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PROCESSO MIGRATÓRIO E MUDANÇAS NA ESTÉTICA MUSICAL CABOCLA
MIGRATION PROCESS AND CHANGES IN THE CABOCLO MUSICAL ESTHETICS
Pedro MartinsDoutor em Antropologia Social, Professor do Departamento de CiênciasHumanas do Centro de Artes – CEART/UDESC, coordenador do projeto depesquisa “Cultura cabocla e identidade em áreas rurais e urbanas”.
Glauber Aquiles SezerinoLicenciado em Educação Artística Habilitação Música pela UDESC, mestrando
em Sociologia na UNICAMP.
RESUMO
Este trabalho constitui uma reflexão, baseada em trabalho empírico, acercado processo de construção da identidade cabocla em grupos rurais e urbanosdo estado de Santa Catarina. Esta pesquisa tem como objetivo centralidentificar a existência de uma estética comum a esses gruposcaracterizados pela cultura cabocla, além de, mais especificamente,identificar a existência de uma prática musical comum, observando ainfluência do processo migratório constante na dinâmica de construção dessaidentidade cabocla. Esta pesquisa estará apoiada numa perspectivasociológica, que trata o caboclo como sendo aquele indivíduo afastado dosmeios de produção da modernidade, marcado por uma condição de existênciamarginal. Desta maneira, a identidade cabocla é percebida numa perspectivade identidade cultural. Para a realização deste trabalho os dadosempíricos, orientados por uma metodologia qualitativa, foram coletadosentre populações caboclas de diversas localidades de Santa Catarina,abrangendo os diferentes momentos do processo migratório. Ao fim destapesquisa surgem algumas considerações: a “gênese” da música cabocla comouma síntese de aspectos da música gaúcha com a música caipira, as práticasde recomenda das almas e do terço cantado como unificadores das práticasreligiosas caboclas, a influência do constante processo migratório junto àestética musical cabocla, além da constatação do caráter de sociabilidadeque estas práticas possuem dentro do universo cultural caboclo.
Palavras-chave: identidade cultural; cultura cabocla; identidade cabocla;processo migratório; estética musical cabocla
O presente artigo trata de apresentar algumas reflexões
realizadas originalmente no âmbito de um projeto de pesquisa
de iniciação científica realizado, no Centro de Artes da UDESC
e com apoio do CNPq, no período de agosto de 2002 a julho de
2004 acerca da cultura e da identidade cabocla. Aqui
trataremos de abordar a construção da identidade cabocla a
partir de suas especificidades culturais, mais especificamente
a estética e as práticas artísticas. Dentro desta perspectiva
se observa o processo de construção de uma identidade musical
cabocla, inserida em um processo identitário maior, a partir
da constatação de práticas musicais1 comuns em três momentos
migratórios distintos: a vida no campo, o êxodo rural e a
eventual volta ao campo.
Cabe ressaltar que é objetivo deste texto identificar, a
partir do trabalho empírico, a existência de grupos que
partilham da cultura cabocla, tanto na área rural quanto na
área urbana, levando em conta a existência de práticas
musicais comuns.
Ainda é objetivo deste trabalho resgatar, a partir da
literatura e da história oral, a gênese do segmento caboclo na
população de Santa Catarina, além de identificar aspectos
musicais e sociológicos presentes nas práticas musicais dos
caboclos, que possam vir a caracterizar a cultura cabocla,
observando a influência do processo migratório na dinâmica de
construção desta identidade.
Justifica-se este estudo pelo fato de que, a partir de uma
compreensão crítica de práticas culturais de grupos postos na
marginalidade, poderemos, e na realidade devemos, apoiar a
transposição dessa condição marginal pelo próprio grupo,
1 O conceito de prática musical utilizado aqui deriva do conceito de práticaartística proposto por Duvignaud que trata a “criação artística na suatotalidade, como um fenômeno total englobando, de uma só vez, as estéticasespecíficas, as formas de criação e a capacidade de intervenção daexpressão artística nos diferentes quadros sociais” (1971: 23).
2
dando-lhe subsídios que o auxiliem na discussão em menor
situação de desigualdade com os grupos hegemônicos.
Além disso, o simples entendimento de que parte
significativa da população catarinense partilha da cultura
aqui abordada, já justifica um estudo desta cultura ainda que
sem a pretensão de esgotá-la.
*
O universo caboclo, considerado para efeito deste
trabalho, refere-se a uma parcela da população localizada na
região que vai do noroeste do Rio Grande do Sul ao Sudoeste do
Paraná, passando pelo planalto e oeste catarinenses.
Na medida em que se trata de um universo bastante extenso,
fez-se necessária uma delimitação interna para efeito de uma
coleta de dados que garantisse a representatividade da
amostra. Desta maneira, acatamos como amostra representativa
do universo em questão a Comunidade2 Cafuza, localizada em José
Boiteux, o acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) que teve origem na Palhoça, em 2002, o
assentamento promovido pelo mesmo movimento em Fraiburgo, além
de trabalhar com indivíduos das comunidades de São José do
Cerrito e com descendentes da Guerra do Contestado residentes
na vila de Taquaruçu de Cima. Todas essas comunidades estão
localizadas no estado de Santa Catarina.
2 A noção de comunidade utilizada neste trabalho está pautada no conceito nativo de comunidade. Para um melhor entendimento desta problemática ver Miranda (1995).
3
*
A abordagem do problema levará em conta os conceitos de
cultura e identidade utilizados pela Antropologia. Entretanto,
antes de iniciar uma discussão que visa ampliar o entendimento
da problemática acerca da cultura e da identidade cabocla de
maneira específica, é necessário realizar uma categorização
destes dois conceitos, cultura e identidade.
A definição do conceito de cultura segue, segundo Laraia
(1996), duas abordagens distintas. A primeira delas trata
cultura a partir de um enfoque adaptativista, onde cultura é
entendida como sistemas que servem para adaptar os grupos
humanos às suas necessidades biológicas. Já a segunda forma de
abordagem trata a cultura como sistemas de funcionamento dos
processos mentais, sejam eles cognitivos, estruturais ou
simbólicos.
Dentro desta segunda corrente, Geertz (1978) trata a
cultura como sistemas simbólicos, onde esta “é melhor vista
não como complexos de padrões concretos de comportamento [como
querem as demais correntes] (...), mas como um conjunto de
mecanismos de controle (...) para governar o comportamento”
(Geertz, 1978: 56).
Dentro desta perspectiva, Geertz (1978) coloca que o homem
é o ser mais desesperadamente necessitado deste mecanismo de
controle, pois homens sem cultura seriam “monstruosidades
incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos
4
sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto” (Geertz, 1978:
61). Desta maneira, ser Homo sapiens significa ter cultura.
A crítica que pode ser traçada com relação a esta
concepção diz respeito ao caráter passivo dado ao indivíduo, à
medida que trata cultura como um simples mecanismo de
controle. Obviamente que o próprio autor coloca que a cultura
é um produto do homem, porém ao afirmar que “entre o que o
nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de funcionar,
há um vácuo que nós devemos preencher, e nós o preenchemos com
a informação fornecida pela nossa cultura” (ibidem: 62),
podemos ver cultura como uma entidade externa que comanda as
ações humanas.
Para este trabalho no entanto será utilizado um conceito
materialista de cultura, onde esta é melhor entendida quando
tomada como a síntese do processo dialético que envolve o
conhecimento humano, num sentido ampliado, e as formas com que
este conhecimento é expresso, aliado às condições materiais
fornecidas pelo ambiente. Assim a ênfase cai sobre o fato da
cultura ser uma dimensão dinâmica da sociedade, não uma
instituição externa a ela com o objetivo de controlá-la.
Dentro desta discussão acerca do conceito de cultura, uma
questão que surge diz respeito à idéia do relativismo
cultural, que afirma que devemos entender cada cultura
especificamente a partir do olhar destas próprias culturas
(Santos, 1994).
Aqui, Geertz (1999) traz uma importante contribuição ao
afirmar que todo estudo sobre cultura não passa de uma
5
interpretação, e que qualquer tentativa de olhar a cultura com
o olhar do nativo é irreal.
Santos coloca ainda que “se insistirmos em relativizar as
culturas e só vê-las de dentro para fora, teremos de nos
recusar a admitir os aspectos objetivos que o desenvolvimento
histórico e da relação entre os povos e nações impõe” (1994:
16).
Ao olhar então a cultura cabocla isso se torna relevante,
à medida que os processos de interação entre caboclos e
sociedade abrangente seriam ignorados à luz do relativismo.
Entretanto, segundo Oliveira (), deve-se traçar uma diferença
entre o relativismo enquanto ideologia dentro da antropologia
e o que o autor chama de atitude relativista, que é a
capacidade de se fugir do etnocentrismo a partir do
reconhecimento da alteridade.
Com relação à questão da identidade étnica, Barth (1998),
criticando o próprio conceito de grupo étnico fixado pela
antropologia clássica, traz uma grande contribuição ao afirmar
que, a maneira como a antropologia definiu grupo étnico gera
uma série de complicadores ao ignorar o que ele chama de
fronteiras entre estes grupos.
Barth afirma que o conceito clássico3 de grupo étnico
“nos induz a assumir que a
3
? Definido a partir de 4 questões: “1- perpetua-se biologicamente de modoamplo; 2- compartilha valores culturais fundamentais, realizados em patenteunidade nas formas culturais; 3- constitui um campo de comunicação einteração; 4- possui um grupo de membros que se identifica e é identificadopor outros como se constituísse uma categoria diferenciável de outrascategorias do mesmo tipo” (Barth, 1998: 189-190).
6
manutenção das fronteiras não é problemática” (1998: 190), o
que nos leva igualmente a observar esses grupos como grupos
agindo em caráter de isolamento relativo, reagindo
essencialmente a fatores ecológicos locais, ou como ele mesmo
diz, “um mundo de povos separados, cada um com sua cultura
própria e organizado numa sociedade que podemos legitimamente
isolar para descrevê-la como se fosse uma ilha” (ibidem).
Sendo assim, um estudo sobre grupos étnicos deve ser
pautado nas relações ocorridas nas fronteiras entre estes
grupos e a sociedade que os cerca. Nesta perspectiva é que
Barth (1998) traça três situações distintas que decorrem da
interação entre grupos étnicos e a sociedade industrial.
A primeira das situações ocorre quando o grupo étnico em
questão tenta se incorporar à sociedade industrial, através da
diminuição de sua “fonte de diversificação interna” (Barth,
1998: 220), o que acarretará ao grupo “uma posição inferior em
meio ao sistema social global” (ibidem). Outra situação
acontece quando este grupo aceita a posição de minoria,
“engavetando todas as diferenças culturais em setores de não-
articulação” (idem), ocasionando o impedimento da “emergência
de uma organização poliétnica claramente dicotomizada e (...)
levará provavelmente a uma eventual assimilação da minoria”
(idem). A terceira situação ocorre quando o grupo escolhe o
fortalecimento de sua identidade étnica em contraposição à
identidade hegemônica.
Obviamente que estas três situações não são excludentes,
uma vez que este processo se dá de maneira dinâmica, onde
estas situações são articuladas.
7
Pode-se entretanto realizar uma crítica à tese de Barth
quando este afirma que “a fronteira étnica canaliza a vida
social” (1998: 196), uma vez que tal afirmação encontra dois
problemas centrais.
A primeira questão diz respeito ao mesmo problema que o
conceito de cultura levantado por Geertz trás, o de enxergar a
identidade como uma entidade independente da ação humana, uma
vez que é tida como uma instituição reguladora da ação humana.
Outra questão está relacionada com a supervalorização da
identidade étnica sobre outras formas de identidade.
Obviamente que num processo marcadamente interétnico, a
fronteira étnica pode assim ser vista, porém num processo onde
várias identidades de origens diferentes se encontram não há a
possibilidade de tal afirmação.
Levando-se em consideração estas duas questões, pode-se
sim dizer que as fronteiras identitárias atuam na vida social
dos grupos, sejam elas identidades de classe, identidades
camponesas ou étnicas, e são conseqüência da atuação destes
grupos.
Outra crítica que pode ser feita ao trabalho de Barth diz
respeito ao caráter até em certa parte linear que ele dá ao
processo de mudança de identidade. Ao ver a troca de
identidade baseada em questões de vantagens e desvantagens
para o indivíduo em mudança, Barth ignora os processos
conflituosos que esta mudança gera. Ele não discute as
questões que surgem quando este indivíduo, ao trocar de
identidade, interage com os “possuidores originais desta
8
identidade”, as questões com relação à aceitação incondicional
ou não deste indivíduo ao grupo.
Este processo não se dá de forma tranqüila, uma vez que,
dependendo da situação vivida, este indivíduo em questão é
aceito como parte do grupo ou não. Tal sujeito se encontra
numa posição instável, dependendo dos interesses tanto do
grupo quanto dele próprio, quanto dos outros grupos em
interação com eles.
Desta maneira cabe entendermos a identidade cabocla hoje4
como uma categoria definida a partir da existência de aspectos
culturais unificadores, tais como a estética musical, e não a
partir da problemática da identidade étnica, assim como Barth
(1998) a entende. Este autor, ao pressupor que a identidade
étnica deve ser entendida a partir das fronteiras entre os
grupos étnicos, assume que o compartilhamento de uma mesma
matéria cultural é resultado e não razão deste processo de
construção das fronteiras étnicas.
Na abordagem deste trabalho, no entanto, consideramos que
estas fronteiras são tão maleáveis, defendidas ou repudiadas
pelos nativos de acordo com cada situação vivida, que é, sim,
a matéria cultural comum que irá criar uma identidade cabocla.
As relações econômicas (infra-estrutura) vão gerar um modo de
vida específico (super-estrutura), que por sua vez acarreta
num processo de construção identitária uma vez que é a maneira4 Obviamente não é nossa intenção fechar a discussão relativa a estaproblemática que, como já foi apontado, é muito controversa. Mas apenasapontar a maneira pela qual abordamos esta questão a fim de realizar estapesquisa pois, como afirma Kuhn, “um paradigma não rege (...) um assunto,mas um grupo de praticantes” (apud Geertz, 2001), deixando claro que osparadigmas não passam de tentativas de explicar a realidade, “constituem[apenas] modelos de solução de quebra-cabeças para a comunidade pertinente”(Ibidem: 146).
9
que estes indivíduos observam e interagem com o mundo que os
cerca que os define enquanto caboclos ou não.
Sendo assim, cabe entendermos a identidade cabocla como
uma identidade cultural, tal qual a define Anjos Jr. (1985),
ao entender que esta categoria de identidade é criada através
da “construção particular de sentidos sobre o mundo, de modos
próprios de acercamento ou de criação simbólica de momentos e
lugares vividos” (1985: 05)
*
Ao iniciar então uma discussão que visa tratar a cultura
cabocla, deve-se ter em mente que esta categoria torna-se
bastante complexa à medida que não existe um conceito
hegemônico que venha a definir o caboclo.
Esta problemática segue duas perspectivas teóricas
distintas: uma que considera caboclo como uma categoria
étnica, decorrente, em certa medida, da influência da teoria
das raças; e outra que trata o caboclo a partir de uma
perspectiva de identidade cultural, caracterizada por uma
condição marginal de existência, no contexto rural e afastada
dos meios de produção da modernidade.
Martins (2001) descreve estas duas abordagens afirmando
que estão de acordo com a primeira perspectiva autores como
Darcy Ribeiro, que em seus Diários Índios delimita a categoria
caboclo como uma categoria da mesma ordem do negro e do índio,
caracterizado exclusivamente por uma relação de miscigenação.
10
Já com relação à segunda abordagem há uma série de
autores, tais como Queiroz (1977), Auras (1984), Poli (1995),
Iunkovski (2002), além do próprio Martins (2002), que se
utilizam do termo caboclo como identificando aquele indivíduo
historicamente “(...) definido por uma condição de existência
em contexto de isolamento relativo, afastado do sistema legal
e sem acesso às relações de poder dominantes” (Martins, 2002:
04).
Obviamente que esta condição de isolamento relativo
relaciona-se a um tipo de caboclo mais especificamente, uma
vez que o processo migratório que envolve essa população
assegura a ela uma série de diferenciações internas.
Neste sentido Locks (1998) apresenta uma tipificação para
enquadrar estas diferenciações de acordo com o grau de contato
que esses caboclos possuem em relação à sociedade abrangente.
Num primeiro nível, estariam aqueles indivíduos marcados por
uma cultura mais tradicional, sendo chamados de “caboclos da
tradição”. Num segundo nível estariam aqueles que superaram
algumas destas características, sendo chamados de “caboclos de
transição”. Já num terceiro nível estariam aqueles que, apesar
de possuírem práticas simbólicas comuns aos caboclos da
tradição, superaram as condições objetivas da vida cabocla,
tornando-se pequenos fazendeiros.
Vale dizer que o processo migratório no qual estão
inseridos os caboclos faz parte do próprio universo simbólico
caboclo e leva em conta três momentos distintos: a vida no
meio rural, a ida para o meio urbano e um eventual retorno ao
meio rural via movimentos sociais.
11
Com relação ao processo migratório, na região do Morro do
Horácio em Florianópolis, Iunskovski (2002) descreve algumas
de suas causas e consequências. A principal causa é a falta de
condições materiais no campo que garanta a subsistência das
famílias caboclas. Falta de condições estas que por sua vez
são ocasionadas tanto por questões econômicas (avanço da
propriedade privada sobre as famílias caboclas), quanto por
questões sociais (processos judiciais que acarretam na prisão
do “pai de família”).
Ainda com relação ao processo migratório, Poli (1995)
demonstra que a presença do caboclo na terra é historicamente
marcada pela provisoriedade, uma vez que ele, estando à mercê
de chefes políticos e grileiros, é constantemente expulso,
indo atrás de um outro espaço onde possa permanecer até que o
processo se repita.
*
A compreensão da arte cabocla será buscada seguindo
orientação de Duvignaud (1971), a partir de três questões
básicas. Estas questões caminham entre entender que os
princípios estéticos distintos são provenientes de práticas
sociais distintas e que, por esta razão, devem ser assim
entendidos; que mesmo estéticas com princípios geradores
semelhantes, quando em quadros sociais diferentes, geram um
desenvolvimento diferente; e que os diferentes quadros sociais
pelos quais passou a sociedade ocidental geraram valores
12
estéticos e o próprio entendimento do que é arte de maneiras
diferentes.
Um estudo da arte deve, portanto, se concentrar nas
relações existentes entre os preceitos estéticos de cada
prática artística e os quadros sociais nos quais essas
práticas estão inseridas. Duvignaud, nesse sentido, faz uma
importante observação quando, discutindo sobre sistemas
espaciais diferentes, afirma que o confronto entre esses
sistemas nos mostra como estes se modificam de acordo com os
quadros sociais onde estão inseridos, e que estes sistemas são
definidos por serem utilizáveis e não por serem uns melhores
que outros (1971: 26).
Duvignaud propõem, na realidade, um estudo da Arte a
partir da junção de três disciplinas até então muito
distantes: a Estética, a Prática artística e a Sociologia. É o
que propõe também Canclini quando fala de sua teoria
sociológica, na qual Literatura (representando a estética e a
prática artística) e Sociologia devem ser entendidas não de
maneira dicotômica e sim dialética, com o intuito de poder
“gerar outro modo de conceber a modernização latino-americana”
(Canclini, 2000: 19)5.
*
5 É claro que a analogia com Canclini deve ser entendida a partir deprincípios metodológicos, visto que o objeto material de ambos éconsideravelmente distinto. Enquanto Duvignaud fala do entendimento da artede maneira geral, Canclini se atém na questão do processo de modernizaçãoda América Latina.
13
Este trabalho se caracteriza por ser um estudo
exploratório no qual utilizamos a prática de estudo de caso
pois, segundo Goldenberg, “este método supõe que se pode
adquirir conhecimento do fenômeno estudado a partir da
exploração intensa de um único caso” (Goldenberg, 1999: 33),
garantindo uma maior profundidade de estudo, visto que não há
a necessidade de se abordar diferentes grupos.
Como afirma Goldenberg,
O estudo de caso não é uma técnica específica, masuma análise holística, a mais completa possível, queconsidera a unidade social estudada como um todo,seja um indivíduo, uma família, uma instituição ouuma comunidade [como é o caso deste trabalho], com oobjetivo de compreendê-los em seus próprios termos(ibidem).
O problema que decorre desta escolha metodológica diz
respeito à dificuldade de se traçar os limites do que deve ou
não ser pesquisado, “(...) já que não existe limite inerente
ou intrínseco ao objeto” (idem), pelo fato deste método não
ser uma técnica específica e sim uma “análise holística” e que
esta totalidade não passa de uma arbitrariedade adotada pelo
pesquisador, uma “(...) abstração científica construída em
função de um problema a ser investigado” (idem).
Outra técnica ainda utilizada nesta pesquisa é a prática
de história de vida, também conhecida como método biográfico,
que se caracteriza pela idéia de se tentar “ler uma sociedade
através de uma biografia” (Denzin apud Goldenberg, 1999: 37).
Esta técnica se inscreve numa problemática mais abrangente que
é a história oral6.
6 Para um melhor entendimento da história oral, ver Meihy (1996).
14
Os problemas que surgem desta técnica dizem respeito
principalmente à idéia de dicotomia existente entre
determinismo cultural e livre-arbítrio. A solução para este
problema é proposta por Camargo, quando esta propõe que se
supere esta dicotomia através da observação de que “nas
trajetórias singulares o reflexo das condições históricas e
culturais em que se inserem” (Goldenberg, 1999: 38) se faz
presente. Com relação a este problema, Elias “pensa a
liberdade de cada indivíduo inscrita numa cadeia de
interdependências que o liga aos outros homens, limitando o
que é possível decidir ou fazer” (apud Goldenberg, 1999: 39).
*
Considerando as manifestações que podem ser atribuídas à
estética cabocla, dividimo-las em duas grandes categorias:
práticas de caráter secular e práticas de caráter religioso.
Esta divisão facilitará a sistematização, uma vez que as
características de cada uma destas práticas musicais são, em
alguns aspectos, distintas. Entretanto, estas práticas não
devem ser encaradas de maneira isolada, visto que influenciam
umas às outras.
Esta divisão está fundamentada na perspectiva levantada
por Figueiredo (2001), em seu trabalho sobre a música Cafuza.
Nesse trabalho o autor traça uma clara oposição entre práticas
profanas e o que ele chama de atividades musicais religiosas,
sendo as primeiras caracterizadas pelo aspecto essencialmente
lúdico, enquanto as atividades ligadas à religiosidade têm
características próprias da religiosidade popular.
15
*
Dentre as práticas seculares serão descritas aspectos
sócio-musicológicos ligados à gaita e ao violão, ao canto, aos
bailes e às cantorias, bem como às mudanças observadas nas
práticas musicais caboclas. Cabe ressaltar que os dois
primeiros pontos abordados já foram tratados num trabalho
anterior (Sezerino, 2003), entretanto novos dados vem se
juntar a algumas daquelas considerações preliminares.
Considerando as manifestações que podem ser atribuídas à
estética cabocla, foi possível perceber na análise do material
empírico que, dentro do universo estético-musical caboclo,
temos dois instrumentos musicais que ocupam um lugar de
destaque. Estes instrumentos são o violão e a gaita.
O violão, produzido industrialmente, possui cordas de aço
e muitas vezes é revestido, pelo proprietário, de adesivos
usados como motivos de decoração. Em todas as práticas
acompanhadas, pudemos perceber que o violão não se encontrava
em bom estado de conservação devido ao grande uso cotidiano
que é dado a ele pelos caboclos. Eles7 andam com seus violões
por baixo do braço como um instrumento de lazer, como
efetivamente é encarado por esses indivíduos.
Com relação à utilização de cordas de aço, é notado que
estas são utilizadas não por uma questão de praticidade, mas
7
? Utilizamos o pronome no masculino pelo fato de não ter observado nenhumamulher tocando violão ou gaita durante as observações em campo. Numaanalogia à discussão de Welter (1999), pode-se afirmar que os instrumentosmusicais integram o universo do público, ao passo que a atuação femininaencontra sua força no espaço privado.
16
sim por produzirem uma sonoridade muito característica, mais
“aberta”, produzindo uma quantidade grande de harmônicos e
dando um caráter festivo, mais expansivo à prática musical.
Este indício ganha força à medida que se torna claro que a
dificuldade em se obter cordas de aço é a mesma de se obter
cordas de náilon, uma vez que estas cordas de aço são
industrializadas e compradas na cidade.
Cabe esclarecer que apesar das cordas de aço serem
preteridas às de náilon, os caboclos também usam estas cordas
de náilon, porém manifestam sua preferência estética
claramente a favor do uso das cordas de aço na medida em que
estas “têm um som melhor”. Segundo um músico caboclo “ela
[corda de náilon] é macia mas tem um som ... [toca o violão],
o som dela é muito ruim. Tu pega uma corda boa mesmo, ela tem
um outro som. [Com a corda de náilon] parece que o violão não
presta” (R. F.).
Entre os caboclos o violão é tocado com o polegar e o
indicador, ora pinçando, ora tangendo as cordas, cada dedo
isoladamente. Junto ao polegar é presa, eventualmente, uma
dedeira (espécie de palheta fixa ao polegar, utilizada como um
substitutivo à unha) que garante uma maior projeção sonora do
instrumento quando a corda é tocada. Esta maneira de tocar o
instrumento é encontrada entre várias populações em todo o
Brasil não sendo, portanto, uma característica exclusiva dos
caboclos.
Este aspecto técnico cria duas categorias de violeiro:
aquele que apenas “bate” o violão, e aquele que “ponteia” as
cordas. Cabe entender que a capacidade de “pontear” o violão
17
inclui a capacidade de “bater”, não ocorrendo, porém, o
inverso.
Desta maneira, o instrumentista que sabe “pontear” é tido
como um músico de maior qualidade, uma vez que muitos são
aqueles que “batem” o violão. Nesse caso, a exclusividade do
pontear garante algo mais de um indivíduo entre os músicos.
Durante a coleta de dados foi possível observar que alguns
integrantes do MST manifestam, nas suas práticas, variações no
que diz respeito à maneira como o violão é tocado. A variação
é observada quando, ao invés de utilizarem o polegar e o
indicador para pinçar, eles tangem as cordas utilizando,
basicamente, o indicador unido ao polegar como se segurassem
uma palheta. Esta variação é própria de indivíduos mais novos
que, seguindo seus pais, moraram nas periferias urbanas antes
de ingressarem no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
Com relação à gaita (acordeon ou sanfona, como é conhecida
em outras regiões do país), as observações demonstram que este
instrumento faz parte do universo simbólico dos caboclos. Na
prática, no entanto, não é tão presente quanto o violão. Isto
se deve principalmente ao fato de que se torna muito difícil
aos caboclos possuírem este instrumento, devido ao seu alto
custo de aquisição.
Quando presente, a gaita é utilizada nas introduções e
interlúdios, prevalecendo o aspecto melódico, característica
esta ocupada pela mão direita, ao ritmo-harmônico, apesar
deste ser garantido pela mão esquerda realizando os baixos ou
os acordes. Esta situação se inverte à medida que se inicia a
execução do canto. Neste momento a gaita colabora com a
18
questão ritmo-harmônica, tanto com a mão esquerda quanto com a
direita, já realizada pelo violão.
Ainda com relação à gaita, outro dado diz respeito ao fato
de que, quando observamos a sua presença, esta é apenas uma,
em oposição a um número sempre maior de violões.
Há relatos, porém, de mais de uma gaita sendo executada ao
mesmo tempo. Entretanto, esta condição é tida como rara, sendo
propícia apenas quando os gaiteiros são músicos de excelente
qualidade. Segundo o discurso nativo “é muito difícil dois
gaitero bão pra tocar” (G. C.). Outro caboclo afirma que
É difícil colocar duas gaita, né? É difícil. Porquepra fazer a mesma coisa, daí um só faz, não precisadois. Tu tens que fazer uma coisa diferente um com ooutro pra dar um som que dê um som um poucodiferenciado. Pode três violão fazendo que não muda,mas a gaita, se você fizer a mesma coisa, não temsentido (R. F.).
Quando isto ocorre, é necessário que sejam realizadas
funções diferentes pelos gaiteiros. Um caboclo, ao descrever
um evento onde haviam dois gaiteiros tocando juntos, afirma:
“Então um fazia o floreio e o outro acompanhava. Quando o
outro fazia o floreio, o primeiro acompanhava” (G. C.). Desta
maneira, garante-se uma diferenciação entre os dois
instrumentos.
Observa-se que a figura do gaiteiro se sobressai à do
violeiro que apenas “bate” o violão, sendo o primeiro
geralmente visto como um músico de mais importância. Porém, o
violeiro que sabe “pontear” é tido como da mesma importância
19
do gaiteiro. Alguns indivíduos, a despeito de saberem “bater”
o violão, são identificados como gaiteiros, quando tocam
também a gaita, uma vez que esta categoria possui um
reconhecimento mais elevado entre os músicos.
Com relação aos estilos utilizados nas práticas musicais
seculares, irei descrever alguns aspectos morfológicos de dois
deles: o vanerão ou vanera e a valsa. Todos estes estilos
derivam de danças realizadas nos bailes.
A vanera é um estilo musical que, segundo o discurso
nativo, deriva-se de outro estilo. Este estilo, hoje em
desuso, é denominado de bugio. Segundo um informante de São
José do Cerrito, a vanera “é um bugio alterado” (C. S.). Uma
de suas características principais é de ser um ritmo, como é
denominado pelos caboclos, construído sobre um compasso
quaternário, geralmente num andamento rápido, em torno de 130
a 160 pulsações por minuto:
Como pode ser visto, na cabeça do tempo é realizado, pela
gaita, as notas que ocuparão o papel de baixo, neste caso
sobre um acorde de Fá Maior. Já no contratempo a gaita
complementa o acorde. Com relação ao violão, este realiza o
acorde inteiro sobre a mesma figuração rítmica.
A valsa por sua vez é um estilo musical de andamento
moderado, construído sobre um compasso ternário. Possui um
caráter mais doce, ao contrário da vanera que é mais agitada e
20
mão esquerda da
festiva. Segue abaixo a transcrição da figuração rítmica
utilizada pelo violão
Há, entretanto, outros estilos dentre as práticas musicais
seculares, tais como o xote e a toada, que não serão abordados
aqui neste trabalho.
O canto é outro aspecto importante das práticas musicais.
Primeiramente, numa visita a José Boiteux nos deparamos com um
comentário elucidativo de um Cafuzo com relação à sua prática
musical. Esse Cafuzo estava tocando em seu violão músicas do
universo caipira brasileiro (Chalana, Índia), porém apenas
tocava seu violão, sem nunca cantar as canções. Ao ser
perguntado, informou que era devido à sua religião
(pentecostal) que não permitia “fazer música profana” mas
apenas música sacra. Esta informação torna-se importante não
pela proibição em si, mas pela maneira como o Cafuzo assimilou
a proibição. Ele estava proibido de fazer música profana,
conseqüentemente proibido de cantar músicas profanas, mas não
proibido de “dedilhar” (tocar no violão) as mesmas músicas.
Em segundo lugar, uma das características que garante a
qualidade da música, segundo o discurso nativo, é o texto
executado pelo canto. “Por que a gente aprende a gostar por
aquilo que a pessoa diga. Às veiz não era tanto por causa do
ritmo, mas cê vai começando a gostar do ritmo por causa
daquilo que fala na letra” (G. C.). Entretanto, este texto é
entendido intrinsecamente relacionado com o “ritmo”.
21
violão
Por último, apesar de existirem algumas práticas musicais
estritamente instrumentais, todas elas eram canções8, onde a
melodia principal, claramente composta pensando-se numa
interpretação vocal, é executada pela gaita. Figueiredo
(2001), estudando as práticas musicais Cafuzas afirma que, a
despeito de existirem práticas exclusivamente instrumentais,
seu “tratamento melódico não difere dos aspectos mencionados
com relação à música cantada. As peças insrumentais poderiam
perfeitamente receber texto e as características melódicas
seriam as mesmas observadas” (2001: 66).
Com relação a tais aspectos melódicos pode-se traçar
algumas considerações. A melodia é construída em cima de graus
conjuntos, havendo pouca ocorrência de saltos. Quando estes
ocorrem, são realizados sobre as notas das tríades do acorde
em uso, geralmente o I, o IV ou o V grau.
Outro aspecto importante é o uso muito comum de um
paralelismo rígido de intervalos de terça ou sexta. Em nenhum
momento foi observado em campo movimento oblíquo ou contrário
entre as vozes. Porém sempre que havia mais de um cantor, as
terças ou sextas paralelas apareciam.
Figueiredo (2001), ao descrever os aspectos melódicos das
músicas Cafuzas, afirma que a estrutura melódica é
estritamente vinculada a elementos fraseológicos do texto.
Segundo o autor “este tratamento prosódico é bastante comum
(...), predominando o tratamento silábico em quase todas as
músicas” (2001: 64).
8 Canção aqui tomada como uma forma musical composta por duas partesdistintas, A e B, sendo que a parte B tem a função de servir de contraste àparte A.
22
Essa situação foi igualmente observada por mim quando da
coleta de dados. Segue logo abaixo um trecho da canção
“Moreninha Linda”, onde transcrevemos apenas a execução
verbal, acompanhada dos acordes em uso pelo violão e gaita.
Com relação ao aspecto interpretativo do canto, nota-se
que a execução deste é feita regularmente com uma intensidade
forte, variando entre o meio forte ao fortíssimo em alguns
casos. Além da intensidade, Figueiredo (2001) ainda ressalta o
uso de uma voz anasalada. O que percebo é uma voz gutural,
utilizada justamente para garantir uma intensidade elevada.
A despeito de uma certa “timidez” existente quando os
caboclos conversam com pessoas que não fazem parte do grupo
mais próximo a eles, o canto possui um caráter expansivo.
Figueiredo (2001) ressalta este ponto comentando uma situação
onde um menino Cafuzo, ao iniciar o canto, vai encolhendo seu
corpo devido a uma timidez frente aos pesquisadores, porém
continua a cantar até o fim da música.
Isto ficou claro em campo à medida que ao conversar com os
caboclos nota-se a sua pouca disponibilidade para a fala.
Segundo o próprio discurso nativo, “o caboclo tem isso. Ele
assim é uma pessoa que fica primeiro encabulada, não dá pra
23
Canção recolhida em São
dizer que é desconfiada, fica meio encabulada, se vem uma
pessoa estranha ele fica meio encabulado” (N. M.).
Porém, quando o violão e a gaita começavam a tocar,
qualquer sinal de timidez desaparecia da voz para dar espaço a
um canto forte. Entretanto, o olhar e a postura corporal
demonstravam ainda a timidez descrita.
As práticas musicais de caráter secular podem ser
divididas em duas categorias: os bailes e as cantorias. Estas
são categorias nativas em uso pelos caboclos ainda hoje e
encontram sua “gênese” no próprio processo de formação da
população cabocla.
Os bailes são “pontos de encontro” que articulam os
caboclos com a sociedade abrangente, incluindo indivíduos de
outros grupos da região. Esses bailes são marcados pela
execução de estilos musicais derivados de danças, tais como o
vanerão e a valsa.
Estes eventos acontecem geralmente em razão de uma
determinada atividade. Historicamente, os bailes ocorriam após
um pixurum9, quando o beneficiado pela atividade oferecia uma
festa ao final do dia de trabalho a fim de agradecer pelo
serviço. Essa festa, segundo relatos, acontecia a noite
inteira ao som da gaita e do violão, além do canto.
Outra razão para que ocorram bailes são as festas
religiosas onde, após a celebração e o almoço, que inicia pela
manhã e se estende até o meio da tarde, começa o baile.
9 Categoria nativa que designa o mutirão onde, em razão de uma atividadeespecífica para um indivíduo, todos os demais membros do grupo próximoatuam coletivamente a fim de concluir o trabalho.
24
Atualmente, entretanto, os bailes acontecem também
desvinculados dessas celebrações, sendo promovidos por
associações ou empresários de maneira independente. Matias
(2004) resgata estratégias caboclas, ligadas à arquitetura,
para a realização dos bailes.
Já as cantorias, via de regra, tratam de criar um momento
de interação interno, em certa parte doméstico, onde o grupo
familiar, entendido da forma mais ampla, então se articula.
Esses momentos são fortemente marcados pelo uso do chimarrão e
do “paiêro”.
No campo observei uma clara divisão de gênero, onde os
homens participam cantando e tocando enquanto as mulheres,
também presentes, adotam uma postura de ouvintes. Entretanto,
a presença feminina é necessária nesse espaço, até porque
foram observadas apenas cantorias realizadas dentro do espaço
doméstico.
Outro aspecto das cantorias diz respeito ao fato de que a
execução musical é entrecortada por conversas sobre assuntos
diversos, desde problemas políticos internos ao grupo até
questões ligadas ao calendário agrícola.
O ritmo de vida moderno, no entanto, vai dificultando
esses encontros, que vão se tornando cada vez mais raros.
Nota-se uma diferenciação entre o que é dito pelos
informantes sobre as práticas musicais e o que é efetivamente
realizado. Inicialmente chamou a atenção o fato de, a despeito
de existirem outros instrumentos musicais sendo empregados nos
25
bailes, apenas o violão e a gaita eram considerados
instrumentos característicos.
Durante os bailes e nas conversas com músicos que deles
participavam, pudemos notar que instrumentos que possuem
captação elétrica (contrabaixo e guitarra elétrica, além de
microfonação para as vozes) faziam parte da instrumentação
adotada, além da presença da bateria. Esta é a mesma formação
de grupos de músicas nativistas gaúchas. Estas práticas eram
identificadas pelos próprios músicos como música nativista.
Outra alteração encontrada diz respeito à ocorrência dos
bailes. Historicamente, os bailes realizados pelos caboclos
ocorriam na casa dos próprios moradores e sempre estavam
atrelados a algum outro acontecimento que “explicava” a
existência do baile. Esses ocorriam após os pixuruns ou em
festas religiosas, dentro da casa do promotor do pixurum ou do
festeiro. “Eles fazia o mutirão (...) daí convidava os
compadre e as comadre” (R. F.).
Atualmente, entretanto, é comum ocorrerem bailes que não
possuam qualquer motivo aparente senão o do baile em si. Sendo
assim, o baile é promovido dentro de um salão de posse de
alguma pessoa jurídica, onde é cobrado um ingresso, e os
músicos que participam são contratados para tocar durante um
período pré-determinado. Segundo uma cabocla assentada em
Fraiburgo, antes “não era baile pra negócio, era pra se
divertir” (S. R. F.).
Uma terceira mudança observada está relacionada ao
discurso nativo acerca das temáticas das canções presentes nas
práticas musicais. Pude perceber que há um certo
26
descontentamento relacionado à mudança das temáticas, uma vez
que estas deixam de descrever a vida no meio rural e as
relações inerentes a este modo de vida, para descreverem
relações humanas de caráter individual, como os
relacionamentos amorosos.
Este descontentamento é maior entre aqueles músicos na
faixa dos quarenta anos de idade ou mais, mas também ocorre
com aqueles que possuem uma articulação com os movimentos
sociais de esquerda, independente da idade.
Quando perguntados sobre o que uma música deve ter para
ser considerada boa, um informante afirma que a música deve
tratar de coisas da terra, não sendo adequado o uso de letras
machistas ou de cunho erótico. Nas próprias palavras do
caboclo: “Melhor é quando cê escuta uma música raiz. Tem a ver
com a nossa realidade. Cê escuta às vezes uma música como
‘egüinha pocotó’, ‘bonde do tigrão’, não tem nada a ver com a
gente” (F. G. C.)
*
Nesta parte do texto serão descritas duas práticas
musicais caboclas de caráter religioso: o terço cantado e a
recomenda das almas. Há, entretanto, outras práticas dentro do
universo caboclo que possuem o mesmo caráter. Porém, para este
trabalho, fiz a opção de realizar o recorte a partir destas
duas práticas, que integram o universo da religiosidade
cabocla. Esta religiosidade10 é caracterizada como parte do
10 Para um melhor esclarecimento sobre a religiosidade cabocla, ver Welter(2003) e Iunskovski (2002).
27
catolicismo popular em oposição às práticas oficiais da Igreja
Católica. A religiosidade cabocla é ainda marcada pelo culto à
figura do profeta João Maria e outros aspectos como o batismo
em casa.
Ao realizar o levantamento bibliográfico acerca da
população cabocla, entramos em contato com o trabalho de
Iunskovski (2002), onde o autor trata de apresentar a
religiosidade cabocla a partir da observação desta
religiosidade inserida no processo migratório. No trabalho em
questão, chamou atenção a descrição de uma prática religiosa
cabocla denominada de terço cantado.
Essa prática caracteriza-se por ser uma oração do
catolicismo popular, baseada na estrutura do terço do
catolicismo oficial. Entretanto, o terço cantado, como o
próprio nome já diz, difere do terço oficial que é rezado.
O terço cantado inicia com o canto da oração do Glória,
sendo seguido de algumas invocações à Nossa Senhora e outros
Santos. Na seqüência, realiza-se o canto da Ave Maria e,
posteriormente, o do Pai Nosso. Tradicionalmente é então
realizada uma seqüência de um Pai Nosso, dez Ave Marias, seguido de
um Glória. Isto é repetido por mais quatro vezes sendo que, ao
final, é cantado o Bendito e a Salve Rainha.
Assim como afirma Iunskovski (2002), observa-se que há
diferenças entre as orações oficiais do catolicismo e estas
orações do terço cantado com relação às palavras utilizadas,
onde se usa palavras em latim com palavras em português. Ele
coloca ainda que “o significado maior não está na letra, que
28
em alguns momentos praticamente não se entende, mas a melodia
e o clima de recolhimento e sintonia com o sagrado, é que
aparentam ser centrais” (2002: 48).
Apesar de observar que esta manifestação encontra-se em
pouco uso pelas populações caboclas, na visita à comunidade de
Taquaruçu nos deparamos com um grupo familiar que realizava
esta prática com uma certa freqüência. Eles haviam formado um
grupo para realizar na comunidade o terço cantado. A
“coordenadora” deste grupo havia transcrito as letras de todas
estas orações após ter realizado entrevistas informais com os
membros mais antigos da comunidade.
Além desta família, o grupo de caboclos de São José do
Cerrito também executou uma Ave Maria, afirmando, entretanto,
que não realizavam com freqüência o terço cantado.
Dentro das práticas musicais do terço cantado não se
verifica o uso de quaisquer instrumentos a não ser a voz. O
canto é estruturado da mesma forma que o canto nas práticas
seculares. É dividido em duas vozes, estruturadas em
intervalos paralelos de terças ou sextas. A voz mais grave é
chamada de baixão, enquanto a voz mais aguda de fininho.
Iunskovski (2002) ressalta que o responsável pelo baixão é
chamado de capelão à medida que é esta voz que lidera a
execução.
Observa-se nesta prática regularmente a presença de
mulheres, ao contrário do que se verifica nas práticas
seculares. Entretanto a liderança da atividade quase sempre
destinada aos homens. Nas ocasiões observadas e na descrição
29
de Iunskovski (2002), apenas um terço cantado, em São José do
Cerrito, era liderado por homens.
A prática da Recomenda das Almas foi a prática mais
observada em campo, levando a crer que se trata da tradição
mais presente na vida dos caboclos que estão no campo. Trata-
se de uma celebração realizada apenas durante a quaresma, ou
em decorrência de algum velório, para recomendar as almas dos
mortos. Durante a quaresma é executada tradicionalmente às
quartas-feiras e sextas-feiras, em alusão à quarta-feira de
cinzas e à sexta-feira da paixão.
A recomenda é uma espécie de procissão cantada conduzida,
segundo o discurso nativo, por um terno que visita todas as
casas da comunidade. Este terno é formado por duas vozes
principais, o capelão e o ajudante. O primeiro é o responsável
por tocar a matraca e puxar os cantos, enquanto o segundo o
acompanha em um intervalo de terça paralela acima. As vozes
femininas, assim como no terço cantado, também participam,
porém são denominadas pelos cafuzos de baixão e fininho. Esta
dobrando a voz realizada pelo ajudante enquanto aquela dobra a
voz do capelão, ambas uma oitava acima.
Inicialmente eles chegam em frente a todas as casas que
possuam uma cruz de cedro plantada no terreno, o capelão toca
a matraca e todos entoam cantos em honra e louvação a essa
cruz. Essas cruzes, próprias do catolicismo caboclo, são
plantadas durante a quaresma a fim de marcarem esse período.
Seguem-se outros cantos ainda fora da casa. Esses cantos são
30
entrecortados por momentos de silêncio onde os participantes
rezam.
Após esse momento inicial, que dura em torno de vinte a
trinta minutos, o dono da casa pode abrir a porta a fim de
convidar todos os participantes do terno para entrar. Caso ele
não abra a porta, os membros do terno, como se denominam, partem
para outra casa. Uma vez dentro da casa, caso entre, o terno
inicia o encontro com os santos, onde são entoados cantos em frente
a um oratório presente em cada uma das casas.
Na seqüência, o dono da casa oferece algo para consumo dos
participantes, desde chimarrão e cachaça a comida em geral.
Após este oferecimento por parte dos donos da casa, o terno se
despede e se dirige a outra moradia.
Assim como o terço cantado, a recomenda não possui outros
instrumentos, com exceção da matraca. A estrutura do canto é
semelhante nas duas práticas observadas. Segue abaixo a
transcrição de uma das músicas de duas práticas observadas. A
primeira junto aos Cafuzos e a segunda foi realizada pelo
grupo de São José do Cerrito.
Ocorre com algumas das canções da recomenda uma repetição
dos textos. Por exemplo, na música apresentada logo acima,
após se cantar “meu Jesus ta morto, coberto de véu”, repete-se
esta parte sendo conservada tanto a letra na sua íntegra
quanto a melodia. O mesmo acontece com as outras frases desta
canção e também com outras músicas que fazem parte da
recomenda das almas.
A repetição de uma das canções da recomenda, cantada três
vezes, serve, segundo o capelão de São José do Cerrito, para
31
que quem não conheça a música em questão tenha a possibilidade
de aprender. Segundo ele, “a primeira vez passa [a música] e
não fica, então fica a segunda, a terceira. Daí até um novo,
um outro ali, também pode já ir chegando. Porque são uma
oração curta, aí se fizer só uma vez, passa” (C. S.).
*
Após a apresentação destes dados pode-se então traçar
algumas características comuns às práticas musicais caboclas,
tais como a gênese da prática musical secular cabocla tida
como a síntese entre as influências da música gaúcha e da
música caipira, o terço cantado e a recomenda das almas como
práticas musicais que garantem uma unidade à religiosidade
cabocla, a música cabocla vista sob a perspectiva do processo
migratório e a problemática das práticas musicais caboclas
tidas enquanto atividades de sociabilidade.
Com relação às práticas musicais caboclas de caráter
secular, foi possível traçar uma gênese. Gênese esta
diretamente relacionada às influências das práticas musicais
caipira11 e gaúcha12 no universo cultural caboclo.
11 A definição de música caipira utilizada neste trabalho diz respeito àprodução musical ligada à indústria cultural dos grupos urbanos do interiorde São Paulo. Assim como afirma Oliveira, “o meio rural e as identidadesnele baseadas, como caipira, constituem valores destes trabalhadoresurbanos, mas que, em sua maioria, têm suas histórias de vida direta ouindiretamente ligadas ao campo” (2004: 31 – grifado no original). Nestadefinição temos as duplas caipiras, como Tião Carreiro e Pardinho, Tonico eTinoco, Pena Branca e Xavantinho, entre outros. 12 O conceito de música gaúcha em uso trata das práticas musicaisprovenientes diretamente dos movimentos nativistas oriundos em grande partedo Rio Grande do Sul. Estes movimentos encontram grande força também noplanalto e oeste catarinense, mantidos em grande parte pelos Centros deTradições Gaúchas (CTGs).
32
Inicialmente tem-se que, ao se observar a preponderância
do violão e da gaita como instrumentos centrais da prática
cabocla, pode-se tomar este dado como decorrente diretamente
da influência da formação instrumental presente no universo
gaúcho. Isto se torna ainda mais claro quando se percebe que a
região ocupada por caboclos foi passagem dos tropeiros que
traziam o gado do Rio Grande do Sul, berço da cultura gaúcha,
para as feiras de São Paulo.
A explicação nativa vai ao encontro desta explicação
quando um caboclo afirma que “outros instrumentos aqui é muito
difícil de encontrar, porque na região do oeste, se tiver
quinhentas pessoas, se mandar levantar quem veio do Rio Grande
do Sul quase dá cem por cento” (R. F.).
Entretanto, a influência das práticas musicais gaúchas não
se limita à problemática da instrumentação. Ela se reflete
também com relação aos estilos utilizados nas práticas
musicais caboclas. No discurso nativo, a existência de tais
estilos está diretamente ligada ao universo cultural gaúcho.
Esses estilos estão relacionados às danças que ocorrem durante
os bailes e, dessa maneira, são reconhecidos a partir da sua
estruturação rítmica, uma vez que é esta estruturação que
garante a possibilidade de se dançar.
Desta maneira, a diferença entre os estilos reside nas
estruturas rítmicas, mais propriamente nas diferenças de
andamento, compasso e padrão rítmico realizado pela gaita e
violão em conjunto.
Com relação à influência das práticas musicais caipiras
junto ao universo cultural caboclo, elas estão basicamente
33
ligadas aos aspectos de construção melódica e das temáticas
utilizadas nas canções. Essa influência é encarada a partir da
problemática da indústria cultural, uma vez que no século XX
esse gênero musical foi diretamente associado ao universo
rural brasileiro, sendo divulgado por todo o Brasil através do
rádio.
Junto ao primeiro ponto levantado, a estrutura de
construção melódica do canto, tem-se que esta formação
específica de duplas de cantores, possuindo entre suas vozes
um paralelismo rígido de intervalos de terça e sexta, remete
diretamente a esse universo musical. Esta afirmação é
fortalecida à medida em que as próprias músicas interpretadas
fazem parte desse repertório caipira. Além disto, quando
perguntados, os nativos afirmam que um dos meios pelos quais
eles aprenderam tais músicas foi através do rádio, que foi o
principal meio de transmissão dessas práticas musicais.
Já a respeito do segundo ponto levantado, observa-se que
no discurso nativo há a preferência por temáticas que abordem
as questões do meio rural, temáticas estas que caracterizam as
práticas musicais caipira. Faz-se necessário, porém, afirmar
que tal preferência também ocorre devido ao trabalho de
movimentos sociais, tais como o MST e a CPT (Comissão Pastoral
da Terra), que privilegiam a discussão acerca do entendimento
da terra enquanto direito de todos e, conseqüentemente,
privilegiam a preocupação com a terra em detrimento das
questões calcadas na individualidade, tais como problemas
amorosos.
34
Desta maneira, afirmo que uma “gênese” das práticas
musicais caboclas de caráter secular leva ao confrontamento
das influências das práticas musicais gaúcha e caipira, não
vistas sob um olhar dicotômico, mas sim sob um caráter
dialético que adota como síntese deste conflito os aspectos
musicais próprios das práticas musicais caboclas.
*
As práticas religiosas caboclas, como aponta Iunskovski
(2002) e Welter (2003), estão vinculadas a uma problemática
mais abrangente, que é a do catolicismo popular. Esse
catolicismo popular, em contraposição às práticas oficiais da
Igreja Católica, é marcado por uma série de fatores tais como
a devoção à santos, batismo em casa, pagamento de promessas
(denominados de desagravos) e, ainda, a participação em
práticas musicais características, como o terço cantado e a
recomenda das almas.
Esses fatores garantem à prática religiosa cabocla uma
unidade, visto que são fatores que estão presentes na prática
religiosa de vários grupos caboclos da região geopolítica aqui
enfocada.
Observando-se o canto Meu Jesus está morto executado pelo
grupo de caboclos de São José do Cerrito e da Comunidade
Cafuza de José Boiteux, percebe-se uma clara semelhança na
estrutura melódica dos dois cantos:
35
Comunidade Cafuza de José Boiteux
As diferenças existentes com relação à melodia dizem
respeito apenas a algumas notas, onde o grupo de São José do
Cerrito realiza um portamento sobre a última sílaba da palavra
“Jesus” e “coberto”.
Com relação ao canto Ave Maria, executado pelo grupo de
Taquaruçu e de São José do Cerrito, as semelhanças não são tão
visíveis. Entretanto, percebe-se que ambas possuem o mesmo
movimento melódico em quase toda a peça:
Observando-se a última frase (“Agora e na hora de nossa
morte, amém Jesus”), verifica-se que ambas possuem o mesmo
36
São José do
Taquaruçu
São José do Cerrito
desenho melódico, apenas estão numa relação intervalar de
terça diatônica.
Além das semelhanças musicológicas, a estrutura da
perfomance destas práticas é a mesma. Nos grupos trabalhados,
a recomenda das almas e o terço cantado seguem a mesma
estrutura e a mesma divisão de tarefa, além de utilizarem das
mesmas categorias para definir as diferentes atividades, como
por exemplo, o uso do termo capelão para designar o
responsável pelo início dos cantos e a divisão das vozes em
“baixão” e “fininho”
Estas semelhanças apontam para uma unidade nas práticas
musicais de caráter religioso dentro do universo caboclo, uma
vez que estes grupos abordados não possuem relações sociais
entre si. Entretanto, todos estes grupos trabalhados possuem
uma mesma matriz cultural, que é a Guerra do Contestado e a
ocupação cabocla na área geopolítica aqui estudada.
*
A influência do processo migratório junto à população
cabocla e a interação entre essa população e a sociedade
industrial abrangente pode ser observada com relação a algumas
questões específicas. Obviamente que a real influência desses
processos não pode ser encerrada num trabalho como este que
tem, do ponto de vista teórico, um alcance limitado. Ainda
assim levanto como aspectos que merecem atenção a questão da
mudança da razão dos bailes, o uso de outros instrumentos que
não estão diretamente associados ao universo simbólico
37
caboclo, o conflito entre modernidade e tradição presentes no
discurso sobre as práticas musicais caboclas e o abandono de
práticas musicais religiosas dentro do universo urbano.
Com o processo de migração e, conseqüentemente, o contato
cada vez mais intenso com a sociedade industrial ao redor, os
bailes mudam sua condição de existência. Eles passam a
acontecer sem a necessidade de um evento outro que os
justifiquem. Ocorrem agora em salões privados, de posse de
empresários que alugam o espaço única e exclusivamente para
esse fim.
Esta alteração por sua vez muda as relações internas ao
baile, à medida que ele passa a ser visto não mais como uma
atividade interna, organizado pelos indivíduos que irão
participar, mas sim como um serviço a ser prestado por uma
pessoa jurídica. Desta maneira, o baile não é mais encarado
como próprio da comunidade e, sim, próprio de uma estrutura de
mercado. Obviamente que ainda há os bailes decorrentes de
festas religiosas ou comemorações internas, onde essa relação
permanece.
Uma conseqüência direta desta mudança diz respeito aos
músicos que atuam nesses bailes. São agora músicos
contratados, seguindo uma lógica de mercado, acordada
previamente. Desta maneira, o contrato determina
especificamente por quantas horas irá ocorrer o baile. A
despeito do que era realizado anteriormente, quando os músicos
tocavam “até não sobrar mais ninguém no baile”, sem
perspectiva de término.
38
Outro aspecto diz respeito à incorporação de outros
instrumentos, além da gaita e do violão, junto à prática
musical cabocla. Influenciados pela música nativista gaúcha,
que ao se integrar à indústria cultural passa a utilizar
instrumentos que necessitam de captação elétrica (contrabaixo,
guitarra e microfonação para as vozes) e bateria, os bailes
realizados pelos caboclos passam a adotar a mesma
instrumentação.
Entretanto, no universo cultural desses caboclos permanece
ainda a imagem da gaita e do violão como próprios da música
cabocla. Isto demonstra a força que esses dois instrumentos
possuem dentro do universo caboclo. A despeito das alterações
que ocorrem junto às práticas musicais caboclas, quando se
fala em música o caboclo se remete imediatamente à figura
desses dois instrumentos.
Um terceiro aspecto a ser apresentado está relacionado com
a problemática envolvendo a relação entre o moderno e o
tradicional. Este aspecto se apresenta, principalmente, na
questão do discurso dos músicos anteriores à geração de 70 em
oposição à fala dos músicos mais novos. Isto por que os
músicos da geração de 70, ao afirmarem que a música está se
desvirtuando, voltam-se para um discurso que valoriza o
tradicional em detrimento do moderno. Estes atribuem esta
desvirtuação principalmente à mudança nas temáticas das
canções, onde não mais o meio rural e a questão da terra é
central, mas sim questões próprias da individualidade humana,
principalmente temáticas introspectivas e relacionadas à
afetividade.
39
Em contrapartida, alguns jovens ligados a movimentos
sociais adotam este discurso e propõem uma valorização dos
temas relacionados à vida rural.
Entretanto, este processo não deve ser visto como um mero
jogo de forças, pois eles sintetizam o próprio conceito de
música cabocla em uso pelos nativos. Apesar do discurso pouco
inclusivo, a prática musical feita por esses músicos da
geração de 70 utiliza canções que o próprio discurso
repudiaria. Isto não demonstra uma incoerência e, sim, a
própria dinâmica da vida humana.
Como último aspecto a ser apresentado, encontram-se as
práticas musicais religiosas. Essas práticas, quando dentro do
processo de êxodo rural, são abandonadas pelos caboclos,
apesar de permanecerem vivas na memória. A razão desse
processo está ligada ao fato de que, segundo Iunskovski
(2002), os capelães que eram os responsáveis pela execução e
ensino dessas práticas não participam desse processo recente
de migração. Além do fato de que estas práticas necessitam de
uma participação massiva de indivíduos que as conheçam, algo
que é dificultado pelo modo de vida urbano, calcado na
individualidade.
Não se trata aqui de querer defender um modo de vida
tradicional pensando-o como estático, mas sim de entender as
mudanças dentro do universo musical a partir da observação de
questões extra-musicais.
*
40
Ao se observar o modo de vida caboclo, nota-se que a
relação que este tem com o trabalho não se dá de maneira
rígida, com horários fixos. Durante as visitas feitas ao
campo, não foram raras as vezes em que moradores deixavam de
ir ao trabalho para conversar conosco, demonstrando que a
relação que eles possuem com o trabalho é mais maleável, na
medida em que apenas têm tarefas a cumprir e não horários.
Segundo um morador de um assentamento de Fraiburgo, a relação
que os caboclos tradicionalmente têm com o trabalho é
extremamente flexível, sendo que “o pessoal de antes, aqui da
região, ia passear na casa um do outro e ficavam. Vinham e
posavam e voltavam só no outro dia” (N. M.). Desta maneira,
havia um espaço bem flexível para as relações de sociabilidade
para estes caboclos
Estas relações se alteram à medida que os meios de
produção modernos vão se inserindo no seu cotidiano e eles
passam a trabalhar segundo exigências do mercado. Assim, o
espaço de sociabilidade sofre alterações à medida em que os
caboclos passam então a ter um horário fixo de trabalho.
É seguindo esta perspectiva que afirmamos que as práticas
musicais caboclas estão diretamente atreladas ao espaço de
sociabilidade, à medida que elas sempre acontecem no espaço do
tempo livre, quando os caboclos não estão trabalhando, com o
claro intuito de criar um momento de congraçamento entre eles.
Nos grupos observados, a prática musical é tratada enquanto
promotora de um espaço de sociabilidade entre os indivíduos,
onde então ocorrem as relações sociais com o grupo mais
abrangente, além da própria família. Isto porque os bailes e
41
as cantorias passam a gerar um momento de descontração que
propicia então estas relações sociais.
É através desse momento que os caboclos “esquecem” sua
condição de vida marcada pela dificuldade e preconceito. Na
própria fala cabocla, tendo-se festa, os problemas podem ser
enfrentados.
A diferença entre as duas categorias nativas que tratam
dos eventos seculares onde ocorrem as práticas musicais
caboclas, o baile e a cantoria, reside no espaço onde estas
ocorrem. O baile é um evento que está circunscrito dentro de
um espaço público, onde a interação social ocorre com o grupo
mais abrangente que está em articulação com os caboclos, uma
vez que esses caboclos não mais se encontram vivendo em
isolamento relativo. Já a cantoria se restringe, via de regra,
ao espaço familiar ou, no máximo, ao espaço de interação mais
próximo. É um espaço interno ao próprio grupo.
Além da diferença espacial entre estas duas categorias,
existe ainda uma diferença na função de sociabilidade de cada
uma delas. O baile possui uma função de proporcionar um
momento de sociabilidade onde é a interação com o outro que se
torna central, seja ele um outro não caboclo ou um caboclo de
outro grupo familiar. É aí que ocorrem os processos de
relacionamentos afetivos, sejam eles amorosos ou de amizade.
A cantoria por sua vez tem o papel de articular as
relações familiares. Este é um dos espaços onde o grupo
familiar se sociabiliza, uma vez que a execução musical é
entrecortada de conversas sobre os mais variados assuntos.
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A questão que envolve a construção de uma identidade
musical cabocla pode, então, ser observada a partir da
constatação de aspectos sócio-musicológicos comuns a grupos
que não possuam relações sociais entre si. Essas constatações
dizem respeito ao entendimento de três pontos centrais já
apresentados: o reconhecimento da “gênese” das práticas
musicais seculares caboclas enquanto resultado da interação
entre música gaúcha e música caipira, a verificação das práticas
musicais religiosas enquanto práticas que garantam unidade à
religiosidade cabocla e o entendimento das práticas musicais
caboclas enquanto aspecto indispensável da sociabilidade
cabocla.
Estes aspectos por sua vez, estando inseridos num processo
identitário maior (a construção da identidade cabocla),
encontram-se dentro do processo migratório, uma vez que tal
processo é parte inerente da própria cultura cabocla. Desta
maneira, a desvinculação cada vez maior das práticas musicais
do cotidiano dos indivíduos caboclos deve ser encarada de
maneira que não enxergue esta população como simples vítima de
um processo externo, mas sim como participantes ativos de sua
própria história.
Assim sendo, o conflito entre moderno e tradicional
presente no discurso de músicos caboclos, em certa medida um
discurso modernista, deve ser encarado como parte
indissociável deste processo pelo qual passam os caboclos. As
questões identitárias aqui em jogo de maneira alguma podem ser
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vistas enquanto resultado de uma simples contradição
maniqueísta. À medida que avança o conflito presente neste
discurso, a própria identidade musical cabocla vai sendo
construída.
Entretanto, de maneira alguma se deve, em prol de um
discurso politicamente correto, perder de vista a constante
violência, perpetrada pela sociedade industrial, pela qual
passa esta população cabocla. Esta violência, seja ela
simbólica ou física, pode ser verificada, por exemplo, na
total invisibilidade dada ao Movimento do Contestado, tido
como matriz cultural desta população.
Ainda se verifica tal violência presente no discurso
oficial, que afirma que o estado de Santa Catarina é um estado
branco, europeu e, por conseqüência, civilizado e pacífico.
Esta afirmação, por sua vez, trata de ignorar o processo
conflituoso de ocupação desta área geopolítica. Um processo
onde diversas famílias foram e continuam sendo expropriadas,
quando não dizimadas. Isto pode ser claramente observado no
velho jargão utilizado para definir o processo de colonização
européia no estado: “Um povo sem terra para uma terra sem
povo”. Tal jargão garante uma total invisibilidade às
populações indígenas e caboclas existentes nesta região.
Por conseqüência também desta violência, práticas musicais
vão sendo constantemente fortalecidas por aqueles indivíduos
que se vêem enquanto autores de sua própria história. Este
processo se observa com muita força com relação à prática da
recomenda das almas, uma vez que, ao invés de ser abandonada
pelos caboclos, à medida que os mais idosos vão falecendo,
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esta prática é “recuperada” pelos mais novos, que realizam
então um processo de pesquisa junto à memória do grupo.
Este fato merece um estudo mais aprofundado onde, além da
própria descrição densa sobre esta prática, deverá ser feito
uma leitura do processo de “recuperação” e os motivos por trás
deste processo. Sem dúvida alguma, a recomenda das almas é uma
prática que pode acrescentar muito na busca pelo entendimento,
e conseqüente ação política, da população cabocla.
Ao término deste trabalho devemos acrescentar ainda que o
estudo das populações caboclas trouxe duas contribuições à
academia. A primeira delas diz respeito inicialmente à
constatação de que o trabalho central da universidade é formar
cientistas. Em segundo lugar, que a ciência praticada por
estes cientistas deve estar a serviço da busca por uma
sociedade igualitária, onde a exploração do homem pelo homem
não mais deva ser encarada como fato naturalizado. É função
também da ciência permitir com que grupos marginalizados
tenham alcance às mesmas “armas” utilizadas pelo grupo que
marginaliza.
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