Perspectivas da regulação na saúde suplementar diante dos modelos assistenciais

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433 TEMAS LIVRES FREE THEMES Perspectivas da regulação na saúde suplementar diante dos modelos assistenciais Perspectives of the regulation in the health insurance face the model assistance 1 Departamento Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem/ UFMG. Av. Alfredo Balena 190, sala 519. EE/UFMG, 30130-100 Belo Horizonte MG. [email protected] 2 Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e Programa Integrado de Saúde Coletiva da PUC-Campinas 3 Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. 4 Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. 5 Hospital das Clínicas/UFMG. Deborah Carvalho Malta 1 Luiz Carlos de Oliveira Cecílio 2 Emerson Elias Merhy 3 Túlio Batista Franco 4 Alzira de Oliveira Jorge 5 Mônica Aparecida Costa 5 Abstract This study discusses the advances and limits of governmental regulation in the health insurance and intends to serve as a “map” of the integrality of the assistance provided by following the continuum care. The user would be monitored according to a established course of therapeutic plan, led by a process of service provision and not by a logic bent on frivolous consumption (of ser- vice). This mechanism allows the state to employ regulating parameters and criteria for the control the quality of the care provided. Key words Health insurance, Governmental regulation, Integrality assistance, Continuum care Resumo O atual trabalho discute os avanços e limites da regulação pública da saúde suplemen- tar e propõe mapear a integralidade da assistên- cia pelo acompanhamento da linha do cuidado. Discute um modelo no qual o usuário deveria ser acompanhado segundo determinado projeto tera- pêutico instituído, comandado por um processo de trabalho cuidador, e não por uma lógica “in- dutora de consumo”. Esse mecanismo visaria as- segurar a qualidade da assistência prestada. Palavras-chave Saúde suplementar, Planos e seguros saúde, Regulação pública, Integralidade da assistência, Linha do cuidado

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Perspectivas da regulação na saúde suplementardiante dos modelos assistenciais

Perspectives of the regulation in the health insurance face the model assistance

1 Departamento MaternoInfantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem/UFMG. Av. Alfredo Balena 190, sala 519.EE/UFMG, 30130-100 Belo Horizonte [email protected] 2 Departamento deMedicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e ProgramaIntegrado de SaúdeColetiva da PUC-Campinas3 Departamento deMedicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.4 Secretaria Municipal deSaúde de Belo Horizonte.5 Hospital dasClínicas/UFMG.

Deborah Carvalho Malta 1

Luiz Carlos de Oliveira Cecílio 2

Emerson Elias Merhy 3

Túlio Batista Franco 4

Alzira de Oliveira Jorge 5

Mônica Aparecida Costa 5

Abstract This study discusses the advances andlimits of governmental regulation in the healthinsurance and intends to serve as a “map” of theintegrality of the assistance provided by followingthe continuum care. The user would be monitoredaccording to a established course of therapeuticplan, led by a process of service provision and notby a logic bent on frivolous consumption (of ser-vice). This mechanism allows the state to employregulating parameters and criteria for the controlthe quality of the care provided.Key words Health insurance, Governmentalregulation, Integrality assistance, Continuum care

Resumo O atual trabalho discute os avanços elimites da regulação pública da saúde suplemen-tar e propõe mapear a integralidade da assistên-cia pelo acompanhamento da linha do cuidado.Discute um modelo no qual o usuário deveria seracompanhado segundo determinado projeto tera-pêutico instituído, comandado por um processode trabalho cuidador, e não por uma lógica “in-dutora de consumo”. Esse mecanismo visaria as-segurar a qualidade da assistência prestada.Palavras-chave Saúde suplementar, Planos eseguros saúde, Regulação pública, Integralidadeda assistência, Linha do cuidado

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Introdução

A política de saúde no Brasil seguiu, nos anos80, uma trajetória paradoxal: de um lado, aconcepção universalizante, de outro, obedecen-do às tendências estruturais organizadas peloprojeto neoliberal, concretizaram-se práticascaracterizadas pela exclusão social e redução deverbas públicas. Em função dos baixos investi-mentos em saúde e conseqüente queda da qua-lidade dos serviços, ocorreu uma progressivamigração dos setores médios para os planos eseguros privados (Malta, 2001).

A expansão da Saúde Suplementar nas últi-mas décadas foi significativa, estimando-se se-gundo os dados da PNAD/98, em 38,7 milhõeso número de brasileiros cobertos por pelo me-nos um plano de saúde, o que corresponde a24,5% da população do País (IBGE, 2000). Es-ses números expressam as profundas alteraçõesque a prestação dos serviços de saúde vem so-frendo, colocando na agenda governamental anecessidade do estabelecimento de um ordena-mento jurídico legal para o setor, que incorpo-re a regulamentação desse mercado privado e adefinição das suas responsabilidades. Essa re-gulamentação iniciou-se em 1998, mediante alei 9.656/98 e aprofundou-se com a lei 9.661/00,que criou a Agência Nacional de Saúde Suple-mentar, mas ainda existe um grande percursona sua consolidação (Brasil, 1998; 2000a). Con-vive-se com uma grande heterogeneidade nospadrões de qualidade do setor, fragmentação edescontinuidade da atenção, que comprome-tem a efetividade e a eficiência do sistema co-mo um todo, atingindo as redes de cuidadosbásicos, especializados e hospitalares, que aten-dem a clientela de planos de saúde.

A chamada “assistência médica supletiva”adquire inúmeros formatos na prestação da as-sistência e esses numerosos aspectos devem sermelhor conhecidos. O atual trabalho procuraabrir o debate sobre os diferentes modelos as-sistenciais praticados na saúde suplementar, vi-sando ao maior conhecimento do setor e orien-tação da ação regulatória do Estado.

A saúde suplementar é composta pelos seg-mentos das autogestões, medicinas de grupo,seguradoras e cooperativas. Denomina-se “au-togestão” os planos próprios patrocinados ounão pelas empresas empregadoras, constituin-do o subsegmento não comercial do mercadode planos e seguros. As autogestões totalizamcerca de 300 empresas e aproximadamente 4,7milhões de beneficiários. O grupo é heterogê-

neo, incluindo as grandes indústrias de trans-formação, entidades sindicais, empresas públi-cas, até empresas com pequeno número de as-sociados (CIEFAS, 2000; Bahia 2001).

O subsegmento comercial compreende ascooperativas de trabalho médico – Unimed’s ecooperativas odontológicas, as empresas demedicina de grupo (incluindo as filantrópicas)e as seguradoras.

As seguradoras, vinculadas ou não a ban-cos, representam a modalidade empresarialmais recente no mercado de assistência médicasuplementar, com 16% do contingente de pes-soas cobertas por planos privados de saúde. Ascooperativas de trabalho médico, as Unimed’s,possuem 25% dos clientes de planos de saúde ese organizaram, a partir da iniciativa de médi-cos, com a argumentação da ameaça de perdada autonomia da prática médica e da mercan-tilização da medicina. As medicinas de grupo,constituídas inicialmente por grupos médicosaliados ao empresariado paulista, são atual-mente responsáveis por quase 40% dos benefi-ciários da assistência médica supletiva. Essesegmento se organizou em torno de proprietá-rios/acionistas de hospitais, criando redes deserviços e credenciando hospitais e laborató-rios, já que existia um comprador de serviçosque lhes garantia um mercado seguro. O surgi-mento do setor se deu a partir de meados dadécada de 1960, com o denominado convênio-empresa entre a empresa empregadora e a em-presa médica (medicina de grupo), estimula-dos pela Previdência Social, que repassava sub-sídios per capita pelo serviço prestado, práticaessa que foi decisiva no empresariamento damedicina (Médici, 1992).

A implantação da regulação pública na assistência suplementar

O debate sobre o tema da regulação na assis-tência suplementar é ainda muito incipiente nopaís. A lei 9.656/98 introduziu novas pautas nomercado como: a ampliação de cobertura as-sistencial, o ressarcimento ao SUS, o registrodas operadoras, o acompanhamento de preçospelo governo, a obrigatoriedade da comprova-ção de solvência, reservas técnicas, a permissãopara a atuação de empresas de capital estran-geiro, dentre outras.

Segundo Bahia (2001), existem divergên-cias quando se discute qual é o objeto e a inten-sidade dessa regulação. Para alguns, a regula-

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mentação visa corrigir/atenuar as falhas domercado com relação à assimetria de informa-ções entre clientes, operadoras e provedores deserviços. A regulação deveria então atuar mini-mizando a seleção de riscos, por parte das em-presas de planos, que preferem propiciar co-bertura aos riscos “lucrativos” e por parte declientes, que tendem a adquirir seguros/planos,em razão de já apresentarem alguma manifes-tação do problema de saúde preexistente.

As críticas produzidas dentre os diversosatores variam conforme a sua origem, inserçãosocial e defesa dos interesses que representam.Nesse sentido, os órgãos de defesa dos consu-midores, como o Instituto de Defesa do Con-sumidor (IDEC), pontuam, por exemplo, a “ar-madilha aos idosos”, apontada como a permis-são da adoção de preços diferenciados entre osmais jovens e mais velhos, e a permissão de nãocoberturas. Os órgãos de defesa do consumi-dor, com as entidades médicas, questionam anão cobertura de todas as patologias, a autono-mia na solicitação dos procedimentos, a remu-neração dos profissionais, dentre outros. Ascooperativas médicas questionam os prazos deadaptação às leis, a obrigatoriedade e constitu-cionalidade do ressarcimento, as dificuldadesimpostas aos pequenos planos e empresas re-gionais, no que se refere às exigências de cober-turas. As medicinas de grupo pontuam os pra-zos de adaptação às leis, a ilegalidade quanto àretroatividade, as muitas exigências que levamao aumento dos custos dos produtos. As segu-radoras criticam que o modelo criado tornou-se muito expandido com regras de difícil exe-cução (Figueiredo, 2002).

Os embates sobre a regulamentação públi-ca se estenderam até o aparelho de Estado. En-quanto o Ministério da Fazenda defendia umaregulação governamental de menor intensida-de através da Susep, onde o centro era a regula-ção econômica e financeira, o Ministério daSaúde defendia uma ação mais efetiva do Esta-do, colocando a regulação também no aspectoassistencial. O modelo da regulação bipartite,feita pela Susep e pelo MS se arrastou até acriação da ANS, pela lei 9.961/00, que definiupor um órgão regulador único, saindo vitorio-sa a tese do Ministério da Saúde (Mesquita,2002). Sua criação significou um importantepasso na regulação do mercado, ampliando opapel de regulação e controle da assistência.

Um passo importante na regulação consti-tuiu-se na implantação do ressarcimento aoSUS, em 2000. Este foi concebido para desesti-

mular o atendimento de clientes de planos desaúde em estabelecimentos da rede pública eprivada conveniada ao SUS. O ressarcimentoainda é polêmico entre as operadoras e aindaexistem inúmeras dificuldades no processo deretorno do recurso desembolsado aos cofrespúblicos (Brasil, 2003).

O processo de regulação ainda é incipientee torna-se necessário o enfrentamento de te-mas mais complexos e estruturantes como odesafio de entender a natureza dessa regulação,seus avanços e limites, a dimensão da organiza-ção do subsetor, o financiamento da oferta deserviços, as modalidades assistenciais, suas re-des e a complexidade dessas relações.

A compreensão do modelo assistencial pra-ticado só se faz na medida em que entendemoso processo de regulação existente. Visando fa-cilitar a compreensão da dimensão do processoregulatório, utilizamos um diagrama para faci-litar a visualização da cartografia do campo re-gulatório da ANS, possibilitando o mapeamen-to dos campos de intervenção (Figura 1).

Designamos o “campo A” (regulação da re-gulação ou macrorregulação), como o campoconstituído, pela legislação e regulamentação(Legislativo, Executivo/ANS, CONSU – Conse-lho de Saúde Suplementar), as leis 9.656/98 e9.961/2000, as resoluções normativas, opera-cionais, instruções, dentre outras, ou seja, Obraço do Estado que se projeta sobre o mercado(Brasil, 1998; 2000).

O “campo B” constitui o campo da auto-re-gulação ou regulação operativa, isto é, as for-mas de regulação que se estabelecem entre ope-radoras, prestadores e beneficiários. No espaçorelacional 1 ocorrem as relações entre opera-doras e prestadores; o espaço relacional 2 éaquele em que se estabelecem as transações en-tre as operadoras e os beneficiários; já o espaçorelacional 3 marca o encontro dos beneficiárioscom os prestadores (Figura 1).

O mapeamento dessas relações torna maisfácil a caracterização do espaço regulatório.Com esse diagrama, discutiremos algumasquestões visando interrogar o modelo regula-tório e de assistência praticado.

O marco regulatório da lei 9.656 mostrou-se ampliado e abrangente. Institui premissas deregulação da “saúde financeira” do mercado edefiniu os limites das coberturas, dando garan-tias assistenciais aos usuários. Ao instituir os ti-pos de segmentação e o rol de procedimentosobrigatórios definiu um padrão de cobertura ede assistência. A implementação dessa regula-

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ção pública tem-se mostrado fragmentada comdiferentes linhas de intervenção simultâneas enão articuladas. Três ênfases podem ser identi-ficadas na atuação da ANS: a primeira voltadapara a regulação da saúde financeira das opera-doras, ou seja, da sua capacidade de se estabe-lecer no mercado, honrando os compromissosna prestação da assistência à saúde dos seus be-neficiários; a segunda, sob a perspectiva do di-reito dos consumidores, focaliza os contratos ea relação de consumo, definindo como eixoprincipal de atuação o processo de fiscalização;a terceira tem como centro a questão dos pro-dutos, seja na sua composição de cobertura, se-ja no seu preço.

Esse modelo de regulação não se articulouem torno de um único eixo que definisse clara-mente as perspectivas regulatórias da institui-ção. Nessa prática institucional fragmentada, aperspectiva de regulação do setor como produ-tor de saúde encontra-se incipiente. Ou seja, aquestão da produção da saúde não adquiriu acentralidade necessária para nortear o processoregulatório. Existe um déficit de conhecimentoe de ferramentas que possibilitem essa nova

perspectiva de intervenção. O mercado tematuado livremente e uma nova prática do esta-do implica a aquisição de saberes e competên-cias que subsidiem essa nova forma de operar.

Embora ainda não seja uma prática co-mum, as operadoras podem ser gestoras dasaúde dos seus beneficiários, ou seja, podemestabelecer ações cuidadoras, implicando nãosó a promoção, mas também a garantia doacesso e a qualidade da assistência ofertada. Vi-sando à garantia dessas práticas pelas operado-ras, o Estado precisa intervir no campo B, ouna regulação operativa, regulando a relação en-tre operadora, prestadores de serviços e benefi-ciários (Figura 2). A regulação do Estado nessenível deverá ser precedida por um processo deapreensão dessa dimensão, compreendendocomo esses mecanismos assistenciais ocorremno cotidiano.

Uma outra questão levantada é que, parafazer frente à lei 9.656/98, as operadoras e pres-tadores têm desenvolvido mecanismos micror-regulatórios para sobreviver ao mercado e à re-gulação da ANS. Alguns desses mecanismos sãoconhecidos, como a instituição de protocolos,

Figura 1A cartografia do campo regulatório da ANS.

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PrestadoresOperadoras

Campo A – Regulação da Regulação

Compradores/Beneficiários

Campo B – Auto-Regulação Operativa

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de mecanismos de referência e fluxos que difi-cultam a solicitação de alguns procedimentos,o co-pagamento, fatores moderadores, dentreoutros. A existência desses mecanismos de mi-crorregulação resulta na fragmentação do cui-dado, que se torna centrado na lógica da de-manda e da oferta do que foi contratado e nãona lógica da produção da saúde, do cuidado. Omodo de operar a assistência passa a se tornarcentrado na produção de atos desconexos, nãoarticulados. Assim as operadoras trabalham,não com a produção da saúde, mas com a idéiade “evento/sinistralidade”. A saúde torna-se pa-ra o mercado um produto e não um bem. Mes-mo quando se investe em atividades de promo-ção e prevenção, esse componente entra maiscomo produto de marketing do que como di-retriz do modelo assistencial, visando de fatoao cuidado à saúde.

Nesse contexto, quando se avalia a hipótesede que as operadoras/prestadores na saúde su-plementar podem ser gestores do cuidado eque isso pode ser regulado pelo estado, verifi-ca-se que esta idéia não se sustenta a partir daatual configuração do mercado de saúde brasi-leiro e da prática regulatória vigente na saúdesuplementar, que atua predominantemente noespaço da macro-regulação. Para a viabilização

desta nova perspectiva de regulação há que serepensar e intervir sobre as práticas assisten-ciais vigentes, instituindo uma nova forma deoperar o processo regulatório, intervindo nocampo B.

Isso implica, portanto, investigar essas rela-ções, mapear como as operadoras estão impon-do os seus mecanismos regulatórios ao merca-do (gestão por pacote, glosas, auditorias), co-mo os prestadores reagem a esses mecanismos,buscando maior eficiência, produzindo redu-ção de custos, ampliando a competitividadeentre si ou a sobrevivência no mercado. Esta-mos nos referindo a como entender o espaçorelacional 1 (Figura 1).

Ainda no campo B (Figura 1), cabe tam-bém mapear o espaço relacional beneficiários-prestadores, ou o espaço relacional 2, princi-palmente considerando o microespaço de en-contro entre o usuário e a equipe de saúde, emespecial, a relação médico-paciente. Cabe por-tanto compreender como os prestadores/médi-cos estão reagindo e instituindo outros meca-nismos de microrregulação, ou seja, atuandocentrados no poder médico. Cabe indagar seessa relação busca se pautar pela produção daqualidade em saúde, pelo processo de informa-ção do usuário/beneficiário e de produção de

Entrada/ Call Center

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Figura 2Fluxograma da Linha de Produção do Cuidado em Saúde

Fonte: Franco (2003), modificado.

Ambulatório Consulta

Exame consultaespecializadaprocedimento

internação

RetornoTratamento

realizado Saída

Produto final: Usuário cuidado.Autonomização.

Monitorar por indicadores de saúde

Resultado

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sua autonomia, ou, ao contrário, em função dapressão das operadoras, se a relação entre osprestadores/médicos e clientes tem-se pautadopela redução de custos, restrição de exames eprocedimentos. Nesse espaço cabe indagar seessa relação pode se pautar por uma lógica mais“cuidadora”, mais relacional e “resolutiva”, oupor outro modelo relacional mais autoritário.

No espaço relacional 3 – beneficiários-ope-radoras, o debate central passa por temas comoa seleção de riscos (barreiras à entrada dos se-gurados no sistema, excluindo os de alto risco),risco moral ou moral hazard (aumento da utili-zação de serviços pelos usuários, quando co-berto), quebra da integralidade do cuidado porparte da operadora, não garantindo o cuidadocontratado e a busca da garantia de direito, porparte dos usuários (Almeida, 1998).

Constata-se um grande esforço regulatórioda ANS na construção de uma agenda da regu-lação, concentrada no campo A, cabendo aoEstado discutir também a atuação sobre o cam-po da regulação operativa, ou no campo B. Es-te último constitui o centro de reflexão do atualtrabalho, ou seja, como ampliar a compreensãosobre as questões que ocorrem no cotidianodessas relações (campo B), visando ampliar oolhar do Estado/ANS, para que estabeleça umanova intervenção nesse espaço, atuando sobreo Modelo de Assistência praticado (Figura 2).

A importância desse mapeamento consistena caracterização das tendências dos atores emcena, suas tensões e disputas, fundamentandouma nova intervenção do Estado. Pretende-seconstruir competência para exercer a regulaçãono campo da regulação operativa (que é forte-mente auto-regulada), ou seja, atuar no espaçoda microrregulação do mercado de saúde. Essecampo se apresenta como um campo de dispu-tas e negociações, configurando um territórioinstável e em constantes deslocamentos (Cecí-lio, 2003). Implica aproximar-se do objeto emquestão, e propiciar o diálogo com as questõesformuladas. Para esse percurso, iremos buscardiscutir o conceito de modelo assistencial, odesenho da linha de cuidado.

O processo de trabalho e os modelosassistenciais em saúde

Modelo assistencial consiste na organizaçãodas ações para a intervenção no processo saú-de-doença, articulando os recursos físicos, tec-nológicos e humanos, para enfrentar e resolver

os problemas de saúde em uma coletividade.Podem existir modelos que desenvolvam exclu-sivamente intervenções de natureza médico-curativa e outros que incorporem ações de pro-moção e prevenção; e ainda outros que supor-tem serviços que simplesmente atendem às de-mandas, aguardando os casos que chegam es-pontaneamente e aqueles que atuem ativamen-te sobre os usuários, independentemente desua demanda (Paim, 1999).

Autores como Merhy et al. (1992) discutema dimensão articulada dos saberes e da políticana determinação da forma de organizar a assis-tência: Modelo técnico assistencial constitui-sena organização da produção de serviços a partirde um determinado arranjo de saberes da área,bem como de projetos de ações sociais específicos,como estratégias políticas de determinado agru-pamento social (Merhy et al., 1992).

Para efeito deste trabalho adotaremos acompreensão de Merhy et al. (1992), assumin-do que os modelos assistenciais incorporamuma dimensão articulada de saberes e tecnolo-gias de grupos sociais que, apoiados na dimen-são política, disputam como organizar a assis-tência.

No que se refere ao modelo de assistênciana saúde suplementar há que se indagar sobreos mecanismos de acesso aos diferentes níveisde complexidade e a resolubilidade dessas ações.Essas características são fundamentais na aná-lise do modelo assistencial, remetendo-nos àconclusão da indissolubilidade da discussão daregulação e da assistência, na garantia do aces-so à rede de serviços em todos os níveis. A açãocuidadora implica mecanismos de responsabi-lização por parte da operadora e dos produto-res de serviços, implica cuidados específicos,em ação integral, na qual não ocorrem a inter-rupção e a segmentação do cuidado.

Visando aprofundar essas questões iremosdiscutir a “linha de cuidado”, como mecanismoadequado para a análise do usuário no seu“percurso assistencial”. Nesse desenho aborda-remos inicialmente o processo de trabalho emsaúde, a relação que ocorre no cotidiano envol-vendo usuários e produtores de serviços, as dis-putas colocadas, as tensões. Dessa forma ire-mos buscar elementos que nos revelem commais clareza a assistência prestada, as intera-ções ocorridas entre o usuário, o prestador e aoperadora.

O diagnóstico da crise estrutural do setorsaúde e do esgotamento da forma de se produ-zir saúde, segundo as diretrizes biologicistas do

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ensino médico e os interesses de mercado, vemsendo discutido há décadas por diversos auto-res: Donangelo (1976), Campos (1992), Merhy(1992); Cecílio, (1994). No “modelo médicoprodutor de procedimentos”, ou modelo médi-co hegemônico, a assistência à saúde se tornoualgo extremamente sumário, centrado no atoprescritivo que produz o procedimento, nãosendo consideradas as determinações do pro-cesso saúde-doença centradas nas condiçõessociais, ambientais e relacionadas às subjetivi-dades, valorizando apenas as questões biológi-cas. Outro problema do modelo atual está noseu custo, extremamente elevado, porque utili-za como insumos principais para a produçãorecursos tecnológicos centrados em exames emedicamentos, como se estes tivessem um fimem si mesmo e fossem capazes de restabelecera saúde por si só. São produzidos atos descone-xos sem uma intervenção articulada e cuidado-ra, reduzindo-se a eficácia da assistência pres-tada.

Para se repensar novas modelagens assis-tenciais, assentadas em diretrizes com a inte-gralidade do cuidado, há que se aprofundar odebate sob novos fundamentos teóricos, parti-cularmente sobre a natureza do processo detrabalho, particularmente a sua micropolítica ea sua importância na compreensão da organi-zação da assistência à saúde. Propostas alterna-tivas de modelagem dos serviços de saúde bus-cam incorporar outros campos de saberes epráticas em saúde e configurar outras formasde organização da assistência anti-hegemôni-cas. Estas ações diferenciadas na produção dasaúde operam tecnologias voltadas para a pro-dução do cuidado, apostam em novas relaçõesentre trabalhadores e usuários, tentando cons-truir um devir para os serviços de saúde, cen-trado nos usuários e suas necessidades e esta-belecendo um contraponto à crise vivida pelasaúde.

O trabalho em saúde possui especificidadesque o diferenciam dos outros trabalhos, poisimplica um espaço relacional, envolvendo ousuário e o produtor. Mesmo com os atraves-samentos das operadoras e administradoras,essa relação intercessora entre o cliente e o pro-dutor de saúde se dá em ato, em cada encontroe produz momentos criativos, carregados desubjetividades que são determinantes no pro-cesso de recuperação da saúde.

Portanto, ao falar de modelo assistencial, adimensão do processo de trabalho em saúdenão pode ser de maneira alguma preterida, pois

depende essencialmente do trabalho humano,vivo e em ato, sendo essa característica funda-mental e insubstituível.

O consumo de ações de saúde difere do con-sumo de serviços em geral, pois não se operamescolhas livres no ato da decisão do consumo.O usuário não se porta como um consumidorcomum diante da mercadoria, em função deser desprovido de conhecimentos técnicos epor não deter as informações necessárias paraa tomada de decisão sobre o que irá consumir.Não cabem as premissas comuns ao mercado,como a livre escolha e a concorrência. Muitasvezes o consumo em saúde é imposto por si-tuações de emergência, quando até a escolha doserviço e do profissional torna-se muitas vezesimposta por outros determinantes, como, porexemplo, a proximidade e a disponibilidade.

Reanalisaremos alguns conceitos que setornam fundamentais para subsidiar os marcosteóricos desse trabalho, dentre eles, o do “tra-balho vivo”, que se refere ao trabalho em ato, otrabalho criador; liberado pelos profissionaisde saúde no momento do ato cuidado; o seuoposto, o “trabalho morto”, que consiste notrabalho aprisionado e mecânico, comum naslinhas de produção, mas também pode estarpresente na saúde quando comandado pelas“tecnologias duras” (equipamentos, exames) e“leve-duras” (saberes bem estruturados como aclínica médica, a psicanálise, a epidemiologia,os protocolos delas decorrentes). O desejável éque o “trabalho vivo” em saúde opere com as“tecnologias leves” (saberes que resultam naprodução do cuidado em saúde), liberando as-sim o potencial transformador e qualificando aassistência (Merhy, 1997; Malta & Merhy, 2003).

Na saúde, mesmo que o “trabalho vivo” seja“capturado” pelas tecnologias mais estrutura-das, ou, “duras” e “leve-duras”, ou se estiversubmetido ao controle empresarial, o “espaçointercessor” referente ao encontro entre o usuá-rio e o profissional de saúde abre possibilida-des de mudanças e de atos criativos, semprepodendo ser recriado. Este encontro é singulare opera usualmente em ato, tornando difícilcapturar o “trabalho vivo”. Este espaço relacio-nal é sempre conflituoso, tenso, existindo di-versas possibilidades de desdobramentos, tor-nando-se um momento especial, portador deforças “instituintes” (Merhy, 2002).

A potencialidade desse encontro pode serentretanto “amordaçada”, em função do mode-lo de assistência praticado e dos seus pressu-postos; poderíamos afirmar que, na maioria

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das vezes, os “espaços intercessores” são preen-chidos pela “voz” do profissional de saúde e pe-la “mudez” do usuário. Essa relação em saúdedeveria ser não “objetal”, comandada pelo au-toritarismo do profissional e baseada na “mu-dez” do usuário, mas do tipo “interseção-parti-lhada”, ou seja, onde acontecessem trocas, com-partilhamentos, seja pela ética do profissional,pela sua disponibilidade de liberação de sabe-res e atos cuidadores, seja pela busca do usuá-rio em restabelecer sua autonomia. O espaçointercessor é o lugar que revela estas disputasdas distintas forças e mesmo que se torne inva-dido pelas forças instituídas, as forças insti-tuintes estarão sempre gerando “ruídos” em seuinterior, até o momento em que esta lógicafuncional é rompida (Merhy, 2002).

Formatos de modelos assistenciais na saúde suplementar

A compreensão da importância de se operarsobre o “trabalho vivo”, visando ao seu controlee, assim, à reformulação do processo produti-vo, já vem de longa data. Desde o século 19,Taylor estudou a gerência científica e como ex-propriá-la do seu processo criativo, visando àmaximização dos lucros, evoluiu com o fordis-mo, o toyotismo, Total Quality Control e outros.Recentemente nos EUA, desenvolveu-se porparte das administradoras de planos e segurosuma intervenção sobre o processo de trabalho,visando à sua captura e o direcionamento paraoutras lógicas, não no sentido da sua publiciza-ção e do seu direcionamento para práticas emprol do usuário, ao contrário, a serviço do ca-pital. Essa perspectiva significa um novo ciclo,uma nova captura do trabalho, em que nova-mente o capital percebe a importância do “tra-balho vivo” e introduz mecanismos de regula-ção do mesmo, através da atenção gerenciada.

Segundo Iriart (2000), a atenção gerenciadase caracteriza pela organização de serviços deatenção à saúde sob o controle administrativode grandes organismos privados, financiadospela captação de usuários. Estes organismos in-termediam a relação entre produtores de servi-ços e consumidores, e um ator fundamental é ocapital financeiro.

A atenção gerenciada representa o controledo ato médico, operando a relação custo/efeti-vidade, alterando a lógica de produção do cui-dado. A atenção gerenciada não tem a prioriuma preocupação com a produção do cuidado,

do ponto de vista do atendimento às necessi-dades do usuário, mas uma ação reguladora ex-terna, visando à redução de custos. O processode trabalho permanece centrado no modelo de“produção de procedimentos”. Um elemento-chave no processo de implantação da atençãogerenciada é a introdução de um “auditor”, ouadministrador, que autoriza os procedimentos,guiado por protocolos técnico, que controlamos atos médicos, limitando-os de acordo com aeficiência pretendida do sistema. O auditor re-gula o “cuidado”, segundo a lógica administrati-va e metas de consumo/receitas (Franco, 2002).

Essa prática vem sendo reproduzida poroperadoras de planos e administradoras nãosomente no mercado americano, mas são di-fundidas sem fronteiras, representando umanova reconfiguração do capital, absorvendo es-tratégias que visem ao novo controle do setor.

Por isso, repensar o processo de trabalho apartir da sua micropolítica é tão vital para asaúde suplementar, podendo ser uma novaperspectiva na recriação de uma nova forma deatuar. Como criar novos formatos do trabalhoem saúde, que se pautam pela resposta ao so-frimento dos usuários? Como buscar novasformas de prestação de assistência que possamdar proteção ou resolução aos problemas dosusuários? Como os modelos de assistência po-dem romper com a fragmentação e descom-promisso hoje existentes? Como pactuar ummodelo nos pressupostos de garantia do aces-so, acolhimento aos clientes, responsabilização,estabelecimento de vínculo e integralidade daassistência? Como democratizar a relação pro-fissional e usuário? Seria possível criar espaçosde acolhida às demandas e sugestões dos clien-tes na gestão do cuidado?

Torna-se um desafio construir outros refe-renciais, orientando a regulação a partir da óti-ca do usuário. Visando aprofundar essa refle-xão iremos levantar a discussão das redes decuidado e as suas implicações nessa nova mo-delagem.

As linhas de produção do cuidado comoanalisadoras do modelo assistencial

A linha do cuidado parte da premissa daprodução da saúde de forma sistêmica, a partirde redes macro e microinstitucionais, em pro-cessos dinâmicos, às quais está associada a ima-gem de uma “linha de produção” voltada aofluxo de assistência ao beneficiário, centradaem seu campo de necessidades. A linha do cui-

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dado pressupõe produtos, clientela e qualidadeda assistência, sendo alimentada por recur-sos/insumos que expressam as tecnologias a se-rem consumidas durante o processo de assis-tência ao beneficiário, funcionando de formasistêmica e operando vários serviços. Esta teminício na entrada do usuário, seja em serviçosde urgência, consultórios ou clínicas da rede deoperadora. A partir deste lugar de entrada,abre-se um percurso que se estende conformeas necessidades do beneficiário por serviços deapoio diagnóstico e terapêutico, especialidades,atenção hospitalar e outros (Merhy & Cecílio,2003).

O fluxo pressupõe um nível de acompanha-mento, ou de responsabilização da operado-ra/prestador/cuidador por esse usuário. O con-sumo de “tecnologias duras” (exames, imagens,procedimentos) implicará o retorno ao “cuida-dor”, que definirá sempre pela necessidade denovos procedimentos, ou pela instituição dedeterminada terapêutica. A figura do cuidadoré central e pressupõe o uso intenso da “tecno-logia leve” (saberes, capacidade de decisão doprofissional). Este é um espaço relacional ple-no de subjetividades, implicando o encontroentre o usuário e o cuidador. O caminhar pelalinha de cuidado pressupõe a existência de umarede de serviços que suporte as ações necessá-rias, o projeto terapêutico adequado àqueleusuário, que comandará o processo de trabalhoe o acesso aos recursos disponíveis à assistên-cia. Não se faz esse percurso de forma impes-soal, mecânica, desvinculada de sentimentos eimpressões.

Essa dimensão tem se deslocado no proces-so assistencial atual, centrado em procedimen-tos, atos desconexos e fragmentados, como quesubstituindo os mecanismos de responsabiliza-ção. A retomada de uma perspectiva de umprojeto terapêutico adequado a cada usuáriona sua singularidade, implica um fluxo contí-nuo e monitorado pelos atores que figuram co-mo “gestores do cuidado”, ou cuidadores.

A análise da linha de cuidado possibilitamapear os recursos disponíveis nos diversossegmentos da saúde, avaliar as tecnologias uti-lizadas para assistir o beneficiário, quanto aotipo, fluxos, mecanismos de regulação, tentati-vas de negação de acesso, utilização dos recur-sos das clínicas especializadas, vigilância à saú-de, promoção e os ruídos produzidos.

Ao analisar o caminhar do usuário na li-nha, pode-se verificar se este fluxo está centra-do no campo de necessidades dos usuários, de-

terminado pelo suposto projeto terapêuticoque lhe é indicado, a sua acessibilidade aos ser-viços, comodidade, segurança no atendimento,acompanhamento, tratamento, orientação epromoção, ou ao contrário, se ocorre a frag-mentação ou interrupção da assistência.

O esperado é um “caminhar” na rede de ser-viços que seja seguro, sem obstáculos, pois istogarantirá a qualidade da assistência. A “linha deprodução do cuidado” não se encerra no mo-mento em que é estabelecido o projeto terapêu-tico, ela deve continuar no acompanhamentodeste usuário para garantir a integralidade docuidado, conforme fluxograma (Figura 2).

Cada etapa deste fluxograma configura ummicroprocesso de trabalho específico, determi-nado pelos atos de cada produtor de serviços/profissional de saúde envolvido. Cada microu-nidade produtiva (consultório médico, labora-tório e outras) fornece insumos umas às ou-tras. Os processos existentes em cada etapa es-tarão integrados ou não, dependendo do mo-delo em curso.

A seguir citamos alguns fatores que podemromper ou fragmentar a linha de cuidado:a) A ausência das práticas de promoção e pre-venção pode ser determinante do estímulo àentrada na rede de serviços. Exemplos simplescomo a prática de vacinação em idosos, a cria-ção de grupos de acompanhamentos de hiper-tensos, diabéticos, idosos, gestantes e puericul-tura poderiam vincular clientelas específicas eevitar consumos desnecessários de serviços.Enquanto essa prática não for assentada emresponsabilidade concreta da operadora, mui-tas ações mais complexas e desnecessárias se-rão praticadas. Muitas vezes essa ação tem sidosubstituída por peças de marketing, anúnciosnos sites das operadoras, mas não uma práticaefetiva.b) Deficiência da rede de serviços (insuficiên-cia do apoio diagnóstico terapêutico), inexis-tência de ofertas específicas (alta complexida-de, exames não cobertos, carências) e outros.Pode-se interrogar, por exemplo, se a rede deserviços oferecida pela operadora é insuficienteseja pelo número, seja pelas especialidades e/oucomplexidade disponíveis. Neste caso, o usuá-rio, diante de sua necessidade, não encontraresposta na rede disponibilizada pela operado-ra. O mais comum é, no momento da adesãoao plano da operadora, ser apresentada umasuposta rede credenciada e no momento da ne-cessidade essa rede não se encontrar efetiva-mente à sua disposição.

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c) A segmentação dos planos (plano hospita-lar, plano ambulatorial, plano obstétrico, planoodontológico), ou a contratação de um planocom cobertura limitada. A segmentação por sisó pressupõe a interrupção da linha do cuida-do, pois os planos segmentados resultam noparcelamento do cuidado. No plano ambulato-rial, as consultas de urgência, mesmo quandonecessárias, não são seguidas da internação,tornando novamente o usuário responsável porencontrar a solução para seus problemas.d) Atitudes de desresponsabilização do cuida-dor (não vinculação, saber insuficiente, nega-ção ou cerceamento de uso de tecnologias ade-quadas, retardo ou não fechamento do diag-nóstico, não oferta de mecanismo de acolhidaàs demandas agudas). Esse aspecto resulta nafragmentação da assistência, pois a mesma estácentrada na execução de procedimentos. Nãoexiste um cuidador, o que resulta na repetiçãode procedimentos desnecessários, tornando aatenção mais onerosa e ineficiente.e) Atitudes de cerceamento ao acesso por par-te da operadora. A regulação do cuidado porparte da operadora está centrada no processorestritivo, existindo inúmeros passos e autori-zações para o acesso ao cuidado (call centeradiando as entradas – fila de espera, limites deexames, limites de diárias de UTI, restrição aretornos). Baseados numa falsa lógica de racio-nalidade, estão colocadas restrições quantitati-vas e qualitativas a procedimentos, bem comoo não atendimento a patologias específicas.Outra forma de restrição constitui-se no nãoacesso a tecnologias específicas como prótesese procedimentos de alta complexidade e custo.f) Prestador com falta de insumos, perda deexames, qualidade questionável na prestaçãode assistência. Essa interrupção ocorre quandoa rede própria e/ou contratada pela operadora,devido à política de contenção de custos, apre-senta um nível de qualidade que não respondepelas necessidades de atenção do usuário. Fal-tam mecanismos racionais na escolha de pres-tadores, como seleção por critérios de eficiên-cia, mecanismos de avaliação da qualidade doserviço prestado ou monitoramento de indica-dores de avaliação da satisfação dos usuários.

Para evitar a fragmentação do cuidado de-ver-se-ia operar em outro formato do modeloassistencial, comandado por um processo detrabalho cuidador, que oriente esse percurso.Quando isso não existe, o usuário faz o seupróprio caminhar pelas redes de serviços, in-duzindo consumo de procedimentos. Essa prá-

tica é altamente perversa, podendo levar a er-ros diagnósticos, acessos negados, procedimen-tos mais onerosos e não efetividade do cuida-do. Muitas vezes só o usuário consegue recupe-rar a história da sua peregrinação, sendo o seupróprio “fio condutor”.

O grande desafio consiste em restabeleceruma nova prática, centrada no estímulo à pro-moção da saúde, prevenção, referenciada novínculo e na responsabilização. A própria ope-radora poderia estimular a prática da vincula-ção a cuidadores, mapeando certos grupos derisco (idosos, diabéticos, hipertensos), ou cer-tos ciclos de vida (gestantes, menores de 1 ano)e estimulando os usuários a se vincularem a“cuidadores”. Estes últimos teriam usuários ca-dastrados e fariam acompanhamento sistemá-tico, com retornos programados, definindo pro-jetos terapêuticos adequados a cada situação,estimulando a participação em grupos educati-vos, o acompanhamento e monitoramento des-ses usuários com algum risco diferenciado. Nocaso da gestante de alto risco implicaria tam-bém a definição de centros de referência aoparto; no caso das crianças menores de 1 ano, oacompanhamento do crescimento e desenvol-vimento, avaliação do uso das vacinas, alimen-tação, pronto atendimento às intercorrências;no caso dos hipertensos e idosos, o acompa-nhamento da medicação de uso contínuo, a ga-rantia do atendimento aos casos agudos, enfim,a garantia da continuidade do processo, o con-tato quando o retorno não foi cumprido, a in-formação sobre as intercorrências, possíveis in-ternações e de todo o processo assistencial.

A linha de cuidado pode ser acompanhadae monitorada, tomando-se situações traçado-ras, como marcadoras dos eventos “atípicos”. Oevento sentinela constitui-se em evento não es-perado e cuja detecção serve de alerta para de-terminado fato sob observação (Pereira, 2000).A monitorização das linhas de cuidado na as-sistência suplementar poderá ser iniciada apartir das informações existentes no Sistema deInformação de Produtos (SIP), no Sistema deInformação de Nascidos (Sinasc) e no Sistemade Informação sobre Mortalidade (SIM).

Algumas ocorrências podem ser tratadascomo “evento sentinela”, por exemplo, o óbitoinfantil, ou materno, levantando-se por opera-dora os óbitos ocorridos e desencadeando umprocesso investigativo das suas causas. Os co-mitês de óbito infantil e materno são uma rea-lidade no país, investigando as causas de óbito(Brasil, 2002b).

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Trabalhar com dados epidemiológicos naavaliação desses estabelecimentos não é umaprática na saúde suplementar, não existe siste-matização de avaliação da qualidade do desem-penho dos estabelecimentos da rede convenia-da. Coloca-se então o desafio de implantar umsistema de informação baseado em informa-ções individuais, que possibilite capturar dadosde forma contínua, avaliação de série histórica,comparando o desempenho dos prestadores, osurgimento de agravos inusitados que necessi-tam de acompanhamento, a notificação obri-gatória, enfim, subsidiando a tomada de deci-são. Essa discussão deve ser enfrentada pelo Mi-nistério da Saúde e ANS, visando à implanta-ção das bases de dados similares ao SUS, comregistros individualizados de todos os pacien-tes, ou o Sistema de Informação da Saúde Su-plementar.

Conclusão

O Estado brasileiro e a Constituição Federaldefinem suas intencionalidades, e seus princí-pios, materializados através do Sistema Únicode Saúde, que se propõe universal, integral eequânime. Ao setor privado cabe organizar-sede forma complementar ao público. Por isso, oestudo de modelos assistenciais em saúde su-plementar não é desvinculado do entendimen-to global do funcionamento do SUS. A com-preensão e a regulação da assistência supletivadeve considerar as experiências e modelagensproduzidas no público, com o objetivo de com-pará-las e assim estabelecer novos conheci-mentos.

A atuação do Estado na saúde suplementartem como marco a aprovação da lei 9.656/98,que estabeleceu um novo patamar no processode regulação; entretanto há que se aprofundara natureza dessa regulação visando garantir aassistência à saúde e a produção do cuidado.Coloca-se o desafio de entender como se estru-turam os modelos assistenciais vigentes na saú-de suplementar, identificando o modo como asoperadoras de planos de saúde vêm se organi-

zando para a oferta dos serviços de saúde, deforma a garantir a assistência com qualidadeaos seus usuários, responsabilizando-se peloseu processo saúde/doença.

O modelo comumente praticado na saúdeem geral e na suplementar, em particular, con-siste em uma prática fragmentada, centrada emprodução de atos, predominando a desarticu-lação e as inúmeras queixas dos usuários. Paraa superação desse cenário impõe-se um novoreferencial, assentado no compromisso éticocom a vida, com a promoção e a recuperaçãoda saúde. Nesse sentido discutimos a impor-tância de abordar a assistência de forma integra-da, articulando-se todos os passos na produçãodo cuidado e no restabelecimento da saúde.

Propõe-se mapear a integralidade da assis-tência pelo acompanhamento da linha do cui-dado, evitando-se assim a sua fragmentação.Cada usuário deverá ser acompanhado segun-do determinado projeto terapêutico instituído,comandado por um processo de trabalho cui-dador, e não por uma lógica “indutora de con-sumo”.

Torna-se um desafio para a saúde suple-mentar incorporar em seu processo assistencialos debates colocados no processo de trabalho,estabelecendo novas vertentes analíticas paraavaliar a eficácia e a efetividade do seu papel naprestação de atenção à saúde. A Agência Nacio-nal de Saúde Suplementar deverá discutir no-vos mecanismos de macro e especialmente demicrorregulação e apontar para o estabeleci-mento de novos formatos de intervenção.

Sobretudo a saúde suplementar deve traba-lhar sob o prisma da prevenção, da promoção,estimulando essa prática em todos os seus pres-tadores, não como marketing da operadora, mascomo prática cotidiana de fato incorporada.

Esses pontos deveriam se tornar novos re-ferenciais e diretrizes do modelo assistencial nasaúde suplementar, visando à garantia do aces-so aos cuidados necessários, o vínculo, a res-ponsabilização para com o usuário e a integra-lidade da assistência e o monitoramento contí-nuo dos resultados alcançados.

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Artigo apresentado em 19/9/2003Aprovado em 19/12/2003Versão final apresentada em 24/1/2004