho analisar
aquilo que estes reality-shows nos oferecem, de que forma, porquê, o que suscitam e o
impacto que têm na nossa vida. De todas as formas, analisar quem são estes novos atores
da realidade ficcionada é uma prioridade. Com base em bibliografia especializada sobre
o tema, vamos expor aquilo que para nós e será sempre um grande comércio de show off:
a mediatização.
A evolução tecnológica e a “caixa mágica”
A evolução da sociedade é imperativa: é algo que não podemos impedir. Os
tempos avançam, a tecnologia prolifera-se a um nível em que quase todos podem ter
acesso a ela, seja de que forma for e, consequentemente os meios de comunicação têm de
se adaptar aos “novos tempos”. Vivemos numa sociedade que está sobre doseada de
aparelhos digitais. Assistimos, no nosso quotidiano, à introdução dos mass media como
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parte integrante e ativa na vida dos cidadãos e das famílias. A televisão, em particular, é
aquela a que a sociedade está mais adaptada ou que, de alguma forma, se acomodou
melhor devido ao seu facilitismo. A “caixa mágica” é considerada simples uma vez que,
apenas através de um telecomando, instrumento utilizado para mudar de canal consoante
a localização da pessoa, sem esta ter de se dirigir ao aparelho em questão, é possível
aceder a um vasto universo de programações criadas pelos produtores de televisão. É
deste modo surge o conceito de zapping, ato de mudar de canal durante as pausas
publicitárias inseridas numa programação, que posteriormente foi associado a qualquer
mudança de canal repetitiva. Ou seja, qualquer pessoa pode ter acesso a um tipo de canal
que mais lhe agrade, basta mudar com o comando a estação televisiva.
A televisão é, ainda, desde 1996, e depois da rádio, dominante no conjunto de
media existentes. Primeiramente, e como já referido, é fácil de obter, embora antigamente
fosse apenas acessível a camadas de classe social elevada; o impacto das imagens por ela
permitidas impõe a sua escolha, obrigando todos os outros meios de comunicação a se
seguirem pelo seu alinhamento de informação. Este aparelho é atraente visto que provoca
o choque emocional e, muitos a seguem pois limita todos os órgãos de comunicação,
condenando as notícias “órfãs de imagem”. (Ramonet, 1999); A informação vem
racionada naquilo que concerne à clara interpretação da mensagem pois esta vem ilustrada
com imagens, esquemas, auxiliares que ajudam à rápida compreensão do recetor e não o
obrigam a pensar muito. Antigamente a televisão era desprezada pelas categorias sociais
mais elevadas, embora fossem estas que tivessem maior poder de compra (Ponte, 1999
apud Cazeneuve, 1976). Isto deve-se ao seu grande grau de instrução e, uma vez que a
televisão é um meio preguiçoso de informação, as pessoas que ambicionavam adquirir
conhecimento por uma via considerada mais culta e inteligente, davam primazia a outros
meios, de onde pudessem retirar um produto verdadeiramente rico. Apesar do sucesso da
televisão no mundo em que vivemos, ainda existe algum “desprezo elitista aos conteúdos
de cultura de massas de que a televisão seria veículo de excelência”. (Ponte, 1998)
As audiências são, nos dias de hoje, uma competição por parte dos canais desta
televisão de que se fala. A programação está dividida em vários horários prévia e
estrategicamente pensados, sendo o horário nobre, entre as 20h e as 00h, o tempo de
antena em que a população mais adere aos conteúdos televisivos. Através desta ideia de
lazer, ao fim de um dia de trabalho ou de escola, a televisão é facilmente um recurso, à
distância de um clique, para a informação e para o entretenimento ligeiro e oferecido.
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Nesta lógica de competição pelas audiências num horário tão concorrido, as
programadoras jogam pelo seguro e criam estratégias de consumo, isto é, produtos
desejados pelo público. Porém, como sabemos se um produto é ou não desejado pelo
público? Novamente pelas audiências e pela lógica de experiência/resultado. Se um
programa for lançado, sempre com um plano muito bem pensado a priori por uma equipa
competente em diversas áreas do saber, e tiver sucesso, este volta a ser repetido, quer no
mesmo formato ou em formatos diferentes.
História dos reality shows
A título de contextualização, convém rever a história deste género de programas:
em 1992, os telespetadores da MTV assistiram à transmissão do primeiro reality show.
Tratava-se de um programa que girava em torno da vida íntima de um grupo de pessoas
comuns. As produções televisivas desta natureza servem, pelas palavras de Nélson
Rodrigues, para satisfazerem a nossa “fome de verdade” – da mesma maneira que as
telenovelas alimentam a nossa “fome de mentiras”, alega o mesmo. O que suscita o
interesse por este tipo de programas é a “mera curiosidade”, o instinto ancestral de
bisbilhotar a vida alheia. A popularidade destes programas alcançou uma dimensão tão
expressiva que até o público francês – tradicionalmente conservador – viu a sua própria
edição adaptada do Big Brother tornar-se um grande sucesso televisivo, no início deste
século: apresentando números, em termos de audiências, sem precedentes na história da
televisão francesa.
No mesmo período, os sociólogos davam conta da evolução de um novo
fenómeno: o star-system. Deveu-se, em grande medida, à indústria do cinema (onde os
protagonistas dos grandes ecrãs começaram a ser rotulados de “estrelas”), chegando mais
tarde às restantes indústrias culturais como a música ou a televisão, por exemplo.
“Atualmente, já nada escapa ao vedetariado”, afirma Ana Santiago (2013).
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Tipologia
Eduardo Cintra Torres distingue três tipos de celebridades: em primeiro lugar,
encontram-se “as estrelas, que ganham este estatuto a partir do trabalho que desenvolvem
como atores, artistas, entre outros; em segundo lugar, por celebridades ou famosos: cuja
presença da individualidade (corpo, emoções, vida privada, roupas, etc.) sobrepõe-se ou
segue a par com a sua vida profissional, por vezes a sua atividade profissional é dedicada
à exploração da sua celebridade; e em terceiro lugar por conhecidos, ou seja, por pessoas
comuns que se tornam hábito no ecrã ao participarem no daytime televisivo e nos reality-
shows”. Por outro lado, Daniel Boorstin afirma que “a celebridade é uma pessoa
conhecida por ser conhecida” (Santiago, 2013). Ao contrário do herói, que se constrói por
meio das suas conquistas, a celebridade é criada pelos próprios media. Como explica
Felipe Pena:
“A mídia produz celebridades para poder realimentar-se delas a cada instante
em um movimento cíclico e ininterrupto. Até os telejornais são pautados pelo
biográfico e acabam competindo com os filmes, novelas e outras formas de
entretenimento. Aliás, as celebridades tornaram-se o polo de identificação do
consumidor ator-espetador do espetáculo contemporâneo” (2002).
Atualmente as celebridades aparecem, “como um objeto construído, a partir de
“princípios racionais e estratégicos que contrariam a ideia de um talento natural que é
reconhecido por todos”, para atuar num determinado campo de ação, por um lado, e por
outro, como “um conteúdo humano, apelativo às audiências, a baixo custo” –
apresentando, ao mesmo tempo, um grande “potencial de promoção de produtos,
mediáticos e culturais” (Santiago, 2013).
Indústria das celebridades e sobre-exposição
A celebridade torna-se, desta feita, “uma indústria que vende imagens, narrativas
e emoções na intimidade e como identidade, submetendo-se como qualquer outra
indústria, às leis da oferta e da procura”. Nas palavras de Cintra Torres, “o culto das
celebridades tem essencialmente dois polos: a televisão e a imprensa cor-de-rosa”
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(Santiago, 2013). A televisão introduz as figuras conhecidas – apresentando-as aos
telespetadores -, enquanto as revistas exploram a vida íntima das celebridades.
Considerando as explicações supramencionadas, resta esclarecer uma
outra questão: o que leva as pessoas a sacrificarem a sua própria privacidade? A verdade
é que quem participa em reality-shows também lucra com a sua exposição. Basta observar
o número de capas e peças jornalísticas protagonizadas pelos participantes desse género
de programas. Alguns participantes aproveitam a visibilidade alcançada para posar nos
ensaios, mas outros já antecipam o mediatismo, cuidando da imagem e assinando os
contratos para posar antes mesmo do início do programa. Os media são um dos principais
palcos que dão lugar à espectacularização (Garcia, et al., 2006).
A popularidade dos reality-shows é facilmente explicável dada a sua “facilidade
de digerir; apelam ao voyeurismo do público e têm custos de produção acessíveis. Os
artistas são humanizados e os espetadores ganham poder de Deus”. É nesta inversão de
papéis que assenta toda a lógica e o sucesso dos reality-shows. “Essa tensão entre o desejo
de se expor e a necessidade de se proteger pode ser um dos atrativos desse tipo de
programa. É algo com que todas as pessoas se podem identificar”, como observa Deomara
Garcia (2006).
Esta lógica de sobre-exposição leva Felipe Pena a afirmar que a
“superexposição substitui a virtude como valor supremo”. Já não se tratam de heróis, mas
sim de pseudo celebridades que vão balançando entre uma ficção do real e uma realidade
encenada. “As imagens são pré-concebidas; as estórias já foram contadas”, acrescenta
Pena. A verdade é que, apesar da aura de realidade, os concorrentes da maioria dos reality
shows têm que desempenhar papéis previamente definidos pela produção. “Eles não são
eles próprios, apenas interpretam a si mesmos, o que é bem diferente” (Pena, 2002). Os
participantes representam versões caricaturadas de si mesmos, exagerando um
determinado traço de personalidade ou outro.
O que é, então, um reality show?
Segundo o autor do artigo “Reality Show – uma análise de género”, Samuel
Mateus, este formato define-se por ser um “vasto e plural género televisivo autónomo,
não obstante de integrar e adaptar elementos de outros géneros televisivos como o
documentário, o concurso, o drama, a ficção ou a novela.” Constata, de igual forma, que
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é um género que “procede a uma muito singular mediatização da interação social
caracterizando-se por incidir a sua atenção na banalidade do quotidiano através do relato,
na primeira pessoa, das tensões, conflitos e angústias que o indivíduo experiencia
diariamente, na sua vida profissional, pessoal ou familiar.” Debora Cristine Rocha
defende no seu artigo para a revista “É-Compós” (2009: v.12, n.3), que as influências
deste estilo televisivo eclético surgem da Reality-Tv, cuja tendência é a de eliminar as
fronteiras entre o mundo real e o mundo mediático. Trazer o público para “dentro” de
uma máquina, chamada de programação, e transformar o mundo real na personagem
principal são fios condutores da Reality-Tv herdados pelos Reality-shows.
Os heróis deste tipo de espetáculo mediatizado costumam ser indivíduos da
sociedade contemporânea cujo reconhecimento nacional ou mundial não é comum,
tratando-se apenas de indivíduos comuns. Como Debora Rocha afirma, fica mais
sustentável reproduzir programas com pessoas “anónimas” do que com celebridades.
Desta forma, este tipo de programa obterá também outro tipo de credibilidade uma vez
que os participantes são sujeitos vindos do meio desconhecido, “repescados” de
localidades que todos reconhecem e às quais se assemelham.
Os Reality-shows têm atualmente mais candidaturas do que o próprio ensino
superior, refere Inês Teotónio Pereira numa crónica intitulada de “Os segredos de um
vídeo”, publicado no site do jornal i, no dia 16 de maio. A escritora reflete, no seu texto,
sobre os standards em que a sociedade vive atualmente, remetendo-nos para a realidade
dos reality-shows: “sinto, sinceramente, que é altura de pensarmos os modelos que os pais
elegem (...) Afinal, foram cerca de cem mil os candidatos ao Secret Story 2014 – mais do
dobro dos que pretenderam entrar na universidade.” O Secret Story (Casa dos Segredos)
é o formato televisivo adotado pelo canal TVI, semelhante ao grande pai dos reality-
shows: o Big Brother. Numa casa, controlada 24h sob 24h através de câmaras e da “voz”
– uma voz que entra em ligação com os concorrentes da casa e os obriga, ou solicita, a
realizar tarefas com o intuito de, se forem bem-sucedidos, receberem dinheiro. Apesar de
os concorrentes serem também eles alheios à fama, sendo cidadãos comuns, eles são
escolhidos “a dedo” pela produção do programa de forma a criar tramas dentro da casa.
Muitos deles já se conhecem, já foram um casal ou são namorados, e todos partilham um
segredo que não pode ser desvendado. Caso o seja, a pessoa que o revelou recebe uma
certa quantia de dinheiro. Este conceito de Reality show remete-nos para um outro
conceito que Cristine Rocha aborda no seu texto: o voyeurismo.
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O indivíduo sente prazer em observar a vida alheia e é esse fascínio do público
pelo outro que canaliza audiências maciças. Aquilo que é proibido cativa quem assiste a
estes programas. Observar a vida de uma casa de vários sujeitos mediatizados, cuja
televisão enquanto canal, oferece cada vez melhor e com mais possibilidade de vigia, dá
a sensação de prazer. A “caixa mágica” surge como uma “janela indiscreta” em que a
vida quotidiana é traduzida através do espetáculo e onde pessoas anónimas vão expor a
sua vida. Espiar torna-se sedutor e atraente. Porém, espiar só é bom quando algo rompe a
rotina, quando há surpresas e acontecimentos inesperados. Ninguém procura aquilo que
é enfadonho. Desta forma, introduzimos a tabloid television que funciona precisamente
como o tabloidismo da imprensa: procura ressaltar a vida privada enfatizando detalhes
escabrosos e chocantes que tenham acontecido nas quatro paredes.
Privacidade – o paradigma mudou?
A noção de privacidade mudou desde o século XIX. Se antes era o resguardo da
vida doméstica, agora todos querem o reconhecimento social através da visibilidade.
Quanto maior exposição da vida privada, maior a inserção social. O exibicionismo
mediático é algo que explica esta alteração de comportamento nos quadros de uma
sociedade evolutiva e com especial gosto pela devassa da vida privada. A necessidade de
reconhecimento que a população tem, mostra como as prioridades mudaram de um século
para o outro. Hoje em dia, milhões de desconhecidos ambicionam, desde muito cedo,
aparecer na televisão e serem identificados quando vão na rua. Sendo estes reality shows
vendedores da privacidade de cada participante, devemos questionar-nos: onde começa e
termina a liberdade dos concorrentes em ocultar ou expor a sua vida privada? Tendo em
conta que vivemos numa sociedade livre, onde estamos inseridos num aparelho
democrático, a liberdade individual e a autonomia de cada cidadão prevalece. Contudo,
as estações televisivas e as audiências carecem ainda de cumprir certas responsabilidades
para que a liberdade de expressão e os seus limites não sejam transgredidos. Os autores
Canotilho e Machado, defendem no seu texto “Reality-shows e liberdade de
programação” que estes sujeitos renunciam momentaneamente à sua privacidade
escolhendo expor o seu núcleo de ações rotineiras a milhares de espetadores.
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Uma perspetiva mais crítica
Os reality shows têm invadido a televisão (Helal & Gonçalves, 2002). Como nos
diz Felipe Pena, da Universidade Estácio de Sá, “no palco contemporâneo, o espetáculo
em cartaz é a vida” (Pena, 2002), o que se pode traduzir na constante eclosão deste género
de formato televisivo.
Muitos são os críticos que merecem destaque na praça pública a reprovar este
género “degradante”. E urge entender o porquê desta classificação depreciativa. Talvez a
justificação mais partilhada seja a ideia da invasão da privacidade dos participantes, que
se torna num espetáculo atrativo para o seu público. O que leva milhões de pessoas a
ficarem sentadas diante do seu televisor a vigiar um grupo de pessoas completamente
anónimas? Será este um problema generalizado na nossa sociedade? A falta de interesse
por assuntos sérios como o são a política, economia, etc., terá de se traduzir
automaticamente na existência deste género de entretenimento? E porque se
desinteressam as pessoas pelos assuntos sérios e dedicam tempo a invadir a privacidade
de outrem?
Todas estas questões poderão ser alvo de resposta fácil. Os dois primeiros autores
referidos estabelecem uma relação entre a magnum opus de George Orwell, “1984”, e o
mais conhecido reality show em todo o mundo, o Big Brother. Este romance histórico do
britânico Orwell mostra como um sistema político é capaz de observar e reprimir alguém
que seja contra o órgão estatal e respetivo modo de governo. O Estado controlava o
pensamento dos cidadãos através da, entre outras, manipulação da língua. Um dos aspetos
mais marcantes deste livro é a criação de uma nova língua (ficcional, claro está), a
novilíngua. Com esta língua não surgiriam novas palavras, mas haveria a concreção e
desaparecimento de alguns termos, de modo a que se pudesse restringir o pensamento;
assim, sempre que um indivíduo não se pudesse referir a algo, esse “algo” passaria a não
existir. A linguagem funcionaria, neste aspeto, como um fator de controlo do pensamento
do cidadão comum, uma vez que é também através dela que existimos e que nos tornamos
cidadãos plenos.
Uma das palavras desta língua ficcional que nos interessa para esta dissertação é
“telescreen”; este termo inglês compreende toda uma tecnologia de telecomunicação
bidirecional, isto é, aqueles aparelhos funcionariam, simultaneamente, como televisão e
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câmara de vigilância. Ao mesmo tempo que eram emitidos programas oficiais do
Governo, este observaria o que acontecia em frente do aparelho. Quem observava as
pessoas era o “Grande Irmão”, precisamente o “Big Brother”, termos que hoje tão bem
conhecemos, de tão corriqueiros se tornaram. A frase “O Grande Irmão está a observar-
te” ficou popular e, de certo modo, compreende todas as pessoas que assistem a este tipo
de programas.
O que leva, então, a que os participantes destes reality shows queiram ver a sua
privacidade a ser invadida? A resposta é simples: a fama. A busca pela fama e o dinheiro
fácil é o que motiva todas as pessoas que procuram entrar nestes programas. No entanto,
esta é, indubitavelmente, um tipo de fama diferente. Esta apenas é alcançável através da
sorte e não do talento (Helal & Gonçalves, 2002), o que leva a generalidade do público a
pensar que também podem passar de completos anónimos a figuras públicas.
No entanto, este período de fama é fugaz e, muitas vezes, acarreta imensos
problemas aos participantes com maior notoriedade. Vejamos o exemplo de uma
participante da última edição da “Casa dos Segredos”, que não consegue arranjar trabalho,
precisamente por ter participado nesse reality show (Nova Gente, 2014).
A televisão, como sabemos, promove “mudanças sociais significativas” (Bentes,
2002); esta é, ainda, o principal meio pelo qual os portugueses consomem informação
(Jornal de Negócios, 2015). No entanto, apesar de o formato televisivo em questão não
ser do género informativo, mas sim de entretenimento, a tendência seguida é a mesma. O
público revê-se naquilo que passa na televisão, pois esta aposta em jogos de convivência
como simuladores da vida social, tornando o espectador em “consumidor-produtor”
(Bentes, 2002). No entanto, não pensemos que os participantes dos reality shows
reproduzem aquilo que são na vida real.
Em suma, o principal objetivo dos participantes passa por construir uma
personalidade que encha as medidas do público votante; basta isso para que singrem, que
criem uma nova conceção de privacidade, na medida em que apenas mostram o que mais
lhes convém. Apesar de toda esta conjuntura, estes programas continuam a ter elevadas
audiências, mais ainda do que, imagine-se, os telejornais.
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Conclusão
Distinguir a veracidade da ficção faz do espetador um detetive que tenta esmiuçar
o desenrolar da história. Identificam-se também os “atores” como os vilões e ou super
heróis. Esta é a forma que a televisão, aliada ao programa, tem de facilitar a identificação
das personagens ao público. Estas personagens são, de acordo com Mário Mesquita, além
de personagens mediáticas, personagens espessas. No seu artigo, “A personagem
jornalística – da narratologia à deontologia”, ele define três tipos de personagem e
acrescenta ainda a estas a personagem jornalística – uma personagem construída através
da eficácia performativa, isto é, redutora, simplificada e de fácil leitura. Estas pessoas
aparecidas do nada são personagens espessas devido a todo o seu universo envolvente:
detêm de uma trama forte, caraterística de um programa mediatizado, e podem até
mesmo, ser convertidas ao sofrimento no sentido em que obrigam as pessoas a terem
compaixão através da trama ficcional que se vive no programa. Podem ser também
consideradas personagens jornalísticas visto que os meios de comunicação, sobretudo a
imprensa cor-de-rosa, lhes dão destaque. Enquanto era emitida a Casa dos Segredos, era
raro não sair uma notícia numa revista, ou num jornal, como o Correio da Manhã,
caracterizado pelo seu sensacionalismo, acerca de alguém. O paralelismo entre
personagem real e ficcionada é difícil de estabelecer visto que são pessoas reais a viver
numa ficção. Existe então um confronto entre personagem jornalística, que se enquadra
no tipo de personagem plana, uma personagem mais linear e superficial; e entre
personagem de ficção, com uma historia delineada.
Numa mistura destes dois conceitos, aquilo que se pode afirmar é que estas
personagens são, de igual modo, “personagens cometa”. Vivem enquanto o reality-show
está a ser transmitido, continuam na existência do espaço mediático algum tempo depois
deste já ter terminado e depois acabam por cair no esquecimento. Os participantes entram
como pessoas anónimas. Quando saem do jogo são já figuras públicas. O prémio da fama
é vencido por todos, não só pelo participante considerado vencedor final. Apesar de um
participante não ganhar o título principal não significa que o seu desempenho não o leve
à fama. Contudo, acabam todos por ser esquecidos. Falamos agora de um “herói” fugaz
que apenas obteve os seus “15 minutos de fama1”, uma celebridade instantânea, fruto
1 Expressão utilizada por Andy Warhol, na década de 1960, ao comentar as suas obras frutos de acidentes automobilísticos.
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também de uma sociedade que vive para o ontem. A fama bate à porta, entra sem pedir
licença, ou se a pede é atrevida, e depois é difícil de a manter, indo embora da mesma
maneira que veio, repentinamente. Não deixa rastro. Muitos conseguem arrecadar um
núcleo considerável de fãs, mas no espaço mediático o “tempo de antena” passou e, se
voltar, será uma raridade.
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