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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA Narjara Oliveira Reis COMO DAR CERTO EM PORTUGUÊS? A EXPERIÊNCIA DE MÃES IMIGRANTES APRENDIZES DE PORTUGUÊS EM FLORIANÓPOLIS Florianópolis 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA

Narjara Oliveira Reis

COMO DAR CERTO EM PORTUGUÊS? A EXPERIÊNCIA DE MÃES IMIGRANTES

APRENDIZES DE PORTUGUÊS EM FLORIANÓPOLIS

Florianópolis

2021

Narjara Oliveira Reis

COMO DAR CERTO EM PORTUGUÊS? A EXPERIÊNCIA DE MÃES IMIGRANTES

APRENDIZES DE PORTUGUÊS EM FLORIANÓPOLIS

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em

Linguística da Universidade Federal de Santa

Catarina para obtenção do título de Doutora em

Linguística.

Orientadora: Profa. Maria Inêz Probst Lucena, Dra.

Coorientador: Prof. Carlos Maroto Guerola, Dr.

Florianópolis

2021

Narjara Oliveira Reis

Como dar certo em português? A experiência de mães imigrantes aprendizes de

português em Florianópolis

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca

examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Glenda Cristina Valim de Melo, Dra.

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Prof. Denilson Lima Santos, Dr.

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira

Profa. Cristine Görski Severo, Dra.

Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Daniel do Nascimento e Silva, Dr.

Universidade Federal de Santa Catarina

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi

julgado adequado para obtenção do título de doutora em Linguística pelo Programa de Pós-

Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina.

____________________________

Prof. Valter Pereira Romano, Dr.

Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Linguística

____________________________

Profa. Maria Inêz Probst Lucena, Dra.

Orientadora

Florianópolis, 2021

Dedico este trabalho a todas as Claitaines do mundo,

mulheres que se veem compulsoriamente apartadas de

seus filhos em busca de oportunidades de trabalho a

quilômetros de distância de casa sem nenhuma garantia.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Universidade Federal de Santa Catarina, instituição que me permitiu a

realização desta pesquisa;

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela

bolsa de estudos concedida durante o doutorado, contemplando o período de licença

maternidade e os cinco meses de prorrogação referentes à pandemia do Coronavírus;

Ao Programa de Pós-Graduação em Linguística, que me acolheu enquanto doutoranda

mãe em todos os meus direitos, nas pessoas de meus/minhas professores/professoras e dos/as

secretários/as, coordenadores/as e vice-coordenadores/as do programa;

Aos meus orientadores, Prof.ª Dr.a Maria Inêz Probst Lucena e Prof. Dr. Carlos Maroto

Guerola que, paciente e incansavelmente, conduziram, de modo comprometido e próximo, o

processo de orientação, sempre privilegiando o rigor dos procedimentos etnográficos, a

fidelidade à perspectiva dos participantes da pesquisa e a ética no tratamento analítico dos dados

gerados em campo. Com eles, fui levada a ir muito além do que me imaginava capaz;

Aos membros da banca de qualificação, Prof.a Dr.a Glenda Cristina Valim de Melo e

Prof.a Dr.a Cristine Görski Severo, pelas valiosas contribuições ao trabalho;

Aos membros da banca de defesa, Prof.a Dr.a Glenda Cristina Valim de Melo, Prof.a

Dr.a Cristine Görski Severo, Prof. Dr. Denilson de Lima Santos e Prof. Dr. Daniel do

Nascimento e Silva, pelos encaminhamentos sugeridos às reflexões gestadas na tese.

Ao querido Prof. Dr. Daniel do Nascimento e Silva pela coordenação da experiência

de estágio de docência, pelo exemplo de força, de luta, de serenidade, de altíssima qualificação,

de humildade e de grande professor que é, ensinando-me que o papel do professor é também

afetivo, ao contribuir para que o aluno acredite em si mesmo e caminhe sempre mais;

Ao querido Prof. Dr. Sinfree Makoni, pela possibilidade de interlocução, pelo seu

interesse e entusiasmo com que me sugeriu olhares possíveis para esta pesquisa.

Aos meus colegas de doutorado: Cristian (Cristian Goulart), Dani (Danielle Sousa),

Helô (Heloísa Tramontim), Ana (Elterman), Renata (Ferreira) Carol (Caroline Rodrigues), Lu

(Luiziane Rosa), Aninha (Ana Paula), Ana (Gil), Éderson, Kamilla, Mari (Belando) e vários

outros que me apoiaram mais ou menos diretamente na realização deste projeto, em especial, à

Tayse Marques, que, para além de uma colega, tornou-se uma grande amiga;

Às alunas participantes da pesquisa, Claitaine, Neli, Marlene e Rosario, que

gentilmente aceitaram a proposta, e com as quais tenho aprendido a ser uma pessoa mais forte;

Às participantes voluntárias do Curso de português para mães imigrantes, que se

dispuseram a estar com as crianças realizando atividades aos sábados pela manhã;

Aos funcionários do CRAI-SC e aos voluntários da ONG OPR, por todo o apoio;

Às professoras Dr.a Rosane Silveira e Dr.a Donesca Cristina Puntel Xhafaj,

coordenadoras do projeto PLAM-UFSC, à Laura Viana, à Ana Flávia Marcelino e à Janaína

Santos, pelo apoio ao projeto e por todo o engajamento com os imigrantes em Florianópolis;

À Prof.a Dr.a Cristiane Lazzaroto-Volcão e à amiga de barriga Ania, pela doação de

brinquedos e livros para o espaço destinado às crianças.

A Helena de Sturdze e o Caio Martins, pelas oportunidades de interlocução e atuação

no âmbito do projeto de extensão “Conhecendo a nossa língua: português para estrangeiros” no

IFSC-Florianópolis;

Aos meus pais, que têm sido uma base firme, a partir da qual tenho me mantido em pé

ao longo de todo esse período;

Ao meu marido, pelo paizão que é para Ísis, por todo o apoio;

À Ísis, minha filha, que tem me proporcionado os maiores e melhores desafios da vida,

por ter conseguido suportar com maturidade todas as minhas ausências, enchendo-me de

orgulho, ao projetar ser “estudora” quando crescer;

Aos meus sogros, que ficaram muitos sábados cuidando de Ísis, do almoço, da casa,

para que eu pudesse estar com outras mães ensinando a língua portuguesa ou escrevendo a tese;

Ao querido Prof. Dr. Vidomar Silva Filho, pela parceria e toda a expertise empregada

na leitura e revisão do texto;

Às professoras de Ísis: Amanda, Elizabeth, Marta, Keyla e Camila que, mesmo sem

estarem vacinadas, foram trabalhar durante a pandemia, permitindo que eu e outras/os mães e

pais pudéssemos trabalhar;

Ao Augusto e à Du, pelo carinho e cuidado com que cuidaram de Ísis, para que eu

pudesse me dedicar a este trabalho;

À minha irmã e minhas sobrinhas que sempre acreditaram em mim;

Ao meu cunhado, tio Tuxo (Tiê Pereira), que embalou com bastante jazz os caminhos

desta tese, fazendo muitos almoços, ficando com Ísis e não se importando com a luz acesa

durante a madrugada, facilitando os caminhos quando pôde, para que eu pudesse me dedicar a

esta tese;

À Ana Borges, minha psicóloga, por ter me feito acreditar que eu era capaz de trilhar

este caminho, a despeito de todas as minhas inseguranças;

Às famílias Perez, com Alli, André e Amelie, e Lucena, com Marcela, Daniel, Bia e

Marina, que nos têm lembrado de celebrar as pequenas alegrias da vida;

À Ju e Fê, que tanto amor e carinho destinaram a Ísis, pela amizade;

A tantas outras pessoas que me auxiliaram durante todo este período com palavras ou

gestos de apoio.

RESUMO

Com vistas a compreender de que modo o ensino de língua portuguesa pode ir ao encontro de

necessidades e projetos pautados por mulheres-mães-imigrantes, realizei uma investigação

etnográfica como observadora-participante em um curso de português para esse público. Com

base em pressupostos teórico-metodológicos da etnografia da linguagem (ERICKSON, 1990;

LUCENA, 2015; GARCEZ; SCHULZ, 2015; HELLER; PIETKAINEN; PUJOLAR, 2018),

foram privilegiados os significados construídos pelas participantes da pesquisa para suas ações,

levando em conta as relações entre o micro e o macrocontexto da pesquisa que permearam o

campo. Para a geração de dados, foram utilizadas áudio-gravações dos encontros e um diário

de campo. As análises apontam (1) para a necessidade de desenvolver práticas de linguagem de

enfrentamento em um contexto migratório de hospitalidade seletiva; (2) para as urgências e

esperas das alunas que configuram necessidades de aprendizagem específicas em seus projetos

diaspóricos; (3) para a importância da contestação de discursos racistas cristalizados no

imaginário social, que ferem sujeitos/grupos; (4) para a busca por legitimidade de falantes, a

partir do conhecimento recursos linguísticos da língua portuguesa que possibilitem o acesso a

melhores condições de trabalho e de estudo para essas mulheres e seus filhos. A interpretação

dos dados gerados seguiu preceitos da Linguística Aplicada Indisciplinar (MOITA LOPES,

2006), que preconiza a articulação teórica com outras disciplinas para melhor compreender

aspectos sociais implicados no uso da linguagem. O olhar interpretativo se construiu ao longo

da pesquisa em atenção (1) às experiências diaspóricas das alunas como projetos singulares de

negociação de sentidos e identidades (HALL, 2003; 2006); (2) às suas buscas por legitimidade

de falantes em contextos regulamentados de práticas linguísticas no novo contexto

(SIGNORINI, 2002; 2006); (3) às esferas discursivas para as quais pretendem orientar seus

intuitos discursivos (BAKHTIN, 2003; 2010); (4) às posições sociais interseccionadas que

produzem imagens de controle (COLLINS, 2019) que interferem na busca por legitimidade de

falantes em contextos de hospitalidade seletiva. A análise e interpretação das experiências

diaspóricas dessas mães-imigrantes aprendizes de português mostra a complexidade do

deslocamento geográfico, que também é um deslocamento de sentidos. As necessidades e os

projetos enfocados na pesquisa demandam o domínio de gêneros discursivos para esferas de

atividades específicas, como a do trabalho, da escola, da universidade e outras que se modificam

rapidamente, de acordo com as demandas, as urgências e as esperas que se colocam em suas

vidas. No tocante ao ensino de Português como Língua Adicional (PLA), esta investigação

aponta para a importância de priorizarmos o olhar para a indissociabilidade da língua na vida

dos sujeitos aprendentes, levando em conta necessidades e projetos reais em planejamentos

curriculares de cursos de português para mães imigrantes em contextos similares. Tomando

distância de perspectivas assimilacionistas, esta investigação importa, ainda, para a reflexão

sobre o conceito de português como língua de acolhimento (PLAc), considerando a importância

política do conceito, mas questionando a hospitalidade seletiva do contexto migratório

brasileiro.

Palavras-chave: 1. Etnografia da linguagem 2. Mães imigrantes 3. Português como Língua

Adicional 4. Português como Língua de Acolhimento

ABSTRACT

In order to understand how Portuguese language teaching can meet the needs and projects of

immigrant mothers, I conducted an ethnographic research as a participant observer in a

Portuguese language course for this audience. Based on theoretical and methodological

assumptions of language ethnography (ERICKSON, 1990; LUCENA, 2015; GARCEZ;

SCHULZ, 2015; HELLER; PIETKAINEN; PUJOLAR, 2018), the meanings constructed by

the research participants for their actions were privileged, taking into account the relationships

between the micro and macro-contexts of the research that permeated the field. For data

generation, audio recordings of the meetings and a field diary were used. The anlaysis point to

(1) the need to develop language practices of confrontation in a migratory context of selective

hospitality; (2) the urgencies and expectations that configure specific learning needs in the

diasporic projects of the students; (3) the importance of contesting racist discourses crystallized

in the social imaginary that hurt subjects/groups; (4) the search for legitimacy as speakers, based

on the knowledge of linguistic resources of the Portuguese language that enable access to better

working and studying conditions for those women and their children. Data interpretation

followed the precepts of Indisciplinary Applied Linguistics (MOITA LOPES, 2006), which

advocates the theoretical articulation with other disciplines to better understand the social

aspects involved in the use of language. The interpretative look was built along the research

paying attention (1) to the diasporic experiences of the students as singular projects of

negotiation of meanings and identities (HALL, 2003; 2006); (2) to their searches for legitimacy

as speakers in regulated contexts of linguistic practices in the new context (SIGNORINI, 2002;

2006); (3) to the discursive spheres towards which they intend to orient their discursive intents

(BAKHTIN, 2003; 2010); (4) to the intersecting social positions that produce controlling

images (COLLINS, 2019) that interfere with the search for speaker legitimacy in contexts of

selective hospitality. The analysis and interpretation of the data emerging from the diasporic

experiences of these Portuguese-learner immigrant mothers shows the complexity of

geographical displacement, which is also a displacement of meanings. The needs and projects

focused on in the research demand the mastery of discourse genres for specific spheres of

activity such as work, school, university, and others that change rapidly according to the

demands, urgencies, and expectations that arise in their lives. Regarding the teaching of

Portuguese as an Additional Language (PAL), this research points to the importance of

prioritizing the inseparability of language in the lives of the learners, considering real needs and

projects in curriculum planning of Portuguese courses for immigrant mothers in similar

contexts. Taking distance from assimilationist perspectives, this research is also important to

reflect on the concept of Portuguese as a Host Language (PHL), considering the political

importance of the concept, but questioning the selective hospitality of the Brazilian migratory

context.

Keywords: 1. Language ethnography 2. Immigrant mothers 3. Portuguese as an additional

language 4. Portuguese as a host language

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Cartaz de pré-cadastro para o curso de Português para Mães Haitianas ................. 37

Figura 2 – Cartaz sobre Curso de Português para Mães Imigrantes ......................................... 42

Figura 3 – Mensagem de WhatsApp ...................................................................................... 149

Figura 4 – Mensagem de WhatsApp ...................................................................................... 155

Figura 5 – Mensagem de WhatsApp ...................................................................................... 155

Figura 6 – Troca de mensagens por WhatsApp ...................................................................... 156

Figura 7 – Troca de mensagens por WhatsApp ...................................................................... 157

LISTA DE QUADROS E TABELAS

Quadro 1 – Registro em áudio das aulas dos dois semestres do curso ..................................... 49

Quadro 2 – Informações gerais sobre as alunas participantes da pesquisa .............................. 52

Tabela 1 – Número de vistos de trabalho concedidos a imigrantes no Brasil entre 2011

e 2017, por país de origem ..................................................................................... 81

Tabela 3 – Número de vistos de trabalho concedidos a imigrantes no Brasil entre 2011

e 2017, por sexo...................................................................................................... 82

Tabela 3 – Distribuição relativa , segundo idade, por sexo, dos imigrantes venezuelanos

ingressantes em Boa Vista, RO, em 2017. ............................................................. 85

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados

CEPSH-UFSC Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina

CCE Centro de Comunicação e Expressão

CRAI-SC Centro de Atendimento de Referência a Imigrantes de Santa Catarina

CRAS Centro de Referência de Assistência Social

DIP Departamento de Integração Acadêmica e Profissional

DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos

IFSC Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina

OIM Organização Internacional para a Migração

ONU Organização das Nações Unidas

OPR Organização Pelos Refugiados

PLAM Português como Língua de Acolhimento a Imigrantes e Refugiados

TICEN Terminal Integrado do Centro

TITRI Terminal Integrado da Trindade

UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina

UFSC Universidade Federal de Santa Catarina

NAIR Núcleo de Apoio a Imigrantes e Refugiados

NEGRIs Núcleo de Estudos Críticos de Raça e Gênero nas Relações Internacionais e no

Departamento de Integração Acadêmica e Profissional

NUPLE Núcleo de Pesquisa e Ensino de Português Língua Estrangeira

ObMigra Observatório das Migrações

ONU Organização das Nações Unidas

RI Relações Internacionais

RMF Região Metropolitana da Grande Florianópolis

CONVENÇÕES PARA TRANSCRIÇÃO

(baseadas em Bloomaert e Jie, 2010)

(*) fala não compreendida

, pausa breve

(...) pausa longa

// fonema

[] realização fonológica

[] comentário da autora

SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................... 17

1.1 INQUIETAÇÕES PRELIMINARES ................................................................................. 20 1.2 O OLHAR INICIAL DA PESQUISA PARA MÃES HAITIANAS ................................. 22 1.3 DA INVESTIGAÇÃO SOBRE MÃES HAITIANAS À PESQUISA SOBRE MÃES

IMIGRANTES .................................................................................................................... 25

2 UM OLHAR ETNOGRÁFICO .......................................................................................... 28

2.1 O CENÁRIO DA PESQUISA ............................................................................................ 32 2.1.1 A Universidade Federal de Santa Catarina ...................................................................... 32 2.1.2 As salas de aula do curso ................................................................................................. 33 2.1.3 O curso de português para mães imigrantes .................................................................... 34

2.2 A HISTÓRIA NATURAL DA PESQUISA ....................................................................... 45 2.2.1 As questões éticas ............................................................................................................ 45 2.2.2 Diário de campo............................................................................................................... 48 2.2.3 As áudio-gravações.......................................................................................................... 48

2.2.4 A emergência das questões de análise ............................................................................. 50

2.3 AS PARTICIPANTES DA PESQUISA ............................................................................ 52 2.3.1 Claitaine ........................................................................................................................... 54 2.3.2 Neli .................................................................................................................................. 58

2.3.3 Marlene ............................................................................................................................ 60 2.3.4 Rosario ............................................................................................................................. 63

2.3.5 Narjara ............................................................................................................................. 65 2.4 A ELABORAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO ............................................................ 66

3 A BUSCA PELOS USOS LINGUÍSTICOS LEGÍTIMOS NA DIÁSPORA ................. 70 3.1 A EXPERIÊNCIA DIASPÓRICA ..................................................................................... 73 3.2 A IMIGRAÇÃO DE MULHERES HAITIANAS, VENEZUELANAS E BÚLGARAS .. 80

3.3 IMIGRANTES NO BRASIL: TRAÇOS DE UMA HOSPITALIDADE SELETIVA ...... 89

3.3.1 Imigração em Santa Catarina: A celebração de uma identidade branca e europeia e a

invisibilização dos “outros” ............................................................................................ 93 3.3.2 Imigração em Florianópolis: os imigrantes locais e os haules ........................................ 97 3.4 LÍNGUA DE ACOLHIMENTO: UM CONCEITO SÓCIO-HISTORICAMENTE

SITUADO ......................................................................................................................... 100

3.4.1 O Português como Língua Adicional (PLA) e a Translinguagem................................. 115 3.4.2 A perspectiva de uso da linguagem por Bakhtin ........................................................... 119 3.5 A LEGITIMIDADE NOS USOS LINGUÍSTICOS ......................................................... 125 3.6 RAÇA COMO UM SIGNIFICANTE FLUTUANTE ..................................................... 133

4 “COMO DAR CERTO” EM PORTUGUÊS? ................................................................ 146 4.1 “VAI DEMORAR MUITO... EU NÃO POSSO FICAR SEM TRABALHO”: PRÁTICAS

DE LINGUAGEM DE ENFRENTAMENTO FRENTE ÀS URGÊNCIAS COTIDIANAS

.......................................................................................................................................... 146 4.1.1 “Infelizmente, não podemos fazer nada!”: traços de uma hospitalidade seletiva ......... 147 4.1.2 “Tengo pressa de estudiar el português, muita pressa!”: a relativização das identidades e

das necessidades frente à compressão do espaço-tempo .............................................. 154

5 AS FRONTEIRAS DE SIGNIFICADO ENTRE A TRADIÇÃO E A TRADUÇÃO . 167

5.1 “NEGRO NÃO, MARROM FOFINHO”: AS FRONTEIRAS DE SIGNIFICADO PARA

O TERMO NEGRO .......................................................................................................... 168

5.2 “É MUITO COMPLICADO NÃO FALAR CORRECTAMENTE O PORTUGUÊS”:

BORDAS E FRONTEIRAS NA BUSCA PELA LEGITIMIDADE LINGUÍSTICA ..... 178

6 COMO MULHERES-MÃES-IMIGRANTES FAZEM PARA “DAR CERTO EM

PORTUGUÊS”: CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 209

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 214

ANEXO A – FICHA DE PRÉ-INSCRIÇÃO DE MÃES HAITIANAS PARA O CURSO. . 230 ANEXO B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA MÃES

HAITIANAS ..................................................................................................................... 231 ANEXO C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA MÃES

HAITIANAS EM CRIOULO ........................................................................................... 234

ANEXO D – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA

PROFESSORES ............................................................................................................... 237 ANEXO E – MATERIAL DIDÁTICO “FALANDO DE MIM: PALE DE MWEN”

SEMESTRE 2019/2 – MÓDULO I .................................................................................. 240 ANEXO F – MATERIAL DIDÁTICO “ATIVIDADES DIRECIONADAS: Trabalhando nas

nossas dificuldades” SEMESTRE 2019/2 – MÓDULO II ............................................... 254 ANEXO G – CÓPIAS DE E-MAILS SOBRE PARTICIPAÇÃO DO PROJETO DE ENSINO

AOS REFUGIADOS NO IFSC ........................................................................................ 261

17

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Na última década, testemunhamos um aumento significativo da chegada de

contingentes populacionais no Brasil provenientes de países do Sul Global a provocar uma série

de respostas improvisadas das redes oficiais de recepção de imigrantes da sociedade brasileira

(BAENINGUER, 2016; SILVA, 2017). Noticiados na mídia em alojamentos precários e em

albergues superlotados, como invasores, fugitivos e ilegais no país, esses grupos de imigrantes

têm sido alvo de tensões entre governadores (COGO; SILVA, 2015), de explorações no

mercado de trabalho, de xenofobia e de racismo (SILVA; ROCHA; D’ÁVILA, 2020). Também

têm sido também motivo de debate e de encaminhamentos inéditos nos órgãos relacionados à

imigração, como a concessão do visto humanitário a imigrantes provenientes do Haiti, por

exemplo (BAENINGER et al, 2016).

Como resposta às demandas relativas à chegada desse contingente populacional com

buscas variadas de recursos como trabalho, moradia e escola para seus filhos1, diferentes atores

e instituições da sociedade civil têm-se articulado em ações independentes que visam ao que

denominam de “acolhimento” a esse público. Nesse contexto, a língua portuguesa tem sido

colocada como um desses recursos, associada ao controverso conceito de língua de

acolhimento.

O conceito de língua de acolhimento foi transplantado de Portugal para o Brasil por

investigações comprometidas em questionar a improvisada e ineficiente recepção

governamental a essa demanda (AMADO, 2013). A aplicação do conceito ao contexto

brasileiro tem gerado recentes debates na agenda reflexiva da Linguística Aplicada Indisciplinar

(MOITA LOPES, 2006), a partir de trabalhos como Anunciação (2018), Bizon e Camargo

(2018), Diniz e Neves (2018), Ruano (2019), Lopez (2016; 2020), Anunciação e Camargo

(2020), entre outros. Em atenção às perspectivas epistemológicas das políticas linguísticas em

ações “de acolhimento”, essas/es autoras/es têm apontado ideologias, como a monolíngue, que

orientam o entendimento de “língua” e “de acolhimento” circunscritas a políticas de Estado-

nação que reforçam identidades nacionalistas. Ressignificações do conceito têm sido propostas.

Comprometidos com a problematização do viés assimilacionista de políticas

linguísticas exógenas que levam o conceito de língua de acolhimento como central, esses

1 Frente à ausência de consenso sobre a marcação de gênero que respeite à diversidade, optei, neste trabalho, pela

convenção do gênero masculino como neutro, apesar de concordar que essa forma não seja a mais representativa

da diversidade.

18

estudos lançam ressalvas às ações realizadas no contexto brasileiro. Colocam em questão

procedimentos de regulação de direitos migratórios à língua portuguesa que excluem certos

sujeitos da “partilha” de direitos, a partir da (“falta da”) língua portuguesa (DINIZ, NEVES,

2018), do ensino de língua enquanto cultura e do apagamento da hibridez constituinte das

identidades fluidas, cuja negociação de sentidos e complexidade se intensificam no cenário

diaspórico global (HALL, 2003; 2006). Nessa discussão, a língua majoritária nacional, sob

diferentes olhares epistemológicos em torno do que conta como língua(gem)2, tem sido

colocada como um direito (AMADO, 2013), uma necessidade, uma urgência (SÃO

BERNARDO; BARBOSA, 2018), mas também como um obstáculo para o reconhecimento da

cidadania desses sujeitos na comunidade brasileira (ANUNCIAÇÃO; CAMARGO, 2019;

LOPES, 2020).

Em resposta a este cenário, em que a língua portuguesa é colocada como mais um

tijolo em um muro para esses imigrantes (LOPEZ, 2020), questiono com Lucena

(COMUNICAÇÃO ORAL, 2021): “como, em nossas pesquisas em Linguística Aplicada (LA),

podemos fazer para contribuir, para facilitar o acesso a essa ‘chave de papel’, a essas ‘vidas

nuas’, em meio a uma ‘globalização da indiferença’?3”. “Chave de papel” é uma metáfora para

os documentos que legitimam a presença e permanência de imigrantes e refugiados. Esses três

conceitos, como explicado na fala de Lucena, foram utilizados por Alejo Carpentier, Giogio

Aganbem e pelo Papa Francisco, respectivamente, para referir-se ao imigrante num contexto

global em que cresce a intolerância com o outro, em que identidades culturais reificadas se

fortalecem (HALL, 2006), em que barcos de imigrantes afundam, em que fronteiras se cerram,

em que muros são levantados e em que crianças se veem são apartadas de seus pais quando eles

deixam a casa motivados pelo anseio de melhores condições de vida ou mesmo pela necessidade

premente de buscar meios para sobreviver.

No que tange ao escopo desta investigação, situada na LA Indisciplinar (MOITA

LOPES, 2006), vinculada ao grupo Educação Linguística e Pós-Colonialidade, a proposta é a

construção de um olhar atento às exigências da contemporaneidade envolvendo o uso

linguístico em contextos educacionais (LUCENA, 2015). No caso deste trabalho, os

questionamentos em torno de quais seriam as demandas de aprendizagem linguísticas desses

sujeitos me levaram a investigar necessidades e projetos de mulheres-mães em um curso de

português para imigrantes em Florianópolis, capital de um dos principais estados escolhidos

2 Farei uso da forma língua(gem) quando estiver me referindo, ao mesmo tempo, à língua – enquanto sistema

abstrato de formas – e à linguagem – a língua em uso. 3 Comunicação realizada em palestra (IMIGRAR, 2021).

19

para esses deslocamentos (SILVA; ROCHA; D’AVILA, 2020). Esse olhar situa o trabalho na

interface entre os estudos migratórios e o ensino de língua portuguesa.

No contato com ações de acolhimento voltadas ao ensino da língua portuguesa na

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no Projeto Português como Língua de

Acolhimento (PLAM) 4, chamou minha atenção a presença de mulheres que levavam seus filhos

consigo, por não terem com quem deixá-los enquanto estudassem a língua portuguesa. Seus

relatos envolviam ter que distanciar-se de seus filhos por meses ou anos, até que conseguissem

estabilizar-se no Brasil e reunir a família. Algumas delas, ainda com seus filhos no Haiti,

associavam a necessidade de trabalho à distância dos filhos e da família, em menção a uma

complexa rede transnacional, peculiar em países como o Haiti, país no qual remessas enviadas

pelos familiares no exterior configuram 20% do PIB nacional (MAGALHÃES; BAENINGER,

2016).

Com o intuito de enfocar, especificamente, necessidades de aprendizagem de mulheres

em situações diaspóricas, como a dessas mães-imigrantes que apresentavam buscas específicas,

foi conduzido um curso voltado para o atendimento a essa demanda na UFSC. Esse curso

contou com a ajuda de outros atores sociais, configurando-se o cenário educacional do qual esta

pesquisa é fruto. Desse cenário, outras questões emergiram, tais como: Quais são as

necessidades e os projetos dessas mulheres-mães-imigrantes enquanto aprendizes de

português? Como projetos de ensino de Português como Língua Adicional (PLA) podem ser

conduzidos a partir de suas pautas? Que sentido teria a concepção de língua de acolhimento

nesse cenário educacional? Como essas discussões podem contribuir para a melhor

compreensão de outros cenários que envolvem configurações semelhantes?

Com base na Etnografia da Linguagem (ERICKSON, 1990; LUCENA, 2012; 2014;

2015; 2020; BLOMMAERT; JIE, 2010; MASON, 1996; HELLER; PIETKÄINEN;

PUJOLAR, 2018) e como sugere Geertz (1983), os significados atribuídos pelas participantes

da pesquisa às ações, às instituições e aos conceitos em que se envolvem foram privilegiados.

Com o intuito de acessar esses diferentes significados, a partir do olhar dessas mulheres-mães-

imigrantes, e de refletir sobre o conceito de língua de acolhimento a partir das buscas pautadas

por elas, de modo a contribuir com o desenho de futuros projetos comprometidos com o

4 Trata-se de um projeto de Extensão do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Português Língua Estrangeira (NUPLE)

da Universidade Federal de Santa Catarina. Com início em 2016, oferece cursos de língua portuguesa a

estrangeiros com visto humanitário ou de refugiado, além de cursos para a formação de professores, preparação

ao Celpe-Bras e outras atividades. Está vinculado à cátedra Sérgio Vieira de Mello da ACNUR. No projeto, os

cursos de português para imigrantes e refugiados são realizados em duas turmas: uma para o nível básico e outra

para o nível intermediário, aos sábados, das 9h às 12h, no Centro de Comunicação e Expressão da UFSC.

20

atendimento às subjetividades de sujeitos em diáspora5 (HALL, 2003; 2006), foi feita a seguinte

pergunta de pesquisa: De que modo o ensino de língua portuguesa pode ir ao encontro de

necessidades e projetos pautados por mulheres-mães-imigrantes?

Para as participantes desta pesquisa, a língua portuguesa é colocada no âmbito da

necessidade, da urgência, do obstáculo e da obrigatoriedade, mas também, como um projeto,

um desafio, um objetivo e um meio de acessar espaços e outros recursos. Marcando a

indissociabilidade entre a vida e a língua(gem) (BAKHTIN, 1997; 2010), suas buscas por

legitimidade nos usos linguísticos evidenciam as constrições de uma ordem sociocultural e

linguística (SIGNORINI, 2006) excludente, perpassada por imagens de controle (COLLINS,

2019) que dificultam a atribuição de legitimidade aos seus usos linguísticos. A despeito dessas

fronteiras, frente às quais se veem na obrigação de reorientar seus enunciados, para os quais

solicitam ajuda da professora de português, evidencia-se, por outro lado, toda a riqueza de suas

negociações de sentido no novo contexto: a construção de redes de afeto; a importância da

manutenção de seus repertórios tradicionais; a ressignificação de suas identidades profissionais;

o envolvimento com a educação de suas filhas em contexto plurilíngue; o desafio de seguir

carregando suas bagagens subjetivas, apesar dos obstáculos que encontram pelo caminho. A

cada passo, as atividades em que se envolvem nas diferentes esferas discursivas requerem

necessidades de aprendizagem distintas circunscritas em tempos específicos, dividindo-se entre

urgências e esperas.

Com vistas a dimensionar essas questões, esta tese foi dividida em quatro capítulos. O

primeiro destinou-se uma breve introdução; o segundo contextualiza a pesquisa e apresenta a

metodologia empregada; o terceiro apresenta e discute os pressupostos teóricos; o quarto e o

quinto abrangem as análises e discussões oriundas dos dados gerados em campo; o sexto e

último capítulo reúne as considerações finais da pesquisa.

1.1 INQUIETAÇÕES PRELIMINARES

Nesta seção, apresento o que Erickson (1990, p. 170) denomina “história natural da

pesquisa” de investigações etnográficas em contextos educacionais. Trata-se de narrar o

percurso que se origina das inquietações da/o investigadora/or quanto ao seu contexto de

5 Nesta pesquisa, o termo diáspora será utilizado na acepção de Hall (2003, p. 415), que compreende o fenômeno

como um processo subjetivo de deslocamento identitário e negociação entre dois lugares, que coloca em xeque a

sensação de pertencimento. O autor refuta os significados originários do termo no texto bíblico, que abrange

sentidos relativos à “expulsão dos demais e a recuperação de uma terra já habitada por mais de um povo”, na

acepção de uma “limpeza étnica” (HALL, 2003, p. 417).

21

trabalho, quando decide melhor compreender “o que está acontecendo” neste campo específico

e o modo como as questões se modificam conforme a realidade do campo investigado

(ERICKSON, 1990, p. 83).

A atenção a questões do mundo que impactavam o uso da língua(gem) levou-me a

questionar a experiência de imigrantes do Haiti no Brasil, após a intensa notificação midiática

sobre a entrada desse contingente na Região Norte, no começo da década de 2010. A tônica das

reportagens, que enfatizava o deslocamento na perspectiva de uma “fuga” e uma “invasão”6

(COGO; SILVA, 2015; CAVALCANTI; 2019; OLIVEIRA; MACEDO, 2019), salientava a

falta de capacidade da sociedade brasileira de gerir aspectos do acolhimento a esses imigrantes,

como a oferta de trabalho.

Cavalcanti (2019) analisa as estratégias discursivas midiáticas na construção de

narrativas sobre a vinda de imigrantes ao Brasil na última década. A autora enfoca, por um lado,

os “problemas nas políticas públicas” conduzidas por civis, por outro, “o atendimento

governamental”, que recorre à apresentação da questão migratória em números incontroláveis,

justificando a ingerência do Estado (CAVALCANTI, 2019, p. 17). Segundo Cavalcanti (2019,

p. 17), esse “vozeamento” seria “uma estratégia para potencializar o valor da narrativa

construída posicionando a migração como ameaça ao mercado de trabalho no país, com taxa

de desemprego alta, em tempo de crise econômica” (ênfase minha). Em suma, além de fugitivos

e invasores, os imigrantes haitianos têm sido considerados uma ameaça ao mercado de trabalho

local.

Santa Catarina logo passou a figurar como um dos locais para onde esses imigrantes

se deslocaram. A região norte do país era uma porta de entrada (Tabatinga, Brasiléia, Assis

Brasil), mas eles buscavam grandes centros e locais em que pudessem encontrar trabalho, e o

6 O jornal O Globo, ao utilizar o termo “invasão” de maneira reiterada para noticiar o deslocamento, chegou a ser

alvo de processos de entidades de apoio à imigração haitiana no Brasil (cf. COGO; SILVA, 2016). Algumas das

matérias jornalísticas de “O Globo” utilizavam o item lexical no título: “Acre sofre com invasão de imigrantes do

Haiti” (CARVALHO, 2012a, grifo meu), “Invasão de haitianos em Brasileia começou em 2010” (CARVALHO,

2012b, grifo meu); “Acre decreta emergência em Brasileia e Epitaciolândia por ‘invasão’ de imigrantes ilegais:

Estado tem grande concentração de estrangeiros em situação irregular, a maioria haitianos” (KRAKOVICS, 2013,

grifo da autora) e “Invasão de haitianos” (GÓES, 2015). Outras reportagens não traziam o termo no título, mas em

outras partes da reportagem, como no caso da reportagem de O Globo intitulada “Haitianos descobrem que sonho

pode virar pesadelo”, em que o vocábulo é empregado na legenda de uma foto: “Invasão de haitianos pela fronteira

do Brasil com a Bolívia em Brasiléia, no Acre” (O GLOBO, 2012, grifo meu); Além do jornal O Globo, outros

veículos de comunicação fizeram uso do termo no título das reportagens, como em “Refugiados haitianos invadem

a cidade de Brasiléia no Acre e preocupam governo do Estado” (LEMES, 2012, grifo meu), ou no corpo, como no

blog do jornalista Ricardo Azevedo (2014), no texto intitulado “Governo petista do Acre agora quer impedir a

imigração de haitianos. Em 2012, alunos foram obrigados a elogiá-la na autoritária e esquerdopata redação do

Enem”, em que menciona as motivações do governo acreano para, segundo coloca, “conter a invasão de haitianos”

(AZEVEDO, 2014).

22

sul do Brasil parecia contemplar essa procura. Como consequência da presença desses

imigrantes em Santa Catarina, departamentos de línguas nas diferentes universidades e

institutos federais começaram a oferecer cursos de português a eles, procurando responder a

essa “urgente necessidade” de “adaptar-se de forma emergencial aos usos linguísticos

predominantes no país” (SILVA, 2017, p. 48).

Na época, eu atuava como professora de português para estrangeiros do Núcleo de

Pesquisa e Ensino em Português Língua Estrangeira (NUPLE) na UFSC, um projeto de

extensão extracurricular. Era 2014 e recebíamos ligações frequentes à procura de cursos para

imigrantes oriundos de deslocamentos forçados. Essas ocorrências, entre outras, apontavam a

importância da investigação desses cenários.

Assim, a necessidade de compreender o impacto da linguagem na experiência de

sujeitos que emigravam sem condições de pagar por um curso de língua portuguesa em

Florianópolis e em busca de emprego, mostrava-se uma questão relevante para uma

investigação situada. Algumas das perguntas que emergiram em minha prática foram: Quais

seriam os objetivos da aprendizagem de português para os imigrantes haitianos? Quem

solicitava esses cursos? Com que objetivos e reais finalidades esses cursos eram realizados?

Em que situações comunicativas estariam esses imigrantes envolvidos? Quais as relações entre

o mercado de trabalho e a aprendizagem de língua portuguesa? Que gêneros do discurso

ensinar? Sob qual perspectiva teórica o curso deveria ser desenvolvido? Quais condições de

aprendizagem de português eram oferecidas nesses cursos?

Com essas questões em mente, participei de cursos de língua portuguesa para

imigrantes nos quais pude observar como ocorriam os processos de ensino e aprendizagem da

língua portuguesa por sujeitos imigrantes, especificamente por mães imigrantes. Mostro esse

trajeto na subseção seguinte.

1.2 O OLHAR INICIAL DA PESQUISA PARA MÃES HAITIANAS

As reflexões acerca das perguntas elencadas ao final da subseção anterior me levaram,

em primeiro lugar, ao afunilamento do tema da pesquisa para o processo de aprendizagem de

português para mães haitianas. Esse recorte se deu a partir de experiências concretas como

professora auxiliar e voluntária de cursos de português voltados a imigrantes no Instituto

Federal de Santa Catarina (IFSC), Campus Florianópolis, em 2016, e na UFSC, no Projeto

PLAM, em 2017. Esses projetos destinavam-se a atender imigrantes gratuitamente.

23

No IFSC, a iniciativa do projeto partiu de uma funcionária haitiana que solicitou à

coordenação pedagógica a criação de um curso para ela e seus/suas conterrâneos/as, todos/as

trabalhadores/as terceirizados/as da instituição. O curso foi oferecido como um projeto de

extensão e não se limitava a funcionários daquela instituição, nem a uma nacionalidade

específica. Na oportunidade, havia duas turmas, uma para o nível básico e outra para o

intermediário e, para cada uma delas, eram ministradas aulas duas vezes por semana, no período

noturno. Apesar de não haver restrição a uma nacionalidade específica, todos os alunos que

frequentavam o curso eram provenientes do Haiti. O projeto teve duração de um ano.

Na UFSC, o Projeto Português como Língua de Acolhimento (PLAM) está ligado ao

Núcleo de Ensino e Pesquisa de Português Língua Estrangeira (NUPLE/UFSC). O PLAM teve

início em 2016 e desenvolvia dois tipos de ação de extensão: formação de professores e oferta

de cursos de língua portuguesa para imigrantes com visto humanitário ou de refúgio. Os cursos

de língua aconteciam em duas salas divididas por nível (básico e intermediário), até o início do

isolamento social em 18 de março de 2020, por conta da pandemia de Covid-19. Em 2017, a

proporção de alunos haitianos era expressiva, mas não total, como no IFSC. Além de comporem

toda a turma de nível básico, ainda tinham presença na sala de nível intermediário, o que

resultava no atendimento de mais de 50% de alunos dessa nacionalidade. A rotatividade dos

estudantes era alta, mas a participação de mulheres era mínima.

Nesses projetos, tive contato com mulheres que estavam grávidas ou que eram mães.

As histórias dessas alunas nem sempre são conhecidas. A título de exemplo, ilustro brevemente

parte de duas dessas inúmeras experiências de mães imigrantes, contando um pouco da história

de Rosa e de Claitaine7, ambas do Haiti.

Rosa, uma das alunas do projeto PLAM da UFSC, ia às aulas com o marido e a

pequena Natacha, de 4 anos. Contou-me que tinha vindo sem sua filha ao Brasil e que o

desmame da menina havia sido feito de maneira abrupta com sua partida para o Brasil. Natacha,

na época com 11 meses de idade, passou a ficar sob os cuidados da avó materna no Haiti, até

que os pais tiveram condições de trazer a menina. Rosa ficou dois anos sem ver a filha e me

relatou a dor que sentiu com essa separação e com a distância.

No caso de Claitaine, seus dois filhos ficaram aos cuidados da sogra no Haiti. Ela

emigrou do seu país sem garantia de emprego. Em Florianópolis, buscou trabalho por meses

planejando enviar uma parte do salário a seus familiares no Haiti, as denominadas remessas

(MAGALHÃES; BAENINGER, 2016). Quando conseguiu emprego, apenas recebeu por um

7 Pseudônimos escolhidos pelas alunas.

24

dos três meses trabalhados, pois seu empregador deixou de pagar-lhe, impactando seus planos.

Todas as alunas provenientes do Haiti que participaram do curso e que tinham filhos estavam

distantes deles, ainda nesta fase da imigração, após a vinda de seus maridos e antes do

estabelecimento do núcleo familiar no Brasil (MEJIA; CAZAROTTO, 2017).

As histórias dessas mulheres, minhas leituras acerca de questões que evocam a

subalternidade (SPIVAK, 2010) e o contato com problematizações do feminismo negro, que

enfocam a experiência da mulher negra criticamente (RIBEIRO, 2017), levaram-me ao

interesse pelo estudo do processo de ensino-aprendizagem de português pelas mulheres

haitianas em Florianópolis. Busquei então uma abordagem de pesquisa que situasse a

experiência dessas mulheres a partir de um olhar histórico e interseccional (AKOTIRENE,

2018; hooks, 2018; 2019; COLLINS, 2019), considerando os impactos da colonialidade para

as mulheres negras no mundo, principalmente advindas de um país com um histórico singular

de resistência e revolução como o Haiti.

Fui, então, levada ao diálogo com pesquisas em políticas linguísticas familiares que

enfocam a participação de mães como agentes de decisão e controle sobre o repertório

linguístico de seus/suas filhos/as. Uma das principais referências, nesse sentido, foi a pesquisa

de Gabas (2016), que investigou o papel das mulheres nas decisões linguísticas e familiares

feitas na migração, abordando as experiências migratórias de mães sul-coreanas, de status

econômico elevado, em São Paulo.

A leitura de Gabas levou-me a refletir sobre o impacto das diferentes condições

econômicas e sociais de imigração entre as mães haitianas e sul-coreanas, no que diz respeito

aos seus horizontes de escolha no deslocamento. O modo como a língua estava implicada nesse

processo era uma incógnita, e perspectivas do feminismo negro traziam conceitos frutíferos

para contrastar as experiências dos dois grupos (mães sul-coreanas e mães haitianas).

As mães sul-coreanas estudadas por Gabas (2016) emigraram acompanhando o projeto

econômico de seus maridos, trabalhadores de uma grande empresa multinacional. No Brasil,

planejavam as vidas educacionais e linguísticas de seus filhos com aulas particulares de línguas

e inscrições em escolas bilingues. Suas escolhas acompanhavam o valor de mercado que essas

línguas ofereciam, em seu entendimento, para a formação de seus filhos. Estes, segundo a

valoração das mães, voltariam com currículos mais competitivos ao seu país. Essas famílias

tinham uma data certa para voltar e seguiam seus desejos de planejamento tanto sobre os

repertórios linguísticos dos filhos, na visão das mães, quanto das oportunidades de crescimento

financeiro dos pais, em uma estratégia notadamente familiar.

25

Por outro lado, as mães haitianas, quando conseguem emigrar, fazem-no, a princípio,

sem seus filhos, que ficam aos cuidados de parentes no Haiti (sogras e avós), reproduzindo um

tipo de cuidado afrocentrado em que as crianças não são propriedade e responsabilidade de um

núcleo familiar, como nos moldes patriarcais do capitalismo (COLLINS, 2019), mas são

responsabilidade de todos. Assim, também o é o resultado do trabalho na imigração, uma vez

que é compartilhado com outros membros da família no Haiti. Além dessa peculiaridade, o

horizonte de planejamento familiar das mães haitianas está mais aberto às contingências que o

das mães sul-coreanas. Estas podem planejar a duração de seus deslocamentos, considerando

os prazos de contratação de trabalho dos maridos no Brasil, que motivam e dão suporte

financeiro a esses deslocamentos. As mulheres haitianas, por outro lado, convivem com uma

insegurança laboral, fonte de incertezas sobre quais próximos passos serão possíveis.

O esforço de sair em busca de melhores condições de vida tem sido apontado como

um projeto familiar não nuclear, estendido, envolvendo uma rede de parentesco que organiza

as economias para enviar um membro por vez a tentar a vida no exterior (GOMES, 2017). A

prática de envio de remessas transnacionais, também frequente em outros países da América

Latina, envolve redes familiares nos países de origem e de destino e é anterior à última década,

quando o fluxo migratório haitiano para o Brasil começou a tornar-se expressivo

(MAGALHÃES; BENINGER, 2016). Nessa teia, são tecidas complexas estratégias, tanto no

sentido de decidir qual ente familiar emigra primeiro, qual vai depois, quanto no sentido das

táticas de sobrevivência que utilizam no país para o qual emigram (MAGALHÃES;

BAENINGER, 2016).

Com o intuito de contribuir para o debate, sobre a influência das mães nas políticas

linguísticas familiares (GABAS, 2016), decidi inicialmente investigar as mães imigrantes de

nacionalidade haitiana, idealizando um curso de língua portuguesa especificamente para elas

para servir de campo à investigação. Mas as mudanças no campo levaram a pesquisa a outras

paragens.

1.3 DA INVESTIGAÇÃO SOBRE MÃES HAITIANAS À PESQUISA SOBRE

MÃES IMIGRANTES

O curso de português idealizado para mães haitianas, vinculado a esse projeto de

pesquisa, oferecia um espaço com cuidadoras para as crianças. Esse diferencial atraiu

estudantes, como Rosario, pseudônimo de uma das alunas da Venezuela, que considerava a

26

possibilidade de levar sua filha ao curso como uma “oportunidade”, um “atrativo” e uma

“facilidade” (Rosario em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Embora tenha havido a participação de alunas haitianas no curso, a procura pela

oportunidade por alunas de outras nacionalidades, como Rosario, reorientou o enfoque do curso

a mães imigrantes de quaisquer nacionalidades, impactando os rumos da pesquisa. Importa

ainda ressaltar que o curso também estava aberto aos pais, familiares e pessoas sem filhos no

grupo.

A procura pelo curso por mães de outras nacionalidades, naquele ano de 2018,

reverberava o fluxo migratório ao Brasil, evidenciando a fluidez desses deslocamentos e o

impacto no campo de pesquisa. No que tange ao planejamento da investigação, a adaptação à

realidade do campo deixa ver que nem sempre encontramos aquilo que planejamos inicialmente

em nossas incursões etnográficas. Nesse sentido, chamo a atenção para a não-linearidade da

relação entre teoria, geração de dados, análises e interpretação, característica central da pesquisa

etnográfica enquanto produtora de conhecimentos informados pela realidade das práticas

sociais (ERICKSON, 1990; BLOMMAERT, JIE, 2010; HELLER, PIETIKËINEN; PUJOLAR,

2018).

Quando o projeto de pesquisa foi enviado ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres

Humanos da UFSC (CEPSH-UFSC), a investigação envolvia a aprendizagem de português por

mães haitianas, não por mães imigrantes de diferentes países. A circunscrição a uma

nacionalidade específica refletia o meu engajamento ao PLE, orientação que outros cursos

também têm acompanhado, como relatam Mosele (2016) e Silva (2017) no Rio Grande do Sul,

Colussi, Cuba e Miranda (2017), Soares e Tirloni (2017) e Soares, Trevisan e Flain (2017) em

Santa Catarina e Moura e Costa-Hubes (2017) no Paraná.

Ao longo do curso (de agosto de 2018 a julho de 2019), tive dificuldade de adaptar os

objetivos da pesquisa à realidade do campo e continuava focada em uma nacionalidade apenas.

Por consequência desse foco específico em mães haitianas, realizei apenas uma entrevista com

Claitaine, após o final do primeiro semestre de 2019. A escolha por enfocar a experiência de

mães procedentes do Haiti refletia um olhar que outros trabalhos também têm apontado: a

necessidade de tratar o ensino de língua portuguesa a imigrantes de países subalternizados e

refugiados com um olhar singularizado.

O curso passou a receber alunas de vários países além do Haiti, como a Venezuela e a

Bulgária, países dos quais provêm três entre as quatro alunas participantes da pesquisa. Como

resultado dessa adaptação do curso à demanda real das alunas, houve um redirecionamento das

27

perguntas de pesquisa, de modo a abranger as necessidades e buscas de todas as alunas que

aceitaram participar da pesquisa.

A partir das análises geradas em campo e à luz das discussões que se têm desenvolvido

em torno do conceito de acolhimento, a pergunta de pesquisa foi-se modificando, e a

experiência diaspórica enquanto negociação, suspensão identitária e acomodação frente à

compressão espaço-tempo (HALL, 2006), tornou-se elemento importante para a reflexão sobre

as demandas das alunas.

No que tange à análise da materialidade linguística em específico, ao revelarem as

alunas suas buscas por legitimidade nos usos linguísticos no novo contexto (SIGNORINI,

2006), foram utilizadas as reflexões de Bakhtin (1997; 2010) sobre o funcionamento do

enunciado e dos gêneros discursivos nas distintas esferas da atividade humana. Além do

conceito de interseccionalidade, que conjuga categorias de opressão, o conceito de imagens de

controle de Patricia Hill Collins (2019) serviu para dar visibilidade à cristalização de discursos

e ideologias presentes no imaginário social brasileiro que operam como obstáculos à atribuição

de legitimidade de falantes de português a essas mulheres-mães-imigrantes.

Portanto, suscitaram o interesse de investigação sobre as necessidades de

aprendizagem do português de mulheres-mães-imigrantes as minhas experiências de educadora

e de pesquisadora do ensino de português a sujeitos deslocados de seus locais de origem, o

contato com perspectivas críticas da Linguística Aplicada, na Pós-Graduação em Linguística

da UFSC, bem como conceitos centrais do feminismo negro.

Nesta seção, a “história natural da pesquisa” foi brevemente mapeada, desde os

primeiros passos da concepção do estudo, com as devidas transformações de escopo e de olhar

relativas à organicidade do campo, até a menção dos elementos teóricos que possibilitaram

responder à questão da pesquisa. No próximo capítulo, passo à apresentação da etnografia, em

seus aspectos teórico-metodológicos, da forma como foi conduzida nesta pesquisa.

28

2 UM OLHAR ETNOGRÁFICO

Considerados seus elementos composicionais, o termo etnografia (do grego έθνος,

ethno – nação, tribo, povo e γράφειν, graphein – escrever), cunhado pela antropologia, refere-

se ao registro escrito da descrição de uma tribo, nação ou povo. No entanto, a unidade de análise

da investigação etnográfica não se restringe ao estudo de nações, tribos, povos ou grupos

tomados como linguisticamente homogêneos, podendo abranger quaisquer redes, cujas relações

sociais são reguladas por costumes (ERICKSON, 1984) mais ou menos estáveis. No caso desta

pesquisa, a sala de aula de mães imigrantes é tida como uma unidade social passível de

descrição etnográfica.

A especificidade da descrição etnográfica é a de não partir exclusivamente da

subjetividade do pesquisador, guiada por teorias previamente escolhidas ou hipóteses

conduzidas do início ao fim da pesquisa de modo a testar sua falibilidade ou validade. Evitando

generalizações teóricas provenientes de experiências abstratas que se destinam

aprioristicamente a todo e qualquer espaço, a descrição etnográfica privilegia os “significados

locais” (ERICKSON, 1984). Além disso, tem uma pretensão dialógica, ao almejar construir-se

no entrelugar entre os “esquemas mentais” (ERICKSON, 1990) que o pesquisador leva ao

campo e a responsividade dos atores e das atrizes sociais da pesquisa.

Por sua característica dialógica, é também não-linear, e necessariamente “rizomática”

(HELLER; PIËTKAINEN; PUJOLAR, 2018, p. 12), uma vez que as conexões entre os

elementos do campo (pessoas, discursos e atividades) vão formando relações que se

complexificam e que podem se modificar a cada mirada. Esse processo leva a uma constante

reavaliação das teorias e relações entre os dados gerados, para compor uma interpretação do

cenário investigado. Erickson (1990, p. 78) define etnografia como “uma tentativa de combinar

uma análise pormenorizada de detalhes do comportamento e seu significado nas interações

sociais cotidianas com a análise do contexto social mais amplo”. Trata-se de compreender como

as ações realizadas em um dado contexto refratam questões socais mais amplas da sociedade.

Por meio da análise e interpretação de dados gerados em campo, a partir de diferentes registros

das interações sociais (áudio-gravações, vídeo-gravações, diário de campo), procura-se

compreender e estranhar o familiar, ou seja, as ações rotineiras, já naturalizadas no contexto

educacional.

De caráter indutivo, como é característico da pesquisa etnográfica em educação

(ERICKSON, 1990; BLOOMAERT; JIE, 2010), a Etnografia da Linguagem preconiza a

geração de dados enfatizando os significados das ações dados pelos participantes da pesquisa.

29

O valor das evidências deriva de experiências concretas que podem ser comparadas com outros

cenários similares.

Um dos princípios básicos da etnografia é o estabelecimento de relações de confiança

em que os propósitos engendrados sejam construídos em conjunto na resolução de questões

pertinentes ao campo observado (ERICKSON, 1990; BLOMMAERT, JIE, 2010). O interesse

central está “no significado da vida social e sua elucidação e exposição pelo pesquisador”

(ERICKSON, 1990, p. 78). Deste modo, as pesquisas interpretativas não devem ser

consideradas meramente técnicas ou uma reunião de procedimentos, mas um modo de construir

olhares em que prevaleçam os significados dos interagentes atribuídos às ações em que se

engajam. No entanto, a sistematicidade e os procedimentos rigorosamente técnicos são

elementos centrais para a construção do olhar para a vida social.

A compreensão de Blommaert e Jie (2010, p. 5) vai na direção do entendimento de

Erickson (1990) sobre a etnografia. Para os autores (2010), a etnografia é um paradigma e não

“um complexo conjunto de técnicas de pesquisa de campo” (p. 5). Conforme ressaltam, a

etnografia esteve implicada como abordagem na interpretação de conhecimentos que

impactaram o campo do saber, que colocaram comunidades em mapas e que desvendaram

complexas relações entre todo e parte. Trata-se de uma ciência indutiva, que trabalha a partir

de evidências empíricas em direção à teoria (BLOMMAERT; JIE, 2010, p. 12).

As pesquisas positivistas, de outro modo, partem de uma visão de mundo em que

eventos observados podem ser repetidos. A partir dessa premissa, é aceitável a previsibilidade

de eventos futuros a partir da observação de eventos passados, como se não houvesse

criatividade nas ações humanas e como se elas não fossem dotadas de significados distintos de

um sujeito para o outro, ou até para o mesmo sujeito, em diferentes momentos. A premissa

prescritivista, não se sustenta quando a referência é o mundo social.

Como ressalta Erickson (1990), a contribuição das pesquisas interpretativas, de modo

geral, tem relação com a concepção sobre a natureza humana. Por essa diferença de

entendimento, a assunção da perspectiva interpretativa comporta uma crítica à aplicação

generalizada de sobreposições do universo da natureza ao universo da cultura nos

procedimentos ditos científicos, sem ser essa aplicação informada pelas práticas situadas.

Partindo da premissa de que o prescritivismo científico não é aplicável aos fenômenos sociais,

ou seja, que não é possível prever os eventos futuros a partir de eventos prévios, considera-se

que a subjetividade dos participantes é central para a compreensão do que ocorre em contextos

educacionais. A Etnografia da Linguagem tem buscado compreender como se dá o uso da

30

linguagem em cenários situados, a partir da análise das interações estabelecidas entre os sujeitos

em cenas reais, por meio da análise e da interpretação das ações em campo a partir de suas

regularidades, estranhando práticas naturalizadas em contextos escolares (GARCEZ;

SCHULZ, 2015). Trata-se, assim, de uma análise sistemática, fundamentada na observação de

manifestações da sociabilidade humana.

A premissa central relacionada à concepção sobre a natureza da linguagem, diz

respeito à compreensão sobre a causa dos fenômenos. Segundo Erickson (1990, p. 89), a

capacidade humana de dar sentido para os próprios atos é o aspecto que distingue a existência

material da existência puramente natural. Por esse motivo, segundo o autor “seres humanos

deveriam ser estudados com base nos sentidos que fazem uns dos outros em seus arranjos

sociais”8 (p. 89). Segundo Erickson, para a compreensão dos atos humanos, é necessário

associar ao ato a compreensão que cada sujeito tem da ação em que se envolve e problematizá-

lo junto ao contexto maior em que se insere, desnaturalizando tanto quanto possível o status de

“fato” dos fenômenos que ocorrem no campo. Segundo Erickson (1990),

Uma tarefa central para a pesquisa interpretativa, com observação

participante, é permitir aos pesquisadores serem muito mais específicos nas

suas compreensões sobre a variação inerente de classe para classe. Isso

significa produzir melhores teorias sobre a organização social e cognitiva de

formas particulares de vida em sala de aula como ambientes imediatos para

a aprendizagem dos alunos (ERICKSON, 1990, p. 116, ênfase minha,

tradução minha9).

No caso de alunas que também são mães, imigrantes de diferentes países, em busca de

diferentes objetivos no novo local de inserção, para melhor compreender esse cenário em

particular, importa considerar a especificidade de suas práticas sociais em que a língua(gem)

tem um papel central e os sentidos a elas atribuídos.

O que torna o presente estudo etnográfico são as bases nas quais se assenta a

construção do conhecimento, que são os dados gerados em campo, em conjunto com as alunas

do curso, não a intuição, nem teorias previamente levadas a campo. As regularidades do

comportamento social encontradas em campo são associadas ao contexto macro, são

examinadas características de seus deslocamentos e são consideradas as ideologias que

subjazem suas enunciações e as negociações de sentido com outros sujeitos. De maneira

8 “[...] humans living together must be studied in terms of the sense they make of one another in their social

arrangements” (ERICKSON, 1990, p. 89) 9 Salvo indicação em contrário, as traduções foram feitas por mim.

31

indisciplinar, é preciso recorrer a outros campos do conhecimento para dar conta de interpretar

a complexidade social do que está acontecendo ali (MOITA LOPES, 2006).

Na contemporaneidade, a investigação etnográfica em contextos educacionais

justifica-se pela importância de compreender cenários complexos de uso da linguagem, de

forma situada, interpretando o local como atravessado por questões globais (LUCENA, 2015).

No caso desta pesquisa, o olhar para o social se constrói na premissa do signo ideológico

(BAKHTIN, 2010), na consideração do dialogismo presente na réplica cotidiana (BAKHTIN,

1997) dentro e fora da sala de aula e na singularidade da experiência diaspórica de cada uma

dessas mulheres. Com relação às imagens definidas externamente sobre língua, identidade e

processos de aprendizagem de língua, sobre maternidade e pertencimento, seus percursos são

negociados. Como consequência, os significados que atribuem à língua(gem) estão imbricados

nos processos sociais de que participam.

Uma das características básicas da teoria sociocultural da qual são derivados os

métodos de observação participante é a de nunca ser considerado apenas um nível do sistema

(social de ações) isolado de outros níveis (ERICKSON, 1990). No presente estudo, para

compreender a complexidade que trazem as enunciações das participantes, as alunas-mães-

imigrantes, em torno do significado que atribuem às suas ações, recorro a teóricos que se

debruçam sobre:

a) a questão da diáspora como um fenômeno migratório complexo que envolve

negociação, marcação identitária, refutação e contestação de sentidos na oscilação

entre a tradição e a tradução (HALL, 2003; 2006);

b) o questionamento das práticas linguísticas como pretensamente encerradas em

comunidades linguísticas homogêneas (MAKONI; PENNYCOOK, 2015;

SIGNORINI, 2002; GARCIA; WEI, 2014) para analisar os sentidos conferidos

pelas participantes da pesquisa a seus usos linguísticos (bem como aos usos

linguísticos das suas filhas);

c) raça como uma linguagem, um significante flutuante (HALL, 1995; 2003);

d) a associação entre os marcadores de raça e outros a conjugar opressões de forma

interseccional, produzindo imagens de poder que silenciam e encerram

determinados sujeitos a lugares sociais de subalternidade no imaginário social e na

estrutura de produção e distribuição do conhecimento e de recursos como trabalho

(SPIVAK, 2010; COLLINS, 2018; 2019; hooks, 2018; 2019a; 2019b).

32

e) ideologias linguísticas que associam grupos a formas linguísticas valendo-se de

discursos que operam, com uma pretensão de neutralidade (ideologia da

padronização), a naturalizar diferenças sociais, mapeando zonas de pertencimento

com base em recursos simbólicos considerados de prestígio (MILROY, 2011), que

servem para conferir (i)legitimidade de falantes aos sujeitos (SIGNORINI, 2002;

2006).

f) a importância de compreender o enunciado como uma produção histórica e

socialmente informada, orientada a sujeitos específicos marcados hierarquicamente

em suas posições sociais, conforme apreciações mais ou menos estáveis no

horizonte apreciativo do enunciador que refletem ideologias presentes no

imaginário social (BAKHTIN, 2003; 2010)

Ao buscar uma compreensão sobre como se organizam os sujeitos em sociedade, a

etnografia é tomada como uma epistemologia, ou um modo de conhecer. Não obstante não se

reduzir a um método ou conjunto de procedimentos a serem aplicados a um objeto, em uma

etnografia, a geração de dados precisa ter critérios bem definidos. Após a contextualização do

cenário em que se desenvolveu o curso de português para mães imigrantes, trato de apresentar

os critérios utilizados para a geração de dados de acordo com a pertinência para este estudo nas

seções seguintes.

2.1 O CENÁRIO DA PESQUISA

Com vistas à contextualização do cenário da pesquisa, apresento o local de realização

do curso de português para mães imigrantes, a Universidade Federal de Santa Catarina, e os

procedimentos de construção do campo que envolveu um percurso de contato com vários

sujeitos vinculados a instituições como ONGs, órgãos oficiais de apoio a imigrantes e entidades

religiosas.

2.1.1 A Universidade Federal de Santa Catarina

A sede da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) situa-se no bairro Trindade,

em Florianópolis, capital do estado. Compreendendo a Ilha de Santa Catarina e uma pequena

porção continental, Florianópolis faz parte da Região Metropolitana da Grande Florianópolis

(RMF), formada por mais oito municípios: Águas Mornas, Antônio Carlos, Biguaçu,

33

Governador Celso Ramos, Palhoça, Santo Amaro da Imperatriz, São José e São Pedro de

Alcântara. Conforme Schreider, quase 90% da população da RMF está concentrada na

conurbação de quatro municípios: Florianópolis, São José, Biguaçu e Palhoça (SCHREINER,

2019, p. 6).

O bairro Trindade, em que está localizado o campus Reitor João David Ferreira Lima,

onde foi realizada esta pesquisa, situa-se próximo ao centro da cidade. Localiza-se neste bairro

um dos terminais urbanos e um dos shopping centers da cidade, além de escolas públicas

municipais, escolas estaduais, escolas privadas, estúdios de dança, escolas de idiomas, escolas

de esportes, academias de yoga, entre outros locais de oferta de ensino. No entorno da UFSC

também se encontram muitos bares, padarias, farmácias, cafés, mercados, restaurantes,

hospitais, dentre os quais o Hospital Universitário, configurando o bairro como importante

lugar de circulação de pessoas e de oferta de serviços.

A presença da UFSC no bairro e o interesse pela residência na região propicia o

aumento dos preços de aluguéis durante o ano letivo, por conta da especulação imobiliária, em

contraposição ao aluguel nos bairros situados em praias da Ilha de Santa Catarina, que também

aumentam no período de férias de verão.

Durante a semana, no ano letivo, a região da Universidade é bastante movimentada.

Mas o fluxo de pessoas e veículos diminui consideravelmente aos sábados e nas férias de verão,

quando estudantes de outros municípios e outros estados voltam para casa.

2.1.2 As salas de aula do curso

O curso de português para mães imigrantes foi oferecido nas dependências do bloco A

do Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina

(CCE/UFSC). O CCE é um dos onze centros integrantes do Campus Reitor João David Ferreira

Lima, sede da UFSC. Trata-se da construção mais antiga da instituição (1961) que nessa época

denominava-se Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFSC.

As aulas eram oferecidas em duas salas do CCE. Uma das salas tinha capacidade para

40 alunos e a outra, para 20 alunos. Ambas as salas eram equipadas com um computador com

uma tela fixada à parede, um quadro de vidro, um apagador, uma mesa e um aparelho de

ar-condicionado. No primeiro semestre (2018/2) foram utilizadas duas salas, no segundo

semestre de curso, em 2019/1, como as mães não levaram suas crianças, somente uma das salas

de aula foi utilizada.

34

2.1.3 O curso de português para mães imigrantes

Blommaert e Jie (2010) salientam que os procedimentos anteriores ao campo devem

atender a uma série de requisitos. Dois dos principais dizem respeito a 1) ter um campo e 2) ter

uma questão que “vale a pena investigar” (BLOMMAERT, JIE, 2010, p. 21). A trajetória de

construção do campo de pesquisa – o curso de português para mães imigrantes (a princípio,

destinado a mães haitianas) – deu-se após uma experiência de observação como professora

voluntária no projeto PLAM-UFSC, em 2017/2. Na oportunidade, tive acesso a relatos de

alunas provenientes do Haiti que mencionavam ter que ficar longe de seus filhos para vir em

busca de trabalho no Brasil. A escassez de pesquisas que tratavam da experiência específica

dessas mulheres quanto às necessidades e projetos em relação à aprendizagem de língua

portuguesa fazia desse um tema relevante a ser investigado.

A partir do recorte inicial de pesquisa – mães haitianas – procurei instituições que

trabalhavam no atendimento a imigrantes e refugiados em Florianópolis, como o Grupo de

Apoio a Imigrantes e Refugiados de Florianópolis (GAIRF)10 e o Centro de Referência e

Atendimento a Imigrante de Santa Catarina (CRAI-SC)11, que forneceram, além do apoio de

divulgação do curso, o contato com outros agentes imprescindíveis para a construção do campo.

Ricardo (pseudônimo), funcionário do CRAI-SC, convidou-me para uma reunião em que me

colocou em contato com a ONG Organização pelos Refugiados (OPR12), que, na época, oferecia

cursos no câmpus Florianópolis do IFSC, localizado no Centro da cidade. O CRAI-SC também

me pôs em contato com o padre Mauro, que organiza um curso língua portuguesa no bairro

Agronômica, próximo ao centro da cidade.

Na reunião, em que apresentei o projeto e o interesse em articular ações de ensino em

espaços em que já havia cursos ocorrendo, segui um dos preceitos éticos enfatizados por

Erickson (1990) quanto a evidenciar, desde o primeiro contato, os propósitos da pesquisa.

Frente ao meu interesse na concepção de um curso de português voltado a mães haitianas, padre

10 O GAIRF é composto por diversos atores sociais da sociedade civil e de instituições (Organizações Não

Governamentais – ONGs, igrejas e universidades). Desde 2014, realiza reuniões públicas na Arquidiocese de

Florianópolis em torno de várias ações, dentre elas o processo de reivindicação de um espaço de referência e

atendimento a imigrantes em Santa Catarina. Mais recentemente, por conta da pandemia do coronavírus, tem

realizado reuniões virtuais. 11 No início de 2018, a partir da luta desses vários atores sociais, foi inaugurado o CRAI-SC, que, de fevereiro a

setembro de 2019, realizou 10.159 atendimentos a imigrantes. Entre os serviços prestados pelo CRAI-SC, estavam:

fornecimento de informações sobre legalização para moradia e para o trabalho, elaboração e impressão de

currículos, divulgação e organização de cursos de língua portuguesa, cursos preparatórios, grupos de atendimento

psicológico, entre outros. No final de 2019, no entanto, o CRAI-SC fechou as portas por falta de verba. 12 A Organização pelos Refugiados (OPR) é uma ONG destinada a apoiar os imigrantes em Florianópolis. Entre

as ações que desenvolve, está a oferta de cursos de língua portuguesa.

35

Mauro teceu comentários a respeito da pertinência do projeto, conforme relato abaixo em trecho

do diário de campo:

Quando me apresentei, padre Mauro parecia muito atento ao que eu dizia.

Quando terminei de falar, ele mencionou que “elas [mães imigrantes] não

saem muito de casa” e que isso acabava diminuindo a chance de interagirem

em português. (Trecho do diário de campo elaborado no dia 23/04/2018).

O comentário do padre chamava a atenção para as oportunidades reduzidas de contato

com a língua portuguesa por essas mulheres, cuja vida estava bastante restrita ao ambiente

doméstico. No entanto, essa informação contrastava com uma observação de Luiza, da OPR,

sobre a participação de mulheres haitianas nas aulas fornecidas no IFSC:

Luiza comentou que “os professores dizem que tem alunas que levam os filhos

para a aula”. Segundo relatos dos professores, a presença das crianças em sala,

por vezes dificultava a atenção das mães, de modo que, em algumas situações,

os professores atuavam como cuidadores [nos cursos do IFSC há dois

professores atuando juntos nas salas de aulas do projeto] (Trecho do diário de

campo elaborado no dia 23/04/2018).

Os cursos em questão (tanto o curso organizado pelo padre Mauro quanto o do IFSC)

eram fornecidos em diferentes bairros, ilustrando realidades distintas de participação de

mulheres-mães-haitianas em cursos de português. Aquilo que professores(as) do IFSC

relataram a Luiza condizia com o que eu testemunhara no PLAM-UFSC, em que uma das alunas

levava sua filha para assistir às aulas.

Como resposta a cenários em que alunas-mães-imigrantes, que precisassem levar seus

filhos para aulas de português, pudessem fazê-lo sem prejuízo para a participação nas atividades

propostas, idealizei um curso que pudesse ter um espaço específico para as crianças. Com isso

em mente, demonstrei meu interesse em realizar a pesquisa com parceria da ONG, no IFSC,

com cujos funcionários estive reunida discutindo a proposta. Abaixo, compartilho a troca de

mensagens de e-mail com a OPR.

Olá, Luiza, tudo bem?

Aqui é Narjara, da UFSC, que esteve na reunião com Ricardo e Andreia no

CRAI-SC, na segunda-feira.

Em primeiro lugar, parabéns pela ONG, pelo projeto com os imigrantes e

refugiados e pela maneira que conduz as ações – buscando pessoas

36

especializadas para o refinamento das ações. Em segundo lugar e

objetivamente, gostaria de saber se posso ter a sua permissão, a permissão dos

professores e assistentes e a permissão dos alunos do curso (os que queiram

participar), no seguinte sentido: gostaria de auxiliar ambientes de sala de aula

que tenham mães haitianas, para perceber as necessidades especiais de

aprendizagem desse grupo.

Considero que as mães têm uma natural dificuldade de se envolver de maneira

focada e continuada em seus estudos, principalmente as haitianas (mais ainda

que os homens/pais haitianos que já possuem essa característica descontínua

nos cursos com haitianos que conheço - por questões que você bem sabe quais:

trabalho excessivo, cansaço, desmotivação, depressão e outras).

Para um momento imediato, gostaria de acompanhar os grupos que já existem

no IFSC e, em um momento vindouro – como você falou que poderia haver –

gostaria de auxiliar com as aulas para mães (da maneira que vocês precisarem,

se precisarem e como eu puder).

Tenho interesse em fazer um trabalho de campo sobre o tema em minha pós-

graduação, cujas reflexões advindas dessa experiência de participação em

cursos possam servir de auxílio à elaboração de cursos para esse público em

específico e para a formação de professores de modo geral. Portanto, se você

achar que essa minha participação pode ser frutífera para o projeto de vocês,

gostaria de formalizar a participação de todos os interessados em termos de

compromisso assinados, após a explicação minuciosa de minhas intenções

sobre o projeto para cada um deles, de modo que possamos proceder

eticamente sem gerar riscos desnecessários a nenhum dos envolvidos e não

prejudicar o andamento das aulas – objetivo principal de todos nós. Sabendo

que, em qualquer momento da pesquisa, quaisquer dos participantes pode

decidir não mais participar e do contrário, os que inicialmente não quiseram,

podem mudar de ideia e participar.

Desculpe o e-mail longo, mas eu gostaria de que minhas intenções fossem

logo conhecidas para que não haja nenhum mal-entendido e para que eu

proceda da forma mais ética o possível e, principalmente, para que você não

perca tempo.

Reitero aqui a minha disposição para o que estiver em minhas possibilidades

sobre a elaboração de materiais para os cursos do IFSC e para o CRAI-SC,

consequentemente, como acordado em reunião.

Agradeço e aguardo seu retorno.

Um abraço!

Narjara Reis

(Mensagem de e-mail, 25/04/2018, v. cópia em fac-símile no Anexo G).

Como resposta, no dia 25 de abril de 2018, Luiza me convidou para participar de uma

reunião na ONG, para a qual confirmei presença. No dia da reunião, ocorrida em 28 de abril de

2018, conheci dois outros funcionários da ONG e duas professoras. Como combinado, expus a

37

minha intenção para os outros participantes da pesquisa. As duas turmas em andamento, à

época, ocorriam à noite e os professores atuavam como voluntários. A seleção era feita com

base em conhecimentos de francês, para os que trabalhavam com imigrantes do Haiti, e de

espanhol, para a turma de hispano falantes. As duas professoras eram estudantes da UFSC, uma

em nível de graduação e outra, de pós-graduação.

Sobre a turma de mães haitianas, pensamos em conjunto algumas estratégias para

acolhê-las. Idealizamos ser melhor a utilização de duas salas: uma em que as mães teriam aulas

e outra sala, de preferência bem próxima, que pudesse servir como espaço para as crianças

brincarem e se ocuparem com atividades, aos cuidados de voluntários preparados para tanto.

Nessa divisão de tarefas, compreendemos que seriam necessárias, além de duas pessoas na

função de ensinar a língua, duas outras pessoas para cuidarem das crianças.

Combinamos que, para que uma turma nova fosse aberta, eu teria que sondar a

demanda para garantir a necessidade dessa turma, para que pudessem ajudar como podiam (com

material didático e com um processo de seleção para recrutar uma professora auxiliar para

conduzir as aulas ao meu lado). Assim, realizei um pré-cadastro através de um cartaz de

divulgação online veiculado na rede social Facebook (cf. Figura 1).

Figura 1 – Cartaz de pré-cadastro para o curso de Português para Mães Haitianas

Fonte: Elaborada pela autora

38

Em menos de uma semana, mais de dez pessoas entraram em contato para buscar

informações sobre o curso, por meio de telefonemas ou mensagens de WhatsApp. No entanto,

essa opção não se mostrou eficaz, pois a maioria das alunas interessadas não morava na porção

insular de Florianópolis. Importa registrar que os contatos eram feitos pelos maridos das alunas

ou por pessoas delas conhecidas. Nesses contatos, as pessoas que ligavam destacavam a falta

de recursos financeiros para o deslocamento até o local do curso, o que me leva a concluir que

a realização do curso no local em que estavam os imigrantes teria sido uma alternativa mais

viável para a participação do contingente de mulheres. No entanto, os acordos com a ONG não

me fizeram pensar nessa alternativa e eu segui durante o mês de junho de 2018 realizando o

cadastro de mulheres interessadas. À medida em que os interesses e questionamentos se

intensificaram, comecei a repassar essas informações via e-mail, ao grupo da OPR:

Caros,

Gostaria de lhes informar a quantidade de mães pré-cadastradas no projeto:

Na Ilha de Florianópolis: quatro mães dos bairros Trindade, Agronômica e

Carvoeira.

No Continente: cinco mães - duas de Palhoça e três de São José.

Outras nacionalidades: uma argentina e uma síria.

Além de uma mãe grávida interessada em doações de artigos para o seu bebê

que nascerá em breve.

Como veem, a demanda está maior na parte continental - um dos maridos

perguntou sobre se haveria auxílio transporte.

Gostaria de combinar com vocês uma quantidade máxima de crianças/bebês

para estarem em uma sala. O que pensaram sobre isso?

No próximo domingo, entrarei em contato com mais mães interessadas. [...]

irei no próximo domingo - estou em contato com um haitiano responsável pela

missa.

[...] (Mensagem de e-mail, 11/06/2018, v. cópia em fac-símile no Anexo G).

Sobre a possibilidade de auxílio financeiro para o transporte destinado a quem morava

na região continental da Grande Florianópolis, Andressa, funcionária da OPR, em uma

conversa, disse-me que já haviam tentado, mas que era difícil. Nas palavras dela: era “difícil

39

por que não h[avia] integração entre os terminais. O CRAS13 de Biguaçu só consegue garantir

a passagem até o TICEN” (Trecho do diário de campo elaborado no dia 14/06/2018).

Renata, do CRAI-SC, já havia mencionado uma demanda significativa por cursos de

português na parte continental da cidade, durante a reunião com Ricardo. Na ocasião, Renata

comentou que, embora já houvesse cursos de português em Florianópolis, em certos pontos da

região continental, onde havia comunidades de imigrantes haitianos, tais cursos eram raros e,

portanto, era urgente conceber e oferecer mais cursos. Na busca por demandas próximas ao

IFSC, onde seria idealmente o curso em parceira com a ONG, fui informada por Rosa14 da

realização de cultos em região próxima ao centro da cidade, com cerca de 100 haitianos, nos

domingos pela manhã. No início de junho de 2018, fui conhecer o local, conforme relato na

vinheta abaixo:

Estava deserto, como o centro de Florianópolis no domingo sempre costuma

estar. Do outro lado da rua, avistei o lugar. Algumas poucas pessoas estavam,

ao que parecia, assistindo ao futebol. Achei estranho, me aproximei e

perguntei para um homem escorado na porta se sabia sobre a existência de um

culto para haitianos. Ele percebeu minha aproximação. “Ah! O culto dos

haitianos? É subindo aquela escadinha ali”, disse apontando uma porta estreita

e aberta que eu não tinha percebido. Subi dois degraus, lentamente, tentando

observar tudo. Voltei. Imaginei que se encontrasse alguém que não

compreendesse português, precisaria me apresentar em francês, de modo que

me entendessem. Lembrei do telefone e usei o tradutor do Google e decorei

uma frase de apresentação em francês. Estava nervosa. Podia ouvir o som do

culto em crioulo haitiano. Encontrei um rapaz e me dirigi a ele em francês. “Je

suis Narjara, enseignant...”, ao que ele me respondeu: “pode falar em

português mesmo, eu me chamo Jean Luc”. [...] prossegui, me apresentando

em português e, em seguida, comecei a explicar o projeto e o porquê de eu

estar ali. Ele me disse que achava boa a ideia do curso para mães, porque uma

amiga sua havia reclamado de não conseguir prestar muita atenção às aulas

que cursava por conta de ter que levar o filho e dividir a atenção com ele. Jean

Luc me deu mais um indício de que fazia sentido fazer um curso com essa

estrutura. Ele me deu o número do seu telefone depois de me prometer que

falaria com o responsável pelo culto (Trecho do diário de campo elaborado no

dia 03/06/2018).

13 O CRAS é o Centro de Referência de Atendimento Social “destinado ao trabalho social com famílias”. Entre

seus objetivos está o de “promover seu acesso [acesso das famílias] e usufruto de direitos e contribuir na melhoria

de sua qualidade de vida”. Dentre os usuários aos que se destina, estão: “famílias em situação de vulnerabilidade

social decorrente da pobreza, do precário ou nulo acesso aos serviços públicos, da fragilização de vínculos de

pertencimento e sociabilidade e/ou qualquer outra situação de vulnerabilidade e risco social residentes nos

territórios de abrangência do CRAS, em especial”. Em Florianópolis, tem treze unidades, doze das quais na região

da ilha e uma no bairro Estreito, região continental. Em Biguaçu, conta com duas unidades. (PREFEITURA DE

FLORIANÓPOLIS, 2020). 14 Rosa era aluna da turma avançada de português e residia no Brasil havia quatro anos (2018). Eu a conheci

quando atuei no projeto PLAM, em 2017.

40

Tratava-se da igreja evangélica de origem pentecostal O Brasil para Cristo, localizada

no bairro da Prainha em Florianópolis, onde os imigrantes haitianos conseguiram acesso ao

espaço emprestado para que pudessem seguir seus ritos, importante modo de agregação e

fortalecimento étnico na diáspora.

No Haiti, as religiões protestantes são majoritárias (GRONDIN, 1983). Mézié (2016)

pontua o crescimento das religiões protestantes do Haiti no séc XX, de modo mais acentuado,

após a década de 1960, como consequência de:

[...] uma intensa circulação regional [após o afastamento da religião católica,

tradicional da França] da influência dos Estados Unidos na região e da

reivindicação de uma crescente identidade regional [em que] objetos, práticas

e crenças foram cada vez mais partilhados entre os países da bacia caribenha

(MÉZIÉ, 2016, p. 302).

Mézié (2016) destaca, ainda, o papel das religiões protestantes na diáspora haitiana

nos Estados Unidos e no Canadá, e a estrutura montada com acampamentos que se formaram

em Porto Príncipe e nas periferias com vistas ao acolhimento material e espiritual do povo

haitiano no período após o terremoto de 2010. O que vemos ocorrer em Florianópolis é que as

igrejas protestantes também têm um importante papel de acolhimento a esses sujeitos

imigrantes, reservando a eles um espaço para que possam professar sua fé em suas próprias

línguas, articulando modos de compreender e reformular sua experiência diaspórica junto a

outras famílias em diáspora15.

Duas semanas depois desse primeiro encontro com Jean Luc, ele entrou em contato

comigo e eu tive aprovação do pastor para ir ao culto fazer o convite para o curso de português.

Descrevo abaixo a situação em que pude, finalmente, compartilhar com possíveis pessoas

interessadas, a intenção de realização do curso de português para mães haitianas:

Subi as escadas. Quando alcancei o andar de cima, avistei a impressionante

quantidade de mais de cem pessoas sentadas ouvindo um culto em crioulo

haitiano conduzida por um pastor. Jean Luc me apontou um banco para sentar.

Sentei e esperei o fim da celebração. Durante esse tempo observei. Havia

crianças andando por ali, alguns homens e mulheres de pé acompanhavam

essas crianças de perto. Uma delas, bem pequena, que parecia ter aprendido a

andar recentemente, se aproximou de mim. Eu ri, olhei para a mulher que a

acompanhava, provavelmente, a mãe, eu pensei. Sorri, ela sorriu de volta. A

distribuição do espaço era feita com duas fileiras de bancos com um corredor

15 Segundo dados do IBGE do último censo, de 2010, as duas religiões mais expressivas no Brasil são a Católica

Apostólica Romana (com 123.280.172 fiéis) e as evangélicas, com mais de 104 milhões de adeptos nas diferentes

orientações. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/137#resultado Acesso em: 28 jun. de 2021.

41

no meio. Na fileira de bancos do lado direito, só havia homens sentados. Na

fileira do lado esquerdo, mulheres e crianças. Essa distribuição me chamou

atenção. Ao final do culto, Jean Luc me levou até o pastor que tinha um

microfone nas mãos. As pessoas já estavam todas de pé, conversando e se

preparando para ir embora. O pastor disse algo ao microfone, acredito que

pedindo a atenção das pessoas para algo que eu iria falar. Fiz a apresentação

e o convite em francês e Jean Luc reforçou em crioulo, me auxiliando a

registrar os dados dos interessados no curso em um caderno. Anotei também

o número do telefone do pastor, que também estava interessado no curso para

a sua esposa e para a esposa de um amigo seu. Em dado momento, havia um

grupo de pessoas ao meu redor e eu isso me fazia feliz, pois indicava que o

curso seria possível (Trecho do diário de campo elaborado no dia 17/06/2018).

No dia seguinte a esta visita à igreja, repassei as informações do pré-cadastro para a

ONG (cf. ANEXO A). O documento da pré-inscrição continha dados de mais de 30 alunas. No

entanto, com a confirmação de que as aulas no IFSC-Florianópolis só poderiam ocorrer à noite,

redirecionei o curso à UFSC, uma vez que, por questões pessoais, eu não podia assumir

compromissos à noite. Nesta altura, eu seguia idealizando um espaço escolar – uma sala de aula

tradicional – para a oferta do curso, o que dificultou o atendimento à demanda procurada. No

primeiro dia de aula, as mães que haviam feito cadastro no dia do culto, no Centro, não foram

para a aula na UFSC – questão que salienta a necessidade de que os cursos de línguas e as outras

ações destinadas a imigrantes e refugiados possam ocorrer em locais próximos às suas

moradias. Na UFSC, consegui autorização para utilizar salas de aula do Centro de Comunicação

da UFSC (CCE) local em que foram realizados os dois semestres do curso (2018/2 e 2019/1).

Outro aspecto a ser ressaltado relativamente à idealização do curso diz respeito à falta

de consulta às alunas quanto aos elementos do espaço reservado para as crianças. Apesar de

sempre ter a preocupação de contemplar suas necessidades, não apliquei questionários, nem

perguntei se o espaço oferecido respeitava o que elas entendiam como adequado às suas filhas

e aos seus filhos. No entanto, ao longo desse curso, especificamente, as crianças tinham

liberdade de ir e voltar de uma sala para outra, desde que acompanhadas pelas cuidadoras. Desse

modo, as mães podiam optar por manter seus filhos perto delas ou deixá-los na sala reservada

especificamente para eles.

Após a confirmação de 30 alunas no pré-cadastro, como combinado, a OPR contratou

Anya (pseudônimo), graduanda em Letras-Francês na UFSC, como professora auxiliar, e Lana

(pseudônimo), graduanda em Letras Libras na UFSC, para atender as filhas e filhos das alunas.

Além de Lana, Ísis, doutoranda na Pós-Graduação em Linguística, e Gabriela, graduanda de

pedagogia da UFSC, realizavam atividades com as crianças no primeiro semestre.

42

No primeiro dia de aula, 11 de agosto de 2018, Rosario, da Venezuela, que havia me

contactado um dia antes, compareceu ao curso com sua pequena filha, Penélope, de 4 anos.

Nesse momento, apesar de o curso ser inicialmente reservado a mães haitianas, a procura de

outras mães com filhos, associada à procura de mães haitianas sem filhos, fez com que o projeto

se abrisse para mães imigrantes de quaisquer nacionalidades. A sugestão foi de Andressa, da

OPR, que acompanhou o primeiro dia de aula do curso. Registrei em diário a especificidade

desse dia:

O curso para mães haitianas transformou-se em curso para a mãe

venezuelana. Por sugestão de uma das integrantes da ONG – Andressa – fiz

um novo cartaz modificando o público alvo do grupo – Grupo de Mães

Imigrantes. Começamos uma nova leva de publicidade para conseguir alunas

para o curso que já dispõe do pessoal e de estrutura para recebê-las com seus

filhos (Trecho do diário de campo elaborado no dia 15/08/2018).

Com a confirmação do curso na UFSC e a abertura para mães imigrantes de quaisquer

nacionalidades, novos cartazes foram feitos, dessa vez, com as especificações de horário, dia e

local de realização (cf. Figura 2).

Figura 2 – Cartaz sobre Curso de Português para Mães Imigrantes

Fonte: Elaborada pela autora

43

No segundo dia de aula, dia 18/08/2018, seis (6) alunas compareceram. Três delas

eram haitianas, duas venezuelanas e uma búlgara. A sala de aula refletia o trânsito imigratório

para o país. Anya, a professora de francês auxiliar, idealizou um grupo de WhatsApp para reunir

as alunas e as professoras auxiliares e adicionou os nossos contatos. Duas semanas depois do

início do curso, no entanto, ela nos informou que, por questões de ordem pessoal, teria que

deixar o projeto.

As características singulares do curso de português para mães para imigrantes são

trazidas aqui na intenção de mostrar que, em relação aos outros cursos da ONG, a identidade

de um curso para mulheres imigrantes que precisavam levar seus filhos demandava reflexão e

autonomia pedagógica específicas na condução das ações. De modo distinto dos cursos de

português para imigrantes que já eram realizados pela ONG, no IFSC, o local, a estrutura, o

horário, a carga horária e o vínculo com uma pesquisa científica faziam com que o curso de

português para mães imigrantes precisasse responder a exigências diferentes dos cursos

regulares da OPR.

Com a saída de Anya, que havia sido contratada pela ONG, entendemos (eu e os

representantes da ONG) ser melhor que o curso seguisse sob minha responsabilidade, sem

vínculo com a organização. Após conversas com Andressa e com outros integrantes da OPR,

foi acordado que o curso de português para mães imigrantes, que recebera todo apoio possível

dessa organização até sua concretização, seguiria independente dela. Assim ele foi

desenvolvido nas duas edições (2018/2 e 2019/1). No segundo semestre, no entanto, não houve

necessidade de cuidadoras, uma vez que as alunas que frequentavam o curso não tinham

necessidade de levar consigo seus filhos e filhas e, portanto, o espaço infantil não foi necessário.

Esse percurso, bem representativo de uma pesquisa etnográfica, demonstra a flexibilidade

requerida nesse tipo de investigação.

Em uma comunicação pessoal16 sobre esta pesquisa com o professor Sinfree Makoni,

ele pontuou a importância de nos atermos, na Linguística Aplicada, às questões da vida real. A

aprendizagem de português por mães haitianas era um problema da vida real, dizia respeito a

condições e consequências da linguagem para pessoas reais. Em suas palavras:

16 A comunicação pessoal ocorreu após uma mesa redonda do II Seminário de Políticas Linguísticas Críticas,

realizado de 26 a 30 de novembro de 2018, no Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de

Santa Catarina. No evento, houve uma roda de conversa intitulada “Políticas Linguísticas: uma perspectiva

crítica”, em que foram apresentados trabalhos dos grupos de pesquisa “Políticas Linguísticas Críticas”, coordenado

pela Prof.ª Dr.ª Cristine Görski Severo (UFSC), e “Educação Linguística e Pós-Colonialidade”, coordenado pela

Prof.ª Dr.ª Maria Inêz Probst Lucena (UFSC). Na sequência das apresentações dos grupos, houve um debate para

o qual o professor Dr. Sinfree Makoni (Penn State University) foi convidado a contribuir com suas reflexões para

as pesquisas em andamento apresentadas na ocasião.

44

[...] esse [a aprendizagem de português por mães haitianas] é um problema

real. Para mim, teoricamente, os problemas são interessantes se começam por

questões reais, e não por problemas que você cria no seu escritório. Questões

sobre migração, questões sobre mães que deixam seus filhos, questões sobre

mães se adaptando em novos contextos são problemas reais (MAKONI,

2018).

O professor Makoni apontou, na ocasião, a importância de investigar as estratégias, as

condições, as opressões e, principalmente, os sentidos singulares que emergem nos cenários

investigados. As questões em torno de decisões migratórias nos deslocamentos, em

consequência da intensidade dos fluxos na modernidade recente, têm sido apontadas como

importantes lugares de investigação situada a informar o debate acerca de políticas linguísticas.

Como ressaltam pesquisadores que desenvolvem etnografias, mesmo que nos

tenhamos assegurado de todos os detalhes durante o planejamento, é preciso sempre estar

preparado para mudanças ao longo da pesquisa (BLOMMAERT; JIE, 2010; HELLER,

PITKÄINEN, PUJOLAR, 2018). Essas modificações dão novos contornos à investigação e

mostram que, quando nos colocamos a investigar aspectos relacionados ao social e àquilo que

é próprio da vida, pode ser necessário que mudemos nossas perspectivas para ajustá-las ao que

é vivo e que se transforma a todo instante. Esse percurso evidencia também a quantidade de

pessoas envolvidas neste projeto, que me auxiliaram a tornar o curso de português possível para

essas mulheres, sujeitos movidos por uma certeza de que aprender a língua majoritária nacional

era importante para elas. Resta-nos saber, desde o ponto de vista dessas mulheres, qual é a

importância e o resultado desse engajamento.

Nesse sentido, importa investigar as práticas sociais que informam os sentidos que

cada grupo toma como língua(gem), quais questões envolvem suas posições sociais enquanto

mães, alunas, professoras, comunicadoras, estudantes, imigrantes, a partir de seus pontos de

vista. Deste modo, é possível tomar distância de visões homogeneizantes sobre comunidades e

práticas sociais externamente definidas (MAKONI; PENNYCOOK, 2010). Os novos contornos

que tomou a pesquisa não foram menos instigantes, nem menos interessantes e se tornaram

cruciais para compreender como essas mães, que puderam participar do curso, aprendem

português em Florianópolis.

Na próxima seção, passo a detalhar como se deu o trabalho de geração de dados nesta

pesquisa.

45

2.2 A HISTÓRIA NATURAL DA PESQUISA

Após o início da negociação para o desenvolvimento do curso de português para mães

imigrantes, aguardei a aprovação do projeto de pesquisa pelo CEPSH-UFSC para apresentar o

Termo de Compromisso Livre e Esclarecido (TCLE) às alunas, discutir com elas o documento

e dar início às áudio-gravações durante as aulas. O trabalho em campo durou dois semestres

(2018/2 e 2019/1), durante os quais participei como professora e pesquisadora do “Curso de

português para mães imigrantes”.

2.2.1 As questões éticas

Segundo orientações do CEPSH-UFSC, foram produzidos dois TCLEs. Um deles foi

dirigido aos professores auxiliares da pesquisa e o outro às alunas mães procedentes do Haiti,

já que, naquele momento, o curso havia sido idealizado somente para mães dessa

nacionalidade17.

Os documentos dirigidos às alunas foram feitos em duas versões: em português e em

crioulo haitiano (cf. ANEXOS B e C). Para a tradução da versão em crioulo haitiano, contactei

Rosa18. A aprovação do projeto foi dada pelo CEPSH-UFSC em setembro de 2018. Somente

após a aprovação, explicação e anuência das alunas, as gravações em áudio começaram a ser

realizadas. Neli, da Bulgária, e Marlene, da Venezuela, fizeram questão de que seus próprios

nomes fossem utilizados na pesquisa. Todas as outras alunas, professoras auxiliares e pessoas

mencionadas tiveram suas identidades preservadas por meio da atribuição de pseudônimos.

A posição de observadora-participante, como professora, proporcionou um contato

próximo com as alunas participantes da pesquisa. Relações de confiança e amizade foram

estabelecidas, e as fronteiras entre as identidades sociais de professora, amiga e pesquisadora

foram colocadas à prova. Marlene, por exemplo, em uma de nossas conversas, mencionou “te

lo digo en intimidad, (...) eu no posso expressar isso diante de la gente” (MARLENE,

20/10/2018), circunscrevendo a um espaço confidencial temáticas pessoais que, por questões

éticas, não foram utilizadas na geração de dados.

17 Não foi elaborado um TCLE específico para as mães de outras nacionalidades. No entanto, houve o

consentimento das alunas mães de outras nacionalidades para a participação neste estudo. 18 Rosa é haitiana, enfermeira com especialização em partos. Além do crioulo, do francês e do português, somava

ainda ao seu repertório conhecimentos em inglês e espanhol.

46

Cavalcanti (2006) ressalta a importância de refletirmos sobre o conceito de “ética”,

uma vez que se trata de um construto hegemônico e, como tal, tende a privilegiar a univocidade

à pluralidade de vozes. No intuito de privilegiar o ponto de vista das participantes da pesquisa,

busquei dar relevo aos significados atribuídos pelas participantes da pesquisa. Não obstante,

importa registrar que nem sempre é possível garantir o acesso total a esses sentidos. Na presente

pesquisa, a montagem e o recorte na geração de dados foi um procedimento conduzido por

mim, enquanto pesquisadora. No entanto, busquei contemplar a perspectiva ética, procurando

dar sentido às perspectivas apontadas pelas denominadas participantes da pesquisa.

No dia 20/10/2018, no início da primeira aula, coloquei-me à disposição para dirimir

dúvidas das alunas sobre a participação na pesquisa. Marlene, sempre atenta, objetou:

Marlene: Uma pergunta que me preocupa, sabe? estava pensando se este é um

projeto para mães haitianas imigrantes e não estão essas madres, se lo van a...

o sea... si el projecto no tiene las madres haitianas... igual te lo van a validar?

Narjara: Como assim, validar?

Marlene: Conferir?

Narjara: Como é uma pesquisa etnográfica, se o campo muda, então eu vou

ter que registrar isso [...]

Marlene: E não cambia el proyecto?

Narjara: Sim, a gente vai ter que mudar, com certeza, vai ser a experiência de

mães imigrantes. Tem que mudar o projeto [...] o título da pesquisa está aquele

porque eu submeti em julho e as aulas ainda não tinham começado... eles [o

Comitê de Ética em pesquisa da UFSC] aprovaram a pesquisa de mães

haitianas... no momento da aprovação do título do projeto, no momento de

aprovar o projeto, eu tinha feito um pré-cadastro com 30 mães e elas não

vieram... eu comecei o pré-cadastro em junho, eu tive que parar de receber [as

inscrições] e dizer que já estava lotada a turma, mas elas não vieram

16:57 Marlene: Yo pregunto por lo siguiente, esté... el nombre del proyecto

tuvo que ver con datos de inmigración, o sea, que usted, como profesora,

determinó de tantos inmigrantes que están llegando ahora a Floripa hay más

madres haitianas que falo que lleva el título del proyecto, sabe? Porque yo,

como investigadora, siempre ando por encima da cuestión, entonces, claro,

cambias, enton, eso cambia cuando tiene una investigación… sorprende,

entonces, mi pregunta al final es va a cambiar el título el proyecto?

Eu: Sim, com certeza.

Marlene: Me senti à vontade com sua resposta (Trecho do diário de campo

elaborado no dia 20/10/2018).

47

A dúvida de Marlene fez com que eu explicitasse questões pertinentes à pesquisa

etnográfica para o grupo de alunas. Foi importante explicar que a pesquisa em campo está

sempre sujeita a modificações e que, apesar da importância de um projeto previamente

elaborado, antes da entrada em campo, nunca se pode garantir o que nele encontraremos

(BLOMMAERT; JIE, 2010). Em suma, apesar de terem assinado um projeto que originalmente

se dirigia a mães haitianas, expliquei para todo o grupo que as experiências de mães imigrantes

provenientes de outras nacionalidades seriam igualmente consideradas para a geração dos

dados, análise e interpretação do campo.

Este caso chama a atenção também pelo compromisso ético burocrático, firmado junto

a um comitê, elaborado com base em procedimentos usuais de pesquisas realizadas na área da

Saúde. Por não cobrirem, em seus procedimentos, as especificidades das Ciências Humanas,

principalmente as que questionam vieses apriorísticos, tais compromissos acabam por enrijecer

os instrumentos de geração de dados. Esse foi o caso do TCLE, que foi elaborado para um

público e, no desenvolvimento da pesquisa, foi aplicado a outro, mais diversificado.

O tempo de submissão e aprovação do projeto, o tempo de mudança do fluxo de

imigrantes e o tempo de investigação se desencontraram nesta pesquisa. O caso exposto acima

importa ser abordado, considerando o impacto que pressupostos desse tipo causam na

vinculação com os participantes da pesquisa, na geração de dados e no andamento da pesquisa.

O acordo feito com o CEPSH-UFSC impediu-me de refazer o documento ou elaborar um que

se ajustasse ao novo cenário, qual seja, a inserção na pesquisa de novas participantes, além de

imigrantes haitianas.

A pressuposição de que um projeto está finalizado e de que os instrumentos estão

acabados quando da submissão ao comitê é própria de um arcabouço positivista, que não serve

aos propósitos desta pesquisa. No entanto, houve avanços e alterações recentes no sistema de

submissão, que visam a orientar pesquisadores das áreas das humanidades quanto ao

preenchimento de lacunas do sistema que usam terminologias e procedimentos alheios a esse

campo de investigação.

Importa destacar a importância das reflexões éticas na pesquisa considerando que os

pressupostos que as subjazem podem estar pautados em visões totalizantes e hegemônicas, por

vezes desfavoráveis aos sujeitos participantes da pesquisa (CAVALCANTI, 2006).

Levando em conta os elementos relatados, passo a apresentar o diário de campo, as

áudio-gravações e os procedimentos utilizados para a interpretação e análise dos dados gerados

em campo nas subseções seguintes.

48

2.2.2 Diário de campo

Um dos importantes instrumentos para a geração de dados na etnografia é o diário de

campo, considerado por Erickson (1990) como mais um dos pontos de vista a partir dos quais

se pode observar um cenário. Blommaert e Jie (2010, p. 30) ressaltam a importância de observar

“em vários níveis, diferentes espaços e lugares” e fazer registros. Como apontam os autores, o

diário de campo deve estar associado à reunião de todo tipo de documento que se possa

encontrar no campo, ao que se referem como garbage (lixo, refugo). A partir dos registros,

várias possibilidades de conexão entre as notas começam a ser feitas como passos para a

resolução de um enigma, qual seja, a busca de respostas para as perguntas de pesquisa.

No caso desta pesquisa, foram registrados no diário de campo momentos em que

participei de reuniões, encontros com funcionários de organizações oficiais e não

governamentais, enunciados, conversas informais e impressões sobre o andamento de todo o

processo, além dos aspectos gerais e pontos possíveis de análise oriundos dos encontros em sala

de aula. Esse instrumento foi importante para reavivar o tom geral dos momentos de interação

e para pontuar algumas das falas das alunas e dos outros participantes envolvidos, mostrando-se

útil para a contextualização e no processo de geração de dados.

O diário de campo mostrou-se particularmente importante quando associado às

transcrições dos áudios. Basear-me apenas nas gravações talvez não tivesse sido suficiente para

captar olhares, posicionamentos corporais e outros sinais que também diziam sobre a cena. Por

essas e outras razões, a busca por vários ângulos foi tão importante nesta etnografia.

Quando citado nesta pesquisa, o diário de campo serviu para mostrar a narrativa geral

e algumas das interpretações e protoanálises realizadas logo após os encontros no curso.

Entre outros recursos utilizados em interação com o diário de campo (documentos,

textos, fotografias), as áudio-gravações foram um dos recursos mais importantes para a geração

de dados, cujas especificidades passo a detalhar na subseção seguinte.

2.2.3 As áudio-gravações

Como já citado, o registro em áudio das aulas teve início somente após a aprovação da

pesquisa pelo CEPSH-UFSC e da anuência das alunas que passaram a participar da pesquisa

após essa provação institucional. Para o registro em áudio, utilizei um celular e um tablet. No

celular, foram escolhidos os aplicativos “Gravador” (de série) e “Gravador HD”. No tablet, o

aplicativo “Voice Notes” foi utilizado.

49

Durante as aulas, o celular, ou o tablet era deixado na mesa da professora ou em uma

carteira próxima das alunas. Os momentos de intervalo também eram registrados. No total do

curso, ao longo dos dois semestres, foram realizadas 20 aulas, das quais gravei 9, totalizando

cerca de 27 horas de gravação em áudio nos três aplicativos.

Quadro 1 – Registro em áudio das aulas dos dois semestres do curso

Ano 2018 2019

Mês AGO SET OUT NOV ABR MAI JUN JUL

Aulas

gravadas 20 10, 24 13 25

01, 08,

15 06

Aulas não

gravadas

11, 18,

28

01, 16,

22, 29 06 04, 11,

18

Fonte: Elaborado pela autora

No quadro acima, estão evidenciadas as aulas em que foram realizadas

audiogravações. O início das gravações ocorreu no dia 20/10/2018. No segundo semestre,

2019/1, para a primeira aula, compareceram Neli, da Bulgária, e Claitaine, do Haiti, que já

haviam assentido participação desde o semestre anterior e, por este motivo, fiz o registro da

aula. A interrupção das audiogravações em maio de 2019, que pode ser observada no quadro

acima, foi devida à presença de alunas que não haviam assentido participar ainda. Após o

assentimento, as audiogravações foram retomadas. Detalho, a seguir, o modo como foram sendo

desenvolvidas nossas conversas-entrevistas, que constituíram valiosas fontes de dados para a

presente pesquisa.

Claitaine, a única aluna com quem fiz uma entrevista oficialmente, foi entrevistada ao

final do primeiro semestre. Encontramo-nos para um café com o propósito definido de realizar

essa conversa. Esse único encontro individual, realizado para esse fim, foi registrado em áudio.

Com Neli, desenvolvi uma conversa, durante uma aula, com foco em suas experiências de

mobilidade, em que ela expôs, entre outros aspectos, os motivos pelos quais veio ao Brasil, o

porquê de a família ter escolhido Florianópolis para viver, entre outras questões. Essa conversa,

em formato de entrevista-aula, registrada em áudio, foi realizada no último encontro do curso

do segundo semestre, momento em que apenas ela compareceu. Rosario, por sua vez, concedeu

uma entrevista a dois alunos do jornalismo interessados em realizarem uma cobertura do curso

de português para mães imigrantes. Essa entrevista, realizada na sala de aula do curso, durante

o intervalo de nossa aula, foi também registrada em áudio e incluída nos dados da pesquisa.

50

Marlene concedeu uma entrevista para os mesmos alunos, porém essa entrevista foi feita em

outra sala e não tive acesso ao material gravado. A matéria jornalística não foi divulgada19.

A referência à entrevista com Claitaine é feita como “entrevista”, e as áudio-gravações,

realizadas nas conversas-entrevistas, são apresentadas como “conversas-entrevista”, ambos os

casos seguidos da data em que foi realizado o registro. A transcrição dos áudios foi feita

manualmente, circunscrita aos limites da minha própria capacidade de reconhecimento

fonético. Para algumas formas, houve momentos de indecisão entre grafar com a ortografia

socialmente construída como português ou como espanhol. A hibridez das produções,

característica de repertórios bilingues e multilíngues tornou complexa a decisão pela grafia de

uma ou outra forma. Na dúvida, busquei registrar aproximadamente o que ouvia, com todas as

limitações do meu repertório linguístico. Utilizei símbolos de transcrição fonética apenas

quando havia uma citação lexical – em exemplos dados pelas alunas ou por mim. Outros sinais

foram utilizados: para indicar pausas, (...); incompreensão, (*). Utilizei recursos de pontuação

como a vírgula, para respeitar as pausas, e a exclamação, para dar a ideia de surpresa.

Na subseção seguinte, passo a apresentar o modo como as áudio-gravações foram

submetidas ao processo de análise orientado pela pergunta de pesquisa.

2.2.4 A emergência das questões de análise

A geração de dados é um processo complexo de articulações entre os dados gerados

em campo, a partir de diferentes instrumentos de pesquisa. Tais articulações, como resultado

analítico e interpretativo, produzem categorias.

Nesta pesquisa, as discussões foram produzidas a partir de recorrências (padrões), de

dissonâncias e de contrastes encontrados nos enunciados que emergiram dos encontros com as

participantes que fizeram parte do cenário da pesquisa. A comparação entre este cenário e

outros cenários investigados foi importante pela contribuição requerida à área a que se dirige o

texto. Ao longo da pesquisa, a pergunta de pesquisa se modificou conforme o que o campo foi

capaz de responder, uma vez que que a realidade vivida na etnografia colocou à prova

pressupostos previamente estabelecidos, como, por exemplo, a idealização de um curso

exclusivamente com mulheres mães provenientes do Haiti. Ao confrontar a realidade do

contexto macro que permeia o campo, no que diz respeito aos fluxos migratórios, a presença de

19 Tratava-se de um exercício para uma disciplina do curso de Jornalismo da UFSC que concorreria a um espaço

no jornal Zero Hora. No entanto, a reportagem dos alunos sobre o curso de mães imigrantes não foi selecionada

e, portanto, não foi divulgada no periódico.

51

mulheres mães de outras nacionalidades colocou o desafio de recontextualização da tese, que

foi sendo refeita para acompanhar a realidade do campo. A experiência de mulheres com

diferentes trajetórias de vida enriquece o propósito de dirigir o olhar para a singularidade, bem

como a intenção de questionar os elementos que sustentam significados atribuídos ao signo

“acolhimento” em contexto de PLA.

A geração de dados foi um processo intenso de ida e volta aos dados na busca por

padrões que se evidenciavam no cenário investigado. Houve, ao longo de toda a pesquisa,

articulação e rearticulação entre dados-teoria, na busca de melhor endereçar as questões que se

evidenciavam em campo. Nesse movimento, foi-se construindo, dialogicamente, o

entrelaçamento teórico que permitiu a análise e a interpretação das questões emergentes do

campo.

No caso desta pesquisa, a pergunta geral, que era originalmente “Como mães

imigrantes aprendem português em Florianópolis?”, foi transformada em “De que modo o

ensino de língua portuguesa pode ir ao encontro de necessidades e projetos pautados por

mulheres-mães-imigrantes?”

Na busca por compreender como as alunas, que eram também eram mães e imigrantes,

aprendiam português em Florianópolis, foram analisados uma série de aspectos destacados em

suas falas, como relações entre mobilidade, maternidade, família, trabalho, estudos, (falta de)

redes de apoio, ou falta de apoio, cursos de língua portuguesa, outras pessoas e instituições,

concepções sobre língua(gem) e aprendizagem de línguas.

No desejo de saber como “dar certo em português” (Rosario em conversa-entrevista

transcrita no dia 20/10/2018), as alunas revelavam a noção de que a língua(gem) está

circunscrita a esferas de atividades específicas, nas quais certos usos linguísticos são requeridos.

Uma das manifestações dessa noção de circunscrição dos usos linguísticos foi observada no

que diz respeito ao repertório linguístico-cultural de suas filhas. Para as mães, importava a

manutenção de traços tradicionais de suas bagagens linguístico-culturais.

Em seus enunciados, as participantes mostravam as necessidades e os projetos de

aprendizagem da língua portuguesa circunscritos a tempos e espaços possíveis, entre urgências

e esperas, encontrando fronteiras de sentido no diálogo com pessoas de seu convívio ou com

estranhos que as orientavam sobre a pragmática da língua(gem) em uso. Em suas enunciações,

emergiram as constrições de suas buscas por legitimidade nos variados usos linguísticos em

que se inscreveram (SIGNORINI, 2006).

52

Dedico a próxima seção a uma discussão da singularidade dos trajetos vividos pelas

alunas que aceitaram participar desta pesquisa. Para isso, apresento-as de modo detalhado.

2.3 AS PARTICIPANTES DA PESQUISA

Claitaine, Marlene, Neli e Rosario foram as alunas que, além de aceitarem participar

da pesquisa, tiveram uma presença mais significativa no curso, seja pelas questões que

colocaram, seja pela assiduidade de sua participação. Neli e Claitaine frequentaram os dois

semestres de curso (2018/2 e 2019/1). Marlene e Rosario, apenas o primeiro (2018/1).

No primeiro semestre, Claitaine teve participações pontuais, o que mudou no segundo

semestre, em que a aluna participou de modo mais contínuo. Neli obteve frequência regular no

primeiro e segundo semestres. Marlene e Rosario só participaram no primeiro semestre. Rosario

deixou de frequentar o curso após outubro de 2018, por ter passado a trabalhar também aos

sábados.

No quadro abaixo, apresento o país de origem, a idade, a quantidade de filhos/as e as

idades dos/as mesmos/as, a data de chegada no Brasil, o bairro em que essas quatro mulheres

moravam na Grande Florianópolis e sua formação, discutindo, em seguida, essas informações.

Quadro 2 – Informações gerais sobre as alunas participantes da pesquisa

Informações Gerais sobre as Alunas Participantes da Pesquisa

Aluna País de

origem Idade1

Qt. Filhos/as

(Idade,

residência)

Chegada em

Florianópolis Bairro Formação

Claitaine Haiti 31

2 filhos (13 e

6 anos, no

Haiti)

março, 2018 Trindade Fundamental

Completo

Marlene Venezuela 60

2 filhas

(adultas, nos

EUA e no

Brasil)

março, 2018 São José Pós-graduação

(Educação)

Neli Bulgária 30

2 filhas (11

meses e 3

anos, no

Brasil)

junho, 2016 Barra da

Lagoa

Superior

incompleto

(Turismo)

Rosario Venezuela 32

1 filha (4

anos, no

Brasil)

janeiro, 2018 José

Mendes

Superior

completo

(Publicidade) 1Idade que tinham as alunas em agosto de 2018 – quando teve início o curso.

Fonte: Elaborado pela autora

No que diz respeito ao país de origem, em primeiro lugar, ressalto a participação de

Neli, proveniente da Bulgária, que parte de uma posição geográfica bastante distante do restante

53

do grupo. Claitaine, Marlene e Rosario provêm de países da América Latina, em condições, no

entanto, não menos singulares. Quanto à faixa etária, Claitaine, Neli e Rosario estão na faixa

dos trinta anos, idade relacionada à participação do mercado laboral no que diz respeito às

migrações internacionais (CAVALCANTI et al., 2018). Marlene tem duas filhas adultas, uma

das quais reside no Brasil e a outra, nos Estados Unidos. Claitaine, Neli e Rosario têm filhos

pequenos. Entre estas, cujos filhos ainda são dependentes, Claitaine é a única que não os têm

junto a si no deslocamento, ao contrário de Neli e Rosario, que vieram com suas filhas para o

País.

Quanto à chegada ao Brasil, a aluna Neli era a que estava há mais tempo em

Florianópolis. As outras três alunas, haviam chegado havia menos tempo, em 2018, no ano de

idealização e realização do curso, evidenciando que a procura das alunas provenientes da

América Latina pelo curso de português se deu poucos meses após sua chegada ao País.

Com relação ao bairro em que moravam, Claitaine e Rosario eram as que moravam

mais próximo ao local do curso de Português. Claitaine residia a 5,4 km e Rosario, a 5,7 km da

UFSC. Neli era a que morava mais longe, a 16 km do local de oferecimento do curso de

Português, e Marlene morava a 14 km dali.

As alunas apresentavam diferentes graus de formação. Claitaine tinha o Ensino

Fundamental completo; Neli, o Ensino Médio; Rosario, o ensino superior, e Marlene, além da

graduação, contava ainda com duas pós-graduações.

Um importante ponto de divergência, no que diz respeito à mobilidade em suas

trajetórias, tem relação com a presença ou não dos filhos no deslocamento. Claitaine deixou

seus dois filhos no Haiti, onde continuavam até o momento da escrita deste texto (junho de

2021), completando-se três anos em que Claitaine segue trabalhando na busca pela reunião

familiar. Neli e Rosario migraram com suas filhas.

No tocante às condições de acessibilidade ao curso ofertado na UFSC, Claitaine fazia

o trajeto a pé. As demais alunas deslocavam-se de ônibus até o local do curso e não fizeram

menção a dificuldades financeiras para realizar o trajeto.

Quanto às experiências prévias de trabalho, Marlene compartilhou uma longa

experiência de trabalho como alfabetizadora e contadora de histórias na educação infantil e na

avaliação de projetos acadêmicos. Rosario, com formação superior em Publicidade, trabalhava

na área de Comunicação em seu país. Claitaine trabalhava com vendas de roupas no Haiti, indo

de sua cidade, Gonaïves, para a capital comprar mercadorias e revender em uma feira em sua

cidade. Neli começou uma graduação em Turismo, mas não concluiu, mencionando o desejo

54

de voltar a estudar depois que as filhas estivessem na escola. Neli trabalhava no Brasil cuidando

das filhas e da sua casa, enquanto o marido trabalhava no Peru para sustentar toda a família.

Rosario morava com sua filha Penélope, e seu marido também trabalhava em outro país, na

Argentina. Rosario mencionou a busca por trabalho no Brasil. Marlene morava com uma de

suas filhas e o genro. Claitaine morava com o marido, que também trabalhava em Florianópolis.

Neli e Rosario, vivendo com suas filhas pequenas em Florianópolis, costumavam ver seus

respectivos maridos esporadicamente. No final de 2019, o marido de Neli foi morar em

Florianópolis, reunindo-se à família nuclear.

Neli e Rosario levavam as filhas para o curso no primeiro semestre (2018/2), onde as

meninas tiveram a oportunidade de socialização. No segundo semestre (2019/1), Neli não

precisou mais levar suas filhas para o curso, pois seu marido passou a ficar com as filhas em

casa enquanto a esposa frequentava as aulas. As características pontuadas sobre a presença

dos/as filhos/as no deslocamento, a possibilidade de atuar em suas áreas de formação, ou a

necessidade de mudar de área de atuação no novo local eram situações que implicavam

envolver-se em diferentes atividades e, portanto, configuravam distintas necessidades de

aprendizagem da língua portuguesa.

Nas seções abaixo, apresento cada uma das participantes da pesquisa, com detalhes

específicos, incluindo ainda informações sobre mim, como também pesquisadora-participante

da pesquisa.

2.3.1 Claitaine

Quando chegou ao Brasil, Claitane tinha 31 anos e seus dois filhos estavam com 13 e

6 anos. Eles ficaram no Haiti, aos cuidados da sogra. Claitaine nasceu em Gonaïves, a 140 km

da capital Porto Príncipe e mora em Florianópolis, em um bairro próximo à UFSC, desde março

de 2018. Ela fala crioulo e francês, além do português. Seu marido, com quem convive há sete

anos, veio antes que ela para o Brasil.

Claitaine completou o ensino fundamental em seu país e trabalhou durante dez anos

com vendas. Ia até à capital Porto Príncipe para comprar produtos e revender em uma feira de

sua cidade, Gonaïves. Nos últimos três anos, antes de vir para Florianópolis, trabalhou como

cozinheira. Quando começou o curso de português, estava desempregada e em busca de

oportunidades de trabalho. Claitaine veio para o Brasil, segundo ela, porque:

55

Claitaine: no meu país não tem trabalho... tem, mas pra quem terminou os

estudos, é difícil lá conseguir trabalho (...) eu vim por meus filhos, pra eu

conseguir um emprego bom, enviar dinheiro pro meu filho ir pra escola

(Claitaine, em entrevista do dia 21/01/2019).

Claitaine complementa que, além de paga, a escola dos filhos “é cara também”. O

dinheiro enviado também se destina ao seu pai, que não pode mais trabalhar por sua condição

física.

Claitaine: Eu quero que meu filho estude, vá para a escola e termine a

universidade. Fazer tudo o que... eu não tive tempo pra fazer... Eu queria

terminar a escola, estudar Medicina para cuidar da minha família, mas eu

acabei engravidando, depois eu não fui mais à escola (Claitaine, em entrevista

do dia 21/12/2019).

Claitaine enfatiza o seu desejo pelos estudos. A aluna tomou conhecimento do curso

de português por meio de uma colega brasileira, que havia feito seu pré-cadastro. No primeiro

dia do curso, Claitaine não foi e justificou sua ausência por conta de um trabalho obtido

recentemente. A colega brasileira havia conseguido uma oportunidade de trabalho pontual para

Claitaine naquele dia (faxina). Claitaine costumava ir a pé para a aula. No primeiro dia em que

foi, ofereci uma carona de volta para ela e para mais duas outras alunas, também do Haiti.

Durante o trajeto até sua casa, ela me falou sobre seus filhos no Haiti e sobre sua busca por

trabalho no Brasil. Em diário, registrei o encontro e a conversa:

Quando saí de carro da UFSC, avistei três alunas voltando para casa. Baixei o

vidro do carro e gritei, oferecendo carona. Elas disseram “sim” ao mesmo

tempo e se animaram para atravessar a rua. Parei o carro, abri a porta de trás

para transferir o material do curso para o porta-malas. No banco de trás, foram

outras duas alunas. Claitaine foi no banco da frente e pude conversar com ela.

No banco de trás, foram as duas outras alunas. Claitaine pediu para eu avisá-la,

se eu soubesse de algum trabalho. Eu respondi “ok!” E perguntei com o que

ela trabalhava. Ela respondeu que podia trabalhar com “limpeza, cozinha,

qualquer coisa”, concluiu. Em seguida, me perguntou se eu tinha uma filha

[provavelmente, por notar uma cadeirinha de bebê no banco de trás do carro].

Eu respondi que sim. Então, começou a falar dos filhos dela. Disse-me que

eles ficaram no Haiti, que um tem 12 anos e o outro, 6. Ia me dizer seus nomes,

mas logo errei o caminho e tive que fazer um retorno para deixá-la perto de

casa. Ela mora em um morro. Lá no alto. Subi com o carro até onde era

possível, parei. Ela me entregou um currículo e me agradeceu, depois fiz a

volta com o carro e ela, que deveria continuar subindo por um caminho que

só pode ser feito a pé, não o fez. Ficou parada, olhando o carro ir embora,

acenando tchau, enquanto o carro se afastava (Trecho do diário de campo

elaborado no dia 18/08/2018).

56

Não era a primeira vez que, em meu contato com mulheres provenientes do Haiti,

estavam relacionados um currículo e a menção à maternidade. No primeiro contato com

Claitaine, a aluna evidenciou a tônica de seu deslocamento ao Brasil: a busca por trabalho. A

necessidade de enviar remessas aos seus filhos e ao pai, no Haiti, Claitaine mencionaria na

entrevista concedida no início de 2019. A possibilidade de frequentar o curso, apesar de residir

perto da universidade, dependia também dos dias em que não trabalhava e da disponibilidade

física que, por vezes, não tinha por conta do trabalho extenuante.

Uma de suas faltas no curso de português foi justificada por conta de intempéries: “oi

professora tudo tem muito chuva Hoje/Eu não vou Hoje” (Claitaine, em mensagem de texto de

WhatsApp do dia 01/09/2018). Em outra ocasião, com voz de cansaço, disse: “Oi, professora,

bom dia. Eu não vou hoje porque eu me sinto mal. Ontem, eu fui trabalhar de noite e terminei

muito tarde. Obrigada. Eu vou no sábado que vem” (Claitaine, em mensagem de voz do

WhatsApp do dia 01/12/2018). Essas situações evidenciavam que a necessidade por trabalho

precisava ser privilegiada em detrimento a outros projetos como a participação no curso de

português aos sábados pela manhã.

Em Florianópolis, nove meses depois de ter chegado ao País, Claitaine conseguiu um

emprego em um restaurante, onde trabalhava à tarde e à noite, até março de 2019. Um dia depois

de empregada, ela comentou com felicidade que este tinha sido o acontecimento mais

importante da sua semana. Ao saber do término do semestre, ela demonstrou interesse em

continuar os estudos, dizendo “vou esperar” [Aqui ela se refere a esperar a confirmação sobre

a data de início do curso no semestre posterior] (Claitaine, em mensagem de texto de WhatsApp

do dia 01/12/2018).

Havíamos combinado de realizar a entrevista em dezembro, mas Claitaine só tinha um

dia de folga por semana. Íamos negociando as datas, sempre adiando para a semana seguinte,

conforme imprevistos aconteciam. Afinal, sábado era o único dia útil que ela tinha para resolver

questões burocráticas relacionadas ao trabalho e eu não queria pressioná-la no final do ano,

logo quando havia, finalmente, conseguido o emprego que tanto queria.

No dia 7 de janeiro, ficamos de confirmar um encontro. Perguntei a ela sobre a

possibilidade de nos encontrarmos naquele dia e ela me enviou um áudio relatando que tinha

passado muitas horas no Centro de Florianópolis tentando desbloquear o seu cartão (das 11h às

16h30). Tratava-se do seu único dia de folga do trabalho daquela semana e ela estava cansada:

Claitaine: Oi, professora, boa tarde, eu acabei chegar na minha casa agora,

porque eu fui lá no Centro desbloquear meu cartão. É muito difícil (*) é muito

57

difícil (*) é muito difícil (*). Eu fui lá no Centro, perguntei, eu acabei descobri

onde era. Eu desbloqueei meu cartão, eu acabei chegar na minha casa agora.

Eu vi tua mensagem no WhatsApp agora. Pode... pode ser na segunda [um

encontro para entrevista] porque hoje já três e trinta! Eu vou fazer comida,

deixou pro meu marido e depois eu vou descansar. Eu saí de casa 11! Cheguei

agora na minha casa. Muito obrigada. Eu vou avisar você, segunda, eu vou

avisar você aquela hora. Eu vou esperar você ali embaixo (Claitaine, em

mensagem de voz de WhatsApp do dia 07/01/2019).

Claitaine: Só... tem um [referia-se ao terminal de ônibus] no Centro e um nos

Ingleses. Só agora uma amiga me falar que tem um lá no... na frente do

Iguatemi também [na região da casa de Claitaine]. Eu não sabia que tinha lá e

fui lá no Centro. Na próxima vez, eu vou lá na Trindade. Eu não sabia que

tinha lá. Eu fui lá no Centro pra desbloquear meu cartão. Ai... Estou muito

cansada professora. Eu vou descansar e, depois, segunda é minha folga

também. Eu vou avisar pra você que horas eu vou esperar você lá embaixo.

Tá bom? Bom descanso pra você também. Um abraço! (Claitaine, em

mensagem de voz de WhatsApp do dia 7/01/2019).

Nessas mensagens, Claitaine evidencia usos linguísticos que precisa realizar e que se

tornam muito difíceis sem as informações adequadas. O desbloqueio de seu cartão de passes de

ônibus, central para que possa se deslocar no trajeto trabalho-casa, é uma ação que precisa

realizar. Mais uma vez, a aluna remete suas necessidades de uso linguístico a ações relacionadas

ao ambiente laboral, foco de seu deslocamento.

Claitaine não dispunha de informações sobre o local mais próximo de sua casa onde

poderia desbloquear seu cartão de transporte de ônibus. A aluna, que morava bastante próximo

a um dos terminais urbanos, onde poderia fazer o procedimento, por falta de orientação

adequada no seu local de trabalho, precisou ir ao Centro de ônibus, gastando oito reais e cinco

horas e meia do seu único dia semanal de folga. A tarefa poderia ter sido realizada em menos

de 40 minutos e sem custos se as informações, relativas ao deslocamento para o trabalho,

tivessem sido fornecidas de maneira compreensível por ela, por exemplo, em sua língua. Uma

amiga foi quem a informou sobre o local mais próximo onde poderia fazer isso, o que evidencia

a importância da rede de contatos no deslocamento.

Sobre a combinação para a entrevista, deixei que Claitaine me sinalizasse quando seria

possível o encontro, e ela o fez. Realizamos o encontro no dia 21 de janeiro. Nessa entrevista,

realizada quase dois meses após o término das aulas, ela pôde escolher seu pseudônimo.

Infelizmente, na ocasião, eu não acenei para ela a possibilidade de usar seu próprio nome.

Perguntei apenas que nome ela gostaria, e ela, ao fazer a escolha, sorriu – um dos poucos traços

de alegria explícita durante todo o encontro. O gesto me levou a perguntar se havia algum

motivo especial para a escolha. Claitaine disse que sim, que esse seria o nome dado a uma filha,

58

se tivesse tido uma. Nesse momento da entrevista, ela já estava distante de seus filhos havia

quase um ano.

Em nova conversa, ao falar-me de seu primo que chegara ao Brasil em dezembro,

comentou que ele já estava empregado. Perguntei sobre seu marido, se era mais fácil para os

homens conseguirem emprego. Ela disse que o marido havia conseguido empregar-se duas

semanas depois de chegar em Florianópolis. O primo trabalha na construção civil. O marido,

em uma marcenaria, mesmo trabalho exercido no Haiti.

A situação de Claitaine, em relação às outras alunas do curso, era diferente. A distância

dos filhos, a urgência do trabalho, as situações de injustiça e desrespeito vividas nele (que

veremos nas análises) davam à sua experiência de aprendizagem da língua uma intranquilidade

que a fazia pensar em voltar ao seu país, mesmo sem condições financeiras para tanto. Sua

experiência era marcada por inseguranças e incertezas sobre a efetividade de seus planos.

No que diz respeito ao planejamento de materiais para o curso de português, alguns

detalhes de sua experiência, como veremos, influenciaram o enfoque dado aos gêneros

trabalhados em sala de aula no segundo semestre o curso (2019/2).

Na subseção seguinte, passo a apresentar Neli, em cujos planos o trabalho não aparece

como prioridade.

2.3.2 Neli

Neli veio da Bulgária em junho de 2016, acompanhada das duas filhas, Sofia Catarina,

de 11 meses e Simona, de três anos. Quanto chegou ao Brasil, tinha 28 anos. Ela morava a

14 km do local do curso. Neli falava inglês, além do búlgaro e do português. Começou uma

graduação em Turismo, na Bulgária, que cursou por dois anos antes de vir ao Brasil.

O marido morava no Peru até 2018 e costumava vir uma vez por mês a Florianópolis

ver a família. Desde 2019, ele passou a viver no Brasil, junto com Neli e as filhas. O motivo

pelo qual escolheram o Brasil para morar foi por conta de um sonho do marido, que, desde que

tomou conhecimento sobre Florianópolis, ainda na Bulgária, desejou passar o resto de sua vida

aqui.

Neli começou a participar do curso a partir do segundo dia de sua abertura e frequentou

as aulas durante os dois semestres. Para chegar no local do curso, Neli utilizava três ônibus,

passando por dois terminais de integração. No primeiro semestre, morava sozinha com as duas

filhas e, juntamente com Marlene, foi uma das alunas mais assíduas. Deslocava-se com as duas

59

meninas de um bairro distante do local do curso e chegava pontualmente na aula. No primeiro

semestre (2018/2), Neli faltou duas vezes, por motivo de doença de uma das filhas. No segundo

semestre (2019/1), ela não precisou mais levar as filhas, pois o marido passou a ficar com elas

aos sábados pela manhã, para que ela pudesse estudar.

Muito dedicada ao curso, ela fazia todos os exercícios propostos em aula. No primeiro

semestre, não expressava muito sua opinião espontaneamente, sem que eu perguntasse a ela

diretamente ou endereçasse a questão a todas as alunas. Mostrou-se mais aberta no segundo

semestre, em que tomava iniciativas quanto a perguntas e participava nas discussões com

enunciados mais longos.

Em seus planos, mencionava a volta aos estudos no campo da Sociologia ou da

Filosofia, o que faria quando sua filha mais nova estivesse um pouco maior. Achava que

trabalhar não era importante para ela porque o que o marido ganhava já era suficiente para

viverem bem. Disse em aula: “Eu tenho muita vontade de trabalhar, mas na meu caso, não é

urgente, não é preciso para sobreviver... eu tenho vontade porque estou cansada de ficar na

casa” (Neli, em transcrição de áudio do dia 15/06/2019). Esse e outros enunciados mencionando

as especificidades estruturais de seu deslocamento, em associação às necessidades e aos

projetos de aprendizagem a que a aluna faz referência, serão utilizados na composição da

discussão relacionada ao tempo, à espera e às urgências que se mostraram específicas para cada

uma das alunas.

Sua filha mais velha, Simona, fez amizade com Penélope, filha de Rosario, . Neli dizia

que Simona passava a semana inteira a perguntar quando seria sábado para ver Penélope. O

interesse na socialização da filha e na busca de mais tempo para si fez com que Neli buscasse

uma creche para a filha em seu bairro. Muitos dos planos da aluna apareciam em seus relatos

condicionados ao crescimento das filhas, ao período em que elas pudessem ir para a creche ou

ao momento em que o marido voltasse do Peru. Nessas ocasiões, revelava também que suas

tarefas principais diziam respeito ao ambiente doméstico, um trabalho que é invisibilizado e

não-remunerado. A falta de uma rede de apoio era mencionada pela aluna, bem como a escassa

oportunidade de conversar em português. Seu círculo de amizades se restringia aos amigos do

marido, que eram argentinos e só falavam espanhol. No entorno onde viviam, as trocas

linguísticas com as vizinhas e os vizinhos, pescadores que “fala só pra peixe”, segundo ela,

frustravam o seu desejo da aluna de envolver-se em interlocuções mais complexas e acendia o

desejo de estudar Sociologia ou Filosofia para trabalhar e “ajudar pesoas com dificuldades”

60

(Neli, em produção escrita do dia 08/06/2019), como escreveu em uma ocasião em que foi

solicitada a compartilhar seus planos futuros.

A proximidade das filhas a levava a ressignificar aspectos da vida adulta para os quais

não dava mais importância: “Eu amo de comonicar com minas filhas, elas me lembra coisas

que como adulta eu perdeo de olhar, sentir e ovir – pequenas coisas na nos dia a dia” (Neli, em

produção escrita do dia 08/06/2019). Neli trazia em seu texto uma ambivalência em sua

condição materna. Por um lado, expressava a sobrecarga que sentia no papel de principal

cuidadora sem rede de apoio familiar, sem tempo para si em seus planos e projetos; por outro,

mostrava-se recompensada pelo carinho que lhes destinavam as filhas, como apresento na

articulação dos dados no capítulo de análises.

A ambivalência na relação com o tempo também foi pontuada por Rosario e Marlene,

participantes que apresento nas seções seguintes.

2.3.3 Marlene

Quando chegou ao Brasil, Marlene tinha 60 anos e duas filhas adultas, Maria e Ana.

Marlene nasceu na Venezuela em 2018 e, desde que chegou em Florianópolis, após uma estadia

no Equador, morava em São José, um dos municípios da Região Metropolitana da Grande

Florianópolis. Maria morava e trabalhava nos Estados Unidos. Marlene morava com a filha

Ana, que trabalhava em uma grande empresa nacional. Foi Ana quem levou Marlene à aula no

primeiro dia.

Marlene é branca, professora aposentada, graduada em Educação, especialista em

pré-escola e pós-graduada em Gestão Educacional. Em seu país, trabalhava na educação infantil

e como assessora de projetos, conforme sua especialização em Metodologia do Ensino. O

motivo pelo qual saiu da Venezuela – dois anos antes de vir morar no Brasil – diz respeito à

situação política e econômica do país. No Equador, primeiro país para o qual emigrou logo que

saiu da Venezuela, trabalhou como orientadora de projetos a graduandos, assessorando na

escrita dos trabalhos acadêmicos. Em Florianópolis, relata passar o tempo em casa, fazendo

trabalhos manuais e passeando com a filha, que a ajuda nas tarefas de português.

Marlene sempre foi muito falante nas aulas, expondo suas opiniões com facilidade e

segurança. Manteve-se assídua durante todo o semestre. Realizava todas as atividades e ia além,

buscando outros materiais. Dizia ter muita pressa de aprender português.

61

Quando as aulas começaram, Marlene estava no Brasil havia poucos meses. A

aprendizagem da língua portuguesa tinha uma conotação afetiva forte para a aluna, que se

emocionava ao falar do quanto estava grata pela oportunidade de morar em Florianópolis,

situação que registrei em diário:

Houve um momento na aula em que Marlene emocionou-se. Anya e eu

havíamos passado uma tarefa para casa em que elas precisariam fazer um

pequeno texto utilizando o conhecimento da aula 2 sobre apresentação. Ao ler

seu texto, Marlene se dizia muito agradecida por estar ali e quando pronunciou

o nome de Deus, ela começou a tremer a voz, muito emocionada (Trecho do

diário de campo elaborado no dia 25/08/2018).

Em situação posterior, Marlene relatou condições de trabalho e de vida insatisfatórias

no Equador. Segundo ela, a exploração lá era grande, pois seus patrões ficavam com 90% do

que cobravam aos clientes pelos seus serviços de orientação de projetos acadêmicos. Além

disso, relatou que, em Quito, sofreu preconceito por ser venezuelana. Em certos momentos,

passou a se apresentar como colombiana para não sofrer discriminações.

Nos intervalos das aulas, em que as conversas se davam de modo mais espontâneo,

Marlene, sempre otimista e falante, compartilhava conosco eventos do seu passado e os projetos

manuais – costuras e crochês – aos quais estava se dedicando no novo contexto. Relatava

compras de tecidos, almoços em restaurantes e passeios com o genro e a filha, que a levavam

onde fossem. Ela se dizia sempre disposta a uma aventura. Também compartilhava

ressignificações de suas experiências de educadora. Ela mostrava o quanto a aprendizagem da

língua portuguesa, autodidaticamente, era nutrida pelos conhecimentos que desenvolvera ao

longo de sua carreira como docente.

As conversas que Neli e Rosario tinham em torno da maternidade suscitavam em

Marlene um encontro com sua própria experiência enquanto mãe, que trazia para compartilhar,

salientando o quanto precisou fazer suas filhas independentes muito cedo, para que pudesse

trabalhar nos três turnos. Relatou o quanto era difícil a volta ao trabalho após a licença

maternidade de seis meses. Para conciliar tudo o que fazia, tratou de incutir o espírito de

independência também nas filhas, desmamando-as e desfraldando-as bem cedo.

Conversávamos, durante o intervalo da aula do dia 20 de outubro de 2018, sobre o desfralde, a

independência das filhas e a relação da maternidade com o trabalho, quando Marlene nos

colocou essas questões:

62

Marlene: meus dos filhas nove meses! [em relação ao desfralde] [...] Eu tinha

três [penicos] em minha casa, em minha sogra, em mi mamãe antes de

completar um año. Es más! Elas entraram baltizarse em las iglesias sin... y

caminando, muy independientes! […] pienso yo la dinámica porque entonce

yo trabajava, estudiava, entonce lo… el poco tiempo que me quedava, yo lo

tenia que aprovechar… al máximo. Entonce no ter el pañal y eso, yo lo tenia

que (*) y lo logró hacerlo. Cuando estaba en cuarto grau, tenía como nueve

años las dos. Ellas ya planchaban y lavavan su ropa. […] Claro, porque yo no

tenía tiempo para eso! Yo trabajava de ocho a doce, de dos a cinco y media, y

de seis de la tarde a once de la noche. Yo trabajava todo el dia. Yo era, primero,

secretaria y, depois, era profesora, entonce trabajava en una escuela. Era una

mañana (*), y lejo! Ai, no! Y el trabajo noturno era (*) nueve de la noche

(Marlene, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

O relato de Marlene sobre os desafios de conciliar a maternidade e o trabalho eram

corroborados pela experiência de Rosário, que assim se referiu aos esforços de Marlene para

trabalhar e criar suas filhas: “todas las mães venezuelanas son así” (Rosario, em transcrição do

dia 20/10/2018). Essas posições sociais contrastavam com a situação de Neli, que viera de um

contexto em que a licença maternidade e a licença parental, além de estimulada, é assegurada

nos primeiros dois anos da criança:

Neli: Salimos quarenta e cinco dias antes de dia de ganhar como se diz

Narjara: Licença maternidade?

Rosario: Não, ela fala o dia do parto

Neli: Sí, quarenta e cinco dias antes do parto. Antes, começa tua folga como

se diz?

Narjara: Licença maternidade

Neli: E podes ficar dois anos em casa cuidando do seu filho

Marlene: Dois anos?!

Neli: Sí, licença maternidade é dois anos, e é de antes, no é de asi, só. Já coisas

poco mudam porque mulher tem que voltar rápido ao trabalho, porque não

tem que trabalhar, e se você volta depois de seis meses, vai ganhar seu salário

com 80%. Esse que ganha, se fica na casa, se voltas depois de um año, ganha

seu salário, e também 50% desse que vai ficar

Marlene: Quanto é a licença aqui no Brasil?

Narjara: Seis meses, quatro ou seis

Marlene: Igual

Rosario: Igual

63

Marlene: É, eu chegava a trabalhar luego de seis meses chorando. Pienso que,

como avuela, ya uno tiene una experiência como mamá (Conversa em

transcrição de áudio do dia 20/10/20)

Essas realidades contrastantes implicavam diferentes necessidades de aprendizagem

da língua portuguesa no novo local, por envolverem esferas de atividade específicas. Por esse

motivo, são aqui pontuadas e interessam na concepção de língua(gem) mobilizada a partir das

reflexões de Bakhtin (2003), para o qual a língua é intrínseca à vida e se manifesta de forma

mais ou menos estável no formato de gêneros do discurso, nas diferentes atividades humanas

em que se envolvem essas mulheres.

Marlene era muito politizada e, ao pontuar questões sobre injustiça, xenofobia e

racismo, suscitou discussões importantes, que foram utilizadas para compor questões centrais

da pesquisa, exploradas na análise dos dados gerados em campo.

Como Marlene, Rosario também era da Venezuela. No entanto, as alunas vieram em

condições diferentes. Marlene tinha filhas adultas e independentes. Rosario estava em um

momento de transição que envolvia distanciar-se do marido e ficar com a filha pequena. Os

detalhes sobre sua situação de mobilidade ao Brasil, passo a apresentar na subseção seguinte.

2.3.4 Rosario

Rosário veio da Venezuela para o Brasil em 2018, aos 32 anos, acompanhada da filha

Penélope, de quatro anos. O marido trabalhava na Argentina na época. Rosário tem nível

superior em Publicidade e trabalhava com comunicação na época em que frequentou o curso.

Assim como Marlene, Rosario buscava meios para aprender a língua portuguesa. A

esse respeito, declarou: “eu gosto de pesquisar” (Marlene, em transcrição de áudio do dia

20/10/2018). Tinha nível intermediário de inglês e morava em Florianópolis, em um bairro

próximo à universidade. Para chegar à UFSC, precisava pegar um ônibus. Rosario procurou o

curso um dia antes do início das atividades do primeiro semestre para sondar a possibilidade de

participação:

Rosario: Oí boa tarde. Encontrei este número numa página Web sobre uma

ONG que oferece cursos de Português para mães imigrantes. Eu sou da

Venezuela e gostaria de saber como participar dos cursos (Rosario, em

mensagem de texto do WhatsApp do dia 10/08/2018).

64

Já no primeiro dia de aula, Rosario pediu dicas sobre materiais para o estudo em casa,

pois já vinha estudando o português antes de partir da Venezuela. Rosario era muito ágil na

resolução de suas questões. Muito inteligente e perspicaz, fazia questionamentos precisos

quanto às dúvidas que tinha sobre palavras e expressões que ouvia falar e que não entendia

completamente.

Logo que chegou ao Brasil, matriculou Penélope em uma creche. Segundo Rosario, a

pequena já falava português melhor que ela e, inclusive, ensinava português à mãe, e a corrigia

às vezes. Rosario valorizava a fluência da filha na língua portuguesa, mencionando o quanto

ela às vezes se esquecia de falar o Espanhol. A valorização do repertório da filha e a tentativa

de Rosario de controlá-lo são temas que enfoco nas análises. A agilidade da aluna em matricular

Penélope na creche no mesmo semestre em que chegou ao Brasil pressupunha sua facilidade de

acesso a serviços complexos e de inserção na sociedade brasileira. Matricular a filha na creche

requer uma série de procedimentos que se dão em língua portuguesa, como informar-se sobre

períodos de matrícula e horários de acesso à escola, preencher formulários, tomar conhecimento

de regras de utilização do espaço, participar de reuniões, etc. Evidenciava-se a agilidade da

aluna para resolver questões e, como ela mesma colocaria, “dar certo em português” (Rosario,

em transcrição de áudio do dia 20/10/2018). Neli, por sua vez, dizia-se insegura quanto à

escolha da escola para suas filhas, pois, sem o conhecimento adequado da língua portuguesa,

não saberia identificar a qualidade da escola.

Mesmo sendo o curso inicialmente direcionado a mães haitianas, conforme já

explicado, Rosario o buscou dado o seu interesse por estudar a língua em um contexto formal

de ensino. Ela dizia que a possibilidade de levar Penélope constituía uma “oportunidade”,

considerando a quantidade de coisas que precisava conciliar em sua vida no deslocamento com

a filha, sem o marido e sem uma rede de apoio estável. Nesse aspecto, sua situação

aproximava-a de Neli, cujo marido também estava trabalhando fora do Brasil. Porém,

diferentemente de Neli, Rosario precisava exercer alguma atividade remunerada.

Penélope estudava meio-período em uma creche e Rosario buscava oportunidades de

trabalho em áreas alternativas ao seu campo de atuação, uma vez que a aluna ainda esperava

pela legalização dos documentos comprovatórios de sua formação superior. Dizia-se

preocupada em aprender a língua portuguesa para trabalhar em sua área. Esses e outros aspectos

serão melhor desenvolvidos a partir dos enunciados de Rosario, em contraste com o das outras

alunas, a evidenciarem as constrições de tempo, as necessidades em relação ao trabalho e as

65

buscas por “dar certo em português” nas diferentes esferas de atividades nas quais se inscrevia

na nova realidade sociolinguística.

Os motivos pelos quais Rosário veio ao Brasil com sua filha não ficaram muito

evidentes em sua explicação, porém não tive oportunidade de pedir maiores informações sobre

o assunto para a aluna. Considerando seu desligamento do curso e o enfoque primeiro da

pesquisa na experiência de mães haitianas, não realizei uma entrevista com ela.

Na subseção seguinte, discorro sobre a minha participação enquanto pesquisadora-

-participante.

2.3.5 Narjara

Enquanto participante da pesquisa, importa que eu também me apresente, uma vez que

diferentes posições sociais estão envolvidas quando da produção de enunciados, segundo a

concepção de língua(gem) mobilizada neste trabalho.

Quando o curso teve início, eu tinha 35 anos, e minha filha Ísis, 1 ano e 10 meses. Sou

casada e moro próximo à UFSC. Sou originária de Rio Branco, Acre, e moro em Florianópolis

desde 1999. Sou licenciada e bacharel em Letras Português e mestre em Linguística pela UFSC.

Falo inglês e espanhol. Morei em Tomsk, na Sibéria (Rússia), em 2011, onde trabalhei com o

ensino de inglês para crianças e adolescentes em kindergartens e summercamps. Morei também

em Arequipa, no Peru, em 2013, onde trabalhei com o ensino de língua portuguesa para adultos,

em um centro aplicador do Celpe-Bras. Na ocasião, também tive a oportunidade de participar

como avaliadora desse exame de proficiência. Leciono Português para estrangeiros desde 2011,

quando também teve início meu percurso como pesquisadora. Para a conclusão da minha

graduação, empreendi uma crítica e autocrítica à formação inicial de professores de Português

Língua Estrangeira (PLE). No Mestrado, realizei análise de uma unidade fraseológica

idiomática em um material didático.

Todas essas experiências, apresentadas aqui de modo breve, importam para dizer que

elas contribuíram para o desenvolvimento da sensibilidade quanto ao deslocamento e à

necessidade de conquista dos usos linguísticos considerados legítimos, nos espaços sociais em

que eu transitava. Do mesmo modo, a experiência da maternidade contribuiu para a

sensibilização quanto à necessidade de uma rede de apoio que possa dar suporte à criação de

filhos/as, permitindo a mães imigrantes o engajamento em outras atividades – laborais,

estudantis e outras. Por sua vez, o estudo e a investigação sobre os materiais didáticos

66

disponíveis para ensino de PLE, no início da minha formação, fizeram-me compreender a

importância de aprender a preparar as minhas próprias aulas, desenvolvendo uma

independência na elaboração dos materiais.

O lugar de observadora-participante, apesar de propiciar um ângulo de comparação

melhor em relação a outros cenários de atuação, como aponta Erickson (1990), coloca-nos,

como ressalta Cavalcanti (2006), na posição de ter de lidar com uma variedade de atividades,

ao mesmo tempo em que demanda ajustes à organicidade do campo. Conciliar a posição de

professora e de pesquisadora não foi tarefa fácil, principalmente no que diz respeito à minha

inexperiência de investigação etnográfica e à idealização do campo, que se mostrou um lugar

caótico, desde o início. Como ressaltam os pesquisadores da área, o caos é uma característica

da etnografia e ele está presente a todo momento (BLOMMAERT; JIE, 2010; ERICKSON,

1990; HELLER; PIETKÄINEN; PUJOLAR, 2018).

Na próxima seção, descrevo a construção do material utilizado ao longo do curso

proposto nesta pesquisa. Especifico como o material didático foi pensado e readequado, de

modo a acompanhar as modificações do campo de pesquisa.

2.4 A ELABORAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO

Como tem sido sempre minha postura enquanto professora, procurei dar início ao

curso para as mães imigrantes com aulas genéricas sobre apresentação e cumprimentos. Como

a maioria das alunas não tinha muita experiência com a língua portuguesa, procurei, ao longo

do curso, ir adequando o material didático àquela realidade específica, tanto quanto possível,

conforme se revelavam em sala de aula interesses, discussões e dificuldades específicas das

alunas.

No caso do curso de português para mães imigrantes, conduzir um plano de ensino que

se retroalimentasse dos conteúdos solicitados pelas estudantes foi um verdadeiro desafio. A

falta de assiduidade e a flutuação do grupo não permitia traçar uma linearidade com progressão

do conteúdo no primeiro semestre. Essa situação também é vista em outros cenários. Goulart

(2015, p. 83), por exemplo, relata que, durante a realização de um projeto de ensino de

Português a imigrantes haitianos desenvolvido em Florianópolis, através de uma parceria entre

a UFSC e a Secretaria Municipal de Educação de Santa Catarina, notou “a necessidade de

trabalhar com aulas temáticas”, segundo ele por dois motivos:

67

O primeiro diz respeito à irregularidade na frequência dos alunos. Por diversos

motivos, os alunos não frequentavam as aulas regularmente, sem mencionar

o fato de que a cada novo encontro os alunos eram matriculados, o que

dificultou o andamento das aulas. Ao mesmo tempo em que precisamos

avançar com o conteúdo nós também precisamos retroagir para que novos

alunos pudessem acompanhar. Esse movimento de ida e vinda contribuiu para

a evasão de parte dos alunos durante o curso. Salienta-se que esse motivo nos

impossibilitava de iniciar uma atividade em uma aula para que ela fosse

concluída em outra, pois não tínhamos a certeza de que os mesmos alunos que

haviam participado daquela aula estariam na aula seguinte, pelo contrário, a

certeza era a de que na aula seguinte haveria outros alunos que não (ou além)

dos que haviam participado naquela aula;

O segundo [motivo para a escolha das aulas temáticas] diz respeito à

constituição dos alunos como sujeito. A heterogeneidade da turma mostrou-se

um fator muito interessante (GOULART, 2015, p. 84, ênfase minha).

Ruano (2019) também identifica características similares no contexto de ensino do

projeto Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH), do Centro de Línguas e

Interculturalidade (CELIN), da Universidade Federal do Paraná (UFPR):

Praticamente todas as semanas, o PBMIH recebe novos alunos e uma parte

deles, por motivos financeiros ou de trabalho, deixa de frequentar o curso ou

segue as aulas com bastante irregularidade. Os professores responsáveis pela

criação do projeto relatam: ‘desde o começo, percebemos que qualquer

abordagem ‘linear’ de aquisição linguística não seria producente ao grupo. A

partir das discussões, chegamos à ideia de que cada aula seria uma tarefa

comunicativa fechada’ (RUANO; GRAHL; PERETI, 2016, p. 298) [...] Dessa

maneira, os alunos mais assíduos não se sentiram desmotivados por constantes

‘retomadas’ de conteúdo. Por outro lado, os novatos não irão depender de

aulas passadas para dar continuidade ao trabalho didático do dia (RUANO,

2019, p. 79).

Para contornar a dificuldade de progressão de conteúdos que a flutuação na presença

dos alunos imigrantes colocava, ambos os projetos utilizaram aulas independentes, com a

duração de um encontro, organizando-se a partir de temas.

Quanto ao curso de português para mães imigrantes, Neli e Claitaine continuaram a

participação no segundo semestre. Foi possível, então, desenvolver um plano de atividades com

progressão temática que abrangia alguns dos interesses de aprendizagem linguística

evidenciados pelas alunas. Em especial, as necessidades apresentadas por Claitaine, que me

procurou com mais frequência, demonstrando urgências no conhecimento de usos linguísticos

relacionados à esfera laboral – como a atualização de currículos e a utilização de recursos

68

digitais para o envio desse documento digitalizado, central para buscas de emprego, poupando

gastos de tempo e dinheiro com impressões.

A necessidade de Claitaine foi associada à de Neli, que buscava ampliar suas

possibilidades de comunicação – interesse relatado no primeiro semestre, em que a aluna se

dizia restrita à esfera doméstica, rodeada por falantes de espanhol e sem muitas oportunidades

de interlocução em língua portuguesa. Com essas duas demandas em mente, em função da

continuidade dessas duas alunas de forma mais assídua, foi desenhado o Módulo “Falando de

Mim” (Pale de Mwen) (ANEXO E), como discutimos em Reis e Lucena (2019):

No Módulo 1, denominado Falando de Mim/Pale de Mwen, foram enfocados

gêneros do discurso primários e secundários como: entrevista de emprego

oral, apresentação formal para completar formulários, apresentação escrita,

concepção de currículos e apresentação em situações de informalidade. Já no

segundo módulo, intitulado Conversas, além de a pesquisadora-professora

discutir questões sobre tópicos gramaticais nos quais as alunas apresentaram

dificuldades, evidenciadas em suas produções escritas, também foram focos

de discussão a leitura, o debate sobre feminismo, divisões de trabalho fora e

dentro de casa, a importância do trabalho e as aspirações individuais das

alunas (REIS; LUCENA, 2019, p. 42, grifos no original).

As produções textuais do Módulo 1 abrangiam narrativas orais sobre motivações para

o trabalho, objetivos e impressões no deslocamento e uma produção textual autobiográfica. No

segundo módulo, elaborado após a produção textual realizada ao final do primeiro módulo,

foram enfocadas as dificuldades reveladas nas produções textuais. Na continuidade, discutimos,

a partir de um texto histórico, a origem do feminismo hegemônico na Inglaterra e na América

do Norte, em uma seção intitulada “Conversas e prática de texto”. Refletimos, na ocasião, sobre

a igualdade de gêneros, sobre a divisão de tarefas domésticas e sobre a categoria mulher e a

categoria homem e as constrições socialmente construídas para quem ocupa esses lugares

imaginados como universais (ANEXO F).

No material didático, as escolhas para compor as imagens de homens e mulheres em

diferentes posições sociais foram feitas de modo a contrariar estereótipos sobre papéis sociais,

socialmente construídos como naturais na sociedade (vide ANEXO F). Assim, quando tratamos

de habilidades, escolhi a imagem de um homem branco para ilustrar habilidades relacionadas à

preparação de alimentos, à limpeza e à organização de ambientes de terceiros. Escolhi imagens

de uma mulher branca para ilustrar a habilidade de “liderança” e de mulheres negras para

ilustrar “habilidades em informática” e “proatividade”. A escolha não foi expressa, mas as

69

imagens causaram efeito, pois uma das alunas sorriu, apontando as escolhas relacionadas ao

homem cozinhando e à mulher na posição de liderança.

O conceito de imagens de controle (COLLINS, 2019), que subjaz a essa investigação,

que orienta as análises e que será melhor apresentado e discutido na seção teórica, diz respeito

a como imagens socialmente construídas sobre o lugar social (gênero-raça-classe) de

determinados sujeitos é naturalizado no imaginário social. Como efeito dessa naturalização,

sujeitos que estão à frente de instituições, quando não percebem essas imagens de controle e

não as contestam, acabam por ecoá-las em suas ações, contribuindo para a manutenção do

racismo e do sexismo fundante e estrutural da sociedade.

Como possibilidade de contestação dessas imagens de controle em sala de aula, em

perspectivas que se queiram críticas e não reprodutoras desse imaginário que tenta encerrar

certos sujeitos em espaços de imobilidade social, importa que outras imagens sobre sujeitos que

sofrem constrições de ordem racial e de gênero (e de nacionalidade, no caso de imigrantes e

refugiados) possam ser elaboradas. No material didático, por exemplo, a contestação dessas

imagens pode ser um elemento importante para desnaturalizar a ocupação desses sujeitos em

posições sociais restritas.

Após apresentar o material didático, as participantes da pesquisa, o processo de

geração de dados, assim como os instrumentos utilizados, a história natural da pesquisa, e os

passos de negociação para o desenvolvimento do curso de português, descrevendo o cenário

micro da pesquisa, passo a discutir, no próximo capítulo, a fundamentação teórica que permitiu

a análise e interpretação das questões emergentes do campo.

70

3 A BUSCA PELOS USOS LINGUÍSTICOS LEGÍTIMOS NA DIÁSPORA

Desde 2010, quando do terremoto que assolou a cidade de Porto Príncipe, a capital do

Haiti, o Brasil tem recebido um expressivo número de imigrantes e refugiados, que vêm ao País

em busca de oportunidades, “invertendo a lógica secular de migração oriunda, principalmente,

do hemisfério norte”, segundo dados do Observatório das Migrações em Brasília, OBMigra

(CAVALCANTI et al., 2018). Tendo o Brasil como lugar de passagem ou de destino, a chegada

desses novos contingentes populacionais, inicialmente do Haiti e, mais recentemente, da

Venezuela, tem revelado a fragilidade das políticas migratórias nacionais.

Villen (2016) observa que os deslocamentos que partem de países periféricos e seguem

na periferia do capital encontram postos de trabalho precarizados, sendo esse o caso brasileiro.

Concentrando-se nos estados de São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, as

migrações recentes para o país têm como maioria homens haitianos, seguidos pelos

venezuelanos, no mercado laboral, ambos os grupos ocupando o “final da cadeia produtiva do

agronegócio” (CAVALCANTI et al., 2018, p. 3). Entre 2010 e 2017, a presença dos haitianos

(101,9 mil) no mercado de trabalho seguiu-se à de colombianos (48,2 mil), argentinos (40,9

mil) e estadunidenses (39,9 mil) marcando mais fortemente a presença de imigrantes do

Hemisfério Sul (CAVALCANTI et al., 2018). A imigração da Bulgária para o Brasil não é

expressiva em termos numéricos, figurando nos dados da Polícia Federal na categoria “outros

países”, como era o caso da Venezuela antes de 2017 (CAVALCANTI et al., 2018).

No caso dos haitianos, pesquisas têm mostrado a exposição dessas pessoas a processos

de recrutamento desumanos (GOULART; BUTZGE, 2019) e a extenuantes horas de trabalho,

que têm efeitos nocivos à saúde mental (GOMES, 2017) e prejudicam o aproveitamento em

outras atividades, como a participação em cursos de português (COLUSSI; CUBA;

MIRANDA, 2017). De modo semelhante, imigrantes venezuelanos no Brasil também têm

encontrado obstáculos à inserção, tanto no que diz respeito a menor remuneração no mercado

de trabalho quanto à discriminação por conta da nacionalidade (SIMÕES, 2017).

Em Florianópolis, Silva, Rocha e D’Avila (2020), em pesquisa realizada entre 2015 e

2017, observaram que:

[...] grupos de imigrantes e refugiados não-brancos do eixo sul-sul são

invisibilizados e, devido à ausência de políticas públicas estaduais e

municipais de integração e acolhimento, são submetidos a processos

preocupantes de hiper-vulnerabilização (SILVA; ROCHA; D’AVILA, 2020,

p. 1).

71

Os autores ressaltam que, para além das dificuldades linguísticas, o racismo, a xenofobia, a

dificuldade de reconhecimento de currículos e o racismo estrutural do estado catarinense são,

também, reclamações frequentes nos atendimentos (SILVA; ROCHA; DÁVILA, 2020).

A complexidade do deslocamento de mulheres-mães-imigrantes para um contexto de

hospitalidade seletiva, revelada nos enunciados de alunas participantes da pesquisa, coloca o

desafio de compreensão dos elementos em jogo nessas experiências migratórias e diaspóricas

que envolvem a busca pela língua portuguesa. A intensa mobilidade de “pessoas, textos e

línguas” nos desafia a pensar o que temos chamado de “português” na contemporaneidade

(MOITA LOPES, 2013), mas, sobretudo, o que os sujeitos que se deslocam têm compreendido

como “português” em relação às suas buscas. Essas questões reforçam a importância de

conhecermos essas experiências de deslocamento em suas particularidades.

Para a compreensão de necessidades e projetos em que se inscrevem os sujeitos

migrantes e em diáspora, aprendizes da língua portuguesa, que requerem usos linguísticos

específicos em suas práticas, importa considerar a opinião leiga, como sugere Rajagopalan

(2006), dos sujeitos imediatamente implicados nessas práticas sociais. Quanto à compreensão

do que conta como língua em cada contexto específico de práticas, Makoni e Pennycook (2007)

ressaltam a importância de:

[...] repensar os modos pelos quais olhamos para língua e suas relações com

identidade e localização geográfica, para ir além das noções de

territorialização linguística em que língua está ligada a um espaço geográfico

(MAKONI; PENNYCOOK, 2007, p. 3, tradução minha)20.

Como problematizam Pennycook (2006), Signorini (2002), Hall (2003; 2006) e outros, a noção,

própria do projeto modernista, de que a um espaço geográfico vincula-se a uma língua, uma

nação e uma cultura é deslocada na experiência diaspórica e migratória, impactando a

subjetividade desses sujeitos, a construção de sentidos e a constituição identitária no novo

contexto, processos elaborados pela linguagem (BAKHTIN, 2010).

Com o objetivo de discutir como o ensino de língua portuguesa pode ir ao encontro de

necessidades e projetos pautados por mulheres-mães imigrantes, são articulados e discutidos

neste capítulo conceitos que visam à compreensão (1) das experiências migratórias e

diaspóricas que configuram esses deslocamentos, (2) do ensino de português como língua de

20 “[…] rethinking the ways we look at languages and their relation to identity and geographical location, so that

we move beyond notions of linguistic territorialization in which language is linked to a geographical space”.

72

acolhimento, como língua adicional e como traços de seus repertórios em práticas translíngues,

(3) da produção de enunciados como entrelugares de construção de sentido, (4) da busca pela

legitimidade de falantes nos usos linguísticos situados e (5) de raça como um significante

flutuante, sócio-historicamente situado e, portanto, ambivalente.

Na seção 3.1 A experiência diaspórica, discuto a dimensão subjetiva da mobilidade, a

partir de Hall (2003; 2006), que a compreende como um fenômeno capaz de provocar uma

suspensão identitária cuja referência é irredutível a uma localização geográfica precisa. Nessa

suspensão, o sujeito da diáspora não pertence mais ao seu lugar de origem, para o qual o retorno

é impossível, e tampouco encontra a referência de casa no novo contexto. A identidade é

compreendida como um repertório de traços de experiências transculturais não redutíveis a uma

unidade, sensação que Hall (2003; 2006) tenta captar com sua interpretação do conceito de

diáspora e com a observação do movimento de oscilação entre a tradição e tradução nesse

processo de deslocamento geográfico e subjetivo.

Na seção 3.2 A imigração de mulheres haitianas, venezuelanas e búlgaras, pontuo

especificidades dos fluxos migratórios nos países dos quais as participantes da pesquisa

provêm. Para tanto, apresento e discuto dados de pesquisas vinculadas a observatórios de

migração nacionais, internacionais e outras instituições. Nas seções 3.3 Imigrantes no Brasil:

traços de uma hospitalidade seletiva, 3.3.1 Imigração em Santa Catarina: a celebração de uma

identidade branca e europeia e a invisibilização dos outros e 3.3.2 Imigração em

Florianópolis: Os imigrantes locais e os haules, problematizo o contexto imigratório no Brasil,

em Santa Catarina e em Florianópolis, ressaltando diferenças importantes no convívio de

grupos migratórios que compõem a região.

Na seção 3.4 O português como língua de acolhimento: um conceito sócio-

-historicamente situado, situo o conceito de língua de acolhimento, utilizado no âmbito de

ensino de línguas para imigrantes, abordando, na subseção 3.4.1 O português como língua

adicional e a translinguagem, o caráter adicional e a perspectiva de práticas translíngues. Em

3.4.2 A perspectiva de uso da linguagem por Bakhtin, apresento conceitos utilizados para

analisar e interpretar necessidades e projetos das alunas mães-imigrantes no novo contexto,

compreendendo a enunciação como uma ponte entre dois sujeitos, que pressupõe fronteiras e

negociações (BAKHTIN, 2003; 2006). Na subseção 3.5 A legitimidade nos usos linguísticos,

com Signorini (2002; 2006), discuto essas fronteiras que se interpõem à enunciação na busca

pela língua legítima, propondo um olhar para o contexto sociolinguístico onde se situam essas

práticas de linguagem.

73

De modo a pensar nos critérios de legitimidade conferidos aos sujeitos no discurso,

apresento e discuto o conceito de raça na seção 3.6 Raça como um significante flutuante com

Hall (2006), que o compreende como um significante flutuante e ambivalente. No contexto

brasileiro, como observa Munanga (2019), o conceito de raça concorre ora para a marcação

identitária e fortalecimento étnico de grupos subalternizados por processos históricos de

desumanização, ora como categoria utilizada para configurar imagens de controle que tenta

encerrar certos sujeitos em espaços sociais restritos de mobilidade social e econômica.

A proposição de Hall de que raça é um significante flutuante importa para contestar

estereótipos socialmente cristalizados no imaginário social. Tais estereótipos, que Collins

(2019) denomina imagens de controle, são abordados na subseção 3.6.1 Imagens de controle.

Nesta pesquisa, o exame a esses estereótipos, que se sedimentam historicamente no imaginário

social, serve para discutir os cerceamentos à atribuição de legitimidade de falantes das

mulheres-mães-imigrantes participantes da pesquisa, na posição de sujeitos migrantes e

diaspóricos em contexto de hospitalidade seletiva.

A articulação dos conceitos abordados neste capítulo visa a dar inteligibilidade às

questões que emergiram do campo situado, de modo a dimensionar as fronteiras e bordas na

produção/negociação de enunciados nas buscas pela legitimidade nos usos linguísticos de

Claitaine, Marlene, Neli e Rosario e outras mães imigrantes no novo contexto.

3.1 A EXPERIÊNCIA DIASPÓRICA

A reflexão de Hall (2003; 2006) sobre a complexidade da experiência diaspórica

importa para compreender a produção de sentidos identitários nos processos de deslocamentos

geográficos. Nesta pesquisa, alguns conceitos do autor, discutidos nesta seção, foram utilizados

para interpretar necessidades e projetos enunciados pelas alunas participantes da pesquisa e nos

ajudam a compreender como essas mulheres-mães-imigrantes concebem seus repertórios

linguístico-culturais. A aproximação desses processos subjetivos importa para sensibilizar

formuladores de políticas educacionais e linguísticas quanto à complexidade dos processos de

deslocamento identitário pelos quais passam essas mulheres.

Ao refletir sobre as migrações caribenhas na Inglaterra, Hall (2003; 2006) chama a

atenção para a impossibilidade de reduzir esses deslocamentos à ideia de uma tradição comum,

inscrita em um território de pureza cultural, para o qual um retorno seria possível. Para o autor,

a concepção de uma identidade fixa, produzida nos limites dos Estados-nação, com seus mitos

74

fundacionais e idealizações de unidade na diversidade, não se sustentaria como interpretação

identitária desses deslocamentos:

Trata-se de uma concepção fechada de tribo, diáspora e pátria. Possuir uma

identidade cultural nesse sentido é estar primordialmente em contato com um

núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa

linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de ‘tradição’, cujo

teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si

mesma, sua ‘autenticidade’. É claro, um mito – como todo potencial real dos

nossos mitos dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas

ações, conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história

(HALL, 2003, p. 29).

Frente à dificuldade de reduzir a compreensão de fluxos migratórios oriundos de países

que passaram por experiências coloniais à unidade do amálgama língua-cultura-território, Hall

(2003) propõe a leitura desse tipo de experiência a partir de um entendimento alternativo de

diáspora e tradução:

O conceito fechado de diáspora se apoia sobre uma concepção binária de

diferença. Está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e

depende da construção de um Outro e de uma posição rígida entre o dentro e

o fora. Porém, as configurações sincretizadas da identidade cultural caribenha

requerem a noção derridiana de difference – uma diferença que não funciona

através de binarismos, fronteiras veladas que não separam finalmente, mas são

também places de passage, e significados que são posicionais e relacionais,

sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim (HALL,

2003, p. 33).

Segundo Hall (2003; 2006), observa-se permeabilidade entre as identidades locais e as

caribenhas na Inglaterra. Mas existem tensões nessa composição: “não se quer sugerir aqui que

numa formação sincrética, os elementos diferentes estabelecem uma relação de igualdade uns

com os outros” (HALL, 2006, p. 34). Ou seja, não existe uma fusão de sentidos, mas uma

abertura constante à negociação de sentidos. A esse processo, o autor se refere com o termo

tradução.

Como observa Hall (2006), no contexto global, é tentador pensar que a equação

resultante da mobilidade seria uma homogeneização cultural ou que, na oscilação entre “a

“Tradição e a Tradução”, a escolha se daria como uma volta ao passado ou uma abertura total

ao novo (HALL, 2006, p. 88). Como coloca o autor,

75

[n]aquilo que diz respeito às identidades, essa oscilação entre a Tradição e a

Tradução (que foi rapidamente descrita antes, em relação à Grã-Bretanha) [e

a partir da experiência do próprio autor, jamaicano que se desloca ao ambiente

inglês] está se tornando mais evidente num quadro global. Em toda parte, estão

emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas,

em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo

tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses

complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns

no mundo globalizado. Pode ser tentador pensar na identidade, na era da

globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou

retornando às ‘raízes’ ou desaparecendo através da assimilação e da

homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema. Pois há outra

possibilidade: a da Tradução. (HALL, 2006, p. 88, ênfase no original).

Como salienta o autor, o que ocorre na experiência diaspórica, e que também pude

testemunhar na emergência dos sentidos compartilhados no curso de português para mães

imigrantes, é que essa tradução mais parece uma suspensão de quadros identitários fixos.

Constitui, portanto, um hibridismo, um lá e um cá, um entrelugar entre a tradição e a tradução,

não redutível a uma nem a outra posição geográfica como referência. E Hall (2006) prossegue

a definir no que consiste esse processo tradutório:

Este conceito [Tradução] descreve aquelas formações de identidade que

atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que

foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retem fortes

vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um

retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em

que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder

completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das

tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram

marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho

sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e

culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias ‘casas’

(e não a uma ‘casa’ particular). As pessoas pertencentes a essas culturas

híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir

qualquer tipo de pureza cultural ‘perdida’ ou absolutismo étnico (HALL,

2006, p. 88-89, ênfase no original).

Em seus processos de transformação identitária e negociação translinguística e

transcultural, as identidades culturais hibridizam-se:

Eles [os sujeitos em diáspora] são o produto das novas diásporas criadas pelas

migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas

identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e negociar entre elas.

As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade

distintamente novos produzidos na era da modernidade tardia (HALL, 2006,

p. 89).

76

A diáspora, segundo Hall (2003), é uma questão capaz de lançar luz “sobre as

complexidades, não simplesmente de se construir, mas de se imaginar a nação e a identidade

caribenhas numa era de globalização crescente” (HALL, 2003, p. 26, ênfase minha). O autor

fala da experiência enquanto imigrante jamaicano na Inglaterra. Em sua obra, enfoca a

identidade cultural na contemporaneidade e a questão da diáspora.

Anderson (2008 [1983]) aponta a sensação de pertencimento como o espaço comum

da comunidade imaginada, materializada em fenômenos que manifestam o ideal de “unidade

na diversidade”, que é a língua em relação a uma nação e a uma cultura. A partir desse

entendimento teórico de Anderson a respeito da nacionalidade, Hall (2003) destaca que, dessa

imaginação de uma comunidade deriva-se a imagem de um determinado sujeito nacional:

As nações, segundo sugere Benedict Anderson, não são apenas entidades

políticas soberanas, mas ‘comunidades imaginadas’. Trinta anos após a

independência, como são imaginadas as comunidades caribenhas? Esta

questão é central, não apenas para seus povos, mas para as artes e culturas que

produzem, onde um certo “sujeito imaginado” está sempre em jogo. (HALL,

2003, p. 26).

A acurácia do olhar de Hall para o fenômeno diaspórico coloca em questão dois pontos

principais que importam para este trabalho: a ideia de um “sujeito imaginado”, fruto dessa

manifestação reificada de cultura que emerge da construção subjetiva da nacionalidade, e a

noção de um “pertencimento” do sujeito, que estaria circunscrito a esse espaço de comunhão,

lido na modernidade como nacional, em que coisas como línguas e modos de ser são construídas

discursivamente como naturais (PENNYCOOK, 2006; MAKONI; PENNYCOOK, 2007).

Um dos elementos que atua na ideia originária de nação, segundo Anderson (2008), é

o elemento territorial. A despeito desta marcação, o sentimento de pertencimento transcende

essas fronteiras, sendo captado por um ethos que independe da fixação a um espaço geográfico

específico, manifestando-se nas crenças, na arte, nos ritos, nos símbolos, nas instituições e em

outros elementos aos quais se atribui um dado sentido (GEERTZ, 1983). O exemplo mais

notável da sensação de comunidade imaginada na diáspora, em que ocorre uma descontinuidade

da narrativa vivida com o espaço geográfico é, sem dúvida, a experiência judaica, marcada pela

separação forçada de sua terra natal, de onde surge o conceito mesmo de diáspora (HALL,

2003). No entanto, o autor propõe uma visão alternativa da experiência da diáspora,

compreendendo-a como uma suspensão identitária, em que o sujeito não se sente pertencente

nem unicamente a um território, nem a outro. A identidade é entendida como uma constituição

77

de traços que não se encerram em uma forma unívoca, pura, indivisível, como na idealização

iluminista de formas fixas. Na experiência da diáspora, as identidades se tornam múltiplas.

Junto com os elos que as ligam a uma linha de origem específica, há outras forças centrípetas.

A manifestação do ethos, do sentimento de pertencimento, como lembra Seyferth

(2012), é mais fortemente gerada a partir de uma oposição. Ela pode se dar tanto pela distância

do território natal – como ocorre nos sentimentos de pertencimento expressos pelos imigrantes

europeus em Santa Catarina, a exemplo da “germanidade” – quanto pela marcação de elementos

de diferenciação para contraste com grupos dentro e fora de um mesmo território concebidos

como “outros”. Em um caso ou outro, a “diferença” estaria no cerne da produção do sentimento

étnico.

A partir da experiência dos caribenhos na Inglaterra, 30 anos após seu deslocamento,

Hall (2003) se pergunta quanto às especificidades dos elementos que tornam um grupo

etnicamente diferente frente ao fenômeno diaspórico:

Onde começam e onde terminam suas fronteiras, quando regionalmente cada

uma é cultural e tão próxima de seus vizinhos e tantos vivem a milhares de

quilômetros de casa? Como imaginar sua relação com a terra de origem, a

natureza de seu ‘pertencimento’? E de que forma devemos pensar sobre a

identidade nacional e o ‘pertencimento’ no Caribe à luz dessa experiência de

diáspora (HALL, 2003, p. 26)

O autor prossegue, identificando a família, na perspectiva transnacional como apoio e

lugar da ancestralidade: “Tal qual ocorre comumente nas comunidades transnacionais, a família

ampliada – como rede e local da memória – constitui o canal crucial entre os dois lugares”

(HALL, 2003, p. 26). Marcando a importância da guetização, do grupo, da família, enquanto o

lugar em que o outro é visto como um igual, pertencente a um background comum, Hall nos

traz importantes elementos para compreendermos como as mulheres participantes desta

pesquisa, que são mães e aprendizes de português, organizam seus repertórios simbólicos no

deslocamento.

Hall (2003) afirma que, entre as comunidades caribenhas na Grã-Bretanha, é possível

observar um forte sentimento de ligação com suas culturas originais, “embora os locais de

origem não sejam mais a única fonte de identificação” (HALL, 2003, p. 26). A força do “elo

umbilical”, como ele denomina a conexão com o local de origem, leva a uma série de

aposentados a voltarem à sua terra natal. No entanto, ao retornarem, esses sujeitos não a

78

reconhecem mais, nem são reconhecidos pelos seus conterrâneos, passando até a sentir falta do

ar cosmopolita inglês.

Hall (2006, p. 51) observa a cultura nacional como um discurso, “um modo de

construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos

de nós mesmos”. O autor destaca cinco elementos principais componentes deste discurso: 1. A

narrativa da nação, que é “contada e recontada nas literaturas nacionais, na história oficial, na

mídia e na cultura popular”; 2. A “ênfase nas origens, na continuidade, na tradição”; 3. A

invenção da tradição, em que um conjunto de práticas relativas a normas de conduta é

ficcionalizado como fruto de uma longa história, com o objetivo de naturalizar

comportamentos; 4. O mito fundacional, “uma estória que localiza a origem da nação, do povo

e de seu caráter nacional num passado tão distante que ele se perde nas brumas do tempo” e

5. A ideia de um povo puro, original (HALL, p. 52-56).

O autor questiona se é possível sustentar esse discurso considerando o grau de

supressão da diferença nesses processos de construção de narrativas de culturas nacionais, uma

vez que “a maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um

longo processo de conquista violenta – isto é, pela supressão forçada da diferença cultural”

(HALL, 2006, p. 59). E conclui, compreendendo que, para esse discurso “não importa quão

diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional

busca unificá-los numa identidade cultural” (HALL, 2006, p. 59). Ao questionar-se,

compreende que o processo de imaginação de uma comunidade, elaborada como se fosse

unificada, passa, em realidade, por profundas divisões e diferenças internas. Hall (2006) conclui

pela impossibilidade de pureza e compreende que as nações modernas seriam híbridos culturais,

sendo a ideia de unidade uma ficção.

O processo de globalização, que promoveu uma compressão entre distâncias e tempos,

promoveu o deslocamento de uma série de grupos, reconfigurando cenários e desestabilizando

o discurso da cultura nacional. Nesse cenário, tanto locais quanto imigrantes e sujeitos em

diáspora têm o desafio de ressignificar suas identidades frente o estabelecimento de novas

articulações. Hall (2006) enumera três respostas típicas desses rearranjos narrativos: 1. A

homogeneização cultural, que requer a assimilação do outro ao novo contexto; 2. O

fortalecimento identitário, em que as marcas de diferença são acentuadas através de uma

supervalorização da narrativa da cultura nacional e 3. A hibridização ou tradução cultural, em

que a narrativa da cultura não mais se sustenta como unificada, mas como porosa, permeável a

novas formas de organização, adaptável a novos contextos, sem que se percam os elementos de

79

coesão com os territórios originais – ou seja, essas identidades tornam-se múltiplas e

multifacetadas. Hall (2006) compreende que as identidades são relacionais e, portanto,

processos em constante transformação.

Almeida (2019) salienta que a problemática da identidade como suspensão, na

discussão contemporânea, não pode se limitar à esfera da subjetividade individual, devendo

considerar a estrutura social que tem enquadrado de modo sistemático certos sujeitos/grupos

em posições de subalternidade. No entanto, a leitura de Hall dos efeitos da globalização nas

identidades diaspóricas, apesar de datada, não deixa de ter elementos importantes de reflexão

de algumas tendências que temos observado no cenário atual, principalmente no que diz

respeito ao recrudescimento do fascismo e da celebração de identidades fixas (nacionais e

raciais), como resposta à presença de imigrantes.

Essa discussão interessa ao debate sobre o ensino de português para mães-imigrantes,

porque a forma como professores concebem os deslocamentos territoriais de suas alunas,

impacta na forma como são considerados os repertórios linguístico-culturais dessas aprendizes.

Se a postura do professor é a de buscar uma homogeneização, o impacto para o ensino da língua

portuguesa é de um tipo, assimilacionista. Se o caso é considerar os efeitos da tradução cultural,

perceber as negociações de sentido e respeitar os elementos da bagagem do aprendiz que ele

quer preservar, trata-se de compreender para que contexto específico de vida das aprendizes no

novo local são requeridos conhecimentos da língua portuguesa. Um ponto de partida é perceber

e valorizar como são construídas essas narrativas de cultura no novo local para compreender

necessidades e projetos pautados por mães-imigrantes aprendizes de português.

Como observa Cavalcanti (2006), no contexto de formação de professores indígenas,

e como também observo no âmbito desta pesquisa, as reflexões de Hall sobre as negociações

de sentido em torno de identidades culturais também podem ser utilizadas para refletirmos sobre

as identidades linguísticas e sociais das participantes da pesquisa. Ambos os contextos – o

indígena e o de sujeitos em diáspora – são o que a autora entende como de minorias linguísticas

ou de maiorias tratadas como minorias (CAVALCANTI, 1999, 2006), em referência ao descaso

com que são considerados em políticas oficiais. Trata-se de cenários em que a língua majoritária

nacional, no caso, a língua portuguesa, é inscrita verticalmente por sujeitos à frente de

instituições e nas práticas cotidianas, forçando apagamentos e invisibilizando a riqueza dos

repertórios linguístico-culturais individuais. No entanto, é também com essa língua que

mulheres mães-imigrantes encontram possibilidades de acolher umas às outras no contexto do

curso de português, apesar das diferentes situações sociais em que se encontram.

80

É nesse contexto de suspensão de narrativas de pertencimento e reajuste de estratégias

de adaptação ao novo contexto que somos desafiados a pensar em formas de conceber

programas de ensino de línguas e políticas linguísticas que incorporem pressupostos de respeito

a esses processos translíngues e transculturais. Para a compreensão dos processos de

deslocamento das mulheres-mães-imigrantes participantes da pesquisa, passo a apresentar a

imigração de mulheres dos países dos quais as alunas participantes da pesquisa provêm na seção

seguinte.

3.2 A IMIGRAÇÃO DE MULHERES HAITIANAS, VENEZUELANAS E

BÚLGARAS

As condições sócio-históricas do Haiti marcam-no como um país que tem sofrido

embargos de países hegemônicos e períodos de longas ditaduras, apesar de seus esforços

pioneiros e revolucionários para romper com o processo de colonização (GRONDIN, 1985).

As instabilidades políticas, econômicas e sociais têm feito com que sua população opte pela

emigração como saída para a busca de melhores condições de vida. A princípio, os destinos

eram a vizinha República Dominicana e países do Norte Global. Na última década, o Brasil tem

figurado como um dos destinos escolhidos para essa diáspora – a região Sul do país, de modo

especial (MAGALHÃES, 2016).

Após o terremoto de 2010, que destruiu a capital Porto Príncipe, matando mais de

300.000 pessoas (SEGUY, 2015), constantes intervenções dos órgãos internacionais têm

suscitado críticas sobre a efetividade dessas ações na melhoria de vida do povo haitiano

(BRIEGER, 2019). As más condições estruturais, sociais e econômicas do Haiti, acirradas pelo

fenômeno geológico, fizeram milhares de haitianos migrarem para o Brasil desde 2010. A

imigração haitiana para o Brasil é caracterizada como involuntária, por ser decorrente de

desastres naturais (ROMANO; PIZZINATO, 2019).

Nos primeiros anos, o trajeto do Haiti até o Brasil feito pelos imigrantes caracterizava-

-se pela periculosidade. Para chegar ao Brasil, os haitianos atravessavam fronteiras a partir de

contratos estabelecidos com os denominados ‘coiotes’, pessoas que cobravam consideráveis

quantias de dinheiro para guiar a travessia pela Amazônia (BAENINGER, 2016). Os migrantes

vinham de avião até países como Peru e Bolívia. Em seguida, viajavam para o Brasil por terra,

percorrendo trajetos incertos, convivendo em espaços insalubres e sofrendo violências de todo

tipo (roubos, enganos, subornos, estupros, prisões e até mortes). Ao chegar ao Brasil, ainda

tinham de sofrer com a superlotação em albergues nas cidades brasileiras em que primeiramente

81

entravam. A condição de vida dessas pessoas, em seus processos migratórios, portanto, é

bastante árdua. De todo modo, o vislumbre de uma possibilidade de emprego e de alcance de

cidadania no país que os recebe é uma força propulsora de esperança para os que decidem

realizar o trajeto.

Em 2014, o governo brasileiro, através do Conselho Nacional de Imigração (CNIg),

decidiu criar uma maneira oficial de haitianos legalizarem sua entrada no Brasil a partir de Porto

Príncipe ou de países fronteiriços, através do visto humanitário (FERNANDES; FARIA, 2016).

Apesar de ser uma medida que buscou impedir a entrada ilegal e, por consequência,

desestimular o trajeto que os expunha às violências relatadas, a quantidade limitada de vistos

emitidos, bem como a demora e burocratização do processo não garantiram de todo o desvio da

via ilegal para a oficial. Porém, embora problemático, o visto humanitário permitiu que muitas

dessas pessoas passassem a ter uma via legal e mais rápida de oficializar as condições de entrada

e de trabalho no Brasil.

Segundo Fernandes e Faria (2016), a quase totalidade da população de haitianos que

entrou no país de 2010 a 2012 era composta por homens. A maior parte dos registros de trabalho

e residência foi emitida em 2015 (v. Tabela 1), aproximadamente metade dos quais para

homens.

Tabela 1 – Número de vistos de trabalho concedidos a imigrantes no Brasil entre 2011 e

2017, por país de origem

Fonte: Cavalcanti et al. (2018, p. 47).

82

Nesse mesmo período, conforme informam Cavalcanti et al. (2018) a presença de

mulheres nos registros representava um terço do total (cf. Tabela 2). Dos 95.497 registros

emitidos, 64.628 foram para homens e 30.869 para mulheres (CAVALCANTI et al., 2018, p.

65).

Tabela 2 – Número de vistos de trabalho concedidos a imigrantes no Brasil entre 2011 e

2017, por sexo.

Fonte: Cavalcanti et al. (2018, p. 48).

Sobre a inserção laboral da mulher imigrante haitiana, Ribeiro, Fernandes e

Mota-Santos (2019) afirmam que a média de idade da mulher imigrante haitiana é de 28 anos

e a do homem é 30, o que, segundo o Observatório das Migrações Internacionais – OBMigra –

constituiria uma característica de migração, sobretudo laboral (CAVALCANTI; OLIVEIRA;

MACEDO, 2019, p. 29). Dados revelam que apenas 3% dos imigrantes do Haiti têm acima de

65 anos e 2% abaixo de 20 (CAVALCANTI et al., 2018; CAVALCANTI; OLIVEIRA;

MACEDO, 2019, p. 29).

Ao abordarem o protagonismo feminino na imigração haitiana, Mejía e Cazarotto

(2017) observaram, em uma investigação etnográfica, que o deslocamento é um projeto familiar

que envolve tanto os membros da família que ficaram quanto os que partiram. O Vale do

Taquari, no Rio Grande do Sul, em 2017, situava-se como o terceiro local brasileiro com maior

inserção laboral de imigrantes (CAVALCANTI et al., 2018). Segundo essas autoras, a migração

das mulheres do Haiti para essa região tem seguido três tendências:

1) migram junto com os maridos, o casal faz junto o trajeto Haiti-Vale do

Taquari; 2) migram depois de um período de separação dos maridos, os quais,

uma vez estabelecidos no Brasil poupam dinheiro para financiar a viagem das

companheiras; 3) migram sozinhas e deixam o marido no Haiti ou na

República Dominicana (MEJÍA; CAZAROTTO, 2017, p. 184).

As autoras salientam o papel da mulher haitiana no papel de esposa como

“estruturante”:

83

O papel da esposa é estruturante, quando o casal que migra tem condições

financeiras e traz o filho ou os filhos do Haiti. Conhecemos casos em que os

trouxeram e em outros, não. Em circunstâncias nas quais o processo

migratório dos membros da família não é simultâneo, o marido migra antes da

esposa dos filhos. Geralmente, quando este se instala e adquire estabilidade

financeira traz a mulher e, se tiver recursos, o(s) filho(s) vem (vêm) junto

(MEJÍA; CAZAROTTO, 2017, p. 179).

Ambos os estudos, Cavalcanti et al. (2018) e Mejía e Cazarotto (2017), visibilizam as

condições por que passam essas mulheres em situação de diásporas. Mejía e Cazarotto (2017),

em específico, salientam a importância da presença feminina para a compreensão das famílias

transnacionais haitianas. No Brasil, as estratégias migratórias já utilizadas pelos haitianos em

outros contextos (na imigração para os EUA, por exemplo) são reproduzidas. As tecnologias

da comunicação, apontam as autoras, têm sido recursos utilizados para a manutenção dos

vínculos familiares e da saúde mental nos deslocamentos (MEJÍA; CAZAROTTO, 2017).

Estudos do Observatório das Migrações em Santa Catarina, da Universidade do Estado

de Santa Catarina (UDESC), constataram um expressivo aumento da presença de mulheres

haitianas em 2015. Segundo Brigthwell et al (2016):

Em Chapecó e região, já há a maior concentração de imigrantes haitianas no

Brasil. Estas chegam muitas vezes com o apoio de campanhas de empresas e

entidades da região. Registra-se aí também a chegada de e o próprio

nascimento de filhos de imigrantes (Bordingnon and Piovezana, 2015). Essas

crianças colocam questões significativas para o atendimento em creches,

escolas e postos de saúde, pois as mães se deparam com as dificuldades de

comunicação advindas da língua, a maioria não fala português e tem que

aprender a situar-se no nosso sistema de saúde, o que nem sempre é fácil, pois

têm que lidar com a falta de preparo das equipes para atendê-las e, muitas

vezes, com o preconceito (BRIGHTWELL, 2016, p. 493).

No caso desta pesquisa, chama atenção a etapa em que as mães deixam os filhos no

Haiti e esperam pelo resultado do trabalho para reunir a família no Brasil. Três alunas do curso,

provenientes do Haiti, que eram mães antes de partirem para o Brasil, deixaram seus filhos aos

cuidados de parentes em seu país. Claitaine, por exemplo, deslocou-se três anos após seu marido

fixar residência no Brasil. Ela espera, ainda hoje, condições financeiras para trazer seus dois

filhos. Em uma de nossas conversas, ela fala sobre a importância de falar com eles todos os

dias, corroborando o que descrevem Mejía e Cazarotto (2017) sobre o uso das tecnologias para

a manutenção dos vínculos transnacionais.

A imigração venezuelana para o Brasil guarda semelhanças, mas tem suas

especificidades em relação à haitiana. Segundo o relatório da United Nations High Comissioner

84

for Refugees (UNHCR) (2020), dos 79,5 milhões de deslocados forçados no mundo em 2019,

4,5 milhões eram venezuelanos e venezuelanas. Dentre os quais, 93.300 eram refugiados,

794.500 fizeram pedidos de asilo e 3,6 milhões eram emigrantes. No Brasil, em 2019, houve

82.520 solicitações de refúgio de venezuelanas, 65,1% do total de pedidos, frente a 20,1% de

solicitações de haitianos21.

Deslocamentos forçados são os considerados “resultado de perseguição, conflitos,

violência, violação de direitos humanos ou eventos que perturbam seriamente a ordem pública”

(ACNUR, 2020). No caso da Venezuela, entre os motivadores para emigração destacam-se: a

crise econômica (51%), a crise política (25,4%) e a busca por trabalho (12,3%) (SIMÕES, 2017,

p. 25). A fome, consequência da insegurança alimentar na Venezuela, destaca-se como o

principal motivo para o deslocamento entre os indígenas Warao.

Desde 2015, quando um contingente expressivo de venezuelanos se deslocou do seu

país de origem, os destinos procurados, além dos tradicionais Estados Unidos e Espanha, foram

a América Latina e o Caribe (SIMÕES, 2017). Também o Brasil, nos últimos anos, tornou-se

um dos destinos por eles escolhido. A entrada de imigrantes venezuelanos em território

brasileiro aumentou de forma expressiva entre 2015 e 2017. Em 2015, foram registradas 829

solicitações de refúgio, passando para 3.368 em 2016 e 7.600 em 2017 (SIMÕES, 2017). Em

2020, esse número caiu para 202. Segundo dados da ACNUR em parceria com o Banco

Mundial, entre julho de 2017 e outubro de 2020, mais de 260.000 venezuelanos deslocaram-se

para o Brasil (SHAMSUDDIN et al, 2021).

Na pesquisa de Simões (2017), em que foram realizadas 650 entrevistas no município

de Boa Vista, em Roraima, principal porta de entrada desses imigrantes no Brasil, o

deslocamento de venezuelanos se caracterizou como terrestre (eles/elas não vêm de avião) e

laboral (com faixa etária entre 20 e 39 anos), segundo a tabela abaixo:

21 Segundo dados do site oficial da ACNUR: Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-

refugio/dados-sobre-refugio-no-brasil/ Acesso em: 04/06/2021.

85

Tabela 3 – Distribuição relativa , segundo idade, por sexo, dos imigrantes venezuelanos

ingressantes em Boa Vista, RO, em 2017.

Fonte: Simões (2017, p. 23).

Apesar de apresentarem alta escolaridade, 50,4% desses imigrantes ganham menos

que um salário mínimo e apenas 4,8% deles indicaram receber mais de dois salários. Quando

questionados se haviam sofrido alguma hostilidade na inserção social como um todo, relataram

sofrer práticas discriminatórias no trabalho. Do total de respondentes, 34,5% dos homens e

30,5% das mulheres relataram ter sofrido hostilidades relacionadas à nacionalidade, enquanto

2,5% dos homens e 4,5% das mulheres que relataram ter sofrido outros tipos de hostilidades.

Com relação ao conhecimento linguístico, constavam no questionário duas perguntas,

uma das quais em torno do conhecimento individual – “Idiomas que domina além do espanhol”

–, com as seguintes alternativas: “1. Português 2. Inglês. 3. Francês, 4. Nenhum 5. Outro”; e a

outra com relação ao idioma local – “Você acha que o idioma local dificulta a inserção e o

crescimento laboral?” –, oferecendo como alternativas: “1. Sim; 2. Não; 3. Não sabe”

(SIMÕES, 2017, p. 86-87). A língua portuguesa é tomada como o idioma local e seu domínio

é associado ao mercado de trabalho. Não foram feitos questionamentos em torno da importância

do idioma local ou de outros idiomas para a socialização em outras esferas que não a laboral.

Na interpretação dos dados do questionário, o relatório conclui: “mais da metade

(52,9% do total) relatou dificuldades e entende que o idioma dificulta sua inserção laboral,

contra 43% que disseram não ver problemas entre o idioma e sua inserção no mercado de

trabalho” (SIMÕES, 2017, p. 34). Entre os entrevistados, 15,5% disseram participar de cursos

de língua portuguesa, 22,7% afirmam dominar o português e muitos expressam o desejo de

aprender a língua. Sobre a demanda e a oferta de cursos, o relatório pontua:

Há a necessidade também de maior investimento em aulas de português com

professores capacitados e remunerados, tendo em vista o baixo percentual de

indivíduos que dominam o idioma e o alto grau de interessados em aulas. Os

cursos ministrados por voluntários estão com a lotação esgotada, os

professores não possuem conhecimento profissional de português e são, em

86

sua maioria, inexperientes em relação à docência. Há a necessidade de

profissionalizar os serviços e cabe registrar o esforço feito pelos voluntários

até o momento (SIMÕES, 2017, p. 16).

No excerto acima, fica registrada a ausência do Estado e de políticas públicas eficazes

em relação às necessidades apresentadas pelos imigrantes, que, em sua maioria, sentem

necessidade de maiores conhecimentos em relação ao idioma majoritário – a língua portuguesa.

Nas palavras de Simões (2017, p. 47), “uma pequena parcela fala o português, o que demandará

políticas de ensino do idioma, de modo a proporcionar uma mais rápida integração à sociedade

brasileira, apesar da falta do domínio muitos alegaram não estudar”. O desejo dos Warao de

aprender a língua portuguesa para a inserção laboral também é levantado (SIMÕES, 2017,

p. 15).

Entre os que trabalham, aproximadamente 40% dizem já ter sofrido alguma

discriminação por ser estrangeiro. Assim como os haitianos, mais da metade dos imigrantes

venezuelanos relatou enviar remessas para o país de origem (pais, cônjuge, filhos ou irmãos).

Sobre a situação atual de mulheres venezuelanas, Prada (2018) ressalta que a

desigualdade de gênero na Venezuela é uma realidade, pois, a despeito das lutas por

reconhecimento, apenas no século passado elas conquistaram direito ao voto e seguem existindo

estereótipos que desvalorizam e subordinam a mulher. Prada menciona uma série de políticas

e ministérios criados nos últimos anos direcionados à atenção às mulheres venezuelanas,

inclusive com medidas que visam a impedir a veiculação de mensagens sexistas nas cadeias de

rádio e televisão (PRADA, 2018, p. 314). Apesar disso, a autora denuncia que essas medidas

não têm tido impacto na realidade, considerando o aumento das taxas de feminicídio, a maioria

em âmbito doméstico ou provocadas pelo cônjuge ou parceiro. Conforme a autora destaca,

importa ressaltar a condição laboral dessas mulheres:

Muchas se ven obligadas a ejercer labores de cuidados doméstico y otros

empleos informales, mal remunerados y sin protección de ley […] los hombres

ganan aproximadamente un 19% más que las mujeres en América Latina y el

55% de los empleos que encuentran las mujeres está en la economía informal

(PRADA, 2018, p. 315).

A situação das mulheres indígenas venezuelanas é ainda mais precária. Além da

devastação da natureza, causada pela extração de minérios na região, as mulheres e crianças

indígenas são objetificadas em um comércio que as explora sexualmente como moeda de troca,

remontando às violências coloniais infligidas ao corpo das mulheres indígenas (PRADA, 2018).

87

Como aponta a autora, faltam legislações específicas que garantam a essas mulheres seus

direitos de proteção e atenção (PRADA, 2018, p. 319).

Em Roraima, a presença de mulheres indígenas Warao com filhos no colo chama

atenção na paisagem urbana:

Mesmo não representando a maioria da população venezuelana em

deslocamento, afinal, estima-se que por volta de 700 a 800 Warao estejam no

Estado de Roraima, a visibilidade deles nas vias públicas da cidade, muitas

vezes, com mulheres carregando seus filhos pequenos no colo, sob o sol do

meio-dia, acarretou um maior impacto entre os tomadores de decisão do

governo local sobre a necessidade de se destinar um local para abrigar essa

população (SIMÕES, 2018, p. 52).

O Estado de Roraima, em conjunto com a ACNUR, providenciou um abrigo para os

indígenas Warao, no quais se fornecem alimentos e outros serviços, dentre os quais, cursos de

língua portuguesa. Segundo a pesquisa de Simões (2018), feita de modo qualitativo (sem

questionários e com a presença das lideranças), os Warao consideraram que têm uma vida

melhor no Brasil.

Como apresentado, ainda que brevemente, a imigração de mulheres haitianas e

venezuelanas para o Brasil tem sido marcada por desafios, que se somam às demandas locais

já precarizadas no atendimento aos cidadãos nacionais.

Há ainda escassas pesquisas em torno da imigração de mulheres búlgaras para o Brasil.

A Bulgária passou a fazer parte da União Europeia em 2007 e é apontada como um dos países

que melhor atendeu, com nota 90.6, aos oito indicadores para a igualdade de gênero no mercado

de trabalho (WORLD BANK, 2020). Dentre os indicadores do documento, as reformas mais

significativas no mundo têm estado no indicador parentalidade, que diz respeito às licenças

parentais e à proibição de demissão de gestantes. As licenças parentais são concedidas à mãe

ou ao pai após a licença-maternidade ou paternidade, visando a assegurar os direitos trabalhistas

e a promover menor desigualdade nos cuidados com os filhos. Segundo Melo (2019):

No Brasil, a legislação ainda não prevê a concessão de licença parental, mas,

em muitos lugares do mundo, se fortalece a consciência de que o fato de as

responsabilidades familiares recaírem principalmente – e muitas vezes

exclusivamente – sobre a mulher é uma fonte de dificuldades e de

discriminação para sua inserção e manutenção no mercado de trabalho.

Reconhecer o direito e os deveres dos pais em relação à criança e a

necessidade do compartilhamento da responsabilidade de todos na vida

familiar, independentemente do gênero, não apenas gera uma melhoria das

condições das mulheres no mercado de trabalho, mas o enraizamento de uma

88

nova mentalidade social, no sentido da igualdade entre homens e mulheres

(MELO, 2019, p. 13).

Essa igualdade se reflete nos avanços econômicos, como apontam dados do Banco

Mundial, que tem metas para a redução dessa diferença (WORLD BANK, 2020). Os avanços

no indicador de parentalidade, segundo o Banco Mundial, não ocorreram nos países da América

Latina e da região do Caribe. Em relação aos outros indicadores, a parentalidade ainda é o que

menos evoluiu nos últimos cinco anos de reformas.

A Bulgária tem nota 100 (máxima) no indicador parentalidade, a Venezuela e o Brasil

têm nota 80 e o Haiti, nota 20 nesse quesito. Dentre os países de economia desenvolvida, a

Bulgária é um dos que mais benefícios oferece às mães trabalhadoras, que têm direito a 227

dias (32 semanas) de licença-maternidade, remunerados a 90%, 15 dias de licença-paternidade,

remunerados a 100%, e licença parental de 26 semanas (128 dias) para a mãe ou para o pai com

90% de remuneração, oferecida pela Seguridade Social (MELO, 2019, p. 18). Na América

Latina, apenas Cuba e Chile oferecem a licença parental (MELO, 2019).

A emigração da Bulgária é equilibrada entre os sexos. Dos búlgaros que emigraram

em 2019, 19.089 eram homens e 18.840, mulheres. No Brasil, entre 2011 e 2015, houve apenas

15 autorizações de residência concedidas a búlgaros, frente a 51.124 autorizações de residência

e trabalho concedidas para haitianos e 48 para venezuelanos. Portanto, o fluxo de imigração

búlgara para o Brasil não é considerado expressivo.

As questões relacionadas à compulsoriedade do trabalho para as mulheres haitianas e

venezuelanas ganham contornos evidentes no deslocamento para o Brasil, onde se veem

obrigadas a trabalhar para compor a renda familiar. No caso da participante proveniente da

Bulgária, a possibilidade de esperar dois anos para voltar a trabalhar – a idade em que as filhas

vão para a escola – reflete uma estrutura legal do país de origem que se mantém no planejamento

no Brasil. Isso traz à tona uma relação importante entre o contexto de origem e as perspectivas

no país de imigração.

O contraste entre as experiências das alunas provenientes da América-Latina, para as

quais a urgência das demandas laborais é evidente, e o significado que o trabalho tem para a

aluna da Bulgária leva-nos a questionar a aplicabilidade do conceito de acolhimento, na acepção

de uma urgência da língua para inserção laboral no contexto do curso de português. A

especificidade das buscas que se apresentam a partir dos enunciados coconstruídos no campo

de pesquisa dá margem a reflexões sobre o que pode ser considerado como acolhimento, neste

89

contexto específico em que mulheres-mães-imigrantes de diferentes lugares do mundo

procuram o curso de português.

As características diferenciadas dos três fluxos migratórios aqui discutidos encontram

na sociedade receptora dificuldades não menos singulares. O histórico de hospitalidade do

Brasil e do brasileiro, bastante divulgado globalmente (especialmente no início da imigração

haitiana), tem-se revelado um fenômeno seletivo, uma vez que alguns grupos encontram mais

receptividade que outros.

Na seção seguinte, passo a analisar algumas etapas de construção dessa narrativa de

(falta de) acolhimento, em relação à alteridade, relacionando-as com dados que remetem ao

oposto da imagem celebratória da diversidade.

3.3 IMIGRANTES NO BRASIL: TRAÇOS DE UMA HOSPITALIDADE

SELETIVA

A população brasileira formou-se essencialmente a partir dos habitantes autóctones

indígenas e de sucessivas levas imigratórias, que foram casuais (portugueses, a partir do século

XVI), forçadas (africanos, entre os séculos XVI e XIX), ou incentivadas (europeus de vários

países, nos séculos XIX e XX). Ao final do séc. XIX, Machado de Assis atestava uma

incoerência na representação literária brasileira incipiente: os povos denominados indígenas,

apesar de fortemente dizimados, figuravam como protagonistas na literatura brasileira

incipiente. Machado estranhava este “instinto de nacionalidade”, em que a “cor local” era

desproporcionalmente elevada como tema de poesia (ASSIS, 1994 [1873]). Ou seja, a imagem

local construía-se contraditoriamente à realidade de silenciamento desses povos e línguas.

Produzida segundo valores ideológicos europeus, essa imagem ajudou a compor o imaginário

brasileiro em torno de uma cruz que abençoa e registra línguas, povos e saberes em português.

Os cadáveres celebrados a compor o quadro representativo da imagem nacional não

seriam a única contradição na produção artística brasileira. A mestiçagem, ora enaltecida, ora

vista como sinal de degenerescência, também aparece como elemento central a compor o

imaginário sobre povo brasileiro. O discurso da celebração da mestiçagem, da democracia

racial, inventada como sinônimo de hospitalidade do povo, apagava todas as violências,

estupros e assujeitamentos acometidos em nome dessa hibridez pretensamente harmônica.

A intelectualidade brasileira, no final do século XIX e início do século XX, interpretou

a diversidade racial como um problema. A despeito das controvérsias em torno das vantagens

da mestiçagem, que circundavam discursos oriundos das teorias raciais no século XIX e na

90

primeira metade do século XX, a imagem do Brasil é consolidada como a de uma democracia

racial rumo a um futuro branco (SCHWARCZ, 2018). Aplicando-as ao seu contexto e

projetando um futuro possível para aquele povo nascente, a mistura de raças foi compreendida

por intelectuais da época de forma ambivalente, ora como signo de degenerescência, ora como

esperança de que a mestiçagem sucessiva levaria a um gradual branqueamento do povo local

(MUNANGA, 2019). Nos dois casos, o projeto de apagamento da presença negra é evidente.

Começa a ser gestada, paralelamente ao processo de abolição da escravatura, a

substituição da mão de obra africana escravizada pela de imigrantes europeus, em busca de um

branqueamento da população brasileira, como possibilidade de uma “melhoria racial” do povo

brasileiro (SEYFERTH, 1986; 1996; 1995; SCHWARCZ, 2012). Na década de 1930, o Brasil

ainda seguia em busca de uma identidade nacional. No concurso de quem teria a melhor

definição para tanto, ganhou a miscigenação como característica identitária do povo brasileiro,

conforme proposto por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (1933). Essa obra

consolidou a ideia da miscigenação das três raças como elemento formador tanto da população

quanto da mentalidade brasileira. Freyre nega que a mistura tenha provocado degenerescência

racial do brasileiro e propõe a miscigenação como fator positivo na formação cultural do País.

Com a miscigenação assim positivada, abre-se a possibilidade de criação de uma

narrativa sobre a identidade brasileira centrada na harmonia entre as três raças (branca, negra e

indígena). Foi este o modelo idealizado de uma democracia racial como identidade brasileira

que vigorou (SCHWARCZ, 2012). É importante ressaltar que só então o elemento negro entra

como composto da matriz formadora brasileira. Invisibilizado nas narrativas brasileiras, o

africano e seus descendentes foram preteridos ao indígena, o elemento nativo, na imaginação

da sociedade brasileira que se construía no século XIX (SCHWARCZ, 2012).

Seyferth (1995) observa que, também como influência da estratégia do

branqueamento, o conceito de pertinência racial ou étnica como índice de moralidade afetou

fortemente o planejamento migratório no Brasil. Os alemães, por exemplo, inicialmente

almejados para a imigração pelo presumido prazer do trabalho, posteriormente foram

preteridos, uma vez que seu senso de nacionalidade e forte identificação étnica não favorecia o

cruzamento com outras etnias. Ao contrário dos portugueses, espanhóis e italianos, os alemães

não se mostravam abertos à miscigenação. Esse grau de fechamento não era adequado ao plano

de branqueamento que se desenhava. Com base na ideia de pureza racial, criou-se um projeto

de nação que previa o branqueamento da população. No século XIX, é o sul do Brasil o local

91

visado para o projeto de branqueamento do país, que previa a supressão dos negros e índios da

população. Quanto aos indígenas, como observa Arend (2001, p. 39):

Na década de 70 [do séc XIX], os bugreiros, conhecidos também como

caçadores de índios ou tropas, entram em cena. Os imigrantes e o governo

provincial optavam pelo uso, de forma sistemática, da violência física e

simbólica contra os ‘bugres’. As fontes não informam com exatidão o número

de silvícolas que foram mortos ou transferidos para a ‘civilização’ ao longo

do século XIX, mas sabe-se que não foram poucos (AREND, 2001, p. 39).

Podemos dizer que a hospitalidade brasileira é seletiva e interessada. Com relação à

presença africana no Brasil, o discurso da colonialidade (CESAIRE, 2006), junto às teorias

raciais (SCHWARCZ, 2018), ajudou na construção dos corpos negros e mestiços como

inadequados ao projeto nascente de identidade nacional. Essas ideologias fizeram-se sentir

juridicamente na proibição das expressões culturais de resistência (a capoeira, por exemplo, foi

criminalizada como vadiagem) e no cerceamento de corpos negros e mestiços dos espaços de

cidadania (a escola, por exemplo, proibia a participação de escravizados) (RIBEIRO, 2019).

A exclusão das práticas sociais de africanos e seus descendentes do espaço “nacional”

não se deu sem a participação ativa da produção intelectual e acadêmica brasileiras. No âmbito

linguístico, como discute Eltermann (2018, p. 22), parte da intelectualidade brasileira “têm

contribuído para a construção de narrativas excludentes e segregadoras sobre as heranças

linguísticas africanas no contexto brasileiro”.

No caso da imigração europeia para o Brasil, fortes interesses econômicos estavam

envolvidos, considerando que a abolição da escravatura levou à necessidade de obter mão de

obra alternativa para a agricultura. Essa configuração de interesses, produziu efeitos

diferenciados no tratamento dado a esses imigrantes.

Um desses efeitos foi a inserção desses grupos de imigrantes em colônias destinadas a

eles, o que contrastava com as políticas de marginalização dos ex-escravizados no período pós-

abolição. Um dos reflexos jurídicos que legitimava esse tratamento como um projeto foi a

mudança legislativa em 1850 sobre a cessão de terras, no mesmo ano em que se assinava a Lei

Eusébio de Queirós, que previa o fim do tráfico negreiro, sinalizando a abolição da escravatura.

Passou-se a obrigar o pagamento de altas quantias pela ocupação de terras devolutas. Assim, a

denominada “Lei de Terras” impossibilitou aos ex-escravizados a aquisição de um lugar próprio

para morar. Segundo Ribeiro (2019, p. 109), “a lei transformou a terra em mercadoria, ao

92

mesmo tempo que facilitou o acesso a antigos latifundiários – embora os imigrantes europeus

tenham recebido concessões, como a criação de colônias”.

Ao longo da história do Brasil, algumas levas de imigrantes têm sido discursivizadas

como bem-vindas enquanto outras são malquistas. O tom racista e interesseiro dos discursos

midiáticos em torno da presença estrangeira no país tem permeado o tratamento dado aos

diferentes grupos que, encerrados em suas nacionalidades, ganham destaque à medida em que

são vistos como úteis ao “progresso nacional”, do ponto de vista das elites empresariais. Na

mídia, imigrantes vindos do Norte Global são frequentemente discursivizados pela mídia como

“cérebros” (CAMPOS, 2015), enquanto os do Sul Global são apresentados como fugitivos,

invasores ou ameaças ao mercado laboral (como já mencionado no capítulo 1). Essa tendência

é evidenciada na pesquisa de Campos (2015), que analisou 200 matérias jornalísticas, em

11.000 edições de periódicos nacionais datados entre 1808 e 2015. Em busca do papel do

imigrante como sujeito social para a imprensa ao longo de nossa História, o pesquisador

conclui:

Racista, autoritária e guiada por profundos interesses econômicos, grande

parte da elite brasileira fez da imprensa um de seus principais instrumentos

para a realização de seu projeto nacional, de caráter fortemente

assimilacionista e seletivamente xenófobo. Os imigrantes não são seres

humanos, mas braços. Não migram, são importados. Devem ser parte de uma

multidão trabalhadora, mas nunca os perturbadores da ordem. Devem ser

morigerados e industriosos mas, se reivindicam direitos são classificados

como agitadores e anarquistas. Devem ser assimiláveis, sob o risco de suas

comunidades se tornarem indesejáveis quistos étnicos. O imigrante é um bode

expiatório muito bem-vindo no Brasil, principalmente se age sobre ele, ainda

mais além, o corte de classe (CAMPOS, 2015, p. 533).

Na última década (2010-2020), quando o mundo testemunha uma aceleração dos

fluxos migratórios e uma inversão no eixo de procura do Norte Global para o Sul Global, o

Brasil, que costumava receber bem os imigrantes do Norte global, tem apresentado uma

hospitalidade seletiva quanto aos que vêm do Sul (VILLEN, 2016). A despeito das imagens de

receptividade, a realidade na recepção de imigrantes do Sul global acumula relatos de

preconceito e discriminação. A imagem de um país hospitaleiro e racialmente democrático, em

que todas as etnias e expressões culturais convivem harmoniosamente, é posta, definitivamente,

em xeque frente aos novos fluxos migratórios.

Em suma, um conjunto complexo de imagens, refletidas em leis, produções

intelectuais, acadêmicas e midiáticas embasadas no discurso colonial (CESAIRE, 2010) e racial

93

(SCHWARCZ, 2018, 2019) têm impactado de diferentes modos a inserção dos imigrantes do

Sul Global na sociedade brasileira. Os efeitos dessas ideologias na inserção social podem ser

vistos nas narrativas de deslocamento de sujeitos do Sul-Global, como é o caso da imigração

haitiana e venezuelana em estudos recentes de observatórios de migração brasileiros (cf.

TORELLY, 2017; SIMÕES, 2017; CAVALCANTI et al., 2018; CAVALCANTI; OLIVEIRA;

MACEDO, 2019).

A região Sul do Brasil, um dos locais escolhidos para concentrar os imigrantes

europeus nesse imenso laboratório de raças que é o Brasil (SCHWARCZ, 2018),

coincidentemente, também é a região mais procurada pelos imigrantes dos novos fluxos, só

perdendo em números para o estado de São Paulo. Pelo enfoque desta pesquisa na região de

Santa Catarina, passo, na próxima subseção, a pontuar algumas das características históricas e

recentes da imigração nesse estado.

3.3.1 Imigração em Santa Catarina: A celebração de uma identidade branca e

europeia e a invisibilização dos “outros”

Ao discutir a dimensão cultural da imigração, Seyferth (2011) aponta para o caráter de

invenção da cultura e da ancestralidade: “[...] povos não possuem apenas culturas ou

ancestralidade compartilhada, eles elaboram as duas coisas para compor uma ideia de

ancestralidade que cerca as definições de grupos ou comunidades (SEYFERTH, 2011, p. 50,

ênfase no original).

Nas narrativas produzidas sobre a região Sul, a ideia de pertencimento a uma

comunidade europeia é celebrada e privilegiada (MACEDO, 2019; LEITE, 1991a; 1991b;

CARDOSO, 2006), silenciando outros povos, culturas, línguas e epistemologias que também

compõem a região (GUEROLA, 2012; 2017). Marcada historicamente pela imigração europeia

no projeto de embranquecimento da nação apoiado pelo governo brasileiro (SEYFERTH,

2011), a região Sul do Brasil tem visto sua paisagem linguística modificar-se com os novos

deslocamentos (MACEDO, 2019).

Seyferth (2011) também enfatiza o papel da língua no fortalecimento dessas

identidades em Santa Catarina, em um estudo sobre a construção da “germanidade” na região

do Vale do Itajaí (SEYFERTH, 2011). Essa invenção de uma tradição é vivida como uma

identidade diferenciada na região que se materializa na arquitetura das casas e construções. As

várias festas da região celebram as comidas e os trajes típicos dos grupos europeus e suas

tradições, amplamente divulgados pela mídia marcam a região como uma “Europa brasileira”.

94

Imaginada como um pedaço da Europa, Santa Catarina protagoniza narrativas

históricas que a identificam como o local em que o projeto de branqueamento teria dado certo

(LEITE, 1991b). Essa imaginação de uma comunidade europeia no Brasil não se deu sem o

apagamento de outros grupos étnicos que a compõem, como os afrodescendentes e os indígenas.

Revisões críticas da história oficial de Santa Catarina têm pontuado a invisibilidade de

africanos e de afrodescendentes no processo de ocupação e desenvolvimento do Estado (LEITE,

1991a; 1991b; CARDOSO, 2006). Os autores apontam que, a despeito da presença em setores

como a agricultura, a pesca da baleia, os serviços domésticos e outros, a dependência do branco

em relação ao africano e de seus descendentes, bem como presença destes, é minimizada frente

à menor importância que teriam tido na economia da região, em comparação com outros lugares

do País (LEITE, 1991a; 1991b; CARDOSO, 2006).

Leite (1991a) afirma que o desenvolvimento catarinense é frequentemente apontado

como uma conquista exclusivamente branca. Entretanto, dados históricos mostram que não é

esse o caso. Segundo registros do Arquivo Histórico de Santa Catarina, a população na

província de Santa Catarina, em 1833, era assim composta: 1.124 brancos, 97 índios, 564

pardos, 422 pretos, totalizando 2.207 sujeitos livres. Os escravos somavam 260 sujeitos, dentre

os quais 78 pardos e 182 negros (MACHADO, 201, p. 18). Essa população se multiplicaria no

século XIX “tanto por crescimento vegetativo como, principalmente, por receber um grande

número de imigrantes de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Sul, alcançando a Província

no final do século o total de 80 mil habitantes” (MACHADO, 2001, p. 18).

Dados relativos à população escravizada em Lages apontam para a presença de 1.000

sujeitos escravizados em 1840, 1.195 em 1856, 2.012 em 1872 e 1.522 em 1883. Partindo do

pressuposto que a quantidade de negros livres tenha se mantido sempre maior que a de negros

escravos, esse quadro leva o autor a “(...) reavaliar a antiga afirmação dominante na

historiografia catarinense, que sempre considerou o contingente populacional negro pouco

significativo no planalto serrano, baseando essa assertiva unicamente nos censos estritos da

população escrava” (MACHADO, 2001, p. 18).

No contexto histórico-social da Santa Catarina do século XIX, Machado toma a

palavra “livre” como força de expressão, pois a liberdade do trabalhador livre ou liberto não

era senão um eufemismo:

(...) empregamos a palavra livre apenas em contraposição à condição escrava,

uma vez que este homem livre pobre, mestiço, descendente de africanos,

indígenas e mesmo de portugueses, enfim o biriva (tipo de gaúcho serrano), o

95

peão de estância e o morador agregado à grande fazenda encontrava-se

submetido ao poder absoluto dos grandes fazendeiros, enredados por laços de

compadrio22, sujeito a um conjunto de obrigações muito mais complexas que

o trabalhador livre moderno, entendido como aquele que simplesmente vende

a sua força de trabalho (MACHADO, 2001, p. 19)

No tocante às relações interétnicas no contexto do Estado, a depreciação do Outro era

uma narrativa constante. Arend (2001) afirma que uma das estratégias das elites brasileiras para

estimular a vinda de europeus era a “veiculação de um discurso de valorização do imigrante”.

Segundo a autora:

Nesse discurso, os estrangeiros europeus são descritos como laboriosos e

disciplinados, enquanto os afrodescendentes e descendentes de portugueses,

que viviam no Brasil desde o período colonial, são considerados preguiçosos

e sem iniciativa (AREND, 2001, p. 34).

O foco na economia também apaga essa presença, elevando o trabalho do imigrante.

Além de escamotear as diferenças na condição de produção e no direito à terra entre os

afrodescendentes e os europeus, alimentava-se um ideário do branco como moralmente mais

elevado para o trabalho, muitas vezes deixando de pontuar que, enquanto brancos trabalhavam

para si próprios e suas gerações vindouras, afrodescendentes o faziam para o enriquecimento

do outro, mesmo após a dita liberdade. Arend (2001) pontua algumas dessas questões na

seguinte passagem:

As terras da província consideradas devolutas pelo governo imperial e local

tornaram-se propriedade privada e os imigrantes passaram a produzir

mercadorias para o mercado interno regional e, depois, para o nacional. Este

olhar, que centra o foco no econômico deixando de lado as outras dimensões

do social, esteve presente por longa data na historiografia catarinense que

versa sobre o século XIX. Esta visão transforma o imigrante, e em especial o

alemão, no desbravador-empreendedor. Os demais grupos – os

afrodescendentes, os silvícolas, os descendentes de portugueses, e inclusive

os imigrantes alemães que chegaram na província antes de 1950 – que, no

período, não construíram mundos semelhantes são percebidos como

personagens coadjuvantes ou então invisibilizados (AREND, 2001, p. 36,

ênfase minha).

22 O estudo de Ramos (2019) demonstra o paternalismo e a afetividade como estratégia retórica nas expressões “é

de casa” ou “como se fosse da família”, dirigida pelos empregadores aos empregados domésticos no Brasil, em

geral negros, invisibilizando questões de opressão e explorações a que são submetidos/as. A autora salienta, ainda,

o quanto a legislação brasileira legitima essas relações hierárquicas que afetam mais contundentemente as

mulheres negras e pobres, naturalizadas em funções subalternizadas (CARNEIRO, 2019).

96

Silva (2001) aponta processos de apagamento, diferenciação e depreciação do negro

no convívio com o imigrante europeu, apesar do abolicionismo presente como discurso na

cidade de Joinville, afirmando que “se da história dos índios o que prevalece é o silêncio, não

muito difere a presença africana na história da cidade” (SILVA, 2001, p. 56). Em pesquisa com

base na memória de locais, a autora pontua que:

os africanos e africanas quase não aparecem nos relatos sobre Joinville, as

falas são poucas, o que, infelizmente, os torna tão ausentes da historiografia

local. Nas memórias, a presença negra aparece, muitas vezes, marcada por

uma relação harmoniosa [...] todavia, outras falas apontam para a separação

dos alemães em relação aos africanos [...] Aliás, o preconceito estava presente,

ao que tudo indica, sendo escravo ou liberto, pois os negros e negras não eram

bem vistos naquela sociedade [...] apesar de a imprensa ratificar o quanto à

cidade repugnava a escravidão, isso não significava que os negros eram vistos

como ‘iguais’ (SILVA, 2001, p. 57, ênfase minha)

Em suma, o quadro de uma profunda diferenciação nas relações sociais parece ser uma

constante nesses estudos que pontuam fortemente o apagamento na memória, nos registros

oficiais e historiográficos, silêncio que ajuda a compor o imaginário sobre o período. É possível

dizer de um desejo de invisibilidade do elemento negro, indiciado pela falta de tratamento

humano na convivência diária, nos locais de trabalho destinados a esses sujeitos. Mesmo depois

de libertos, os negros seguiam em situações precarizadas. Da mesma forma, invisibilizam-se

suas perspectivas sobre as condições, lutas e resistências que protagonizaram.

Santa Catarina imagina-se e é imaginada como um mito dentro de outro: dentro de

uma pretensa democracia racial (MUNANGA, 2018). O modelo de composição

exclusivamente branca da “Europa brasileira” atesta a falácia do projeto de branqueamento do

país. O resumo dessas relações numa configuração fiel aos fatos seria o seguinte: nem

exclusivamente brancos, nem completamente cordiais.

Essa imaginação de uma comunidade exclusivamente branca e europeia instaura uma

linha divisória entre pertencentes e não pertencentes a ela, com base na nacionalidade,

regionalidade, cor da pele. A cor da pele, segundo Seyferth (1986) é uma das metáforas da

hereditariedade, que tem servido, no Brasil, para configurar o pertencimento racial. Frente aos

novos fluxos migratórios, essas diferenças, que encerram grupos em categorias como raça, são

tratadas de modo seletivo para a composição da diversidade étnica da região. Como discute

Macedo (2019, p. 2),

97

[...] a categoria raça corresponde a uma construção social, política, simbólica,

cultural e mesmo econômica que, geralmente ancorada em argumentos pseudo

biológicos ou culturais, opera com muita força tanto no Brasil quanto em

outros países, e que se revela um importante elemento de seletividade,

exclusão, mobilização e identificação nas migrações de haitianos e

senegaleses em Florianópolis e região (MACEDO, 2019, p. 2, grifo da

autora).

A Ilha de Santa Catarina, que abriga a capital do estado, cognominada “Ilha da Magia”

nos materiais de divulgação turística, guarda suas próprias especificidades. Tendo sido

Florianópolis a cidade na qual o curso de português para mães imigrantes foi oferecido, importa

detalhar esse cenário, o que passo a fazer na subseção seguinte.

3.3.2 Imigração em Florianópolis: os imigrantes locais e os haules

Na Ilha de Santa Catarina, os açorianos foram os primeiros imigrantes a povoarem as

freguesias, bairros hoje considerados tradicionais, em que atividades como a pesca, o artesanato

e a renda de bilro eram características (SIQUEIRA, 2016, p. 44). No que tange aos efeitos da

presença de não-locais no imaginário dos moradores locais em Florianópolis, estudos revelam

que, em Florianópolis, parece haver um fortalecimento de identidades locais como resposta à

modernização (SEVERO; NUNES DE SOUZA, 2015; SIQUEIRA, 2016).

Com a intensa migração de pessoas de outras regiões para a ilha, concomitante a

projetos de modernização da capital e a ameaça ao modo de vida tradicional ilhéu, os não-locais

têm sido vistos pelos locais como agentes dessas modificações danosas à paisagem e ao modo

de vida naturais da ilha. Um exemplo é o comércio de ostras, explorado turisticamente em

pratos de restaurantes sofisticados no Ribeirão da Ilha, uma das freguesias tradicionais. A

introdução de técnicas sofisticadas no cultivo de ostras acabou por descaracterizar a produção

artesanal e afugentar nativos, que se viram obrigados a se deslocar de seus bairros e modos de

vida por consequência da mercantilização do mar (SIQUEIRA, 2016). Uma vez que os projetos

de modernização são, em geral, protagonizados por elites locais e os movimentos de

preservação ambiental de regiões nativas são, muitas vezes, fomentados por não-locais

(SIQUEIRA, 2016), são frequentes as tensões entre locais e não-locais.

Discursivamente, a fala do manezinho é um elemento bastante peculiar, “parte

fundamental da identidade da população da Ilha de Santa Catarina” (SIQUEIRA, 2016, p. 45).

Estudos sobre identidade e linguagem na Sociolinguística reforçam essa importância

(SEVERO; NUNES DE SOUSA, 2015). Segundo apontam Severo e Nunes de Souza (2015), o

98

manezês, o falar do florianopolitano, teria sofrido modificações em sua valoração como traço

de identidade. Anteriormente associado pejorativamente à baixa escolaridade, o manezês

passou a ser um motivo de orgulho próprio. Figurando como temática de diferentes expressões

artísticas e culturais da ilha, do stand-up comedy aos folguedos tradicionais, como a festa do

boi-de-mamão, o falar ilhéu também tem sido explorado como um bem de consumo, na lógica

do capital (SEVERO; NUNES DE SOUZA, 2015; SIQUEIRA, 2016). Na consideração do

outro, o que antes era uma imagem negativa de si, foi tornado um fator positivo, por diferentes

motivos, entre os quais estabelecer um posicionamento territorial, uma distinção entre local x

não-local também por meio da linguagem.

Vale lembrar, no entanto, que a objetificação de identidades étnicas e linguísticas não

deve ser considerada a despeito dos significados que os integrantes desses grupos dão a essa

reificação. O tornar cômico um falar pode ser considerado um modo de depreciar grupos étnicos

e linguísticos pelo uso caricato de sua identidade étnica e linguística para fins comerciais ou de

entretenimento (GARCEZ, 2016). Portanto, importa considerar que os elementos de construção

da narrativa cultural de Florianópolis, como o manezinho, o manezês, e a Ilha da Magia, operam

como ficções identitárias, nem sempre corroboradas e celebradas pelos habitantes locais.

Na paisagem linguística, também há um posicionamento sobre “os outros”. Nas praias

da ilha não é raro ver pichações com mensagens como: “Fora haule”, demonstrando o incômodo

que trazem os não-locais (SIQUEIRA, 2016, p. 46, ênfase no original). Haule, adaptação do

termo havaiano haole (homem branco, estrangeiro), é como ilhéus denominam as pessoas que

vêm de fora. De São Paulo, Rio Grande do Sul, Argentina, Uruguai e Paraguai, provém grande

parte do contingente migratório de Florianópolis, que utiliza a capital para veraneio ou como

lugar para morar. A estratégia de demarcação territorial é notável na forma como os turistas

gaúchos e argentinos são, muitas vezes, discursivizados na mídia local (e também nacional),

como “invasores” das praias da região no verão e em feriados23, evidenciando a tensão existente

23 As seguintes publicações referem-se a argentinos e gaúchos como invasores no corpo ou na manchete da

reportagem: (i) “Argentinos invadem as praias de Santa Catarina: em Florianópolis, eles preferem as praias do

norte da ilha. Quase 40% dos ‘hermanos’ que chegam no verão vão para esse estado”. G1. 24 de fev. 2009.

Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1015975-5598,00-

ARGENTINOS+INVADEM+AS+PRAIAS+DE+SANTA+CATARINA.html. Acesso em: 13 de nov. 2019; (ii)

“Litoral catarinense recebeu mais argentinos e gaúchos nesta temporada, diz pesquisa: argentinos representaram

quase um quarto dos visitantes durante a temporada”. NSC Total, 03 de abr. 2018. Disponível em:

https://www.nsctotal.com.br/noticias/litoral-catarinense-recebeu-mais-argentinos-e-gauchos-nesta-temporada-

diz-pesquisa Acesso em: 13 de nov. de 2019. Nessa reportagem, os turistas argentinos também são denominados

hermanos que “invadem o balneário em busca de águas mornas”. (iii) ESCANDIUZZI, F. “Após enchentes,

turistas argentinos invadem SC”. Terra, s/data Brasil. Disponível em:

https://www.terra.com.br/noticias/brasil/apos-enchentes-turistas-argentinos-invadem-

sc,2c0968f40d94b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html Acesso em: 13 de nov. 2019. (iv) “Porque há uma

invasão de turistas argentinos nas praias brasileiras?” As vozes do mundo, 16 de jan. de 2016. Brasil – América

99

entre os grupos de locais e de não-locais que compõem o cenário ilhéu24. Como Siqueira

destaca:

Não é raro encontrar muros pichados em Florianópolis com os dizeres “fora

haules” ou comentários, em reportagens e mídias sociais, sobre o fato de os

problemas da ilha serem resultado da vinda de levas de turistas e imigrantes

de outras cidades catarinenses, de outros estados brasileiros ou mesmo de

outros países, o que gerou inclusive a imagem popular e estereotipada de que

os moradores locais são xenófobos (SIQUEIRA, 2016, p. 46).

A xenofobia, seja como parte do discurso de grupos de extrema direita no poder ou

cenas pontuais de discriminação em grupos locais, foi apontada por algumas das alunas do curso

de Português como um dos obstáculos à sua inserção social em Florianópolis, questão sobre a

qual Silva, Rocha e D’Avila (2020), em investigação recente, ressaltam:

[...] os imigrantes e refugiados dos eixos sul-sul têm sido continuamente

invisibilizados nesta região. Ao desconsiderar essas presenças, as entidades

públicas enviam uma mensagem subliminar de que esses coletivos não são

bem-vindos e nem fazem parte da política florianopolitana, e ao mesmo tempo

se eximem da obrigação de formular políticas públicas estaduais e municipais

de acolhimento e integração. (SILVA; ROCHA; D’AVILA, 2020, p. 3).

A investigação de Silva, Rocha e D’Avila (2020) é oriunda do projeto de pesquisa

“Núcleo de Estudos Críticos de Raça e Gênero nas RI e no DIP” (NEGRIs), cujos dados foram

obtidos junto ao “Núcleo de Apoio a Imigrantes e Refugiados” (NAIR), um dos projetos de

extensão da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da ACNUR-ONU na UFSC. Ambos os projetos de

pesquisa e de extensão estão vinculados ao Eirenè-UFSC25.

Os dados que informam o estudo são resultado do atendimento à população imigrante

e refugiada em Florianópolis que procuram o NAIR para resolver questões relacionadas,

principalmente, ao trabalho (metade dos atendimentos do período entre 2015 e 2017). A

emissão de currículos, orientações no mercado laboral, procedimentos para a reunião familiar,

Latina. Disponível em: http://br.rfi.fr/brasil/20160116-por-que-ha-uma-invasao-de-turistas-argentinos-nas-

praias-brasileiras. Acesso em: 13 de nov. 2019. 24 Siqueira (2016) apresenta uma leitura do espaço urbano de Florianópolis considerando diferentes grupos

componentes e salientando que a identidade cultural ilhoa não se encerra na busca pela tradição, como volta ao

passado, mas se dá em diálogo com as constantes transformações globais. A autora discute os conflitos entre os

grupos dos manezinhos em oposição aos dos haules e suas estratégias de convivência. 25 O Eirenè-UFSC é o Centro de Pesquisas e Práticas Pós-coloniais e decoloniais aplicadas às Relações

Internacionais e ao Direito Internacional. Mais detalhes sobre as ações do projeto podem ser encontrados no

seguinte endereço eletrônico: https://irene.ufsc.br/.

100

legalização de documentos também configuram as buscas do contingente. Esse trabalho resulta

da cooperação entre setores da UFSC e outras entidades e demonstra a importância da ação

conjunta na construção de políticas imigratórias, bem como o papel da universidade no

atendimento ao público e na reflexão sobre esse contexto.

Outro estudo da coordenadora do Eirenè, (SILVA, 2021) mostra o quanto o racismo e

o sexismo são elementos fundacionais da própria disciplina de Relações Internacionais. A

autora discute a invisibilidade de sujeitos marcados por esses sistemas de opressão (COLLINS,

2019) como um consenso nas produções científicas da área, calcadas por um olhar hegemônico

e hierarquizante que legitima a exclusão de grupos de sujeitos subalternizados. Silva (2021)

sugere a criticidade e a reflexividade como contrapontos a essa prática de marginalização

epistemológica.

Essas e outras questões levantadas nesses estudos permitem compreender alguns dos

aspectos discursivos da convivência na ilha. Como salientam os autores citados, as tensões da

mobilidade no que tange à identidade são complexas e as consequências discursivas são

sentidas fortemente por quem é considerado haule.

Após apresentar e discutir elementos importantes da contextualização do estudo, no

que diz respeito à complexidade da condição diaspórica e ao contexto de imigração no Brasil,

em Santa Catarina e em Florianópolis, passo à seção seguinte, em que enfoco outros elementos

teóricos que norteiam este estudo.

3.4 LÍNGUA DE ACOLHIMENTO: UM CONCEITO SÓCIO-HISTORICAMENTE

SITUADO

Diferentes posicionamentos teórico-metodológicos têm sido utilizados para fazer

referência ao ensino da língua portuguesa a imigrantes no Brasil. As denominações comumente

utilizadas são: português como língua estrangeira (PLE), português como língua adicional

(PLA), português para falantes de outras línguas (PFOL) e uma derivação importante a ser

considerada, português como língua de acolhimento (PLAc). Cada uma dessas acepções tem

implicações em torno do que conta como língua, sobre quem são os sujeitos aprendentes, sobre

qual é o objeto de ensino, sobre como se compreende o processo de ensino-aprendizagem e

sobre as relações que se constroem em sala de aula.

Se concordamos, como têm apontado diversos pesquisadores da linguagem, que “as

concepções sobre o nosso objeto de ensino determinam as ações que desenvolvemos em sala

de aula com e sobre a língua” (MENDES, 2012, p. 11), faz-se necessário refletir sobre os

101

posicionamentos ideológicos subjacentes às práticas conduzidas sob os slogans aos quais nos

vinculamos. Essas escolhas envolvem, sobretudo, ideias apriorísticas sobre as implicações

acima citadas, direcionadas ao público-alvo a que o ensino se destina.

Nesta seção, enfoco a origem portuguesa e a recepção crítica brasileira ao conceito

português como língua de acolhimento, comumente empregado no contexto de ensino a

imigrantes e refugiados (BULLA et al, 2017; RUANO, 2019), concebidos como sujeitos que

precisam, mais do que desejam, conhecer a língua majoritária local (SÃO BERNARDO;

BARBOSA, 2018).

A relação entre migração e ensino de língua portuguesa compreendida como uma

língua de acolhimento é uma das características originárias do conceito PLAc, que emerge no

âmbito do programa Portugal Acolhe (CABETE, 2010). São considerados como a demanda

específica desse ensino em Portugal os chamados “novos públicos” para a língua portuguesa,

constituído por contingentes migratórios provenientes de Cabo-Verde, da Ucrânia e da China,

que, após 1975, o país passa a receber (ANÇÃ, 2008). Chama a atenção que o atendimento a

essa demanda seja colocado na perspectiva de um “acolhimento em língua portuguesa” ao

imigrante.

Na tentativa de compreender que sentidos têm sido atribuídos a “acolhimento” na

relação com língua portuguesa, é importante refletir sobre o significado do termo e sobre as

condições políticas de surgimento e emprego. Importa ainda discutir como pesquisadoras/es

brasileiras/os têm-se apropriado do conceito e como podemos dar um sentido para esse termo

que leve em conta as necessidades e os projetos específicos dos grupos com os quais

trabalhamos, considerando a complexidade da experiência diaspórica que protagonizam.

A entrada “acolhimento” no dicionário Houaiss (2001, p. 61), aparece nas seguintes

acepções: como 1. ato ou efeito de acolher; acolhida, acolho; 1.1 maneira de receber ou de ser

recebido, recepção, consideração; 1.2. abrigo gratuito; hospitalidade; 1.3. local seguro, refúgio,

abrigo. Os sentidos de refúgio, casa e forte estão presentes na associação de português como

língua de acolhimento, segundo Ançã (2008, 2008, p. 84).

A relação entre língua e acolhimento, no caso português, acompanha uma mudança

social, política e migratória do país, que, ao olhar para seus novos hóspedes, concebe a si mesmo

como hospitaleiro e acolhedor. Ou seja, é o status migratório de país de acolhimento que motiva

a concepção de uma língua de acolhimento.

Concebidos enquanto aprendentes da língua majoritária local, essas novas gerações

configuram o público-alvo do PLAc por serem, como colocam Ançã (2008) e Grosso (2010),

102

protagonistas dessa transformação migratória de Portugal que passa de país de emigração a país

de imigração (GROSSO, 2010, p. 65). Segundo a autora:

É ainda nesse período [década de 70] que Portugal, tido como um país

tendencialmente monolíngue e monocultural (apesar da sua diversidade), se

assume e se transfigura em multilingue e multicultural, atenuando-se a

vertente de país de emigração e acentuando-se a de país de acolhimento.

(GROSSO, 2010, p. 70, ênfase minha).

No modo como coloca Grosso (2010), a autoimagem portuguesa de abertura e

aceitação da diferença coincide com a abertura política ocorrida após o fim do período ditatorial

(1933 a 1974). A partir da constatação dessa diferença, o país se assume e se transfigura em

multilíngue e multicultural. Porém, importa olhar essa naturalização da diversidade com

ressalva – tanto no que respeita à associação língua-status de pertencimento à nação, quanto

com relação à assunção multilíngue e multiculturalista, como sugerem Anunciação (2017;

2018) e Anunciação e Camargo (2019), pela simples constatação da presença de uma

diversidade linguístico-cultural.

Quanto ao status migratório na configuração de uma demanda de aprendizagem, é

necessário ter em conta que “[d]istinguir as formas de mobilidade humana não é uma simples

constatação sociológica, mas uma ação cujas consequências políticas impactam em diversos

aspectos, sejam econômicos, demográficos, sanitários ou educacionais (BULLA et al, 2017, p.

2-3).

A relação estabelecida por Ançã (2008) e Grosso (2010), que orienta a configuração

teórico-metodológica a justificar o conceito de PLAc, define os sujeitos aprendizes dos novos

fluxos para Portugal como os “novos” aprendentes da língua majoritária local. Naquele

contexto, a permanência do imigrante no território português é condicionada ao conhecimento

da língua. Segundo Cabete (2010),

[a] criação do programa Portugal Acolhe teria como fim facultar junto da

população imigrante residente em Portugal, que comprovasse não possuir

nacionalidade portuguesa e que apresentasse uma situação devidamente

regularizada, o acesso a um conjunto de conhecimentos indispensáveis a uma

inserção de pleno direito na sociedade portuguesa, promovendo a capacidade

de expressão e compreensão da língua portuguesa e o conhecimento dos

direitos básicos de cidadania, entendidos como componentes essenciais de um

adequado processo de integração dos imigrantes (CABETE, 2010, p. 56).

103

Justifica-se compreender como necessário um redirecionamento do ensino a partir do

status migratório, como o propõem Grosso (2010) e Ançã (2008), ao considerar as necessidades

de aprendizagem linguístico-culturais em função das diferentes atividades em que precisarão

envolver-se esses aprendizes. Porém, o arrolamento da língua portuguesa como um dos

“conhecimentos indispensáveis para o reconhecimento do pleno direito na sociedade

portuguesa”, como é colocado por Cabete (2010, p. 56), direciona o ensino na perspectiva de

um “acolhimento” que em nada aparenta hospitaleiro. Como destacam Bulla et al. (2017, p. 3)

“[o] tipo de enquadramento que um contingente em deslocamento recebe tem imediatas

consequências no acesso dessa população a políticas públicas, ao trabalho ou ao direito de

frequentar uma escola, por exemplo”.

Corre-se riscos ao generalizar imigrantes e refugiados em um único grupo. Por um

lado, creio que seja importante sempre olhar para as especificidades, distanciando-nos das

generalizações que podem incorrer em estereótipos. Por outro lado, essas generalizações são

feitas apenas quando necessário, tomando por base aspectos comuns aos dois tipos de

experiência de deslocamento, como aponta Lopez (2020), por exemplo:

A nosso ver, tais ponderações devem estar na base das discussões sobre PLAc

também, para que não promovamos, enquanto pesquisadore(a)s e

professore(a)s, essa diferenciação, por vezes, pouco prática, entre refugiados

e migrantes, assumindo uma percepção ampla de migrantes de crise (LOPEZ,

2020, p. 125).

As políticas linguísticas para os imigrantes, no contexto português, têm relacionado

fortemente a naturalização do imigrante ao conhecimento da língua portuguesa, tornando a

língua de acolhimento em língua de integração, em perspectiva notadamente monolíngue. Isso

tem gerado debates e distanciamentos críticos quanto à adesão ao conceito de PLAc no Brasil.

A imposição da língua portuguesa como requisito para a cidadania tem gerado ressalvas de

alguns pesquisadores (ANUNCIAÇÃO, 2018; BULLA et al., 2017; RUANO, 2019) à

concepção de língua portuguesa como de acolhimento.

Considerando que, no cenário contemporâneo de intensa mobilidade global, “a sala de

aula [...] de línguas adicionais é um espaço inerentemente plurilíngue e transcultural”

(LUCENA, 2015, p. 82), importa em nossas pesquisas considerar essa heterogeneidade, de

modo sempre situado. Para tanto, é relevante identificar concepções que sustentam processos

de homogeneização no cenário apagando tensões, como na compreensão liberal de

multiculturalismo, que “reforça processos de despossessão e de não reconhecimento ao

104

desconsiderar as relações de poder que constituem as relações entre as culturas, tornando umas

hegemônicas e outras, subalternizadas” (ANUNCIAÇÃO, 2018, p. 52).

Sobre as relações entre as culturas e a perspectiva do “multiculturalismo liberal”,

entendo, com Hall (2003, 2006) e com Street (2003), que língua e cultura não devem ser

compreendidas como objetos autônomos, reificados, identificáveis, mas como processos

fluidos e constantemente negociados. Importa, assim, refletirmos sobre o processo de

construção de sentidos que se dá a partir das diásporas e que se manifesta dentro e fora da sala

de aula. Para os que se deslocam, esses processos não se dão como substituições, em que um

termo do novo contexto suprime um anterior, enquanto assimilação. De modo bem mais

complexo, essa tradução (HALL, 2003) envolve negociação, contestação e mesmo refutação

de significados e conceitos encontrados no novo local (HALL, 2003; 2006).

No capítulo de análises, enfoco e discuto uma parte desse processo na experiência das

aprendentes do curso de português para mães imigrantes, evidenciando, na perspectiva das

aprendentes, a heterogeneidade envolvida nesse processo. Nele, importam discussões quanto

ao que conta como língua, sobre correção e o sobre modo como certas ideologias (a racista, no

caso analisado) estão presentes ou são silenciadas na sociedade brasileira.

Já na perspectiva daqueles que recebem os imigrantes, a chegada de um novo

contingente também causa deslocamentos de sentido, por vezes expressos como um

fortalecimento de identidades concebidas nos moldes iluministas (HALL, 2006), que ativam

comportamentos conservadores e negativos em relação ao outro. Por vezes, há tolerância; por

outras, uma tolerância interessada, como é o caso de empregadores que se aproveitam da

urgência por trabalho dos imigrantes e os exploram em seus direitos, deixando de pagar-lhes as

horas extras. Em casos extremos, até o devido salário deixa de ser pago, como ocorreu a uma

das alunas do curso. Esse caso, que também problematizo nas análises, configura-se um tipo de

recepção nada hospitaleira, dificultando o reconhecimento da sociedade brasileira como

“acolhedora”.

Frente ao descaso do Estado e à inexistência de políticas públicas amplas, específicas

e efetivas ao acolhimento dos imigrantes, são criados projetos que partem da sociedade civil,

em que ONGs, entidades religiosas, universidades e institutos federais assumem a questão

imigratória e o ensino da língua portuguesa. No entanto, na perspectiva da gratuidade, acepção

presente no termo acolhimento, questões como a falta de preparo de profissionais para o ensino

específico a essa demanda e o assistencialismo se interpõem como obstáculos à

responsabilização do Estado, como salientam Bizon e Camargo (2018). Iniciativas que assim

105

se colocam, em geral, têm forte apelo midiático e participação comunitária, o que pode ajudar

no reforço à desresponsabilização do Estado, que deixa de oferecer condições adequadas e

constitucionais ao acolhimento, como o direito ao conhecimento da língua majoritária do país

(LOPEZ, 2020) e o respeito à diversidade linguística desses sujeitos.

A ideia de gratuidade associada à da vulnerabilidade, também leva à concepção de que

os cursos de PLAc precisam oferecer recursos além de aulas de línguas. Em muitos projetos, o

ensino, além de gratuito, é ligado a outras iniciativas de caridade, em geral praticadas de modo

voluntário, que mobilizam ações sociais a compensar a falta de políticas oficiais de inserção

desses sujeitos na sociedade (BIZON, CAMARGO, 2018). Essa perspectiva, chamam atenção

Bizon e Camargo (2018), pode suscitar um reforço na concepção de vulnerabilidade, em que

aqueles que oferecem cursos, roupas, materiais didáticos, colocam-se na posição de quem tudo

tem e aqueles que participam como alunos, na posição de a quem tudo falta, como salientam

Diniz e Neves (2018). Por vezes, as iniciativas, que deveriam ser responsabilidade do Estado,

tornam-se práticas assistencialistas que passam a reproduzir o tratamento da diferença como

uma legitimação da desigualdade. Nessa perspectiva, o ensino não é pautado pelas urgências e

necessidades dos aprendizes, mas por generalizações em torno do que se imagina necessário.

Um exemplo dessa atitude hierarquizante é o estabelecimento de cursos com o objetivo

de “dar voz” a esses alunos, pressupondo uma falta de agentividade dos aprendizes em

contraponto à posição dos que ofertam os cursos, que estariam no lugar de dar a eles “o que

eles precisam”. Esse objetivo parte do pressuposto de que esses sujeitos não têm uma voz

própria, necessitando da boa vontade alheia para se organizarem e se posicionarem. E ainda

correm o risco de prever necessidades que talvez não sejam as mais relevantes para esses

sujeitos.

Assim, na perspectiva de ensino de PLAc, originalmente, parte-se de um status de

estrangeirismo, acentuado pelo viés da vulnerabilidade enquanto falta (DINIZ, NEVES, 2018),

inclusive de recursos pressupostos para a socialização, como a língua na acepção de um sistema

fechado e impermeável. A hierarquia associada a essa concepção de língua(gem) enquanto falta

pode ser prejudicial ao processo de construção do pertencimento e de validação de repertórios

linguísticos e culturais individuais e singulares dentro e fora da sala de aula (ANUNCIAÇÃO,

2018). Assim, parece utópico pensar que, no quadro de relações tão complexas que se colocam

de modo singular em cada cenário, de um dia para o outro, por conta da chegada de imigrantes

a um novo contexto, a abertura ao novo se dá. É o que faz parecer o modo como Grosso (2010)

106

descreve o contexto português, justificando o emprego de um termo que faz referência a um

tipo de recepção tão cuidadosa, como é o caso de “acolhimento”.

Refletindo com Hall (2003) sobre as formas de gerenciar essa “diferença”, é

importante salientar que “multiculturalismo” não é:

[...] uma única doutrina, não caracteriza uma estratégia política e não

representa um estado de coisas alcançado. Não é uma forma disfarçada de

endossar algum estado ideal ou utópico. Descreve uma série de processos e

estratégias políticas sempre inacabadas” (HALL, 2003, p. 52-53, ênfase

minha).

Compreendendo o acolhimento como um processo negociado, é importante levar em

consideração que não é suficiente para o acolhimento à multiculturalidade a simples constatação

dessa diversidade, considerando o caráter inacabado e processual dessa recepção. Uma vez que

o conceito é, em si, vazio, sendo mobilizado a partir das tensões sociais provocadas por essa

“diferença” em cada contexto específico, é preciso pontuar que essa tradução se apresenta de

múltiplas maneiras nos diferentes grupos de interesses em um contexto social específico

(HALL, 2003). Como um significante flutuante, o multiculturalismo é multifacetado, sendo

uma dessas facetas a liberal (HALL, 2003). Segundo Hall, o “multiculturalismo liberal”:

[...] busca integrar os diferentes grupos culturais o mais rápido possível ao

mainstream, ou sociedade majoritária, baseado em uma cidadania individual

universal, tolerando certas práticas culturais particularistas apenas no

domínio privado (HALL, 2003, p. 53, ênfase minha).

Parece ser precisamente este o caso português, em que a palavra “integração” tem um

papel importante como objetivo colocado para os imigrantes e não por eles. Apesar de haver

uma tentativa de amenizar o caráter marcadamente monolíngue do país, que as autoras afirmam

problematizar, a associação entre língua portuguesa e cidadania circunscreve os “novos

públicos” (ANÇÃ, 2008) dentro de um espaço restrito no contexto português, demonstrando

traços do multiculturalismo liberal, em que certas identidades linguístico-sociais são mais

celebradas que outras. É importante considerar, por exemplo, que, para os pertencentes à

Comunidade Europeia (CE), não há obrigatoriedade de apresentação do diploma de certificação

da língua portuguesa para livre trânsito e acesso à cidadania plena em Portugal. Essa

obrigatoriedade foi colocada para os “nacionais de Estados terceiros”, imigrantes oriundos de

países de fora da CE, em Portugal, em 2007 (CABETE, 2010, p. 50), em uma hospitalidade

107

notadamente seletiva. Cabete realça o aspecto contraditório do discurso de acolhimento e da

legislação que se mostra nessa estratégia:

A introdução da exigência do comprovativo da proficiência linguística no

processo de um requerimento de uma estadia não temporária, seja através de

uma autorização de residência permanente, seja através do estatuto de

residente de longa duração poderá estar relacionada com motivos diversos.

Todavia, se esta opção foi tomada a fim de ir ao encontro das necessidades

dos indivíduos que se encontram em processo de integração no país de

acolhimento, a realidade é que as condicionantes legais levantadas pelo

conhecimento da língua são exigidas apenas aos que necessitam deste

enquadramento legal, isto é, aos nacionais dos Estados terceiros, com os quais

a Comunidade Europeia não tenha concluído qualquer acordo de livre

circulação a uma legislação própria (CABETE, 2010, p. 50, ênfase minha).

O aspecto contraditório das políticas portuguesas, em que monolinguismo anda de

mãos dadas com a discursivização da obrigatoriedade da língua portuguesa para os novos fluxos

migratórios, se reflete no trabalho de Ançã (2008):

Esta investigação [que enfoca os denominados “novos públicos”] vem

questionar uma ideia de monoculturalismo e de monolinguismo, cujos

contornos se tornaram mais esbatidos nas últimas décadas. De uma língua (?)

do território, passamos a várias línguas no território. No entanto, nesta

constelação de línguas, culturas, etnias e interacções entre elas, é a LP que

destacamos, e que entendemos de acolhimento, no seu sentido literal (refúgio,

casa, forte) (ANÇÃ, 2008, p. 84, ênfase minha)

Questiona-se o monolinguismo, mas a equação resultante da diversidade é a orientação

à língua única. É o conhecimento da língua portuguesa que a autora destaca como “de

acolhimento”, segundo ela, “no seu sentido literal”. Isso nos leva a interpretar, por oposição

simples, que a diversidade componente no repertório do aprendiz não configuraria mais a sua

“casa”, o seu “refúgio” ou seu o “forte”. Na pressuposição de Ançã (2008), esses sujeitos

devem, além de deixar suas “casas”, “fortes” e “refúgios” no seu sentido literal, também devem

fazê-lo no modo figurado, para poder existir no espaço do Outro. Nas palavras da própria

autora:

Ela [a língua portuguesa como língua de acolhimento] constitui, sem

equívocos, o direito à existência (retomando a expressão de Candide, 2005) e

é a ponte e o acesso a espaços sociais e laborais (ANÇÃ, 2008, p. 84)

108

Nessa equação, língua, cultura e nação aparecem como elementos contínuos,

colaborando para o entendimento de que o acesso à língua majoritária local seria suficiente para

a integração na sociedade em questão. Ou seja, é necessário curvar-se à língua portuguesa

(ANZALDUÁ, 2009) ou não se pode existir ali, “sem equívocos”.

Ançã (2008) revela que essa diversidade serve mais ao âmbito de uma mera

constatação da diferença do que propriamente ao fornecimento de uma resposta acolhedora da

sociedade portuguesa a esses novos hóspedes. Ao apontar o etnocentrismo na cultura dominante

como um problema que persiste e que deve ser endereçado, Grosso (2010) também aponta

obstáculos encontrados na sociedade portuguesa para realizar esse acolhimento:

Além da língua, a partilha e compreensão de comportamentos, atitudes,

costumes e valores exigem um trabalho conjunto de ambas as partes,

abrangendo os que chegam e os que acolhem. O que se revela particularmente

importante, sobremaneira no processo de ensino-aprendizagem, ocorre

geralmente no contexto da cultura dominante, com uma estrutura

etnocêntrica que desconhece as características e a realidade do público-alvo,

o que não raramente contribui para a própria não adaptação desse público no

contexto de acolhimento (GROSSO, 2010, p. 70, ênfase minha).

A autora reconhece que uma não abertura do entorno pode ser prejudicial ao processo

de ensino-aprendizagem e aponta a importância do conhecimento das características e

realidades do público-alvo. No entanto, o diagnóstico dessa realidade é visto a partir de uma

perspectiva reificada de língua, em que os repertórios linguístico-culturais dos imigrantes,

compreendidos como línguas, são quantificados em termos de aproximação ou distância da

língua e cultura portuguesa (ANÇÃ, 2008), na forma de um saber-fazer (GROSSO, 2010).

No cenário brasileiro, quanto à questão do entorno, Maher (2007) salienta, no trabalho

com grupos linguisticamente minoritários em contextos multiculturais:

Sem que o entorno aprenda a respeitar e a conviver com diferentes

manifestações linguísticas e culturais, mesmo que fortalecidos e amparados

legalmente, estou convencida de que grupos que estão à margem do

mainstream não conseguirão exercer, de forma plena, sua cidadania

(MAHER, 2007, p. 258).

É a partir das reflexões de Maher (2007) sobre a educação do entorno, fruto da longa

experiência da pesquisadora com a formação de professores indígenas no Acre, que Anunciação

(2018) problematiza a idealização dessa diferença como um “multiculturalismo liberal” no

emprego do termo língua de acolhimento. A crítica de Anunciação (2018) suscitou as reflexões

109

acima produzidas em torno do conceito de multiculturalismo liberal. O posicionamento da

pesquisadora configura outra das relevantes ressalvas dirigidas ao emprego irrefletido do

conceito no contexto brasileiro:

Considero que a adoção do termo língua de acolhimento deve ser

problematizada, pois, além de ter sido transposto do contexto político-

linguístico português, seus pressupostos se baseiam na ideia de um

multiculturalismo liberal (MAHER, 2007a), o qual reforça processos de

despossessão e de não reconhecimento, ao reificar diferenças e classificar

algumas experiências e vivências culturais como mais autênticas ou superiores

a outras (ANUNCIAÇÃO, 2018, p. 45, ênfase no original).

As palavras da autora são endossadas por Ruano (2019) que completa:

Cabe-nos refletir sobre essas questões em nosso contexto, sobre as nossas

especificidades, com base nas experiências práticas e pesquisas que estamos

realizando no Brasil para pensarmos em políticas brasileiras que necessitam

ser construídas acerca dessa temática. (RUANO, 2019, p. 63)

Ou seja, é necessário considerar os aspectos contextuais, políticos e semânticos na

associação com o PLAc, uma vez que muitas compreensões que não favorecem o/a aprendiz

são colocadas como pressupostos dessas ações (LOPEZ, 2020).

Outra questão importante é a proposição do conceito de língua de acolhimento como

língua de integração (GROSSO, 2010). O intuito discursivo do texto da autora envolve discutir

o quanto esta associação importa dentro do Quadro Europeu Comum de Referência (QECR),

que serve a um bloco econômico centrado no fortalecimento de uma identidade europeia, para

uma cidadania europeia em que as línguas europeias são um componente fundamental

(GROSSO, 2010, p. 66).

A construção da cidadania europeia só pode erigir-se pela diversidade

linguística e cultural, não só por si, mas também como modelo de abertura ao

mundo. O ideal intercultural europeu terá como corolário o Quadro Europeu

Comum de Referência, que indica a todas as línguas europeias (e não só) um

futuro comum, plurilingue e pluricultural, componente fundamental para uma

identidade europeia (GROSSO, 2010, p. 66, ênfase no original ).

Levando em conta as intenções nacionalistas que envolvem o esforço para marcar o

campo conceitual de língua de acolhimento como língua de integração, é importante considerar

os interesses que se revelam nessas estratégias. O marcador de plurilinguismo parece ser uma

110

reunião de determinadas línguas e não de outras, menos legitimadas, no processo de validações

de pertencimento e estadia nos países da Comunidade Europeia.

Signorini (2017) discute como alianças lusófonas são contemporaneamente

estabelecidas em torno de um discurso de promoção do português como uma língua

pretensamente fraterna a unir experiências de países, cuja identificação se dá pela herança dessa

língua colonial. A despeito da singularidade e heterogeneidade cultural, linguística e política

dos contextos em questão em África, América e Europa, a língua da lusofonia figura como

elemento unificador, alheia às especificidades dos contextos em questão. Os propósitos

mercadológicos silenciam as tensões e produzem objetos vendáveis: identidades lusófonas

tradicionais e contemporâneas, que são discursivizadas como importantes recursos no mercado

global (SIGNORINI, 2017). Ao ressaltar traços mais gerais de uma denominada “globalização

linguística”, Signorini (2013, p. 75) ressalta que a globalização econômico-financeira merece

ser considerada quanto ao caso específico da língua portuguesa, tendo em vista as:

[e]stratégias, de fomento ou gerenciamento de mercado(s) linguístico(s)

transnacionais com vistas à produção e circulação de produtos linguísticos ou

semióticos (‘sociedade da informação’ e ‘sociedade do conhecimento’) e não

linguísticos; sendo que tais mercados estão atrelados à atividade econômica e

cultural das comunidades (não só nacionais) e aos circuitos e/ou espaços

produzidos por processos, fluxos ou redes transnacionais de circulação de

capital, mercadorias e pessoas (SIGNORINI, 2013, p. 76).

É importante questionar, no âmbito do PLAc, o quanto essas estratégias de ver-se

enquanto um país acolhedor ao redor de uma língua majoritária, discursivizada como sendo

tanto de acolhimento quanto de integração, passa por outros interesses para além dos

imediatamente relacionados com o ensino e aprendizagem de língua. Importa ainda nos

questionarmos, em torno do PLAc, sobre o contexto de um multilinguismo liberal, em que

decisões são mais pautadas por agentes verticais do que pelas necessidades e buscas das

horizontalidades (BIZON; CAMARGO, 2019). O que vemos no caso português é que, em sua

concepção, o PLAc parece estar mais destinado a propósitos de fortalecimento de identidades

linguísticas nacionais e continentais e a políticas de regulamentação de espaços de direito dentro

dessas fronteiras do que a servir aos propósitos comunicativos dos sujeitos aprendentes,

objetivo a que, a princípio, se orienta o PLAc e que justifica o conceito.

Na acepção do português como língua de acolhimento, na perspectiva da integração,

como colocada por Grosso (2010), ressalta-se mais a demanda imposta aos imigrantes de um

“dever saber e de um “dever fazer” do que a de um “saber-fazer”, “refugiando-se” ou “estando

111

em casa”, como pretende o viés acolhedor do conceito em discussão. A especificidade do

ensino-aprendizagem, nesse contexto, é colocada na perspectiva de um direito, mas também de

um dever de todo cidadão:

É fundamental o ensino-aprendizagem da língua de acolhimento, direito de

todos os cidadãos [...] pois é ela que permite o acesso mais rápido à cidadania

como um direito, assim como o conhecimento e a promoção do cumprimento

dos deveres que assistem a qualquer cidadão (GROSSO, 2010, p. 71, ênfase

minha)

Grosso (2010, p. 71), ao pautar sua discussão, usando a ideia de movimento identitário

“do imigrante para o cidadão”, pressupõe que o status de cidadania se configura como uma

conquista que se dá por meio do esforço desses aprendizes. Assim, Grosso ressalta o caráter de

“falta” comumente empregado para definir os imigrantes e refugiados público-alvo do PLAc,

como também criticam Diniz e Neves (2018) no contexto brasileiro.

O papel do professor, nesse contexto, seria o de fazer uma integração, idealizada de

modo harmônico por Grosso (2010, p. 66), que coloca a questão na forma de uma urgência:

“seja qual for a razão, quem chega precisa de agir linguisticamente de forma autônoma, num

contexto que não lhe é familiar”. Nesse contexto,

[a] história de vida no passado e no presente abre um leque de hipóteses que

ensinante e aprendente cooperam e aprendem juntos, ultrapassam as questões

do cotidiano, integram-se pelo bem-estar, pela confiança, e isso só pode ser

alcançado pela língua de acolhimento (GROSSO, 2010, p. 71).

A idealização da autora, expressa acima, sugere que o conhecimento da língua

portuguesa seria suficiente, necessário e indispensável para a integração. Contraditoriamente, a

língua portuguesa tomada como via única para a integração na sociedade coloca em xeque as

acepções do próprio conceito de acolhimento que se escolhe para utilizar. Ficam

questionamentos: O propósito é receber, considerar, abrigar gratuitamente, acolher, fazer com

que esses sujeitos se sintam em casa? Pode-se hospedá-los sem que sejam consideradas suas

bagagens linguístico-culturais? Esses são dois dos principais questionamentos aos quais estão

atentos pesquisadores brasileiros que veem com ressalvas as tendências assimilacionistas que

evidenciam as perspectivas de acolhimento transplantadas de Portugal para o Brasil, as quais

pressupõem a aprendizagem da língua majoritária nacional como condição a priori para a

112

cidadania (DINIZ; NEVES, 2018; ANUNCIAÇÃO, 2018; BIZON; CAMARGO, 2018;

LOPEZ, 2020). Segundo Anunciação:

Transplantada ao contexto brasileiro, essa concepção [de língua de

acolhimento], que condiciona o conhecimento de uma determinada língua

como pressuposto de nacionalidade e de adequação social, reforça o mito e a

ideologia de que o Brasil é um país monolíngue e linguisticamente homogêneo

(ANUNCIAÇÃO, 2018, p. 45).

E complementa:

Faz-se necessário investigar, portanto, como os atores envolvidos com o

ensino de PLA em contexto de migração e refúgio o compreendem enquanto

política linguística, considerando as características sócio-históricas e políticas

do Brasil, para discutir o termo língua de acolhimento a partir dos usos

linguísticos dos indivíduos em diferentes contextos. Assim, ao refletir sobre

língua de acolhimento, é indispensável refletir sobre os usos linguísticos de

fato e observar em que medida a língua que acolhe não é a mesma que

silencia. (ANUNCIAÇÃO, 2018, p. 52-53, ênfase no original)

Ruano (2019) corrobora a crítica da autora:

[...] não compactuamos com a ideia de vincular a aprendizagem do idioma

majoritário local a nenhum tipo de condição para a legalização e possibilidade

de permanência na sociedade receptora, prática que temos acompanhado com

pesar em diversos países europeus além de Portugal, como é o caso da França,

Inglaterra, Alemanha, entre outros. Acreditamos que essa ligação direta possa

reforçar uma prática colonizadora e assimilacionista, ao se impor a língua

como uma condição sine qua non à permanência no novo território (RUANO,

2019, p. 63, ênfase minha).

Recentemente, o Brasil passou a exigir o exame de certificação Celpe-Bras para

processos de naturalização de imigrantes e refugiados no País, o que também tem gerado

críticas em estudos (LOPEZ, 2020; ANUNCIAÇÃO; CAMARGO, 2019) que problematizam

fortemente essa política verticalizada que acaba por reforçar “o mito do monolinguismo do

Brasil” (CAVALCANTI, 1999, p. 3):

Importa salientar que a determinação dos Ministérios foi tomada por um

governo reconhecidamente conservador sem a participação da sociedade civil

e sem a consulta a especialistas das áreas de avaliação e de

ensino/aprendizagem de línguas, configurando-se como uma política de

línguas top down. (ANUNCIAÇÃO; CAMARGO, 2019, p. 18.)

113

Levando em conta a complexidade do exame Celpe-Bras, o investimento financeiro e

o tempo destinado a apropriar-se dos conhecimentos requeridos para a sua realização,

Anunciação e Camargo (2019) consideram que essa exigência, pode ser uma espécie de

estratégia de seleção de um determinado perfil de imigrantes que se deseja no País, à exemplo

das políticas migratórias do século XIX (SEYFERTH, 2008). Assim, apesar da acepção de

hospitalidade implícita no termo “acolhimento”, a imposição da língua portuguesa estaria

assumindo significado oposto na realidade dos imigrantes e refugiados.

Frente a esses movimentos de deslegitimação dos falantes de línguas minoritárias no

contexto português e brasileiro, importa perguntar a quem interessa denominar essa língua

portuguesa de “abrigo”, “refúgio” e “forte” quando esse recurso é colocado como mais um

obstáculo a acentuar a condição de subalternidade que já está posta para os sujeitos dos

deslocamentos forçados no mercado global. Nas palavras de Anunciação e Camargo (2019,

p. 19): “condicionar a obtenção da nacionalidade brasileira a um exame que não considera as

especificidades do contexto migratório nada mais é que um tijolo a mais em um muro

delimitador de fronteiras”.

É relevante questionar, ainda, como se pode nominar “acolhimento” a um processo

que pressupõe o apagamento do repertório linguístico-cultural do sujeito imigrante? Em

contextos educacionais que reconhecem a existência de ideologias monolíngues e

monoculturais, bem como a falta de apoio do entorno, como a língua portuguesa pode ser

colocada como um abrigo capaz de hospedar esses sujeitos?

No universo em que esses sujeitos já existem, há inúmeras outras referências

componentes de suas bagagens linguístico-culturais que trazem de seus “abrigos”. No

entendimento que trago a partir das vozes das alunas participantes da pesquisa, é percebendo

as considerações sobre as negociações, refutações e contestações de sentido na legitimação de

seus repertórios, de suas vivências e de seus processos tradutórios em seus processos de

aprendizagem da língua portuguesa que encontro um sentido possível para o acolhimento.

Exatamente porque tiveram que deixar seus “abrigos”, é que uma medida de

acolhimento deve passar pela validação de seus repertórios, de suas bagagens, de suas

subjetividades, de suas narrativas e de suas necessidades e projetos. No caso desta pesquisa:

Consideramos que as vozes dessas mulheres e, consequentemente, os cursos

de português para imigrantes só podem ser dimensionados se nos dispusermos

à escuta, considerando os lugares singulares que elas ocupam. Enfatizamos

que suas vivências devem ser visibilizadas e entendemos que só a partir da

compreensão das singularidades [...] será possível proporcionar melhores

114

condições de inserção social e de experiências de ensino e aprendizagem de

português para imigrantes na comunidade brasileira. (REIS; LUCENA, 2019,

p. 54)

A premissa central é de que as especificidades situadas é que devem nortear as práticas

e as pesquisas em políticas linguísticas educacionais (LUCENA, 2015), tornando-se

imprescindível um olhar crítico para que não reproduzamos modos de subjetivação dos sujeitos

aprendentes que os reduzam a peças dentro de um jogo de delimitar fronteiras em projetos de

hospitalidade seletiva e exploratória. Independentemente dos interesses estratégicos utilizados

para justificar projetos de ensino de Português orientados pelo conceito de PLAc em outros

contextos, é preciso questionar o que nós tomamos como acolhimento, como língua de

acolhimento, e como PLAc em nossas investigações e ações26.

Do ponto de vista de nossas pesquisas, importa enfocar as ações específicas em que os

participantes se envolvem em cada contexto de práticas. Concebendo a sala de aula como um

espaço “plurilíngue e transcultural” por excelência, que requer “paradigmas epistemológicos

que contemplem as exigências da contemporaneidade” (LUCENA, 2015) para análise,

importou considerar os significados emergentes dessas práticas situadas, a partir das

perspectivas dos participantes nelas imediatamente implicados (ERICKSON, 1990). Nesse

processo, além do enfoque na subjetividade dos participantes da pesquisa, dedica-se especial

atenção às relações de poder envolvidas entre os participantes da pesquisa (LUCENA, 2015, p.

80).

Na pesquisa com as alunas participantes do curso de português, as aprendizes acolhem

umas às outras, utilizando o espaço a elas aberto. Em suas ações e falas, evidenciam que

acolhimento é uma construção social que se dá na relação, no compartilhamento de

experiências, na escuta à outra, na abertura para as trocas e no respeito às diferenças. A partir

de posições singulares interseccionadas de nacionalidade, classe e raça, essas mulheres-mães-

imigrantes constroem relações de afeto e de colaboração mediadas pela língua portuguesa. A

maternidade, a diáspora e a busca pela aprendizagem da língua portuguesa revelam-se como

elementos de coesão do grupo e língua de acolhimento ganha uma dimensão afetiva nessa rede

que elas buscam estabelecer. Em seus processos diaspóricos, traços comuns de suas

experiências são apontados, como as urgências e as esperas que se acentuam a cada passo no

novo território, configurando novas necessidades de aprendizagem.

26 Comunicação pessoal de Maria Inêz Probst Lucena e Carlos Maroto Guerola à autora, em 24/11/2020 (Em

reunião de orientação).

115

Dentro e fora da sala de aula, essas mulheres-mães-imigrantes revelaram a busca, a

construção e a reivindicação contínua de espaços de pertencimento e legitimidade através da

língua(gem). Nesse sentido, é possível pensar a da sala de aula de português, na perspectiva do

acolhimento, como um lugar de afeto e compartilhamento, ao abrigar as vivências das

aprendizes migrantes. Que essa sala de aula possa assemelhar-se à imagem de uma esteira capaz

de alocar as bagagens subjetivas que trazem os alunos aprendentes; uma casa que possa

testemunhar o processo de transformação dos itens componentes que se somam a outros na

experiência mais ou menos longa, de tempo indefinido, do deslocamento; um forte que possa

muni-los com ferramentas linguísticas de enfrentamento das fronteiras que se impõem em seus

percursos. Para essa condução, considero importante uma perspectiva adicional de ensino-

aprendizagem de língua adicional (PLA) (GARCEZ; SCHLATTER, 2009), de onde é derivada

o PLAc no Brasil (LOPEZ, 2020). Também considero relevante o conceito de “translinguagem”

(GARGIA, 2009, 2017; GARCIA; WEI, 2014; 2017), emergente nas práticas linguísticas das

alunas participantes da pesquisa, temáticas que passo a enfocar na subseção seguinte.

3.4.1 O Português como Língua Adicional (PLA) e a Translinguagem

A pressuposição de um contexto em que a experiência linguística emerge como natural

acaba por reificar a ideia de língua, de cultura e de sujeito pertencente a uma nação. A

essencialização derivada desse aspecto abre margem para um modus operandi dentro de um

contexto cultural específico do qual a língua seria mera expressão. A alteridade na relação

estrangeiro x nativo passa a figurar como elemento que situa a cultura e a linguagem como

sistemas que funcionam de modo autônomo (STREET, 2003), podendo ser reivindicados,

exportados, mercantilizados (HELLER, 2003). O pertencimento a uma língua-cultura estaria

associado à mera aprendizagem de seu funcionamento no uso. Nessa perspectiva, a língua é

tomada como expressão de uma cultura, de uma nacionalidade e de uma identidade reificadas

e, muitas vezes, objetificadas para o ensino (SEVERO; VIOLA, 2017).

Alternativamente a essa tendência, o PLA parte da perspectiva de ensino de línguas

com ênfase no acréscimo ao repertório do estudante (GARCEZ, SCHLATTER, 2009, p. 131).

Nessa acepção, a diversidade linguística é vista como uma realidade. No caso do Brasil, os

autores chamam atenção para as mais de 200 línguas existentes em território nacional (de

indígenas, quilombolas, surdos e imigrantes). O contato com outras línguas não é compreendido

como um aspecto distante, estranho, estrangeiro, senão como constitutivo das sociedades

116

humanas. Com esse pressuposto, a aula de línguas é imaginada como um convite à troca de

experiências socioculturais em que todos os sujeitos da interação se enriquecem mutuamente

(SCHLATTER; GARCEZ, 2009).

Nessa perspectiva, o mundo não é visto como dividido por línguas como expressões

de nacionalidades. Parte-se do pressuposto de que vivemos em um mundo plural em termos de

línguas e de práticas heterogêneas. A aprendizagem de línguas, nessa perspectiva, dá-se não

como a apropriação de um status de pertencimento ou de um sistema fechado de formas que só

fazem sentido quando encontram formas oriundas do mesmo sistema, mas como aquisição de

recursos que se adicionam ao repertório individual semiótico, já complexo e heterogêneo do

estudante (GARCIA; WEI, 2014). Nesse sentido, a perspectiva de adição distancia-se de

concepções referenciadas em torno de status totais de língua circunscritas em fronteiras fixas

ou em concepções monolíngues – em que língua e nação se associam. A perspectiva da adição

está informada por estudos sobre a interação verbal como realmente ocorre: a depender da

criatividade dos interagentes para mobilizar os recursos do seu repertório em cada uma das

situações comunicativas vivenciadas (MAKONI, 2017).

Signorini (2016, p. 2) aponta esse tipo de perspectiva como característica de estudos

situados recentes em Linguística Aplicada, comprometidos com uma visão de língua mais

distante da “condição de sintoma da falta ou de déficit” e mais próxima de ser tomada como

um “recurso comunicativo integrado a repertórios individuais específicos”. Essa configuração,

que toma a língua portuguesa em uso transnacional, enfatiza a heterogeneidade e a mobilidade,

a hibridez e a negociação nas práticas (SIGNORINI, 2016, p. 2). Nesse sentido, a compreensão

do ensino bilíngue como translinguagem seria um modo de convidar o aprendiz a utilizar todo

o seu conhecimento linguístico e semiótico para a interação e não simplesmente aquele

relacionado a uma dada língua (GARCIA, 2009; 2017; GARCIA; WEI, 2014).

A translinguagem, segundo Garcia (2017) é o modo como bilíngues se comunicam, ou

seja, utilizando “a língua como um sistema unitário de produção de sentidos dos falantes”27

(GARCIA, 2017). A pesquisadora chama a atenção para o repertório comunicativo de cada

sujeito, que envolveria o seu idioleto e que estaria composto também por signos, gestos,

contextos e outros modos de fazer sentido. A comunicação se daria a partir da escolha de traços

escolhidos como pistas que guiam o interlocutor para que ele construa a mensagem (GARCIA,

2017). Translinguagem, portanto, seria “um ato que o levaria a um espaço translíngue de onde

27 “using language as a unitary meaning making system of the speakers”.

117

se depreendem signos do nosso repertório e onde, então, há uma transação entre os

interlocutores”28 (GARCIA, 2017). Conforme Garcia e Wei (2014):

Translinguagem é uma abordagem de uso da língua(gem), de bilinguismo e

de educação de bilíngues que considera que as práticas de linguagem de

bilíngues não como dois sistemas de línguas autônomas, como tem sido

tradicionalmente o caso, mas como um repertório linguístico individual com

traços que foram socialmente construídos como pertencentes a duas línguas

separadas. (GARCIA; WEI, 2014, p. 2).29

Utilizando essa perspectiva, a sala de aula considerada como translíngue, ao levar em

conta o repertório linguístico individual dos usuários e, por consequência dar oportunidades

para que o desenvolvam completamente e não apenas se limitem ao uso de recursos socialmente

construídos como pertencentes à língua particularmente nomeada, valida as práticas

comunitárias bilíngues da comunidade à medida que as sanciona na escola (GARCIA, 2017).

A razão pela qual devemos adotar a translinguagem como ferramenta pedagógica é

por ela se contrapor ao modelo hierárquico que preconiza a língua majoritária como prioritária,

fazendo justiça às línguas minoritárias, bem como aos sujeitos que as utilizam (GARCIA,

2017). Assim, ao testar os sujeitos, estaríamos testando-os em toda a sua capacidade de produzir

sentido e não em menos da metade de seu repertório linguístico, como o faríamos levando em

conta traços pertencentes a apenas uma dada língua, como ocorre nos sistemas educacionais.

A translinguagem, como ferramenta pedagógica, mostra-se alternativa à perspectiva

de ensino assimilacionista, que reforça e limita os usos linguísticos a um ideal comunicativo

que não ocorre na realidade dos usos bilíngues. No entanto, é preciso também colocar que, para

alguns intuitos discursivos, é necessário aprender determinadas formas exigidas para aqueles

contextos específicos. Assim, é preciso levar em consideração quais são as reais necessidades

dos aprendizes, validando conhecimentos que já existem nos repertórios individuais dos

aprendizes.

O desafio é tomar distância de idealizações de ensino-aprendizagem de línguas que

têm como objetivo que os aprendizes alcancem a realização linguística de “falantes nativos”.

Para isso, perspectivas que idealizam objetivos assimilacionistas como a de falar como um

28 “Translanguaging is that act that takes you into a translanguaging space where we deploy the features of our

repertoire and that then there is a transaction between the interlocutors”. 29 “Translanguaging is an approach to the use of language, bilingualism and the education of bilinguals that

considers the language practice of bilinguals not as two autonomous language systems as has been traditionally

the case, but as one linguistic repertoire with features that have been societally constructed as belonging to two

separate languages”.

118

nativo, eliminam elementos como o “sotaque” que, além de não estarem, necessariamente,

associados à compreensão e à desambiguação, são importantes elementos marcadores de

identidade e pertencimento. Assim, levando em conta as posições sociais que ocupam certos

sujeitos e as marcações de poder em torno de certas línguas e não de outras, cabe-nos refletir se

estamos pautando o ensino de línguas em torno de elementos que dizem mais respeito a

apreciações de grupos hegemônicos sobre o que conta como língua legítima em determinado

espaço enunciativo, ou se estão em foco os propósitos comunicativos específicos a que se

destinam (LUCENA; CARDOSO, 2018; TOMASELLI, 2020; LUCENA, 2020).

Ensinar considerando os elementos constitutivos do repertório do aprendiz que dizem

respeito às suas próprias experiências de vida e identidades, constituídas de modo híbrido, é

uma forma de legitimar suas vivências. A consideração de seus repertórios complexos,

múltiplos e em plena transformação é uma alternativa ao tratamento pedagógico da “falta” do

português que têm pontuado iniciativas mais assimilacionistas de PLAc, como discutido por

Diniz e Neves (2017), Bizon e Camargo (2018), Lopez (2020) e outros.

Garcia (2017) apresenta a translinguagem como uma contraposição ao modelo

existente que olha a língua de uma maneira externa, que desconsidera o que realmente acontece

na comunicação bilíngue, em que há agenciamentos no uso linguístico, como mostram Lucena

e Cardoso (2018) ao discutir a translinguagem como um recurso pedagógico. Garcia (2017)

afirma que a perspectiva externa é muito importante, pois está associada ao acesso e à testagem

do repertório linguístico dos sujeitos. A translinguagem figuraria, então, como perspectiva

interna, que se propõe a perceber o que realmente acontece com o trânsito de informações nos

aparatos de comunicação de cada sujeito e a respeitá-lo em seus processos de aprendizagem e

de constituição como sujeito bilíngue. Desse modo, esta visão interna do repertório linguístico

do sujeito bilíngue, a translinguagem, seria mais justa para compreender como se dá a

articulação do conhecimento linguístico do sujeito, de modo sempre situado, a depender das

situações de uso que se colocam, dos propósitos comunicativos e da criatividade dos sujeitos.

Garcia e Wei (2014) justificaram a importância de partir de um ensino bilíngue para

um ensino translíngue por considerarem que a complexidade multilíngue do cenário

contemporâneo pode transformar o ensino monolíngue de línguas estrangeiras e a estrutura de

ensino bilíngue, beneficiando os aprendizes envolvidos. A ampliação de recursos cognitivos

quando da assunção da translinguagem como ferramenta pedagógica é uma das vantagens do

instrumento para a aprendizagem, mas não só. No que tange à construção identitária, a

possibilidade de utilizar as próprias línguas incorre na valorização do repertório linguístico do

119

sujeito aprendente, no aumento de sua autoestima e de seu rendimento escolar (DeGRAFF,

2017; 2019). A translinguagem, ao ser incentivada em salas de aula de línguas pode permitir

ambientes mais criativos, críticos “onde os alunos possam usar a agentividade para escolher

quais recursos de seu repertório linguístico usar” (LUCENA; CARDOSO, 2018, p. 144),

mesmo que o objetivo em questão seja aprender a usar uma dada língua em contextos mais

regulamentados de práticas.

A despeito das concepções norteadoras a que se vinculam os sujeitos envolvidos no

planejamento de cursos e da teorização de abordagens de ensino de línguas, os significados

atribuídos pelas aprendentes aos usos linguísticos são de central importância. Tomando como

base o princípio dialógico da língua(gem) nas interações verbais em sala de aula, em que os

significados são construídos e revelados, importa visibilizar as negociações de sentido rumo a

um quadro estável de significações que buscam os alunos em diálogo com o professor.

Na sala de aula, longe de imperar a perspectiva dominante, “do professor” ou “do

aluno”, do “material didático” ou “da escola”, para que a aula “aconteça”, como ressalta Geraldi

(2010), há que se ter uma comunalidade de interesses ou um encontro de objetivos entre

professores e alunos. Apesar da utopia que emerge de tal idealização, é preciso construir

caminhos para que o diálogo entre perspectivas seja possível, principalmente em ambientes

forjados em enquadres disciplinares e reguladores de práticas como a escola. Como salientam

Garcia e Wei, “a ênfase nos aspectos trans da linguagem e da educação nos habilita a transgredir

as separações categóricas do passado” (2014, p. 2). Os autores referem-se à necessidade de

questionar o construto língua enquanto contínuo de um Estado e uma nação, erigido na

modernidade.

Com o intuito de analisar a materialidade linguística dos diálogos em campo, além da

perspectiva adicional e da translinguagem, foram utilizados conceitos de Bakhtin para

interpretar as questões emergentes do campo, os quais passo a apresentar na subseção seguinte.

3.4.2 A perspectiva de uso da linguagem por Bakhtin

Para as análises e interpretações de questões emergentes do campo que evidenciavam

necessidades e projetos pautados pelas mulheres-mães-imigrantes, participantes desta pesquisa,

foram utilizadas observações de Bakhtin (1997; 2010) sobre o modo como enunciamos nas

diferentes esferas da atividade humana, segundo o autor, a partir de gêneros do discurso. A

aprendizagem de línguas é um processo de apreensão de sentidos dentro de sistemas de

120

significação específicos, que operam sempre em contexto, a partir de uma relação de apreensão

da fala alheia em que subjazem pressupostos ideológicos de certos grupos (BAKHTIN, 2010).

Assim, importa refletirmos como as participantes da pesquisa aprendem português em suas

buscas por fazer sentido de suas experiências na língua em aprendizagem.

A concepção de linguagem mobilizada neste trabalho pressupõe um sujeito

historicamente situado, em uma posição dialógica que se materializa na tensão entre o já-dito e

a irrepetibilidade de seus enunciados (BAKHTIN, 2010). Esse sujeito não adquire línguas como

formas estanques, de significados precisos. Seus enunciados situam-se num entrelugar de

sentidos, o “terreno interindividual” (BAKHTIN, 2010, p. 35), entre aquele que enuncia e

aquele a quem enuncia.

Segundo Bakhtin (2010), desde os primeiros choros, enunciamos. De modo negociado,

dirigimo-nos a interlocutores precisos: à mãe, ao pai ou a outro/a cuidador/a, utilizando nossos

recursos disponíveis, a partir da apreensão da fala alheia. É no processo mesmo de

negociar/comunicar necessidades, anseios e angústias com/para outros sujeitos no mundo, que

tomamos consciência desse mundo, pela linguagem (BAKHTIN, 2010). Nesse movimento, a

diversidade da experiência humana faz com que os signos não veiculem sentidos unívocos, por

refletirem e refratarem múltiplas realidades, variadas, mobilizando horizontes apreciativos

compartilhados por diferentes grupos de sujeitos. Por esta característica, por possuírem

componentes de significado que remetem ao mundo real e não se encerrarem em si mesmos, é

que os signos são considerados por Bakhtin (2010) como ideológicos, por excelência.

Segundo Bakhtin (1997, p. 280), “todas as esferas da atividade humana, por mais

variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua”, sendo o enunciado

que reflete “as condições específicas e as finalidades de cada uma delas”. O enunciado é

individual apenas quando considerado isoladamente. No entanto, quando consideramos as

esferas discursivas em que circulam podemos notar “tipos relativamente estáveis” de

enunciados, a que Bakhtin (1997, p. 280) denomina “gêneros do discurso”.

O autor aponta que esforços para estudar os gêneros literários, retóricos e do cotidiano,

em diferentes períodos da história, acentuaram por hora um ou outro caráter da natureza do

enunciado. Ora os enunciados são “mais definidos pelo ângulo artístico-literário”, ora se dando

“maior ênfase à sua natureza verbal” e a certos princípios constitutivos como “a relação com o

ouvinte e a influência deste sobre o enunciado”, como no estilo retórico (BAKHTIN, 1997, p.

290). E outros momentos, ainda, o enunciado foi definido centrando-se o olhar na réplica do

diálogo cotidiano, que evidenciava a especificidade do discurso oral, sem, no entanto, enfocar

121

enunciados complexos, como foi feito nos estudos behavioristas (BAKHTIN, 1997). Em todos

esses esforços, o autor aponta que alguns aspectos da natureza do enunciado eram solapados,

em favorecimento de outros. Bakhtin atribui essa dificuldade teórico-metodológica “quando se

trata de definir o caráter genérico do enunciado” como consequente da “extrema

heterogeneidade dos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1997, p. 282).

A única classificação empreendida por Bakhtin (1997) dos gêneros do discurso é a

distinção feita entre gêneros primários (simples) e secundários (complexos). Segundo o autor,

não se tratando de instâncias totalmente separadas, os gêneros secundários, como “o romance,

o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico – aparecem em circunstâncias de uma

comunicação cultural mais complexa, principalmente escrita: artística, científica, política”

(BAKHTIN, 1997, p. 281). Já os gêneros do discurso primários – a réplica do diálogo cotidiano

ou a carta, por exemplo – são absorvidos pelos gêneros do discurso secundário. Ao se tornarem

deles componentes, “transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular:

perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados

alheios” (BAKHTIN, 1997, p. 281, ênfase minha). Segundo Bakhtin (1997, p. 282):

A inter-relação entre essas duas instâncias – a dos gêneros primários e

secundários –, de um lado, e o processo histórico e formação dos gêneros

secundários, de outro que se configura um importante lugar de investigação

da natureza dos enunciados, acima de tudo, o difícil problema da correlação

entre língua, ideologias e visões de mundo. (BAKHTIN, 1997, p. 282, ênfase

minha).

Essa atenção ao “difícil problema da correlação entre línguas, ideologias e visões de

mundo”, recomendada por Bakhtin, é importante nesta investigação em que foram considerados

gêneros mais e menos estáveis. Por definição, o que caracteriza um gênero do discurso, a partir

de Bakhtin (1997), é seu caráter individual e o contexto em que ocorre.

Os gêneros do discurso definem-se pelo tema, pela composição e pelo estilo. O tema

varia conforme as esferas da comunicação verbal: da vida cotidiana, da vida prática, da vida

militar, etc.; a composição e o estilo variam em função da “expressividade do locutor ante seu

enunciado”. A expressividade abrange as emoções e as apreciações valorativas, estas centrais

neste estudo. Segundo Bakhtin (1997), esses elementos do enunciado (a composição e o estilo)

configuram o caráter responsivo que enquadra e delimita o enunciado, cujas fronteiras são

marcadas pela alternância de sujeitos durante o diálogo.

122

Na discussão sobre a compreensão de uma “fala viva”, a responsividade é um elemento

componente não apenas da posição daquele ao qual foi dirigida uma enunciação. O elemento

de responsividade também é componente da ação enunciativa. No entanto, segundo o autor

coloca:

[...] uma resposta fônica, claro, não sucede infalivelmente o enunciado fônico

que a sucede: a compreensão responsiva ativa do que foi ouvido (por exemplo,

no caso de uma ordem dada), pode realizar-se diretamente como um ato (na

execução da ordem compreendida e acatada), pode permanecer, por certo

lapso de tempo, compreensão responsiva muda [certos gêneros líricos, o autor

exemplifica], mas neste caso trata-se, poderíamos dizer, de uma compreensão

responsiva de uma ação retardada: cedo ou tarde, o que foi ouvido e

compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no

comportamento subsequente do ouvinte. (BAKHTIN, 1997, p. 291, ênfase

minha)

Bakhtin (1997, p. 292) complementa:

[...] o próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o

primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo

mudo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas

também a existência dos enunciados anteriores – emanantes dele mesmo ou

do outro – aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de

relação. (BAKHTIN, 1997, p. 292)

A premissa da responsividade importa para pensarmos que a sedimentação de

discursos em um dado tempo histórico atua como componente ideológico da enunciação. Sendo

assim, o enunciado seria não somente individual, mas também dotado de um caráter social, a

partir de premissas e valores de grupos junto aos quais enuncia. Daí, deriva a elaboração de

Bakhtin (1997, p. 291) de que “cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa dos

enunciados”.

Outro elemento importante a ser considerado para as análises desta investigação é o

intuito discursivo, ou o querer-dizer do locutor, que pode se refletir mais ou menos no

enunciado, a depender da estabilidade do gênero do discurso. O intuito discursivo é o elemento

subjetivo do enunciado, perceptível a partir do todo, às vezes, a partir das primeiras palavras.

Há gêneros do discurso, no entanto, em que o intuito discursivo é quase inexistente ou nulo,

realizando-se apenas na escolha do gênero. É o caso dos gêneros do discurso relativos à vida

militar (os comandos e as ordens) ou “na vida profissional, em que os gêneros são padronizados

ao máximo”, sem que haja muito espaço para a criatividade (BAKHTIN, 1997, p. 300).

123

Bakhtin ressalta um importante fato no que respeita à fluência na utilização dos

gêneros do discurso. Em sua perspectiva, aprender a comunicar-se é aprender a estruturar

gêneros discursivos em certas esferas de atividade as quais o locutor pode dominar melhor ou

pior. A heterogeneidade a que se refere em relação à comunicação verbal também se mostra

quanto à circulação dos próprios sujeitos nessas distintas atividades:

Não é raro o homem que domina perfeitamente a fala numa esfera da

comunicação cultural, sabe fazer uma explanação, travar uma discussão

científica, intervir a respeito de problemas sociais, calar-se ou então intervir

de uma maneira muito desajeitada numa conversa social. Não é por causa de

uma pobreza de vocabulário ou de estilo (numa acepção abstrata), mas de uma

inexperiência de dominar o repertório de gêneros da conversa social, de uma

falta de conhecimento a respeito do que é o todo do enunciado, que o indivíduo

fica inapto para moldar com facilidade e prontidão sua fala e determinadas

formas estilísticas e composicionais: é por causa de uma inexperiência de

tomar a palavra no momento certo, de começar e de terminar no tempo correto

(nesses gêneros, a composição é muito simples). (BAKHTIN, 1997,

p. 303-304)

O modo como é acima colocada a apropriação dos gêneros discursivos pelo autor

aponta para um processo que se dá ao longo da experiência de vida individual do falante/usuário

da língua. Nele, a articulação do indivíduo nas esferas mais complexas não garante a

desenvoltura nas mais simples. Esse aspecto sociolinguístico de domínio da fala em esferas de

comunicação, ressaltado pelo autor, contraria ideias vigentes em torno da aprendizagem

linguística como uma apreensão de recursos linguísticos de modo reificado e absoluto, que

serve a todos os propósitos.

Conforme Bakhtin (1997, p. 282) coloca: “a língua penetra na vida através dos

enunciados concretos que a realizam e é também através dos enunciados concretos que a vida

penetra na língua”, assim sendo, “a língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo

ideológico ou relativo à vida” e, portanto, “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou

de um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN, 2010 [1929], p. 99). Essa relação entre

língua e vida é central na compreensão do ensino de português que se quer pautado pelas

necessidades e projetos de seus aprendentes, como no caso desta pesquisa, em que se

consideram as necessidades e os projetos de mulheres-mães-imigrantes. Com esse objetivo,

buscou-se não perder o fio de conexão entre a vida dessas aprendentes e a língua, para um

mapeamento das práticas sociais em que se vinculam, de modo a refletir sobre as práticas

comunicativas que requerem.

124

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin (2010) lamenta a falta de um campo

conceitual bem assentado em torno do conceito de ideologia. Essa deficiência não impede o

autor de abrigar no centro de suas reflexões a ideia de signo ideológico, compreendendo a

enunciação como um processo que se veste de ideias sedimentadas orientadas a auditórios

sociais bem determinados em um dado tempo histórico.

Enfatizando a duplicidade temporal de cada enunciação, concebe-a enquanto ato

irrepetível, ao mesmo tempo em que é ato histórico. Seria irrepetível, por atualizar-se a cada

novo enunciado pela intenção e pela situação singular de comunicação, e ato histórico por

depender, para o processo de significação, de uma sequência de usos, mais ou menos estáveis,

que permite a construção de sentidos como um continuum do passado (BAKHTIN, 2010).

A metáfora do eco não foi escolhida por acaso para pensarmos sobre a enunciação na

perspectiva de Bakhtin. No eco, o enunciador reconhece sua voz, pois trata-se do mesmo timbre

que ecoa. No entanto, o enunciado a ele não pertence inteiramente, uma vez que se trata também

da apropriação da palavra alheia no curso de seu destino. O enunciado realiza-se sempre

orientado a um outro. Pertence o enunciado ao enunciador quanto ao ineditismo do ato, porém,

ao não poder destituir-se do social para atribuição e negociação de sentidos, o enunciado

situa-se sempre em um entrelugar entre o enunciador e o auditório social para o qual se dirige,

configurando-se como ato individual e coletivo a um só tempo.

Nas palavras de Bakhtin (1997, p. 316), “o enunciado concreto é um elo na cadeia da

comunicação verbal de uma dada esfera, cujas fronteiras determinam-se pela alternância dos

sujeitos falantes”. O enunciado deve ser sempre considerado em seu caráter responsivo a outros

enunciados, por estar “repleto de ecos e lembranças de outros enunciados aos quais está

vinculado no interior de uma esfera comum na comunicação verbal” (BAKHTIN, 1997, p. 316).

O autor ressalta, ainda, que:

O mecanismo desse processo [de apreensão do discurso de outrem] não se

situa na alma individual, mas na sociedade, que escolhe e gramaticaliza – isto

é, associa as estruturas gramaticais da língua – apenas os elementos de

apreensão ativa, apreciativa, da enunciação de outrem que são socialmente

pertinentes e constantes e que, por consequência, têm seu fundamento na

existência econômica de uma comunidade linguística dada (BAKHTIN,

2010, p. 152, ênfase no original).

O processo de significação se encontra no seio de uma comunidade linguística dada

ligada a um tempo anterior e outro presente, de significado móvel, enquanto abertura para o

novo. É sobre essa novidade vestida de passado que tratam as reflexões dirigidas a analisar o

125

que as alunas do curso de português trazem como estranhamentos aos significados que

encontram em suas traduções linguístico-culturais em Florianópolis. Na procura por traduzir o

novo contexto, a questão da legitimidade nos usos linguísticos é colocada pelas mulheres-mães-

imigrantes participantes da pesquisa, questão que passo a enfocar na seção seguinte.

3.5 A LEGITIMIDADE NOS USOS LINGUÍSTICOS

A partir de necessidades e projetos evidenciados por alunas do curso, importou para a

discussão levar em conta o contexto migratório de hospitalidade seletiva. Interpretada, nesta

pesquisa, como um traço da ordem sociocultural e linguística heterogênea, a hospitalidade

seletiva do contexto migratório brasileiro compreende como mais legítimas determinadas

posições sociais e não outras. Por consequência, essa hospitalidade conduz à maior atribuição

de legitimidade aos usos linguísticos de certos grupos do que de outros.

Concernentes à temática da legitimidade nos usos linguísticos, dois aspectos foram

problematizados nesta seção: (1) o pertencimento das mulheres-mães-imigrantes participantes

da pesquisa a culturas de língua padrão (MILROY, 2011) e (2) a busca pela legitimidade

linguística de falantes no novo contexto (SIGNORINI, 2002; 2006). Essas questões importaram

para a discussão dos dados gerados no campo e para a reflexão sobre os modos pelos quais

podemos, em práticas de ensino de língua portuguesa, ir ao encontro de necessidades e projetos

pautados por mulheres-mães-imigrantes.

Signorini (2006) observa que pessoas reais, em interlocuções reais, buscam validar

suas posições sociais reais ou almejadas através do uso linguístico. A autora compreende que

os usos linguísticos se realizam dentro de uma ordem sociocultural e linguística heterogênea

que regula a atribuição de legitimidade, não exatamente aos usos linguísticos reificados, mas

aos sujeitos imediatamente implicados nessas práticas comunicativas (SIGNORINI, 2006). A

concepção da autora remete à ideia de uma ordem do discurso, como a concebe Foucault

(2010), em que o dizer é regulado a partir das posições sociais que ocupam os falantes em cada

contexto sócio-histórico específico. O autor refere essa ordem como um aspecto fantasmagórico

que antecede ao discurso, regulando-o, interditando temáticas e sujeitos a depender do que, a

quem e onde é permitido dizer, em cada contexto sócio-histórico específico.

Signorini (2002, p. 93) propõe essa ordem sociocultural e linguística “enquanto uma

configuração sempre transitória do que no jogo socio-comunicativo e também político e

ideológico das relações sociais, se constrói como divisão, borda ou fronteira nos usos da língua

126

(SIGNORINI, 2002, p. 93). Nessa leitura, os usos linguísticos são concebidos como processos

cerceados por espaços regulamentados de práticas, porém não determinados, uma vez que essa

ordem sociocultural e linguística heterogênea permite novas configurações das fronteiras e

bordas que as regulamentam. A autora propõe uma inversão na análise da legitimidade. Como

ressalta a autora, se quisermos nos ater aos modos pelos quais os sujeitos realmente utilizam a

linguagem, não se trata propriamente de entender quais usos linguísticos são mais legítimos,

mas, de forma inversa, de questionar como e quais sujeitos têm seus usos linguísticos mais

legitimados pelos traços dessa ordem sociocultural e linguística heterogênea:

Interessa-nos a referência às práticas comuns de uso da língua em que a

‘perturbação’ trazida pela variação é o que permite ao falante/escrevente se

constituir enquanto agente que tanto reproduz formas e sentidos, papéis e

identidades, quanto os altera, tensiona, torce, subverte, produz o novo, seja

ele percebido como criativo, revolucionário ou apenas descabido, torto, mal

enjambrado (SIGNORINI, 2002, p. 93, ênfase minha).

Essa proposição, permite que seja ressaltado o olhar investigativo para a negociação com a

ordem – colocada como perturbação pela autora – enfocando a agência dos sujeitos em seus

processos de constituição identitária em diferentes papéis sociais.

Descartando a atenção para a língua legítima como um recurso per se, a autora aponta

como necessária a discussão sobre a “igualdade mínima de condições entre falantes”

(SIGNORINI, 2006, p. 172). Com essa atenção, importa discutir a legitimidade atribuída aos

falantes nas práticas de uso da língua, levando em conta a “legitimidade dos usos linguísticos

[...] em termos socioculturais e políticos e não puramente linguísticos” (SIGNORINI, 2006,

p. 170). Para tanto, importa considerar que a conferência de legitimidade de falante de um

determinado sujeito passa pela apreciação conferida ao próprio sujeito no diálogo. Assim, a

apreciação negativa de um sujeito ou grupo, em um território ou tempo histórico, pode servir

como uma fronteira discursiva. Como evidenciam análises do campo situado, essas fronteiras

discursivas podem, por sua vez, requerer usos linguísticos específicos de enfrentamento a essa

ordem para a conquista da legitimidade, como vemos com as alunas do curso de português para

mães imigrantes.

Para compor sua discussão sobre legitimidade, Signorini (2006) parte de investigações

situadas, como relata a seguir:

Num trabalho anterior, verificamos que o acesso a pequenos proprietários

rurais não ou pouco escolarizados do interior paraibano à disputa eleitoral e

127

também à câmara municipal no início da década de 1990 não trouxe mudanças

significativas, nem para as rotinas institucionais na câmara, nem para os

modos de intervenção de seus membros, nem tampouco para os padrões de

avaliação, pelos grupos urbanos escolarizados, do grau de legitimidade dos

usos da língua pelos recém-chegados à esfera pública, nem de legitimar a

transposição, para essa esfera, de usos tidos como próprios de seu grupo social

de origem. O resultado disso é que mesmo quando eleitos, permaneciam em

estado de permanente invisibilidade e afasia no contexto institucional:

‘Aprovar calado, permanecer sentado’ (SIGNORINI, 1998b: 166)

(SIGNORINI, 2006, p. 177, ênfase minha).

Na elaboração teórica da autora, o conceito de afasia é contraposto ao conceito de

legitimidade, sendo esta atribuída aos denominados “porta-vozes”, ou os sujeitos que fazem

parte da partilha de bens simbólicos naturalizados a sujeitos de uma posição social específica.

É desse modo que, como ressalta Signorini (2006), sujeitos desprestigiados socioculturalmente

são passíveis de sofrer “diferentes graus de invisibilidade e afasia” em contextos institucionais

(SIGNORINI, 2006, p. 177).

As questões que a autora propõe salientam a importância de levarmos em conta a

complexidade das posições sociais de nossos alunos no contexto de aprendizagem de língua

portuguesa para imigrantes. A ilegitimidade atribuída aos usos linguísticos de aprendizes que

têm suas posições sociais desprestigiadas socioculturalmente pode requerer necessidades de

aprendizagem linguística específicas para o enfrentamento a obstáculos que se interpõem em

suas buscas no novo contexto.

No que concerne a contextos multilíngues, em reflexão sobre as tensões que atuam

nessa ordem sociocultural e linguística heterogênea, Signorini (2002, p. 94), aponta para o que

denomina como “jogo monolíngue” e “jogo multilíngue”, ambos derivados da ideia de Estado-

-nação e “promovido[s] pelos planejamentos linguísticos d’a unidade na diversidade’”. A

autora critica o multilinguismo, pois, para ela, o “princípio continua sendo o da normatização e

controle das línguas nacionais, segundo a mesma lógica funcional dos Estados-nação

monolíngues” (SIGNORINI, 2002, p. 94). Nessa lógica funcional monolíngue, ser bilíngue

pressupõe:

a) Não embaralhar as fronteiras misturando os códigos; b) manter separados

os domínios de uso de cada uma delas c) ter o padrão nacional de cada uma

como “a” língua legítima, em detrimento de variedades intermediárias, mistas

ou vernaculares (SIGNORINI, 2002, p. 92).

128

A compreensão das forças que atuam nessa ordem importa para compreender a busca

pela língua legítima no cenário investigado, refletindo o papel de espaços formais de ensino de

línguas no trabalho com os usos linguísticos considerados legítimos per se. Em contrapartida,

analisar os tensionamentos dessa ordem promovidos pelos falantes em suas práticas linguísticas

situadas importa na consideração do campo de possibilidades que se coloca ao falante. Em um

contexto em que normas de uso linguístico estão a regular o que pode e o que não pode ser dito

no jogo enunciativo, “a ação ou o trabalho do falante/escrevente [é] jogar com as coerções e os

recursos daí advindos” (SIGNORINI, 2002, p. 92). É aí que entra a possibilidade de desafiar as

regulamentações das esferas de normatização pautadas por todo um aparato institucional –

estatal, escolar, jurídico, acadêmico –, lugar onde se encontram as formas anteriores à

regulamentação ou, precisamente, o funcionamento mesmo da língua(gem), que não se dá à

priori a partir dos aparatos regulatórios, mas a despeito deles.

Na busca por dirigir a atenção às demandas concretas das práticas comunicativas, que

vivenciaram as aprendizes do curso de português, e em atenção a elas, evidencia-se que a fusão

de línguas e/ou variedades de uma língua que o falante emprega escapa a essa lógica da

normatização e do controle das fronteiras – própria da denominada “problemática do

multilinguismo” (SIGNORINI, 2002, p. 92).

Uma vez que a diversidade é a norma, importa ver quais recursos são utilizados no

jogo enunciativo. Sobretudo, interessa saber 1. quais são os valores simbólicos implicados no

uso dos recursos linguístico-discursivos dos repertórios das mães imigrantes participantes da

pesquisa – na comunicação com as filhas, por exemplo, e 2. quais são os recursos requeridos

pelas aprendizes do curso de português para uso em contextos específicos, principalmente, os

que partem de necessidades concretas, como a que nos traz Marlene: “preciso aprender a brigar

em português”. Esse tipo de necessidade requer a apreensão do funcionamento da língua dentro

daquilo que se considera ser legitimado, enquanto norma, em determinados espaços de práticas

comunicativas.

Para uma contraposição didática alternativa ao que Signorini (2002, p. 63) coloca

como uma “modelização de formas à disposição do falante”, importa refletir o quanto, em

nossas práticas educacionais, temos ecoado as regulamentações do jogo monolíngue. Um dos

traços implicados na atribuição de legitimidade, que serve como borda e fronteira dessa ordem,

é a ideologia da língua padrão. Como observa Milroy (2011):

[...] os historiadores da língua têm sido eminentes no estabelecimento desta

legitimidade [da língua] porque, é claro, é importante que uma língua padrão,

129

sendo a língua de um Estado-nação e, às vezes, de um grande império,

compartilhe da história (gloriosa) deste Estado-nação (MILROY, 2011, p. 76).

O autor chama a atenção para os efeitos do que ele denomina “ideologia da língua

padrão”. Trata-se da “imposição de uniformidade a uma classe de objetos” (MILROY, 2011, p.

51). Uma vez que a padronização é imposta externamente aos objetos, as características que os

unificam não são intrínsecas, mas a eles impostas, pois esses objetos são naturalmente variáveis.

Com a língua, não tem sido diferente: a padronização linguística opera na produção da

invariância ou uniformidade na estrutura da língua (MILROY, 2011, p. 51, ênfase no original).

Trata-se de um processo artificial, portanto. O ideológico, segundo o autor, diz respeito ao valor

de prestígio atribuído a esse objeto ou conjunto de objetos: “o prestígio atribuído às variedades

linguísticas (por metonímia) é indexador e está envolvido na vida social dos falantes”

(MILROY, 2011, p. 57, ênfase no original). Ou seja, assim como problematiza Signorini (2002;

2006), Milroy (2011) chama a atenção para a seguinte questão: são as pessoas que ocupam um

lugar de prestígio e não a língua por elas falada per se, a qual não possui existência fora da vida

social (MILROY, 2011).

Para a compreensão de como o status de falante é considerado a partir da atribuição

conferida aos sujeitos, Milroy (2011) entende que ocorre um processo metonímico em que a

apreciação social de um sujeito conduz à apreciação de sua fala. Nesse movimento, o status de

prestígio do falante é associado à sua variedade. Em uma visão reificada da língua, toma-se a

forma pelo conteúdo, abstraindo-se da enunciação marcadores sociais, como a condição

efêmera de ser “de prestígio”, e tornando-a esvaziada de seu conteúdo situado, para figurar

como forma de prestígio/variedade de prestígio autônomas. Daí, o surgimento de variedades de

prestígio como formas abstratas que presumidamente carregariam o prestígio em si mesmas. O

mesmo efeito pode acontecer no caso de um falante considerado desprestigiado socialmente

por conta de algum marcador (gênero, nacionalidade, classe, raça), ao ter sua fala igualmente

tomada como ilegítima.

Milroy (2011, p. 57) ressalta também que “um efeito extremamente importante da

padronização tem sido o desenvolvimento da consciência, entre os falantes, de uma forma de

língua ‘correta’ ou ‘canônica’”. O autor aponta que esse efeito se dá em falantes que pertencem

ao que ele denomina de “culturas de língua padrão” (p. 49), ou seja, que “acreditam que essas

línguas vivem em formas padronizadas” (p. 57), tais como falantes do inglês, do espanhol e do

francês. Assim, um dos aspectos dessas culturas de língua padrão seria uma “forte crença na

correção” (MILROY, 2011, p. 57, ênfase no original), mas não apenas:

130

Além de ideias de prestígio e correção, as suposições que são condicionadas

pela ideologia são as de que as línguas são uniformes em estrutura, que são

estáveis e que são entidades concluídas. Contudo, essas tampouco são

propriedades de línguas reais, - são propriedades de estados idealizados de

línguas e são, especialmente, propriedades de línguas padronizadas.

(MILROY, 2011, p. 74-73).

Se os efeitos da padronização em falantes de “culturas de língua padrão” são dessa

natureza e são refletidos nas instituições de formação, como a escola (MILROY, 2011), importa

refletirmos sobre as especificidades dos contextos nos quais as alunas do curso de português

para mães imigrantes realizaram suas formações: o Haiti, a Venezuela e a Bulgária.

No caso da Bulgária, o apelo à sua “longa e gloriosa história” (é um dos países mais

antigos da Europa, datando de 681) e a adoção do alfabeto cirílico, padronização que permitiu

a produção literária no vernáculo, tem servido para fortalecer a identidade nacional e a ideia de

comunidade imaginada “que compartilha uma língua, uma nação e uma cultura”30 (NORMAN,

2019, p. 5). A Bulgária, que fez parte da URSS desde 1944 até 1989 e aderiu à União Europeia

em 2007, não se situa nem no centro nem na periferia da economia globalizada. Não podendo

ser visto nem como país colonizador nem como colonizado, a Bulgária se situa em um

“entrelugar”, que, segundo Norman (2019, p. 4), merece ser estudado, por desafiar concepções

estáveis de lugar e sujeito.

Apesar de servir como tônica no debate sobre pertencimento e tradição, a língua

búlgara, ao longo da história do país tem dividido espaço com outras línguas, num contexto

linguisticamente diverso (POLITOV; LOZANOVA, 2015). Norman (2019) identifica, a partir

de uma etnografia com sujeitos búlgaros, performances identitárias que evidenciam duas

tendências: (1) o uso do búlgaro e do alfabeto cirílico como legitimador de uma identidade

búlgara e (2) o uso do inglês e de outras línguas como legitimador de identidades globais. No

caso de Neli, a aluna da Bulgária, como será mostrado nas análises, a posição de um entrelugar

é expressa em sua fala na valorização da língua e da cultura búlgaras, mas também de outras

línguas (espanhol e português) no repertório linguístico-cultural das filhas.

Nos contextos venezuelano e haitiano, é preciso considerar os efeitos de oficialização

da língua colonial na experiência de aprendizagem de língua dos sujeitos oriundos desses

lugares. As ex-colônias espanholas na América Latina, são discursivizadas pela Real Academia

Espanhola como países com línguas levemente diversas (“apenas” no âmbito lexical e

fonológico), ligadas que estariam pela “unidade” do Espanhol peninsular (STANLEY, 2016).

30 “ that shares one nation, one language, and one culture”.

131

A Real Academia Espanhola coloca-se como uma força centralizadora da norma, atuando com

a função de unidade na diversidade”(FANJUL, 2011, p. 308). Essa estratégia é lida como

eminentemente política no cenário global multilíngue (STANLEY, 2016; LAGARES, 2018).

As políticas linguísticas na Espanha encontram mais sentido na reunião de forças a imaginar

uma grande esfera com vários centros, o que, na disputa por normas, em uma estratégia

denominada policêntrica, enfraquece possíveis alianças econômicas (FANJUL, 2011).

Apesar de ser língua materna de mais de 90% da população venezuelana, o espanhol

é apenas uma dentre as várias línguas que coexistem no complexo espaço multilíngue do país,

coexistindo com línguas indígenas e línguas das diásporas estrangeiras (BONDARENKO,

2010). Por sua vez, no Haiti, a língua hegemônica na realidade de uso é o crioulo. Na década

de 1940 foi proposta uma ortografia para o crioulo, que adquiriu um registro ortográfico

semioficial em 1980 (CASSIE, 2012, p. 19-20). Oficializado somente em 1987, o crioulo

haitiano tem sido colocado em posição secundária frente à língua francesa. O francês tem sido,

na realidade haitiana, a língua da escola e das outras instituições desde a independência, em

1804. DeGraff (2017; 2019) chama a atenção para as consequências da desvalorização da língua

do povo haitiano, denominando o processo neocolonial de deslegitimação do crioulo como um

apartheid linguístico, em que os sujeitos foram apartados do direito de usar suas línguas em

espaços como a escola. DeGraff (2019) salienta as consequências negativas para as crianças,

que precisam realizar as práticas escolares em uma língua que não é a de seu conhecimento.

Sobre as escolhas linguísticas oficiais pós-independência na África, Appiah (2018)

ressalta a dificuldade na institucionalização educacional de línguas nas quais não há manuais e

livros didáticos escritos, como é o caso, na América Central, do crioulo haitiano. O autor

também pontua, na decisão de prevalência da língua colonial, uma estratégia de manutenção do

prestígio das elites coloniais. No caso do Haiti, a escola era, em princípio, destinada a uma

pequena parcela da população. Não havia o interesse, então, de que o crioulo fosse uma língua

escolar. A língua francesa no Haiti foi escolhida por uma elite como recurso simbólico de

diferenciação (MARQUES, 2012). Vale lembrar que, ainda hoje, apenas 10% das escolas

haitianas são públicas, em um país em que 80% da população vive com menos de um dólar por

dia (MARQUES, 2012).

Nesses diferentes contextos, na Bulgária, na Venezuela e no Haiti, a despeito de suas

especificidades, é possível afirmar que as alunas participantes desta pesquisa tenham tido

experiências de aprendizagem de língua permeadas por culturas de língua padrão. A partir do

que trazem em suas falas, sobre suas experiências de aprendizagem de língua, são notáveis os

132

efeitos da ideologia da padronização de que trata Miloy (2011), em torno da correção e da

vontade de conhecer a língua “legítima” em português para participarem do novo lugar que

escolheram para viver.

As implicações do engajamento a esses conceitos se dão tanto na produção quanto nas

instâncias de disseminação do conhecimento tido como de mais valor, como a escola. As

consequências se refletem no currículo, que reproduz esses conhecimentos inventados como

simbolicamente mais valiosos (BOURDIEU; PASSERON, 2013), conferindo maior valor às

línguas majoritárias e não aos repertórios individuais dos sujeitos aprendentes. A reprodução e

legitimação pela escola de certos saberes e não de outros também tem implicações para a

subjetividade e para as identidades daqueles grupos que são inscritos “do lado de lá” das

narrativas de tradição (SIGNORINI, 2012; GARCEZ, SCHULZ, 2016; LUCENA, 2020).

Nesse sentido, como sugere Signorini (2006, p. 186) interessa, para o ponto de vista

investigativo do campo aplicado, conduzido nesta pesquisa, abordar:

[...] a língua [como] inextricavelmente enraizada na vida social, nas dinâmicas

de acessibilidade/disponibilidade de padrões sociais e históricos mais gerais,

tais como dispositivos institucionais, protocolos comunicativos, gêneros

discursivos, modelos textuais etc [...] a língua mantida sob controle social,

marcada por bordas e fronteiras, por desigualdades significativas de

repertórios e de possibilidades de acesso, mas também por agenciamentos,

desterritorializações, torções, contaminações e mixagens de todo tipo

(SIGNORINI, 2016, p. 183).

É o que vemos no relato dessas mães que se deslocam de um país para outro, ao

demonstrarem a ambivalência com que atribuem significado para o pertencimento ao grupo, no

novo contexto – principalmente a partir da experiência linguística das filhas, que produzem

sentido utilizando uma mistura de línguas não valorizada pelas mães. Na experiência dessas

mães que emigraram para o Brasil, uma série de questões emerge, tanto em relação aos valores

de línguas e identidades no mercado globalizado que tudo objetifica (SIGNORINI, 2017),

quanto em relação à regulação/construção de um sentido de pertencimento de si e sua prole a

um grupo, em contexto de hospitalidade seletiva.

Para uma reflexão sobre as posições sociais dos sujeitos que concorrem para a

atribuição de legitimidade aos seus usos linguísticos em um dado contexto sócio-histórico

específico, dedico a próxima seção. A partir de dados gerados em campo, são problematizadas

questões concernentes à leitura racial de sujeitos na sociedade brasileira. Trata-se de questões

que influenciam e seguem a influenciar políticas migratórias locais, e que, intersectadas com a

133

leitura de outros marcadores sociais, como as posições de imigrante e de mulher, podem

reforçar estereótipos que regulam o acesso de sujeitos a recursos como empregos, reproduzindo

desigualdades historicamente construídas.

3.6 RAÇA COMO UM SIGNIFICANTE FLUTUANTE

Neste trabalho, a discussão sobre raça se justifica por dois motivos: (1) para a

compreensão de questionamentos de duas participantes da pesquisa sobre os sentidos atribuídos

ao termo negro no contexto sócio-histórico brasileiro e (2) para subsidiar a discussão sobre a

atribuição de legitimidade a sujeitos lidos como pertencentes a certos grupos raciais, em

intersecção com outros marcadores sociais como gênero e nacionalidade.

Nogueira e Maior (2020) observaram, em uma pesquisa com alunos do sétimo ano

fundamental, sobre a constituição identitária negra em uma escola de Maceió, Alagoas, que

alguns alunos se autodenominavam com termos que sugeriam uma tonalidade cromática menor

que a negra. Os autores compreenderam o fenômeno como uma forma de marcar o não

pertencimento ao grupo negro, assumindo identidades de pardo/a ou moreno/a. Nogueira e

Maior (2020) denominaram o procedimento como “branqueamento discursivo”, em referência

à estratégia do branqueamento, que preconizava a mestiçagem como uma possibilidade de

embranquecer a população brasileira (MUNANGA, 2019).

Sales Júnior (2006) pontua que a ideia de uma democracia racial brasileira se manifesta

por meio de um pacto de silêncio entre dominados e dominadores: o não-dito racista. Nesse

acordo implícito, aquele que tematiza o racismo, é, ele próprio, considerado racista, por ousar

ferir a convenção de que as relações raciais se dão harmonicamente. Além do silenciamento,

Sales Júnior (2006) aponta a estigmatização como outra expressão relevante do pacto. Expressa

na linguagem pela reificação do corpo negro, em que, por sinédoque, a parte é tomada pelo

todo. A cor da pele é tomada pelo sujeito negro e este é reduzido a um corpo que, essencializado,

é referenciado como se o atributo cromático lhe conferisse qualidades inerentes. O autor aponta

os pressupostos dessas relações raciais amplamente difundidos na linguagem por meio de

piadas e expressões em que o alvo do chiste é referido em posições desumanizadas, contra as

quais não tem como se defender, uma vez que ataca o princípio mesmo de produção dessa

expressividade: trata-se de uma piada. No entanto, trata-se de uma das formas que indiciam a

lógica de produção de relações desiguais:

134

O não dito é uma técnica de dizer alguma coisa sem, contudo, aceitar a

responsabilidade de tê-la dito, resultando daí a utilização pelo discurso racista

de uma diversidade de recursos tais como implícitos, denegações, discursos

oblíquos, figuras de linguagem, trocadilhos, chistes, frases feitas, provérbios,

piadas e injúria racial, configurando a não intencionalidade da discriminação

racial (SALES JÚNIOR, 2006, p. 257-258, ênfase no original).

O discurso racista se propagaria, assim, de modo velado e justificado no seio das

relações raciais brasileiras. Esse silenciamento, ou não-dito, é caracterizado, também, segundo

o autor, por relações de cordialidade em que a subalternidade dos sujeitos negros é pressuposta

e mascarada por supostas relações afetivas. Essa suposta afetividade aparece, por exemplo, nas

expressões “é de casa”, “é quase da família”, fazendo referência a funcionários cuja

subalternização dos serviços é justificada pela proximidade familiar teatralizada. A cordialidade

estratégica da democracia racial tem no não-dito racista uma saída para escamotear as tensões

raciais e manter a relação de dependência e desigualdade racial. Em relatos de alunas do curso

de português, há um interesse pela apreensão da lógica de funcionamento discursiva e das

relações que a embasam no território brasileiro.

Duas das participantes desta pesquisa, Marlene e Rosario testemunharam correções

que envolviam procedimentos discursivos de invisibilização e de “branqueamento discursivo”.

A Marlene, foi sugerido que o termo negro não fosse utilizado. Já Rosario foi orientada a

substituir o termo por outro que soasse menos ofensivo (foi-lhe proposto usar marrom fofinho

em vez de negro). Considerando o estranhamento das correções sugeridas às alunas, para as

quais o uso do termo negro não se tratava de uma ofensa, importa refletir sobre as cadeias de

conotação que a linguagem de raça ativa, a depender do contexto sócio-histórico em que é

mobilizada.

Segundo Almeida (2018, p. 19), “a noção de raça como referência a distintas

categorias de seres humanos é um fenômeno da modernidade que remonta aos meados do século

XVI”, tendo marcado presença como discurso religioso, depois antropológico e, finalmente,

sociológico (HALL, 1995, p. 6). É somente no século XIX que a noção de raça ganha contornos

deterministas, a partir das aplicações do darwinismo ao campo social (SCHWARCZ, 2012).

Nas palavras da pesquisadora:

Foi só no século XIX que os teóricos do darwinismo racial fizeram dos

atributos externos e fenotípicos elementos essenciais, definidores de

moralidades e do devir dos povos. Vinculados e legitimados pela biologia, a

grande ciência desse século, os modelos darwinistas sociais construíram-se

em instrumentos eficazes para julgar povos e culturas a partir de critérios

135

deterministas e, mais uma vez, o Brasil surgia representado como um grande

exemplo – desta feita, um ‘laboratório racial’. Se o conceito de raça data do

século XVI, as teorias deterministas raciais são ainda mais jovens: surgem em

meados do século XVIII. Além disso, antes de estar vinculado à biologia o

termo compreendia a ideia de ‘grupos ou categorias de pessoas conectadas por

uma origem comum’, não indicando uma reflexão de ordem mais natural

(SCHWARCZ, 2012, p. 20).

Segundo Schwarcz (1994, p. 147-148, ênfase no original), a concepção de sujeito

como “resultado de seu grupo racio-cultural” foi reinserida na Europa do início do século XIX,

“enquanto um princípio de hierarquização em sociedades igualitárias”. A autora destaca o

emprego das pretensas diferenças raciais como pseudoargumento legitimador da desigualdade:

“o dogma racial pode ser de certa forma entendido como um estranho fruto, uma perversão do

Iluminismo humanitarista, que buscava naturalizar a desigualdade em sociedades só

formalmente igualitárias” (SCHWARCZ, 1994, p. 148).

Hall (2003) observa que, na imaginação de uma comunidade, como a concebe

Anderson (2008 [1983]), “um sujeito soberano é sempre imaginado”. Na fantasia iluminista, as

identidades nacionais continuam a ser apresentadas como unificadas (HALL, 2003). Essa

observação importa a esta pesquisa porque, no plano geopolítico de fronteiras cindidas por

regiões, em que a nacionalidade agregaria esse sentido de comunalidade, raça ganha um

substituto cultural – construído discursivamente na forma de um ethos, termo que faz referência

às “características culturais – língua, religião, costume, tradições, sentimento de ‘lugar’, que

são partilhadas por um povo” (HALL, 2006, p. 62). Segundo Hall (2006, p. 63), “essa

substituição [da categoria raça por definições culturais] permite que a raça desempenhe um

papel importante nos discursos sobre nação e identidade nacional”, refletindo-se no modo como

se configuram as relações entre o “nós” e os “outros” dentro de espaços imaginados como

nacionais. Nesse quadro relacional, novos desafios para a constituição identitária são colocados

no encontro com novos fluxos migratórios.

Pensando o funcionamento do conceito de raça enquanto uma categoria discursiva no

contexto diaspórico, Hall (2006, p. 63) entende que a ideia de raça funciona como organizadora

“daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto

frouxo, frequentemente inespecífico, de diferenças em termos de características físicas e

corporais, etc – como marcas simbólicas – a fim de diferenciar um grupo de outro (HALL,

2006, p. 63, ênfase no original). Segundo o autor,

136

[q]uando essas diferenças foram organizadas dentro da linguagem, dentro do

discurso, dentro dos sistemas de sentido, é que podemos dizer que as

diferenças adquiriram sentido e se tornaram fatores da cultura humana e da

regulação de condutas – essa é a natureza do que estou chamando de conceito

discursivo de raça (HALL, 1995, p. 5).

As marcas simbólicas, também denominadas pelo autor de índices visíveis , seriam o

modus operandi da leitura racial, que atua a partir de um quadro de pressupostos que permite a

leitura de um sujeito como integrante de tal ou qual grupo racial (HALL, 1995), ainda que,

como observa o autor, a variação genética no interior dos grupos imaginados como pertencentes

a um determinado grupo racial, é igual, senão maior do que entre grupos presumidamente

distintos (HALL, 2003). O autor ressalta que a organização dessas diferenças é realizada dentro

da linguagem, do discurso, dos sistemas de sentido, ou seja, trata-se de diferenças sócio-

-historicamente situadas e negociadas em cada contexto, tornando-se reguladores de condutas.

Assim, os termos utilizados para caracterizar diferentes grupos raciais não são homogêneos,

nem absolutos.

Para Hall (2003), é preciso considerar que raça é um significante flutuante, por não

possuir um sentido fixo e permitir significações distintas em diferentes contextos sócio-

históricos. O autor cita como exemplo as novas identidades que emergiram na década de 70 ao

redor do significante black no contexto britânico. Essas identidades, atribuídas tanto aos

asiáticos quanto aos africanos, não diziam respeito às comunalidades entre os grupos, mas à

alteridade, servindo para percebê-los como outros, como não-brancos (HALL, 2006). Outro

exemplo que o autor traz para pensar as identidades raciais como sendo relacionais é a

ressignificação do termo negro na Jamaica, com o movimento rastafari, o reggae e Bob Marley.

Toda uma cadeia de conotações negativas, ainda associadas ao período colonial, foi modificada

pela valorização e resgate de elementos africanos, utilizados para compor uma narrativa

identitária em que o termo negro passa a ser considerado como positivo, um índice de

celebração e orgulho. Desse modo, o termo negro funciona “como linguagens que se situam de

formas distintas em diferentes contextos” (HALL, 2003, p. 187).

Considerando o conceito de ideologia como subjacente à enunciação, Hall (2003)

observa a continuidade histórica da ideologia racial:

o ‘pós-colonial’ não sinaliza uma simples sucessão cronológica do tipo

antes/depois. O movimento que vai da colonização aos tempos pós-coloniais

não implica que os problemas do colonialismo foram resolvidos ou sucedidos

por uma época livre de conflitos. Ao contrário, o pós-colonial marca a

passagem de uma configuração ou conjuntura histórica de poder para outra.

137

Problemas de dependência, subdesenvolvimento e marginalização, típicos do

‘alto’ período colonial, persistem no pós-colonial. Contudo, essas relações

são resumidas em uma nova configuração (HALL, 2003, p. 56, ênfase minha).

Partindo do pressuposto de que não há uma supressão estrutural imediata para a

gestação de um quadro de relações inteiramente novo, é possível depreender que as ideologias

que embasam o sistema colonial persistem no pós-colonial:

No passado, eram articuladas como relações desiguais de poder e exploração

entre as sociedades colonizadoras e as colonizadas. Atualmente, essas relações

são deslocadas e reencenadas como lutas entre forças sociais nativas, como

contradições internas e fontes de desestabilização no interior da sociedade

descolonizada, ou entre ela e o sistema global como um todo” (HALL, 2003,

p. 56, ênfase no original).

O que haveria de novo seriam suas vestes. A modificação dos sistemas de produção

não seria por si só capaz de fazer cessar as ideologias que o conformam. Uma vez que a teoria

racial tem destinado a base da pirâmide societal para as populações lidas como negras, importa

perceber quem o termo negro identifica no mundo quando o termo é acionado na linguagem à

luz das relações sociais e econômicas que se estabeleceram/se estabelecem no período que se

quer interpretar.

No período colonial, o termo negro passou a referir-se às populações africanas e

afrodescendentes e conjugava um modo de trabalho e de vida “dependente” e “para o outro”.

A transição do modo de produção escravagista para o trabalho livre no Brasil, ao ter-se se

prolongado por 300 anos, constituiu-se o mais longo sistema de exploração de africanos no

mundo por meio da escravidão. Se a recursividade dos atos é o que forja a noção de cultura

(HALL, 2006), parece sem razão pensar que, passados apenas pouco mais de 100 anos, as

relações sociais e, com elas, os discursos que as fundamentaram tenham se extinguido de todo.

Como observa Schwarcz (2012, p. 37) “a escravidão, em primeiro lugar, legitimou a

inferioridade, que de social tornava-se natural, e, enquanto durou, inibiu qualquer discussão

sobre cidadania”. Afinal, não foi por efeito de uma iluminação e humanização dos

colonizadores brutalizados que a escravatura findou no Brasil, mas por intensa pressão externa

(SCHWARCZ, 2012).

Deste modo, se entendemos raça como um conceito político e econômico que estrutura

as sociedades contemporâneas atravessando todas as suas instituições (ALMEIDA, 2018), é

cabível pensar que o discurso sobre raça se encontra no mesmo eixo de produção dessa

138

configuração social, modificando-se como sistema de significação apenas no tempo, na história

e, como evidencia a suspensão de sentidos providenciados pela experiência diaspórica, também

na geografia (HALL, 2003).

No Brasil atual, os sentidos atribuíveis ao termo negro são ambivalentes. Por um lado,

testemunhamos um uso para atribuição identitária e pertinência a um grupo, ato individual, que

reivindica uma cadeia de conotações positivas para o termo, símbolo de luta e resistência. Por

outro lado, persistem significados negativos associados ao termo que partem tanto do outro,

como dos próprios sujeitos que, assimilados, buscam branquear-se para conquistar lugares

sociais de privilégio (MUNANGA, 2019).

Na Linguística Aplicada brasileira, Nascimento (2019) advoga por uma perspectiva

linguística que compreenda raça como um componente enunciativo:

O sistema perverso de colonialidade, que produziu no Ocidente séculos de

escravidão negreira e dizimação dos povos originários de cada lugar onde se

colonizava, não se deu fora, mas dentro dos sistemas linguísticos. A

capacidade da língua permite ao sujeito muito mais que representar o mundo

[...] se trata também de agir sobre o mundo através dos seus falares

(NASCIMENTO, 2019, p. 44-45, ênfase minha).

Nascimento (2019, p. 11) chama a atenção para a necessidade de problematizar essa

“raça que nos dizem” e essa linguagem que nos racializa, uma vez que a problemática racial é

uma problemática branca, de um grupo que se inventou como neutro a classificar o mundo

como conjuntos de “vários outros”. Nascimento (2019, p. 107) salienta ainda que “a negação

da raça é um produto que passa, variável e invariavelmente, pela língua, quando o negro é

obrigado a se negar, ao menos, discursivamente”.

Melo e Moita Lopes (2015, p. 55) compreendem raça “como uma construção sócio-

-histórica, discursiva e performativa”. Os autores salientam que:

Se considerarmos, por exemplo, a escravidão, veremos que os corpos negros

eram construídos como inferiores aos corpos não negros; já na chamada

democracia racial, a construção discursiva se constituía de atos de fala

performativos de igualdade entre os atores sociais de todas as raças.

Embasados em Foucault (2010), ao tratar dos anormais, podemos dizer que

aquele que menciona o racismo seria considerado o anormal, visto que nos

Discursos sobre a democracia racial, permeiam valores do senso comum de

que o ator social que aborda a questão é compreendido como racista,

problemático ou e/ou portador de alguma condição patológica psicológica.

Por outro lado, na atualidade, tendo em vista os movimentos sociais, negras/os

são também perpassados por Discursos de negritude ou atos de fala

139

performativos de valorização de corpos ébanos (MELO; MOITA LOPES,

2015, p. 57).

Os autores chamam a atenção para a mudança sócio-histórica nos valores atribuídos

aos sujeitos lidos como negros nos discursos raciais no Brasil. Ora permeados por sentidos

pejorativos e negativos, como nos discursos relacionados à escravização, ora relacionados a

sentidos positivos, como nos movimentos sociais afirmativos, também podem ser

invisibilizados, como no discurso da democracia racial do país. No entanto, a despeito da

valorização dos corpos ébanos, Melo e Moita Lopes (2015) pontuam que,

apesar da trajetória de diversos textos sobre a questão racial ao longo dos

séculos, ainda hoje nos deparamos com a precipitação em Discursos locais de

sedimentações sobre, por exemplo, ser negra e morena, em que o primeiro é

construído como ruim [...] a materialidade negra que constitui essas mulheres

seria apagada ou embranquecida para que elas sejam aceitas. Nesse sentido,

tais atos, mascarados de elogios encobertam um racismo e/ou as identificam a

valores que as tornam aceitáveis para uma parte da sociedade (MELO;

MOITA LOPES, 2015, p. 74).

Os autores também apontam para a persistência de discursos raciais que preconizam

procedimentos discursivos de invisibilização e de branqueamento discursivo (NOGUEIRA;

MAIOR, 2020). Melo e Moita Lopes (2015) chamam a atenção para a importância de visibilizar

e compreender “elogios/ofensas que escondem ou escamoteiam preconceitos e racismo” como

processos abertos à ressignificação (MELO; MOITA LOPES, 2015, p. 74). Melo (2015) pontua

a importância de discutir e considerar questões raciais no contexto de ensino de línguas, bem

como de formar professores preparados para lidar com essas questões, considerando discursos

que podem ferir e gerar exclusões.

Melo e Moita Lopes (2015) apontam para a relevância de estudar a questão racial

considerando gênero, sexualidade, classe social etc. Para fazer essa articulação, neste trabalho,

utilizo o conceito de interseccionalidade, a partir de autoras do feminismo negro, atendo-me ao

conceito de imagens de controle.

Collins (2019, p. 460) denomina “imagens de controle” os estereótipos produzidos em

uma matriz de dominação, por ela definida como “a organização geral das relações hierárquicas

de poder em dada sociedade”. Em suas palavras, trata-se de “um arranjo particular de sistemas

interseccionais de opressão, por exemplo, raça, classe social, gênero, sexualidade, situação

migratória, etnia e idade e uma organização particular de seus domínios de poder, por exemplo,

estrutural, disciplinar, hegemônico e interpessoal (COLLINS, 2019, p. 460).

140

A teoria social crítica de Collins (2019) parte do ponto de vista autodefinido de

mulheres negras estadunidenses de todas as classes, intelectuais que produzem conhecimento

como outsiders internas da produção científica dominante. A autora não se limita a nomear os

instrumentos dos quais se vale o pensamento hegemônico para a manutenção das relações

sociais resumidas em uma dada configuração. Ela nomeia também as formas de resistência

desenvolvidas no seio dos grupos de mulheres negras estadunidenses.

As imagens de controle têm servido ao grupo dominante como um instrumento de

coerção a encerrar sujeitos/grupos em posições subalternas na estrutura social a partir do

imaginário sobre esses sujeitos, que se vale dos pressupostos da subjugação colonial como

premissa. No contexto estadunidense, a autora revela:

As imagens de controle surgidas na era da escravidão e ainda hoje aplicadas

às mulheres negras atestam a dimensão ideológica da opressão das

estadunidenses negras. (...) Na cultura estadunidense, as ideologias racista e

sexista permeiam a estrutura social a tal ponto que se tornam hegemônicas, ou

seja, são vistas como naturais, normais, inevitáveis. Nesse contexto, certas

qualidades supostamente relacionadas às mulheres negras são usadas para

justificar a opressão. Desde as mammies, as jezebéis, e as procriadoras do

tempo da escravidão até as sorridentes tias Jemimas das embalagens de massa

para panqueca, passando pelas onipresentes prostitutas negras e pelas mães

que dependem das políticas de assistência social para sobreviver, sempre

presentes na cultura popular contemporânea, os estereótipos negativos

aplicados às afro-americanas têm sido fundamentais para sua opressão.

Tomada em conjunto, a rede supostamente homogênea de economia, política

e ideologia funciona como um sistema altamente eficaz de controle social

destinado a manter as mulheres afro-americanas em um lugar designado e

subordinado. Esse sistema mais amplo de opressão suprime as ideias das

intelectuais negras e protege os interesses e as visões de mundo da elite

masculina branca (COLLINS, 2019, p. 35, ênfase minha).

As imagens de controle que a autora traz à baila para tratar da experiência de mulheres

negras afro-americanas guardam um laço histórico com as produzidas no período colonial. A

autora menciona, como exemplos, as figuras da mulher negra como oposto da mulher universal,

inventada a partir de um ideal branco. A mulher branca seria o sexo frágil, sensível, casta; a

mulher negra seria forte, que tudo aguenta, depravada. Algumas das imagens de controle que

ela enumera são as de dama negra, jezebel, mãe escrava, mammy, prostituta, aberração, animal,

hoochie, matriarca, mula, Tia Jemima, mãe negra superforte e outras (COLLINS, 2019) que se

atualizam como eco colonial.

Ao dar um nome a esse complexo processo de produção de estereótipos e seus efeitos

no imaginário social, Collins (2019) também aborda o modo como as “imagens de controle”

141

são contestadas no interior dos grupos. Por se tratar de definições externas sobre o grupo

subalternizado, produzidas pelo grupo dominante, a autodefinição seria um modo de refutar

essas imagens a partir do “ponto de vista” (standpoint) do próprio grupo. A contestação é uma

chave crítica necessária, e é precisamente a fluidez dos marcadores que permite a modificação

do seu sentido no curso do tempo. Ao analisar os “saberes de resistência” produzidos pelas

mulheres negras estadunidenses como forma de sobrevivência à opressão enquanto grupo pela

análise interseccional que compõe a matriz de opressão naquele país, Collins (2019) abre a

possibilidade de pensar formas de resistência e solidariedade entre outros grupos em outras

configurações sociais e em outras regiões do mundo.

É importante dar visibilidade a imagens de controle que tentam encerrar certos sujeitos

a espaços de subalternidade e indiferença quanto aos direitos humanos; elas precisam ser

discutidas e contestadas. Claitaine teve seus direitos trabalhistas negligenciados em um

contexto que naturaliza a subalternidade e o desrespeito aos direitos trabalhistas de mulheres

negras, limitando o seu acesso à ascensão social (CARNEIRO, 2019). No caso de Claitaine,

por exemplo, apesar de ter sido lesada por um indivíduo, ele agiu dentro de um sistema de

valores que vê os direitos de mulheres negras imigrantes como “naturalmente” menos

relevantes.

É possível uma aproximação epistemológica entre o pensamento de Collins e Hall, que

compartilham a leitura de Gramsci, autor que aponta para outros elementos além da classe

social, como a regionalidade e a nacionalidade, para interpretar a experiência social. Essa

abertura analítica permite considerar raça em relação interseccional com outros marcadores das

experiências humanas na relação com os grupos dominantes. Hall (2003) vê essa fenda na obra

de Gramsci como possibilidade para pensarmos no racismo e no sexismo como ideologias

presentes na diferenciação social. Collins (2019) interpreta esses marcadores como sistemas de

opressão que devem ser analisados e contestados considerando os efeitos de intersecções

mútuas. O conceito de “imagens de controle” de Collins (2019), por sua vez, mostra-se

produtivo para pensarmos na ideia de raça ou no termo “negro” enquanto significantes

flutuantes (HALL, 1995; 2003).

O conceito de interseccionalidade, que permite a reflexão sobre imagens de controle,

foi cunhado no âmbito do direito por Crenshaw (1989) e diz respeito à conjunção de matrizes

de opressão que atuam em conjunto, como classe-raça-gênero. O construto teórico da

interseccionalidade no campo do Direito permite compreender injustiças que não se enquadram

nem somente no âmbito do gênero, nem somente no âmbito racial, mas em posições em que as

142

duas opressões são mutuamente marcadas. A interseccionalidade como crítica social do

feminismo negro está centrada nas experiências de mulheres negras de todas as classes sociais

e nacionalidades, cujos pontos de vista e problemas diferem-se das perspectivas e questões das

mulheres brancas, bem como do feminismo hegemônico (COLLINS, 2019).

Apesar de o conceito ter-se popularizado com as produções de Crenshaw, o construto

teórico é anterior à sua tese. Como colocam Akotirene (2018), Ribeiro (2018; 2019), Collins

(2019), hooks (2019) e outras, o conceito de interseccionalidade remete originariamente a uma

fala de Sojouner Truth intitulada “Não sou eu uma mulher?”, proferida em 1851, em que a

escrava liberta profere o seguinte discurso:

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa

carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas

devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir

numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não

sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu

plantei juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E

não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem

– quando tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou

mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos.

Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E

não sou uma mulher? (DAVIS, 2018)

Com esse questionamento, Truth abre a possibilidade de questionarmos a posição

universal da categoria “mulher” no feminismo hegemônico, ao colocar em contraste os

pressupostos atribuídos à mulher branca de classe média, que não são válidos para mulheres de

outras posições sociais ou com outras experiências. Esse contraste é fundamental na crítica

feminista negra, uma vez que revela que as lutas das mulheres são variadas e que ganham força

e visibilidade quando são circunscritas a posições marcadas não apenas pelo gênero, mas por

questões de classe, de raça, de sexualidade, etc. (DAVIS, 2016; hooks, 2018; COLLINS, 2019;

RIBEIRO, 2018; 2019; CARNEIRO, 2019; GONZÁLEZ, 1988).

No Brasil, os trabalhos de González (1984) e de Carneiro (2019 [1985]) sobre a

interseccionalidade raça-classe-gênero evidenciam o quanto espaços são socialmente

construídos como naturais para mulheres negras. Baseando-se em dados de acesso e

distribuição de renda, Carneiro (2019 [1985]) traça um histórico na sociedade brasileira,

mostrando que a mulher negra tem ocupado o lugar mais baixo na pirâmide social deste país:

A forte presença das mulheres negras na prestação de serviços ratifica que, tal

como no passado pós-abolicionista, essa continua sendo, para as mulheres

143

negras, a principal modalidade de atividades econômicas a que têm acesso,

apesar de estarmos próximas dos cem anos de Abolição da Escravatura e, no

entanto, nem a ‘tradição’ nem o ‘know-how’ que, historicamente, vimos

acumulando em tais funções são suficientes para que ao menos nessas

ocupações as mulheres negras percebam rendimentos semelhantes aos das

mulheres brancas (CARNEIRO, 2019 [1985], p. 36, ênfase no original).

González (1984), além de problematizar questões relacionadas à assimilação do

colonizador no pensamento e atitudes do negro brasileiro, estabelece uma análise que reconhece

as imagens de controle que encerram a mulher negra em papéis bastante específicos no

imaginário discursivo brasileiro, algumas das quais parecem equivalentes às que problematiza

Collins (2019) sobre as afro-americanas. A mulher hiperssexualizada ou a “jezebel” afro-

americana (COLLINS, 2019) corresponderia, aqui no Brasil, à mulata, termo pejorativo que

tem origem na palavra “mula”. A imagem de controle central para pensarmos a mulher negra

haitiana em sua busca por legitimação enquanto falante de português é a imagem de controle

da mulher forte que tudo aguenta, que por tudo passa e que leva o mundo nas costas, uma

espécie de extensão do imaginário colonial da mulher escravizada, que se ocupa dos serviços

gerais, da cozinha e de outros postos precarizados.

Ribeiro (2018) também problematiza discursos identitários brasileiros que se

constroem em torno da mulher negra e do carnaval, questionando os lugares sociais que se

espera que ocupem essas mulheres na sociedade. Como índices de um discurso sedimentado

nas relações sociais, Melo e Ferreira (2017) apresentam a ideia da mulher negra

hiperssexualizada como uma imagem presente na história brasileira desde a escravidão.

Romano e Pizzinato (2019) ressaltam, em pesquisa documental sobre trabalhos

acadêmicos realizados entre 2007 e 2017, que estudos sobre imigrantes mulheres em diferentes

países têm demonstrado que, de modo geral, as mulheres provenientes do Sul Global “estão

sujeitas a trabalhos comumente associados a mulheres: babá, empregada doméstica, costureira,

etc” (ROMANO; PIZZINATO, 2019, p. 205). Segundo os autores, um olhar intereseccional

seria importante para abarcar os “processos de diferenciação e subjetivação” (p. 211) que faltam

nos trabalhos pesquisados de 2007 a 2017.

Na intersecção com outras forças de opressão no esquema raça, classe, gênero, Collins

(2019) aponta como a nacionalidade pode figurar como um deles. A maternidade, do mesmo

modo, também pode figurar como um marcador importante ao estarem no centro as

experiências idealizadas sobre ser mãe. Em uma perspectiva universal, são produzidas imagens

de controle que reforçam uma idealização em torno da experiência de mulheres brancas

heterossexuais e privilegiadas economicamente (COLLINS, 2019).

144

Collins (2019) discute o quanto a maternidade do ponto de vista das mulheres negras

afro-americanas desafia os pressupostos capitalistas que enxergam o filho como uma extensão

da propriedade privada. Segundo a autora, ao enfatizar o papel das redes de criação de crianças

centradas em mulheres,

[o] ideal tradicional de família delega às mães plena responsabilidade pelas

crianças, avaliando seu desempenho conforme sua capacidade de obter os

benefícios de uma família nuclear. No modelo capitalista de mercado, as

mulheres que ‘conquistam’ maridos de papel passado, que vivem em lares

unificados e são capazes de pagar escola particular e aulas de música para os

filhos são consideradas melhores mães que aquelas que não atingem esse

ideal. As afro-americanas que dão continuidade ao cuidado comunitário das

crianças colocam em xeque um pressuposto fundamental do sistema

capitalista: o de que as crianças são ‘propriedade privada’ e podem ser tratadas

como tal. [...] Quando enxergam a comunidade como responsável pela criança

e atribuem a mães de criação e pessoas de fora do ambiente familiar o ‘direito’

de educar a criança, as afro-americanas que endossam esses valores

questionam as relações de propriedade prevalecentes no capitalismo.

(COLLINS, 2019, p. 304-305, ênfase no original)

Na perspectiva afro-centrada, em que o trabalho das mulheres não era circunscrito à

casa e os filhos as acompanhavam no serviço, o produto do trabalho da mulher era levado à

toda a família (COLLINS, 2019). Com o deslocamento forçado e violento de mulheres para a

escravização de seus corpos e dos seus familiares, o lugar das mães negras nas relações de

produção colonial, como sustentáculos de um modo de vida alheio, as apartou de seus filhos,

de suas casas e de seus maridos (COLLINS, 2019).

Para uma consideração da maternidade no contexto desta pesquisa, é preciso estranhar

pressupostos ocidentais e capitalistas que têm naturalizado as relações no seio familiar. Sobre

as diferenças na concepção familiar entre Europa, Estados Unidos e África, Oyewumi (2000),

salienta, por exemplo, que em grande parte da teoria feminista branca, a sociedade é

representada como uma grande família nuclear, composta por um casal e seus/suas filhos/filhas.

Não há lugar para outros adultos. Para as mulheres, nesta configuração, a identidade social da

mulher enquanto esposa é uma definição; outros relacionamentos seriam, na melhor das

hipóteses, secundários. A extensão do universo feminista é, em sua perspectiva, a família

nuclear. Trata-se de uma imagem de controle (COLLINS, 2019) de maternidade que utiliza

como padrão experiências de mulheres anglófonas e norte-americanas brancas,

desconsiderando as redes familiares estendidas que ocorrem, por exemplo, no caso de

mulheres-mães-imigrantes provenientes do Haiti. A partir de diferentes pontos de vista e

145

lugares sociais, as participantes da pesquisa revelam como a maternidade é vivida de maneira

singular em suas vidas.

No que tange ao ensino de línguas, o comprometimento com uma prática de liberdade

na sala de aula multicultural (hooks, 2017) antirracista envolve atenção à elaboração de

materiais didáticos que não reproduzam imagens de controle (COLLINS, 2019). Além disso,

faz-se necessário o preparo de professores para a abordagem de temas importantes da realidade

social em que vivem. Segundo Ferreira,

[...] ensinar língua inglesa (ou outra língua estrangeira e ou adicional) [é]

colocar as questões que estão pulsando na sociedade como centrais para o

ensino de língua inglesa, [...] aprender e ensinar língua inglesa [é] ouvir as

necessidades dos alunos e, a partir daí, discutir educação linguística crítica

(FERREIRA, 2012, p. 41).

A pesquisadora tem produzido relevante material em torno do tema racial, em

perspectiva crítica e interseccional a conjugar os marcadores raça, gênero, etnia, classe e outros.

No caso específico da formação de professores para o ensino de PLAc, importa problematizar,

na acepção de acolhimento como hospitalidade, que determinadas imagens de controle podem

dificultar a conquista de legitimidade nos usos linguísticos de sujeitos, para além dos obstáculos

da língua, comumente mencionados como principal elemento de dificuldade nos

deslocamentos. Com essas ressalvas, importa deslocar o olhar de generalizações e enfocar a

especificidade de experiências maternas diaspóricas que são, como mostram as alunas

participantes da pesquisa, singulares, delineadas a partir de suas urgências e possibilidades de

esperar ou não para fazer valer suas buscas no novo local.

Tendo apresentado o construto teórico, passo a apresentar, no próximo capítulo, como

a busca por legitimidade de falantes de português se dá, como as fronteiras se colocam nessa

busca, e como, e em que situações, as participantes conseguem “dar certo em português”.

146

4 “COMO DAR CERTO” EM PORTUGUÊS?

Neste capítulo de análises, evidencio as necessidades e os projetos pautados pelas

participantes da pesquisa. Interpreto e discuto como a linguagem está implicada em suas buscas

por legitimidade enquanto falantes de português (SIGNORINI, 2006). Enfoco os significados

que as alunas atribuem ao seu repertório linguístico cultural, evidenciando como o processo de

tradução envolve negociar sentidos, contestar significados, discutir ideologias, identificar

valores comumente associados a formas linguísticas. Todas essas questões contribuem para o

processo de constituição de identidades híbridas (HALL, 2006) e são perpassadas por imagens

de controle (COLLINS, 2019) presentes no imaginário social dos seus interlocutores

(BAKHTIN, 2010).

Com o intuito de evidenciar suas buscas e contribuir para reflexões sobre

“acolhimento” no ensino de língua portuguesa no âmbito da LA, saliento quais significados as

participantes da pesquisa atribuem aos usos linguísticos que almejam e que requerem em suas

práticas sociais cotidianas, bem como as tensões que surgem no processo de aprendizagem.

Esses significados e questões devem ser considerados e enfocados na sala de aula.

4.1 “VAI DEMORAR MUITO... EU NÃO POSSO FICAR SEM TRABALHO”:

PRÁTICAS DE LINGUAGEM DE ENFRENTAMENTO FRENTE ÀS

URGÊNCIAS COTIDIANAS

Nesta seção, apresento duas questões que configuram os projetos das alunas e, por

conseguinte, suas necessidades de aprendizagem linguística de modos distintos: a busca por

legitimidade na reivindicação de seus direitos frente às fronteiras impostas em suas práticas

cotidianas e a relação com o tempo na forma de pressa, espera e dificuldade de divisão,

relacionadas à maternidade, ao trabalho, ao estudo e à rede de apoio em Florianópolis.

Na subseção 4.1.1, discuto os obstáculos para a igualdade mínima de condições entre

os falantes (SIGNORINI, 2006), na forma de imagens de controle (COLLINS, 2019) de

imigrantes como ameaçadores à estabilidade econômica do país (CAVALCANTI, 2019;

COGO; SILVA, 2017), a partir de situações que trazem Claitaine e Marlene. Argumento que

essas imagens de controle se interpõem à atribuição de legitimidade às alunas. Em suas

enunciações, solicitam o desenvolvimento de recursos linguísticos de enfrentamento para

situações cotidianas.

147

Na subseção 4.1.2, enfoco o tempo como outra questão relevante a configurar as

práticas das alunas. Frequentemente citando o tempo como uma constrição em suas buscas, ao

relatarem esforços para dividir o tempo em suas diásporas maternas, a pressa para aprender

português a fim de alcançar outros espaços sociais e a possibilidade ou exigência da espera,

essas mulheres permitem-nos perceber o quanto essa distribuição de atividades no tempo a elas

disponível pressupõe e requer configurações singulares para a aprendizagem que almejam e

necessitam na língua(gem).

4.1.1 “Infelizmente, não podemos fazer nada!”: traços de uma hospitalidade

seletiva

Nesta subseção, enfoco situações vivenciadas por Marlene e Claitiane, cujo intuito

discursivo (BAKHTIN, 1997) é o mesmo: a reivindicação de direitos. A partir de relatos que

me trazem, discuto a sensação de “afasia” das alunas, apontando a importância do

desenvolvimento de recursos linguístico-discursivos de enfrentamento em esferas de circulação

institucionais. Em busca por legitimidade em seus usos situados no novo cenário (SIGNORINI,

2006), no contexto do curso de língua portuguesa, Marlene apresenta uma solução criativa e

contestatória do que interpreto como imagens de controle (COLLINS, 2019) sobre a presença

de imigrantes nesses diferentes espaços, indiciados, dentre outras questões, pelos seus usos

linguísticos: precisam aprender a “brigar em português”.

No excerto abaixo, as aspas não correspondem às palavras literais de Marlene,

considerando que esse é um trecho de diário, apresentado aqui em forma de vinheta. A primeira

das enunciações (BAKHTIN, 1997) que trago é de um relato de Marlene, realizado no dia

29/09/2018 e registrado posteriormente, por mim, em diário de campo:

Marlene contou uma história sobre ter que ir reclamar em uma loja sobre o

defeito de um produto. Ela disse que, ao conversar com o vendedor, entendia

tudo o que a pessoa dizia, mas que quando tentava falar, não saía nada. Como

resposta, a pessoa [vendedor] dizia: “Infelizmente, não podemos fazer nada”.

Marlene disse ter ficado muito frustrada por não saber brigar em português,

ainda que tenha ficado feliz em perceber que conseguia entender tudo o que

ele [o vendedor] dizia (Trecho do diário de campo elaborado no dia

29/09/2018).

Ao enunciar o relato em sala de aula, Marlene encenou a interação, interpretando a si

própria como emudecida em tentativas abortadas de reivindicar o reparo de seu produto. Como

respostas às suas tentativas de dizer algo, imitava o personagem do vendedor, utilizando um

148

tom de voz monótono para articular o enunciado “Infelizmente, não podemos fazer nada”,

repetido várias vezes pela aluna e seguido de gestos de balbucio que ela própria fazia como

resposta ao enunciado limitante.

O enunciado do vendedor “Infelizmente, não podemos fazer nada” não pode ser

interpretado unicamente como fruto de uma intenção individual (BAKHTIN, 1997). Bakhtin

chama atenção para um gama de gêneros discursivos que apresentam formas “tão padronizadas

que o querer-dizer [ou intuito discursivo] individual do locutor quase que só pode manifestar-se

na escolha do gênero, cuja expressividade de entonação não deixa de influir na escolha”

(BAKHTIN, 1997, p. 302, ênfase minha). Trata-se de formas estáveis de enunciados

(BAKHTIN, 1997). Interpreto que “Infelizmente, não podemos fazer nada” pode ser

considerado como um tipo de enunciado de forma padronizada e estável, típica de esferas de

circulação de discursos como o comércio varejista, em que o funcionário pode se valer de um

“nós” corporativo para barrar uma reivindicação. Nesse enunciado, de tipo fixo, responde à

solicitação de Marlene mostrando-se impossibilitado de levar a cabo a ação reivindicada – no

caso, a troca de um dado produto. Ao enunciar, a partir desse “nós” corporativo, o vendedor

posiciona uma fronteira discursiva para Marlene, um ponto final no diálogo. O enunciado

“Infelizmente, não podemos fazer nada” é dirigido à Marlene como uma espécie de escudo

discursivo, usado com o intuito de conter o diálogo reivindicatório.

Marlene se viu “afásica” (SIGNORINI, 2006) frente ao vendedor, por não atender aos

“usos da língua considerados legítimos” naquele contexto em específico (SIGNORINI, 2006,

p. 177). A aluna respondeu ao enunciado do vendedor posteriormente, ao levar o caso em forma

de queixa à sala de aula, quando disse que precisa aprender a “brigar em português” (Trecho

do diário de campo elaborado no dia 29/09/2018). A resposta da aluna toma o caráter de um

diagnóstico preciso das suas necessidades de aprendizagem linguístico-discursivas. Ela se vê

sem o domínio do repertório de gêneros dessa esfera discursiva, na qual brigar pelo atendimento

à reivindicação seria a forma de manifestar seu intuito discursivo.

Com seu diagnóstico, Marlene chama atenção para o caráter nem sempre colaborativo

e pacífico da interlocução, pontuando a necessidade de dominar gêneros discursivos para o

enfrentamento em uma esfera de circulação de enunciados – o comércio varejista – em que nem

sempre a voz da consumidora será levada em consideração. A aluna demanda recursos

linguísticos que a auxiliem a realizar seu intuito discursivo (BAKHTIN, 1997). O diagnóstico

da aluna conclui que, em um ambiente em que seus direitos de cidadã não são atendidos, é

preciso reivindicá-los de modo mais enfático. Marlene sugere alternativas para um trabalho

149

singularizado com a língua(gem) em sala de aula, a partir de suas próprias buscas e entraves na

comunicação em Florianópolis, pontuando intenções comunicativas específicas a partir das

quais pode ser pensado o trabalho com língua(gem) na sala de aula.

O seu caso é semelhante ao de Claitaine, que também encontrou dificuldades para

realizar uma reivindicação em uma instituição em Florianópolis. Claitane entrou em contato

comigo informando que seu empregador não pagava seu salário havia dois meses e que ela

desejava denunciá-lo, reclamando o pagamento de seu salário na justiça. Claitaine já tinha ido

cobrar o patrão duas vezes. Ele prometia pagar-lhe, mas não o fazia. Ela, então, solicitou a

minha ajuda para saber como proceder à denúncia no Ministério do Trabalho. Lá nos

informamos sobre os horários de atendimento. No outro dia pela manhã, bem cedo, Claitaine

foi sozinha à instituição trabalhista. Dias depois, perguntei se ela havia conseguido fazer a

denúncia, conforme mostro na mensagem de aplicativo, reproduzida abaixo:

Figura 3 – Mensagem de WhatsApp

Fonte: Arquivo pessoal

[ÁUDIO] Claitaine: Oi, professora. Não, ele me falou ele não pôs fazer nada

pra mim. Só na sindicá eu possa ir pra ver se ele pôs consegui alguma coisa.

(Claitaine, em mensagem de áudio por WhatsApp do dia 19/03/2019)

Assim como no caso de Marlene, Claitaine relata necessidades de aprendizagem de

gêneros cujos intuitos discursivos também envolvem a reivindicação de direitos. No caso de

Claitaine, direitos trabalhistas. Ao ver-se desrespeitada juridicamente, pede auxílio à professora

150

de português. Em sua solicitação, está implícito que compreende a necessidade de mobilizar

recursos linguísticos específicos para realizar o intuito discursivo (reivindicação) em uma esfera

discursiva específica (justiça institucional), a qual deseja dominar, ainda que não o coloque

nesses termos. É preciso dizer que as necessidades comunicativas dessas alunas estão em tal

grau vinculadas às urgências de suas vidas que suas buscas pela aprendizagem de recursos

linguísticos não se circunscrevem nem se limitam ao espaço-tempo da aula de português.

A importância de dominar essas habilidades linguístico-discursivas, para Claitaine, era

tamanha que a aluna me procurou em março, antes do início do segundo semestre do curso de

português, pois precisava de recursos linguísticos que lhe permitissem materializar seu intuito

discursivo de forma urgente. Era preciso reivindicar o investimento de seu tempo e de sua mão

de obra no trabalho realizado, motivo principal de seu deslocamento ao Brasil. Seu dinheiro,

além de fonte de subsistência para si, deveria ser destinado às remessas que seriam enviadas a

seus filhos e a seu pai no Haiti.

Como pontuam São Bernardo e Barbosa (2018), as necessidades dos aprendizes de

PLAc nem sempre estão de acordo com seus desejos, pois se trata de urgências de

aprendizagem, configurando um ensino em que o domínio de gêneros discursivos em uma

esfera de atividades específica pode fazer uma diferença substancial nas condições básicas de

vida dessas mulheres. Não é uma novidade que usos linguísticos específicos fazem diferença

nas vidas de pessoas. No caso desta pesquisa, importa apontar quais são essas necessidades.

Considerando, com Bakhtin (1997; 2010), o caráter social do enunciado, importa

lembramos que a enunciação se articula no espaço entre dois interagentes, personificados

enquanto auditórios sociais, atravessados por ideologias sustentadas por grupos específicos

(BAKHTIN, 2010). A palavra no seio de uma interação torna-se um signo ideológico por ser

capaz de conferir intenções e valorações a certos grupos sociais, a partir um horizonte de ideias

socialmente sedimentadas sobre eles (BAKHTIN, 2010). Essas ideias podem variar conforme

uma variedade de fatores, como a hierarquia, o gênero, a classe social e – da forma como

compreendo as cenas de Marlene e Claitaine – a nacionalidade do interlocutor, indiciada pela

língua(gem) e pela cor da pele.

Se é certo que “toda enunciação é socialmente dirigida” (BAKHTIN, 2010, p. 118), e

que a materialização da palavra em signo se dá a partir de um horizonte apreciativo de um grupo

social com o qual o interlocutor guarda afinidades, ou seja, um “nós” ideológico, cabe perguntar

que horizontes possíveis de significado impediriam à Marlene-consumidora, uma senhora

latino-americana branca, ter a reivindicação de seu produto defeituoso acolhida pelo atendente

151

como fala legítima. Do mesmo modo, importa discutirmos que, no horizonte apreciativo de

certos grupos, a exploração da força de trabalho de mulheres negras e a consequente

subalternização de seus postos de trabalho foi de tal modo naturalizada, que seus direitos

trabalhistas são frequentemente violados. No caso protagonizado por Claitaine, imagens de

controle de mulheres negras naturalizadas em postos precarizados de trabalho no Brasil

(CARNEIRO, 2018) intensificam a sua força de opressão quando interseccionadas à sua

posição de migrante, considerando que imigrantes de países como o Haiti têm sido, na última

década, seguidamente vozeados como ameaças ao mercado de trabalho, no contexto de uma

crise econômica nacional (CAVALCANTI, 2019). No caso de Claitaine, os marcadores de raça,

gênero, classe e nacionalidade interseccionados podem configurar uma posição social em que

é preciso desenvolver com muita rapidez habilidades de enfrentamento na língua portuguesa.

Interpreto que, nas duas cenas de reivindicação, a falta de acolhimento está associada

a imagens de controle de imigrantes que alimentam o horizonte de apreciação dessas mulheres

como sujeitos não pertencentes à cena local. Marlene e Claitaine podem ter sido lidas como

haules, não pertencentes à partilha dos autorizados à fala, aos direitos dos “porta-vozes”

(SIGNORINI, 2006) e, por isso, talvez, não tenham sido consideradas como cidadãs.

É preciso lembrar que Marlene e Claitaine chegaram ao Brasil, em 2018, um ano

eleitoral no país. Vivia-se uma polarização no debate político brasileiro. A aceleração do fluxo

de pessoas pelo mundo causava tensões no planejamento encerrado em fronteiras nacionais.

Notícias de barcos de imigrantes que afundavam e de artistas plásticos que retratam essas cenas

com esculturas de pessoas no fundo do mar, a representar e homenagear as que não

completaram a travessia, denunciam a recusa de determinados países em receber certos

contingentes populacionais que se deslocavam por distintos motivos. Zonas de xenofobia eram

acionadas na América Latina, em resposta à crise da Venezuela, e sujeitos passavam a ser lidos

e silenciados, a partir de sua nacionalidade. Suas atitudes eram e continuam sendo julgadas

como atitudes de todo o grupo nacional ao qual pertencem.

Não se trata aí de uma questão identitária, mas de como os discursos, organizados de

um dado modo, assumem o papel de significados cristalizados no intervalo de um dado tempo

histórico (BAKHTIN, 2010). A ideia de haver uma inextricabilidade na associação

língua-território-cultura-nação, disseminada no senso comum, marca, ao mesmo tempo, zonas

de pertencimento e zonas de não-pertencimento. Trata-se de perceber o quanto imagens de

controle encerram certos corpos em zonas de subalternidade (COLLINS, 2019), conferindo

status de “afasia” e ilegitimidade linguística (SIGNORINI, 2006) em usos reivindicatórios de

152

direitos, como nos casos das alunas acima, nos papéis de consumidora e trabalhadora,

respectivamente.

O processo metonímico de aplicar a apreciação sobre o status de um sujeito à sua fala

levaria da deslegitimação do sujeito à deslegitimação de sua fala (MILROY, 2011;

SIGNORINI, 2006). Tomo esse procedimento como ponto de partida das enunciações em

análise, em que o status atribuído ao imigrante e refugiado pode estar sendo estendido à

apreciação da sua fala como ilegítima na ordem sociocultural e linguística vigente.

Considerando imagens de controle de imigrantes como invasores, fugitivos (COGO;

SILVA, 2017) e ameaçadores (CAVALCANTI, 2019), interpreto o enunciado “Infelizmente,

eu não posso fazer nada”, junto à paráfrase de Claitaine sobre a nulidade de sua ação no

Ministério Público – “ele não pôs fazer nada pla mim” – como respostas estruturais de parte da

própria sociedade brasileira. Tais respostas estão em consonância com um projeto discursivo

de exclusão que confere o caráter de ilegitimidade aos usos linguísticos a certos grupos de

sujeitos deslocados de seus locais de origem, como metonímia da ilegitimidade conferida aos

próprios sujeitos, emudecendo-os (SIGNORINI, 2006), privando-os de um certo espaço de

cidadania.

Importa salientar que o relato de Marlene não se tratou de um caso isolado em

experiências da aluna fora do seu país. Em outro momento, Marlene compartilhou um relato de

sua experiência no Equador, local da sua primeira migração, para onde a aluna deslocou-se

antes de vir para o Brasil. No Equador, a imagem de venezuelanos era de tal forma negativa,

que Marlene se via compelida a adotar uma camuflagem sob a capa de uma nacionalidade bem

quista aquele espaço, de modo a não sofrer violências. Essa “diferença”, indiciada pela

linguagem oral/verbal, também está relacionada a imagens de controle de venezuelanas e

venezuelanos como invasores no Equador, materializadas em ataques xenófobos e em políticas

de suspensão de fronteira que dificultam a sua entrada no país31.

Compreendo que Marlene e Claitaine tiveram suas falas tomadas como ilegítimas, ao

terem suas posições sociais de falantes interseccionadas por diferentes marcadores associados

a imagens de controle: 1. de imigrantes como invasores, como no caso de Marlene; 2. de

mulheres negras como sujeitos indignos de respeito quanto aos direitos trabalhistas. Como

discute Signorini (2006, p. 177), “diferentes graus de invisibilidade e afasia são conferidos a

31 Cf. JIMENEZ, C.; MURILO, A.; CASTRO, M. Êxodo da Venezuela e Nicarágua provoca surtos xenófobos na

região: a pressão migratória em países em delicado equilíbrio está dando origem a uma situação muito complexa

do ponto de vista da segurança. El País, 20 ago. 2018. Disponível em:

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/19/internacional/1534701044_585193.html. Acesso em: 29/04/2021.

153

grupos socioculturalmente desprestigiados em contextos institucionais significativos”. É

precisamente o caso que vemos com Claitaine e Marlene.

A partir de conhecimentos desenvolvidos em sua experiência o Equador, a aluna, em

sua perspicácia política, utiliza recursos criativos e específicos em cada um dos países. No

Equador, ela ativa o amálgama língua-cultura-território, que atua em sua autoidentificação

como não-venezuelana, para passar a ser benquista socialmente enquanto colombiana. No

Brasil, Marlene compreende que necessita do domínio de gêneros discursivos em que possa

valer-se de seus intuitos discursivos de enfrentamento na língua majoritária local, conhecimento

que busca no curso de língua portuguesa.

As saídas criativas que a aluna relata, em soluções diferentes para cada contexto,

respondem a diferentes imagens de controle que inventam certos corpos como indesejáveis, a

partir de diferentes marcadores em conjunção com o de pertencimento nacional. No entanto, é

preciso refletir sobre a nacionalidade, não como uma identidade, muito menos como identidade

fixa, mas como um sentido construído socialmente que privilegiou alguns grupos em detrimento

de outros e que, como toda invenção, trata-se de material também contestável (COLLINS,

2019).

Ora, se é a partir de ideias sedimentadas sobre os diferentes grupos que os

subdividimos em nosso imaginário social (BAKHTIN, 2010), é preciso levar em consideração

quais grupos são consideramos legítimos e quais não o são da partilha nacional de bens

simbólicos socialmente prestigiados (SIGNORINI, 2006). Nessa especulação, a classe social,

a raça, a nacionalidade e a língua aparecem interseccionados em imagens de controle de sujeitos

imigrantes como não pertencentes a essa partilha. Essas imagens de controle podem operar

como produtores de ilegitimidade de sujeitos e de suas enunciações, se as ideias sedimentadas

sobre esses grupos quanto ao não pertencimento à partilha da língua e dos direitos estiver no

horizonte apreciativo de um sujeito, como um vendedor ou um empresário em Florianópolis,

ou um cidadão no Equador.

Nesta subseção, apresentei traços de uma ordem sociocultural e linguística excludente

de certos sujeitos da partilha pela legitimidade enunciativa (SIGNORINI, 2006). Discuti essa

atribuição como um reflexo da ilegitimidade atribuída aos sujeitos imigrantes a partir de

imagens de controle sobre seu lugar social (COLLINS, 2019). A partir de necessidades

apresentadas pelas próprias alunas, os intuitos discursivos de enfrentamento, ressaltei a

importância de considerarmos a sugestão de Marlene para o trabalho em português na

154

perspectiva do acolhimento, considerando o ambiente discursivo nem sempre aberto às suas

reivindicações e buscas.

Na próxima subseção, reuni enunciações das alunas que pontuavam outro importante

aspecto a ser considerado no acolhimento às necessidades linguístico-discursivas das alunas

imigrantes: o tempo. Referida no âmbito da espera, da carência (a falta de tempo) ou da

aceleração (a pressa ou urgência), a relação com o tempo tem frequente menção nas buscas das

alunas, configurando necessidades singulares de aprendizagem da língua(gem) no contexto de

suas vidas.

4.1.2 “Tengo pressa de estudiar el português, muita pressa!”: a relativização das

identidades e das necessidades frente à compressão do espaço-tempo

No contexto diaspórico de Marlene, Claitaine, Rosario e Neli, além das reivindicações

que precisam fazer, suas necessidades de aprendizagem são configuradas a partir de outra

característica relevante: a necessidade/dificuldade de “dividir [o] tempo” (Rosario em

transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Hall (2006, p. 80-81) salienta que “as identidades culturais estão, em toda parte, sendo

relativizadas pelo impacto da compressão espaço-tempo”. Nos relatos dessas mulheres, em suas

articulações nas configurações desse novo tempo-espaço, essa divisão de tempo está

relacionada ao trabalho, aos estudos e à maternidade. Suas esperas e urgências no novo contexto

configuram os recursos linguístico-discursivos necessários para a realização das distintas

atividades que precisam ou que projetam realizar, evidenciando esferas de circulação de

gêneros discursivos específicos (BAKHTIN, 1997), que importam ser considerados na

perspectiva de acolhimento às suas especificidades de aprendizagem. Nesta análise, ressalto

que a intersecção de diferentes marcadores sociais (COLLINS, 2019) coloca algumas das

alunas em situações nas quais a necessidade se interpõe à possibilidade de projetar.

Como vimos na subseção anterior, Marlene solicita a aprendizagem de um recurso

linguístico-discursivo em sala de aula como resposta à negativa do funcionário do Ministério

do Trabalho. De modo diferente a Marlene, Claitaine interpõe a seu intuito reivindicatório o

que a ela era mais urgente: a busca por trabalho. Após tomar conhecimento de que, no

Ministério do Trabalho, Claitaine não poderia reclamar seu dinheiro, verifiquei junto ao

CRAI-SC como proceder. Lá, Ricardo me informou que, nesse caso específico, o Sindicato

para contato seria o de Bares e Restaurantes de Florianópolis e que, se ela precisasse, o

155

CRAI-SC poderia conseguir um advogado para a sua causa trabalhista. Agradeci e encaminhei

as notícias à Claitaine. Porém, ela havia desistido de fazer a denúncia:

Figura 4 – Mensagem de WhatsApp

Fonte: Arquivo pessoal

Figura 5 – Mensagem de WhatsApp

Fonte: Arquivo pessoal

[ÁUDIO] Claitaine: Oi, professora, ... Aí, eu deixou esse assunto. O rapaz que

me atendeu, ele me falou ... posso demorar seis meses, sete meses pra

conseguir dinheiro. Vai demorar muito, porque eu preciso minha carteira de

trabalho. Eu não posso ficar sem trabalho. Mas eu deixar o dinheiro pra ele se

ele não quer me pagar. Eu vou trazer a minha carteira pra que ele abaixe a

minha carteira... Vou deixar... Não tem problema... Eu vou... continuar,

arrumar um outro emprego. Eu vou ver se eu posso arrumar um outro emprego

e trazer minha carteira pra ele desassinar. Vai demorar muito essa

procedimento, vai demorar muito. Eu não posso ficar seis meses sem trabalho,

não posso. Eu preciso arrumar outro emprego. (Claitaine, em mensagem de

áudio por WhatsApp do dia 25/03/2019).

A urgência de Claitaine é tamanha que a aluna desiste de reivindicar seus direitos para,

segundo coloca, continuar sua busca, em suma, arrumar outro emprego. A necessidade de

conseguir um trabalho rapidamente (“eu preciso arrumar outro emprego”) é expressa por meio

da indicação do tempo em seu relato: em locuções verbais seguidas de advérbios de intensidade,

com numerais e a referência a meses que indicam o intervalo desse tempo: “vai demorar”,

“muito”, “seis meses”, “sete meses”. Demora a que ela se opõe, com sua pressa: “eu não posso

ficar seis meses sem trabalho, não posso”. Claitaine não pode esperar.

156

Outro elemento simbólico importante de seu enunciado é a figura divina que a auxilia

a dar significados a esses silenciamentos, aos obstáculos do caminho e à sua espera. Claitaine

encontra conforto em um Deus que, em seu entendimento, fará o papel da justiça: “vou deixar

Deus saber tudo”. No áudio, a voz de Claitaine é calma e pausada. A tranquilidade e a confiança

da aluna, ela atribui ao tempo da justiça divina: “vou deixar tudo com Deus”. Ao justificar o

encaminhamento dado ao seu intuito discursivo reivindicatório, compartilha comigo que esse

seu querer-dizer (BAKHTIN, 1997) teve seu lugar tomado pela sua urgência por trabalho.

A urgência de sua busca reconfigura as necessidades linguístico-discursivas da aluna

que, na mesma conversa, solicita auxílio para envio de seu currículo digitalizado por e-mail:

Figura 6 – Troca de mensagens por WhatsApp

Fonte: Arquivo pessoal

157

Figura 7 – Troca de mensagens por WhatsApp

Fonte: Arquivo pessoal

No entanto, Claitaine não conseguiu enviar o arquivo de seu currículo pelo celular,

evidenciando essa como uma necessidade de aprendizagem importante para a sua busca por

emprego. No papel professora de português, eu me vi na obrigação de acolher essa demanda,

indo ao encontro de Claitaine.

O currículo, gênero do discurso ligado à esfera do trabalho, foi um documento

mencionado em diferentes momentos do curso por Claitaine. Na primeira conversa que tivemos,

no primeiro dia do curso, a aluna me deu uma cópia de seu currículo impresso, relatando a

necessidade de trabalho e a distância dos filhos, que estavam no Haiti. O documento foi

novamente mencionado quando voltávamos do Ministério do Trabalho. Na ocasião, Claitaine

me perguntou sobre a necessidade de atualizar o seu currículo para a busca empregatícia. A

conversa ilustrada acima, diz respeito ao momento em que se vê, novamente, em busca de

trabalho. Para a condução de sua busca por trabalho, o gênero discursivo currículo revelou-se

importante. As frequentes menções de Claitaine e o interesse na esfera do trabalho por outras

mães participantes do curso influenciaram a elaboração do material didático no segundo

semestre (2019/2).

A busca por oportunidades de trabalho marca a presença de Claitaine no Brasil. A

denúncia e a busca por justiça são colocadas no âmbito da espera; a busca por trabalho, no

âmbito da urgência. A urgência e a espera têm significados diferentes para cada uma das alunas

do curso. Diferentemente de Claitaine, para a qual o trabalho é uma urgência, delineando suas

necessidades de aprendizagem, para Neli, o trabalho é almejado enquanto um facilitador da

158

aprendizagem da língua. Não se trata de uma necessidade de subsistência, nem configura o

motivo central de seu deslocamento, trata-se de um projeto:

Neli: eu tem muito vontade de trabalhar, de verdade, mas... na meu caso, não

é urgente, não é preciso para sobreviver. Eu tenho vontade porque estoy

cansada de ficar na casa. Antes, trabalhava muito. (Neli, em transcrição de

áudio do dia 15/06/2019)

Neli coloca seus planos em relação ao trabalho e aos estudos no âmbito de uma espera.

Em seu planejamento, também se configuram necessidades linguístico-discursivas em esferas

de atividades distintas:

Neli: Eu tem que ser mais... se comunicar mais. Já tem que achar um trabalho

para comunicar com pessoa. Meu comunicacione é bem fraca, de verdade

porque não tenho com quem... conversar. Umas coisas: “bom dia”, “tudo

bem”, “que fazer hoje”, bem simples, assim, sabe? (...) Tenho necessidade [de

conversar com as pessoas], só que esperando esses dois [as filhas] entram na

creche [...] eu vá buscar algum trabalho. Assim, vai ser mais efectivo [...] Meu

marido, quando volta, ele vai cuidar elas, para passear, e eu vai ter tiempo para

estudiar [...] Eu quero trabalhar, eu quero trabalhar com comunidade, pessoas

que trabalham na comunidade... Porque minhas vizinhas tá mais ou menos na

casa, não faz nada diferentes ou uma comida, essas coisas, pro seu filho,

muitas coisas para aprender [...] Eles está, como se diz, pescadores, homem

fala só para peixe, não tem muitos interesses diferentes, muitas conversas

diferentes [...] Aprender mais português para estudiar (Neli, em transcrição de

áudio do dia 10/11/2018)

Na espera pela volta do marido, pelo encaminhamento das filhas à creche, pelo

aprimoramento de seus recursos linguístico-discursivos para dar continuidade aos seus estudos,

as necessidades de aprendizagem da língua portuguesa estão dirigidas às esferas discursivas

laboral e universitária, que se opõem à esfera das conversas “bem simples” de seu cotidiano,

como coloca. Neli projeta uma aprendizagem de língua portuguesa que a permita ter “conversas

diferentes”. A aluna pode esperar pelo trabalho.

Na produção textual do dia 08/06/2019, em que foi proposta uma produção textual

escrita autobiográfica, ela menciona o projeto de retomar os estudos acadêmicos na área de

Filosofia ou Sociologia: “Eu tem muita vontage de estudar psihologia ou sociológica e depois

trabalhar e ajudar pesoas com dificuldades” (Neli em produção textual escrita do dia

08/06/2019). Portanto, esse “aprender mais português para estudiar” requer o conhecimento de

gêneros mais relacionados à esfera discursiva universitária. Esse projeto é apresentado em uma

produção textual do final do primeiro módulo, Falando sobre mim/Pale de mwen, já próximo

159

ao término do curso. A impossibilidade de voltar o curso a essa necessidade da aluna já nas

semanas finais de trabalho, sugere a importância de ter sido feito um levantamento de

necessidades das alunas, já no início do semestre do curso, em conversas individuais dirigidas

às suas buscas que delineassem os materiais de forma mais contundente. A irregularidade na

presença em contextos de ensino de português a imigrantes, pontuada por estudos como o de

Goulart (2015), de Andriguetti et al (2017) e de Ruano (2019), pode se mostrar um entrave a

tal planejamento. No entanto, no caso do curso de português para mães imigrantes, Claitane e

Neli foram as duas alunas únicas que participaram dos dois módulos do curso, podendo o ensino

ter sido configurado a partir de suas necessidades e buscas em comum, como foi o caso no que

tange a gêneros discursivos da esfera do trabalho.

No caso de Marlene, a aluna afirma ter “pressa” para estudar a língua portuguesa,

apresentando-se frustrada por não aprender com a rapidez com que gostaria. Compara-se a si

mesma: consegue fazer tantas coisas em espanhol, mas poucas em português. A frustração de

perceber-se aprendiz, frente à sua larga experiência como professora, revela-se no seguinte

enunciado:

Marlene: Pelo tempo que eu moro em Brasil deveria más facilidade y es que

hay que estoy como bloqueada [...] depois do posgrado, uma especialização

em Metodologia... y ahora, tengo pressa de estudiar el português [...] muita

pressa! [rindo] muita pressa de aprender el português. Eu falava com a minha

filha ‘eu sou capaz de realizar... de fazer uma tesis! eu sou capaz de fazer! y

esto! estudiar outra vez!’ (Marlene, em transcrição de áudio do dia

10/11/2018)

Em seu dia a dia, Marlene realiza ações que não se encerram no movimento único de

aprender a língua, que também envolvem o afeto e o compartilhamento de conhecimentos

culturais, ainda que sejam planejados pela aluna como um exercício de aprendizagem:

Eu me obrigo a falar com uma vecina meia hora al día [...] Eu antes no lo

hacia, entonces eu a veces no entendo nada, nada, nada. No entendo porque es

manezinha entonces “lalalalalalalalalalalalala”, entón ‘fala mais de espacio’

[...] devagar, ok, entón, eu lhe voy decir algo, entón voy a computadora, busco

el traductor y le llevo un papelito escrivo… Mira esta cosa [...] porque eu le

dicia em estos dias que estava cocinando no sei que era algo pelo de (*)... era

uma cosa, uma coisa, ela dizia outra y ela no entendia [...] sobre cozinhar, e

eu lhe dizia: ‘estou cozinhando tal cosa, tal coisa’ [...] y ela: “que es esto?” y

yo “ya vá”. Entonces fui, busqué la computadora, escribi, esto [risos] […]

(Marlene, em transcrição de áudio do dia 10/11/2018)

160

Assim como Claitaine, Marlene aponta o papel dos recursos digitais para a

aprendizagem: “voy a computadora, busco el traductor”. O tradutor virtual é utilizado de modo

efetivo, mobilizando os recursos a ela disponíveis para dar cabo ao seu intuito discursivo:

compartilhar uma receita com a vizinha, comunicando-se em português. Além dessa, outras

práticas são mencionadas como uma busca por um convívio mais intenso com a língua

portuguesa, em resposta autodidática à sua “pressa”, uma vez que lamenta estar circundada de

espanhol por todos os lados: “mi filha, y su marido, español, todos los amigos de ella, español”.

Nesse caso, a vizinha, mencionada de modo recorrente, tem um papel importante na

socialização de Marlene, como auxiliar na sua aprendizagem da língua(gem). Além de ser uma

orientadora pragmática, como veremos em seções posteriores, também lhe oportuniza o acesso

a recursos:

Marlene: Outra coisa he sido importante é: la vecina, cerca de casa nos

emprestó um tv, uma televisión, y eu escuto unos, eu veo... olho? [...] eu

assisto unos programas em la noite que son de... com formar palavras

correctas. Entón, gira la roda el participante, entonces, y voy eliminando

[risos] eu juego comigo mesma (Marlene, em transcrição de áudio do dia

10/11/2018).

O jogo, a conversa, a troca de receitas – uma série de empregos de gêneros do discurso

específicos é mencionada pela aluna como práticas nas quais se envolve para aprender a

língua(gem). Ao citá-las, também menciona práticas como a leitura de livros infantis que a faz

rememorar sua experiência de alfabetizadora:

Voy a começar a ler esos libros de prescolar que me encanta! [...] eu, en mi

aula, era cuentacuentos. Era assi: eu contaba el cuento, me lo aprendía,

contaba el libro y elaboraba una técnica antes de contar el libro. Ejemplo – le

estaba el título y le pedía a ellos a adivinar como se llamava a ello, acá, luego,

eu tomaba el libro e sin verlo, iba narrando lo que decía el cuento. Al terminar,

sacaba trinta y ocho estudiantes, trinta y oito libros, entonces, cada niño

manipulaba un libro, entonces, entón, el primero grado, depois el prescolar,

“el sol” entonces, dibujábamos el sol, o formábamos con plastilina el sol, ou

faziamos un juego con pelotitas. Por cada página, donde havia una narración,

un texto y una figura, se hacía una actividad. Se duraba una semana – una

semana con el cuento en aula, verdad? El único idioma que se secciona la

palabra es el español. En latinoamerica: “m”, “a”, “ma”, “m”, “a”, “ma”. Essa

forma é errada para mim! Por que? porque eu enseño la lengua al pequeniño

la letra “m” com la letra “a” sueña “ma”, la “m” com “a” suenã “ma”. El niño

aprende la sílaba “ma-ma”. Para mim, errado! por que? Porque el resto de los

idiomas me ensenãn la palabra completa! Por ejemplo: [Marlene lê o título de

um livro que estava em suas mãos] “tasilinha”, no tar-si-li-nha. Si eu enseño

a Simona, por ejemplo una palabra… por ejemplo esta: “lembra”, tiengo que

161

enseñar, la “l”, la “e”, la “m”, la “b”, la “a”, entonces, luego, yo tiengo

conmigo, “lem-bra” verdad¿ entón, quando eu divido “lem-bra”, tiengo más

tiempo para.. o sea, el pensamiento está na “ma” enquanto, yo enseño la

palabra concreto “lembra” […] el resto de las palabras chegan, por ejemplo, o

sea: “eu amo a mama”, entonces yo le enseño la palabra “yo”, “amo”, “mama”,

três palabras, y luego, él incorpora: “yo amo a mi mamá”, o sea, que el

pensamiento es global, pero si yo le enseño la “m” con “a”, la “m” con la “a”,

lea completo! […] Entonces, enseñando completo las palabras llegan!

(Marlene, em transcrição de áudio do dia 10/11/2018)

No relato acima, Marlene compartilha a importância de valorizar o significado no

trabalho com a linguagem na alfabetização, dando prioridade ao todo e não às partes da palavra,

justificando essa prática com a afirmação “el pensamiento es global”. Marlene nos demonstra

que a densidade de seus conhecimentos serve, tanto para se regozijar pela memória das

experiências vividas enquanto alfabetizadora, quanto para se valer deles para aprender o

português com urgência e autodisciplina. Na sequência do relato sobre como alfabetizava seus

alunos, Marlene menciona ter sido pioneira ao propor o uso do método global para sua escola,

“eu fui precursora en los veinte estados de toda la Venezuela hace muitos anos de esa forma,

de ese método de ensinar [o método global]” (Marlene, em transcrição de áudio do dia

10/11/2018).

Em seu relato, Marlene desafia propostas assimilacionistas de ensino de língua na

perspectiva do acolhimento que preveem a aprendizagem da língua como uma mera inserção

na cultura “de acolhimento”, deixando de levar em conta a bagagem do aprendiz (BIZON;

CAMARGO, 2018; ANUNCIAÇÃO, 2018). Em seu percurso autodidático, resgata sua

identidade de professora para ensinar a si própria, evidenciando como a aprendizagem envolve

processos de suspensão e ancoragem na constituição identitária (HALL, 2006), em que

conhecimentos diversos são mobilizados para fazer valer ações em que a língua(gem) tem uma

centralidade. Como diria Hall (2006, p. 89), trata-se de um hibridismo, no sentido de “aprender

a habitar, no mínimo, em duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e

negociar entre elas”.

Nessa tradução diaspórica (HALL, 2006), certos significados são apontados como

elementos importantes a serem mantidos em sua bagagem, como o potencial da literatura

infantil e a receita da comida que faz questão de compartilhar com a vizinha, que, associados à

manutenção de um método de alfabetização utilizado em experiências profissionais prévias,

possibilita dar à conversa diária significados tais que não se encerram unicamente enquanto

atividades sociais, mas são interpretadas por Marlene como pretextos para a aprendizagem.

Marlene nos mostra criativamente como o uso da linguagem, que está impregnada do social,

162

sendo relativa a esferas específicas da atividade humana (BAKHTIN, 1997; 2010), pode ser

utilizada em atividades corriqueiras para a aprendizagem, como a troca de receitas mediada por

um tradutor digital durante a feitura de uma comida. Mostra-nos, ainda, que a consideração

dessas distintas práticas em que se envolvem as aprendizes, bem como os significados que têm

para elas, podem contribuir para um melhor direcionamento do ensino em respeito às bagagens

individuais dos sujeitos aprendentes que necessitam, avidamente, aprender essa língua.

Além de Claitaine, Neli e Marlene, Rosario também compartilha o quanto o tempo

afeta sua vida de modo a configurar possibilidades e necessidades específicas de aprendizagem

da língua(gem). Rosario, que trabalha com comunicação, destaca o quanto a maternidade está

associada às suas possibilidades de desenvolver projetos como o estudo autodidático da língua

portuguesa:

Rosario: Quando cheguei, comence a estudar por mi conta, mas quando você

tem filhos, suele muito complicado é... compartillar o dividir tempo para

nossas cosas com criança (Rosario, em transcrição de áudio do dia

20/10/2018).

Com o marido trabalhando no Peru e a filha estudando meio-período em uma creche

em Florianópolis, Rosario vê-se sem uma rede de apoio estável. Como ela relata abaixo, sente

dificuldades para conciliar os estudos em casa, valorizando a estrutura do curso:

Rosario: Como aqui tenho oportunidade de trazer ela, de ficar com ela aqui,

es muito mais fácil (*) a facilidade de poder trazer ela é muito más, é um

atrativo. Acho uma facilidade para todas cosas que nós temos que fazer

(Rosario, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Assim como Rosario, Neli, com o marido trabalhando na Argentina e sem rede de

apoio, também encontra dificuldades para realizar seus projetos:

Neli: Tudo muda quando tem filho, quando não tem outra pessoa, como mãe,

pai, avó, muda tudo. Criança fica 24 horas com você [...] Já é um pouco difícil

porque eu sento fazer exercício e Simona ‘mãe! Eu quero isso’. Sofia, do outro

lado, faz algumas coisas, baguncia, sube, desce, cai, é um pouco difícil. (Neli,

em transcrição de áudio do dia 10/11/2018)

Neli: [...] meus sonhos para trabalhar e estudiar, dar um pouco de atención

para mi [...] Alguém que pode te ajudar pra você aproveitar esse tempo, si, é

mais fácil, mas quando não tem ninguém, 24 horas é difícil. Cansa. (Neli, em

transcrição de áudio do dia 08/06/2019)

163

Ambas as alunas, pontuando as dificuldades para estudar em casa, apontam a

importância de terem um lugar propício, em que possam se concentrar para aprender a língua

portuguesa ou realizar outras atividades – “fazer as suas coisas”, como coloca Rosario;

“trabalhar e estudiar”, nas palavras de Neli. Rosario menciona a dificuldade de “dividir o

tempo” e Neli cita o cansaço da “criança 24 horas com você”. A ambivalência entre a presença

dos filhos e a realização de projetos e sonhos, como coloca Neli, também ocorre na experiência

de quem tem filhos, mas não os tem perto de si. No caso de Claitaine, a distância dos filhos

permite a ela dedicar-se ao trabalho para dar a eles as condições de estudo que ela não tem, por

conta da falta de tempo:

Claitaine: Porque meu país não tem trabalho. Tem, mas por quem que estudou,

terminar estudo (...) É difícil lá conseguir trabalho (...) Eu vem pro meu filho

pra eu conseguir um emprego, mandar dinheiro pro meu filho, pra escola (...)

Eu quer que meu filho estuda, termina a escola, vai pra universidad, université,

fazer tudo o que eu não fez, eu não tem tempo pra fazer. (Claitaine, em

entrevista do dia 21/01/2021).

Claitaine entende que “Só quando filho crescer, a gente tem mais tempo pra nós

[enquanto mães]”. Em uma aula em que discutíamos sobre as mudanças na vida pessoal para a

mulher que tem filhos, a aluna afirma sobre a sua condição: “Eu tenho mais tempo pra mim, ele

tá lá, mas ele tá longe” (Claitaine em transcrição de áudio do dia 08/06/2019), contrapondo,

com uma conjunção adversativa, a relação ambígua que estabelece entre ter tempo para si, mas,

para isso, ter que estar distante dos filhos.

O tempo, para cada uma das alunas, a partir de posições sociais distintas, configura

necessidades e buscas de aprendizagem da língua(gem), por cercear as atividades em que se

envolvem. Os gêneros discursivos que necessitam aprender as alunas para as quais o trabalho é

uma urgência são distintos daqueles necessários às mais circunscritas ao ambiente doméstico,

que vislumbram a possibilidade de estudar no futuro. Os gêneros do discurso pelos quais as

alunas demonstram interesse também é um fator importante a ser considerado na definição do

currículo do curso. No caso de Marlene, a aluna menciona livros infantis, nos quais vê um

potencial para a aprendizagem. Neli também menciona os livros infantis, que fazem parte de

sua rotina semanal de atividades junto à filha:

Neli: Na creche de Simona, cada sexta feira ela leva uma livro pra casa para

ler com mamãe (*)

164

Eu: Que legal.

Neli: Sim.

Eu: Ah, é bem bom assim. Daí, você também lê (*) pra ela. (Conversa com

Neli, em transcrição de áudio do dia 13/04/2019).

A presença das filhas na escola configura o acesso ao livro infantil, um suporte que é

mencionado em um momento de afeto com as filhas, na tônica de uma compensação pelas

dificuldades na divisão do tempo para si e para as filhas:

Eu: Sim, é bem difícil, né, Neli? [sobre 24h com criança]

Neli: Você se acostuma! Esse tempo passa rápido! Ela nasce ontem, já fez

quatro! Um pouco mais, vai fazer 18.

Eu: Você é muito tranquila, Neli! Eu sempre penso em você quando acho que

as coisas estão difíceis.

Neli: Não, tem muitos [momentos] difíceis. Momento na casa, se uma briga,

outra assim, e depois, só. Antes de dormir, elas me abraçam: ‘mãe, te amo’, lê

uns livro (*) (Conversa com Neli, em transcrição de áudio do dia 08/06/2019)

Em outro momento, assim como Marlene fala sobre a importância da televisão, Neli

faz menção a essa tecnologia, referindo-se à importância de ouvir a língua portuguesa, uma vez

que considera que sua aprendizagem é maior quando em contato com gêneros orais:

Neli: Quando chegamos aqui com meu marido, parecia que não precisamos

televisão... Algumas coisas que posso escutar português más, um tipo de

novela, novela tipo, como se chama, Game of Thrones, você sabe? [...] seriado,

si, uma coisa assim, só una coisa, como ‘Cassandra’, que tiene muitos

episódios, todo mundo jovem. [...] outras coisas que tá bom pra escutar. Tem

que escutar mais português [...] eu sou mais fácil quando escuta. Eu adoro

olhar. Cada toda noite eu leio dois, três, quatro livros só no Google no meu

telefone (Neli, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018)

Na mesma conversa, Rosario evidencia diferentes habilidades de aprendizagem.

diferentemente de Neli, Rosario prefere os gêneros escritos:

Rosario: eu gosto de ler. Eu queria ler o livro porque é mais complexo. Eu

gosto dessas coisas medievales de guerra, histórias antigas. Gosto muito de

Game of Thrones. Quando cheguei aqui, encontre uma livraria que vende

livros usados. Entón, eu peguei uma série em português,. Entonce, empezé a

ler e a leitura melhorou muito meu português escrito, porque, já eu, sou muito

165

visual. Quando eu já olho várias vezes uma palavra, eu lembro, e já sei como

escrivi. Então, foi muito legal, porque tem outro sentido. O português é outra

visão da história, então foi muito legal (Rosario, em transcrição de áudio do

dia 20/10/2018).

As alunas evidenciam diferentes habilidades de aprendizagem e revelam a importância

de gêneros audiovisuais, como os seriados, como auxiliares para a aprendizagem da

língua(gem). Rosario menciona que a leitura a auxilia a escrever melhor, enquanto Neli afirma

que precisa ouvir mais a língua. Ela revela utilizar o próprio telefone móvel como recurso para

leitura. Assim como a televisão e o computador, o telefone celular aparece nos relatos das

quatro alunas em distintos momentos e com usos diversos, apontando a importância de serem

valorizados enquanto elementos que dão suporte à aprendizagem, principalmente, frente à

urgência de suas necessidades de aprendizagem na língua, como aponta Rosario: “he me

auxiliado muito com Google, pesquisava no mercado, pesquisava os nomes e pegava o que era

o que não era” (Rosario, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018). O telefone móvel, a

televisão e o computador evidenciam-se como auxiliares em suas buscas por trabalho através

do e-mail, como o faz Claitaine, como leitura prazerosa na leitura noturna de Neli, como

tradutores em mercados ou na interação com outras pessoas, como indicam Rosario e Marlene,

revelando-se importantes ferramentas auxiliares da aprendizagem da língua portuguesa.

No momento em que vivemos, de aceleração dos processos comunicativos

(GIDDENS, 1991), faz-se importante considerarmos o acesso das aprendizes a recursos

tecnológicos variados, como auxiliares ao ensino. Todas as alunas apresentam-nos usos

distintos e criativos. Claitaine solicita a aprendizagem de uma ação que a ela pode ser muito

importante, considerando sua urgência por trabalho: o envio de um arquivo digital do seu

currículo por e-mail. A dificuldade da aluna chama a atenção para um trabalho pedagógico que

envolva o ensino de recursos digitais.

Enfocamos, nesta segunda subseção, a importância de levarmos em conta, além das

esferas discursivas de reivindicação, as condições provenientes das dificuldades de divisão do

tempo. Suas esperas e urgências configuram as vidas das participantes desta pesquisa, por

conseguinte, suas necessidades e projetos de uso da linguagem. Para um planejamento de cursos

destinados a acolherem mulheres-mães-imigrantes, revela-se importante considerar aspectos

aqui levantados, tais como: a disponibilidade e o acesso a tecnologias (televisão, aparelho

celular, internet), interesses e hábitos de leitura, concepções de aprendizagem e disponibilidade

de tempo para desenvolver atividades.

166

Em suas urgências e divisões de tempo, são apresentadas distintas esferas de circulação

de discursos em que se envolvem e em que projetam se envolver. Nesse processo, suas

identidades sociais e linguísticas vão se construindo e se modificando em um processo de

tradução e tradição (HALL, 2006).

167

5 AS FRONTEIRAS DE SIGNIFICADO ENTRE A TRADIÇÃO E A

TRADUÇÃO

Conhecer os efeitos da língua(gem) e usá-la conscientemente envolve estranhar

costumes, significados e pressupostos culturais. Esse estranhamento faz parte do que Hall

(2003) denomina como processo de tradução cultural na diáspora em que os sistemas de

significado do novo contexto são contestados, não havendo mera assimilação de costumes e

valores.

Vimos como os traços do amálgama língua-território-cultura-nação estão presentes no

imaginário social produzindo zonas de ilegitimidade enunciativa (SIGNORINI, 2006),

considerando que imagens de controle (COLLINS, 2019) de imigrantes estão ativas no

auditório enunciativo local como traços de uma ordem sociolinguística (SIGNORINI, 2006)

que silencia, constrange e exclui, como demonstraram as alunas em seus diálogos com

moradores locais. Suas intenções reivindicatórias foram pontuadas como respostas a essas

imagens de controle, configurando necessidades de aprendizagem específicas. Enquanto espera

ou urgência vinculada ao trabalho, à maternidade e aos estudos, o modo como se organizam na

“divisão do tempo” configura necessidades específicas de aprendizagem da língua(gem).

Enfoco, nesta subseção, questionamentos de Marlene e Rosario sobre as construções

sociais dos significados do termo “negro” e aponto a importância de acolher os estranhamentos

e os processos de tradução das alunas, que tornam a sala de aula um locus privilegiado de trocas

linguístico-culturais. Na discussão, revelo traços de narrativas consolidadas sobre a construção

identitária do Brasil e de Santa Catarina, assim como a condução de um projeto migratório

orientado pela hospitalidade seletiva, que se coloca como um entrave para experiências

diaspóricas de grupos negros e latinos. A relevância da temática racial é tomada a partir da

crítica das próprias alunas a processos de invisibilidade do grupo racial lido como negro,

naturalizados no ambiente escolar e social brasileiro.

Ainda enfocando o processo de tradução, discuto como são privilegiadas as

enunciações apreciativas das alunas sobre a língua(gem), apontando efeitos da regulamentação

linguística (SIGNORINI, 2002; 2006), do pertencimento a culturas de língua padrão

(MILROY, 2011) e do impacto desse pertencimento em suas necessidades e projetos. Enfoco

os processos de tradução linguístico-cultural na diáspora (HALL, 2003; 2006), constituição

identitária colocada em suspensão por esses movimentos e as apreciações das alunas sobre

elementos de seus repertórios linguístico-discursivos individuais (GARCÍA; WEI, 2014), bem

como os de suas filhas, no caso de Rosario e Neli.

168

Por fim, apresento e interpreto considerações das alunas sobre como “dar certo em

português”, enfocando as contribuições das questões emergentes do campo para o conceito de

“acolhimento” em PLAc.

Seguindo o apontamento de suas necessidades e projetos de aprendizagem de

língua(gem), reservo a próxima seção a analisar elementos da tradição e da tradução que se

interpõem em seus projetos de aprendizagem da língua(gem) delineando importantes temas de

reflexão para o conceito de “acolhimento”.

5.1 “NEGRO NÃO, MARROM FOFINHO”: AS FRONTEIRAS DE SIGNIFICADO

PARA O TERMO NEGRO

Nesta seção, recorro às reflexões sobre raça enquanto um discurso, como propõe

Stuart Hall (1995; 2003; 2010) a partir de Bakhtin (2010), para os quais as cadeias de sentido

que organizam as relações sociais são elaboradas e disseminadas na língua(gem) variando local

e historicamente. Tomo como postulados (1) que raça não é uma realidade biológica, e (2) que

a atribuição de um indivíduo/grupo a uma raça está fortemente ligada a imagens de controle.

Rosario e Marlene apresentam dificuldades em sua tentativa tradutória do novo

contexto. A incursão teórica feita a partir de suas dúvidas revelou procedimentos discursivos

naturalizados no imaginário social (MELO; MOITA LOPES, 2015) e reproduzidos em

instituições como a escola (NOGUEIRA; MAIOR, 2020). Em interface com o conhecimento

produzido por historiadoras/es, antropólogas/os e sociólogas/os, tento compreender os

significados mobilizados pelas questões de Marlene e Rosario em torno do uso do termo negro.

Os procedimentos discursivos enfocados revelam aspectos ideológicos de uma sociedade cujas

fronteiras são mais permeáveis a certos grupos que outros, em que as populações lidas como

negras são conduzidas a uma condição de maior vulnerabilidade, uma vez que as dificuldades

enfrentadas são vivenciadas como barreiras para as quais se exige, como vimos anteriormente,

um preparo sociolinguístico para enfrentamentos.

No que tange aos propósitos desta pesquisa, as discussões nesta tese importam por

responderem a perguntas dirigidas pelas alunas que podem configurar necessidades de

aprendizagem em outros cenários, em que as relações raciais aparecem como objeto de

discussão. Dada a invisibilidade do tema raça nas salas de aulas de línguas (MELO, 2015) e a

importância que o debate racial tem ganhado a partir das reivindicações de Movimentos Sociais

para a presença desta discussão no âmbito escolar (GOMES, 2018), importa chamar a atenção

para procedimentos discursivos que naturalizam essa invisibilidade temática, principalmente

169

por terem sido apontados pelas alunas participantes da pesquisa como impactantes em suas

experiências de tradução linguístico-cultural do novo contexto.

Imagens de controle (COLLINS, 2019) de imigrantes enquanto invasores e

ameaçadores à ordem e à estabilidade empregatícia dos moradores locais são textos que

permeiam o imaginário social sobre certos grupos de sujeitos, compondo a base ideológica de

enunciados do senso comum. Nesse cenário, o marcador de raça desempenha um papel

importante, uma vez que esse traço, lido a partir de índices visíveis (HALL, 1995; 2003; 2006)

pode contribuir para a atribuição de ilegitimidade a falantes (SIGNORINI, 2006) cujas posições

sociais intersectam esse a outros marcadores, como os de gênero e classe social e nacionalidade

(COLLINS, 2019), como vimos no caso de Claitaine.

A legitimidade atribuída aos falantes da cena enunciativa, leva em conta aspectos

socioculturais e políticos (SIGNORINI, 2006), tais como as imagens de controle sobre sujeitos

migrantes, mulheres, negras, latino-americanas (COLLINS, 2019). Importa discutir essa

(i)legitimidade, uma vez que ela impacta a experiência de vida dessas pessoas e em suas

necessidades de aprendizagem da língua(gem).

Como aponta Seyferth (1995, 1995), raça é um termo de múltiplos conteúdos que tem

servido para categorizar grupos hierarquicamente. Essa categoria tem sido central para a

configuração da hospitalidade brasileira como seletiva. Considerando raça enquanto

significante flutuante (HALL, 1995), cujo significado pode se modificar em cada contexto

sócio-histórico, observo como a cadeia de significados em torno do termo negro opera no Sul

do Brasil, a partir de construções historiográficas sobre o território negro (LEITE, 1991a;

1991b) e sobre o lugar do negro (CARDOSO, 2007) em Santa Catarina. Creio, com Hall (2003),

que perseguir a construção dos sentidos sobre o que se tem convencionado denominar pelo

termo negro pode ajudar a compreender o tabu que parece haver em torno do uso linguístico do

termo em referência a pessoas ou grupos de pessoas em Florianópolis, como apontam as

interações abaixo apresentadas e discutidas.

Trago um breve resumo do que apontei em diário de campo no intuito de apresentar

como as narrativas suscitaram as falas de Rosario e de Marlene em torno do silenciamento do

termo negro em formato de vinheta:

Daí, falamos de discriminação e de racismo porque Marlene contou que a

vizinha disse a ela que não se deveria falar “negro” ou “preto” no Brasil, pois

isso poderia ser entendido como racismo. Marlene não entendia o porquê, já

que, como dizia, na Venezuela, dizer “negrito” é um elogio. Marlene disse

achar que o que parecia racismo era não poder dizer a palavra “negro” a uma

170

pessoa “negra”. Foi então que Rosario contou uma cena em que a filha a

corrigiu. Quando Rosario comentou “que negrinho lindo!” para uma criança

com a qual a filha brincava em um parquinho, Penélope a corrigiu, dizendo:

“não é negrinho lindo, mãe, é marrom fofinho!” (Trecho do diário de campo

elaborado no dia 22/09/2018).

Marlene, ao se lembrar do interdito vivido na interação relatada, questionou, em sala

de aula, o porquê da acepção pejorativa das palavras negro e preto em português

exemplificando como o uso do termo negro era visto como positivo em sua cultura. Na

Venezuela, relataram ela e Rosário, negrinho e negro seriam formas, respectivamente,

carinhosa e galanteadora de referir-se a alguém. Marlene citou as expressões “que negro!” ou

“que negrito lindo!” dizendo que o apelido do próprio genro é Negro. Depois, explicou-me que,

na forma de um elogio, o termo também significava “sensualidade” e que, enquanto adjetivo,

era atribuível também a pessoas brancas. Ressaltam-se no diálogo os diferentes modos com que

as relações raciais se refletem na linguagem e os diferentes modos com que nos tornamos

racistas em diferentes estratégias discursivas, em diferentes contextos. O apelo à afetividade, à

cordialidade, característica do não-dito racista brasileiro (SALES JÚNIOR, 2006), parece não

ser exclusiva, uma vez que se encontra no uso de “fofinho” junto a “moreno” ou no apelido

“carinhoso” do genro. Assim como a afetividade, também a reificação: trata-se de “um

negrinho” lindo. Não é mais “um menino”, mas é uma cor que ocupa o lugar do corpo inteiro

do menino, na sinédoque que toma a parte pelo todo, objetificando o sujeito, como observa

Sales Júnior (2006).

Considero os questionamentos de Marlene relevantes para a reflexão em torno do papel

do professor não exatamente como um líder, mas como um articulador de “assimetrias

interacionais em sala de aula” e, sobretudo, uma referência de “autoridade textual [...] em

relação à construção social do significado” (MOITA LOPES, 2002, p. 30). Entendo ainda, o

professor como alguém a quem cabe considerar com profundidade o que trazem os próprios

alunos em relação às suas necessidades de aprendizagem, sendo esse um princípio do

acolhimento, enquanto escuta aos questionamentos dos alunos. É o que tento aqui propor na

resposta aos questionamentos de Marlene e Rosario.

As cadeias de sentido mobilizadas pelo uso do termo negro, à primeira vista, parecem

à Marlene distintas na Venezuela e no Brasil. Ela vê como positivação do termo negro sua

associação a sensualidade na Venezuela. Em contraposição, causa-lhe estranhamento aqui a

proposta de apagamento do termo como silenciamento de sentidos negativos. Porém, pretendo

discutir como o caráter de essencialismo e o uso da cor da pele como metáfora da

171

hereditariedade (SEYFERTH, 1986), ou sinédoque (SALES JÚNIOR, 2006), nas duas redes

semânticas, alimentam imagens de controle (COLLINS, 2019) sobre pessoas lidas como

negras.

Nesta seção, a atribuição de raça enquanto um procedimento discursivo (HALL, 1995;

2003; 2006) é enfocada nessas duas imagens de controle que emergem do uso do termo “negro”.

A primeira imagem de controle que discuto é a de uma ausência: o termo negro é invisibilizado

no discurso e proibido no espaço da enunciação, que sofre uma espécie de uma miscigenação

pela linguagem, um branqueamento discursivo (NOGUEIRA; MAIOR, 2020, p. 8). No

entendimento de Melo e Moita Lopes (2015, p. 57), procedimentos como esse resultam dos

“efeitos semânticos de Discursos no contexto brasileiro”, como a Escravidão e a Mestiçagem

(MUNANGA, 2019). A segunda imagem é a de um corpo reduzido às pulsões primitivas,

hiperssexualizado, metonímia dos atributos da sensualidade pretensamente intrínseca a corpos

lidos como negros.

Seguindo o caminho interpretativo da tradução cultural, com Hall (2003), para o qual

a experiência da diáspora dispararia um choque entre sistemas de significação distintos, vemos

que a cadeia de significados que o termo negro aciona no imaginário das alunas difere da cadeia

de sentidos que emerge da aplicação do termo nas interações que têm em Florianópolis. Ora na

advertência da vizinha de Marlene, ora na correção de Penélope, filha de Rosario, o

silenciamento do termo “negro”, paradoxalmente, parece dizer muito a respeito das relações

sociais no País e em Santa Catarina, em específico.

Como Hall (2003) observa, tomando o funcionamento da linguagem conforme sugere

Bakhtin (2010), o alcance de significado de uma palavra tornada signo está de acordo com a

sua tradução ideológica possível em um dado contexto histórico-social (HALL, 2003). A partir

dessa premissa, a tradução de Marlene da palavra negro como um aspecto positivo, relativo a

um atributo físico de sensualidade, não encontra, no novo contexto em que ela aplica a palavra,

correspondente significação, levando a aluna a uma falência na tradução.

Na primeira acepção, presente na interação de Marlene com a vizinha e de Rosario

com a filha, negro figura como termo proibido, indizível, cujo conteúdo não deveria vir à tona.

Frente à falência da transposição de sentidos entre os distintos sistemas de significação que

emergem do termo, a aluna leva suas reflexões sobre a correção sofrida para a aula de português

na tentativa de compreendê-la.

Para responder ao questionamento de Marlene sobre se seria a sociedade brasileira

racista ao propor a proibição do uso do termo, sugiro pensarmos com Almeida (2018), para o

172

qual cada sociedade produz em sua estrutura o racismo de um modo específico, com Munanga

(2019), que aponta o racismo brasileiro como sui generis, fortemente marcado pelo desejo de

branqueamento e com Sales Júnior (2006), para o qual o não-dito racista, a invisibilização

temática do racismo, é constitutiva da suposta democracia racial no Brasil, configurando as

relações raciais.

Marlene aponta, sem o saber, um tema tabu da identidade brasileira, a questão racial.

Apesar de a noção de raça ser central na identidade do povo, inventado como exemplo de

miscigenação racial, o Brasil está longe de refletir na realidade social a atmosfera de harmonia

sugerida em teoria pela ideia universalista de que “somos todos mestiços” (MUNANGA, 2019).

A interlocutora de Marlene, sua vizinha, teria traduzido alguns dos sentidos atribuíveis ao termo

negro em sua sociedade, indicando o apagamento como possibilidade de invisibilizar toda uma

temática, a racial, acionada pelos significados em torno do termo negro.

Tomando o signo como ideológico (BAKHTIN, 2010), interpreto o procedimento de

eliminá-lo da enunciação como uma forma de impedir o debate que informam os sentidos

atribuíveis a ele em um dado tempo histórico. Por outras palavras, a interdição do signo seria

um meio de impedir que emergissem significados ainda difíceis de ressignificar ou de dissociar

de um passado colonial que não passou, que segue presente, reinventando-se na estrutura social

pela linguagem. Uma vez que o conceito sociológico de raça é estruturante no capitalismo

(ALMEIDA, 2018), não haveria um apagamento possível da ideologia racista, senão uma

atualização desse quadro, elaborado pela linguagem.

O apagamento, ou não-dito racista (SALES JÚNIOR, 2006), aparece como um dos

mecanismos discursivos que mantêm o racismo como estrutura velada nas relações sociais

brasileiras. O mito da democracia racial seria o discurso de base a estimular tal apagamento, na

pretensão da harmonia e naturalização das desigualdades sociais, como se deixar de nomear a

opressão e inventar uma fábula de felizes para sempre pudesse fazer com que essa opressão

desaparecesse. Certamente desaparece dos olhos, mas permanece enquanto violência. O mito

da democracia racial passa a ser a intepretação oficial das relações sociais brasileiras, da década

de 30, pelo menos, até a década de 70 do século XX, quando os movimentos raciais começam

a ganhar força (cf. MUNANGA, 2019). A invisibilização de certos grupos, pode-se dizer, é

uma das tônica da ordem discursiva brasileira.

Não à toa é no fenômeno do deslocamento que os sentidos são também deslocados

(BHABHA, 2021). É no enfrentamento do outro, na fronteira, que são levadas a falência redes

de sentido que até então “funcionavam bem”. A experiência do deslocamento geográfico requer

173

novos quadros de sentido, e a sala de aula de português pode ser um espaço importante de

negociação, como sugere Marlene em sua busca pela tradutibilidade de suas experiências, em

sua busca por um quadro de significações que faça sentido para ela no novo contexto.

Na classificação racial tipicamente brasileira, cromática, Marlene pode ser lida como

“branca”. Esse traço não é de menor importância. Na conversa com a vizinha, com a qual

compartilha uma série de trocas, ela é prevenida sobre interações com sujeitos de um grupo

racial presumidamente “outro”. Creio que, em uma perspectiva de língua que leva em conta o

signo como ideológico, importa procurar na historiografia de Santa Catarina as narrativas que

têm permitido a associação do termo negro a sentidos tão terríveis que não podem ser evocados

sem o risco de incomodar a consciência de certos grupos sociais, cuja sombra é mais bem aceita

quando adormecida. Em outras palavras, a ferida aberta, a qual as alunas colocam em pauta, na

sala de aula de português, trata-se da negação de negro do território da enunciação, que trato

como metáfora da negação do próprio negro do território nacional, de modo particular, o

catarinense.

Os questionamentos de Marlene sobre o lugar do negro no discurso remetem a uma

narrativa historiográfica de imaginação da comunidade catarinense que se vale do apagamento

da presença negra, dos africanos e dos afro-brasileiros (AREND, 2001; MACHADO, 2001).

Santa Catarina é o estado imaginado como diferente dos outros pela presumida ausência de

negros, o estado em que o projeto de branqueamento teria vigorado e cujo progresso dependido

exclusivamente do esforço branco (LEITE, 1991a; 1991b). Apesar de o trabalho escravizado

ter sido utilizado no processo de progressão econômica do estado de Santa Catarina, como

evidenciam as investigações de Leite (1991a; 1991b) e de Cardoso (2007), a historiografia

oficial, ao justificar a menor presença em relação a outras regiões, sustenta em seu imaginário

uma história isenta de débitos ao sistema escravocrata. Sobre a presença de africanos e

descendentes não só no estado de Santa Catarina, como na região como um todo, Leite pontua

que “a identidade do sul, se constrói pela negação do negro” (LEITE, 1991a). Essa configuração

fortalece a tônica de uma hospitalidade seletiva interseccionando à posição de imigrantes, a de

pertencentes ao grupo racial negro.

Nesse contexto específico, em que traduções diferentes se mostram, a vontade de

apagamento, de silenciamento e de embranquecimento se manifesta como um apagamento

mesmo da palavra negro da enunciação, como se o apagamento do signo pudesse deixar de vir

à tona uma “narrativa cotidiana depreciativa do Outro”, como coloca Leite (1991a, p. 34). Como

observa Seyferth,

174

não há categoria mais marcada por traços negativos e pejorativos que a do

negro, símbolo de sujeição e inferioridade; nem mais ambígua que a do

mulato, verdadeiro axioma da ideologia [do branqueamento], uma vez que

superou os percalços da cor e ‘escapou de ser negro’ (SEYFERTH, 1986,

p. 56).

Ao apresentar uma fórmula que tenta escapar de ser racista, a vizinha, conselheira

pragmática – orientando o uso da língua para Marlene – opera ao contrário, apontando

justamente que há um sentido corrente que prevê o termo negro como ofensivo, intrinsecamente

negativo. Na correção da vizinha de Marlene e da filha de Rosario, reatualiza-se a invisibilidade

no recurso de diminuição da tonalidade cromática ou branqueamento discursivo: “Negro não,

marrom fofinho”. A substituição de “negro” por “marrom” seria uma estratégia pedagógica de

apresentação do lugar possível para o sujeito de cor da pele negra, rumo a um branqueamento

(MUNANGA, 2019). O eufemismo “marrom fofinho” traz o negro embranquecido, para caber

no campo semântico tolerado naquele sistema de significações.

O desejo de branqueamento, projeto do “laboratório racial” brasileiro (SCHWARCZ,

2012), parece persistir na linguagem, fazendo com que o termo negro seja negado e substituído

pela figura híbrida, mas não menos controversa, do mestiço, “negro não, marrom fofinho”, em

um meio do caminho rumo ao ideal branco (MUNANGA, 2019). Esses pressupostos parecem

ser evocados tanto na interação de Marlene com a vizinha quanto na escola que frequenta a

filha de Rosario, demonstrando a persistência da ideologia racista – que não consegue se

esquivar na linguagem – seja no âmbito cotidiano da conversa entre vizinhas, seja no contexto

institucional da escola brasileira.

A invisibilidade do termo negro nas narrativas traz a marca de um incômodo, de um

passado que retorna, de uma relação mal resolvida com aquele que não teve seu lugar de direito

no território, nem na historiografia, nem na linguagem, sem que carregue um passado de

significações agarrado ao calcanhar. Em suma, as conotações de negro compõem uma imagem

de controle (COLLINS, 2019) do lugar do negro como ausente, silenciado, invisibilizado.

Os relatos que as alunas trazem à sala de aula revelam a persistência dessas imagens

de controle baseadas no paradigma racista biológico, para o qual a “cor da pele” segue sendo

utilizada como “metáfora de hereditariedade” a indiciar o pertencimento a um dado grupo

racial, não apenas Outro, mas presumidamente inferior (SEYFERTH, 1986, p. 57). Seyferth

(1996) aponta para a persistência da ideia de raça como “fator explicativo das diferenças sociais,

[...] arraigada no imaginário popular, [...] manifesta de muitas formas, seja através dos

estereótipos, do anedotário, das simbologias da cor e do sangue associadas à hereditariedade

175

ou, simplesmente, pela discriminação objetiva” (SEYFERTH, 1996, p. 202), largamente

proliferada nos discursos cotidianos. A ideologia racial não estaria presente apenas em Santa

Catarina, lugar de onde a autora colhe uma série de provérbios e ditos que, segundo ela, contêm

o mesmo teor das teorias raciais defendidas por intelectuais e cientistas. Modificadas apenas no

modo de explicação das desigualdades, as teorias racistas encontram-se plenamente presentes

no imaginário social brasileiro como um todo (SEYFERTH, 1986, 1995, 1996).

No entanto, não sugiro que as ações de apagamento do termo negro ou de

branqueamento discursivo nas cenas específicas que trazem Marlene e Rosario devam ser

interpretadas como atos “racistas” ou “não-racistas” em uma perspectiva individual. Se os

processos de significação operam em um quadro social e não individual, importa considerarmos

a ideologia subjacente a esses procedimentos como um importante traço da ordem

sociolinguística brasileira contemporânea. Ou como pontua Sales Júnior (2006), é relevante

apontar como o não-dito racista envolve estratégias de “dizer alguma coisa sem, contudo, ter a

responsabilidade de tê-la dito (...) configurando a não intencionalidade da discriminação racial”.

A partir desse importante registro, é possível dizer que a ideologia racista segue presente, ainda

que haja um esforço para silenciá-la. Sobretudo, importa dizer que se trata de um aprender a

tornar-se racista de um dado modo: de um modo velado. Ao questionarem o modo velado de

fazer referência a sujeitos negros, Marlene e Rosario rejeitam não apenas um modo de dizer,

mas todo o quadro de relações pressuposto a partir dessas enunciações. Esse desconforto se

origina da evidência que trazem as alunas de que essas enunciações não se encontram separadas

das relações sociais imediatas, que não se trata meramente ou absolutamente de um modo de

dizer dissociado da corporeidade dos sujeitos, mas de um modo de dizer que, como observa

Bakhtin (2010) reflete relações sociais, ideologias, hierarquias e estigmatizações que

estruturam as relações sociais em um dado tempo histórico.

Na segunda rede de significados, a partir da defesa que fazem Marlene e Rosario do

uso positivo do termo em seu país, negro é tomado enquanto sinônimo de sensual.

Parafraseando Marlene, é utilizado quando se quer dizer que alguém é sexy. Nesta acepção,

encontramos o eco das teorias raciais fundamentais da Antropologia Física que, a partir de um

aparato pretensamente científico de medições dos corpos, “asseguravam” que as populações

consideradas inferiores estariam mais próximas dos macacos que dos homens brancos e seriam,

portanto, menos civilizadas, “com impulso sexual acentuado e violento”, dotados de grande

força física, mas desprovidos de dotes intelectuais (SEYFERTH, 1996, p. 187). Como observa

a autora: “para o discurso racista, não adianta estabelecer os ditames da inferioridade através

176

de traços fenotípicos; ele é mais eficaz quando uma característica do fenótipo pode pressupor

determinados comportamentos que desqualificam socialmente (SEYFERTH, 1996, p. 186)”.

Hall (2003, p. 70) também observa que “o racismo biológico privilegia marcadores

como a cor da pele” e que “esses significantes têm sido utilizados também, por extensão

discursiva, para conotar diferenças sociais e culturais”. Segundo o autor:

A ‘negritude’ tem funcionado como signo da maior proximidade dos

afro-descendentes com a natureza e, consequentemente, da probabilidade de

que sejam preguiçosos e indolentes, de que lhes faltem capacidades

intelectuais de ordem mais elevada, sejam impulsionados pela emoção e o

sentimento em vez da razão, hiperssexualizados, tenham baixo autocontrole,

tendam à violência, etc. (HALL, 1996, p. 70, ênfase do autor).

Metonimicamente, ao tomar a parte pelo todo, a qualidade exacerbada enquanto

intrínseca a certos grupos sociais orientados que seriam por pulsões primitivas, o próprio

atributo de sensualidade passa a ser sinônimo do termo negro. Essa relação de sinonímia não

pode ser considerada apenas positiva, considerando a redução da experiência de todo um grupo

imaginado de sujeitos à pulsão de vida mais animalesca e instintiva. Novamente, a animalidade

e o primitivismo figuram como adjetivos à negritude, a encerrar existências negras na

sexualidade de seus corpos, marca da objetificação e desumanização, enfim, do exotismo com

que o termo negro é inventado no ocidente (HALL, 2003).

Esse discurso provocou e segue a provocar uma série de violências contra homens e

mulheres negras (RIBEIRO, 2018, COLLINS, 2019). Imagens de controle de mulheres e de

homens negros reduzidos à sua sexualidade, foram centrais no discurso do colonialismo

(FANON, 2008; CESAIRE, 2010). Uma vez que os colonizadores precisavam inventar um

modo de convencer os outros e a si mesmos de que a violência colonial era justificável, tentaram

de todo modo associar os africanos a animais, de modo que pudessem dormir mais tranquilos

se não tivessem que conviver com uma autoimagem de genocidas. Brutalizados, brutalizavam

os outros (CESAIRE, 2010).

As imagens de controle que tomam o termo negro como sinônimo de exacerbação de

sexualidade, facilitaram tanto a demonização do homem negro inventado como ameaça a

mulheres brancas, como Fanon (2008) exemplifica a partir de sua experiência na França, quanto

a naturalização da cultura do estupro às africanas e afro-americanas durante o período da

escravização nos Estados Unidos (DAVIS, 2018 [1981]) e após a abolição, em imagens de

controle de mulheres hipersexualizadas (COLLINS, 2019).

177

No Brasil, a naturalização do estupro no período colonial atualizou a imagem de

controle das mulheres afrodescendentes no período pós-abolicionista a partir do discurso de

“romantização da miscigenação” (RIBEIRO, 2018, p. 117), desenvolvido por intelectuais e

acadêmicos na década de 1930, sob as vestes do mito da democracia racial, com o intuito de

escamotear as violências contra homens e mulheres negras. Ribeiro (2017) coloca que as

mulheres negras brasileiras são, atualmente, mais suscetíveis à violência sexual e doméstica

que as mulheres brancas, uma vez que “seus corpos vêm sendo desumanizados e

ultrassexualizados historicamente” (RIBEIRO, 2018, p. 117). A autora acrescenta que essas

imagens de controle “contribuem ainda para a cultura de violência contra essas mulheres, que

são vistas como lascivas, ‘fáceis’ e indignas de respeito” (RIBEIRO, 2018, p. 117). González

(1984) observou essa atualização do lugar da mulher negra na sociedade brasileira a partir de

imagens de controle antes mesmo que Collins assim nomeasse esse procedimento discursivo.

Vemos, a partir desses aspectos fantasmagóricos do discurso apresentados e

discutidos, como e por que era justificável o temor de Foucault (2010) das consequências da

“proliferação indefinida de discursos”. Segundo relatos que trazem as alunas do curso, discursos

xenófobos e racistas são capazes de ferir e gerar exclusões, configurando intuitos discursivos

de enfrentamento para a reivindicação de direitos básicos. Como discutimos, a ilegitimidade

conferida ao status de falantes por conta de marcadores sociais como os de raça, na intersecção

com outros marcadores, como o de imigrante e o de gênero feminino, pode configurar imagens

de controle (COLLINS, 2019) que limitam o acesso dessas falantes à igualdade na condição

enunciativa (SIGNORINI, 2006) e, portanto, o acesso a direitos concretos.

Enraizado na estrutura social, o discurso colonial se encontra ecoando, não apenas

enquanto discurso proferido ou eufemizado, mas enquanto ordem, nas instituições, nas

entrevistas de emprego, na fila de espera. Seleciona não apenas quem pode falar e o que, quem

ocupa x ou y posições sociais, quem tem suas reivindicações atendidas e quem não tem, quem

ganha mais ou menos. No limite, o discurso colonial coordena as decisões sobre quem tem o

direito à vida e à morte.

No entanto, vemos também que, na contestação de sentidos, na reivindicação do debate

em torno de raça e no exemplo em torno de conotações interpretadas como positivas para a

ocorrência do termo negro, as alunas nos mostram uma saída ao recusarem a conotação

negativa, apontando uma conotação positiva para o termo, evidenciando a não fixidez do

significado. Sua concepção de língua(gem) assemelha-se à de Hall (1995; 2003), na

178

compreensão de que raça é um significante flutuante, móvel, que encontra significado em cada

contexto histórico de modo distinto, produzido pela linguagem.

A experiência de Rosario com a filha Penélope demonstra que, desde cedo, as crianças

já aprendem os elementos de sentido do sistema racial (NOGUEIRA; MAIOR, 2020) no

contexto na escola que frequentam. Assim, torna-se um desafio ético das instituições

educacionais e formativas buscar não reproduzir discursos que ferem (MELO, 2015). Como as

próprias alunas indicam, o primeiro passo é falar sobre a invisibilização do tema e nomeá-lo.

Um segundo passo, que as alunas também mostram, é perceber que, como instância discursiva,

a invisibilização pode ser combatida com o auxílio de contradiscursos, contestatórios das muitas

imagens de controle comumente associadas à negritude e à imigração no Brasil, dando

visibilidade a outros discursos, estes positivos, sobre negritude que também circulam no

imaginário social.

Dando prosseguimento às discussões sobre as necessidades e os projetos das alunas do

curso, que se podem configurar em direcionamentos para uma perspectiva de acolhimento no

ensino de língua portuguesa, sigo pontuando outros traços dessa ordem sociolinguística

heterogênea. Na seção seguinte, enfoco como suas experiências de aprendizagem de línguas

são marcadas por uma regulamentação linguística excessiva (SIGNORINI, 2002; 2006), efeito

do pertencimento das alunas participantes da pesquisa a culturas de língua padrão

(MILROY, 2011).

5.2 “É MUITO COMPLICADO NÃO FALAR CORRECTAMENTE O

PORTUGUÊS”: BORDAS E FRONTEIRAS NA BUSCA PELA LEGITIMIDADE

LINGUÍSTICA

Nesta seção, apresento e discuto os significados que emergem dos usos linguísticos

das alunas. Pontuando suas buscas pela apropriação dos usos da língua portuguesa para acessar

diferentes posições na sociedade e dialogar a partir de diferentes intuitos discursivos, enfoco

algumas das variadas práticas de linguagem em que se envolvem.

Discuti, até aqui, necessidades de aprendizagem de gêneros discursivos de

reivindicação e as imagens de controle que operam na invalidação de zonas de legitimidade de

falantes. Em seguida, a relação com o tempo para a realização de seus projetos foi evidenciada

como um ponto importante a configurar necessidades de aprendizagem na língua(gem). Como

vimos na seção acima, em suas buscas pela “língua legítima”, Marlene e Rosario demandaram

conhecimentos sobre ideologias subjacentes ao uso da linguagem, como a do racismo, por

179

exemplo, que configuram outras imagens de controle a permear o imaginário da sociedade

brasileira. Essas imagens de controle impactam a experiência de sujeitos imigrantes e a

legitimidade conferida aos seus usos linguísticos (SIGNORINI, 2006).

O indício da presença de discursos racistas na escola – na correção de Penélope à sua

mãe, Rosario – incitou o apagamento e, portanto, o silenciamento da temática negra, a partir do

procedimento referido por Nogueira e Maior (2020) como branqueamento discursivo. Sendo o

racismo um tabu em nossa sociedade, inclusive em instâncias de formação de professores, a

relevância do debate sobre racismo foi reforçada por outro dado, desta vez de Marlene, que, ao

ser corrigida pela vizinha, indicou a presença do procedimento discursivo de apagamento no

emprego do termo negro. A presença desse procedimento discursivo é corroborada por estudos

de Nogueira e Maior (2020) e Melo e Moita Lopes (2015), que pontuam a insistência de

discursos que ferem (MELO, 2015) em nossa sociedade. Segundo esses autores, justifica-se a

relevância de que se debata a respeito desses discursos na sala de aula de línguas e na formação

de professores de línguas. No que tange aos propósitos desta pesquisa, o debate importa para a

concepção de cursos que se pretendem de acolhimento, na perspectiva de uma recepção

(HOUAISS, 2001, p. 61) às diferentes experiências migratórias a partir de suas especificidades,

e que considerem os obstáculos postos pela sociedade na conferência de legitimidade às

enunciações dos imigrantes.

Ao enunciar suas buscas pela aprendizagem da língua portuguesa, as alunas do curso

revelam apreciações sobre as línguas que usam e sobre os componentes mais significativos de

suas identidades que, colocadas em suspensão pelo processo de deslocamento, são traduzidas

de diferentes modos por cada uma delas. No novo contexto, as negociações identitárias afetam

a construção dos repertórios linguísticos das alunas e de suas filhas. Os significados que

atribuem aos seus repertórios e aos de suas filhas, em associação a outros elementos de suas

narrativas de pertencimento, importam em uma perspectiva de acolhimento enquanto

“consideração” (HOUAISS, 2001, p. 61) às bagagens das aprendentes imigrantes (BIZON;

CAMARGO, 2018; ANUNCIAÇÃO, 2018), como um processo complexo de negociação e

constituição identitária (HALL, 2003; 2006). Na experiência da “tradução”, as alunas veem-se

“obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem

assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades” (HALL, 2006, p.88).

Um dos padrões recorrentes nas enunciações de algumas alunas em sala de aula é o

desejo de aprender as formas “corretas” da língua. No entanto, o que o campo nos permite

observar no contexto de ocorrência das práticas em que ações, significados e formações são

180

triangulados e interpretados é que esse “desejo de correção” não é abstrato na enunciação das

alunas. Ao contrário, refere-se a situações enunciativas bastante precisas, servindo a diferentes

propósitos, evidenciando um refinamento na leitura social e sobre língua em uso que cada uma

delas é capaz de mobilizar. Ou seja, o pressuposto de que os sujeitos estariam necessariamente

em busca de um ideal de correção, talvez possa ser uma abstração mais acadêmica que

propriamente uma presença geral no cotidiano das pessoas. Nas observações que Rosario e Neli

fazem sobre a língua em seu funcionamento ordinário, como já apresentado em seções

anteriores e como será abordado nas seções seguintes, os questionamentos que trazem

demonstram concepções de língua enquanto fenômeno inextricavelmente ligado ao social.

Enfoco, de um lado, cerceamentos à enunciação (SIGNORINI, 2006) que afetam suas

buscas na aprendizagem de línguas. Por outro lado, mostro também a relação de afeto que as

alunas têm com suas línguas e que compõe de diferentes modos seus usos linguísticos. Isso é

mais evidente no caso de Neli e de Rosario, que mostram privilegiar a manutenção da própria

língua materna no repertório linguístico das filhas. Apresento uma série de práticas em que se

envolvem de modo criativo a evidenciar como as alunas avaliam o que é certo e o que é errado

e como agem, no cotidiano, em relação às fronteiras impostas por seus interlocutores com os

conhecimentos que produzem localmente.

O pertencimento a culturas de língua padrão (MILROY, 2011) ou de excessiva

regulamentação dos usos linguísticos (SIGNORINI, 2002) parece afetar o modo como as alunas

constroem significados em torno da linguagem: sobre como se aprende línguas, sobre o que se

faz com linguagem, onde e como, e sobre que língua desejam aprender. Em contraposição, a

manutenção da língua materna no seio da família mostra-se também como uma questão de afeto

e marcação identitária no deslocamento. Esse sentimento, que as acolheria na diáspora,

revela-se em suas falas como uma constante busca junto às suas memórias, como o faz Marlene,

ou junto às suas filhas, como demonstram Neli e Rosario.

As mães, por vezes, se frustram ao ver o quanto a língua local penetra seu espaço

familiar na enunciação das filhas. O português é concebido por Rosário como língua mal falada

ou deficiente, como se pode perceber nestas duas falas:

Rosario: Eu acho que o português é como fala espanhol, pero mal (Rosario,

em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Rosario: Fiz um exercício de pensar como falasse meu sobrinho [...] ele tem

uma língua muito corta [língua presa], como falasse ele isso, então, lembro

181

como ele falasse, então, falo português e dá certo (Rosario, em transcrição de

áudio do dia 20/10/2018).

Adquirindo rapidamente a língua portuguesa no novo contexto, suas descendentes

deixam, cada vez mais, de falar a língua na qual a mãe apreendeu grande parte da sua visão de

mundo. Isso fica explícito nas quando Rosario afirma que a filha, Penélope cansou de falar

espanhol:

Rosario: [...] cansou de falar espanhol! Cansou! E empezó a falar português,

e ela não se deu conta de que mudou (Rosario, em transcrição de áudio do dia

20/10/2018).

Neli, por sua vez, menciona um modo de estimular a aprendizagem da língua materna:

Neli: Eu falo pra ela [Simona] no búlgaro, ela me responde no português, e,

até ano passado, eu fala com ela só no búlgaro pra ela aprender também junto

com português (Neli, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Lembrando Bakhtin (2010), é através da palavra alheia que nos inscrevemos no

mundo. Não aprendemos simplesmente uma língua(gem); somos constituídos nela a partir da

palavra alheia. Em um diálogo, é a partir de um outro que nos dirige a palavra que nos tornamos

capazes de conceber um mundo e nele incidir, linguisticamente. Para Neli e Rosario, não estar

mais envolta na língua dita materna é não ter a continuidade desse espaço em que se

constituíram sujeitos, antes mesmo de se tornarem mães, ainda que estejam em (re)constituição

constante e que o deslocamento geográfico as desperte para essa fluidez identitária.

Neli e Rosario valorizam a recorrência de gestos que envolvem afeto dentro de uma

cultura dita “tradicional”. Como mães, frustram-se nos momentos em que as filhas não atendem

aos sentimentos maternos por conta do uso de uma língua(gem) outra, o português, no ambiente

doméstico. Evidencia-se, assim, uma componente afetiva e simbólica nos usos linguísticos, que

não são se reduzem apenas a propósitos utilitários. Saliento, nesta discussão, algumas das

concepções de língua que emergem dessas rupturas de sentido que causam estranhamentos no

novo contexto. Por exemplo, em uma das aulas, Neli compartilha com a turma significados

tradicionais em torno de um pão redondo, segundo a aluna, muito comum Bulgária, feito

“quando nasce alguém, quando morre alguém, quando tem festa... Natal essas coisas”. Ao

mostrar as fotos da filha em um rito em que se destaca a importância do pão em sua cultura,

Neli nos revela o quanto a manutenção de elementos tradicionais de seu repertório cultural

182

importa para a construção de sua narrativa identitária, fortemente associado ao “discurso da

cultura nacional” (HALL, 2006).

Neli: Quando criança aprende a andar no nosso país se faz um assim poucas...

algumas coisas... livro... para algumas profissão [...] sim e faz um pão

redonda... Criança tem que ir e descobrir algum... [...] alguma coisa deste...

pintas livros essas coisas para profissão. [...] Esse [mostra fotos no celular]

com queijo se faz assado... Pode fazer a dentro com arroz pode fazer com

espinafre com esse [...] Olha, fizemos para Sofia e aqui tem um livro tablet

essas coisas e tem que fazer. [...] Quando criança ela tem que ir atrás do pão e

descobrir algumas coisas e ela vai crescer e vai trabalhar esso [...] Ela pegou

um... [aponta a criança com um rolo de pão na imagem de seu celular] e

adorou... pra cozinhar, cozinheiro (Neli, em transcrição de áudio do dia

20/10/2018).

A tradição aprendida no seio de sua família e cultura é o que constrói um sentido coeso

para a narrativa que estabelece sobre si e sua filha. O pão aparece como um argumento

identitário a justificar o pertencimento a certa tradição, certa língua, certa cultura. Nessa ação,

lê-se a importância que os ritos e a partilha têm para a aluna, que acabara de descobrir algo

importante sobre o futuro da própria filha. Com alegria, Neli, em geral reservada, contava-nos

sobre o caso. Trago a cena para o debate pelo simbolismo nela contida.

Segundo Geertz (1983), para compreendermos os conceitos a partir dos quais se

movem os sujeitos, é preciso considerar que os sujeitos vivem dentro de um quadro de ações e

significados e visar estas relações. Não se tratava exatamente do pão búlgaro, pois o queijo

daqui não é tão salgado quanto o de lá. Nem na receita do pão da Bulgária, nem da receita de

tequeños de Rosario. A tentativa de “tradução” do pão, na perspectiva diaspórica de que fala

Hall (2003), aparece como uma frustração na fala da aluna, que não consegue atingir a qualidade

do pão búlgaro por não possuir os ingredientes que permitem ter o sabor de sua cultura e precisar

imitá-los com elementos brasileiros:

Neli: Eu fiz issa comida do nosso país por que eu só posso fazer. Se você quer

saber, se você for lá [na Bulgária], vai comer melhor, porque queijo não está

o mesmo. Meu possibi... Minha possibilidade para fazer essas coisas não tá a

mesma. Não pude...

Marlene: Esto lo hiciste tu? como se llama?

Rosario: Como se llama?

Neli: Se chama banitsa

Marlene: Banita?

183

Neli: Banitsa

Eu: Banitsa

Neli: Normalmente faz com queijo branco... Por dentro tem aquele ricota.

Nosso queijo é mais salgado... [leva] manteiga, iogurte e ovo. E outra é mais

aquele que necessita provar. Abrir a massa e tem que estar muito fina, muito

fina, muito fina, se não, pode solar do outro lado.

Eu: Parecem os tequeños, pra ser a massa fina... lembra tequeño?

Rosario: Uhum...

Neli: O que que é tequeño?

Marelene: Parecido.

Eu: Tequeño é o que a Rosario fez. É fino e tem queijo dentro.

Neli: Sim, só esse é queijo branco, não é...

Eu: Ah, é ricota. O outro era mussarella,

Neli: O nosso é mais salgado e...

Rosario: Lleva queijo branco [o tequeño].

Eu: Frescal, a gente fala queijo frescal.

Rosario: Mas aqui eu não encontro queijo que seja similar.

Eu: Ó... não conseguiu um queijo parecido

Rosario: Todos os queijos são...

(Transcrição de áudio do dia 20/10/2018)

A diferença entre o pão imaginado por Neli e o pão que consegue produzir na realidade

brasileira lembra a reflexão de Bakhtin (2010) sobre a diferença entre a fome de um monge e a

fome de um camponês. Os elementos significam pelo significado de que se veste a

materialidade das palavras – no caso das alunas, vestidas de tradição. O pão não se encerra

numa mistura de ingrediente assada em um forno, nem a fome se reduz a uma sensação física.

O pão tem significados diferentes para quem o produz, quem o vende e quem o consome. Da

mesma forma, percebem a fome diferentemente um homem que sabe que uma refeição o

aguarda a horas certas e outro que não sabe se comerá naquele dia. Na perspectiva de Neli, o

pão sairia melhor com o queijo, que ganha o sentido de produto de uma cultura: “nosso queijo”,

diz Neli (Neli, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018). Para a aluna, eu só poderei comer

esse pão se eu for lá, na Bulgária.

184

O pão, portanto, torna-se um índice importante de tradição e constituição narrativa

identitária marcada pelos seguintes elementos: “nosso queijo”, “lá”, “não encontro queijo que

seja similar”. É na manutenção da narrativa de tradição, da língua e da cultura que Neli encontra

refúgio. Na feitura do pão, no entanto, atualiza-se um ethos, a sensação de pertencer a um grupo

imaginado que se manifesta sem necessidade de uma geografia comum (SEYFERTH, 1995).

No encerramento da cena, Neli narrou o achado da filha com alegria após descrever o alimento.

Ao longo do relato, também é notável o quanto as alunas acolhem umas às outras em

suas frustrações tradutórias com relação aos ingredientes que encontram para produzir suas

receitas. Rosario, assim como Neli também não encontra um “queijo similar” para seus

tequeños.

Em outros momentos de nossas interações, Neli mostra a importância das tradições de

sua cultura para a criação de suas filhas, realizando ritos que são significativos para sua família.

Em outra aula do mesmo semestre, comenta sobre o registro de origem de sua filha mais nova,

que nasceu em Florianópolis:

Neli: Aqui é muito interessante quem nasce aqui é brasileiro muito simple.

Eu: É... aqui é assim lá não?

Neli: Não... tem que ter pai ou família.

Eu: Não é búlgaro se nasce na Bulgária? Tem que ter pai ou mãe?

Neli: Família.

Eu: Eu não sabia... que engraçado.

Neli: Aqui [na] América Latina, [nos] Estados Unidos criado de imigrantes.

Lá na Europa é um pouco diferente, porque tá a nacionalidade de muito tempo.

Nosso país foi criado ano seiscentos oitenta e um (Conversa em transcrição de

áudio do dia 24/11/2018).

Neli refere-se à linhagem necessária para obter o registro de pertencimento em seu

país, justificando o pertencimento a uma cultura tradicional a partir da longa história do seu

país: “tá a nacionalidade de muito tempo” (Neli, em transcrição de áudio do dia 24/11/2019).

Em sua fala, a referência à longa história da Bulgária emerge como elemento de legitimação do

pertencimento, estratégia sobre a qual fala Anderson (2006) ao discutir as comunidades

imaginadas, Milroy (2011) ao tratar das culturas de língua padrão e Norman (2019) em relação

às ideologias linguísticas na Bulgária contemporânea.

185

Neli batiza a filha de Sofia Catarina para marcar a composição do seu repertório

cultural por meio da combinação do nome da capital da Bulgária (Sófia) e o nome da terra

escolhida pelo pai para estabelecer-se com a família. O ato de nomear a filha, registrada com

referência a um lá e um aqui, faz pensar que nossas inscrições no mundo se dão pela linguagem,

revelando o que valorizamos. Essas inscrições levam a uma suspensão identitária, em que o

“estar” no mundo contemporâneo desafia o “ser” estável das identidades tradicionais na

mobilidade (HALL, 2006; 2003).

A adoção de um nome para a filha, diz de uma continuidade (a tradição) e de uma

agência (o novo), da facilidade de escolher entrar em tal ou qual ordem e seguir com sua

bagagem. É talvez o paradoxo discursivo que se quer apontar nesse tempo, essa tradução

cultural, em que “há fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a

ilusão de um retorno ao passado” (HALL, 2006, p. 88). Interpreto as estratégias de Neli, no ato

de batizar a filha, como um gesto simbólico de nomear os sentidos de seu deslocamento –

marcando um entrelugar. Nesse espaço, as escolhas de uso das línguas pelas filhas levam a

aluna a se posicionar frente ao que faz sentido para ela: Na falta de um contexto linguístico que

a favoreça marcar o pertencimento à tradição búlgara, essa marcação é feita a partir da sua

interlocução com as filhas, padrão que também notamos com Rosario.

À relativa simplicidade desse movimento, desse aspecto do pertencimento, a essa

facilidade de ser oficialmente daqui, contrapõe-se a dificuldade/complexidade de ser da

Bulgária, de ser de um país que tem uma tradição em oposição a um país que não tem tradição.

Isso é colocado na fala dela, que menciona, como autoridade e direito à tradição, o ano da

fundação do país, em um gesto de apontar a origem, legitimando sua experiência pela citação

da história (MILROY, 2011), “longa e gloriosa”, à qual aderem os búlgaros identificados com

identidades tradicionais (NORMAN, 2019, p. 6) 32. Ao fazer referência ao ano de fundação da

Bulgária, Neli afilia-se discursivamente às narrativas tradicionais que mostram as Américas

como territórios novos, virgens, “descobertos” pelos europeus, o que invisibiliza os muitos

povos indígenas que aqui havia, com suas cosmogonias e calendários próprios. Sua fala lembra

32 Segundo Norman (2019), fazer referência ao ano de fundação do país, como fez Neli, é uma estratégia recorrente

dentre os búlgaros que associam suas identidades a ideologias nacionalistas. Em suas palavras: “Much like the

year 681 CE, Bulgarian’s claim to the Cyrillic alphabet further roots national identity into a long and glorious

history. Appealing to this historical longevity strengthens the nationalist ideology of Bulgarian while standard

language and orthography ties all Bulgarians together into an imagined community that shares one nation, one

language, and one culture” (Da mesma forma que o ano 681 d. C., a reivindicação do alfabeto cirílico pelos

búlgaros enraíza ainda mais a identidade nacional em uma longa e gloriosa história. Apelar para esta longevidade

histórica fortalece a ideologia nacionalista do búlgaro, enquanto a língua e a ortografia padrão unem todos os

búlgaros em uma comunidade imaginária que compartilha uma nação, um idioma e uma cultura) (NORMAN,

2019, p. 6).

186

a ideia de um mito fundacional que, segundo Hall (2006, p. 55), opera no discurso da cultura

nacional, “uma história que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num

passado tão distante que se perde nas brumas do tempo”.

Além da valoração da língua búlgara, importa mostrar outros elementos rituais que

apontam para a valorização de sua história:

Neli: Desculpa por que falo com ela [a filha Simona] em búlgaro... Ano

passado, no verão, eu falo muito português, eu falo só português, não falava

ninguma palavra no búlgaro... Eu falo pra ela no búlgaro, ela me responde no

português, e até ano passado eu fala com ela só no búlgaro, pra ela aprender

também junto com português.

Eu: E você continua falando com ela em búlgaro só em búlgaro?

Neli: Sim... vai aprender o português não tem como não aprender.

Eu: É... ela tá aqui e a Sofia? Você vai fazer igual?

Neli: Vamos a ver mas parece que sim.

Eu: Você fala com ela em Búlgaro?

Neli: Sim, na casa.

Eu: E o seu marido fala espanhol e português?

Neli: Ele fala espanhol. Desculpa, ele não gosta do português, fala que

português é mau espanhol [enuncia rindo com um pouco de vergonha]

Eu: Ahh, tem um monte de gente que fala isso.

Neli: Não quer aprender português. Ele gosta espanhol (Conversa em

transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Nesta interação, Neli nos coloca a par das estratégias que utiliza para a filha aprender

a “língua da mãe”, o búlgaro. Considerando que Simona falava muito o português, passa a falar

só em búlgaro para que a filha o aprenda juntamente com o português, língua que, segundo ela,

a filha “não tem como não aprender”. Neli revela a importância que tem a sua bagagem cultural,

tanto nos costumes que procura manter, como os relacionados à celebração em torno do pão,

quanto nas estratégias que utiliza para garantir o ensino de sua língua à sua filha. Quando

menciona a leitura de livros de literatura infantil que a filha traz da escola, relata fazê-lo

primeiro em português e depois em búlgaro, línguas que Neli considera como equiparadas no

repertório linguístico da filha:

187

Neli: Sempre leio primeiro no português, depois traduzindo pro búlgaro

também.

[...]

Eu: E como é que tá o português dela?

Neli: Dela de Simona?

Eu: Sim.

Neli: Mesmo nível do búlgaro (Conversa em transcrição de áudio do dia

13/04/2019).

A repetição dessas ações componentes do repertório cultural da mãe no Brasil – a

feitura do pão, a fala “somente em Búlgaro” e a leitura para a filha de livros em português

seguida de tradução para o búlgaro – traz importantes dados sobre como Neli lida com a

diversidade linguística do seu novo contexto. Em sua experiência, a reiteração dos costumes é

o que produz a sensação de pertencimento a uma cultura, mas estando em outra. No nome que

dá à filha que nasce no Brasil, a experiência de “tradução” ganha nome e sobrenome: Sofia

Catarina.

Nas escolhas das mães, fica evidente o quanto de esforço deliberado há em garantir a

manutenção de uma tradição cultural e linguística a compor o complexo identitário de suas

filhas. A cultura dá-se mais como uma repetição de ações conscientes, uma performance, que

um dado meramente natural ou contextual.

Chamam a atenção as valorações sobre as línguas búlgara e portuguesa que faz Neli.

Ao desculpar-se pela valoração negativa que o marido tem sobre o português, Neli faz lembrar

as relações língua-identidade de que fala Anzalduá (2009), para quem falar mal da sua língua é

o mesmo que falar mal de si própria. Neli projeta no outro a relação de apreço que ela própria

tem com a sua própria língua.

Como Marlene e Rosario nos ensinam, os significados não são estáveis e, quanto à

língua “do colonizador”, também ela é matéria moldável, que podemos recriar com os sentidos

que nos apetecerem, torná-la nossa, profaná-la, utilizá-la com outros ingredientes. Relembro

aqui da pergunta de hooks (2019, p. 226), ao refletir sobre um poema de Adrienne Rich sobre

falar a língua do opressor: “Como descrever o que devem ter sentido os africanos, cujos laços

mais profundos haviam sido sempre forjados no espaço de uma língua comum, mas foram

transportados abruptamente para um mundo onde o próprio som de sua língua materna não

tinha sentido?” (hooks, 2019, p. 226, ênfase minha).

188

A ruptura súbita na vida dos escravizados negros, provocada pela violência de seu

transporte forçado para o Brasil, significou não apenas uma interrupção de línguas, mas também

de narrativas de tradição, que acabaram por ser traduzidas, em solo americano, como narrativas

de resistência. O silenciamento das línguas negras no Brasil é um silêncio fundante e que

necessita evidenciado: diz da dificuldade de encontrar um ethos para o grupo mestiço brasileiro

sem que se caia em uma celebração vazia da diversidade em que a marcação da diferença não

faz diferença nenhuma (HALL, 2003) ao não incidir no desequilíbrio do status quo.

O pedido de desculpas de Neli sobre falar em búlgaro com a filha evidencia que

aprender a língua portuguesa é, para a família, uma fatalidade, uma consequência do

deslocamento: “não tem como não aprender” (Neli em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

É daí que passa a justificar o esforço preciso para a manutenção da tradição, o treinamento, o

rearranjo de estratégias. A aluna responde, muito atenta, à política linguística educacional

brasileira, que prioriza a língua nacional a despeito do repertório linguístico de seus estudantes,

circunscrevendo as línguas que não contam como português, a espaços cada vez mais restritos

dentro da escola (LUCENA; CARDOSO, 2018).

Em países discursivizados como monolíngues, como o Brasil (CAVALCANTI, 1999),

e no ensino de línguas estrangeiras, de modo geral, está presente a proibição da diversidade no

repertório linguístico dos aprendizes. As aulas de língua, em geral direcionadas a uma língua-

alvo (GARCÍA; WEI, 2013), ao desconsiderar a complexidade dos repertórios, acaba por

motivar atitudes como a de Neli, que pede desculpas por falar em búlgaro com a própria filha.

Isso motiva toda a discussão que aqui apresento em torno do quão significativos são os

elementos de seus repertórios linguístico-culturais para suas experiências de “tradução”, por

consequência, de constituição identitária no novo contexto. A aula de língua portuguesa para

mães imigrantes ganha uma outra dimensão: a de acolher no sentido de receber os significados

para os usos linguísticos que estão em construção por essas mulheres que buscam um lugar de

legitimidade enunciativa (SIGNORINI, 2006).

O controle das línguas passa também por estimular o contato com outras línguas

valorizadas por Neli que começavam a fazer parte do repertório linguístico da filha. Em

momento posterior, diz que Simona parou de estudar o inglês porque “tem que estar búlgaro

melhor”, acrescentando que a filha “vê desenhos em espanhol”. A perda de espaço do inglês

para o espanhol está em consonância com outros posicionamentos, inclusive políticos. É o que

nos revela Neli quando menciona que, apesar de a Inglaterra ser o destino mais procurado pelos

emigrantes da Bulgária, foi a América Latina o destino escolhido pelo marido. O desejo de

189

morar na América Latina acompanha o desejo de que a filha apreenda as línguas valorizadas

por seu pai, no caso, o espanhol.

Ao comentar sobre as estratégias de Neli com a filha para que aprenda a língua

valorizada pela mãe, Rosario entra na conversa e as duas alunas passam a falar sobre como as

filhas “misturam” línguas:

Rosario: Com Penelope também eu fiz igual [falar só em espanhol com a filha]

porque é por ela mistura o espanhol.

Neli: Oh, mistura é normal. Só porque ela no falava nenhuma palavra. Ela

entende, eu sei que entende, porque eu pergunto ela no búlgaro e ela me

responde no português, e ela entende. É só no gostaria falar e fazemos assim

para poder falar (Conversa em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Como falantes adultas escolarizadas, que passaram por processos institucionais de

legitimação de “línguas nomeadas” (GARCIA, 2009), a “mistura”, o modo como denominam

a translinguagem de suas filhas, mostra-se como um fenômeno normal por Neli, mas indesejado

por Rosario, que deseja a filha saiba identificar e dividir “os traços socialmente construídos

como pertencentes a duas línguas separadas” (GARCIA; WEI, 2014).

Marlene também comenta o contato das línguas nomeadas “português” e “espanhol”

como uma oportunidade: “tene oportunidade de aprender português e espanhol, verdad?”

(Marlene em transcrição de áudio do dia 20/10/2018). Rosario segue na desaprovação da

“mistura”, na contraposição do entendimento mostrado por Neli que se diz satisfeita de a filha

estar, pelo menos, compreendendo o búlgaro. Em comum, as duas mães revelam esforços de

manutenção de elementos de suas bagagens linguístico-discursivas, ou de suas línguas maternas

nos repertórios das filhas:

Rosario: Agora, a semana passada ela [Penelope] estava falando una coisa da

escola e ela, de repente, ela cansou de falar espanhol! Cansou! E empezó a

falar português, e ela não se deu conta de que mudou, e eu “Penelope, está

falando português”, “ah”, e retomou de novo em espanhol. Pero, agora, ela

muda e não se dá conta. Então estou corrigindo em espanhol porque está

misturando tudo (Conversa em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

É importante lembrar que, ao contrário de Simona, que entra na escola em 2019,

Penélope já frequenta uma escola no Brasil desde o início de 2018, e, como vimos, é tão exposta

ao português que já se sente competente o suficiente para orientar sua mãe sobre usos

linguísticos que não condizem com o que aprendeu sobre a pragmática da língua.

190

Nessa negociação, ao construir uma linha narrativa de tradição, a mistura é

compreendida como um erro que precisa ser corrigido. A própria noção de língua materna como

aquela na qual nos constituímos no mundo (BAKHTIN, 2010), encontra dificuldade de se

sustentar frente à diversidade linguística em cena. Na mobilidade, preocupam-se em assegurar

que dentro de uma heterogeneidade de usos linguísticos, as fronteiras entre as línguas

portuguesa e espanhola sejam asseguradas (SIGNORINI, 2002). Mostram-se comprometidas

com a ampliação do repertório linguístico de sua prole, para que as filhas também possam

movimentar-se nesse ambiente altamente regulamentador de suas práticas linguístico-

discursivas. Como Rosario coloca em outros momentos, é necessário saber “como dar certo em

português” em esferas laborais que deslegitimam usos híbridos como o trabalho com

comunicação, sua área de especialização, por exemplo. Sobretudo, essas mulheres-mães-

-imigrantes mostram o desejo de não apagamento de suas línguas, das marcações identitárias

que dão a elas o sentido de elo umbilical de que fala Hall (2003) entre seus territórios de origem

e o novo contexto. A importância de seus repertórios linguísticos deve ser considerada em

projetos que se que se queiram acolhedores a esses sujeitos e suas bagagens.

Apesar de ter muito cuidado com as formas linguísticas, isso não quer dizer que

Rosario não valorize o contato da filha com outras línguas. Neli diz que Simona tem contato

com o búlgaro e com o espanhol, ao que Rosario complementa: “quanto mais idiomas, melhor;

quanto menor aprenda, melhor; uma criança de três anos é mais fácil que uma maior” (Rosario,

em transcrição de áudio do dia 20/10/2018), apresentando valores positivos à aprendizagem de

outras línguas pela filha. Revela-se o espanhol, para Rosario, como um importante elemento

simbólico e afetivo de pertencimento.

As falas de Neli e Rosario, alunas que têm suas filhas junto de si no Brasil, revelam

um determinado padrão, o de tentativa de controle do repertório linguístico das filhas. Esse

controle é visto, por exemplo, na escolha de mães sul-coreanas imigrantes no Brasil, que

também demonstram preferência pela interação em língua materna com as filhas para a

manutenção de um valor cultural significativo para elas (GABAS, 2016). Essas mães, tanto as

coreanas quanto Neli e Marlene, mesmo estando em contextos tão diferentes, demonstram que

a diáspora, o elemento comum, pode influenciar a manutenção da língua materna como uma

questão simbólica, afetiva, identitária, que emerge de modo importante na formação do

conhecimento linguístico das suas filhas e filhos.

Levando em consideração que, nas interações face a face, há implícitos que parecem

guiar a forma como as identidades emergem na interação (RIBEIRO, GARCEZ, 2002), ressalto

191

que, desde o início da interação sobre português como mau espanhol, Neli mostra-se

preocupada em não ferir meus sentimentos sobre uma suposta “minha língua”, no pressuposto

língua-identidade mencionado acima. Para isso, desculpa-se e explica-se que não se trata de

não falar português, mas de falar búlgaro com a filha, escusando-se pela estratégia para

manutenção da tradição.

A ideia de um mau português, no entanto, não se reduz a uma impressão individual,

mas articula-se a questões de normatização implicadas no uso linguístico. Rosario e Marlene,

ao relatarem inseguranças quanto ao uso da língua portuguesa, chamam a atenção para os

processos de treinamento envolvidos na conquista do uso legítimo da língua materna, que

precisam ser desconstruídos na aprendizagem da língua portuguesa. Frente ao relato de Marlene

sobre dificuldades na língua portuguesa, Rosario menciona processos de correção para aprender

o espanhol, explicando o porquê de haver uma crença de que falar português significa falar um

mau espanhol, posição com a qual a aluna concorda:

Marlene: A mi me costó “presta”, “me empresta”. [sobre a dificuldade no

emprego do clítico]

Rosario: A gente sente que está falando mal... Porque eu acho que o português

é como fala espanhol, pero mal, porque todas as coisas que você corrige de

criança [em espanhol] você tem que pegar aqui com o português (Conversa

em transcrição de áudio do dia 20/10/2018.

Rosario deixa evidente o quanto sua concepção de língua e a imagem de um português

como um espanhol mau falado tem como origem uma educação ligada à correção de formas.

Ao serem questionadas se era difícil falar português, Rosario justifica:

Rosario: No, no es difícil. Só que é... é muito chocante. Porque você é

ensinado que “no é asi”, “no é asi”, que está mal. Então, quando vem aqui e

tem que escrivir “palavra” com “v” pequena – em espanhol seria com “b”

grande – e as crianças tendem a escrever com “b” pequena, escrivem com “b”

pequena “não é!” “tem que ser com outra”. “Emprestar”, essa é uma palavra

que a gente fala muito quando pequena, quando está aprendendo a falar: “me

presta” “não é, é pres-ta-me”. Então, quando uno... quando as pessoas chegam

então ficam com todas essas palavras que falam você é errado em espanhol,

mas aqui tem que pegar de novo. Entón eu fiz um exercício de pensar como

falasse meu sobrinho [...] ele tem uma língua muito corta [língua muito presa],

como falasse ele isso. Então, lembro como ele falasse, então, falo português e

dá certo e esso é certo (Rosario em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

192

Na fala de Rosario algumas características linguísticas são pontuadas e chama atenção

a estratégia da aluna para “dar certo” em português: falar como o seu sobrinho. Em outras

palavras, é falar sem treinamento, de modo deficiente, sem regulamentação, sem correção, o

que transformaria o português em espanhol, “dando certo”. As soluções de Rosario para “dar

certo” em português refletem o modo como conquistou sua legitimidade de falante escolarizada

em seu país, graduada em Comunicação: através de treinamento intenso. O choque da aluna, ao

concluir que precisa usar formas “erradas” em espanhol para “dar certo” em português, diz

respeito ao esforço de desaprendizagem de sua língua para falar outra, de desconstrução de seu

percurso de escolarização para conquistar outros espaços de legitimidade, desta vez, na língua

portuguesa. As ideias de Rosario revelam não uma posição pura e simples, independente, mas

um discurso que aciona alguns procedimentos convocados em torno de práticas que regulam as

formas da língua, como a necessidade de correção para a conquista de legitimidade e a

prioridade formal no ensino da língua, em detrimento dos propósitos comunicativos dos

falantes.

Toda essa experiência de aprendizagem da língua, que remete a instituições que

regulam a prática, é usada para compor a valoração que têm de suas línguas e das línguas de

outros, em contraposição à linguagem sem treinamento. Suas concepções são reflexos da

inscrição em “culturas de língua padrão” (MILROY, 2011) complexificados pela experiência

de mobilidade que as leva a saídas singulares para a conquista de legitimidade.

Em suas concepções sobre aprendizagem de línguas, a hibridez, ou mistura de línguas

é colocada como um desafio. Rosario preocupa-se com a mistura de formas. Para ela, a

semelhança entre o português e o espanhol, que está tentando definir, é colocada por Neli como

um possível elemento facilitador. Na visão de Rosario, é, na verdade, causa de frustração e

incertezas na aprendizagem:

Neli: Penso que, pra você é mais fácil aprender [a língua portuguesa] porque

é parecido a língua ou se faz mais difícil?

Rosario: Si, pero a gente não sabe quando divide, quando é una coisa e quando

é outra. Então, issa linha isso é muito dispersa. Então, você não sabe quando

é correto, quando é certo em português o soa espanhol (Conversa em

transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Para enunciar, segundo Rosario, é preciso “dividir quando é uma coisa e quando é

outra”. O espaço entre as formas é concebido como uma separação sutil, uma “linha” em que

as formas estão “dispersas”. Em sua busca pela definição das bordas e fronteiras entre aquilo

193

que define um espaço legítimo de uso da língua portuguesa e aquele lugar em que “soa”

espanhol, está a lógica da norma, a procura pela língua legítima, um espaço de enunciação per

se (SIGNORINI, 2006). O que parece ser dito nessa confluência de formas que se parecem, mas

que não se sabe o quanto podem ser tomadas uma pela outra, é que a aluna almeja uma

segurança pragmática para assentar no aqui ou no acolá dos sentidos. Interpreto sua fala como

um desejo de saber qual “a forma” adequada, em um sentido de correção e adequação

característicos da ideologia da língua padrão (MILROY, 2011). As linhas de força que atuam

na regulamentação linguística (SIGNORINI, 2002; 2006) impõem-se na procura de Rosario,

que se vê na posição de identificar os diferentes contextos de funcionamento da linguagem em

uso, em suas próprias palavras, identificar essa “linha muito dispersa”.

A frustração de Rosário em não dominar o território da língua(gem) que aprende e

“soar” espanhol remete a uma concepção de língua(gem) como sistema total e idealizado de

línguas e sons. Essa visão idealizada da aluna, que vê a língua(gem) como uma zona

impermeável, que não permite a dispersão de formas, é característica da uniformidade

preconizada pela regulamentação linguística (SIGNORINI, 2002) e influencia sua

aprendizagem de língua. À aluna, interessa identificar com precisão, em seu repertório

linguístico individual os traços “socialmente construídos como pertencentes a duas línguas

separadas” (GARCIA; WEI, 2014, p. 2), para transitar nessas fronteiras de modo seguro.

Após o intervalo da aula do dia 20/10/2018, Rosario concedeu uma entrevista para

dois alunos graduandos em jornalismo que elaboravam uma matéria sobre o curso de português

para mães imigrantes. Enquanto eu preparava os materiais na sala de aula, ao fundo, eles

entrevistavam Rosario. As perguntas a ela dirigidas se direcionavam a entender as contribuições

do curso de português para mães imigrantes para a aprendizagem da língua. Ao responder sobre

quais as maiores dificuldades que tinha antes de fazer o curso “por não falar português”, Rosario

fala sobre como concebe o processo de aprendizagem de língua e o que busca no curso de

línguas:

Rosario: Bom, meu aprendizaje [de português] foi muito (*) Eu comencé a

fazer... pero hay muitas cosas que, muitas dúvidas que ficam que no saiban

como estruturar o como encaixar en as lições. Então, essas dúvidas son que eu

pude tirar ou aprender aqui [no curso] e facilitaron um pouquinho as cosas.

Porque eu, (*) quando llega falando espanhol e misturando todo lo que sabe

com lo que va aprendiendo... – mas no se aprende todo (*) – as veces, é...

termina falando errado, porque mistura uma cosa que acha que puede dar certo

em português mas não dá porque tem outro significado, então isso é... acaba...

(*) no sé como fazer... no sé como falar... é uma obstáculo para a comunicar

com as pessoas (Rosario, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

194

Rosario se diz insegura e desejosa de ter controle sobre a pragmática da língua. A aluna

reitera o que já havia dito no primeiro dia de aula, que estudava a língua portuguesa de maneira

autodidática com materiais próprios. Acrescenta de que maneiras o curso a auxilia: a

“estruturar” e “encaixar” partes da língua nas lições. Em sua perspectiva, aprender língua

trata-se de aprender como encaixar partes de uma estrutura, e o papel do professor entra no

auxílio a dúvidas quanto a esses encaixes para “dar certo em português”.

A referência à aprendizagem de um “todo”, explícita em sua resposta como objetivo

de aprendizagem, poderia nos remeter à concepção de língua como um espaço de fronteiras

impermeáveis (MILROY, 2011) – um sistema de signos que só fazem sentido em relação a

outros signos do mesmo sistema. A aprendizagem da língua portuguesa seria tomada como a

de um sistema total, em que para “dar certo em português”, seria preciso ter controle sobre

todos os sentidos possíveis no novo horizonte pragmático. Nesse esquema, para enunciar em

português, além de ser preciso deixar de utilizar formas de outras línguas padronizadas

(MILROY, 2011), no caso do espanhol, seria preciso ter consciência sobre seu uso.

No entanto, apesar de mencionar “o todo”, a aluna não o menciona como se fosse um

sistema abstrato de formas que não dizem respeito ao contexto pragmático de ocorrência. Ao

mencionar esferas distintas em que circulam enunciados e que são mais ou menos permeados

pelos usos regulamentados da língua, ela revela ter uma sensibilidade à “heterogeneidade”

desses usos (BAKHTIN, 1997, p. 280). Pelos usos que menciona fazer da língua (ou que não

se vê capaz de realizar) reforça o entendimento de que “o caráter e os modos” de utilização da

língua são “tão variados como as próprias esferas da atividade humana” (BAKHTIN, 1997).

Rosario concebe a comunicação em Florianópolis como um falar errado: “quando llega

falando espanhol [...] misturando todo lo que sabe com lo que va aprendiendo [...] termina

falando errado” (Rosario, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018). Essa forma de aprender

a língua, marcando o lugar de deslocamento geográfico, também deixa ver a fronteira

linguística porosa, misturada, em que formas que vai aprendendo se misturam a outras. Essa

forma de falar em território híbrido é muito bem definida por ela, porém a mistura não é

valorizada em seu olhar, que considera a regulamentação linguística uma realidade que limita

suas possibilidades de realização fora desse território socialmente construído como língua

portuguesa “correta”.

Na sequência da entrevista, Rosario menciona que, para fazer compras e outras coisas

não relacionadas ao âmbito laboral, costuma valer-se de consultas na internet33, apontando um

33 Rosario menciona o Google, referindo-se ao buscador de internet Google Chrome.

195

traço típico da aceleração das sociedades contemporâneas, em que as tecnologias de

comunicação se complexificam. Porém, compreende que, para o trabalho – uma vez que sua

área é precisamente a da comunicação – precisaria falar o português corretamente. O uso da

tecnologia é evidenciado em uma ação pontual em seu cotidiano, demonstrando, por óbvio, que

ela tem acesso a essa tecnologia e que consegue utilizá-la com criatividade:

Rosario: O emprego (*), todo lo que eu sé fazer é com a comunicação. Então,

é: eu sou vendedora... eu tenho... no meu país sou publicitária então a: eu

preciso de me comunicar para poder fazer o meu trabalho, poder encontrar um

emprego que seja com aquel con lo que yo faço... Então, é muito complicado

não falar correctamente o português [...] sobretudo para um emprego e porque

para outras cosas eu he me auxiliado muito com Google, pesquisava no

mercado, pesquisava os nomes e pegava o que era o que não era (*). Tenho

isso de investigar, então (*), coisa difícil en as coisas cotidianas, mais que tudo

acho que é (*) procurando um emprego, sí, faz muita diferença (Rosario, em

transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Por trabalhar com comunicação, refere-se à necessidade e conscientização que em

determinadas situações de atuação precisará “falar corretamente o português”, e são as formas

corretas do português que complicam sua busca pelo emprego. Pode-se dizer que a aluna

deposita a esperança de que o curso lhe auxilie a chegar nesse português idealizado, padrão,

que sirva para melhorar a comunicação com as pessoas, mas também e, principalmente, auxilie

Rosario a ter competência para trabalhar em sua área.

Em outro momento do curso, ao falar sobre seus planos futuros, ela menciona a atuação

como professora de espanhol como possibilidade. Ao fazê-lo, deixa ver que a distância que está

do ideal de comunicação que estabelece para trabalhar em sua área – em um domínio de formas

corretas exemplarmente executadas por um falante nativo – a leva a mudar de rumos

profissionais:

Rosario: Sim, deixei lá pra que façam apostila [sobre seus documentos

deixados na Venezuela para validação de ensino superior no Brasil]... acho

que vou começar a estudar na universidade daqui. Estudar, uma pessoa me

falou que é muito mais sencillo... muito mais fácil... Fazer educação em

espanhol... professor... ser professor de espanhol. Então, recebendo esse [a

autenticação de seus documentos], vou começar a fazer isso (Rosario em

transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

A identidade espanhola é acionada na fala de Rosário ao decidir “fazer educação em

espanhol, por ser “muito mais sencillo” e “muito mais fácil” de se mover em um contexto em

196

que sua identidade linguística nativa é valorizada. Importa lembrar que a presença de turistas

da fronteira sul, especialmente os argentinos e uruguaios, impacta a paisagem linguística da

Ilha de Santa Catarina, sendo o espanhol uma língua importante no cenário linguístico local,

principalmente na alta temporada de veraneio. A cena mostra o impacto de representações sobre

língua e identidade reificadas no imaginário social a afetarem as escolhas profissionais dos

sujeitos na contemporaneidade (HELLER, 2003). A despeito de suas especializações

profissionais, essas mulheres em trânsito acabam por mudar os rumos de suas vidas por conta

de regulamentações linguísticas que limitam o que conta como português em determinadas

esferas de circulação social (BAKHTIN, 1997).

Outro exemplo do impacto do efeito de regulamentação na construção de uma

expectativa sobre determinadas esferas de circulação da língua portuguesa é o caso de Marlene,

que compartilhou conosco o projeto/desejo de fazer cursos profissionalizantes somente após

terminar o curso de português. Marlene se vê no papel de “afásica” em português, a quem faltam

recursos. A autoimagem da própria aluna enquanto faltante para com a língua portuguesa a faz

isentar-se de participar de um curso de corte e costura:

Marlene: Aí ditan cursos [na Prefeitura de São José, próximo à sua casa], pero

[...], mas eu no manejava el idioma e no me atrevi. Enton, depois que termine

este, que finalize este [o curso de português], voy a ver que cursos oferecen y

voy a fazer algo (Marlene, em transcrição de áudio do dia 10/11/2018).

Marlene diz que não se atreveu a tentar fazer o curso profissional oferecido pela

prefeitura por não lidar com o idioma (o português), revelando insegurança sobre a participação

no curso oferecido gratuitamente pela prefeitura. Conforme relata, fazer o curso sem manejar

“el idioma” seria um atrevimento: “no me atrevi”. Coloca, então, sua confiança no curso de

português como garantia de aprendizagem da língua(gem), recurso que associa ao passaporte

para participação no curso profissionalizante. Novamente, a ideia de formas linguísticas como

parte de um todo e aprendizagem do português como apropriação de um sistema total e

impermeável de formas influencia as decisões da vida cotidiana desta imigrante venezuelana.

Assim como nas falas de Rosario e de Marlene, também Neli evidencia que suas ideias

sobre linguagem impactam suas escolhas sobre a educação das filhas e sobre suas ações

cotidianas. Na aula em que Marlene comenta sobre sua experiência de alfabetizadora, Neli

ressalta que as filhas estão em idade escolar e que a falta do seu conhecimento de língua

portuguesa a impediria de julgar a qualidade da escola:

197

Neli: Elas já entra na pré-escolar [no ano seguinte] e eu, como no posso falar

português certo... no entende muito essas coisas... Como vai ajudar ela e como

vai saber que escola tá boa ou não tá boa? [...] Pra mim, é mais importante

mudar [de bairro, em Florianópolis] onde tem escola boa (Neli, em transcrição

de áudio do dia 10/11/2018).

Na última aula do primeiro semestre do curso de português, as filhas de Neli ainda não

estão na escola. Neli comenta sobre a importância de falar o português certo para ajudar as

filhas nos estudos e para escolher uma escola de qualidade, questão que privilegia para a escolha

do local de moradia. Neli aponta, mais uma vez, a esfera institucional da escola a configurar

necessidades de aprendizagem linguísticas da aluna, enquanto mãe comprometida com a

educação de suas filhas.

Nessa busca pelas formas corretas, Neli leva suas dúvidas à sala de aula para confirmar

ou refutar suas hipóteses. Na segunda aula do segundo semestre de curso (2019/1), em que as

filhas passam a frequentar a escola, Neli comenta comigo sobre Simona usar o pronome “tu” e

não “você”:

Eu: E como é que tá o português dela?

Neli: Dela, de Simona?

Eu: Sim.

Neli: Mesmo nível do búlgaro, só ela usa muito tu, não usa você

Eu: Ah tá, que aqui se usa muito tu, né?

Neli: Na escola, ela (*) tu.

Eu: [...] minha filha também tá falando tu, não usa você. Eu uso você no meu

dialeto. Eu falo você, mas a minha filha fala tu.

Neli: Simona fala tu, ela não usa você (Conversa em transcrição de áudio do

dia 13/04/2019).

Neli menciona o uso de “tu” por sua filha no lugar de “você” como um aspecto

indesejado em seu repertório, o que se revela na entonação do enunciado. Em situações como

essas, a explicação do professor requer um conhecimento que contemple aspectos da

diversidade linguística e social em seus usos heterogêneos. Por exemplo, a alternância

pronominal de segunda pessoa tu e você (e também a senhora / o senhor) no Brasil e em

Florianópolis tem sido amplamente debatida em estudos sincrônicos que revelam que há

variações no uso pronominal de segunda pessoa no que diz respeito a gênero, faixa etária, tipo

198

de relação entre os interlocutores, escolaridade, geografia e apreciação, mostrando-se a

realidade de uso da língua mais bem complexa que a apresentada por mim em sala de aula.

Segundo o estudo de Rocha (2012):

Os resultados mostram que, em Florianópolis, as mulheres usam mais tu que

os homens e os mais jovens usam mais a forma tu do que os mais velhos. Para

dirigir-se ao inferior, a forma mais utilizada pelo superior é tu, enquanto na

relação entre iguais, a forma mais utilizada é tu e, no caso de inferiores se

dirigindo aos superiores, a forma preferida é o senhor, seguida de você. [...]

Os mais escolarizados usam mais a forma tu do que os menos escolarizados.

Os indivíduos das zonas menos urbanas usam mais a forma tu do que os das

zonas mais urbanas. [...] A maioria dos ilhéus avalia positivamente a forma

você e a considera “boa” ou “mais bonita” que as demais formas de segunda

pessoa (tu e o senhor) e, por outro lado, não consideram “feia” ou “ruim”

nenhuma dessas formas, embora uma boa parte deles considere o tu “feio” ou

“ruim” (ROCHA, 2012, p. 11, ênfase minha).

Os resultados do estudo de Rocha (2012, p. 11) corroboram a percepção da aluna de

que a forma “tu” não é bem avaliada em alguns contextos, tendo sido o “tu” considerado por

boa parte dos ilhéus como “feio” ou “ruim”. A preferência de Neli por manter no repertório de

sua filha o uso de “você” e não de “tu” é notadamente uma preocupação que condiz com sua

busca pela melhor escola para as filhas. No entanto, enquanto partícipe de um cenário

linguístico ilhéu em região de pescadores (Neli mora no bairro Barra da Lagoa, situado em uma

região menos urbana de Florianópolis), a aluna percebe que o uso do “tu” é generalizado. Esse

índice a preocupa, levando-a a mencionar que gostaria de ter um melhor conhecimento da

língua (leia-se, de que formas são mais bem avaliadas, para ajudar as filhas, a terem “o melhor

português” possível). Suas buscas desafiam planejamentos de ensino de português a enfocarem

as formas mais bem avaliadas no contexto de uso da linguagem.

A pergunta sobre o uso da forma pronominal abre espaço, na sala de aula, para a

pergunta de Claitaine sobre a pronúncia da palavra “felicidade”, que aparece no texto que

estamos lendo:

Claitaine: Posso fazer uma pergunta, professora?

Eu: Claro!

Claitaine: Por que a gente falar felicidade ou felicidadi? Eu acho que é... pode

ser com /i/ também.

[...]

199

Claitaine: Se eu quer escrever...exemplo [Ela vai ao quadro e escreve “Te

amo”]

Eu: Ah, esse é o clássico né [risos] [tᶴi] amo.

Claitaine: Por que não é [te], é [tᶴi]? (Conversa em transcrição de áudio do dia

13/04/2019).

Para “dar certo” em português, esse tipo de questionamento de Neli e de Claitaine

sobre aspectos pronominais e fonológicos da língua é recorrente na sala de aula. Ambas partem

de observações empíricas da língua. Claitaine evidencia um questionamento sobre as relações

entre letras e fonemas, buscando compreender o que é permitido ou não no sistema da língua e

por quê.

A explicação técnica que forneci às alunas abrangeu os exemplos de /d/ e /t/ seguidos

de /i/ que, segundo as informei, tendem a palatalizar-se em algumas regiões. No caso de

“felicidade”, o /e/ final em posição átona pode ser pronunciado como [e] ou como [i]. Para

Claitaine, explico utilizando exemplos no quadro:

Eu: Muito bem... em muitos momentos, em muitas palavras o /e/, a gente

pronuncia como um [i], principalmente no final, quando ele é fraco. Por

exemplo, tem o t[ᶴ]i e tem o d[ᴣ]i. Essas questões são bem interessantes

Claitaine, eu vou trazer aqui pra ti [...] A gente fala [t]em mas a gente fala

[tᶴ]inha é isso? Mas, assim com... por exemplo, an[t]es [anoto a palavra

“antes” no quadro] an[tᶴi]s é com /e/ mas a gente fala [i]. É muito frequente

quando o /e/ tá no final da palavra, e ele é fraco, não é a sílaba mais forte, o

/e/ vai se transformar em /i/. É muito frequente, quer ver, ó tar[dᴣ]e... sen[tᶴ]e,

tá? E o engraçado é que quando a gente vai pegar essas duas letras, o /t/ e o

/d/, ocorrem modificações no som. Então, [de] se transforma em [dᴣi]. A gente

não fala tar[de], quer dizer tem gente que fala tar[de], [de], mas a maioria das

pessoas fala tard[ᴣi]... A gente faz um processo que chama palatalização,

transforma o [de] em d[ᴣi], como se fosse um d[ᴣi], assim ó [anoto no quadro

as palavras “sente” e “tarde”] sent[ᶴi], a mesma coisa, parece, que a gente faz...

não é sen[te], nem sen[ti], é sent[ᶴi], que nem diferent[ᶴi], também é com /d/.

E, no final, além de diferente, essa é a sílaba mais forte, SENt[ᶴi], essa é a mais

forte, TARd[zi], essa é a mais forte. Então, vai ser um /i/ aqui e, porque tem o

/t/, a gente vai chiar assim ó t[ᶴi]. Então, quando a gente vai colocar as vogais

na frente de cada uma dessas aqui da, de d[ᴣi], do, du, no meu dialeto, pelo

menos, sim. Tem gente que fala [dᴣ], tem gente que fala bom [dia]. Por

exemplo no nordeste você encontra, aqui também, e no interior de Santa

Catarina e em outros lugares do país você vai encontrar, mas a maior parte das

pessoas fala d[ᴣi]. Então você pode encontrar da, de, d[ᴣi], do, du, inclusive,

quando se escreve no final de palavras ou no meio, quando a sílaba é fraca,

você também vai encontrar o d[ᴣ]i, tá bom? (Eu em transcrição de áudio do

dia 13/04/2019).

200

Ao longo da explicação, aponto regiões em que se fala uma e outra forma, de modo

geral. Enfatizo a forma como eu falo dizendo que “a gente não fala” de um ou outro modo.

Modalizo com: “algumas pessoas falam”, e digo que “a maioria das pessoas fala” de tal ou qual

forma. Na sequência de dúvidas das alunas, percebo que há um desejo de saber sobre a forma

mais correta de falar. Neli exemplifica com os falares que costuma ouvir na região em que

mora em Florianópolis. O comentário seguinte de Neli reforça o desejo dessa busca pela forma

correta, pois a aluna diz que treinava para falar de um dado modo que não era mais fácil para

ela: “num tempo eu tava entrenando pra falar ‘bom d[ᴣi]ia’, ‘boa noi[tᶴi]’” (Neli, em transcrição

de áudio do dia 13/03/2019). Falo, então, sobre a diversidade de formas possíveis no país e

comento sobre não haver “um modo mais certo”. Abaixo, trago as falas das alunas:

Neli: Fácil [de], eu ouço mais esse [de] aqui na ilha.

Eu: Você mora ainda na Barra da Lagoa?

Neli: Sim, e lá também fala muito “bom [di]a”, “boa noi[ti]”, e, assim,

felicida[di]. Não fala assim muito [d[ᴣi]ia, noi[tᶴi]]

Eu: Isso! O manezinho, por exemplo, a pessoa que é originária daqui, se ela

vive ainda em regiões mais rurais, e mais afastadas do centro – e, não

necessariamente, porque meu marido é manezinho e não fala assim – mas,

quando ele é mais originário, ele fala assim: [dia], noi[ti]

Neli: A maioria das pessoas com quem falo fala [dia], fala noi[ti].

Eu: E Rio Grande do Sul também. Você tem muitos gaúchos ali na barra?

Pode ser também.

Neli: Aqui na ilha tem muitos gaúchos do Rio Grande.

Eu: Sim, tem muita gente do Rio Grande do Sul que fala assim. (Conversa em

transcrição de áudio do dia 13/04/2019).

Em seguida, na mesma aula, também Claitaine volta a perguntar sobre se é uma forma

ou outra.

Claitaine: É b[õw] dia ou b[õw] dia? [eu não percebi diferença ao escutar

várias vezes o áudio, mas creio que Claitaine se referia à oposição entre b[õ]

e b[õw]]

Eu: qual é a diferença? A gente fala como se fosse assim, ó, [bõw] [escrevo

no quadro uma forma simplificada da transcrição fonética]

[...]

201

Eu: O Brasil, ele é muito grande, então tem vários modos de falar o erre, vários

modos de falar esse /i/ final, esse /e/ final. Como eu te disse, no meu dialeto,

lá no Norte, ó, eu falo nor[tᶴi], eu falo tard[ᴣi], mas aqui os vizinhos da Neli

vão falar tar[di] e tá tudo certo, não tem um modo mais certo

Neli: Eu dou conta de esso, porque tava muito difícil para ler “bom d[ᴣi]a”.

Sempre quando leio, é mais fácil para ler “bom [di]a”. E, num tempo eu tava

entrenando pra falar “bom d[ᴣi]ia”, “boa noi[tᶴi]”, assim

Eu: ah você tava empenhada pra falar assim?

Neli: E quando eu falo “boa noi[tᶴi]” pro meu vizinho, ele me fala “boa noi[ti]”

[rimos] (Conversa em transcrição de áudio do dia 13/04/2019).

Neli aponta aspectos sobre o treinamento para “dar certo” em português. Assim como

Rosario, a aluna busca as formas mais bem avaliadas na língua portuguesa. Comento sobre a

diversidade de formas possíveis para falar em cenários reais e, em seguida, relaciono que a

valoração de formas como únicas ou melhores está relacionada com interesses políticos de

certos grupos em determinar o que conta como língua:

Eu: Não adianta, vai depender da região que você tá. Por exemplo, a minha

irmã também se casou com um manezinho. Então, ela começou a falar como

ele fala. É muito natural que a gente vá... comece a falar da forma que as

pessoas que convivem com a gente falam. É muito comum que isso aconteça.

Vocês podem escolher. Claro que o mais fácil é vocês escolherem aquilo que

tá mais perto da convivência de vocês. Nesses termos, assim, não existe

diferença. Existe diferença, digamos assim, apreciativa do que é considerado

mais perto da norma e mais distante da norma. Nesse sentido, existem

tentativas de dizer que existe uma variedade que é mais... é... digamos assim...

que é melhor. Existe uma tentativa de dizer isso, tanto é que existe por

exemplo, fonoaudiólogos que são profissionais da fala que tentam trabalhar

esses aspectos da oralidade. Por exemplo, no Jornal Nacional, que é um jornal

de ampla divulgação nacional, e existe um discurso que existe... que eles falam

de uma forma que é melhor pra todos entenderem. Então, o William Bonner

vai falar desse jeito, então vocês podem... Vale a pena vocês olharem como o

William Bonner fala e perceber o que que eles estão dizendo que é uma

oralidade mais fácil de ser compreendida, certo? É, e o William Bonner, ele

fala [dᴣi], boa tar[dᴣi], boa noi[tᶴi]. Não estou dizendo que é mais certo falar

assim tá? Estou dizendo que tem gente que diz que oralidade é, sei lá, melhor

ou menos marcada. Só que isso também é uma construção, tá, gente? É uma

ficção, isso serve pra determinados interesses, é uma construção política dizer

que uma língua é melhor que a outra. É uma construção política (Eu, em

transcrição de áudio do dia 13/04/2019).

Na relação que elas trazem, eu recomendo que elas escolham o que está mais próximo

da convivência delas, porém isso não parece ser o que as alunas buscam em termos de

202

aprendizagem de língua portuguesa. Tampouco faz sentido para elas uma visão de construções

melhores ou piores, como sendo ficcionais. Elas querem saber, exatamente, quais formas são

mais prestigiadas e o que significam, para que as possam utilizar em contextos específicos: no

trabalho, como aponta Rosario; na educação da filha, como aponta Neli; na necessidade da

segurança para ações cotidianas, como aponta Claitaine, que quer ter certeza da invariância no

uso das formas. Nesse quadro, a diferença de formas é notada e almejada para usos sociais

específicos.

As experiências de aprendizagem que as alunas tiveram ao longo de suas formações

em seus países de origem estiveram ligadas ao treinamento, inclusive na oralidade da própria

língua. O normativismo subjacente à essa aprendizagem as faz buscar essa diferenciação na

linguagem (SIGNORINI, 2006). Suas concepções sobre língua e aprendizagem são refletidas

nas dúvidas que elas têm quanto às formas da língua em aprendizagem. Nessa tônica, suas

dúvidas não dizem respeito apenas ao interesse por saber que formas são possíveis na língua

em aprendizagem, mas quais formas são as mais legítimas (SIGNORINI, 2006).

Entendendo a importância de problematizar essa busca para “dar certo” em português,

que pressupõe o julgamento de valor de certos falares em detrimento de outros, baseado em

uma pretensa qualidade essencial, ressalto o caráter político e ideológico da construção da

“melhor” forma. Interpreto que a ideologia da padronização está refletida nessa busca por

apreender as formas de prestígio, que darão acesso aos lugares sociais de prestígio, e não as

mais “fáceis” e mais “próximas da convivência” das alunas. Milroy (2011), por exemplo, critica

como idealista a tentativa de certos linguistas e professores/as de convencer os usuários da

língua de que não há diferenças relevantes entre as formas na realidade de uso da língua.

Segundo o autor, os usuários percebem os diferentes efeitos das formas consideradas de

prestígio em relação às estigmatizadas nas interações cotidianas. Heller, Pietkainen e Pujolar

(2018) também consideram que não é por acaso que as pessoas se esforçam para mudar o

sotaque. Há questões de pertencimento, de inclusão e de exclusão envolvidas nesse esforço, que

dizem respeito a acessar certos recursos construídos socialmente como possíveis a partir da

aquisição simbólica de coisas como línguas locais e variedades de prestígio. Nesse quadro de

busca por recursos linguísticos que as assegurem participar de certos espaços sociais, a lógica

de legitimação pelo uso da língua impera, como problematiza Signorini (2002; 2006). Minha

tentativa de lhes explicar que “não passa de uma construção política” dizer que uma variedade

difere da outra, portanto, não é o suficiente para convencer as alunas de que falar qualquer

203

forma é suficiente, precisamente porque, como digo, o valor de uma forma linguística é uma

construção política.

Também para essas mulheres, a linguagem é interpretada social e politicamente, pois

elas buscam fazer coisas no mundo e dar certo “em português”, mas, frente a uma nova língua,

é a variedade de prestígio que pretendem aprender, uma vez que, para elas é importante acessar

lugares de prestígio social, ou status de cidadãs no novo contexto em que vivem: frequentar

cursos profissionalizantes, reivindicar seus direitos, encontrar as melhores escolas para as

filhas, encontrar um emprego, dentre outras necessidades e buscas. A tentativa de dissuadi-las

do propósito de aprender a norma padrão aparece dissociada de seus reais interesses de

aprendizagem.

E, apesar de defender, para as alunas, um posicionamento de arbitrariedade do sistema

em relação ao uso, esse princípio parece não ter direcionado a minha postura como professora.

Nas transcrições, evidenciaram-se constantes correções às falas das alunas em sala de aula.

Relaciono essa atitude à minha formação como professora e pesquisadora (REIS; DURÃO,

2015; 2016), mas não somente. Também associo o enfoque na correção às minhas crenças

enquanto usuária de uma língua colonial. Como observa Fanjul (2011), a padronização, quando

é muito distante da realidade de uso da língua na relação oralidade/escrita, pode levar seus

usuários a produzirem línguas distintas na escrita e na oralidade. Um exemplo na língua

portuguesa seria o da colocação pronominal. Fanjul (2011) classifica esse tipo de padronização

como bipolar, com dois grandes centros (Portugal e Brasil) a referenciar os outros países

lusófonos. Em contraposição ao tipo bipolar, estaria a padronização policêntrica, no caso do

Espanhol, em que a norma peninsular é discursivizada como a central, em torno da qual

orbitariam as normas americanas (FANJUL, 2011).

A discrepância entre a variedade de formas em uso e as registradas nos compêndios

gramaticais, essas últimas ensinadas nos bancos escolares, pode operar no imaginário dos

usuários nativos da língua como se tivéssemos que aprender na escola uma outra língua, que

não nos pertence. Signorini (2012) denomina essa como uma sensação de déficit que o aluno

tem que administrar ao se ver na situação de aprender a própria língua materna na escola. No

caso dessas alunas, no contexto de ensino de português como língua de acolhimento, é preciso

acolher propósitos específicos de aprendizagem das alunas, que aqui conseguem apontar muito

bem. Cabe questionar se os instrumentos que temos utilizado (e como os temos utilizado) ou,

de forma mais geral, as amostras de língua que nós professores selecionamos para abordar em

sala de aula referem-se mais à idealizações ou se respondem à língua em uso, em sua variedade

204

de propósitos e estilos almejados pelos alunos e requeridos para realizar as atividades em que

se envolvem.

Nas interações com as alunas do curso, a correção de formas foi uma constante, tanto

nas falas das alunas quanto nas minhas intervenções. Interrompendo os enunciados das alunas

a todo instante, desempenhei um papel importante enquanto legitimadora da ideologia da

padronização, com forte apelo à correção, apesar de sustentar, por vezes, argumentos contrários

ao que fazia na prática.

Por exemplo, em uma atividade de conversação, que consistia em praticar os tempos

verbais do pretérito (perfeito e imperfeito), a partir de relatos de experiências no Brasil, Neli e

Marlene comentaram sobre o processo de mudança para o Brasil. Após as falas das alunas teci

considerações sobre suas narrativas que não diziam respeito principalmente ao que elas diziam,

mas ao como. Enfatizei o emprego de formas corretas como índice de bom desempenho na

atividade. Ao longo de suas falas, corrigi-as com frequência tal, que a fluidez narrativa chegou

a ser prejudicada (o que constatei ao ouvir as transcrições). Em dado momento, frente às

intervenções, as alunas passavam a não mais enfocar o relato em sua fala, mas o emprego de

formas “corretas”, como mostro a seguir:

Neli: Quando nós chegamos aqui no Brasil, primeiro moramos na

Florianópolis, Continente, São José, bairro Ipiranga, um meses na casa de

amigo de meu marido, depois nós viajamos pouquinho, Minas Gerais, São

Paulo (*), para conhecer, e, quando voltamos aqui na ilha, moramos um mês

na Canasvieiras (*) com criança, essas coisas, procuramos casa e assim (*)

Eu: Vocês moravam em casa? em Canasvieiras?

Neli: Não, não

Eu: Apartamento?

Neli: Apartamento. Esse que dá por temporada na verão e na inverno dá anual.

Eu: Sei, aluguel.

Neli: Si, só tem que ser de dezembro, porque na temporada eles alugam pra...

Eu: Ah, eles alugam pra turista

Neli: Alugam pra turista

Eu: Nossa, daí o preço é difícil... É difícil lá no Norte conseguir uma coisa

anual né? No Norte da ilha?

Neli: Não só no Norte. Qualquer lugar perto de praia é difícil conseguir anual,

porque pessoas no verão trabalham com turista.

205

Eu: Sei, perfeito. E aí, depois de Canasvieiras, vocês já foram pra onde? Vocês

foram pra Barra da Lagoa?

Neli: Sí, nós viajamos por qualquer lugar da ilha procuramos casa, essas coisas

Eu: “Pra todo lugar”

Neli: Pra todo lugar “buscar” ou “procurar”?

Eu: “Procurar”.

Neli: “Procurar”. E assim, achamos a nossa casa.

Eu: Muito bom! Perfeito! Você conjugou todos os verbos no passado de forma

correta. Muito bom! Muito bom mesmo! Bem legal! (Conversa em transcrição

de áudio do dia 10/11/2018)

Na apreciação da narrativa da aluna, privilegiei o feedback em torno da forma ao relato

sobre a busca de moradia – o foco da atividade. Em outra situação, sugeri o uso de formas com

justificativas de desambiguação, omitindo das alunas a estigmatização que havia em torno, por

exemplo, da falta de concordância verbal:

Eu: Vocês devem fazer esforço... Vocês, que têm a língua francesa e haitiana

como referência primeira, vocês devem fazer um esforço pra pronunciar no

final o /s/, no final das palavras no português, porque, senão você [o

interlocutor] não vai saber se é uma pessoa ou se são várias, porque vocês não

pronunciam o final das palavras nem em francês, nem... né? E, no português,

é muito importante que elas sejam pronunciadas, porque senão, não vou saber

se é uma pessoa ou mais, ok? Dako? Então “eles gostariam” (Eu, em

transcrição de áudio do dia 24/11/2018).

Apesar do significado social dessas formas, a explicação que dou às alunas foge à

realidade situada de uso da língua. A justificativa oferecida se assenta em pressupostos

pretensamente intrínsecos à estrutura da língua (desambiguação), retirando o sentido social que

podem produzir essas formas, conhecimento que é requerido pelas alunas.

Em outros momentos, faço uso de separações categóricas, tais como formalidade vs.

informalidade, como se houvesse uma linha nítida entre essas instâncias e como se todas as

situações de uso da língua pudessem ser divididas com base nesses critérios:

Eu: Quando eu falo pra vocês no WhatsApp, eu misturo formalidade com

informalidade, porque a gente tem uma proximidade, né? Nós nos

conhecemos um pouco, mas também porque eu tenho uma postura de

professora de falar português, de dar um exemplo de fala mais formal, e

206

porque eu tô escrevendo um texto (Eu, em transcrição de áudio do dia

24/11/2018).

Em minhas falas, mais do que “misturar formalidade com informalidade”, misturo

concepções de língua(gem) diferentes e que parecem não convencer de todo as alunas. Milroy

(2011) chama a atenção para a desconfiança que uma concepção deslocada da realidade social

sustentada por especialistas pode gerar no usuário da língua(gem). O autor diz que é um risco

desprezar as opiniões públicas, porque são “manifestações de posições e crenças

profundamente enraizadas na sociedade” e “amplamente difundidas na sociedade” (MILROY,

2011, p. 62). Em suas palavras: “se dissermos às pessoas que não são verdadeiras determinadas

coisas sobre a língua em que elas acreditam firmemente, elas desconfiarão de nós e rejeitarão o

que dizemos” (MILROY, 2011, p. 62).

Interpreto algumas das falas de Marlene como uma desconfiança de minha

qualificação enquanto professora “certificada” de língua portuguesa e estudante de

pós-graduação. A aluna, também especialista em metodologia da pesquisa, demonstra dúvidas

sobre minha legitimidade docente e, ao falarmos sobre o projeto do Curso de Português, ela

pergunta se eu “já sou professora”: “Este projecto es para finalização de sus estúdios de

professora ou ya você es professora?” (Marlene, em transcrição de áudio do dia 10/11/2018).

Marlene também questiona a pertinência do projeto: “si el proyecto no tiene las madres

haitianas, igual te lo van a validar34?” (Marlene, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018).

Ela vê incoerências no projeto e aciona sua identidade de especialista em metodologia da

pesquisa: “yo, como investigadora, siempre ando por en cima a question, enton eso cambia

cuando tiene una investigación” (Marlene, em transcrição de áudio do dia 20/10/2018). Em sua

fala, também questiona a minha identidade de pesquisadora, chamando a atenção, como coloca

Signorini (2006), que o status de legitimidade de falante não depende apenas da norma, mas de

uma posição social específica.

Para retornar à pergunta base da etnografia, como propõe Erickson (1990), pode-se

dizer que o que está acontecendo no cenário investigado é um confronto de concepções sobre

34 Vale lembrar que Marlene faz esse questionamento em relação ao propósito investigativo inicial da pesquisa,

voltado à experiência de aprendizagem de mães haitianas, constando esse objetivo no termo de compromisso que

as alunas participantes da pesquisa assinaram. Ao longo da investigação, com a mudança do campo pela demanda

de alunas de outras nacionalidades, o curso passou a dirigir-se a mães imigrantes, sem se dirigir a nenhuma

nacionalidade, em específico, o que ocasionou a mudança de enfoque investigativo. Por uma questão burocrática,

a autorização para a realização da pesquisa é feita de modo anterior à entrada em campo. Porém, na epistemologia

utilizada, como bem salienta Marlene, se o campo muda, o objetivo da pesquisa também muda. O compromisso

com essa atualização do campo na pesquisa foi dialogado com as alunas às quais foram explicadas que suas

experiências seriam também enfocadas na pesquisa.

207

língua(gem) permeado/constituído por ideologias, dentre as quais encontra-se a da

padronização. O embate em torno da variedade de prestígio e sua importância e quais formas a

caracterizam é um problema de linguistas, mas também de professores de línguas e sobretudo,

de formadores de professores de línguas. Essas crenças se materializam em políticas e é preciso

atenção elas, como nos coloca Milroy (2011) sobre essa problemática:

Ao selecionar uma variedade uniforme, bem delineada, para a análise, os

teóricos da linguagem podem desejar mostrar que estão preocupados

exclusivamente com as propriedades internas da língua e não com as questões

sociais ou ideológicas, que podem se confundir durante a análise. Mas quando

uma variedade padrão é explicitamente selecionada, ou quando ela paira sobre

os bastidores da análise, parece que suposições sobre questões sociais estão

necessariamente envolvidas, porque, embora a propriedade interna básica de

um padrão seja a uniformidade, ele se caracteriza externamente por numerosos

critérios sociais e ideológicos: é usado na escrita, tem status “culto”, tem

funções literárias, adquiriu “prestígio”. Assim quando a variedade padrão é

selecionada, fica difícil evitar contrabandear para dentro de uma análise

linguística interna um conjunto de suposições não analisadas que são

condicionadas pela ideologia do padrão (MILROY, 2011, p. 73, ênfase

minha).

Em várias das falas das alunas participantes da pesquisa, as “questões sociais que estão

necessariamente envolvidas” são um pressuposto para suas buscas. A partir de suas posições

sociais, elas percebem muito bem que língua precisam acessar em cada situação social.

Enquanto mães, mantêm seus significados tradicionais, dentre eles, suas línguas maternas,

buscam estimular a consciência no uso de formas das filhas, para evitar as “misturas”, pois

entendem (e percebem) que misturas não são bem quistas na sociedade. Rosario, especialista

em comunicação, entende que precisa de um português mais sofisticado para atuar em sua área,

buscando, alternativamente, uma esfera de atividade mais “sencilla, mais fácil”, mais

conveniente aos seus recursos linguísticos: o ensino da língua materna, o espanhol. Marlene

procura aprender português rapidamente para fazer cursos profissionalizantes e Claitaine deseja

autonomia para corrigir seu currículo, para enviar e-mails com seu currículo anexo, dentre

outras várias ações que demandam o conhecimento de formas que permitam acessar esses

vários lugares sociais com o uso da língua(gem).

As necessidades e buscas das alunas do curso de português para mães imigrantes

requerem a aprendizagem de usos linguísticos específicos, relativos a diferentes esferas de

atividades. A análise e interpretação dessas singularidades pode contribuir para um

estranhamento dos trilhos que temos utilizado em nossas práticas educacionais, de modo a

208

considerar alguns dos traços dessa ordem sociocultural e linguística heterogênea. No capítulo

seguinte, de considerações finais, aponto, a partir da discussão e interpretação das questões que

emergiram da pesquisa de campo realizada até aqui, de que modo o ensino pode ser configurado

para considerar as necessidades e buscas de alunas mães imigrantes aprendizes de português.

209

6 COMO MULHERES-MÃES-IMIGRANTES FAZEM PARA “DAR CERTO

EM PORTUGUÊS”: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o intuito de compreender de que modo o ensino de língua portuguesa pode ir

ao encontro de necessidades e projetos pautados por mulheres-mães-imigrantes, busquei

conhecer que necessidades e projetos se evidenciariam no campo. Assim, durante o

desenvolvimento de um curso de português para mães imigrantes por mim proposto, utilizei um

diário de campo, áudio-gravações de aulas e entrevistas e produções textuais das alunas para

gerar os dados desta pesquisa. Claitaine, Marlene, Neli e Rosario, gentilmente, aceitaram

participar da pesquisa, compartilhando as singularidades de suas experiências diaspóricas.

Conforme princípios da etnografia da linguagem, os significados construídos pelas

participantes da pesquisa foram privilegiados. Como resultado de muitas idas e voltas aos dados

gerados, em diálogo com a teoria, e levando em conta o macro contexto da pesquisa, foram

geradas quatro questões, as quais serviram de arcabouço para a análise e são sumarizadas a

seguir.

A primeira questão emergente do campo, “Infelizmente, não podemos fazer nada!”,

apontou para a necessidade de dominar gêneros discursivos da esfera jurídica, como a

reclamação e a denúncia. Essa necessidade também aparece em outros trabalhos, como em

Ruano (2020) e Bernardo (2015). Ruano (2020) pontua que a exploração no ambiente de

trabalho foi trazida por alunas que denunciaram abusos em seus direitos, a partir dos quais

salienta a importância que tem dado ao tema na orientação aos professores do projeto que

coordena na UFPR: “[...] Nesse sentido, nossa equipe tem apresentado com frequência essas

questões em nossas formações semanais, com o intuito de que os professores incluam em seus

materiais didáticos, sempre que possível, questões trabalhistas, direitos e deveres, práticas

abusivas e outras” (RUANO, 2020, p. 225).

São Bernardo (2015) pontuou a importância de abordar, na preparação do material

didático para um certo grupo, questões relacionadas aos direitos da mulher, frente aos relatos

de abuso de alunas participantes de sua investigação. A importância de desenvolver recursos

linguísticos para o domínio de gêneros do discurso como a denúncia é refletida na Coleção

Vamos Juntos(as)! – Curso de Português como Língua de Acolhimento – Trabalhando e

Estudando (BIZON; DINIZ; CAMARGO, 2020), em pontos temáticos a serem trabalhados

com o aluno. Os autores abordam questões sobre direitos humanos e direitos trabalhistas.

Trago esses outros autores para pontuar que o desrespeito aos direitos humanos não é

uma questão pontual, mas uma realidade do contexto migratório de hospitalidade seletiva

210

brasileiro, que requer um trabalho com a linguagem que leve em conta a realidade de suas

experiências diaspóricas. No caso com Claitaine, por exemplo, vi-me na posição de sair do meu

papel de professora para buscar conhecimentos de que eu não dispunha. O episódio aponta para

a necessidade de que projetos como o curso de português para mães imigrantes sejam

articulados a serviços de assistência providos por outras áreas, como o Direito e da Psicologia.

Portanto, como contribuição para projetos de ensino de português a mães-imigrantes sugiro aos

gestores buscar a articulação com agentes e projetos de outras áreas, uma vez que as

emergências trazidas pelas alunas podem demandar amparo jurídico, psicológico e outros.

Saliento a importância de fazer alianças com grupos que trabalham com Psicologia e Migração,

tanto no que diz respeito ao amparo das estudantes, quanto dos professores que atuam junto a

elas e que se veem, muitas vezes, sem saber como tratar certas temáticas em sala de aula,

considerando a densidade emocional das narrativas.

A segunda questão emergente do campo, “Tengo pressa de estudiar el português,

muita pressa!”, tratou da divisão do tempo para articular suas atividades cotidianas. Entre essas

atividades, foi mencionada a frequência ao curso de língua portuguesa e a possibilidade de

realizar atividades no espaço fora do curso, o que suscitou reflexões em torno do espaço-tempo

da aula. A realização do curso de português aos sábados pela manhã possibilitou a presença das

alunas que trabalhavam durante a semana. A possibilidade de levar os filhos permitiu que as

mães sem rede de apoio estável tivessem um espaço e um tempo para estudar com tranquilidade,

sem as constantes interrupções que crianças pequenas fazem quando próximas às mães –

questão que foi prevista por mim e que foi corroborada pelas alunas.

No que tange à preparação de materiais didáticos que contemplassem necessidades e

projetos provenientes das urgências e esperas dessas mães, como discutido na seção de

materiais didáticos, as necessidades mais salientes e recorrentes estavam relacionadas à esfera

de atividades laborais. No entanto, entendo que teria sido importante considerar outras

demandas, que também foram solicitadas e que, por questões de tempo ou por não serem

comuns a todo o grupo, não puderam ser abordadas. Como exemplo, pontuo necessidades

relacionadas ao uso de recursos digitais, como solicitado por Claitaine, que não se

configuravam buscas de outras participantes da pesquisa. Sendo assim, para um olhar

singularizado, creio necessário desenvolver formas de realizar um atendimento mais

personalizado a cada aluna, reservando-se um tempo por aula para atender a questões mais

pontuais para cada aluna. Essa proposta de atendimento singularizado poderá requerer mais de

um professor por turma de trabalho, a depender da quantidade de alunas. Outra sugestão para o

211

trabalho singularizado seria a abertura de um espaço para solicitações dos alunos, em que

necessidades e projetos pontuais pudessem ser transformados em materiais didáticos

singularizados.

No contexto do curso, a comunicação via mensagens de WhatsApp, por exemplo, foi

um espaço de trocas em que emergiram necessidades e projetos das alunas, por vezes,

relacionadas a urgências da esfera do trabalho. No caso de Claitaine, em mais de uma de suas

solicitações, pude ir ao seu encontro atendê-la. Porém, penso que esse espaço poderia ter ficado

constantemente aberto às outras alunas também, de modo explícito, para que suas demandas

reais fossem enfocadas.

O modo como foi conduzida a pesquisa, sem um questionamento direto sobre quais

seriam as necessidades e projetos das alunas, fez com que as questões surgissem delas próprias.

Não creio que teria sido mais efetivo o uso de entrevistas estruturadas, uma vez que a

investigação teórico-metodológica da etnografia não presume uma identificação pontual de

questões do campo. Ao contrário, requer um olhar reflexivo, analítico e interpretativo ao longo

de todo o tempo em campo, e posterior ao campo, de modo a fazer associações entre o contexto

imediatamente investigado e o contexto mais amplo em que se dão as ações.

Além dos espaços alternativos de troca que possibilitam as esferas digitais, considero

importante que a elaboração didática possa ser flexível, colocando-se sempre aberta a

reformulações advindas das necessidades emergentes das alunas. Mais ainda, creio que seja

possível deixar o convite sempre aberto às sugestões temáticas das alunas sobre desafios e

obstáculos reais por que passam no uso linguístico cotidiano, como proposta conjunta de

elaboração de material didático.

A terceira questão emergente do campo, “Negro não, marrom fofinho”, que traz a

dificuldade de Marlene e Rosario de traduzir culturalmente o termo negro, novamente aponta

para a sedimentação de ideias cristalizadas de intolerância a sujeitos/grupos considerados como

“outros”. No caso em análise, foram enfocados procedimentos discursivos que auxiliam na

manutenção do racismo de um modo velado. As próprias alunas, Marlene e Rosario, em seus

questionamentos, apontam para a importância de falarmos sobre questões raciais em sala de

aula. Suas necessidades de compreensão do uso do termo negro no contexto sócio-histórico

brasileiro atual vão na contramão de discursos que invisibilizam, diminuem e apagam essas

temáticas de ambientes de ensino de línguas.

A partir do debate sobre o procedimento discursivo que apontaram as alunas, o

branqueamento discursivo (NOGUEIRA; MAIOR, 2020), sugeri que falar sobre a temática do

212

racismo pode gerar maior consciência sobre os mitos, as teorias e as experiências históricas que

produziram esses sentidos negativos sobre o negro. Também destaquei a importância de

enfocarmos os sentidos positivos que, como demonstram Rosario e Marlene, constitui a cadeia

de sentidos para o termo negro na Venezuela. Ressaltei a importância do debate sobre o racismo

na sala de aula de línguas por ser esse um discurso que fere (MELO, 2015) e que, portanto,

deve ser combatido. Além disso, justifica-se o debate sobre o racismo pelos indícios de

proliferação desses discursos na escola e na sociedade como um todo (MELO; MOITA LOPES,

2015).

Melo (2015) também aborda uma questão fundamental, a qual corroboro: o

silenciamento sobre raça na formação de professores. Melo e Moita Lopes (2015) destacam

ainda outras temáticas relacionadas à racial, que também são silenciadas na sociedade, como a

escravidão, a ciência da raça, a democracia racial, a negritude e a mestiçagem. Tais temáticas,

por estarem presentes na sociedade, impactam a sala de aula de línguas, devendo ser

consideradas em perspectivas de ensino que não tomam a língua pela língua (MELO, 2015),

mas que a veem como um construto histórico-social que constrói e medeia as relações humanas.

A quarta questão emergente do campo, “É muito complicado não falar correctamente

o português”, diz respeito às buscas por legitimidade de falantes em um ambiente altamente

regulamentado de práticas linguísticas em contraposição à idealização do professor de

português sobre as amostras de língua que escolhe para compor o material de ensino. O desafio

que se coloca ao professor de português para mães-imigrantes é o de levar em conta as

especificidades das buscas das alunas, sem idealizações em torno do que sejam suas

necessidades e projetos. Esta pesquisa evidenciou que as alunas conseguem gerar soluções

criativas para muitos de seus intuitos discursivos. Outras demandas, no entanto, requerem usos

linguísticos bastante específicos, sendo necessária a mediação do professor.

Em seus esforços para “dar certo em português”, as alunas precisaram mudar de

planos, esperar e priorizar outras urgências. Ao compartilharem suas experiências diaspóricas,

evidenciam que suas conquistas e dificuldades não representam apenas uma “tradução” entre

línguas, mas uma parte significativa de suas narrativas de pertencimento, um processo de

marcação identitária complexo e negociado, em que o território exige uma permeabilidade, por

vezes indesejada, de outros conteúdos. Essa complexidade demanda do professor sensibilidade

com o uso pelas alunas de todo o seu repertório linguístico em sala de aula, principalmente no

tocante às línguas que utilizam com seus filhos.

213

No que tange aos objetivos desta pesquisa em específico, para além das características

que outros estudos têm levantado sobre o que conta como acolhimento, língua de acolhimento

e PLAc, as alunas mostram que o acolhimento é também algo que parte das próprias alunas,

que se acolhem protagonizando uma série de trocas em que a escuta tem uma centralidade.

Desse modo, ressalto as subjetividades dos sujeitos, a complexidade e a singularidade de seus

projetos diaspóricos, o respeito aos seus repertórios linguístico-culturais e o lugar devido e

humano no cenário de mobilidade global. Corroborando questões já citadas, entendo a

importância de mudarmos o olhar para esses sujeitos, para que os tomemos pelo que têm e pelo

que são, pelo que trazem, pelo que agregam, pelo que movem e transformam, pelo que lutam e

pelo que buscam.

Importa ressaltar que esta tese foi escrita durante a pandemia de coronavírus, momento

em que o descaso e a ingerência com que foi tratada a crise sanitária no país acentuaram a

desproteção a grupos já precarizados por processos históricos e sociais, como os/as negros/as,

os/as imigrantes e as mulheres, principalmente as que têm crianças pequenas sob sua

responsabilidade. Nesse momento, ressalto a importância da ferramenta analítica da

interseccionalidade para a melhor compreensão da forma como as forças estruturantes da

sociedade precarizam mais as vidas de certos sujeitos/grupos que as de outros.

214

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230

ANEXO A – FICHA DE PRÉ-INSCRIÇÃO DE MÃES HAITIANAS PARA O CURSO.

CURSO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA MÃES HAITIANAS

A Organização pelos Refugiados (OPR), organização não-governamental (ONG) que tem por principal objetivo buscar melhores condições de vida para os refugiados, irá oferecer um curso de Língua Portuguesa destinado a mães haitianas. O Curso de Língua Portuguesa para Mães Haitianas será voltado, preferencialmente, a mães que precisem levar seus filhos consigo para as aulas. Detalhamento do curso: Facilidades para as participantes:

• Contaremos com o auxílio de uma ou mais pedagogas - a depender da demanda - para cuidar dos bebês e das crianças enquanto as mães têm aulas;

• O material didático e de apoio (canetas, cadernos etc), bem como um lanche serão a elas oferecidos.

Requisitos:

• Ser mãe, ter seus filhos consigo no Brasil ou não. Proficiência:

• As mães podem ter qualquer nível de proficiência na língua. Local:

• A princípio, as aulas ocorrerão no Instituto Federal de Santa Catarina – Av. Mauro Ramos, 950 – Centro – Florianópolis - SC.

Caso seja do seu interesse, peço que nos forneça os seguintes dados: Nome da mãe: ___________________________________________________ E-mail: _________________________________________________________ Telefone (Whats App?): ____________________________________________ A mãe tem trabalho fixo? Em que turno? _______________________________ Quantidade de filhos: ________ Idades dos filhos: _______________________ Nomes dos filhos: _________________________________________________ As crianças/os bebês frequentam creche/escola? ________________________ Precisam ir para a aula com a mãe? ___________________________________ Melhor turno para as aulas: manhã, tarde ou tanto faz? ____________________ Nome da mãe: ___________________________________________________ E-mail: _________________________________________________________ Telefone (Whats App?): ____________________________________________ A mãe tem trabalho fixo? Em que turno? _______________________________ Quantidade de filhos: ________ Idades dos filhos: _______________________

231

ANEXO B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA MÃES

HAITIANAS

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Olá!

Meu nome é Narjara Oliveira Reis, sou estudante e pesquisadora da Pós-graduação em

Linguística na Universidade Federal de Santa Catarina, e gostaria de convidá-la para participar

de minha pesquisa. O título, ainda provisório, é “Subalternidade e Ideologia: práticas de

linguagem de mães haitianas em um curso de Língua Portuguesa em Florianópolis”.

O objetivo do estudo é mostrar como você lida com a aprendizagem da língua

portuguesa, sendo imigrante e mãe em Florianópolis. Como participante, você poderá contribuir

para o desenvolvimento de cursos de língua portuguesa que melhor atendam as necessidades

de imigrantes e refugiados/as, especialmente as necessidades de mães haitianas.

Para realizar a pesquisa, registrarei as aulas de Língua Portuguesa em áudio, vídeo e por

meio de fotografias para que fiquem gravadas todas as situações que acontecem na sala. Além

disso, farei uma ou mais conversa(s) com você.

O que você acha? Para participar da pesquisa é importante que saiba que:

a) nenhum material será divulgado ou utilizado na pesquisa com seu nome ou sua imagem;

b) por se tratar de uma pesquisa colaborativa, você poderá me auxiliar a selecionar os materiais

para reflexão, desde que se sinta à vontade para isso;

c) em qualquer momento da pesquisa você poderá pedir maiores informações sobre o estudo;

d) você poderá desistir de participar em qualquer momento da pesquisa, mesmo já tendo

assinado este documento;

e) todas as informações geradas em campo serão mantidas em sigilo, tanto as obtidas em nossas

interações cotidianas, quanto aquelas registradas em áudio e vídeo, e serão usadas somente com

a sua aprovação;

f) será utilizado um nome fictício para a sua identificação no texto da pesquisa e esse nome

poderá ser escolhido por você;

g) os dados serão transcritos quando necessário for inclui-los no texto da tese;

Projeto de Pesquisa

SUBALTERNIDADE E IDEOLOGIA: PRÁTICAS DE LINGUAGEM DE

MÃES HAITIANAS EM UM CURSO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM

FLORIANÓPOLIS

Pesquisadora: Narjara Oliveira Reis (PPGLin/UFSC)

232

h) para apresentação em congressos e eventos, a imagem do seu rosto será borrada dos vídeos

liberados por você para exibição e será mantido, igualmente, o sigilo da sua identidade;

i) à princípio, você não precisará arcar com nenhuma despesa, mas, se porventura, em algum

momento, precisar haver alguma necessidade financeira para deslocamento, lanche ou outro

fim, em função de algum dos procedimentos investigativos, eu mesma arcarei com as despesas.

j) caso sejam identificados e comprovados danos provenientes desta pesquisa, você tem

assegurado o direito à indenização.

É necessário que saiba que existe o risco de você sentir algum desconforto emocional

ao falar sobre experiências que possam trazer lembranças simples. É preciso que saiba que você

sempre terá a opção de não responder o que não quiser, se achar que vai se sentir de alguma

forma incomodada com algum assunto da conversa.

Uma cópia deste documento ficará com você e é importante que a guarde bem para que

possa assegurar seus direitos de proteção de imagem, identidade e outros garantidos pelo

Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (CEPSH/UFSC).

Este projeto tem aprovação do CEPSH/UFSC e, como pesquisadora, comprometo-me a

conduzir esta pesquisa de acordo com a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde

(CNS) de 12/06/2012 e suas complementares, que visam a garantir a condução ética e a proteção

aos participantes da pesquisa. Caso precise de maiores informações sobre a pesquisa, você

poderá solicitar a mim, à minha orientadora, também responsável por este projeto Profa Maria

Inêz Probst Lucena ou ao CEPSH/UFSC, através dos contatos abaixo:

Narjara Oliveira Reis – Pesquisadora em campo – Fone: (48) 99984-5084

E-mail: [email protected] Endereço: Rua Folhas Verdes, 50, Córrego Grande

CEP: 88037-540

Profa. Dra. Maria Inêz Probst Lucerna – Pesquisadora responsável – Telefone: (48) 9962.1305 –

E-mail: [email protected] – Endereço profissional: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de

Comunicação e Expressão (CCE) – Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLg), 3º andar – Campus

Universitário – Trindade, Florianópolis.

CEP - Comitê de Ética em Pesquisa/UFSC

Reitoria II, 4º andar, Sala 401

Rua Desembargador Vitor Lima, nº 222, Trindade

Telefone: 3721-6094

E-mail: [email protected]

Atenciosamente,

_______________________________ _________________________________ Profa.

Dra. Maria Inêz Probst Lucena Narjara Oliveira Reis

Orientadora PPGLg/UFSC Pesquisadora em campo PPGLg/UFSC

Se concordar em participar, por favor, preencher com seus dados abaixo:

233

Eu, _______________________________________________________, portadora do

documento de identidade _________________________________ fui informada dos objetivos

e procedimentos da pesquisa “Subalternidade e Ideologia: práticas de linguagem de mães

haitianas em um curso de Língua Portuguesa em Florianópolis”, de maneira clara e

detalhada. Sei que a qualquer momento poderei solicitar novas informações e modificar minha

decisão de participar se assim o desejar. Nessas condições, declaro que concordo em participar

desta investigação. Recebi uma via original deste TCLE e me foi dada a oportunidade de ler e

esclarecer as minhas dúvidas.

__________________________________ __________________________________

Assinatura do(a) participante da pesquisa Assinatura do pesquisador responsável

Florianópolis, ____ de ______________ de 2018.

234

ANEXO C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA MÃES

HAITIANAS EM CRIOULO

BASE SOU KONSANTMAN AVEK LIBITE (BKL)

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)

Bonjou,

Non mwen se Narjara Oliveira Reis, mwen se etidyan e chechèz an doktora nan lang

nan Inivèrsite Federal de Santa Catarina, e mwen ta renmen invite ou a patisipe nan rechèch

mwen: “Subaltènite e ideyoloji: kou pratik sou lang pòtigè pou tout fanm Ayisyèn ki gen

pitit nan Florianopolis”.

Objektif kou a se pou mwen montre ou koman ou ka fè. pou ou aprann pale potigè, menn

lè ou se imigran e manman pitit depi ou ap viv nan Florianopolis. Kòm patisipan ou gen dwa

pou ou patisipe nan kou potigè a .tout imigran ou refigyè en general e plis espesyal tout fanm

ayisyèn ki gen pitit.

Pou m ka realize pwojè a mwen ap anregistre kou potigè m'ap fè video ap gen voz e ap

gen imaj tankou foto. Pou m ka anregistre tout sa ki pase nan sal la mwen ap fè yon ti

konvèsasyon ou plis avèk ou.

Kisa ou panse? Pou ou Patisipe nan rechèch la li enpòtan pou on konnen ke:

a) Anyen pap divilge ou itilize nan Rechèch la avek non ou ni foto ou;

b) Kom se yon rechèch koletif, ou ka ede’m chwazi materyèl ki pèmèt reflexsyon depi ou santi

ou alèz pou ou fè sa;

c) Nan nenpòt moman ou ka mande m explikasyon sou etid la;

d) Ou ka sispann patisipe nan rechèch la nan nenpòt moman, menm lè on te siyèn yon papye;

e) Tout enfomasyon ke mwen kolekte ap retè sekrè kit sa mwen fè anregistreman kit sa ki pale

pandan ti chita pale, e mwen ka itilize yo selman si ou dàko;

f) Ou ka itilize yon fò non pou idantifyè w nan text rechèch la, ke ou menm kapab chwazi;

g) Done ou yo mwen ap tradwi yo sou fòm ekri si mwen ta vle itilize yo pou téz mwen an;

h) Pou yon presentasyon nan yon kongrè ou yon reyinyon, foto figi ou pap parèt nan vidèo ki

libere a si ou otorize, pou difisyon an l’ap rete an sekrè menm jan ak idantite ou;

Pwojè rechèche

SUBALTÈNITE E IDEYOLOJI: KOU PRATIK SOU LANG POTIGÈ POU

TOUT FANM AYISYÈN KI GEN PITIT NAN FLORIANOPOLIS

Chèchè: Narjara Oliveira Reis (PPGLin/UFSC)

235

i) An Princip ou pap bezwen fè ankenn depanse men si pa malè ou itilize kòb ou pou ou achte

manje maten oubyen peye machin ou yon lòt bagay ki gen rapò ak kou a mwen ap kouvri

depanse yo ak kòb mwen ou ranbouse ou li;

j) Si an ka ou idantifyè ou konprove yon inkonvenyan nan rechèch la, ou gen dwa avek asurans

e dwa pou yo dedonaj ou.

Li enpòtan pou ou konnen si gen risk pou ou santi ou wònt lè ou ap pale de experyans

ou nan aprann lang nan ki ka fè ou sonje move moman ou te pase. Li enpòtan pou ou konnen

ke w’ap toujou gen opsyon pou pa reponn sa ou pa vle oubyen sa ka fè ou santi ou mal.

Yon nan kopi dokiman sa ap pou ou e ou dwe konsève li byen paske se li ki pral ba ou

dwa sou proteksyon sou foto w, idantite w e anpil lòt garanti sou Komite Etik nan Rechèch nan

Inivèsite Federal Santa Catarina - KESH/UFSC (CEPSH/UFSC).

Pwojè sa gen otorizasyon CEPSH/UFSC e kom chèchez mwen pwomèt ke map kondwi

rechèch la selon la lwa 466/12 Konsèy Nasyonal Sante (KNS) de 12/06/2012 ki base sou bòn

kondwit ak etik ki garanti pwoteksyon pou chak patisipan nan rechèch la.

Si ou ta bezwen plis enfòmasyon sou rechèch la ou kapab mande mwen oubyen pwofesè

mwen an e ki responsab pwojè a, Maria Inêz Probns Lucena, oubyen nan CEPSH/UFSC nan

kontak ki anba:

Narjara Oliveira Reis – Chèchez sou teren – Telefone: (48) 99984-5084

nan e-mail: [email protected] Adrès: Ri Folhas Verdes, Córrego Grande, nimewo 50,

ZIP: 88037-540

Profa. Dra. Maria Inêz Probst Lucerna – Chèche responsab – telefone: (48) 9962.1305 –

nan e-mail: [email protected] – Adrès pwofesyonal: Inivèrsite Federal de Santa Catarina, Sant

kominikasyon e Expresyon (SKE) (CCE) Pwogwam de Licens e Doktora na Lenguistik (PPGLg)

3º etaj – Kampus Inivèrsitè – Trindade, Florianopolis.

CEP – KEP - Komitê de Etik nan Rechèch/UFSC

Reitoria II, 4º etaj, sala 401

Adrès: Ri Desembargador Vitor Lima, nº 222, Trindade

Telefone: (48) 3721-6094

Nan e-mail: [email protected]

Afektyez,

_______________________________ _________________________________ Profa.

Dra. Maria Inêz Probst Lucena Narjara Oliveira Reis

Supèvisè PPGLg/UFSC Chèchez sou teren PPGLg/UFSC

Si ou dako pou patisipe, silvouplè renpli pati ki vid anba:

Mwen, _______________________________________________________, idantifyè nan

dokuman nimewo _________________________________ mwen gen infòmasyon sou

objektif e pwosesus sou rechèch ki gen kom tit “Subaltènite e ideyoloji: kou pratik sou lang

236

pòtigè pou tout fanm Ayisyèn ki gen pitit nan Florianopolis” nan kontext klè e detayè. Mwen

konnen nan nenpòt moman mwen ka bezwen enfomasyon nouvo e mwen ka chanje davi si

mwen vle patisipe ou pa. Nan kondisyon sa mwen deklare ke mwen dako pou mwen patisipe

nan ankèt la. Mwen resevwa yon kopi original de dokiman BKL (TCLE), e mwen te jwen

posibilite pou mwen li e poze keksyon sou dout mwen yo.

__________________________________ __________________________________

Siyati patisipant nan rechèch Siyati chèche responsab

Florianopolis, ____ de ______________ de 2018.

237

ANEXO D – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA

PROFESSORES

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Cara professora,

Eu, Narjara Oliveira Reis, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística

da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGL-UFSC), gostaria de convidá-la a participar

como voluntária da investigação previamente intitulada “Subalternidade e Ideologia:

práticas de linguagem de mães haitianas em um curso de Língua Portuguesa em

Florianópolis”.

Nesta pesquisa, pretendo compreender as práticas de linguagem de mães haitianas

aprendizes de Português, participantes de cursos de Língua Portuguesa voltados a imigrantes

haitianos. O objetivo é discutir e problematizar as necessidades específicas de mães haitianas

em seus processos de aprendizagem de português à luz de suas trajetórias linguísticas. Esse

estudo se justifica pela importância de se conhecer as condições necessárias para que mães

haitianas sejam verdadeiramente acolhidas em nossa sociedade de modo que possam

efetivamente aprender a língua portuguesa. Ao examinarmos com proximidade o andamento de

um curso para haitianas poderemos observar aspectos que contribuem para a assiduidade, o

engajamento e aproveitamento das mães como participantes desses cursos. Objetivamos, assim,

oferecer subsídios ao aprimoramento e à elaboração de futuros cursos de Língua Portuguesa

que tenham mães haitianas como participantes.

Os procedimentos metodológicos envolvem a minha participação das aulas como

observadora-participante, ministrando aulas e planejando as atividades didático-pedagógicas

em colaboração com você. Envolvem ainda, a elaboração de diários de campo, de entrevistas

com as professoras e com as mães haitianas, participantes do projeto e a realização de gravações

de áudio, de vídeo e de imagens fotográficas, de modo a conhecer a estrutura do ambiente em

que são ministradas as aulas e a qualidade das interações que ali ocorrem. Assim, em diversos

momentos, terei conversas informais com você, farei anotações de falas, diálogos e de

acontecimentos relacionados às interações comunicativas.

No caso de você aceitar participar da pesquisa, é importante que saiba que:

a) em qualquer momento, você pode solicitar que imagens e gravações sejam suprimidas da

pesquisa;

Projeto de Pesquisa

SUBALTERNIDADE E IDEOLOGIA: PRÁTICAS DE LINGUAGEM DE

MÃES HAITIANAS EM UM CURSO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM

FLORIANÓPOLIS

Pesquisadora: Narjara Oliveira Reis (PPGLin/UFSC)

238

b) nenhum material será divulgado ou utilizado na pesquisa sem o seu consentimento e todas

as imagens por ventura publicadas no estudo, terão as faces borradas de todos os sujeitos

participantes ou não da pesquisa para evitar identificação;

c) por se tratar de uma pesquisa colaborativa, você poderá me auxiliar a selecionar os materiais

para reflexão, desde que se sinta à vontade para isso;

d) em qualquer momento da pesquisa você poderá pedir esclarecimentos sobre os

procedimentos de investigação;

e) você poderá desistir de participar em qualquer momento da pesquisa, mesmo já tendo

assinado este documento, sem que sofra nenhum prejuízo por conta disso;

f) todas as suas informações coletadas em campo serão mantidas em sigilo, salvo para o grupo

de pesquisa da pesquisadora, tanto as obtidas por meio das interações quanto através dos

registros em áudio e vídeo, até a sua aprovação;

g) será utilizado um nome fictício para a sua identificação no texto da pesquisa, que poderá ser

escolhido por você;

h) a análise e a apresentação de dados na pesquisa serão transcritos para inserção textual na

tese;

i) para apresentação em congressos e eventos, a imagem do seu rosto será borrada dos vídeos

liberados para exibição e será mantido, igualmente, o sigilo da sua identidade;

j) à princípio, você não precisará arcar com nenhuma despesa, mas, se porventura, em algum

momento, precisar haver algum ônus financeiro para deslocamento, lanche ou outro em função

de algum dos procedimentos investigativos, você será ressarcida por mim;

k) caso sejam identificados e comprovados danos provenientes desta pesquisa, você tem

assegurado o direito à indenização.

Os riscos envolvidos na participação da pesquisa estão associados à influência da

pesquisadora nas atividades didático-pedagógicas do curso, tanto pelo caráter da pesquisa,

quanto pelo uso das tecnologias para o registro (aparelhos para registro de som e de imagem

estática e em movimento), além de possíveis desacordos metodológicos no caso de ações que

partem de epistemologias distintas. Apesar disso, consideramos que o plano de ensino é um

documento flexível, sempre aberto a alterações convenientes pelos condutores no andamento

dos cursos e que pode se beneficiar da participação de outros interlocutores interessados no

bom desenvolvimento do processo de ensino-aprendizado, portanto, como benefícios é possível

que você possa vir a considerar positivo o contato com outras formas de ensinar línguas

estrangeiras, assim como o contato próximo com a pesquisa em sala de aula.

Este documento foi elaborado em duas vias, que deverão ser rubricadas e assinadas por

você e pela pesquisadora, ficando uma com você e outra com a pesquisadora. É recomendável

que mantenha em segurança a sua cópia, uma vez que ela lhe garante direitos em relação à

pesquisa.

Este projeto tem aprovação do CEPSH/UFSC e, como pesquisadora, comprometo-me a

conduzir esta pesquisa de acordo com a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde

(CNS) de 12/06/2012 e suas complementares, que visam a garantir a condução ética e a proteção

aos participantes da pesquisa. Mais esclarecimentos sobre os princípios éticos que conduzem a

pesquisa, poderão ser solicitados a mim, pesquisadora, à orientadora dessa pesquisa e

pesquisadora responsável, Profa Maria Inêz Probst Lucena, ou ao Comitê de Ética em Pesquisa,

através dos contatos abaixo:

Narjara Oliveira Reis – Pesquisadora em campo – Fone: (48) 99984-5084

E-mail: [email protected] Endereço: Rua Folhas Verdes, 50, Córrego Grande, CEP: 88037-540

239

Profa. Dra. Maria Inêz Probst Lucerna – Pesquisadora responsável – Telefone: (48) 9962.1305 –

E-mail: [email protected] – Endereço profissional: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de

Comunicação e Expressão (CCE) – Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLg), 3º andar – Campus

Universitário – Trindade, Florianópolis.

CEP - Comitê de Ética em Pesquisa/UFSC

Reitoria II, 4º andar, Sala 401

Rua Desembargador Vitor Lima, nº 222, Trindade

Telefone: 3721-6094

E-mail: [email protected]

Atenciosamente,

_______________________________ _________________________________ Profa.

Dra. Maria Inêz Probst Lucena Narjara Oliveira Reis

Orientadora PPGLg/UFSC Pesquisadora em campo PPGLg/UFSC

No caso de estar de acordo com os termos anteriores, preencher os respectivos campos:

Eu, _______________________________________________________, portadora do

documento de identidade _________________________________ fui informada dos objetivos

e procedimentos da pesquisa “Subalternidade e Ideologia: práticas de linguagem de mães

haitianas em um curso de Língua Portuguesa em Florianópolis”, de maneira clara e

detalhada. Sei que a qualquer momento poderei solicitar novas informações e modificar minha

decisão de participar se assim o desejar. Nessas condições, declaro que concordo em participar

desta investigação. Recebi uma via original deste TCLE e me foi dada a oportunidade de ler e

esclarecer as minhas dúvidas.

__________________________________ __________________________________

Assinatura do(a) participante da pesquisa Assinatura do pesquisador responsável

Florianópolis, ____ de ______________ de 2018.

240

ANEXO E – MATERIAL DIDÁTICO “FALANDO DE MIM: PALE DE MWEN”

SEMESTRE 2019/2 – MÓDULO I

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ANEXO F – MATERIAL DIDÁTICO “ATIVIDADES DIRECIONADAS: Trabalhando nas

nossas dificuldades” SEMESTRE 2019/2 – MÓDULO II

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259

260

261

ANEXO G – CÓPIAS DE E-MAILS SOBRE PARTICIPAÇÃO DO PROJETO DE ENSINO

AOS REFUGIADOS NO IFSC