PUNIDOS POR DEUS E PELOS HOMENS: o degredo no Regimento do Santo Ofício de 1640 e nas Ordenações...

63
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA RENAN DE OLIVEIRA BRANTES PUNIDOS POR DEUS E PELOS HOMENS: O DEGREDO NO REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO DE 1640 E NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS DE 1603 VITÓRIA 2013

Transcript of PUNIDOS POR DEUS E PELOS HOMENS: o degredo no Regimento do Santo Ofício de 1640 e nas Ordenações...

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

RENAN DE OLIVEIRA BRANTES

PUNIDOS POR DEUS E PELOS HOMENS: O DEGREDO NO REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO DE 1640 E NAS ORDENAÇÕES

FILIPINAS DE 1603

VITÓRIA

2013

RENAN DE OLIVEIRA BRANTES

PUNIDOS POR DEUS E PELOS HOMENS: O DEGREDO NO REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO DE 1640 E NAS ORDENAÇÕES

FILIPINAS DE 1603

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em História. Orientadora: Profª. Drª Rossana Gomes Britto.

VITÓRIA

2013

AGRADECIMENTOS

Ao meu prof. José Cândido, a quem devo muito do que sou hoje pelo pequeno, mas

muito importante, empurrão inicial. Como um bom “mestre”, ajudou esse simples

discípulo a soltar-se dos grilhões da Caverna, mostrando-me em um breve período e

com poucas palavras as infinitas possibilidades da vida e, logo, do conhecimento

humano.

Ao prof. Rogério Rosa, cujo olhar de “agora vocês vão ver...” jamais vou esquecer.

Agradeço todos os dias por ter me dado o tema de seminário “que sobrou”,

“degredados e ciganos”, que surpreendentemente, tanto para mim, quanto para ele,

transformou toda a minha vida acadêmica.

À profa. Rossana Britto, que me tirou da solidão dos estudos coloniais em que estive

a maior parte de meu tempo na Universidade, sem ter um guia para meus estudos

dos colonos.

Aos profs. Geraldo Pieroni e Maristela Toma, cujos bons trabalhos sobre o degredo e

a ótima divulgação deles em meios eletrônicos me permitiu o contato com o tema.

Aos meus colegas Ari, Edis, Lellison, Gustavo e Hugo “Bacalhau”, por todo o auxílio

dentro e fora da Universidade, cujas amizades carregarei para sempre.

Aos Dançarinos do Escalador Azul-Gelado, amigos ferozes (?) em toda e qualquer

situação, há mais de dez anos. Em especial a “Igão”, que, a seu modo, e com

incessantes ligações, me incentivou a terminar meus estudos.

À Internet e aos Espíritos da Tecnologia, pois sem eles este estudo seria impossível.

A minha animada família e ao meu “Cachorro-Laila”, que sempre esteve lá, aos pés

de minha cama, a me observar com olhares filosóficos, sejam os dias bons ou ruins.

À Tália, musa da Comédia, a única que conseguirá me entender por completo.

RESUMO

Trataremos aqui de um tema ainda pouco estudado na história da colonização

portuguesa: a pena do degredo nas leis do século XVII. Comparando dois importantes

códigos legais desse período, as Ordenações Filipinas de 1603 e o Regimento do

Santo Ofício de 1640, observaremos alguns pontos importantes desse tipo específico

de exílio moderno: quem eram as pessoas degredadas e quais seus grupos sociais;

em quais crimes era aplicado; quais os locais comuns de degredo; a estratificação

social, os títulos de nobreza e a aplicação diferenciada das penas; seu uso para a

colonização; comutação de penas e perdão real. Também serão destacados as

confluências e conflitos entre as Justiças secular e inquisitorial. Tudo isso será feito

pelo viés teórico da história cultural.

Palavras-chave: Degredo – Ordenações Filipinas – Regimento do Santo Ofício –

colonização.

ABSTRACT

This study will discuss about a theme poorly researched in history of Portuguese

colonization: the punishment of degredo in seventeenth century. Comparing two codes

of this period, the Ordenações Filipinas from 1603 and the Regimento of Santo Ofício

from 1640, we note some important points in this specific kind of modern exile: who

were the people banned and your social groups; what were the crimes that could result

in this sentence; what were the usual places of degredo; the social hierarchy, the

nobility’s titles and the different applications of penalty; the usefulness for colonization;

the change of penalties and the royal pardon. We will also show the junctions and

conflicts between the secular and inquisitorial Justices. All these will be done through

the ideas of the cultural history.

Keywords: Degredo – Ordenações Filipinas – Regimento of Santo Ofício –

colonization.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO........................................................................................................6

2. INQUISIÇÃO, ESTADO E DEGREDO.................................................................12

3. COMPARAÇÃO ENTRE OS CÓDIGOS PUNITIVOS..........................................27

4. CONCLUSÃO.......................................................................................................52

5. REFERÊNCIAS....................................................................................................57

5.1. FONTES PRIMÁRIAS......................................................................................57

5.2. BIBLIOGRAFIA................................................................................................57

ANEXO A – GLOSSÁRIO..........................................................................................60

ANEXO B – CRONOLOGIA......................................................................................62

6

1. INTRODUÇÃO

É muito comum atualmente, em discussões sobre o caráter ruim do brasileiro e sua

origem, ouvirmos o seguinte argumento: “O Brasil é desse jeito por ter sido colonizado

por bandidos”. Tal opinião tem seu sustento: muitos foram os protagonistas da história

que testemunharam a favor dela. Por exemplo, o primeiro donatário da Capitania de

Pernambuco, Duarte Coelho Pereira, disse em uma carta ao rei de Portugal de 1546

as seguintes palavras sobre os prisioneiros enviados: “[...] sertifico a V. A. e lho juro

pella hora da morte que nenhum fruyto nem bem fazem na terra mas muito mal e dano

[...] crea V. A. que são piores qua na terra que peste pello qual peço a V. Z. Que pollo

amor de Deus tal peçonha ca não mande [...]1”. Mem de Sá, terceiro governador-geral

do Brasil, também alerta ao rei sobre tais criminosos na Colônia em 1560: “Deve V. A.

lembrar que povoa esta terra de degradados e malfeitores que os mais dêles merecem

a morte e não tem outro oficio se não urdir males”2. Esses e muitos outros ao longo

dos séculos se queixaram dos muitos exilados que eram mandados para as novas

terras portuguesas.

Muitos continuaram propagando essa posição. Hoje, porém, vários estudiosos que

voltam ao tema perguntam: mas quem eram esses horríveis criminosos? Que crimes

teriam cometido para serem tão odiados? Foram essas mesmas dúvidas que

motivaram este trabalho. A busca pelas respostas nos leva a um tema ainda obscuro

na historiografia: a pena do exílio no império colonial português, ou seja, o degredo.

Os estudos sobre o degredo português são escassos e pouco conhecidos. Poucos

são os historiadores que se dedicaram a escrever sobre esse importante castigo, tão

citado pelas autoridades coloniais e tão recorrente nas leis do Império português.

Emília Viotti da Costa deu grande contribuição para colocar os degredos em evidência.

Em um de seus artigos3, faz um importante levantamento de questões e um bom

panorama do degredo pelas autoridades seculares, destacando vários títulos das

Ordenações Filipinas, a mais duradoura das compilações de leis entre as Ordenações

1 DIAS (org.), apud COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredos. Revista de História, São Paulo, ano VII, vol. XIII, julho-setembro, p. 3-23, 1956. p. 21. 2 NOBREGA, apud COSTA, Emília Viotti da, op. cit., p. 22. 3 COSTA, Emília Viotti da, op. cit., p. 3-23.

7

do Reino, e algumas cartas das autoridades da Colônia falando sobre os exilados. E

uma das questões centrais desse artigo é se os punidos com o desterro português

podem realmente ser considerados criminosos, no sentido atual da palavra. A partir

daí, outros autores desenvolveram pesquisas mais elaboradas sobre as punições nos

códigos do Antigo Regime em Portugal.

A autora Maristela Toma demonstra em um de seus artigos o destaque que o governo

absolutista português deu ao degredo: o código de leis que vigorou durante todo o

século XVII e XVIII, auge do período colonial, as Ordenações Filipinas, apresenta

duzentas e sessenta e cinco condenações ao degredo4. Constatando isso, podemos

dizer que a “[...] peça central do sistema penal português era a pena de degredo [...]”5.

Nesse estudo, a autora insere o degredo num contexto de mudança do meio jurídico

europeu e centralização do poder pela Coroa portuguesa. Faz um breve histórico das

Ordenações, para depois analisar as ocorrências do degredo nelas. Porém, não se

prende a identificar as aparições nas leis, colocando também discussões de termos e

interpretações sobre sua aplicação prática.

Porém, ambas as autoras tratam quase que exclusivamente da legislação, não

observando os degredados efetivamente. Diferente delas, outros autores apresentam

estudos mais concretos, não recusando a legislação, mas se concentrando no estudo

de casos de pessoas condenadas a residir no Brasil. Uma delas é a pesquisadora

Janaína Amado, que em seu artigo referente ao degredo para a Amazônia colonial se

dedica aos degredados pela Justiça secular6. Aborda então a situação destes

indivíduos na região amazônica, fazendo inclusive uma pequena análise quantitativa

dos registros dos degredados.

Tratando da feitiçaria e de outras práticas culturais que contribuíram para a formação

da identidade brasileira, Laura de Mello e Souza dedica parte de sua obra Inferno

Atlântico7, ao estudo de algumas mulheres degredadas pela Inquisição. Neste texto,

4 TOMA, Maristela. História, legislação e degredo em Portugal. Justiça & história, Porto Alegre, v. 10, n. 5, p. 51-92, 2005. p. 26 (paginação de acordo com a versão da internet). 5 Ibid., p. 25. 6 AMADO, Janaína. Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia colonial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. VI, p. 813-832, 2000. 7 SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

8

a autora conclui que o degredo foi fundamental, ao trazer para a Colônia diversas

práticas religiosas que deram a tônica da formação cultural do Brasil.

Mas, ao tratar exclusivamente do degredo de mulheres, Laura de Mello não permite

uma interpretação mais completa da participação do Santo Ofício no degredo colonial.

Nesse sentido, importante são as pesquisas feitas por Geraldo Pieroni8. Utilizando

também da legislação, de registros de degredados pela Justiça secular e mesmo de

cartas e outros documentos, as publicações de Pieroni fornecem grandes

contribuições para o entendimento do degredo inquisitorial para o Brasil. Tendo como

meio principal os processos inquisitoriais, apresenta diversas interpretações

relevantes relacionadas aos condenados e à própria condenação ao degredo. E

fornece ainda importantes explicações sobre o pensamento eclesiástico do período,

mostrando como ele influenciou, por exemplo, na visão paradoxal do Brasil como local

de purificação e, ao mesmo tempo, de perdição.

Ao confrontarmos essas e outras produções sobre o tema podemos constatar o

seguinte: a nova visão sobre os criminosos banidos mostra que a noção de crime do

período colonial é diferente da que temos hoje; a maior parte dos estudos apoia-se

nas leis seculares. Diante disso, o presente trabalho pretende, além de divulgar a

produção já feita sobre o degredo, inserir no debate um documento ainda pouco

utilizado: o Regimento da Inquisição de 1640. Apesar de muito conhecido e citado nas

pesquisas sobre o Santo Ofício, com as questões levantadas pelo recente tema do

degredo um novo olhar pode ser lançado também sobre as leis inquisitoriais.

Assim, para este trabalho escolhemos para análise as duas maiores fontes legais que

regeram a vida dos portugueses, sejam metropolitanos ou colonos, do século XVII,

mais especificamente os seus livros que tratam dos crimes e suas respectivas penas.

A primeira, a que trata das punições pela Justiça secular, é o Livro V das Ordenações

Filipinas, por ser ela a última e de maior duração entre as Ordenações, sendo também

o auge das condenações ao degredo para o Brasil. A segunda, o Livro III do

Regimento do Santo Ofício de 1640, trata dos crimes e penas da Justiça inquisitorial,

8 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.

9

sendo o maior, mais detalhado e mais duradouro dos Regimentos criados pelos

inquisidores em Portugal.

Para realizar a análise de tais fontes, usaremos do método comparativo conforme

delineado por Marc Bloch. Para esse autor, a comparação é a base para se executar

um trabalho de crítica textual de valor. Para não cair o historiador na armadilha da

unilateralidade das fontes, esse precisa compará-las entre si, quando de uma mesma

época e região, para que evite (ou pelo menos tente) adotar uma única visão como a

verdade9. Age, assim, como o detetive que investiga as diversas testemunhas de um

fato, para só depois dizer com maior certeza o que “realmente” aconteceu. Precisamos

para isso identificar em quais pontos os discursos se interligam e onde eles se

afastam, podendo em nosso caso, a título de exemplo, a semelhança entre os códigos

filipino e inquisitorial representar não uma equiparação pacífica de forças, mas, ao

invés disso, uma disputa e uma confusão do poder de punir, com ambas as jurisdições

tentando abarcar os mesmos crimes para sua área.

Nessa comparação das fontes, adotaremos a linha da história cultural, seguindo um

dos modelos de análise histórica da cultura destacados por Ronaldo Vainfas10. Em

parte, nos guiaremos pelo autor Carlo Ginzburg utilizando de suas considerações

sobre essa vertente teórica. Assim, serão pontos importantes em nosso estudo a

valorização dos grupos populares e marginalizados, entendidos como agentes ativos

nos acontecimentos históricos, e a estratificação social, ou seja, a desigualdade entre

as classes sociais. Pretendemos, com isso, fazer uma “história vista de baixo”,

característica esta que permeia, como mostra Peter Burke11, vários dos novos

trabalhos historiográficos, sobretudo os da vertente da história cultural, opondo-se à

antiga abordagem da “história vista de cima”, preocupada apenas em mostrar a

atuação das elites nos acontecimentos, e a uma concepção aristocrática de cultura12,

ambas marcantes nas produções historiográficas de tempos passados.

9 BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 109. 10 CARDOSO, Ciro Flamarion (org); VAINFAS, Ronaldo (org). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 150-153. 11 BURKE, Peter (org.) A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Unesp, 1992. p. 12-13. 12 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 17.

10

Para melhor compreender as relações entres os grupos sociais portugueses,

principalmente a do grupo específico dos degredados, importantes serão as ideias

sobre o relativismo cultural e a interdisciplinaridade. Nas novas análises sobre a

cultura das sociedades na história, esta disciplina vem cada vez mais recorrendo a

outras dentro das ciências humanas para melhor compreender seus objetos de

estudo13, sendo a busca deste auxílio muito mais frequente entre os historiadores do

além-mar, devido à interação constante entre vários povos e regiões do globo no

período das grandes navegações14. Em vista disso, para enriquecer nosso estudo

recorremos a pesquisas nas áreas de antropologia, sociologia e linguística.

Outro importante conceito no modelo de história de Giznburg é o de circularidade

cultural. Segundo esse conceito, existe dentro da sociedade uma divisão cultural e

social entre as elites e os populares, possuindo cada grupo uma cultura relativamente

autônoma, mas que se influenciam mutuamente15. Nessa interação entre as culturas

muitos pensamentos se convergem, criando “sistemas mentais” cujas ideias são em

muitos pontos compartilhadas por grupos sociais diferentes.

Aqui em particular, buscaremos essa confluência de posições nos limites entre o

tolerável e o intolerável do “sistema mental” português. Como explica Sônia Siqueira,

cada período da história é marcado por um “sistema mental”, um conjunto de ideias e

pensamentos sobre a vida. Cada visão de mundo dessas apresenta limites às

opiniões e aos pensamentos das pessoas de seu tempo, podendo reprimi-los ou não,

de acordo com sua disparidade em relação às crenças aceitas em sua época16.

No entanto, essa “prisão da crença” não é tão firme quanto parece. Nas palavras do

próprio Ginzburg temos o seguinte esclarecimento: “[...] Assim como a língua, a cultura

oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e

13 Cf. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: _____. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 14 BURKE, Peter (org.) A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Unesp, 1992. p. 98-99. 15 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 15-20 passim. 16 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 498-499.

11

invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um [...]”17.

Entendido dessa forma, o paradigma vigente de uma época não é tão rígido a ponto

de determinar quais ações ou pensamentos os homens terão, mas os guiará a certas

tendências comuns de seu meio social, podendo até impor a eles limites ou castigos

severos, caso suas liberdades individuais se desviem além do tolerável socialmente.

Como lidaremos neste trabalho com crimes e transgressões às leis, caminharemos

exatamente nesse limiar do socialmente aceito; veremos o que era negado, logo,

saberemos o que era exigido como o correto.

Importante também para nortear nosso olhar diante dos testemunhos históricos que

usaremos é a estranheza que sentimos ao tentar entender as pessoas do passado.

Como coloca Darnton, “[...] se queremos entender sua maneira de pensar, precisamos

começar com a ideia de captar a diferença [...]”18. Dessa forma, é a estranheza que

surge do choque cultural de nossa visão atual com as partes inicialmente

incompreensíveis dos fragmentos do passado, que possibilita o historiador visualizar

o caminho para desvendar certos aspectos do pensamento dos indivíduos da história,

ou mesmo o universo mental de sua época.

Portanto, neste trabalho buscaremos entender como funcionou a pena do degredo no

século XVII, em especial o degredo para o Brasil. Faremos isso através da

comparação dos dois maiores códigos punitivos do império português: o Livro V das

Ordenações Filipinas e o Livro III do Regimento do Santo Ofício de 1640,

Usaremos para isso a linha teórica da história cultural, analisando mais

especificamente os limites do permitido pela justiça colonial portuguesa. Em meio a

isso, vários outros pontos serão discutidos, como o incentivo ao degredo para auxiliar

a colonização, o funcionamento conjunto das Justiças inquisitorial e secular, a

flexibilidade e a desigualdade social no tocante ao estabelecimento das penas.

17 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 25. 18 DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 15.

12

2. INQUISIÇÃO, ESTADO E DEGREDO

O final do século XV e todo o século XVI foi um período extremamente conturbado

para os povos europeus. Transformações de proporções nunca antes vistas ocorriam

em todas as áreas da vida humana, numa velocidade acelerada em relação ao

pensamento medieval, ainda muito presente nas culturas europeias.

A peste negra19, apesar de muito tempo passado, deixou uma grande cicatriz na

demografia e na mente dos povos da Europa. O rebuliço religioso e social que causara

ainda se fazia sentir em todo o continente. A guerra contra os islâmicos sofria uma

reviravolta, agora com os reinos católicos retomando e dominando as terras dos

mouros. Além de reaverem seus territórios após muitos anos em poder dos

maometanos, os cristãos, sobretudo os da Península Ibérica, inverteram a situação:

agora eles é que conquistavam terras dos “infiéis” e ampliavam seus impérios ao longo

do Mediterrâneo e África. Os Estados passam a centralizar-se cada vez mais,

concentrando-se todas as alianças em torno de indivíduos únicos ou de suas

dinastias. Surgem, assim, os Estados monárquicos ou absolutistas.

Grandes transformações tecnológicas mudaram a dinâmica das guerras e das

navegações. O desenvolvimento no uso da pólvora levou ao crescente uso de armas

de fogo, em detrimento das armas brancas e armaduras, que eram pesadas e menos

eficientes, dentro da nova lógica de luta à distância. As invenções da vela e de outros

instrumentos de navegação possibilitaram a exploração de áreas distantes dos

oceanos. Com isso, terras antes inacessíveis passam a ser frequentadas e

colonizadas, passando a ser constante o contado dos europeus com as terras da

América, África e Ásia. O acesso a esses domínios gera também a total transformação

dos anseios e objetivos econômicos, com um crescente aumento do comércio, do

tráfico de escravos e da busca de especiarias, pedras preciosas, e terras para o plantio

de cana-de-açúcar.

19 Peste negra é a designação por que ficou conhecida, durante a Idade Média, a peste bubônica, pandemia que assolou a Europa durante o século XIV e dizimou cerca de um terço de sua população.

13

Um enorme rebuliço também ocorre no campo das ideias. Os pensadores do

Renascimento passam a contestar a tradição medieval. Por meio da recuperação dos

textos clássicos gregos e romanos, várias ideias aparecem nos campos político,

religioso, social e artístico; o secular passa a ser valorizado, em detrimento do divino,

além de uma crescente separação dessas duas esferas na vida dos homens. Os

dogmas da Igreja Católica Romana são contestados. A partir de Martinho Lutero em

1517, indivíduos e grupos passam a negar abertamente as ideias da religião cristã

oficial, dando início a Reforma Protestante.

Com todas essas mudanças tem início a Modernidade. Esta foi uma época de crise,

de dúvidas. “O descortínio de novos mundos e outros povos fora convite para repensar

a condição humana [...] Mudava-se, gradativamente, nos diversos países da Europa,

a própria maneira de encarar o mundo [...]”20. Sabendo que seu modo de viver e de

pensar era um entre os muitos que encontrava nas novas terras, e mesmo entre os

povos antigos que os renascentistas falavam, o homem europeu passa a questionar

suas próprias tradições, seu próprio modo de vida, até mesmo suas relações com

Deus21. Com os ensinamentos da milenar Igreja Católica colocados em dúvida,

ameaçada pelos próprios cristãos, esta também sofrerá transformações. Uma grade

discussão se inicia entre os católicos.

É desse debate dentro dela que se tem inicio o movimento da Contra Reforma. Este

nome é considerado por muitos como inadequado, pois sugere que as renovações

tiveram o único objetivo de combater os protestantes. Ao afirmar isso, o outro lado

desse movimento interno é esquecido, o da Reforma Católica, que teve início mesmo

antes das contestações de Lutero. Logo, apesar de sugerir apenas um, o termo

“Contra Reforma” engloba tanto uma reação própria da Igreja quanto uma derivada

de problemas externos22.

Além do movimento protestante, três fatores foram fundamentais para alavancar esse

movimento: a peste negra, o Saque de Roma de 1527 e o Renascimento23. Para

20 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 501. 21 Ibid., p. 501-502. 22 DAVIDSON, N. S. A Contra-Reforma. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 1-2. 23 MULLETT, Michael. A Contra-Reforma. Lisboa: Gradiva, 1984. p. 13-17.

14

discutir todos esses eventos, foi realizado o Concílio de Trento (1545-1563). Seu

objetivo foi fortalecer o catolicismo nas áreas ainda não atingidas pelo

protestantismo24, além de finalizar o intenso debate sobre a justificação25 entre os

eclesiásticos, que ocorriam desde antes da Reforma. Manteve-se os sete

sacramentos26, o culto aos santos foi reafirmado e foi definido que a missa continuaria

a ser celebrada em latim. As várias reclamações de abusos e despreparo dos

eclesiásticos foram ouvidas: foi ordenado que cada diocese deveria ter um seminário27

e foram estabelecidas várias exigências para se exercer o cargo de bispo.

Respondendo às principais questões colocadas pelos protestantes, definiu-se que a

Tradição28 e a Bíblia tinham a mesma autoridade e que a fé e as boas obras são

ambos necessários para a salvação. Essas últimas determinações foram essenciais

para a separação efetiva entre católicos e protestantes29.

Com sua fé reestruturada, A Igreja italiana estabelece duas formas de fortalecer a fé

católica: a expansão da fé para as terras recém descobertas e o combate aos

transgressores dela nas regiões onde era forte. A primeira solução foi conduzida,

sobretudo, pela ordem da Companhia de Jesus, principais religiosos a conduzirem

missões, a catequese e, logo, o ensino dos princípios do catolicismo no ultramar. A

segunda foi realizada pelo Tribunal do Santo Ofício. Junto com a criação do Index

Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos), o Concílio de Trento reorganizou

o Tribunal, inclusive incentivando sua criação em outros locais.

A Península Ibérica era um local muito propício para a instalação da Inquisição. Em

Portugal, por exemplo, apesar da forte crítica e afastamento da Igreja que ocorreram

com as ideias de secularização renascentistas, neste local, no entanto, todas as

mudanças foram condicionadas pela forte crença que se manteve no catolicismo.

24 DAVIDSON, N. S. A Contra-Reforma. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 10. 25 Conceito teológico que designa a passagem, sob o influxo da graça divina, do estado de pecado para o estado de graça, ou estado de justiça. 26 Sacramento é um conceito cristão que marca as várias fases de vida do crente. São sete os sacramentos adotados pela Igreja Católica: batismo, confirmação do batismo (ou crisma), confissão (ou penitência), eucaristia, ordem (sacerdotal), matrimônio e unção dos enfermos. 27 Estabelecimento escolar para a formação de eclesiásticos 28 O ensinamento ininterrupto da Igreja, do primeiro século até o presente. 29 DAVIDSON, N. S., op. cit., p. 12-13.

15

Tudo deveria passar pelo “filtro” da fé e, de algum modo, servi-la30. Esta servidão

fervorosa dos ibéricos levou a acontecimentos impensáveis em outros países: em

1492 a Espanha expulsava todos os judeus do reino; Portugal, por sua vez, ordena

que se convertam à força todos os seguidores da Lei de Moisés do reino, em 1497.

Com todos os judeus convertidos ou expulsos, os que continuassem professando

suas antigas práticas seriam considerados hereges e poderiam ser punidos pelas leis

católicas, pois agora eram “cristãos”, ou seja, estavam sujeitos aos castigos

reservados aos que renegam os dogmas oficiais.

Ao ser instituído o Santo Ofício em Portugal no ano de 1536, com sede na cidade de

Évora, estes transgressores passam a ser julgados pelo novo tribunal. Aliás, este foi

o motivo central para a fixação dos tribunais lusitanos: acabar com os judaizantes31.

Para tamanha empreitada ser posta em prática era necessário o apoio das

autoridades seculares, portanto, da Coroa portuguesa. Muito importante foi o apoio,

muitas vezes pessoal, do rei nas atividades da Inquisição ao longo de toda a existência

dessa. Vemos, então, “[...] o envolvimento do rei desde o início, assumindo a

responsabilidade da criação do tribunal e fazendo questão de estar presente na

cerimônia de fundação da nova instituição [...]”32. Porém, tal postura a favor do Santo

Ofício, logo, da perseguição dos judeus e seus descendentes, nem sempre foi a

adotada pelo governo lusitano. Em tempos anteriores, pouco antes do fim do Medievo,

os judeus não eram perseguidos; pelo contrário, as relações entre cristãos e judeus

eram boas, havendo, inclusive, um número considerável de casamentos mistos. As

medidas de segregação impostas aos judeus desde o Concílio de Latrão (1215), como

o uso de símbolos distintivos e a moradia obrigatória em guetos, não eram levadas a

sério em Portugal33. Ao invés disso, existiam leis que os protegiam do preconceito34.

Mesmo após a conversão forçada de 1497 há uma preocupação régia em protegê-

los, sendo criados vários decretos proibindo a discriminação e a investigação dos

30 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 500. 31 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 338. 32 Ibid., p. 25. 33 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972. p. 27. 34 Ibid., p. 36.

16

recém-convertidos por vários anos35. A partir de 1530, no reinado de D. João III, a

Coroa começa a mudar de posição em relação aos cristãos novos, incentivando a

vinda do Tribunal para o reino.

Punindo os dissidentes da religião católica, a Inquisição se mostrava parte integrante

dos meios de transformação idealizados por Trento. Mas sua missão não era apenas

de corrigir os membros seculares da Cristandade, tendo também a obrigação de

fiscalizar as ações dos membros eclesiásticos. Este direito antes era reservado às

Ordens e aos bispos, tendo demonstrado grande resistência à mudança de jurisdição.

Pretendia-se exercer um controle centralizado sobre o clero por meio da fiscalização

do Santo Ofício, que, por ser um órgão novo, não estava preso aos jogos de interesse

e vícios burocráticos, mostrando-se ideal para aplicar as reformas internas. Ao fazer

isso, o Tribunal tornava-se vetor fundamental da Contra Reforma (entendida em seu

sentido mais amplo), afinal era a principal frente contra os vícios tanto internos quanto

externos da Igreja, além de satisfazer, assim, as críticas feitas sobre os abusos do

clero36.

Para regular uma instituição com tamanho poder, era necessário estipular regras para

sua ação. Apesar de raramente mencionado pelos historiadores que dão base à essa

pesquisa, os primeiros esforços nesse sentido foram agrupados numa série de

instruções feitas pelos primeiros inquisidores portugueses em 1541. Este regulamento

determinava que os processos dos réus fossem públicos e suas penas ainda não

previam o confisco de bens (o uso dessa pena pelos inquisidores só tem início em

1563). Várias ações reservadas nesse período unicamente ao inquisidor-geral, logo

se estenderiam aos juízes da Inquisição, a saber, a comutação de penas, a tortura e

a decisão final de alguns processos.

Poucos anos depois, o primeiro código oficial da Inquisição em Portugal estava em

vigor. O Regimento de 1552 estabelecia o segredo nas ações do Tribunal, sobretuno

nos processos. Isso significava que os acusados não saberiam quem os acusou, nem

35 BOXER, Charles R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 279. 36 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 31.

17

quem eram as testemunhas interrogadas, não podendo alegar a inimizade com elas

caso fosse o motivo da denúncia. As etapas do processo e os encargos dos

funcionários são bem detalhados, bem como suas limitações. Estas regras serão

complementadas por um regulamento datado de 1570. Outro novo regulamento, o

Regimento de 1613, também terá grande repercussão, no qual vemos um esforço

cada vez maior de detalhar e delimitar todas as ações da instituição. Nele, um

complexo aparelho burocrático já é visível.

Apesar do rápido impulso inicial da Inquisição portuguesa ter como um dos motivos o

aproveitamento da experiência inquisitorial espanhola37, fundada em 1478, mais de

cinquenta anos antes de sua vizinha, a prática do Santo Ofício lusitano alcançou

conquistas únicas. Sua produção jurídica revela um desenvolvimento notável na

prática da caça às heresias. Mesmo que continuassem usando dos manuais

medievais, notamos nos Regimentos a preocupação dos inquisidores em centralizar

e uniformizar a atuação do Tribunal em Portugal, em registrar e organizar as

experiências adquiridas com a prática jurídica e, sobretudo, em atualizar essa prática

conforme o passar dos anos. Tal esforço de renovação não foi tão grande nos tribunais

espanhóis, que se mostraram muito mais presos aos manuais medievais38.

Tudo isso vai culminar finalmente no Regimento de 1640. Este documento fora escrito

no auge da Inquisição portuguesa: “[...] no século XVII, perto de cem anos após o seu

estabelecimento em Portugal, já a encontramos perfeitamente integrada no sistema

político e social do país [...]”39. Foi, por isso, o mais duradouro dos regulamentos,

permanecendo em vigor cento e trinta e quatro anos. São algumas de suas

características o regramento descomunal da conduta e obrigações dos funcionários,

o detalhamento do processo penal, o estabelecimento de uma tipologia detalhada e

organizada dos possíveis crimes associados com suas penas, maior organização

administrativa, a sistematização dos ritos e a introdução da pureza de sangue para os

cargos da instituição (ou seja, eram proibidos aos descendentes, mesmo que

distantes, de negros, judeus ou mouros). Ao ler tal regulamento fica evidente o

37 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 44. 38 Ibid., p. 46. 39 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972. p. 35.

18

aperfeiçoamento da organização interna e de todo o processo em relação aos

anteriores. As lacunas deixadas pelos regimentos anteriores que a prática jurídica

identificava eram preenchidas no regimento seguinte, aumentando-o e tornando-o

mais minucioso. Por ser o produto de todas as discussões e de todas as experiências

da Inquisição desde sua fundação40, o Regimento de 1640 é o maior, mais complexo

e mais detalhado dos regulamentos, considerado pelos portugueses um “monumento

jurídico”41.

É evidente que a Inquisição não atuava tão livremente como pode parecer. Todos os

seus passos tinham o apoio do Estado. Melhor dizendo, os movimentos do Tribunal

só foram possíveis por causa do auxílio constante que os governantes lhe davam.

A vastidão do domínio do Estado Moderno, não só sobre todos os súditos, mas

também sobre todas as instituições, explica-se pelo seu êxito na concentração do

poder jurídico em torno da figura do rei. Grandes foram seus projetos de unificação e

organização das leis que perduravam desde antes da Idade Média.

A tradição jurídica europeia tem como base, podemos dizer, um conjunto de textos

tidos como fundadores: o Corpus iuris civilis42 e o Corpus iuris canonici43. A ambos se

somavam os direitos locais, chamados Direitos Próprios44. Ao longo do tempo, criou-

se uma situação na Europa Ocidental caracterizada não pela integração, mas pela

coexistência de ordenamentos jurídicos autônomos, cujas origens remontam à tensão

entre a fidelidade (que não permitia aos juristas irem além do trabalho da exegese) e

a inovação (que se impunha a partir da necessidade de atualizar as normas, a fim de

adequá-las ao momento histórico vigente). Grupos como a Escola dos Glosadores

(iniciada no século XII) e a Escola dos Comentadores (dos séculos XIV e XV) se

dedicarão a estudar apuradamente os textos jurídicos romanos.

40 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 67. 41 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 47. 42 Nome que se dá, a partir do século XVI, ao conjunto de textos compilados em meados do século VI sob ordem do imperador Justiniano, que encerravam todo o saber jurídico romano. 43 Modo como ficou conhecido o conjunto de coleções de textos elaborados e compilados ao longo dos séculos, a saber: o Decreto de Graciano, as Decretas, o Sextum, as Clementinas, as Extravagantes de João XXII e as Extravagantes comuns; vigorou até 1917, quando foi substituído pelo atual Código de Direito Canônico. 44 TOMA, Maristela. História, legislação e degredo em Portugal. Justiça & história, Porto Alegre, v. 10, n. 5, p. 51-92, 2005. p. 3 (paginação de acordo com a versão da internet).

19

Aproximadamente no século XII ocorreu na Europa o desenvolvimento do poder

judiciário, num processo onde a justiça passou a ser identificada como um poder

exterior aos indivíduos. As ações penais, por seu turno, deixam de se reduzir a

disputas entre indivíduos e famílias ou grupos e passam a ser públicas, tendo em vista

que a reparação da parte ofendida tem de ser pública45. Vemos também que ocorreu

a consolidação da vitória do Estado na luta pela estatização da justiça, e se por um

lado vemos a publicização da punição, vemos seu correspondente no plano legal na

sistematização das penas. O Estado passou a reivindicar para si a exclusividade da

aplicação das punições, combatendo assim as vinganças privadas (situação que em

Portugal, durante o reinado de D. Afonso II, era quase endêmica). O Estado também

passou a lançar mão de formas de violência reguladas juridicamente e socialmente

aceitas, que normalmente eram executadas em público, visando desencorajar futuros

criminosos. A encenação da punição e a encenação do poder do rei se confundiam46.

Esses esforços feitos pelos Estados monárquicos modernos de tomar para si o uso

da justiça, e consequentemente da força, e o de conter as manifestações particulares

de vingança são o centro da análise de uma das principais obras de Norbert Elias47.

Iniciando sua análise na Idade Média, este mostrará como ao longo dos séculos nota-

se um processo crescente de monopolização da força pelos Estados centrais; apenas

os grupos representantes ou designados do poder central passam a possuir

autoridade para usar de armas e da violência48. Paralelo e integrado a esse processo

temos outro, o de contenção das paixões e dos comportamentos considerados

impróprios dentro das sociedades europeias. Teremos, assim, no período moderno,

uma pressão social maior sobre os indivíduos para que se adaptem aos novos

padrões comportamentais49. Nesse sentido, temos num dos títulos das Ordenações

Filipinas, Dos que fazem desafios, um exemplo dessa pressão por mudança de

atitude, “E os que levarem escritos ou recados de desafio, por qualquer via que seja,

45 TOMA, Maristela. História, legislação e degredo em Portugal. Justiça & história, Porto Alegre, v. 10, n. 5, p. 51-92, 2005. p. 19 (paginação de acordo com a versão da internet). 46 Ibid., p. 20. 47 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, v.1 e 2. 48 Ibid., v. 2, p. 98. 49 Ibid., v. 1, p. 91.

20

incorrerão em pena de dez anos de degredo para o Brasil e perderão a metade de

suas fazendas sem remissão”50.

Em Portugal, da história jurídica destacaremos três momentos marcantes: as

Ordenações Afonsinas (concluídas em 1446), as Ordenações Manuelinas (que

passam a vigorar definitivamente em 1521) e as Ordenações Filipinas (que entram em

vigor em 1603); ordenações que correspondem aos três códigos oficiais promulgados

pelos monarcas de Portugal.

No caso das Afonsinas, a obra segue a estrutura das Decretas de Gregório IX e está

dividida em cinco livros, que contemplam as seguintes matérias: Livro I: versa sobre

o que hoje é chamado de Direito Administrativo; Livro II: versa sobre assuntos

relacionados à Igreja e sobre direitos régios e da administração fiscal, dos donatários,

judeus e mouros; Livro III: versa sobre o processo civil; Livro IV: versa mais

amplamente sobre o Direito Civil; Livro V: versa sobre Direito e Processo Penal. Sua

hierarquização das fontes segue a doutrina dos Comentadores.

Com a chegada da imprensa em Portugal em 1487, o rei D. Manuel tencionou imprimir

as Ordenações Afonsinas. Antes da impressão, quis que as Ordenações fossem

revisadas e acrescidas. Porém, a promulgação posterior de um grande volume de leis

fez com que o rei ordenasse uma nova reforma nas Ordenações, cujo resultado ficou

pronto em 1521. As Ordenações Manuelinas seguem a mesma divisão das

Ordenações Afonsinas, mas o estilo de redação muda bastante, sendo as leis em

geral reescritas em estilo decretório, semelhantes a novas leis.

Logo após os primeiros anos do domínio espanhol, Felipe II encarregou uma comissão

de juristas para revisar e compilar as novas leis promulgadas desde a entrada em

vigor das Ordenações Manuelinas. Esse trabalho foi concluído em 1595 e o novo

código, que ficou conhecido como Ordenações Filipinas, passou a vigorar em 1603.

Seu objetivo fundamental era reunir num só texto as leis promulgadas nas Ordenações

Manuelinas e as promulgadas depois delas. Seu estilo linguístico é mais impessoal e

conciso, o que representa um progresso em termos de linguagem, mas sua estrutura

50 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 161, tít. 43, § 2.

21

é muito fiel às Ordenações Manuelinas, o que pode significar respeito pelas

instituições portuguesas por parte de Felipe II. Este código foi o mais longevo, e serviu

de base do direito português até o século XIX, vigorando até a promulgação do Código

Civil em 1867.

Controlando as leis, então reorganizadas, e o uso da violência em seus domínios, o

rei inicia uma nova empreitada para fortalecer ainda mais o controle sobre as pessoas.

Pretendeu-se, além de controlar os corpos e os costumes, definir no que os homens

do reino podiam crer, ou seja, controlar e uniformizar as mentes, as consciências. Foi

pensando em evitar os problemas de divisões e disputas advindas do convívio entre

vários credos que o rei D. João III incentivou a introdução da Inquisição em Portugal.

Esta instituição seria o seu instrumento de controle religioso e cultural. Com ela “[...]

poderia alargar seu poder sobre os portugueses, pois ela lhe daria, embora

indiretamente, o controle das consciências [...]”51. O Santo Ofício seria a diretriz dos

que não conseguiam seguir a única fé, a católica; usaria suas técnicas de persuasão

e coerção para colocá-los no caminho correto para a salvação de suas almas. E tal

instituição vinha pela vontade do próprio rei, sendo a ele subordinado; seguiria suas

determinações, pois sua existência dependia de seu apoio.

É claro que essa dependência não era isenta de conflitos. É natural que o Tribunal

crescendo reivindicaria mais autonomia e maior jurisdição. Muitas vezes essas

conflitos eram ferozes e abertos, havendo até ameaças ao rei por parte dos

inquisidores52. Sua fama de arbitrariedade era tão grande que afirmam que “[...] o

ramo português do Santo Ofício tornou-se literalmente uma lei em si, isento de toda

interferência episcopal e reservando-se a posição de autoridade suprema em relação

aos tribunais civis e eclesiásticos [...]”53. Outros, além de sugerir um poderio da

Inquisição maior do que o estatal, dizem ter ele sobreposto este poder conforme se

firmava no reino, “[...] numa flagrante manifestação da força do poder da Igreja, que

51 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 502. 52 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972. p. 52. 53 BOXER, Charles R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.p. 280.

22

[...] foi gradativamente ampliando sua jurisdição e competência [...]”54. Segundo esses

argumentos, ambas as Justiças estariam sempre em conflito desde o aparecimento

do Tribunal, numa tentativa da Igreja de impor as sua leis, em detrimento da Justiça

secular.

Gostaríamos de deixar claro que, apesar de reconhecermos a importância dos

inúmeros estudos que defendem esses conflitos, não partilhamos dessa opinião. Aqui

defendemos a posição de que o Tribunal estava subordinado ao Estado, inserido em

seu plano político de controle e uniformização das mentes.

Apesar do nome Absolutismo, esta forma de governo dos Estados Modernos não

significava que os Príncipes administravam seus reinos sozinhos. Com as constantes

disputas pelo poder e pelo domínio de terras acorridas ao longo da história, os grupos

vitoriosos ou que buscavam proteção se juntaram em torno de um homem único, o

rei, que comandava o monopólio das conquistas. Conforme as conquistas cresciam,

era cada vez mais difícil o soberano controlar tudo sozinho, o que fez com que

delegasse cada vez mais funções aos seus seguidores. Dessa dependência crescente

nasce a burocracia e a administração do reino e, logo, o “Estado”55. Entendida dessa

forma, a monarquia “absolutista” é plural, possui diversas instituições que são

necessárias ao funcionamento do Estado; o rei é a cabeça de um grande corpo, seus

membros são as autoridades públicas, que levam as ordens da Coroa a qualquer parte

do reino e, desta forma, tornam possível o poder “absoluto” do rei56.

Assim o Estado, ou seja, o rei, toma a frente da organização nacional como um todo,

inclusive do que desrespeitava a Igreja. O soberano “[...] passou a ser o chefe

administrativo da Igreja nacional [...]”57. Na modernidade, é o rei que ganha destaque,

o secular que coordena a sociedade europeia, diferente do que acontecia no Medievo,

54 MURAKAWA, Clotilde. Os Regimentos da Inquisição Portuguesa: um estudo de vocabulário. Revista Anthropológicas, Recife, v. 10, n.4, p. 37-51, 1999. p. 10. (paginação de acordo com a versão da internet). 55 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 101. 56 HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal - séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 495. 57 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 501.

23

em que a fé recebia uma atenção maior. Agora a Igreja perde poder e se submete as

autoridades seculares.

O rei, então, por sua vontade e determinação, atribui a função de julgar os crimes de

caráter moral e religioso ao Santo Ofício, pois são eles os especialistas em lidar com

as heresias, logo, os únicos capacitados a auxiliar o reino a fortalecer a fé católica,

como determinado por Trento. Era seu papel reconhecer as heresias e produzir

conhecimento para tal, tanto em ralação ao dogma quanto das práticas culturais, em

outras palavras, do pensamento e da cultura dos hereges58. Este último encargo

variou de região para região, de acordo com as práticas culturas dos povos ao redor

que foram negadas pelo catolicismo, como em Portugal as dos judeus e islâmicos.

Não é a toa que cada Tribunal tinha leis e organização próprias, adaptadas ao seu

reino, seguindo a necessidade de cada local.

Devido a essa interdependência entre o braço secular e o clerical, notamos que os

discursos elaborados por ambas as Justiças são semelhante. Às vezes estão de tal

forma imbricados que um mesmo delito pode ser punido pelas duas Justiças59. São

os casos conhecidos como mixti fori, ou seja, de jurisdição mista, como por exemplo,

a bigamia, a blasfêmia e a feitiçaria. Porém, não nos deixemos enganar. As Justiças,

por mais que se confundissem, o que certamente gerava muitos conflitos de jurisdição,

tinham papeis reservados a cada uma. Seus objetivos não se misturavam e “[...]

Somente os crimes de teor religioso ou moral eram da alçada do Santo Ofício”60.

Apenas os inquisidores podiam julgar a heresia e só os juízes civis julgavam, por

exemplo, os crimes de lesa-majestade.

Cada Justiça sabia o que era de sua competência e o que era da outra, bem como

suas próprias limitações. Quando não há penas específicas para os crimes que

analisam, “[...] As condenações inquisitoriais moldam-se às leis da jurisdição secular.

Os regimentos, de fato, são ‘complementados’ pelas ‘disposições de direito’ contidas

nas ordenações [...]”61. Isso mostra, novamente, a dependência da Inquisição em

58 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 49. 59 Ibid., p. 31. 60 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 16. 61 Ibid., p. 61.

24

relação ao Estado, sempre recorrendo às leis do reino quando as suas próprias não

eram suficientes. Do mesmo modo, temos aí, mais uma vez, a confluência das

Justiças, que se ajudam mutuamente quando, às vezes em um mesmo caso, uma

envia o réu para que a outra continue o processo. Assim, não podendo os inquisidores

executar os réus que condenavam à morte, por serem eclesiásticos, esses eram

“relaxados ao braço secular” para que este aplicasse a pena capital62.

Tanto nos regimentos quanto nas Ordenações, a pena do degredo é recorrente,

sobretudo na legislação do século XVII, auge da expansão ultramarina. Esta punição

[...] consistia numa forma de expulsão penal prevista pela Justiça secular e eclesiástica da Coroa lusitana, onde o condenado era obrigado a sair do local onde cometera seu crime, sendo enviado para outro território pertencente ao reino, onde deveria permanecer por tempo determinado ou perpetuamente [...]63

O condenado banido era mandado para uma das terras previstas em lei, variando de

acordo com o crime cometido, podendo ainda ser trocado para outro equivalente, de

acordo com os agravantes e atenuantes do caso. O período em questão, o século

XVII, é de especial importância, pois os antigos locais indicados para degredo, em

geral localidades internas de Portugal, são trocados pelas terras do além-mar.

O degredo correspondia a um tipo específico de expulsão penal, diferente de outras

formas praticadas ao longo do tempo. Ele seguia uma lógica dupla: afastar o criminoso

e seu aproveitamento racional dos condenados pelo Estado, pois eram vistos como

mão-de-obra móvel. Assim, o degredo previa ao menos em teoria, que a vontade do

rei permanecesse a reger a vida dos condenados, mesmo a distância, tendo em vista

que os condenados eram utilizados como mão-de-obra.

O banimento de criminosos para regiões longínquas foi uma medida adotada por

inúmeros povos ao longo da história. Na Grécia antiga, exilavam-se os homicidas

perpetuamente, acompanhando a pena a infâmia e o confisco dos bens. O próprio

criminoso podia exilar-se fugindo da cidade, não podendo nunca mais voltar. Havia

62 Ibid., p. 47. 63 PONTAROLO, Fábio. Degredo interno e incorporação no Brasil meridional: trajetória de degredados em Guarapuava, século XIX. 2007. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. p. 11.

25

também um exílio político temporário, o ostracismo, em que se afastavam da cidade

os indivíduos que apresentassem ameaças ao governo da cidade, normalmente por

um tempo de até dez anos. No Império Romano de Augusto, a deportatio era a pena

que implicava no exílio perpétuo, com perda da honra, dos bens e dos direitos de

cidadão, para áreas das fronteiras. A relegatio era também um afastamento político,

perpétuo ou temporário, sem prejuízos para a honra ou para os direitos64.

Muitos países também aproveitaram seus criminosos para povoar suas terras. A

Inglaterra de 1600 determinou que todo prisioneiro condenado a mais de três anos de

prisão seria enviado para as colônias da América do Norte. Após a independência dos

Estados Unidos, era a Austrália o novo destino dos condenados. Mauricio de Nassau,

em seu governo do nordeste brasileiro, após a invasão holandesa do Nordeste,

incentivou as autoridades da metrópole holandesa a enviarem todos os seus

prisioneiros65.

Em Portugal, o degredo sempre foi muito utilizado pelos governantes para povoar as

fronteiras do reino, mesmo antes da expansão marítima. Nesses limites, havia os

coutos66 e as honras67, que abrigavam criminosos fugitivos, também chamados

homizios. Nestes locais, os que tivessem cometido algum crime em outras partes do

país poderiam fugir para lá, onde poderiam permanecer sem ter medo de serem

perseguidos pelas autoridades; os réus castigados com o degredo eram mandados

cumprir suas penas nesses distritos. Quando as novas terras foram descobertas, a

estas foi permitido também abrigar fugitivos da justiça, além de ser proibida a abertura

de novos coutos na metrópole68.

64 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 23-24. 65 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 29-35 passim. 66 Terras especiais, normalmente de fronteiras, que as leis do Reino não abrangiam. Os criminosos fugiam para lá

para evitarem uma condenação pior ou eram mandados como degredados. 67 Terras que eram regidas pelos fidalgos seus donos, que antigamente as receberam como prêmios por seus

serviços. Eram locais de refúgio ou de degredo em que as leis do reino não se aplicavam, por ser concedida

liberdades ao fidalgo como retribuição ao seu serviço público permanente. 68 PIERONI, Geraldo M., op. cit., p. 24-27.

26

Eram vários os locais que recebiam os degredados. Antes da colonização do Brasil e

da Ásia, os locais mais citados são, as galés69, Castro-Marim, São Tomé, Ilha do

Príncipe, e África. Os decretos feitos após as Ordenações Manuelinas comutam

muitos dessas penas para as novas descobertas, principalmente para o Brasil, Angola

e Ásia. Ir para cada um desses lugares dependia da gravidade do delito cometido,

sendo Castro-Marim o mais brando entre os degredos e o Brasil o mais severo, vindo

logo depois da pena de morte e das galés. Conforme aumentavam os delitos punidos

com o degredo, aumentava-se o contingente de colonos, cujas penas eram cada vez

mais comutadas em desterro para o ultramar. É por essa visível ligação entre o

aumento da pena de degredo e o processo de colonização que concluímos que esta

foi uma das principais estratégias do Estado para povoar seus recentes territórios,

afinal, “[...] Nem mesmo as promessas miraculosas da possibilidade de descobrir

riquezas: ouro e prata, conseguiram, estimular esse primeiro povoamento”70.

Lembremos, por exemplo, do relato de Pero Vaz de Caminha sobre a expedição de

Pedro Álvares Cabral; os primeiros colonizadores deixam aqui os primeiros

degredados, a custo de muito choro de um dos criminosos71. Degredo e Sistema

colonial andavam juntos. Assim, “[...] O incentivo do Estado ao envio de degredados

para o Brasil mostrou-se concomitante, portanto, à montagem do próprio sistema

colonial [...]”72.

Mas a ideia econômica do aproveitamento da mão-de-obra dos prisioneiros nas

colônias não é suficiente para entender todos os aspectos entorno do degredo. É

preciso também adentrarmos no imaginário do período, saber como essas terras eram

vistas pelos europeus. Muito já se falou dos mitos e maravilhas que os navegadores

procuravam no mar, principalmente no Novo Mundo; o Brasil também foi visto como o

Éden, o local onde havia riquezas, prazeres e nenhum pecado73. Se tomássemos essa

como a visão geral e única, eis a dúvida: por que então se mandariam os indesejáveis

69 Pena muito antiga na qual os condenados eram usados na navegação, antes do desenvolvimento da vela. Com

a difusão dessa nova tecnologia, os condenados a essa pena passaram a ser usados em trabalhos forçados nas

obras públicas, mas manteve-se o nome antigo. 70 COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredos. Revista de História, São Paulo, ano VII, vol. XIII, julho-setembro, p. 3-23, 1956. p. 4. 71 VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial: 1500-1808. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 181. 72 SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 90. 73 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

27

para um lugar tão maravilho? Pois outra visão andava paralela a do Brasil como

Paraíso: a deste como lugar de sofrimento, de perigos e provações; um Purgatório.

A Colônia era vista como um local para se pagar os pecados cometidos. “[...] Para o

Santo Ofício, enviar réus à Colônia das Américas era, em termos gerais, permitir que

concluíssem aqui um longo processo purificador iniciado ainda nos cárceres [...]”74. O

próprio sofrimento da viagem era uma penitência para purgar os males75. Esta visão

é derivada de uma longa discussão que começou na Idade Média entre os teólogos.

Inicialmente, o Purgatório foi concebido como um “estado” espiritual, mas com o

passar do tempo, na tentativa dos padres de passarem esse ensinamento para os fiéis

populares, acabou-se construindo a ideia dele como um “lugar”, no sentido físico;

eruditos e populares, em suas interações ao longo de séculos, definiram o Purgatório

como um ambiente terreno, um local específico76. Transferida essa ideia para o

contexto colonial, este era o consenso entendido por inquisidores e leigos: o

Purgatório era uma região terrena, e esta era o Brasil ou outras terras de exílio, onde

os desviados poderiam se redimir de seu mal.

Em meio a todos os pensamentos que circulavam sobre o degredo, a fé, os

transgressores da lei e a forma de tratá-los, no final do século XVI e início do XVII, os

estadistas e inquisidores portugueses pensam as regras mais adequadas para guiar

ou corrigir a Cristandade. E este empenho conjunto, assim como suas intrigas,

repercute em suas leis.

3. COMPARAÇÃO ENTRE OS CÓDIGOS PUNITIVOS

Para entendermos qualquer texto de qualquer época, devemos antes estar habituados

às palavras utilizadas por eles. Em qualquer análise documental de “vestígios”

históricos é fundamental que se tenha enorme preocupação com o significado exato

das palavras. Ou seja, é preciso ter o cuidado de entender como as pessoas da época

74 SOUZA, Laura de Mello e, op. cit., 1993. p. 94. 75 Ibid., p. 89. 76 PIERONI, Geraldo M. No purgatório mas o olhar no paraíso: o degredo inquisitorial para o Brasil-colônia. Textos de História, Brasília, v. 6, n. 1-2, p. 115-142, 1998. p. 120.

28

pensavam as palavras e entendiam seus significados, mudando a forma de usá-las e

o sentido de todo o texto de acordo com as circunstâncias. Um bom exemplo disso é

o uso da palavra pueblo pelos colonos da América Espanhola no período de sua

independência da Espanha. Numa tradução simples, usaríamos a palavra “povo”,

porém, naquele contexto, o sentido em que era usado era diferente do atual: Sobre a

palavra pueblo explica o autor Chiaramonte: “[...] Conceito este, o de pueblo, pelo

comum sinônimo de cidade”77. Logo, a palavra em português “povo”, que tem o

sentido de conjunto de todas as pessoas de um país, alteraria o sentido pretendido

pelos hispano-americanos, o de “cidade”, mais especificamente uma cidade autônoma

politicamente, semelhante à cidade-estado grega78.

Em nosso caso, o da análise da linguagem jurídica, esse olhar deve ser ainda mais

atento devido ao significado específico que as palavras usadas nos códigos têm, não

apenas em relação ao nosso tempo, sendo diferentes também dos adotados

usualmente pela sociedade em que foram escritos. Além disso, não só uma palavra

pode ter vários sentidos, de acordo com a época, como, numa mesma época, um

único sentido pode ter várias palavras que o sugerem ou definem. Assim, usando

palavras diferentes, únicas ou um conjunto delas, é possível “acionar” um mesmo

significado79.

Apesar da importância do debate linguístico e vocabular para facilitar o entendimento

da parte penal das Ordenações Filipinas e do Regimento de 1640, esse não será

desenvolvido aqui. Mas para auxiliar o leitor na compreensão de alguns termos

recorrentes nesses códigos, muitos deles estranhos ao nosso tempo, ao final deste

trabalho estão sugestões de sentidos apreendidos por nós.

Uma primeira característica que é visível em qualquer parte de ambos os documentos

é a clara divisão social. Em todos os títulos do Livro V das Ordenações Filipinas há

penas específicas para cada grau dentro da hierarquia em que o punido se encontra.

77 CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y estado en Iberoamerica: el lenguaje político em tiempos de las independencias. Buenos Aires: Sudamericana, 2004. p. 64, tradução nossa, grifo nosso. “[...] Concepto éste, el de pueblo, por ló común sinónimo del de ciudad.“ 78 CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y estado en Iberoamerica: el lenguaje político em tiempos de las independencias. Buenos Aires: Sudamericana, 2004. p. 64-75. 79 Cf. MURAKAWA, Clotilde. Os Regimentos da Inquisição Portuguesa: um estudo de vocabulário. Revista Anthropológicas, Recife, v. 10, n.4, p. 37-51, 1999.

29

Logo no início desse último livro, em seu segundo título, Dos que arrenegam ou

blasfemam de Deus ou dos santos, temos a separação da sociedade em três classes:

os fidalgos; os cavaleiros e seus escudeiros; os peões80. Esta é a classificação básica

dos grupos sociais, porém, cada um deles sendo composto de várias profissões e

títulos que diferenciavam os indivíduos uns dos outros. Num outro título, Das pessoas

que são escusas de haver pena vil, há uma série de especificações sobre os títulos

de nobreza que excluem os que os possuem de sofrerem as penas de humilhação

pública, não podendo ser executadas

[...] nem em juízes e vereadores ou seus filhos, nem nos procuradores das vilas ou conselhos, nem em mestres e pilotos de navios de gávea [...] nem nos amos ou colaços dos nossos desembargadores ou cavaleiros de linhagem ou daí para cima, nem nas pessoas que provarem que costumam sempre ter cavalos de estada em sua estrebaria, e isto posto que a peões ou filhos de peões sejam [...]81.

Portanto, ter privilégios de “nobreza” na sociedade colonial vai além da ideia de que

“[...] o pertencer ao rol dos privilegiados implicava no desprezo ao trabalho manual e

ao comércio [...]”82, já que, mesmo se fosse peão, caso tivesse a profissão digna de

criar ou cuidar de cavalos, o benefício dos nobres se estenderia a ele, escapando das

penas de degradação pública. O próprio rei D. Manuel I assumiu o título de Senhor do

Comércio, mostrando como o trato de mercadorias podia engrandecer ainda mais a

nobreza, e não o contrário.

Ao verificarmos o trecho citado, outro mito que não se sustenta é o de que os

benefícios de nobreza eram concedidos apenas aos parentes de sangue. Os criados,

educadores e irmãos de criação que estavam de alguma forma agregados à família,

seja de um fidalgo ou de um cavaleiro, também recebiam certos benefícios que eram

restritos. Todos esses associados, como, por exemplo, os escudeiros, eram de origem

popular, mas o direito de não receber castigos humilhantes era a eles concedido, fruto

da relação que estabeleciam com seus senhores em uma sociedade do Antigo

Regime.

80 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 58, tít. 2, § inicial. 81 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 489, tít. 138, § inicial. 82 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972. p. 31.

30

Diferentes das leis seculares, o Livro III dos Regimentos de 1640 apresenta uma

divisão mais simplificada das classes. Na parte que trata Dos blasfemos, e Dos que

proferem proposições heréticas, temerárias, ou escandalosas, ocorre a separação das

penas para “pessoa vil” e para “pessoa nobre, e honesta”83. Esta dualidade permeia

todo o documento, nem sempre detalhando o tratamento dado a cada um dos dois

grupos. Na maioria das vezes a legislação inquisitorial sugere a estratificação social,

mas não a expõe tão claramente como as Ordenações, limitando-se a dizer que ao

réu “[...] se lhe darão as penas, que parecer que convém, segundo a qualidade da

pessoa, e circunstâncias da culpa”84. De todo modo, fica evidente que cada grau social

tem um valor, uma “qualidade” inerente à posição ocupada pelo indivíduo na

hierarquia social, que interfere diretamente nas penas recebidas dos juízes.

Era natural, portanto, a desigualdade entre os homens. Porém, ser privilegiado nem

sempre causava uma suavização automática em qualquer pena. Nos delitos nos quais

os condenados tinham de reparar os danos através do pagamento de multas, vemos

também uma desigualdade social, só que inversa, sendo as multas dos abastados

maiores que a das pessoas simples. A cada um dos graus dessa sociedade era

esperado da pessoa que o ocupasse uma renda condizente com a sua posição; se

nobre, supõe-se que tenha dinheiro suficiente para sustentar terras e criados, por

exemplo. Então, a cada pessoa, quando multada, era cobrado um valor de acordo

com o que se esperava que tivesse, sendo maior para os fidalgos e menor para os

peões. Este aspecto é facilmente percebido no título já citado, das Ordenações, Dos

que arrenegam ou blasfemam de Deus ou dos santos:

E arrenegando, descrendo, pesando ou dizendo outras blasfêmias a algum santo [...] pela terceira [vez], o fidalgo pague oito mil réis e seja degredado um ano para África. E o cavaleiro ou escudeiro pague seis mil réis e seja degredado um ano para África, e o peão pague quatro mil réis e seja degredado um ano para galés85.

Por vezes, a pena é dada de uma forma mais equivalente para esses grupos, mas

continuando com certas diferenças. Para alguns crimes, a pena ordinária prevista para

83 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 851, tít. XII, par. 4. 84 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 848, tít. IX, § 6. 85 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 59, tít. 2, § 1.

31

os peões é, de certa forma, mais branda para os fidalgos e cavaleiros, no entanto,

havendo uma “compensação”. Como dissemos, as penas de caráter público e

infamantes, sobretudo as corporais, não podiam ser aplicadas aos nobres e

cavaleiros, por isso estas eram trocadas por outras de acordo com sua qualidade.

Assim aparece no Código Filipino sobre a comutação das penas dos privilegiados:

E em lugar das ditas penas de açoites com baraço e pregão sejam condenados em dois anos de degredo para África com pregão na audiência. E se além da pena de açoites for degredado para o Brasil, será o degredo, que em lugar de açoites lhe mandamos dar, de mais um ano para o dito lugar, e sendo o degredo para sempre, não lhe será dada mais pena em lugar de açoites. 1. E quando somente for condenado em degredo com baraço e pregão sem açoites, será em lugar do baraço condenado mais um ano de degredo, com um pregão na audiência, além do tempo em que vai condenado para o lugar para que vai degredado86.

Constatamos, desse modo, que a opção mais favorável para não sofrer as

vergonhosas penas físicas era, em geral, o aumento do degredo.

Em relação ao abrandamento e mesmo a essa “compensação”, também os

identificamos no Regimento. Em muitos de seus parágrafos as penas específicas para

cada tipo ou ocasião do crime não estão acompanhadas de explicações de como

serão aplicadas a cada nível social, como é comum nas Ordenações. Ao invés disso,

logo ao iniciar os títulos afirma-se que serão consideradas as qualidades de cada réu,

ficando isso subentendido para todas as considerações que vierem a seguir.

Em Dos fautores, defensores, e receptores, dos hereges, após a definição de que

fautor de hereges é ”[...] toda pessoa de qualquer qualidade, estado e condição que

seja, que nas coisas contra a Fé, favorecer os hereges [...] e não manifestando as

heresias que deles souber [...]”, destaca-se que as penas serão aplicadas “[...]

havendo respeito à qualidade da pessoa, e circunstâncias da culpa”87. Com essa

observação já feita, as penas subsequentes derivadas da defesa dos hereges não

precisam vir seguidas de detalhes sobre cada classe social, apenas são colocadas as

86 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 489-490, tít. 138, § inicial e 1. 87 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 847, tít. IX, § 1.

32

penas ordinárias. Desta forma, em um dos parágrafos, ainda sobre os fautores de

hereges, por exemplo, temos “E aquele, que por qualquer maneira impedir o castigo,

e execução da justiça contra o herege [...] abjurará em lugar público [...] e será

açoitado, e degredado para as galés pelo tempo que parecer aos Inquisidores”88. Não

verificamos qualquer adendo sobre os homens mais qualificados, pois eles já foram

feitos anteriormente.

Além da explicação anterior as penas, vemos outras formas dos inquisidores deixarem

evidente que os nobres e cavaleiros não sofrerão penas infamantes. Algumas das

vezes a legislação simplesmente excluí essas penas, caso estejam previstas na pena

ordinária, como é feito em Dos que impedem e perturbam o ministério do Santo Ofício

quando afirmam que o réu “[..] será degredado a arbítrio dos Inquisidores para as

galés e açoitado publicamente, se na qualidade de sua pessoa pode caber esta

pena”89. Não é prevista qualquer “compensação” para os que não podem ser

açoitados, sugerindo apenas a supressão dessa pena sem aplicar outra no lugar.

Porém, em outras ocasiões são usadas penas “compensatórias”. No referido título

sobre as penas dadas pelo Santo Ofício aos blasfemos, o que for pessoa nobre e,

portanto, honesta, “[...] em lugar da pena de açoites, e galés, será condenada em pena

pecuniária, e em outro degredo, conforme sua qualidade, bens, que possuir,

circunstâncias da culpa, e escândalo [...]”90. O açoite e as galés são ambos

substituídos, por serem degradantes e não adequados aos que têm qualidades, ou

seja, privilégios sociais.

Apesar de tudo, um dos modos mais comuns usados nas leis inquisitoriais de se

excluir essas penas vis dos réus abastados era o aberto abrandamento da

condenação. Na parte que discorre sobre os crimes de sodomia, aos réus que fossem

condenados por serem relapsos nesse pecado, havendo provas suficientes sem sua

confissão, está dito que “[...] serão condenados em pena pública extraordinária [...]

sendo pessoa qualificada, ouvirá sua sentença na sala do S. Ofício, e terá pena de

88 Ibid., p. 847, tít. IX, § 2. 89 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 865, tít. XXI, § 2. 90 Ibid., p. 851, tít. XII, § 4.

33

degredo; e se for pessoa ordinária será condenada em açoites, e degredo de galés

[...]”91. Notemos que nesse trecho, logo após ser determinado que se aplicassem as

penas públicas mais severas aos culpados, temos, ao contrário, um castigo secreto

reservado para os nobres. Além disso, não é especificado o local de degredo para

eles. Não estabelecer uma pena exata ou afirmar que esta será dada ao arbítrio dos

inquisidores, é também uma forma de suavizá-las. Assim, os julgadores podem

controlar e estabelecer as penas conforme julgarem melhor, não expondo os mais

abastados aos castigos vergonhosos.

Assim, estavam os fidalgos, cavaleiros, escudeiros e todos os que tivessem este

direito, livres de sofrer penas de humilhação pública e corporal, sendo as principais os

açoites, as galés, o auto de fé, o hábito penitencial, o confisco de bens, o baraço e

outros símbolos infamantes. Lembrando que o degredo para as galés, por seu caráter

de trabalhos manuais forçados, também era considerado uma pena vil, portanto só

aplicada aos comuns. Havia também outras penas físicas, como as de mutilação; uma

delas era o corte da mão: “E qualquer pessoa que resistir contra algum corregedor [...]

e na resistência o ferir, ser-lhe-á decepada uma mão e mais será degredado para o

Brasil para sempre”92. Este tipo de pena foi amplamente usado pelas leis anteriores

ao século XVII. Porém, a necessidade de usar os condenados nos trabalhos de

colonização fez com que se tornassem mais raras, sendo várias delas trocadas pelo

degredo93.

A marca social da infâmia em certos casos era tão grande que causava a exclusão

social do indivíduo. Esta, legalmente, era representada pela expressão morra por isso,

que se acompanhada de outra expressão, morte natural, significava que a exclusão

do condenado se daria pela morte física; seria executado. No entanto, se viesse

isolada, a expressão morra por isso, ou por ello, poderia significar apenas a morte

civil, uma diferenciação do indivíduo dos demais, com a retirada de seus direitos,

benefícios, cargos e privilégios, tornando-o inferior e humilhado perante os outros94.

Essa morte civil por vezes era entendida, de fato, como uma exclusão. O penitente

91 Ibid., p. 872, tít. XXV, § 9. 92 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 170, tít. 49, § 1. 93 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 45. 94 LARA, Silvia Hunold (org.), op. cit., p. 22-23.

34

era afastado de sua terra e mandado para outra, podendo, assim, as palavras morra

por isso serem entendidas como degredo95.

Como foi dito, ser desonrado poderia acarretar limitações ou mesmo a perda de vários

privilégios. O Regimento de 1640 determina as seguintes restrições aos infamados:

[...] os Inquisidores lhes mandarão, depois de abjurarem em público, que não tenham, nem possam ter ofícios públicos, posto que seja sem dignidade, nem jurisdição como são Procuradores, Advogados, Médicos, Cirurgiões, Boticários, Sangradores, Pilotos ou Mestres de navios, nem ainda bombardeiros, e que em suas pessoas, e vestidos não possam trazer, nem tragam ouro, prata, nem pedraria, ou vestido de ceda, nem andem a cavalo; salvo se forem caminhando, nem tragam armas ofensivas, posto que sejam obrigados a tê-las [...]96

Todas elas estão previstas aos classificados como hereges confidentes segundo as

leis inquisitoriais em Dos confidentes. Todos os tipos de distintivos, símbolos ou

qualquer ostentação de riqueza eram vetados aos indignos, pois apenas os que ainda

possuem qualidades podem demonstrar grandeza ou exercer os poderes de mando e

da violência. O próprio andar de cavalo, que a nossos olhos parece algo banal, era

visto como fausto, uma demonstração de riqueza e nobreza, já que apenas os mais

ricos tinham condições de criar esses animais e aprender a cavalgá-los; por isso,

então, proibido aos desonrados.

Se a infâmia fosse muito atroz, ela recaia sobre os parentes do condenado. No

parágrafo seguinte às restrições acima citadas continua o Regimento de 1640:

13. E quanto aos filhos, cujo pai, ou mãe forem condenados pelo santo Ofício, por hereges, ou relaxados à Justiça secular, e bem assim aos netos, que por linha masculina descenderem de seu Avô relaxado, se mandará, que não sejam [...] de quaisquer outros ofícios que sejam, ou se possam chamar públicos [...] nem tragam sobre sua pessoa, nem em seus vestidos, e trajes cousa alguma, que seja insígnia de alguma dignidade, milícia, ou ofício Eclesiástico, ou secular97.

95 PIERONI, Geraldo M., op. cit., p. 45. 96 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 838, tít. III, § 12. 97 Ibid., p. 838, tít. III, § 13.

35

A vergonha do feito nefando é tanta que ela se estende hereditariamente,

permanecendo no sangue e na memória da família, prevendo as mesmas proibições,

além de outras especificadas, aos descendentes do malfeitor.

Mas, se todas essas penas eram comumente comutadas em degredo para os

socialmente elevados, chegamos à outra constatação: o degredo não era considerado

uma pena infamante. Junto a ele temos também as penas pecuniárias (multas em

geral), as penitências espirituais, a abjuração, o cárcere e a reclusão, todas elas não

sendo tão humilhantes perante a sociedade portuguesa moderna. É claro que não ser

infamante não quer dizer que não gerasse desonra ou estigma. Quanto maior o caráter

público das penas, maior era a vergonha perante o corpo social98, bem como a

lembrança que este carregaria dos erros do condenado. Inclusive, muitas das penas

não infamantes eram relevadas pelos inquisidores devido à repercussão pública que

poderiam causar. Assim é dito, em Dos hereges, e apóstatas da santa fé católica

apresentados, sobre os hereges que vão voluntariamente confessar suas culpas ao

Santo Ofício:

[...] E isto mesmo se guardará com os apresentados fora do tempo da graça, que abjurarem na mesa do s. Ofício, aos quais se não fará sequestro em seus bens, nem lhes serão confiscados, por ser assim conveniente em ordem ao bem espiritual, e ao segredo, com que deve ficar suas confissões99.

Por mais que estivesse previsto que certos bens fossem confiscados, ou que fossem

aplicadas multas, isso poderia causar uma divulgação dos erros do réu, que segundo

o julgamento dos inquisidores merecia ser secreto. Sendo os delitos do réu interiores,

ou que ainda não houvessem corrompido nenhum outro fiel, e nem tivessem chegado

aos ouvidos da comunidade, os juízes eclesiásticos achavam por bem manter o

ocorrido em segredo, bastando a sua reconciliação perante a mesa do Tribunal. No

caso do confisco e das multas, mesmo que os motivos não fossem divulgados, o fato

de estar sendo a pessoa punida poderia causar desonra perante a sociedade100,

fazendo com que os juízes preferissem não aplicá-los a certos réus.

98 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 45. 99 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 830, tít. I, § 5, grifo nosso. 100 PIERONI, Geraldo M., op. cit., p. 44-45.

36

Podia-se também sofrer do estigma de ser desterrado. A frequência com que esta

pena foi usada e a mudança de outras, consideradas mais severas, para ela, sugere

que o degredo era a forma mais branda da Justiça punir a maioria dos casos. Afinal,

muitos foram os nobres condenados a degredo para o Brasil, porém mantendo sua

“alta qualidade” nas novas terras. Vasco Fernandes Coutinho, primeiro donatário da

capitania do Espírito Santo, para colonizar as novas terras do Brasil que recebera “[...]

angariou muitos colonos, entrando neste número vários nobres [...]101”. Entre eles

vieram “D. Jorge de Menezes [...] e o seu companheiro D. Simão de Castel-Branco,

ambos fidalgos condenados antes a degredo [...]”102, sabendo-se que o primeiro

recebera uma sesmaria do donatário. Os colonos degredados conseguiam, portanto,

assumir cargos importantes, sem sofrerem por isso grandes entraves103.

Além dos três grupos que formam a base da sociedade colonial, o grupo das mulheres

também recebe um tratamento diferenciado. Atualmente as leis são escritas pensando

em todos os seres humanos como iguais, sendo as diferenças sociais consideradas

exceções à regra de igualdade. Porém, na sociedade colonial portuguesa do XVII esta

lógica é inversa: as diferenças sociais são a regra, o tratamento equivalente uma

exceção. Dessa mesma maneira ocorre com as desigualdades de gênero. Sendo tal

sociedade extremamente patriarcal, os homens naturalmente têm mais direitos que

as mulheres. Tendo menos direitos, as mulheres terão também “[...] menores

obrigações e deveres perante a sociedade”104.

Essa irresponsabilidade da mulher acaba refletindo-se nas leis do período. Quando

confeccionadas, eram direcionadas aos homens e quando se aplicassem às

mulheres, a forma de tratá-las era especificada. Sobre isso, afirma Emília Viotti da

Costa: “[...] Sua personalidade jurídica era diversa da do homem. Quando aplicadas a

mulheres as penalidades são, muito frequentemente, abrandadas. Isso quando elas

não se apresentam totalmente isentas de responsabilidade jurídica [...]”105. A

participação feminina é, então, excepcional, em termos legais.

101 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: em casa de E. e H. Laemmert, 2 tomos, 1877. p. 179. 102 Ibid. p. 180. 103 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 32. 104 COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredos. Revista de História, São Paulo, ano VII, vol. XIII, julho-setembro, p. 3-23, 1956. p. 19. 105 Ibid., p. 19.

37

No Livro V das Ordenações, temos a seguinte colocação sobre as mulheres, após as

primeiras palavras do título Dos que comentem pecado de sodomia e com alimárias:

“1. E esta lei queremos que também se entenda e haja lugar nas mulheres que umas

com as outras cometem pecado contra natura, e da maneira que temos dito nos

homens”106. Outro exemplo que especifica a igual aplicação de uma pena masculina

às mulheres está em Do homem que casa com duas mulheres e da mulher que casa

com dois maridos: “E esta mesma pena haja toda a mulher que dois maridos receber

e com eles casar pela sobredita maneira [...]”107.

No Regimento de 1640, vemos o mesmo tratamento, uma separação entre as penas

masculinas (postas de forma geral) e femininas (colocadas como um adendo). Ao final

de Dos que cometem o nefando crime da sodomia, nos últimos dizeres sobre esse

crime, destinam-se a elas os seguintes castigos:

13. E em caso, que alguma mulher compreendida no crime de sodomia, haja de ser castigada por ele no S. Ofício, ouvirá sua sentença na sala da Inquisição, pelo grande escândalo, e dano, que pode resultar de se levarem a Auto público semelhantes culpas, e será degredada para a Ilha do Príncipe, S. Tomé, ou Angola [...]108.

Percebemos nesse e em outros trechos que é muito frequente, principalmente nas leis

inquisitoriais, o abrandamento das penas dadas ao grupo feminino. Por exemplo neste

referente à Dos confessores: “[...] e sendo mulher, a condenação de galés, que nela

não pode ter lugar, será para S. Tomé, Angola, ou partes do Brasil, por tempo de cinco

até sete anos”109. Novamente fica claro que a suavização das penas acaba,

geralmente, na comutação de degredo para locais mais próximos da metrópole ou

mais fáceis de sobreviver.

O mesmo tratamento menos rigoroso se apresenta a crianças e idosos. As leis

seculares, em Dos degredos e degredados, estabelecem que “[...] os que forem

degredados para os lugares de África que forem de tão pouca idade ou de tanta que

106 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 91, tít. 13, § 1. 107 Ibid., p. 107, tít. 19, § inicial. 108 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 873-874, tít. XXV, § 13. 109 Ibid., p. 837, tít. III, § 8.

38

não sejam para cumprir os degredos nos ditos lugares [...] será mudado o degredo

para Castro-Marim, dobrando-lhes o tempo”110. Aos que não tinham condições de

sobreviver em locais difíceis por ser muito jovem ou muito velho, um degredo interno

era preferível. E sobre as crianças ainda esclarece os inquisidores:

[...] declaramos, que o varão, que for menor de dez anos e meio, e a fêmea de nove e meios, não abjurarão [...] até os anos, que chamam de descrição, que são quatorze ao varão e doze na fêmea, constando [...] que tem entendimento, e são capazes de dolo [...] abjurarão na mesa [...] porque nestes termos a malícia supre a idade, conforme o direito; e tanto que a fêmea for de doze anos de idade cumpridos, e o varão de quatorze, farão abjuração em público, assim como a fazem os de maior idade111.

Logo, as crianças também podiam ser condenadas por heresia112, de acordo com sua

idade e capacidade de discernimento. Antes da primeira idade, rapazes dez anos e

meio e moças nove anos e meio, são consideradas ingênuas, não sendo seus erros

considerados pecados. Quando atingem a juventude, indo da primeira até os quatorze

anos do rapaz e os doze da moça, a malícia começa a aflorar, tendo que ser julgado

cada caso para saber se o jovem tinha ou não a intenção (ou “tenção”, como dizem

os documentos), e a consciência de pecar. Após quatorze e doze, são considerados

adultos em termos jurídicos e punidos como tais.

Os religiosos também são um grupo muito citado nas leis. Como era reservado aos

tribunais eclesiásticos e inquisitoriais julgar os que carregam funções sacras, não há

punições para eles nos código secular. No entanto, o Regimento está repleto de

considerações sobre os eclesiásticos desviados. Eles são divididos em “Clérigos

seculares” e “Religiosos”. Os primeiros são irmãos leigos, membros de Ordens

religiosas, porém não são ordenados como sacerdotes, logo, não podendo ministrar

missas e outras funções. Cometendo o crime de testemunho falso, o clérigo falsário

“[...] será suspenso para sempre das ordens, que tiver e inabilitado pelo [sic] poder

receber as que lhe faltarem, e degredado para as galés, de S. Tomé ou Angola, pelo

tempo que parecer [...]”113. Por serem considerados seculares para efeitos legais,

110 LARA, Silvia Hunold (org.), op. cit., p. 496, tít. 140, § 3, grifo nosso. 111 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 832, tít. I, § 12. 112 Cf. VAINFAS, Ronaldo. (Org.); FEITLER, B. (Org.); LAGE, L. (Org.). A Inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de caso. 1. ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006. 113 SIQUEIRA, Sônia (org.), op. cit., p. 870, tít. XXIV, § 4.

39

esses poderiam sofrer penas vis e tinham que se retratar publicamente, ou seja,

abjuravam em público nos autos de fé. Além disso, se usassem mal de seus benefícios

divinos poderiam ser proibidos de exercê-los ou de ter outros no futuro. Seus irmãos

ordenados, os religiosos regulares, também eram punidos por falsidade: “[...] será

privado para sempre de voz ativa, e passiva, e suspenso das ordens, e terá reclusão

até dez anos no mosteiro mais apartado de sua religião, e nele alguns anos de

cárcere, com disciplinas, e jejuns de pão e água [...]”114. Assim, esses também eram

privados de funções religiosas, podendo ser perpetuamente, mas seu degredo era em

geral para mosteiros longínquos e isolados, com a exigência de jejuns, disciplina,

afazeres humildes e penitências espirituais.

Como último grupo, muito marcante foi o dos cristãos-novos. Após as conversões

forçadas de 1497, a sociedade portuguesa ficou dividida entre cristãos-velhos e

novos. Apesar do termo inicialmente ter sido usado para designar os novos

convertidos tanto do judaísmo quanto do islamismo, na prática ele foi usado apenas

para os conversos judeus e seus descendentes, sendo os antigos seguidores do islã

designados como mouriscos. Perseguir os cristãos-novos foi o motivo da criação da

Inquisição em Portugal e seu principal objetivo até o final do século XVIII. Quase

noventa por cento dos processos inquisitoriais portugueses são de judaizantes115, em

geral ligados aos cristãos-novos, ser cristão-novo era sinônimo de ser judaizante,

assim como ser cristão-velho praticamente excluía a possibilidade desse crime116.

Na legislação não há muitas referências diretas aos cristãos-novos, porém as

punições para os que se apartam da fé e seguem a Lei de Moisés são frequentes.

Nas Ordenações vemos essa menção direta:

Defendemos que nenhum cristão-novo que fosse judeu, se vá, nem passe de nossos reinos para terra alguma de mouros, sob pena de perder toda a sua fazenda, e ser cativo, sendo tomado no próprio ato de sua ida, ou em qualquer outro ato, por que conhecidamente pareça ele se querer ir ou fugir para as ditas partes contra esta defesa117.

114 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 870, tít. XXIV, § 4. 115 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972. p. XXI. 116 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 343. 117 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 345, tít. 111, § inicial.

40

Aqui não há crime contra a fé e sim o da desobediência das leis, sendo ressarcido

apenas o Estado e não a opinião pública. Porém no Regimento de 1640 notamos um

ataque mais direto contra os judaizantes. O judaísmo na maioria das vezes vem

destacado como um exemplo de heresia: “[...] todas as pessoas de qualquer estado,

e condição que sejam, pelo crime de heresia, e apostasia [...] se vierem apresentar se

na mesa do Santo Ofício [...] e confessarem nela culpas de judaísmo, ou de qualquer

outra heresia [...]”118. O crime de praticar o judaísmo é enfatizado dentre as várias

outras práticas religiosas correntes no período, mostrando que a preocupação dos

inquisidores em combater essa religião se sobressaía em relação às outras. Em certos

trechos, as crenças judaicas vêm associadas a termos pejorativos: “8. Se o réu

confessar as blasfêmias, e juntamente afirmar, que as disse, por viver apartado da fé,

e ter crença na lei de Moisés, ou em alguma ímpia, e danada seita [...]”119. Em Dos

negativos, o local sagrado de reunião dos judeus, a sinagoga, em outras partes é

usado para designar genericamente qualquer local de ensino de heresias: “4. E sendo

os negativos Heresiarcas, ou Dogmatistas [...] as casas, em que se provar, que faziam

sinagoga, e ajuntamento para ensinarem seus erros [...]”120. Além de tudo isso, em

algumas partes a referência ao cristão-novo é feita indiretamente por meio do termo

“pessoa suspeita”. Isso é sugerido por essa expressão vir como uma oposição, ou

mesmo uma categoria inferior, a da pessoa cristã-velha121.

Com esses exemplos, vemos que os seguidores ocultos do judaísmo representavam

uma ameaça constante e muito prejudicial à fé cristã, no pensamento coletivo colonial,

e esse grande medo recaiu sobre os descendentes distantes dos antigos judeus

ibéricos, os cristãos-novos. Estes,

“[...] como antes deles os judeus, foram acusados de serem ‘diferentes’ dos cristãos, diferentes na conduta e no caráter, devido a discrepâncias inatas. De nada adiantara a conversão, o cristão novo continuava marcado pelas características associadas aos judeus [...]”122.

118 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 829, tít. I, § 1, grifo nosso. 119 Ibid., p. 852, tít. XII, § 8, grifo nosso. 120 Ibid., p. 833, tít. II, § 4, grifo nosso. 121 Ibid., p. 849, tít. X, § 6 e 7. 122 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972. p. 33.

41

Mesmo com a conversão e a expulsão, o preconceito contra o judeu não desapareceu,

ele apenas foi transferido para os convertidos dessa religião. Porém, mesmo que a

crença de que tais conversos continuaram a praticar o credo de seus ancestrais tenha

persistido mais de dois séculos, é fato que as incessantes perseguições e o passar

de longos anos tornou inviável que essa religião fosse ainda praticada na íntegra. Os

poucos que continuaram com as práticas judaicas conheciam e perpetuavam apenas

alguns rituais, afinal, não havia acesso a muitos anos a essa religião, não podendo

ser eles conhecedores123.

São inúmeros os atos considerados crimes nessa sociedade, e vários punidos com o

degredo. Pelos exemplos citados, vemos que a blasfêmia, a heresia, o judaísmo, o

islamismo, o testemunho falso, a bigamia, a feitiçaria, a sodomia, a negação dos

crimes já provados, a fuga do reino sem autorização, ajudar os transgressores da fé,

atrapalhar ou ofender os oficiais de justiça, todos esses e outros feitos poderiam,

dependendo das circunstâncias, ser punidos com o degredo, “de qualquer estado ou

condição que fosse” a pessoa. Esta gama enorme de limites impostos às ações dos

indivíduos é para nós algo muito estranho e quase inconcebível de ser aplicado,

tamanha é a severidade dessas leis para nosso olhar contemporâneo. Muito dos

castigos são desproporcionais para nós; em nossa liberdade de expressão e da

valorização das diversidades culturais, é muito difícil compreender como tantas ações

que são hoje banais, e mesmo parte do princípio de liberdade, eram veementemente

condenadas. Contudo, não podemos olhar para as ações passadas apenas no intuito

de negá-las. Para não cair ou perpetuar esse anacronismo, precisamos, pelo

contrário, humildemente tentar compreender seus motivos. Só assim enxergaremos a

necessidade que essas autoridades viam no rigor de suas leis, único meio de manter

intactos a ordem nacional, o poder real e a fé cristã.

E era a própria vontade divina que atribuía a cada um, Igreja e Estado, o poder de

corrigir os erros que dissessem respeitos a suas respectivas áreas de atuação; ir

contra a lei era ir contra Deus e toda a ordem que Ele planejou para os seres

humanos124. Cada Justiça sabia os crimes que cabia a sua jurisdição, porém existindo

123 BOXER, Charles R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 280. 124 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 44.

42

alguns deles que podiam ser julgados por ambas, seja em separado ou em conjunto.

Essa interação entre os tribunais seculares e inquisitoriais foi fundamental para

estender ao máximo o poder do rei sobre a vida de seus súditos.

A interdependência das Justiças é bem visível em vários pontos nas legislações

punitivas. Nas leis filipinas, logo nas primeiras palavras do título inicial do Livro V,

temos a seguinte explicação: “O conhecimento do crime da heresia pertence

principalmente aos juízes eclesiásticos”125. Todos os suspeitos de “não se sentirem

bem com a fé” e, por isso, levantarem presunção, seja leve ou veemente, de estarem

se apartando da verdade cristã deveriam ser encaminhados aos julgadores capazes

dessa análise, portanto aos religiosos, em especial aos inquisidores. As leis seculares

em seguida continuam: “E porque eles não podem fazer as execuções nos

condenados no dito crime por serem de sangue, quando condenarem alguns hereges,

os devem remeter a nós com as sentenças que contra eles derem [...]”126. Mesmo que

o processo tenha se iniciado na Justiça secular e enviado para melhor julgar o réu nos

tribunais da Inquisição, esta não podia aplicar as penas de caráter material que

julgassem necessárias para corrigir os erros do condenado, ficando isso a cargo do

braço secular. Após determinar as penas de caráter espiritual, como o uso do hábito

penitencial, a reclusão, o cárcere, a abjuração e a execução de penitências espirituais,

o criminoso era reenviado aos juízes reais para que estes aplicassem as penas

materiais, como as execuções dos castigos físicos, as condenações ao degredo ou a

morte e o confisco de bens.

É justamente por essa necessidade de recorrer à Justiça real que as menções a esta

são inúmeras nas leis inquisitoriais. Nunca vemos expressamente nessas leis que o

réu deverá ser morto, mas sim que ele sofrerá “[...] relaxação na justiça secular [...]”127,

ficando claro que este será entregue para ser executado segundo as leis do reino. Em

outros pontos essa ação conjunta é ainda mais evidente, como nos crimes de

sodomia: “[...] quanto às penas, poderão condenar, nas que merecerem por suas

culpas, podendo também usar das que por direito civil; e ordenações do Reino estão

125 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 55, tít. 1, § inicial. 126 Ibid., p. 55-56, tít. 1, § inicial. 127 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 829, tít. I, § 1.

43

impostas aos que cometem esse crime [...]”128. Aqui vemos com palavras muito claras

que ambas as Justiças tinham determinações diferentes para um mesmo crime,

devido às obrigações diferentes que tinham na correção da sociedade, mas que uma

frequentemente recorria à outra no desenrolar do processo.

Isso ocorria principalmente quando uma das Justiças não tinha determinações sobre

uma pena em especial ou não era de sua alçada regular sua aplicação. Um exemplo

é o caso das multas ou dos confisco de bens determinados pelo Regimento: “[...]

sejam relaxado à Justiça secular, e seus bens confiscados na forma da lei do reino”129.

Como foi dito, não era encargo do Santo Ofício aplicar as penas que envolvem o

mundo físico, sejam os corpos vivos, sejam os objetos, apenas determiná-las, como

é feito no confisco de bens, em que não é estipulado um valor exato a ser confiscado,

ficando isso a cargo do braço secular. Em outra parte, referente aos negativos, os

inquisidores também direcionam a análise dos réus às leis seculares: “[...] será

relaxado à Justiça secular, conforme a disposição de direito [...]”130. Vemos com os

trechos citados que era comum o Tribunal recorrer às leis seculares, numa clara

dependência da Inquisição em relação ao Estado, sobretudo usando a expressão

anterior, “conforme as disposições de direito”131.

Da forma como colocamos até agora, essa relação judicial entre Inquisição e rei

parece ser sempre equilibrada. No entanto, ela também apresenta inúmeros conflitos,

que são igualmente identificados na legislação. No geral, para ser julgado pelo Santo

Ofício o crime tinha que ser considerado herético, ou seja, apresentar alguma afronta

à fé, aos dogmas ou à religião, e os casos vistos como supertições ou ofensivos à

moral ficavam para os tribunais régios. Porém, essa divisão não é tão fácil na prática

e mesmo nas leis vemos uma confusão. No título que trata Dos feiticeiros nas

Ordenações é dito:

1. E isso mesmo qualquer pessoa que, em círculo ou fora dele, ou em encruzilhada, invocar espíritos diabólicos ou der a alguma pessoa a comer

128 Ibid., p. 871, tít. XXV, § 1. 129 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 872-873, tít. XXV, § 9, grifo nosso. 130 Ibid., p. 833, tít. II, § 1, grifo nosso. 131 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 61.

44

ou a beber qualquer coisa para querer bem ou mal a outrem, ou outrem a ele, morra por isso morte natural132.

É fácil de imaginar uma situação em que essa linha tênue entre superstição e heresia

possa causar conflitos de jurisdição com a pena de “invocar espíritos diabólicos”: se

alegassem que certo indivíduo estivesse numa seita herética, fazendo rituais de

invocação de espírito diabólicos e pactos com o Diabo, muito mais provável é que

fosse julgado pela Inquisição. Além disso, conforme crescia a Inquisição, maior era a

sua reivindicação de julgar qualquer crime que tivesse a suspeita de heresia, mesmo

que pequena. Tal fato expõem os inquisidores em Dos feiticeiros, sortilégios,

adivinhadores, e dos que invocam o demônio, e tem pacto com ele, ou usam da arte

de astrologia judiaria:

1. Ainda que conforme o direito, dos crimes de feitiçaria, sortilégios, adivinhações, e quaisquer outros desta mesma espécie, pudessem conhecer os Inquisidores somente quando em si continham heresia manifesta; com tudo pela Bula de Sixto V. lhes está cometido o conhecimento de todos estes crimes, posto que não sejam heréticos; assim porque ao menos não carece de suspeita de heresia, como pela superstição, que há neles tão contrária à Religião cristã. [...]133.

Estes dizeres deixam transparecer os conflitos entre as Justiças, cada uma exigindo

para si o direito de punir certos tipos de crimes que julgavam ser de sua competência.

As leis seculares dão vários exemplos de supertições e seus castigos

correspondentes, todas elas, para os inquisidores, contendo heresia. Por isso, vemos

no trecho citado uma flagrante tentativa do direito inquisitorial de sobrepor-se às

determinações reais, usando como escudo às ordens papais.

No crime de heresia, encontramos esse mesmo conflito entre os direitos. Ao tratar dos

que abandonam a fé cristã, são estas as palavras das Ordenações Filipinas:

4. Porém, se algum cristão leigo, quer antes fosse judeu ou mouro, quer nascesse cristão, se tornar judeu ou mouro, ou a outra seita e assim lhe for provado, nós tomaremos conhecimento dele e lhe daremos a pena segundo direito. Porque a Igreja não tem aqui que conhecer se erra na fé ou não.

132 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 63, tít. 3, § 1, grifo nosso. 133 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 871, tít. XXV, § 1, grifo nosso. 133 Ibid., p. 854-855, tít. XIV, § 1, grifo nosso.

45

E se tal caso for que ele se torne a fé, aí fica aos juízes eclesiásticos darem-lhe suas penitências espirituais134.

Nessa explicação o Estado reivindica o direito de punir os que desistem do

cristianismo, entendendo-se que não são mais cristãos, portanto, não estariam sob a

autoridade dos religiosos; o próprio governo tenta impor qual é sua área de atuação e

qual a do clero. No Regimento de 1640, os eclesiásticos dão uma resposta legal a

esse ataque secular no título Dos apóstatas, arrenegados, hereges estrangeiros, e

infiéis, que delinquem neste reino, num visível embate entre jurisdições punitivas,

causando incoerências e confusão no leitor:

8. E acontecendo haver provas contra os tais culpados de que arrenegaram exteriormente, de nossa santa Fé Católica, sem violência, medo, ou mau tratamento, antes que de sua livre vontade se passaram à seita de Mafoma, fazendo seus ritos e cerimônias; se procederá contra eles na forma em que se deve proceder contra os mais hereges, e apóstatas da nossa santa Fé135.

Afirmando que todo arrenegado deve ser punido como são os hereges e apóstatas,

os inquisidores exigem, ao mesmo tempo, que esses sejam julgados pela Inquisição,

e não pela Coroa, como nas próprias Ordenações está posto. Outra observação fazem

os juízes eclesiásticos nas leis do Tribunal: “[...] E se o arrenegado, depois de ser

preso, ou remetido pela justiça secular ao S. Ofício [...]136. Nesta frase os idealizadores

do Santo Ofício deixam a entender que é de obrigação dos juízes da Coroa entregar

os réus acusados de arrenegarem a fé que estiverem em seu poder para os

investigadores capazes de analisar os crimes contra o catolicismo, ou seja, aos

inquisidores; afinal, todo pessoa batizada é considerada, para fins punitivos, um fiel

cristão, mesmo que desista de seguir essa religião.

Por vezes, o Regimento de 1640 não nega totalmente a punição dos crimes que

possam conter heresia pela Coroa. Em alguns crimes apenas fazem um esclarecido

de seu papel:

134 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 57, tít. 1, § 4, grifo nosso. 135 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 845, tít. VII, § 8, grifo nosso. 136 Ibid., p. 844, tít. VII, § 2.

46

14. E quando os tais blasfemos heréticos, forem castigados pela justiça secular, serão outra vez examinados na mesa do S. Ofício [...] por razão da suspeita de heresia [...] mas estando os blasfemos suficientemente punidos pela Justiça secular, se lhes não dará de novo pena corporal, porém farão abjuração, e terão as penitências espirituais, que parecer que convém137.

É reconhecida a autoridade secular de julgar os blasfemos, mas mesmo assim suas

culpas devem ser analisadas pelo Santo Ofício para que recebam uma correção

completa, com os devidos castigos sociais, pelo escândalo, e espirituais, pela ofensa

à Deus e às coisas divinas.

Podemos dizer que as diferenças mais diretas entre os dois documentos que

comparamos são as penas, em especial os locais de degredo previstos. Aqui temos

os crimes denominados mixti fori, ou seja, que são regrados por ambos os códigos, e

segundo os títulos por nós analisados, as penas ordinárias dadas pelas Ordenações

são mais rígidas do que as do Regimento. As leis inquisitoriais, em geral, apresentam

o degredo para as galés como pena padrão na maioria dos delitos, acompanhada

pelos açoites, o auto de fé, a abjuração e outras, mas as variações dos locais de

degredo não são grandes quando há atenuações. Na maioria dos casos ocorre

apenas a diminuição do tempo de degredo ou é trocado para o Brasil, enquanto que

nas Ordenações há uma gradação mais sistemática dos degredos, diminuindo-se o

tempo ou mudando-se o local conforme as atenuações.

Apesar de ser difícil comparar as penas previstas pelas Justiças com critérios exatos,

devido aos objetivos diferenciados, vemos alguns pontos em que essa interligação é

mais forte. Para o delito de testemunhar falsamente, as leis filipinas determinam que

os que dão tal testemunho ou induzem alguém a fazê-lo perante os oficiais de justiça,

caso o crime do réu seja punido com a morte, os falsários terão a pena de morte

natural138. Já no Regimento, a pena ordinária para jurar falso na mesa do Santo Ofício

ou corromper alguém a isso é de degredo para as galés de cinco a dez anos139. Mas

quando a corrupção da testemunha falsária envolve o suborno, as legislações se

aproximam: o indivíduo que pagar outro para mentir a favor do réu em crime de morte,

137 Ibid., p. 845, tít. VII, § 8. 138 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 185-186, tít. 54, § inicial. 139 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 869, tít. XXIV, § 1.

47

segundo as Ordenações, será degredado dez anos para África140; segundo o

Regimento, o degredo será para “um dos lugares das conquistas do reino” de cinco a

dez anos141. Degredos semelhantes, porém, no caso do Regimento, podendo ser a

punição mais grave (se for para o Brasil) ou mais branda (se for para a África por cinco

anos) que a das leis seculares.

No crime de resistir a oficial de justiça com injúrias, os degredos também são

diferentes. O Código Filipino define que a resistência contra oficial de justiça, sem o

uso de armas e sem causar ferimentos a esse, é punida com o degredo para a África

e o tempo será de acordo com o cargo ofendido: dez anos para desembargador, seis

para corregedor, quatro para juiz de fora e dois para juiz ordinário142. Nas leis do

Tribunal essa pena é mais generalizada: todo pessoa que atrapalhar o ofício dos

ministros da Inquisição com palavras ofensivas será degredado para as galés a

arbítrio dos inquisidores, não havendo especificações sobre situações diferenciadas

que agravariam ou suavizariam essa pena, além, é claro, da frequente frase de que

serão levados em conta a qualidade da pessoa e circunstâncias da culpa143.

As comutações de degredo dos nobres também divergem. Nas leis seculares, as

penas que envolvem açoites ou degredo para o Brasil, quando adequadas para os

nobres, são, em geral, convertidas em degredo para a África, como em alguns delitos

de feitiçaria: “E se for escudeiro ou daí para cima, seja degredado para a África por

dois anos [...]”144. Verificamos no Regimento que os locais e tempos de degredo para

os privilegiados são, na maioria, imprecisos: vão para Angola, São Tomé ou partes do

Brasil, como nos casos dos feiticeiros confidentes145.

Sobre as mulheres, temos nas Ordenações a expressa proibição de enviá-las para a

África: “E as mulheres não serão condenadas em degredo para a África, por caso

algum que seja, mas serão degredadas para outras partes [...]”146. Para essa

140 LARA, Silvia Hunold (org.), op. cit., p. 187, tít. 54, § 1. 141 SIQUEIRA, Sônia (org.), op. cit., p. 870, tít. XXIV, § 2. 142 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 170-172, tít. 49, § inicial-3, passim. 143 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 865, tít. XXI, § 2. 144 LARA, Silvia Hunold (org.), op. cit., p. 67, tít. 3, § 3. 145 SIQUEIRA, Sônia (org.), op. cit., p. 855, tít. XIV, § 3. 146 LARA, Silvia Hunold (org.), op. cit., p. 496, tít. 140, § 2.

48

sociedade elas eram frágeis para aguentar as dificuldades das terras hostis, por isso

o degredo externo era muitas vezes relevado; eram mais enviadas para Castro-Marim,

no interior de Portugal. Os degredos inquisitoriais previstos para as mulheres, assim

como para os nobres, também são vagos: caso caíssem no “nefando crime da

sodomia”, eram enviadas para Ilha do Príncipe, São Tomé e Angola147. Os

inquisidores também comutavam muitas das condenações de mulheres para o Brasil

por acharem a viagem e o local impróprios para elas. Não só eles como muitos

pensavam dessa forma, inclusive as rés. Muitas imploravam para que não fossem

para o Brasil, pois diziam que aquelas terras cheias de pecados só aumentariam os

males dos degredados, ao invés de purgá-los. E muitas tiveram seus degredos

mudados com esse argumento, ideia corrente entre os próprios inquisidores148.

Apesar de toda sistematização das leis aqui analisadas, é preciso estar ciente de que

na prática real de ambas as Justiças, eram vários os fatores que atenuavam ou

agravavam as penas. Todos esses pontos que eram considerados no julgamento real

dos réus, tanto seculares quanto inquisitoriais, são muito bem discutidos pelos

estudos existentes que tem como base os processos individuais, ou seja, usam como

fonte principal os registros que se preservaram do julgamento de pessoas perseguidas

pelas instituições judiciárias, fazendo uma ótima analise de casos. Dois fatores nesses

estudos são importantes para nós: a comutação das penas para incentivar a

colonização; a presença do perdão real, ambos visíveis na legislação.

Com o aumento da incidência do degredo nas leis filipinas, criaram-se nelas títulos

específicos para organizar essa prática. Neles vemos como a descoberta de novas

terras, culminando com o Brasil, impulsionara o uso do exílio. Assim dizem em Dos

degredos e degredados: “E navio algum não partirá de Lisboa para o Brasil sem o

fazer saber ao regedor da Casa da Suplicação, para ordenar os degredados que cada

navio há de levar [...]”149. Todo navio que fosse para terras brasileiras deveria

obrigatoriamente levar degredados, podendo ser impedido caso desobedecesse. Uma

147 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 865, tít. XXI, § 2. 148 SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 96-97. Cf. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 149 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 497-498, tít. 140, § 7.

49

clara demonstração de incentivo estatal ao envio de pessoas para viverem, mesmo

que arbitrariamente, nas novas terras, tão ameaçadas pelos outros reinos

interessados em povoá-las. Para desenvolver os vastos domínios coloniais, houve um

“[...] aproveitamento racional dos condenados, vistos como mão de obra móvel,

passível de ser colocada a serviço do reino sob as mais variadas formas”150.

Além dos inúmeros parágrafos que indicam diretamente o degredo como pena, muitas

das condenações às galés ou à morte foram comutadas para o degredo externo. A

grande necessidade de habitar o quanto antes as imensas terras do Brasil fizeram

com que a Coroa relevasse muitas dessas condenações para, então, usar melhor do

corpo desses súditos incorrigíveis como colonos; mesmo porque o exílio no Brasil era

a punição mais grave depois dessas, podendo ser aplicado quando se atenuassem o

envio para as galés ou a execução do réu. Até nos crimes em que a condenação ao

degredo não era explícita, muitas vezes se usavam das brechas da lei para que em

certa interpretação ela fosse possível151.

A Inquisição também mudou a pena de muitos réus para o degredo para o Brasil.

Como vimos, vários delitos não tinham o desterro para as terras brasileiras como fim

e mesmo alguns inquisidores não tinham este local como o ideal para se purgar os

desvios da fé. Apesar de tudo, o Estado português incentivou o Tribunal a utilizar

dessa pena com mais frequência. Numa época de frequentes guerras, sobretudo pela

manutenção dos novos territórios conquistados no além-mar, é muito provável que

“[...] a Inquisição cedesse às pressões do Estado e concordasse em despejar sobre o

solo colonial boa parte de seus penitenciados [...]”152.

Alguns aspectos dessa colonização forçada do Brasil não são tão evidentes num

primeiro olhar. Nessa situação está o degredo por dívida. Sobre ele as Ordenações

Filipinas determinam, no título Da maneira que se terá com os presos que não

puderem pagar às partes o em que são condenados: “4. E sendo os ditos presos

150 TOMA, Maristela. História, legislação e degredo em Portugal. Justiça & história, Porto Alegre, v. 10, n. 5, p. 51-92, 2005. p. 27 (paginação de acordo com a versão da internet). 151 COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredos. Revista de História, São Paulo, ano VII, vol. XIII, julho-setembro, p. 3-23, 1956. p. 8-10. 152 SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 99.

50

condenados em dinheiro somente por algum crime sem degredo [...] serão levados ao

Brasil e lá estarão até que ganhem e paguem [...]”153. Os devedores, então, eram

mandados para o Brasil até conseguirem pagar. Porém, é evidente que, se presos

como devedores na metrópole, dificilmente conseguiriam esses degredados pegar na

Colônia os custos da nova vida e da antiga, visto a situação difícil de várias capitanias,

a maioria dada mais a subsistência do que ao enriquecimento. Assim, mesmo não

tendo degredo em suas condenações, elas acabam equivalendo ao degredo perpétuo,

pois muito provável é que não conseguissem pagar.

Outros degredados mandados para o Brasil temporariamente, sofreram desse mesmo

dilema. Apesar da esperança de retornar após cumprirem o tempo de degredo, eles

deveriam custear a sua volta, o que muitos não conseguiam. Problemas como a

distância da metrópole, a dificuldade de transporte e o preço alto do embarque para a

volta, desencorajavam muitos condenados a degredo temporário, fazendo sua estadia

no Brasil se manter além do tempo previsto pela lei. Logo, o degredo inicialmente

temporário acabava se convertendo em perpétuo154.

Curiosamente, muitos degredados preferiam não voltar ou pediam para ir para o

Brasil155. A distância entre a metrópole e os governos periféricos fazia com certas

regras não chegassem às terras recém-descobertas. Os cristãos-novos, vários deles

degredados, viram nas colônias uma espécie de “Terra Prometida”156. Os

impedimentos de “pureza de sangue” previstos por lei para vários cargos e privilégios

eram frequentemente burlados no além-mar, o que atraiu muitos convertidos

perseguidos em Portugal157. Com a Inquisição foi semelhante, como conclui o

historiador inglês Charles Boxer: “[...] A ação do Santo Ofício foi, portanto,

relativamente branda no Brasil, que acabou se tornando, sem dúvida, um abrigo para

milhares de cristãos-novos [...]”158. Não tendo no Novo Mundo a mesma estrutura e

153 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 492, tít. 139, § 4. 154 COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredos. Revista de História, São Paulo, ano VII, vol. XIII, julho-setembro, p. 3-23, 1956. p. 10. 155 PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 86. 156 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972. p. XVIII. 157 BOXER, Charles R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 281-282. 158 Ibid., p. 282.

51

poder, suas ordens não eram seguidas a risca, deixando os dissidentes dos dogmas,

sejam cristãos-novos ou velhos, livres para exercer suas práticas.

Outro fator marcante para a mudança das penas no Antigo Regime é o perdão real.

Abrandar as penas ou perdoar inteiramente os condenados eram práticas

constantemente usadas pela Justiça real no esforço de legitimar os regimes

monárquicos. Ao tratar em especial das monarquias da Península Ibéria, o autor

Hespanha faz importantes colocações sobre o direito de perdoar do soberano:

[...] a ordem penal legal era pouco efetiva, deixando escapar impunida ou perdoada a esmagadora maioria dos delitos. [...] Parece, então, que a função do ius puniendi se esgotava, sobretudo, no plano ideológico, promovendo uma certa imagem do rei: não tanto a imagem do rei disciplinador e justiceiro, mas antes a do rei misericordioso que, tal como Deus, ama e perdoa [...]159.

Esta seria a principal maneira de atuar da Coroa, baseando-se mais no perdão do que

no castigo rígido e exemplar, dando a mercê do perdão aos que mereciam. Assim, a

posição do rei é dupla na sua função de garantir a ordem: a de defensor das leis; a de

superior a elas, podendo suavizar as penas quando julgar necessário.

Este superioridade real ante as leis aparece no Regimento de 1640. Assim dizem os

inquisidores no caso do confisco de bens do herege:

[...] e se parecer aos Inquisidores que, vista a qualidade da pessoa, o tempo o modo, e circunstâncias da confissão lhes devem ser remetidos seus bens, ou alguma parte deles, farão sobre isso consulta, que enviarão com os autos ao Conselho geral, para nele se determinar, se convém pedir a sua Majestade, que lhe faça mercê ao réu de lhe perdoar os bens, que tinha

perdido, ou alguma parte deles160.

Mesmo o réu tendo culpas atrozes a ponto de perder seus bens, se fosse da vontade

da Coroa estes poderiam ser devolvidos. O rei podia mudar a punição, principalmente

dos nobres, mesmo que a legislação previsse uma pena mais grave.

159 HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal - séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 489. 160 SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. p. 830, tít. I, § 5.

52

Seguindo essas ideias, o perdão para os condenados à morte natural ou às galés

muitas vezes se traduzia em degredo. Ser degredado pelo rei após a lei definir a pena

capital era visto, tanto pelos que eram perdoados, quanto pela sociedade portuguesa

como um todo, como um ato de misericórdia do soberano. Este era maior que as leis

e, como um pai para seus súditos, perdoava seus erros ou suavizava seus castigos.

Perdão afirmava e aumentava o poder do monarca, além de permitir o aproveitamento

desses súditos como degredados.

4. CONCLUSÃO

Com a comparação feita por este trabalho entre as Ordenações Filipinas e o

Regimento da Inquisição de 1640, junto às pesquisas já feitas sobre o degredo,

constatamos a frequente interação das Justiças secular e inquisitorial dentro do

sistema punitivo do império português. Durante todo o processo de punição dos

criminosos, o réu transitava de uma Justiça para a outra, de acordo com a correção

que merecia, ora espirituais (quando ameaçava os fundamentos da Igreja), ora sociais

(quando ameaçava os padrões aceitos pela sociedade). De acordo com suas culpas,

poderia, pelo mesmo delito, ser julgado por uma ou outra, ou ainda por ambas ao

mesmo tempo, quando seus atos ofendiam tanto a sociedade como a religião. E

dentro dessa articulação (conflitante, às vezes) entre Estado e Igreja, cada um tinha

seu papel definido, mas os dois seguindo a vontade divina.

Nessa luta incessante, vemos embates entre autoridades religiosas e seculares. Em

sua ânsia de ampliar seu poder por meio do direito de punir, o rei e a Inquisição

entraram em vários conflitos de jurisdição, cada um tentando impor o seu modo de

julgar os crimes mixti fori e, assim, fortalecer sua autoridade perante o corpo social.

Apesar dos conflitos, a confluência foi a característica desse sistema misto, cada

Justiça recorrendo à outra quando o julgamento de certo delito não te dizia respeito.

Mas o equilíbrio desses poderes não era exato: o Estado foi maior que a Inquisição,

pois ela só existia pelo auxilio constante que os reis lhe davam, tendo que ceder

muitas vezes às suas vontades. E isso se mostra claramente na colonização através

53

do degredo, no qual a Inquisição muitas vezes teve que ceder às ordens do Estado

de condenar mais pessoas ao degredo para o Brasil, que, embora fosse visto como

local ideal para os corrompidos purgarem suas penas, era também visto por muitos

como local de perdição e de pecado, impróprio para reabilitar os desviados da fé,

posição compartilhada por muitos inquisidores.

Mas quem foram, então, esses culpados mandados para tão longe? Quem foram os

degredados? Como vimos, foram várias as pessoas punidas, membros de todos os

grupos sociais portugueses do século XVII: fidalgos, cavaleiros, escudeiros, pessoas

comuns, crianças, idosos, mulheres e religiosos; não importava o grau social ou o

título de nobreza, todos podiam sofrer e sofreram o degredo. Como afirma Pieroni:

“[...] De uma maneira ou de outra, nobres e pessoas comuns, todos foram punidos. É

verdade que os fidalgos escapavam do açoite, mas raramente conseguiram evitar o

degredo [...]”161. Constatamos, com isso, que ninguém fugia do degredo. Por mais que

os condenados fossem nobres, o degredo, dentro do sistema judiciário lusitano, era

uma das penas mais brandas ou a saída mais suave para um crime grave, sendo,

muitas vezes, a forma mais misericordiosa do rei perdoar um criminoso.

Outra conclusão que tiramos da análise das penas portuguesas é que a divisão e a

desigualdade sociais eram naturais dentro dessa sociedade. Estabelecida por Deus e

protegida pelas leis, esta era a regra que sustentava a ordem social: os indivíduos

eram diferentes e, por isso, devem receber castigos também diversos. Para cada

grupo eram reservadas punições específicas, de acordo com a posição que ocupasse

o réu dentro da hierarquia social. Por isso, as penas são adaptadas conforme a

“qualidade” da pessoa julgada, sendo, na maioria das vezes, mais leves para as

“honradas” e mais severas para as “vis”.

Porém, notamos igualmente que estes privilégios que os mais abastados tinham não

eram tão inacessíveis. Muitos que se associavam com fidalgos e cavaleiros, como os

escudeiros e os criados dos nobres, recebiam o direito de não sofrerem infâmia. O

próprio critério de “nobreza” pode ser questionado, pois o privilégio de não ser

humilhado se estendia, nessa sociedade, inclusive a peões que criassem cavalos.

161 Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 46.

54

Notamos que vários foram os crimes que tiveram o degredo como punição. Em

conjunto ou em conflito, é fato que Estado e Igreja usaram largamente desse

instrumento punitivo, que era acionado em vários delitos: blasfêmia, bigamia,

sodomia, resistência aos oficiais de justiça, heresia, arrenegar a fé cristã, testemunhar

falso ou induzir alguém a fazê-lo, judaísmo, islamismo, ajudar ou dar abrigo à herege

ou fugitivo, sair do reino sem autorização, negar culpas já provadas pela justiça,

feitiçaria ou qualquer prática mágica e muitas mais. Tais ações foram todas punidas

por serem consideradas ameaças ao corpo social e religioso.

Observamos, com todas essas colocações, que o degredo foi fundamental dentro da

política portuguesa setecentista, convertendo-se numa das principais punições.

Crescendo o império, aumentou a necessidade de colonos para povoá-lo e o uso dos

degredados para suprir essa necessidade foi cada vez maior. Temos, assim, um

grande número de crimes que passam a ser punidos com o degredo. Com isso, duas

características do degredo no século XVII se constroem ao mesmo tempo: o degredo

passa a ser um castigo comum e seu uso foi direcionado pela colonização.

Sendo algo tão comum, mesmo que muito mal visto, voltamos à pergunta feita pelos

estudos do degredo: seriam esses criminosos “[..] da mais vil e perversa gente do

Reino [...]”162, como afirmou o padre Manoel da Nóbrega? Segundo nossas

constatações, para o entendimento de nossa época, a maioria deles não seriam

criminosos. Muitos eram degredados por praticarem religiões proibidas ou por

tentarem expressar suas opiniões sobre os dogmas católicos, outros recebiam o exílio

por ações que iam contra a moral social, muitas vezes relecionadas a vida afetiva e

amorosa. Havia uma enorme restrição sobre a vida cotidiana, não existindo liberdade

de expressão ou religiosa, nem eram respeitadas as práticas culturais diferenciadas.

Mesmo as relações entre os indivíduos eram fiscalizadas, podendo alguém ser

degredado por se envolver com outro do mesmo sexo, como ocorriam com os

sodomitas. Desse modo, esse controle da sociedade parece aos olhos de nossa

época, um tanto exagerado, punindo com o exílio feitos que hoje não são entendidos

como crimes. Portanto, não são os degredados criminosos perigosos como hoje

162 Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 32.

55

entendemos, mas sim pessoas de todos os tipos, sejam nobres ou comuns, todos

transgressores das rígidas leis do século XVII.

Grande parte de todo esse sistema punitivo foi graças ao Santo Ofício, vetor da

renovação do catolicismo e das ideias modernas. A missão da Inquisição foi dupla:

conservar a fé católica e corrigir os vícios da Cristandade. Por um lado, foi uma das

formas de manter a tradição católica. Mesmo sua maneira de entender seus inimigos

foi tradicional, já que a classificação dos delitos pelo Tribunal continuou seguindo os

manuais medievais sobre heresias, sempre seguindo a “[...] ideia de que não existem

novas heresias, mas sim novos rostos de antigos erros [...]163”. De outro lado, vemos

sua missão de reformar o povo cristão. Para tanto, tentaram corrigir os erros de todos

os adeptos da fé romana, mesmo dos membros eclesiásticos.

Dessa missão de correção derivou-se a perseguição dos inimigos da fé, mesmo que

muitos deles fossem supostos. Justificada por sua obrigação de perseguir, a

Inquisição foi vetor também de uma intolerância que em tempos anteriores nunca

havia atingido tamanha proporção. Cresce no Período Moderno um fervor religioso e

sua associação direta com os Estados Modernos, nascendo disso uma política cada

vez mais centralizada de perseguição aos contrários à fé, à moral e à ordem

sociopolítica dos reinos. Institui-se, assim, o preconceito contra o “herege”164.

Ao final do século XVIII, toda essa conjuntura começará a mudar. Ambos os códigos

são questionados e começam a cair em desuso. Quando o império português passa

a ser regido pelo Marquês de Pombal, uma onda de reformas ocorre. A ideia geral

desse período foi de eliminar as outras instâncias de poder que estavam presentes no

Império e que eram autorizados a atuar livremente pelo governo real. Porém, essa

política pluralista por vezes gerava muitos empecilhos ao Estado quando essas faziam

frente a ele ou retardavam a eficiência de suas ações. Por isso, procurou-se centralizar

ainda mais o Estado e eliminar os poderes paralelos, como os jesuítas e a Igreja como

um todo, ao contrário do que fez o Antigo Regime.

163 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 49. 164 NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972. p. 32-33. Cf. Id. A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1992. Coleção Tudo é História, v. 49.

56

Fruto da nova forma de pensar o governo, mais centralizado e secular, e da grande

importância que ganham as ideias iluministas, tanto as Ordenações Filipinas quanto

o Regimento de 1640 serão vistos como arcaicos e violentos. Pombal acabará com o

apoio da Coroa à Inquisição e passa a suprimi-la cada vez mais. Visando acabar com

seu amplo poder, ele ordena a elaboração de outro regimento em 1774. Com ele, têm

fim os processos secretos e a divisão entre cristãos-velhos e novos, além de rebaixar

a autoridade dos tribunais inquisitoriais e torná-la equivalente à de tribunais civis

menores. Porém, a pena de degredo continuava a ser aplicada. A partir de então, a

Inquisição portuguesa entra em declínio, tendo seu fim em 1821.

As leis filipinas se mostraram muito mais duradouras. Mesmo com muitas partes em

desuso, outras continuaram sendo usadas pelo Império brasileiro, após sua

independência. Somente em 1917, já no período republicano, “[...] que as últimas

determinações das Ordenações filipinas deixaram finalmente de vigorar”165.

Por fim, a partir do século XVIII as formas de encarar as punições irão mudar. Os

suplícios serão vistos como métodos cruéis de punir. Imersos num contexto de difusão

do Iluminismo, de valorização das diferenças individuais e da crescente capacidade

dos indivíduos se identificarem uns com os outros como iguais166, as pessoas

recusarão as penas violentas. Percebe-se nesse momento outra forma de pensar os

castigos: antes encarados com o objetivo de livrar a alma do condenado e a

comunidade do mal do pecado cometido, a punição, em parte pelas ideias da

inviolabilidade dos corpos e de que se precisava retirar o grande caráter religioso das

penas, terá a função de reabilitar e reintegrar o criminoso na sociedade167. Logo, as

condenações ao exílio também se tornam inadequadas, pois não tem caráter público,

ou seja, não se pode ver se o indivíduo está realmente sendo reeducado168.

165 LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 39. 166 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 39. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. 167 HUNT, Lynn, op. cit., p. 140. 168 Ibid., p. 139.

57

5. REFERÊNCIAS

5.1 FONTES PRIMÁRIAS

LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. SIQUEIRA, Sônia (org.). Os regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 157, n. 392, p. 495-1020, 1996. Disponível em: <http://www.ihgb.org.br/trf_arq.php?r=rihgb1996numero0392.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2013. 5.2 BIBLIOGRAFIA

AMADO, Janaína. Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia colonial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. VI, p. 813-832, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v6s0/v6s0a03.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2013. BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BOXER, Charles R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BURKE, Peter (org.) A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Unesp, 1992. CARDOSO, Ciro Flamarion (org); VAINFAS, Ronaldo (org). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y estado en Iberoamerica: el lenguaje político em tiempos de las independencias. Buenos Aires: Sudamericana, 2004. COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredos. Revista de História, São Paulo, ano VII, vol. XIII, julho-setembro, p. 3-23, 1956. DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. DAVIDSON, N. S. A Contra-Reforma. São Paulo: Martins Fontes, 1991. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

58

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal - séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. MULLETT, Michael. A Contra-Reforma. Lisboa: Gradiva, 1984.

MURAKAWA, Clotilde. Os Regimentos da Inquisição Portuguesa: um estudo de vocabulário. Revista Anthropológicas, Recife, v. 10, n.4, p. 37-51, 1999. NOVINSKY, Anita W. A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1992. Coleção Tudo é História, v. 49. NOVINSKY, Anita W. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972. PIERONI, Geraldo M. Banidos para o Brasil: a pena do degredo nas Ordenações do Reino. Justiça e História, Porto Alegre, v. 1, n. 1-2, p. 17-50, 2001. Disponível em: <https://www1.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v1n1_2/doc/01Geraldo_Pieroni.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2013. PIERONI, Geraldo M. Documentos e historiografia: uma trajetória da Inquisição – Portugal e Brasil colonial. Tuiutí: Ciência e Cultura, Curitiba, v. 04, n.28, p. 187-206, 2002. Disponível em: <http://www.utp.br/proppe/edcient/Site%20TCC/FCHLA/FCHLA%2028/PDF/art%209.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2013. PIERONI, Geraldo M. No purgatório mas o olhar no paraíso: o degredo inquisitorial para o Brasil-colônia. Textos de História, Brasília, v. 6, n. 1-2, p. 115-142, 1998. Disponível em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/textos/article/viewFile/5879/4860>. Acesso em: 23 abr. 2013. PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.

59

PIERONI, Geraldo M. Os excluídos do reino: a Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil-Colônia. Textos de História, Brasília, v. 5, n. 2, p. 23-40, 1997. Disponível em: <http://www.red.unb.br/index.php/textos/article/view/5858/4849>. Acesso em: 23 abr. 2013. PIERONI, Geraldo M. Os profanadores do segredo: a Inquisição e os degredados para o Brasil-colônia. Varia História, Belo Horizonte, v. 22, p. 42-55, 2000. PIERONI, Geraldo M. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2000. PIERONI, Geraldo M.; MERCER, José Luiz; OLIVEIRA, Solange. História e linguagem. Análise de um processo inquisitorial: a bígama Maria Ferreira condenada pela inquisição no século XVII. Travessias, v. 6, n. 1, p. 124-136, 2012. Disponível em: <http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/download/6656/5206>. Acesso em: 23 abr. 2013. POLIAKOV, Leon. De Cristo aos judeus da corte: história do anti-semitismo I. São Paulo: Perspectiva, 1979. PONTAROLO, Fábio. Degredo interno e incorporação no Brasil meridional: trajetória de degredados em Guarapuava, século XIX. 2007. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/10686/1/DEGREDO%20INTERNO%20E%20INCORPORAÇÃO%20NO%20BRASIL%20MERIDIONAL_%20FABIO%20PONTAROLO.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2013. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. TOMA, Maristela. História, legislação e degredo em Portugal. Justiça & história, Porto Alegre, v. 10, n. 5, p. 51-92, 2005. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v5n10/doc/2_Maristela_Toma.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2013. VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial: 1500-1808. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. VAINFAS, Ronaldo. (org.); FEITLER, B. (org.); LAGE, L. (org.). A Inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de caso. 1. ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: em casa de E. e H. Laemmert, 2 tomos, 1877.

60

ANEXO A – GLOSSÁRIO

Em praticamente todos os autores encontrados que pesquisam o degredo e as leis

antigas de Portugal, vemos uma calorosa discussão sobre as palavras frequentes

usadas por juristas e inquisidores. Junto às considerações feitas nesses estudos, aqui

colocamos algumas dessas palavras que podem trazer dificuldades num primeiro

contato do leitor com esses documentos, seguidas de um possível significado. Para

ter um breve contato com essa discussão, ver os artigos de: Pieroni, Mercer e

Oliveira169; e Murakawa170.

Abjuração: juramento em que o réu reconhece seus crimes e jura não cometê-los

mais, podendo ser público ou secreto.

Absoluto: absolvido, absolvição, não sofrerá a pena.

Apresentado: pessoa que vai espontaneamente confessar seus crimes no Tribunal.

Arbítrio: pena de cárcere por alguns meses.

Arrenegado: renegado, fiel que abandona uma religião para crer em outra.

Assento: que se assente, que se concorde, ratificação, reiterar o que já foi dito.

Baraço: corda que se colocava em volta do pescoço do condenado em desfile público,

sendo símbolo de infâmia.

Cárcere: punição de confinamento domiciliar ou local, restrição de locomoção (não é

prisão).

Colaço: criado que educa o filho de um senhor ou o irmão de leite desse filho.

Cometido: reservado, entregue, incumbido a alguém.

Confidente: réu que confessa após ser acusado e preso.

Conhecer: intervir, investigar.

Convencido: provado, confirmado.

Cristão-novo: judeu ou seu descendente convertido ao cristianismo.

Disputa: contestação, crítica, discussão.

Embargo: impedimento, proibição.

Escudeiro: auxiliar do cavaleiro que carrega seu escudo, além de outros afazeres.

169 PIERONI, Geraldo M.; MERCER, José Luiz; OLIVEIRA, Solange. História e linguagem. Análise de um processo inquisitorial: a bígama Maria Ferreira condenada pela inquisição no século XVII. Travessias, v. 6, n. 1, p. 124-136, 2012. 170 MURAKAWA, Clotilde. Os Regimentos da Inquisição Portuguesa: um estudo de vocabulário. Revista Anthropológicas, Recife, v. 10, n.4, p. 37-51, 1999.

61

Estrebaria: estábulo, curral, local onde se colocam estribos nos cavalos.

Fautor: que favorece, que auxilia.

Fidalgo: variação de “filho d’algo”, pessoa com título de nobreza.

Gávea: navio grande, de alto bordo.

Hábito: roupa de penitência, sambenito.

Homizio: lugar de refúgio ou o ato de fugir de um criminoso em busca de um refúgio.

Libelo: informe oficial do crime pela mesa do Tribunal ao réu.

Mercê: favor concedido, graça, concessão piedosa.

Morra por isso ou por ello: morte civil, perda de direitos, infâmia, degradação; pode

sugerir degredo.

Morte natural: pena de morte.

Mourisco: islâmico ou seu descendente convertido ao cristianismo.

Negativo: que nega seus crimes, mas que está comprovado que os cometeu.

Palavras de presente: assumir compromisso com palavras ditas naquele momento,

promessa.

Peão: popular, plebeu, pessoa vil, pessoa das classes mais baixas ou comuns.

Penas pecuniárias: obras de beneficência (penitência pecuniária) ou confiscação de

bens.

Prazo: aforamento, bem de outro no qual se concede o usufruto à alguém.

Pregão: anúncio da sentença do criminoso em local público, acompanhada da fixação

dela com prego para sua divulgação.

Presunção: suspeita, pré-suposição.

Querela: denúncia, acusação, mal dizer sobre alguém.

Relapso: aquele que incorre mais de uma vez em um crime ou pecado.

Relaxar: conceder, mandar, enviar.

Sentir mal: não gostar, ter ódio.

Sodomia: sexo anal, considerado um grande pecado pelos cristãos do século XVII.

Tenção: intenção, vontade.

Tormento: tortura.

62

ANEXO B – CRONOLOGIA

Aqui estão algumas datas de acontecimentos relevantes para o estudo do degredo,

sobretudo as consideradas em nosso trabalho.

1215 – Concílio de Latrão.

1446 – Ordenações Afonsinas.

1478 – Instalação da Inquisição na Espanha.

1487 – Aparição da imprensa em Portugal.

1492 – Judeus são expulsos da Espanha.

1497 – Conversão forçada dos judeus em Portugal.

1517 – Reforma Protestante.

1521 – Ordenações Manuelinas.

1527 – Saque de Roma.

1536 – Instalação da Inquisição em Portugal.

1545 a 1563 – Concílio de Trento.

1580 a 1640 – União Ibérica.

1603 – Ordenações Filipinas.

1640 – Regimento do Santo Ofício de 1640.

1773 – Marques de Pombal acaba com a discriminação dos cristãos novos e diminui

o poder da Inquisição.

1774 – Regimento do Santo Ofício de 1774.

1821 – Fim da Inquisição em Portugal.

1834 – Fim da Inquisição na Espanha.