Os Loucos da Rua Mazur - Escola Secundária Henrique Medina

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FichaTécnica

Títulooriginal:OsLoucosdaRuaMazurAutor:JoãoPintoCoelho

Editor:MariadoRosárioPedreiraCapa:©RuiGarrido

Fotografiadacapa:LouisGrandadam/GettyImagesFotografiadoautor:©RuiGaudêncio

Revisão:MadalenaEscouridoISBN:9789896604585

Leya,SARuaCidadedeCórdova,n.º22610-038Alfragide–Portugal

Tel.(+351)214272200Fax.(+351)214272201

©2017,JoãoPintoCoelhoeLeya,SATodososdireitosreservadosdeacordocomalegislaçãoemvigor

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AoZé,àLinda,aoPedroeàSofia

PARIS,2001

AmontranegradaLivrariaThibaulteraamolduramaisrespeitadadaRuedeNevers, um beco desconsolado que se escondia entre as costas de doisquarteirões do Quartier de la Monnaie e que, séculos antes, servira deescoadouroàsimundicesdasirmãsdaPenitênciadeJesusCristo.Alojasituava-sesoboarcoqueabriaparaoQuaideContie,paraentrar,eranecessáriobaterna vitrina. Isto se ele desse pelo sinal, o que não era garantido. Naqueledomingo,olivreirocegodirigiu-seaorecessomaisescurodalivrariaesentou-seàescrivaninha.O tampoestavavago,apenaspapéisdispersos,uma telefoniaapilhaseumrostonumpasse-partout,orostodeFidelia.Estavamjuntoshaviaquatroanoseelelembrava-sedaapoteosedosprimeiros

tempos:descontandoasrarasebrevesocasiõesemquearaparigavisitavaamãe,nunca acordara sozinho. Como qualquer velho, invejava a imaturidade eembriagava-se coma juventude da amante.E depoisFidelia lia-lhe a todas ashoras do dia. Imprevisíveis, as palavras da jovem surgiam-lhe de lugaresdistintos,adocicadaspelosotaqueplatense,dandovozàmultidãodelivrosqueorodeavamdesdesemprecomoumcorodemudos.Naverdade,sempreescolheraas mulheres pelos olhos que não tinha. Só deixava que o aceitassem comoamante se lhe prometessem maratonas de leitura. Nunca se despedira denenhumacomumlivroameioesóporumavezdeixaraqueoconvencessemnahora de escolher o que ler. Fora Azurine, uma argelina de meia-idade, cujapaixãoobcecadaporZola lhe adiaraLolita pela semanaque levara a terminarGerminal–umultraje!HouveraaindaApolline,DorianeeMadalena.Apolline,aprimeira,quesepunhaaarderquandooromanceaqueciaeofizeradevolverosHenryMillerquetinhanalivraria;Doriane,aatriz,queinvadiaaimaginaçãodolivreiro,arquejandocomoDesdémonaàsmãosdeOteloourindo-sedamortecomo a Bovary – outro ultraje, «os grandes livros dispensam essas coisas»,dissera-lheeletantasvezes;eMadalena,filhadeumportuguêsede…Apolline,que, trinta anos depois, aquecia o lugar que fora da mãe, embora com maisequilíbrio entre as páginas e os lençóis. É claro que a vida dele não fora só

romances, tambéma abrira a contos lidosnumanoite, literaturade cordel queesqueciasemdesgosto.Nuncacuidaradas razõesdaquelasmulheres,porqueoprocuravam, porque se deixavam ficar. Talvez preferissem não ser vistas aoacordar,talvezadorassemouvir-secomavozdoslivros.GostavadeFrançaemorreriaemParis.Resumiaasuavidatodososdias,mas

não incluía os anos de juventude nem a tragédia que o fizera fugir. Preferialembrar o recomeço, a chegada a Génova, o sopro dos freios do comboio.Contaracadasegundodesilêncioapósaaberturadasportaseforaoprimeiroaapear-se. O impacto dos sapatos no empedrado soara-lhe como tiros no caisvazio.Erasómaisumjudeuaescapardascinzas.Atrásdesi,outrostrezentosdeolhosrelutantes,umatapeçariadecarasestendidaàportadecadavagão.Nessemomentoouviraacampainhaevoltaraacontarossegundos.Masnementãoosgritos irromperam, só o som dos que saltavam da carruagem, os passosrenitentes,aroupaarasparnaroupa,as tossesdispersasa lembrarqueacargaera humana. Sentira um encontrão e agarrara amala azul commais força. Ládentro,papéisescritosque,dobrados,lhecaberiamnaalgibeira.Maselequeriaumamala,comasmãosvaziaspareceriaumindigente,jábastavasê-lo.Nãoviraos companheiros curvados e cinzentos olhando em redor como se esperassemlobos.Achegadadoscarabinieritiveraumefeitocaótico,todosseespremeramuns contra os outros. Afinal era só para os levarem para a sala ao lado, umaespécie de refeitório inventado à pressa onde as cozinheiras pareciamenfermeiras.Oardeviavirtododaspanelas,transpiradoetemperadocomosopaquente, e eles na fila a mastigar o cheiro com vergonha da bondade dasmulheres.Passaraummêsealguémoprocuraranocentrodeacolhimento.Aovê-lo,o

homem apressara o passo idoso, chamara-o pelo nome, prometera tirá-lo dali,levá-loparaFrançaeensinar-lhea línguapelaspalavrasdosmestres.Sóentãocelebraramadordoreencontrocomumabraçoqueduroudozeanos.Quandoohomemmorreu,elepartiudeMarselha,levandoconsigoamalaazuledinheiroparacomprarumalivrariaemParis.Duranteanos,ignoraraaerosãodotempo,masagoraosdiasrepetiam-secada

vezmais iguais.Ultimamenteos livros jánãoeram terminados e asvisitasdeFidelia à mãe tornavam-se mais frequentes e prolongadas. O livreiro valia-seentãodastrivialidadesquerestavam,oqueénaturalquandoavidaeohomemse vão despedindo pormútuo consentimento. Jerôme, o do café, continuava aaparecer às seis da tarde coma garrafa depastis e dois coposna algibeira doavental.Bebiamduranteosvinteminutoscumpridosàrisca,quantasvezessem

palavrasparatrocar,atéJerômesairparafumarnopasseioefecharocafé.Ele,quepensavamuitasvezesnestascoisas,conformou-seporestaraliaum

domingo, sentado à escrivaninha. Deu por si a tatear o rosto emoldurado daamante.Lembrou-se dodia emque a conhecera,mas já não doque sentira, econformou-seoutravez.EndireitouoretratodeFideliacomoseopudessever.Aqueleeraoúnicodiadasemanaemquealivrariaencerravaaopúblico,mas

nemissoomantiveraemcasa.Naverdade,nosúltimosmeses,nãoselembravade ter passado um só domingo sem ser ali, exatamente ali, no recesso maisescuro da loja. Fidelia chegava cada vez mais tarde nas noites de sábado epassavaodianacama,agoniada.Talvezfosseprudenteresguardaramãedetaisnoitadas,sugeriraeleumdia,masarrependera-sedeaterprovocadoeprometeracontinuarcego.DerrubouoretratodeFideliacomosenãoopudessever.Entãodecidiuouvirmúsica.Comgestospoucofirmes,alcançouo rádioque

serviadepisa-papéiseligou-o.Osomerafraco,deumacordeão,masdistinguiuperfeitamenteodedilhardeumcontrabaixonomeiodaestática.Aamarguradamúsicaeraquasefestiva,eeledeixou-secontagiarecantoubaixinho,pareciaumrumorejo,comoserespondesseaosinstrumentoscomcoisasquenãodeveriamserescutadas.Ameiodaterceiracanção,soaramduaspancadasnavidraça.NãopoderiaserFidelia, jáque,mesmoressuscitada,nuncaapareceriana lojaaumdomingo. Por isso ignorou a visita e retomou o diálogo. Mais pancadas,impacientes. Ergueu instintivamente o rosto e continuou impassível. A seguir,nada,apenasamúsicaaextinguir-separadarvozaolocutor.Porém,umahoradepois,ouviuobarulhoapressadodeduasvoltasdechaveesoubequeofimdamanhãestavacondenado.AsdesculpascastelhanasdeFidelia irromperampelalivraria, mais o som de uma carteira atirada com força para trás do balcão.Obviamentenãovinhasó,eledistinguiuoutrospassos,passosdehomem.– Perdóneme – desculpou-se Fidelia, afogueada. – Vim a pé. Espere um

pouco,eledeveestarnofundodaloja.O visitante olhava para todo o lado, parecia nem dar por ela, enquanto o

livreiroesperavaqueaamanteseaproximasse.–Despacha-te – sussurrou a rapariga. – Ele telefonou-te, tinhas acabado de

sair.Querfalarcontigo,mexe-te,dizqueéimportante.Ocegolevantou-sedevagarsemdesligarorádio.Caminhandoàsuafrente,Fideliacomeçavafinalmenteadespertar:–Tirou-meda cama,cabrón, já sabia que não lhe abrias a porta. –Quando

chegaramaovestíbulo,Fideliaforçouumsorriso.–Omeumarido.Olivreiro,quenãoeramaridodela,estendeuamão,indiferenteàlocalização

dooutro.Ovisitantedeutrêspassosemfrenteeapertou-lhaquasederaspão.Nenhumdissenada.–Sentem-se–disseFidelia,apontandoaodesconhecidoumascadeirasaolado

dobalcão.E eles sentaram-se.Nessemomento o visitante fez sinal à raparigaparaqueseaproximasseesegredou-lhequalquercoisa.–Ah,sim?Nãocalculao favor que me faz. Passe bem! – declarou ela, antes de beijar o amante nacabeça,agarraracarteiraeesbofetearaquilotudocomaportadarua,deixandoosdoissozinhosnalivraria.Ohomemobservouminuciosamenteodonodaloja,antesdefalar:–Continuasbonito.–Umsilêncioprolongado.–Velho,masbonito.O livreiro apontouo olhar cego ao rosto do desconhecido, falhandopor um

palmo.Comoninguémsubiraoestoredamontra,estavaescuro.Meiadúziadenesgas

paralelasdaruaadormecida,seislâminasdeluzatrespassaremopódalivrariacomopáginasdememóriasemsuspensão;nãofosseosommetálicodorádioapilhas, ummero retrato a sépia comdois velhos.Até que o visitante tornou afalar:–Sim,semprebonito.Aexpressãovagadodonodalojadeixoudeprocurarorostodooutroeisso

fê-lopareceraindamaiscego.Odesconhecidosorriu,continuandoapercorrersempressaafiguragastaque

tinhaàfrente.–Nãofoifácilencontrar-te.Sempresoubestemover-tenoescuro.–Osmortosnãovoltam–disseolivreiro,comosenãootivesseouvido.As

cadeiras encontravam-se frente a frente, acareadoras, e rangiam como os anosquecarregavam.–Oqueéquequeresdemim,Eryk?Eryk,queaindanãoestavapreparadopararesponder,foiàprocuradetempo:– A última vez que ouvi falar de ti vivias na Provença, estava tudo ainda

fresco.NãocontavadarcontigoemParis…–interrompeu-se,olhandoemvolta–enterradonumalivraria;casadocomumaespanholaquetemidadeparasertuaneta.–Argentina.Fideliaéargentina.Enãoestamoscasados,nãoacreditesemtudo

oquevês.Deitamo-nosjuntos,éverdade,masésóparaquemeleianacama.–Nãomevaisperguntaroqueéfeitodemim?–Oquehá aperguntar sobrePaulLestrange?Escreves livros, normalmente

livros soberbos, e és cidadãobelga certamenteporque te envergonhastede serpolaco. Sei que te fartaste de Paris e foste viver para Bruxelas onde és tãoconhecidocomoaquelemeninoquefazchichi.E,mesmoassim,andeialer-teàscegasdurantevinteanos.Asmulheresdaminhavidanãoligamàsbadanas,éamelhorexplicação.Sópercebiquemestavapordetrásdopseudónimoporcausadoscomentáriosdeumcliente.Masaculpaéminha,comoéquenãotedescobrinaquela escrita? Estava lá tudo,merde! De resto, sem surpresas, já sabia quepodiasdaremescritor.Tambémnãoestranhavasetedescobrissenometrocomascalçasmijadasavenderrimas,atécalhavamelhorcomoteufeitio.Tornaste-teperseverantecomosanos,énatural.Eagora?Quequeresdemim?Erykdesviouoolhardoamigoefixou-onaprimeiracoisaqueencontrou,uma

banqueta,nãoeraimportante.–Nãonosrestamuitotempo,tusabes.–Estouvelho–rosnouocego.–Sóprecisodotempoquejávivi.–Perfeito.Édessequeandoàprocura.–Viesteaolugarerrado.–Raiostepartam,Yankel…–disseEryk,comoseoafagasse.–Tenscoisas

quemepertencem.–Falasdassombras,Eryk?Osanosgastam-nas,nãosobranada.–Mentes!–exasperou-seovisitante.–Mentescomoumcanalha!–Ergueu-se

num impulso e amaldiçoou-se por perder a compostura, era cedo para isso;voltouasentar-se.OolharvaziodeYankelexpandiu-senumsorriso,oprimeirododia.Levantou

asmãosàalturadacabeçaemostrouaErykumesgardeepifania:–Cáspite!Eryk,vindodosmortos, rasgaasvestescomooseuYeshua1para

reclamar do amigo de infância o seu quinhão de verdade. – Com a mesmaespontaneidade, perdeu o sorriso. –Vai-te embora, Eryk.Vamos acreditar queestediafoiumlapsonaordemnaturaldascoisas.Acontece.O visitante abanou a cabeça, não estava pronto para desistir. De qualquer

maneira, sempre soubera que não iria ser fácil, caso contrário já o teria feitomuito antes. Afinal, aquele era o encontro que protelava havia tantos anos.Mesmo semnunca o ter confrontado, conhecia asmágoas deYankel uma poruma.–Nuncapensasteemprocurar-me?–perguntouaolivreiro.–Queinteressaoquepensei?Nofim,sócontaaquiloquefazemos–concluiu

Yankel.–Acabacomisto,Eryk,dizdeumavezportodasoquetetrouxeaqui.Eryksoubequeeraaalturacerta:

–Umlivro.Ocegohesitouummomentoantesderipostar:–Normalmenteéoquemepedequementraporessaporta.–Esteestáporescrever.Como Yankel sentiu uma aragem de desconfiança, levantou-se tateando os

obstáculos até chegar ao balcão. Apoiou os braços cruzados no tampo demadeiraeesperoupelooutro.Nãoquismostrarpressa.Agoradecostasparaolivreiro,Erykfalou:–VimapédoHotelCrillon,éumpulo.Emesmoassimdemoreiduashoras.

Pareicincovezesàprocuradeumquartodebanho.Cincovezes,Yankel.Enemsequerconseguimijar.Cadadiaépiordoqueoanterior,istoestáaacabar.–Aodizê-lo, foi ter com Yankel. Deixou-se ficar imóvel e tão perto dele que nãoprecisoudemaisdoqueumsussurroparadizerporqueestavaali.–Passeiavidaainventarlivros,eemcadaumensaieioúnicoquequeriaescrever.Éagora,jánãopossoesperarmais.Masprecisodeti,nãosoucapazdefazeristosozinho.Yankel rechaçava cada uma das conclusões que aquele discurso disparava

sobre si. Sabia o que Eryk queria, mas havia muito que calara o passado.Ninguém o faria regressar, nem mesmo ele. Por isso, afastou-se do balcão edirigiu-separaasaída.–Nãosabesoquemepedes–disse,abrindoaportadarua.Erykaproximou-seeparounovãoescancaradosemolharparaolivreiro.Só

entãodeuumpassoemfrente.Jáláfora,declarou:–Euvolto.Nopróximodomingo.

*AssimqueacordounoseuapartamentodaRuedeBuci,Yankellembrou-sede

quepassaraumasemana.Dormiraaespaçosemalserecordavadasduaspáginasque Fidelia lhe lera ao deitar. Ouvia-lhe o respirar pesado e perguntou-se sedeveriaacordá-la.Porumlado,dispensavaasuapresençanalivraria;poroutro,queriatê-lapertonessedia.Tentaraexplicar-lhenanoiteanterior,masnãoforafácil,nemelesabiaqueamparoesperavadaraparigacasoEryklheaparecesseàporta. Deixou-se ficar deitado, às voltas com a dúvida. Talvez detestasse serencontradoassim,sozinhonumalivrariaaumdomingo.Eracegodenascençaeacompaixãodeteta-semelhoràsescuras;nãoasuportaria,muitomenosnaqueleencontro.Efoiissoqueolevouadecidir.Numimpulso,sacudiuajovemedeu-lhe as instruções: bastava estar lá parao receber, a seguir era comela, que se

enfiasse na cama para sempre!Quando se levantou, deixou-a a refilar comoslençóis. Meia hora depois, já dera a volta ao quarteirão com o jack russelArmanddeixadoporMadalenanodiaemquesecansaradeumavidadebraçodado. Então, esperou por Fidelia no lugar habitual, à beira do quiosque doBoulevard Saint-Germain. Sentiu o Poison da amante ainda antes de o cãoretesaratrelaeestendeu-lheocotoveloparanãoparecermal.Elaagarrou-oefoiassim que Yankel a conduziu até à loja. Nem uma palavra trocaram. Quandochegaram, e antes de entraremna livraria, sentaram-senoCafé Jerômepara opequeno-almoço. Fidelia comeu uma torrada e descascou duas tangerinas quetrouxera no bolso. Antes de ele pagar, partilharam o café; à mesa pareciamíntimos.Então,ovelhofoiabrira lojaenquantoelafumavaoprimeirocigarrodo dia. Baixou-se para içar o estore de ferro e libertou Armand da coleira.Pendurouosobretudoatrásdobalcãoe,lembrando-sedeumassuntoqueandaraaadiar,dirigiu-seaumaestanteparacorrercomaspontasdosdedosaprateleiramais alta. Aí estava ele, reconheceu-o à primeira, Le dernier homme, deBlanchot,umaediçãoraríssimadaGallimardquemencionaraaumclienteesepreparavaparavenderportrêsmilequinhentosfrancos.Não,trêsmilenãosefalariamaisnisso,atéporqueeraumdosquenãoteimavaemconservarparasimesmo.Assimqueretirouolivro,encaminhou-separaaescrivaninhaaofundodaloja.IaameiocaminhoquandodeupelaentradadeFidelia.–OBlanchot!–gritou-lheela,enquantopisavaapriscanasoleira.–Nãote

esqueçasdoBlanchot.Yankelnãorespondeu,eelanãovoltoualembrá-lo.Amanhãpassoudevagar.

Olivreiropercorreualojaváriasvezes,fezdoistelefonemaspessoais,saiuparabeberumchá,pôsordemnasprateleirasesentou-seaoladodeFidelia,enquantocolocava as pequenas marcas adesivas com que dava nome às lombadasacabadasdechegar.Sóeleconheciaaquelessinaisqueconstruíacompequenostroços de esparguete perfilados entre dois pedaços de fita-cola. Engenhoso,diziamosclientes,eparamaisnuncaviraumcódigodebarras.Passavadomeio-diaquandoodestemidoArmandseembrulhoutemerosonos

pésdolivreiro.Nãoeradiaparaclientes,eYankel,quepassaraamanhãapensarem Eryk, levantou-se de um pulo. Reconheceu imediatamente a voz quecumprimentava Fidelia. Ao aproximar-se, percebeu que o amigo vieraacompanhado e preferiu aguardar um momento atrás do biombo para asprimeiras impressões. Concentrou-se na sobriedade da terceira voz, uma vozestranha,vozdemulher,ásperadeidadeedetabaco,aaplacarcomcortesiaosagudosdasuaamante.Cheiravaaperfumecaro–nãoqueousasse,seriaapenas

daconvivência,oqueeraaindamaischique.Nessemomento,protegidopelodono,ocãozinhojádobraraaenvergadurae

roçagavaaspernasdasvisitasrilhandoodente.FoientãoqueYankeldeuumpassoadiante.–Ah!–cumprimentouEryk.–Ahoraémá,desculpa.Yankelestendeu-lheamão.– Isso é o menos – afirmou. – Aqui dentro contamos o tempo de outra

maneira.Tenhoacertezadequepercebeoquequerodizer,Madame…–Lestrange–apresentou-seela,fixandoaexpressãosurpreendidadolivreiro.

–Vivienne.– Sim – confirmou Eryk. – É a minha mulher. E, mais importante, minha

editorajálávãoquarentaanos.–Parbleu!–exclamouYankel.–Ecomopreferequeaconsidere,Vivienne?Elanãofezcasodaquelevestígiodetroça.–Nãomequeiraadecidirporsi,Monsieur.Seriaummauprecedente, tendo

emcontaoqueaquinostraz.Olivreiroencolheuosombros.– Previsível… Eryk nunca me facilitou a vida. Mas chame-me Yankel!,

esqueçaomonsieur.Sómetrataassimquemmequerirritar.–OYankeléumplebeu.Nuncateesqueçasdisso–disseoescritoràmulher.–Não lhedêouvidos–desdenhouo cego.–OEryknunca acreditouque a

Terra se move. Meio século de Paris é muito tempo, já sei viver com bonsmodos.– Não me digas?! – exclamou o escritor. – Espero que te sobre alguma

acutilância,casocontrárioviro-teascostasporquejánãomeserves.– Se ainda se irrita, serve – declarou a mulher, antes de olhar em redor à

procuradeumacadeira.Descobriuquatro,postasàvoltadeumamesadechá,edeixou-secairnamaispróxima,decostasparaoshomens.–Desculpe, estavamortapormesentar.ErykachaultrajanteandardecarroemParis.–E temrazão–corroborouYankel.–Digo-lhoeu,quenemsequergozoas

vistas.Nessa altura, dever cumprido e antevendo uma tarde entediante, Fidelia

desculpou-se,pegounocãozinhoefoialmoçar.Compostootrio,Yankelabeirou-sedamesa.– Faço-lhe companhia,Madame – disse, ao sentar-se. – Eryk, oferece uma

bebidaàsenhoraejunta-teanós.Eryk olhou à sua volta até descobrirmeia dúzia de garrafas e outros tantos

copos pousados na sombra de um nicho e quase escondidos por um busto deMaupassant.Verteuumdedodebrandynoúnicocoposempó,oqueolevouapensarqueo livreironãodevia recebermuitasvisitas.Lembrando-sedoqueolevaraali,preferiuserprudenteenãoseserviu.–Bebes?–perguntouaoanfitrião.– Senta-te – retorquiu Yankel, ignorando a pergunta e virando-se

ostensivamente para Vivienne. – Dá-me licença que seja eu a desbravar ocaminho?Oescritorsentou-seepousouocopoàfrentedamulher.–Somostrêsvelhosàmesa–disseela.–Ninguémsepodegabardetertempo

aperder.Avance.–Entãodeixe-meserindiscreto.Diga-me,Vivienne,aindasenteciúmequando

oEryksevêaoespelho?–Aeditoraolhouparaele,masficoucalada.–Façaumesforço. Estou a falar do reflexo luminoso do seumarido, aquela personagemestupendaqueErykamaacimadetodasascoisas.–Omeumaridonãomudougrandecoisa,masperdeualgumapresunção.A

escrita fez-lheoque avidanão conseguiu, talvez estejamais lúcido, talvez játorçaonarizaoespelho.–Eraoqueeupensava.OErykqueeuconhecinãoprecisavademimpara

escreverumlivro,nemdesiparameconvencer.Éparaissoqueaquiestá,nãoé,Vivienne?Se Yankel pudesse ver, talvez reparasse no trejeito divertido que o escritor

traziaaocantodaboca.–Engana-se–reagiuela.–Façamosvossosjogosdecintura,ofendam-sese

valerapena,masresolvamistosemmim.Casodecidamavançar,então,sim,euinstalo-meentreosdoisefaço-vosavidanegra.Ambososhomenspermaneceramsentadosecalados.Ela,depernacruzada,

provou a bebida. Lá fora, o som de um autocarro que passava fez vibrar avidraçadamontra.UmautocarronumamanhãdedomingoemParis.Viviennepensounaspessoasqueláiam;Erykolhouparaasunhas.MasfoiYankelquemfalou:–Digamoquediaboesperamdemim.Viviennepousouocopoecruzouosbraços.EraavezdeEryk.Poucos homens escolhem comomorrer e ele estava ali para isso.Mas não

queriamorrersóechamaraporYankel,precisavadeoteraoladoparaescreveroseuepílogo.Porissosepreparara;ensaiaraaquelamanhãvezessemconta;e

agora, naquele lugar, num bricabraque de livros e antiqualhas, só conseguiadivagarsobreosnichosdaloja,oestojodeclarineteemcimadosalfarrábios,aságuas-fortes que o livreiro comprava no marché Paul Bert para agradar àsconcubinaseque ficavampenduradasnaspilastrasda livrariamuitodepoisdeelaspartirem.Haviaaindaodesenhoalápisdeumamulhernua.Otraçogrosso,colérico, e amulher, sentada de frente, devassa, seria Fidelia; era Fidelia. FoiquandoErykolhouparaYankel.Querestavadaquelevelho?Aindaescutariaosgritos ou abafara-os no colo das amantes?Por si, tudo bem, sabia o que ali olevaraepodiaagarrar-sea isso.Aalternativaeravirarcostasemorrercomasdoresdesempre.–Quero-teaomeuladoparamecontaresoqueaconteceu–disse,neutral.–Jáfoicontado–informouYankel.–Semrostos.Faltamosrostos.–Umaausênciasemremédio,noquemedizrespeito–lembrouocego.–Nãointeressa,sabesoutrascoisas.–Dizaverdade,Eryk.Tuestivestelá–desafiouYankel.–Mastenhoacerteza

deque fechasteosolhos,não foi?Atéhoje.Não tenscoragemde teenfiarnomeio de homens que estão a morrer e escrever o que vês. E agora, sublimeironia,pedesaumcegoqueteencontreasimagens.–Énissoqueacreditas?– Sempre é mais lisonjeiro do que chamar-te cobarde. Do que dizer-te que

precisasdemimporqueestásdoladodosculpados.Eryk, que previra aquela acusação vezes sem conta, não contestou. Só lhe

restavausaracensuradeYankelcomoarmadenegociação.–Nãotencionoapagarpecados,seéissoquequeressaber.Yankel percebeu que não tinha a que se agarrar. Claro que tudo lhe

aconselhavaumnão rotundo,mas sabiaqueaquela eraumaportaquedeixaraentreaberta.Eryklembrara-lhoe,nasuaidade,jánãoteriatempoparavoltaraesquecer-se.–Achaquenospodedaruma resposta agora?Uma respostadefinitiva. –O

pragmatismo da editora fora jogado no momento exato e Yankel quasefraquejou.–Comoofarias?–perguntoueleaEryk.–Contartudo.Écapazdenãosertãodestrutivo.TeriaYankelesmorecidonaquelemomento?Oamigojurouquesim.–Equalseriaomeupapelnastuascrónicas?–insistiuolivreiro.– És uma personagem como as outras.Mas estás aomeu lado enquanto te

conduzo.–Enquantomeconduzes?–sorriuYankel.–Equediabotelevaapensarque

estoudispostoaisso?–Qualéaalternativa?Olivreiroquistempoparapensar,mas,maisumavez,foiViviennealubrificar

aconversa:–Háumasolução–afirmouela,virando-separaoescritor.–Escrevesaduas

vozes.Jáofizesteesaíste-tebem.Erykiacontestar,mascalou-se.Conheciaamulher,haviaumtomimperativo

nasuasugestão,comoseatrouxessecongeminadaparaaapresentarnamelhoroportunidade.Então,decidiusercínico:–Ésaeditora,talvezpossassugeriromodelo.–TuéquesabesoqueesperasdeYankel.Sesóqueresmaisumbonecoparao

teulivro,viemosaquiperder tempo.Sepretendesmaisdoqueisso,ésimples:quando te faltar a palavra, dás-lha. Assim mesmo, na primeira pessoa. E nopresentedoindicativo,jáagora.Eryksentiu-seencurraladoeirritou-se,aquilonãoerafrutodaocasião:como

decostume,Viviennesabiaaoquevinha,nuncaalvitravadeimproviso.Sónãopercebeu porque esperara por aquele momento, porque o encostava à parede.Yankel,quecontinuavaalernasentrelinhas,tomouopesoàrespiraçãocavadadoamigoeresolveupedirexplicações:–Nopresente?Porquê?Vivienne ouviu-o e ficou calada. Puxoude umcigarro, colou-o aos lábios e

procurou qualquer coisa nos bolsos, um isqueiro, uns fósforos… Não achounada,pareciafrenética.Entãoesqueceuoqueestavaafazerearrancoudechofreocigarrodabocaparadirigirarespostaaomarido:–Não há nadamais verdadeiro do que o agora. PõeYankel a discursar no

presente,tira-lheotempodereflexão.–Talvezeutenhaumapalavraadizer–sugeriuolivreiro.–Nãonecessariamente–ripostouEryk.–Umaautobiografianãoautorizada?–comentouYankel,divertido.–Sim,tu

erasbemcapazdisso.– Não viemos aqui para o pôr em xeque – declarou a mulher. – O Eryk

explica-lhecomosepodefazer.– Dando ouvidos à minha editora, tu falas e eu escrevo o que dizes –

esclareceuEryk,semconvicção.–Nãotenhovozliterária,iaescangalhar-teoromance.

–Tufalas,eucomponho.Preferesassim?Yankelencolheuosombros.–Etudoomaisécontigo–deduziu.–Arecapitulaçãoeasconclusões.Um

acordojusto,portanto.–Umacordo lícito,o romanceexistepara ládos teus instantâneos.Masnão

fechoumcapítulosemouviroquetensadizer–disseEryk,virando-seaseguirparaamulher:–Nãoseiseeranistoqueestavasapensar,maséaminhamelhoroferta.Yankel conseguiu atingir a expressão incomodada de Eryk com o seu olhar

inútil. A telepatia absurda que se gerou colocou os dois homens num lugardistante.EraaliqueiriampermanecernassemanasseguinteseambospediramaDeusquelhesperdoassepeloqueiamfazer.

*– Quero começá-lo pela inocência – declarou Eryk, passando a mão pelo

cabeloqueesvoaçaracomaaragem.OPatiodoCrillonestavaconvenientementedesertoàsquatrohorasda tarde

desábado.Amesadostrêsencontrava-seaumcanto.Eraquadrada,eoescritormandara levantar a toalha; bastava a chávena manchada com o batom deVivienne,umagarrafadeáguageladaedoiscopos.Aeditoraolhouparaomaridoporcimadosóculos,parandoachávenaàbeira

doslábios.–Issoquerdizeroquê?–perguntou.– Aquilo que ouviste. Preciso de um preâmbulo de pureza, tem de haver

crianças.Umacoisatãovirginalcomoumcontodefadas.–Bom,depoisdasexperiênciasdosteusúltimoslivros,osleitoresnãopodem

alegar quebra de confiança – sorriu ela, antes de acabar o café. – Qual é opretexto,destavez?–Asúltimaspáginasvãoserobscenas–disseEryk.–Ainocênciaécrucial.

Semelanenhumleitoraceitaoabsurdododesfecho.Viviennenão fezmaisperguntas.Emvezdisso,debruçou-se e tiroudeuma

pasta algumas folhas de papel em branco e um gravador de bolso. A seguir,virou-separaYankel.–Importa-se?–perguntou-lhe.–Éumgravador.Olivreirocondescendeucomumacenoindiferente.–Porondepensascomeçar?–perguntouaEryk.

–Peloscogumelos.–Yankelmexeu-senacadeira.–Incomoda-te?Ocegonãoconteveumagargalhada.–Ésumcínico,Eryk.Aceiteioteuconviteparairaoinferno.Nãomefaças

perguntastolas.–Entãovirou-separaVivienne:–Ponhaissoatrabalhar.Agorasoueuqueestoucompressa.Erykencheuumcopodeáguaebebeu-odeumtrago.–Estásportuaconta–afirmou.–Falecomolhedernacabeça–reforçouaeditora,ligandoogravador.EYankel recuouatéonde lhepediam.Ficouporaliduranteo tempodeque

precisou,atésaberoquetinhadeserdito.Sorria.– O Eryk era um criativo – começou. – E todos os criativos têm um lado

insuportável.Mais tardeoumaiscedo,passa-lhespelacabeçaquesãocapazesdenosemprestaraimaginação,enessaalturaháquefugirdeles.Umdiacaínaasneiradelhedizerquegostariadesabercomoeraoverde.Apartirdaí,achou-secapazdemeexplicarascores.Usouanalogiasprodigiosas,outrasdolorosas,como quando me deu uma bofetada para que eu imaginasse uma manchavermelha na cara. Comparava todas as cores com o preto, porque o preto eutinhadeconhecer.E,senãoconhecesse,quemeconcentrasse.–Nesseinstante,YankelrodouorostonadireçãodeEryk.–Nãoadiantavadizer-tequeosmeusolhosviamomesmoqueosteuscalcanhares,nãotivesteimaginaçãosuficiente.Ah,masinsististe,insististetantoquechegueiaacreditar.Atéaodiaemquetemandeiàfavamaisastuascrueldades.1OnomehebraicodeJesus.

NORDESTEDAPOLÓNIA,1934

Naquele dia Yankel desistira de conhecer o verde. Nem ele sabia explicarcomo tinha acontecido. Adormecera com aquele desejo, mas acordaraconformado.AúnicacoisaqueoatormentoufoiterdeocontaraEryk,oamigocristão;deresto,oefeitoeraglorioso.Erykamava-oedemonstrava-ocomtodososgestosdasuaimaginaçãoprodigiosa,algunstãofrustrantescomooanseiodetraduzircores.Overmelhoésemprequente,diz,eesbofeteia-meparaprovarqueadoréuma

manchaencarnada.Tenhodesaberqueoverdedasreinetasdesetembroazedadebaixo da língua e cheira como as florestas que cercam o shtetl2; a terra écastanha,mastorna-seescuraquandochove,eospausardidosnoinvernosãoda cor dos fatos dos homens e do cabelo da minha mãe. São pretos, insiste,comoonegrumequevejoemtodasashorasdodia.Maseunãovejo,Eryk,nemsequeronegrume.Comoteexplicoqueaescuridãonãoéigualaonada?Yankelsaiuentãoàruajánasuacondiçãodecompletamentecego.Ocheiro

do shtetlno inverno era o retrato domundo inteiro, mesmo que omundo deYankel não incluísse mais do que poucas centenas de casas, muitas delas demadeira e cobertas de palha. E essa era a maldição do lugar, quantas vezessoçobrado à predação das chamas, outras tantas levantado dos escombroscalcinados.Oúltimoincêndioarrasaradoisterçosdopovoado,asinagogavelhaeosrolosdaTorá.Osqueficaramchoraramosmortoseosséculosdesditosos,gerações inteiras ceifadas pelo fogo. Cinzas de homem e pergaminhoespraiaram-sepeloventosobreasterraseoslameiros.Novasárvoresnasceriamali,germinadasnumbarrosagradofeitocomopovoeapalavradeDeus.Talvezpor isso Yankel fugisse para a floresta, talvez por isso sussurrasse ao pó doscaminhos ou tateasse os vasos de terracota como quem afaga o rosto de umamãe.Coisasdecego,disseramentão,eninguémpercebeuqueorapazdescobriraahumanidadeondeosoutrosnadaviam.Aquele era o mais improvável povoamento do distrito. Ninguém sabia que

acidente o fizera brotar ali. Os primeiros cristãos haviam chegado ainda no

tempoda rainha Jadwiga, fugidosdosTártaros, e a vasta expediçãode judeusbielorrussos que ali se fixara na mesma altura disputava com os gentios oestatutodefundadoradacidade.Tantotempodepois,aconvivênciamantinha-seáspera;doisdeuses,duaslínguas,muitagentedecostasvoltadas.Mas,fossequedeus fosse, aquiloqueveriadocéucasoaTerra lhe importasse seriaqualquercoisaparecidacomumamedalhaperdidanumabrenhadecarvalhoseurtigais,umcírculoperfeitonomeiodaflorestafeitodecasaseruas terrosas, longedequalquerestradaquelevasseàcapital.Oscristãosocupavamamaiorárea,queincluía todaametadesuleaindaagenerosapropriedadedeRomanSkiba,umenclavecravadocomoumespinhonoorgulhodopovojudeu.Muradoemtodooperímetro, o refúgio de Skiba era um lugar povoado por árvores despidas deverãoedeinvernoenemtodosgostavamdepassaràsuabeira.AlendafalavadeWitold,oprimeiroproprietário,cristãofervoroso,que,pordetestarpisarchãoimpuro, decidira sobrevoar a extensa pastagem do vizinho hebreu que omantinhaseparadodametadevirtuosa.Paraissojuntaraosdezfilhose,aolongodequarentaanos,procuraraerguerumapontedecaniçosparaalcançarooutroladosemsujarospés.Depoisdeaconstruçãotercolapsadoporseisvezessemnuncaterchegadoameiodocaminho,Witoldcansou-seeconverteuovizinho.A península intrusa que agora alastrava por terras judaicas causou ira aosconquistados e guerra aberta entre as fações. A refrega durou dois dias e foisuficienteparafazerdezmortosparacada lado.Comoninguémpôdereclamarvitória, lembraram-se de que o assunto também poderia ser tratado à mesa.Reunidas as elites, o consenso foi instantâneo: pendurou-se o converso pelopescoçoeaextensapastagemdeulugaràpraçaprincipal,zonaneutraqueousodeséculostransformarianoLargodoMercado.Eraaíqueseaglomeravatodaafaunadocírculoperfeito:velhos,homens,crianças,cãesemulheres,assimcomoas casas comerciais, os edifícios públicos e as coscuvilhices da cidade. Nocentro, duas estátuas de homem separadas por uma jarda.A de pedra, assentenum capitel invertido, representavaPawelMazur, boticário, santo emCristo epaidacidade;aolado,erguendoumlivrosagrado,RebbeJakobHalberstein,ojudeu fundador, um homem tão rígido como o bronze que o tinha ali. Tudopareciairradiardaqueleentroncamentodevielas,porondepassavatambémumaestradamaislarga,calcetadanostroçosfronteirosàspoucascasasricas.Emcadaumdosseusextremos,abriam-seduaspracetasaliconhecidascomoosterreirosde Deus, pois era lá que se erguiam os principais lugares de oração: a novasinagogaeaigrejadeSantoAdalberto.Descontandoasquechegavamemdiasde feira,vindasdecidadespróximas

comoBialystok,LomzaouRadzilow,ali asvisitaseram raras.Recebidascomdesconfiança–pelomenosatéseperceberparaqueextremodaruasedirigiam–,quasenuncaficavamdeumdiaparaooutro.Moronuma ruaque vai dar à floresta, nãohá vizinhos; alémdaminha, só

casas vazias. Temos terra a toda a volta; há cebolas, pepinos, batatas, e osgansospassamanoitenumbarracocoladoàparededoquartoondedurmocomaminhamãe,Rasia.Bom,nãoéumquarto,éumterçodacozinhaseparadoporumacortina,ondecabeacama,oarmárioempenadoeabacia.Deitamo-noscedoeconversamosduranteumahoraouatéeladeixardemeresponder.Hásemprebocadinhosdeflorestaqueseagarramàmãe,pequenasfarpascravadasna pele, restos de folhas secas que lhe tiro do cabelo quando o solta à noite.Gostodoseucabelo,deodesembaraçar,deolevantarcomosbraçosesticadosedeixarescorregarentreasmãosparaquemecaianacara.Oseurostonuncaadormece, sei-o com a ponta dos dedos, os pequenos movimentos devem sersonhosassustados.Dooutroladodacortina,amesaeofogãodeferro,maisoescabelo onde dorme o meu pai. Mas nem sempre. Às vezes, de madrugada,deixa-secairentrenós.Aseguir,apenasossonsderesistênciaeobraçocomqueamãeme empurradali.Nessaaltura, levanto-me e vouparao escabelo.Quase imediatamente, ela aparece sem dizer nada. Vai fazer café e já não sedeita.Horasdepois,acordocomocheiroapãoeabolosdecebolaacabadosdecozer.Amãesaiu,passaamanhãnoLargodoMercadoeànoitecomeremososbolosquesobrarem.Muitomaistarde,levanta-seomeupaievaitrabalhar.Nãofala comigo, talvez seja ele que não me vê. Caminha até à loja de ShlomoHorowitzparavenderovinhoquenãoconseguirbeber.Crucial era também o número de cabeças da cidade.A contagem fazia-se a

cadamudançadeestaçãoeeraextraordináriovercomo,ao longodosséculos,nenhumdosladosseufanaradeexcederemmaisdedezogrupodosvizinhos.Havia que lutar pelo governo do povo e isso escrevia-se com os votos doshomens adultos. Por essa razão, sempre que uma gravidez se anunciava, erasabido que algumas luzes do outro lado se apagariam mais cedo nas noitesseguintes.EdepoishaviaDreide,alouca.Ninguémlhesabiapai,mãeounação.Chegaraacompanhadaporumcigano,

duasmulaseumamiúdanasentranhas.Ociganodesaparecera,levaraumadasmulaseficaramastrês.Desdeentão,fixara-seali,chegadaaoshtetl,masaindanafloresta,porcautela.AcasadeDreideerafeitadetodasascoisas,eistoquerdizertroncoseramos,

musgos,ossadas,lamaeaparasdefragaquesóasdríadespoderiamterreunido.Erammuitos os que se perdiam pela floresta no seu encalço. Assombrados

pelosseuspoderesesotéricos,ofereciam-lheoqueelanuncalhespedira.Dreidedesprezavahomensemulhereseapressavaosmilagrespeloanseiodeseacharsozinha. Exorcismos com água da chuva, líquido que recolhia em noites decrescente e borrifava pelos dentes podres sobre reumatismos, adultérios emulheres faladeiras. Alguém vira mancos regressarem em corrida e cegos aleremasEscrituras.Onomedamulherfez-seenorme,maiordoqueafloresta,maior do que o shtetl, mas, de repente, sem que alguém soubesse porquê, oencantamento secou. Não só se perderam novas curas como os miraculadosentrevaram ou regressaram às mulheres proibidas. E a iluminada passou amaldita,apedrejada,gritouatodosajuradeumavingançaenuncamaisdeixoudesertemida.Certodiasubiuàcidade.Contaquemaviuchegarqueasruasseesvaziaram com o horror. Solidários num receio disfarçado por detrás dascortinas, homens e mulheres encavalitaram-se para a ver passar. Vinha hirtacomoumpinheiro,fétidaedescarnada,supliciada,cheiadeferidasqueosmaispurosviamcomoosvincosdeumrostosemsalvação.Aochegarameiodaruaprincipal, rodousobre si e fustigou todooshtetlcomoolharamarelo.Gemeuimpropérioseprostrou-separaarranharna terrasinaisproféticos.Levantou-se,cuspiucincovezesevoltouparaafloresta.Dreide já tivera a filha, Shionka, dita selvagem e tida como a criançamais

bonitadaprovíncia.Muitomagra, a sujidadeacastanhava-amaisdoqueopaicigano.Osolhoseramdesmesurados,absolutamentepretos, talcomoocabelo,quenuncacortava.MasShionkanão falava!Nuncase lheouviraumqueixume,umapraga,um

sopro de gargalhada. Dizia-se que era cisma, moléstia, esconjuro da mãetresloucada.AverdadeéqueodiaemqueErykeYankeladotaramShionkanãopoderiater

começadodeformamaisimprovável.YankelesperavaporEryksentadoàportade Zygmunt, o ferreiro. Divertia-se com os sons da forja. Conhecia-lhes osritmos e a ordem, sabia-os de cor como uma canção, antecipando o silvo dometal a mergulhar na água com sal, a cadência do martelo e os refrãesindecorosos de um Zygmunt zangado com o ferro e a vida. No meio dacacofonia,aquelehomemdestemperado,conhecidonacidadeporLenineàcustada calva e dos olhos rasgados, encontrava sempre tempo para ser dócil. Eraentão que se sentava ao lado do rapaz e repartia um pão de batata em fatiasmanchadas pelos dedos encardidos. Finalmente, esgotavam a fome enquanto

jogavamàscharadas.Naquelamanhã,Erykchegouafogueado.Passavampoucosminutosdasdeze

Yankelpercebeuqueoamigolutavacontraaeuforia.Despediram-seàpressadoferreiro e apanharam a estrada principal da cidade a caminho do lado cristão.Quandochegaramàpracetadofimdarua,Erykaproveitouaconfusãoqueseiaformandonoadroparaentrarcomoamigo judeupelaportada igreja.Yankel,que sabia não ser ali bem-vindo, calou os protestos mal Eryk começou adescreverocenário.O corpo estava sentado na primeira fila. A cabeça tombara sobre o ombro

esquerdocomoparaapreciarosdetalhesdaesculturadeS.Estanislaueosolhosabertosdir-se-iammaisdevotosdoquemortos.Omesmosucediacomasmãossujasdesangueepousadassobreobanco;mãosabertas,mãoscrentes,prontasareceberoPai.Em terrasdepasmatório, notícias comoaquela lavravamcomamesma pressa com que a igreja se ia enchendo; a dada altura, lembrava oPentecostes. Era vê-los esticados, afogueados, esquecidos do recato em plenamoradadoSenhor.Então,numinstante,osilêncioinesperadocontagioutodaagente.Do alto dos seus doismetros, o padreKazimierz, talvez por estarmaispertodeDeus,mereciaadeferênciadetodososcristãosdacidade.Magrocomoum estadulho, entrou no templo em passada larga, abrindo alas com o cenhoretorcido. Atrás, em benzeduras, Pani3 Krysia, a solteira mais assídua dasacristia,tropeçavanassaiasdele,talaganadeveromorto.Malchegouaoaltar,o sacerdote dobrou os joelhos numa flexão rápida e virou-se para o cadáver.Naquelemomento,todososolharesprocuraramnasuaexpressãoosindíciosquelhes escapavam. Mas não, nem aquele que os habituara a respostas prontasparecia capazdedescobrir nodefuntomaisdoqueosdemais.E, assimqueopadreseconvenceudisso,avigíliadeslocou-seamuadaparaoadrodaigrejaeofriascodemarçodispersouosúltimospalpites.Eryk,quenuncatinhaestadotãopertodamorte,preferiuesgueirar-secomYankelatéàsacristiae,comoouvidoencostadoàporta,aguardarnoescuroporoutrasnotícias.Foi por isso que quando Roman Skiba, o dono do enclave e a quem todos

tratavam por comendador, apareceu na companhia de um coronel daPogranicza4,Eryk, apesarde intimidado, aproveitoua frinchadaportaparaosver chegar aopresbitério.Poucodepois, eraodoutorSobol a apresentar-se aoserviço, suadoearfante,umpaquidermeeruditodequempoucosdiziambem.Sentou-se pesadamente ao lado do morto como se estivesse ali para orar elimpou o rosto a um lenço enorme. O pescoço do médico era um colar degordura que transbordava do colarinho apertado, fazendo com que a cabeça

parecesse atarraxada à força entre os ombros. Ganhando balanço, afastou ascostas do espaldar do banco e fez o que tinha a fazer. Dez minutos depois,levantou-seeusouo lençooutravezantesdeproclamaroóbvio:«Matou-se.»Olhoudesoslaioparaosacerdote:«Desgraçou-se!»Foiobastanteparadesceracortina. Pacificado, o quarteto dirigiu-se para a saída, alvitrando motivos aoacaso.Antesdeencostaraporta,opadrelançouumolharbeatíficoaofalecidoe,numapreceacelerada,pediuaDeusquedeleseapiedasse.Já lá fora, o comendador segredou qualquer coisa ao coronel. Semmais, o

militar abeirou-se do par de polícias que mandara aguardar e ordenou quelevassemomorto.Entretanto, dissimulados na sala às escuras, Yankel e Eryk recuperaram o

sangue-frio.Atéperceberemquenãoestavamsozinhosnasacristia.

*RomanSkibaeraumfarsante.Tamanhaeraaartedoembustequedespachou

alimesmo,àportadaigreja,opadreeomédico,deixandonosdoisaculpapeladespedidaapressada.Aseguir,dispensouococheiroeconvidouocoronelparaalmoçar. Morava perto, não fazia meia légua, e aproveitaria o trajeto e acompanhia para despachar serviço, enquanto acenava por instinto a quempassava. Era tão conhecido pela imensa fortuna como pelo repertório demesuras, a mesma capa luzidia com que destapava as cortesias e escondia amesquinhez.Assim que chegaram ao destino, o coronel emudeceu. Esmagado pela visão

monumental da mansão acabada de estrear, endireitou as lapelas num tiquerespeitoso,dandoavezaocomendadorporumportãodeferroforjadodecoradocomfaunos,folhasdeacanto,parrasevolutasdouradas.Skibatambémsecalou,ainda precisava de silêncio para se extasiar.Crescera a sonhar com castelos esalões formidáveis, haveria de esquecer os anos antigos, o catre húmido e ascorrentes de ar. Uma vez estabelecido, não cessara de adicionar metrosquadradoseopulênciaàsresidênciasquetrocavaacadameiadúziadeanos.Masaquela não! Seria o seu assento final neste mundo, uma morada que nãoenvergonhariareisoucardeais.Porisso,tomaranasprópriasmãosodesenhodoseusonho,inspiradonasgravurasdospalacetesdoséculoXVIIqueoantigopriortrouxeradeRomaaseupedido.Aempresaforadesmedida.Paratal,contaracomaajudadedoiscanteirosmaisummestrevindodeDresden,descendentedeuma

guildadeconstrutoressaxões,e,durantenoveanos,apropriedadeadquiridanametade judaica do círculo perfeito transformou-se num enorme estaleiro comaparelhadores, pedreiros, carpinteiros e escultores. Quando se deu a obra porconcluída, Skiba não quis perder tempo e encheu os salões com mobíliaemprestada para a inauguração. Convidado para padrinho da cerimónia, opresidente da Câmara cedeu sem custos o recheio do Paço municipal com apromessa de reposição a tempo das festas de Santa Edviges. Tudo omais foitrocadoporfavoresdevidosnoutrasparagens,paraládosdoiscavalosdebronzepatinado alugados a um prelado estrangeiro. Quando o dia chegou, a cidadetornou-se apertada. Os fiacres não cessavam de despejar industriais, políticos,padres e militares, e o próprio bispo de Lomza, compungido pela ausênciaforçada, fez questão de lhe enviar umEcceHomo talhado de propósito pelasirmãsFelicianas.Skiba recebeuos convidadosa cemmetrosdaportadecasa,distância bastante para se apreciar com justiça a frontaria barroca. O edifícioalardeavaasinclinaçõesdoautor,poisfalavadepoder,Deusebeligerância,pelavozdetodosossantosdoCéuecavaleirospetrificadosnasarquitraves.Écertoque, por carência de mãos treinadas, o lustro das cantarias dera lugar a umbojardadogrosseiroeasdozefigurasdofrontãolembravammaisospastoresdeWizna do que os apóstolos de Cristo, mas nada que ofendesse o olharembevecidodeSkiba.O colossal átrio, transformado agora num depósito provisório, armazenava

dezenasdevolumes cobertos comgrandespanosbrancos, amobília definitivaacabadadechegarequeumexércitodefuncionáriosseencarregariadecolocarnos lugares apontadospela senhorada casa.Skiba e o coronel atravessaramolabirintodemóveiseentraramnasaladejantar.Àsuaespera,Jarika,acriada,eumamesapostaàpressasóparaeles,jáqueocomendadorpreferiraresguardaramulhereosdoisgémeosdodesconfortodeumacasapormontar.Entãosentou-se como se tivesse o dobro do peso, um tique dos homens poderosos, logoimitadopeloconvidado.Alémdamesalongilíneaedemeiadúziadecadeiras,apenasacristaleirabaçapelopódepedra resistenteàs limpezasdiárias.«Verádaqui aummês», consolou-seocomendador,varrendocomavistao salãoàsmoscas. O coronel, já embevecido pela sopa de aves, sorvia ruidosamente ocaldo a escaldar quando deu com a grandemoldura sobre a lareira vazia. Erasem dúvida um retrato de homem. Franzindo o olhar, pareceu-lhe o anfitrião,mas,quediabo,apenasmeiorosto?,esódonarizparacima?Divertidocomoassombrodooutro,SkibaadiouacanjaefaloudeJerzy,ofotógrafodeVilnius.Durante décadas, percorrera a região numa carruagem puxada por cavalos.

Instalava-se uma vez por ano noLargo doMercado e ali ficava uma semana.Começava pormontar a paisagem, umasmontanhas nipónicas pintadas a óleonuns painéis de álamo, que protegia sob um coberto de couro. Durante osprimeirostrêsdias,afilanuncaesmoreciaenquantoaguardavapeloretrato,mas,apartirdaí,ofotógrafonãoestavaparaninguém,passavaosdiasembanhosdenitratodeprataaprepararasencomendas,queentregavaajudeusecristãosnodomingo seguinte, antes do almoço.Na verdade,muitos batizados,bar ebat-mitzvot se marcaram de acordo com a agenda de Jerzy, gerações inteirasperpetuadas à sombra do Monte Fuji. Também Skiba se deixara iludir pelaimortalidadee,depoisdeprocurarsemsucessoentreosartistaslocaisquemlhefizessejustiça,resolveradesafiarofotógrafoparaalgonuncavisto.Bastava-lhedacinturaparacima,masteriadesergrande,enorme,oupareceriairrisórionosalãodacasanova.«Podeserfeito»,disseraJerzy,«masnãocabenumafolha».Chegadaaencomenda,Skibacelebraracomafamíliaasubtilezadasjuntas,poissó comonariz encostado senotaria um retrato em trêspartes. Infelizmente, afatia domeio – logo a que apanhava asmãos nodosas e os calos trazidos decriança,aaliançadoprimeirosoldo,aqueixadamarcadaachumboporumtirodaguardaemnoitedecontrabando,maisamedalhadacidadeeodentedeouroposto a tempodo retrato– trouxeraumamá surpresa.Teria sidoumpingodeformol amanchar-lheo incisivo,mas, quantomais olhava,mais lhe custava aaceitar. A certa altura, resolvera corrigir, usando um paninho para esfregar anódoacomcautela.Sóparouquandopercebeuqueaemendaapagaraamanchae, com ela, o par de dentes da frente, deixando-lhe um sorriso igual ao doafilhado de seis anos. Então, amaldiçoara o fotógrafo e o retrato, partindo-o,enraivecido,nastrêspartesoriginais.Salvara-seadecima,umrostosemboca,comoseespreitasseporcimadeummuro.Skibaemoldurara-aependurara-anasala. Afinal, apreciava-se assim mesmo, ampliado, inquisidor, saboreando oefeitoquetinhanosoutros.Esclarecido, o coronel continuou a comer: «Os olhos dizem tudo», afirmou

comabocacheiasóparanãoficarcalado,eoassuntomorreuali.AtéporqueSkiba tinhaoutrasurgências:«Livre-sedomorto,nãoseesqueça.Estamalditacidadenãoprecisademaisfalatório.»Ograduado,quesehabituaraanãofazerperguntas, anotou mentalmente a instrução e lembrou entre obséquios quefaltavaservirovinho.De repente, vindo do átrio, um par de pancadas ressoou pela casa, logo

seguidodospassosaflitosdeJarika.Osommetálicodosferrolhosantecedeuumbreveclamorderevoluçãoatéaportadaruasefecharcomestrondo.

Skibaeo coronel já estavamdepéquando Jarika lhes apareceu semcornorosto.

*Yankelfoioprimeiroaouvir.Oruídovieradofundodasacristiaeeleapontou

para lá sem dizer palavra. Oculto na penumbra da sala, Eryk desesperou. Opavorlatejava-lhenasveiascomaestridênciadossinaisdefinadosesoubequesedesgraçara.Sópodiaserosacristão.Iriaespancá-lo,arrastá-lopeloscabelosao longo da rua e despejá-lo à porta de casa.Mas… eYankel?Um judeu nasacristia! Ali mesmo, sem vigilância, com o corpo e sangue do Senhor aoalcancedasmãosímpias;eraassuntodecarabinas.Atéquearaparigadeuumpassoemfrenteeserevelou.Ficouquieta,aolhar

paraosdois.Acabeleirafartadava-lheoardeumaárvorearrancadaàterrapelotroncoe

assenteempésdescalços.Vestiaumaespéciedecamisolasujaearregaçadanasmangasdeondedespontavamdoisgalhosquebradiços e cruzadosnumabraçoarrepiado. Apesar de ter onze anos, a idade dos rapazes, era mais alta. Erykreconheceu-a: «A filha da bruxa», segredou a Yankel. Ficaram os três emsilêncio até Shionka mostrar como fazer. Parecia conhecer cada recanto eencontrou a chave, escondida por baixo de um pesado livro de assentos.Aproximou-sedeumaportaesconsaeabriu-asemruído.Noentanto,emvezdesair,virou-separaosrapazeseapressou-oscomoolhar.Poucodepois,jáostrêscorriampelaestradaque levavaà floresta.Yankel, agarradoàmangadeEryk,alternava gargalhadas com os arquejos da pressa. Assim que cruzaram asprimeiras árvores, travaram os passos no tapete de caruma. Sempre na frente,Shionka guiou-os pelos pinheiros, parecendo conhecer cada ramo, cada raiz,cadaciladaatravessadanocaminho.Chegadosaolago,descansaramencostadosaumapenha.Atardeestavafriaeasombradopinhalacabouporempurrá-lospara uma zona a descoberto ao pé da margem, onde se sentaram. Yankel,vergado, apanhou pedras para atirar em frente e ouvi-las mergulhar. Ficaramassimmuitotempo,viciadosnaquelasdeflagraçõesàtonadeágua,atéqueErykcomeçouafalar.Efaloudele,damãequemorrera,dopaiourives,doprofessorPasternakqueencadernavalivrosnashorasvagas.FaloutambémdosdragõesdeKaunasquecruzavamafronteiraparaacasalarcomashidraspolacaseprometeulevarShionkaaoninhodosgrifinhos.Araparigadavaassimosprimeirospassosno mundo incongruente de Eryk, um turbilhão de superstições, pantomimas,

ingenuidadeseatécoisasbanais.Quandosecansoudodevaneio,Shionkavirou-separaYankel,sentadoaoseu

lado.Sinto o bafo de Shionka na bochecha, sei que está a olhar paramim. Fica

assim muito tempo e Eryk para de falar. Conheço-o, é claro que está tãoaturdido como eu. Então, sinto umamão a rodar-me o queixo até ao ombro.Agoraobafosopra-menos lábios;éShionkaquemeestudaorosto, talvezosolhos. Sim, os olhos… ela toca-me nos olhos com a ponta dos dedos, fazpequenoscírculosàvoltadaspálpebras.Acomichãoétãolevequeaconfundocomumsaboradocicado.Derepente, lembro-medo toquedaminhamãe, tãonítidoeseguro.Esteédiferente,surpreende,hesita,masalastrapelapele.Eryk, que se esticara para espreitar por cima do ombro da rapariga, olhava

fascinadoparaacoreografiabizarradosdedosdeShionka.ViaemYankelumaestranha submissão, um deleite tão pouco habitual na sua expressão infantil.Entãolembrou-sedequeoanimalsilvestrequetinhaàfrenteeracarneeespíritodeDreide,aestrigadafloresta.Quepoderesperversosteriaherdadodabruxa?Queesconjuroesconderianoslábiosmudos?Quandosepreparavapararesgataro amigo ao rito depravado, ela ergueu-se e partiu decidida, arrastandoYankelpelamão. Eryk foi atrás deles perguntando aonde iam,mas Shionka, que nãofalava,nãopôde responder.Embrenharam-senovamentena floresta,masdestavez tomando um caminho desconhecido dos rapazes. Galgaram as fragas namargemdolago,paraseacharemderepentenapartemaisdensadobosque.Asárvoreserguiam-setãopróximasqueporelasnãopassavamaisdeumgarotodecadavez.E issoerademaisparaa imaginaçãodeEryk:que terrorsolidárioascravaraalitãoapertadas?Quefenómenodemoníacopassaraporaquelelugar?Edepois anoite caía apressada,ospassosdogrupoceifavamos fetos emirtilosrasteiros,atrasandoamarcha.CaminharamatéShionkaestacarsemaviso.Nesseinstante virou-se e fez sinal a Eryk para que aguardasse ali com Yankel,desaparecendo de seguida por um talude demusgo e chorões. Sem paciênciapara a espera, o rapaz puxou pelo amigo cego e aproximou-se da beira daescarpa.Láaofundo,comooutraraizdafloresta,opalhaldafeiticeira.Umfiodefumocinzento–enãoazul,comosejuravanacidade–subiaaprumo,poisali nem o vento se atrevia. Shionka encontrou a mãe à porta da casa, masnenhuma pareceu querer dar pela outra. A rapariga entrou, deixando Dreidequaseadormecidasobreumassentodepedraeagasalhadanasrepasquecaíamcomoumvéudecordasgrossas.Ládoalto,ErykdescreviaaYankelopoucoqueviaaolonge;estavacadavezmaisescuro,masaluzlaranjaquebruxuleava

pelaportaescancaradabanhavaorosto imóveldafeiticeira.O tempopassoueShionka não aparecia, apagara-se dentro da casa. «Já chega. Vamos embora.»Perante a impaciência do parceiro, Yankel hesitou, não queria partir ainda.Discutiramemsurdinaoquefazeratéesgotaremosmotivosparaesperarmais.SóentãoEryksossegou,eramelhorassim;umúltimoolharepartiriaparanãomaisvoltar.Porém,aofazê-lo,cravouosdedosemYankeledeixouderespirar:abruxaolhava-os ládebaixo!Osdois rapazesafundaram-seno tojoeYankelouviudoamigoaquiloque tantoochocara: aexpressãoeradoentia,maléfica;havia que fugir da peçonhenta, salvar a vida! Ao erguerem-se, Eryk aindaespreitou para a casa, mas foi pior: Cristo todo-poderoso! O assento estavavazio! «Salva-te!Aí vemela!»Mas, assimque se viraram,umasmãos firmesprenderam-lhesosartelhos.Sabiamqueiammorrer.

*Jarika esbugalhou os olhos: «Judeus! E devem ter vindo todos. Só se vão

emboraseocomendadorosatender.»Skibaolhouparaocoronelepraguejou,enquanto voltava a sentar-se. Por fim, lá aceitou recebê-los: «Mas depois decomer.Enãopassamdovestíbulo!»Deseguida,malacriadaabriuaporta,orésdo chão encheu-se de vozes, uma algaraviada que o comendador já ouviramuitasvezes.Masnasuaprópriacasa?Umadesfaçatez…Ah,sim!,haveriamdeesperar. E por isso fez render a refeição, mastigando o tempo com conversasverrinosas.Quando acabou, cruzouos talheres noprato e pousou com forçaoguardanaponamesa.Aovê-lodepé, o coronelmaldisse a judiaria e abdicou,descorçoado, do pudim de trigo. Caminharam lado a lado até ao átrio paraencontraremmaisdoqueesperavam:movendo-seacimadosmóveiscobertos,ascopasnegrasdoschapéusdeslizavamemrevista;aopédaescada,desafiando-seaoespelho,unsgaiatosdesordeirossacudiamoscachosdecabelosuadonumadançadeS.Vitogalhofeira,semadultoquedesseporeles;portodoolado,osjudeusmaisvelhosarrancavamlençóisparaadmirardepertoosbrocadoseaspratas.Umdeles,enlevado,encostara-seaumavénusesculpidaeprovocavaosamigosespremendo-lhecomasmãososseiosdemármore.De repente, vindo de alguma sombra, Salomão Finkelstein apresentou-se à

frentedocomendador.O judeudas trigas,comoeraconhecidodos temposemquefretavadiligências,eraparamuitosaversãohebraicadeSkiba.Abastadoeortodoxo,disputava-lhecadapalmodeterra,influênciaerespeito.Odiavam-se.

Comumestalardededos,Finkelsteindeuosinalparaqueumjudeucorpulentosurgissedomeiodogrupocarregadocomumpesadosacode lona.Assimquechegou perto de Skiba, o homem largou-lhe o saco aos pés, expondo umaquantidade obscena de moedas. «Chega?», perguntou Finkelstein aocomendador, mas este, mesmo estonteado pelo cheiro do dinheiro, resistiu aolhar para os pés, sabia bem o que lhe queriam.A reclamação não era nova,ouvira-amuitasvezesdesdequesemudaraparaamansão.Asuapropriedade,imposta em pleno lado hebraico, encostava-se ao Largo do Mercado,prejudicando boa parte dos judeus.Obrigados a contornarem o seu perímetro,desperdiçavammeiahoraporviagem,umtranstornoaquehaviaquepôrcobro.Foi quando alguém falouda renda, alugar o direito de passagem, uma coisa adividir por todos.A coleta concluiu-se em dois dias e Finkelstein ofereceu-separa falar em nome deles. «É suficiente?», insistiu o judeu, desafiando aindiferença de Skiba. Durante os momentos que se seguiram, aqueles doishomens poderosos nada disseram, preferindo corroer-se um ao outro com omesmo olhar crispado. Entretanto, a comitiva de judeus encavalitara-se nascostas de Salomão, e os garotos, imiscuídos entre as pernas dos adultos,assistiam na primeira fila tão expectantes como os mais velhos. Uma mãoerguidabastouaSkibaparacalaroburburinho.«Guardaoteudinheiro»,disseao judeu. «De qualquer maneira, é imundo.» E expulsou-os como se faz aoscães.

*ErykfechouosolhoscomforçaeagarrouYankelporumamanga.Deixaram-

se cair de joelhos, dobrados no mesmo horror, e suportaram sem coragem oapertodeDreide.Aguardavamo suplício;omomentoemque,descravadososartelhos,asgarrasdabruxalhesrasgassemapeleeostendõesdascostas.Masnão foi isso que aconteceu, pois sentiram-se livres e nada de mal se passou.QuandoEryksevoltou,eraShionkaquemosolhava,agachada.Refletianorostotranspiradoa lua fugazeogozodeosversemcor.Tocou-lhesabocacomosdedos,perguntasparaquê?,elevantou-se,ajeitandoumabolsaatiracolo.Quando se entranhou na floresta, eles seguiram-na como se fossem os dois

cegos. O caminho de volta transformara-se numa massa escura, húmida aosprimeiros pingos, e o grupo abrandava a cada passo pegajoso, num esforçocastigado por gravetos e tropeços, feito a arfar e a praguejar. Passou muitotempo. O vento já zumbia com a fúria da borrasca repentina, e eles intrusos

naqueleajusteentreobosqueeasaraiva.Derepente,aquedasemamparo,unssobre os outros chapados no lodaçal. Shionka foi a primeira a arrastar-se damargem do lago. Ergueu-se e procurou avidamente o conteúdo da bolsa atésossegar porque nada se perdera. Depois de descolar os rapazes da lama,abrigou-secomelesentreaspenhas.Eryk,quesabia fazer fogo,esquadrinhouaos apalpos por chamiços,mas o poucoque encontrou escorria como ele. Porissopreferiusentar-secomosoutros,bafejarasmãoseganharalentoparasairdali.Foi então que se fez dia!, um apogeu breve de luz branca que a tormenta

dispararasobreaágua.Logoaseguir,oribombo,umgritoroucodeDeus.Eascriançastolheram-se; jáestavaescurooutravez,nempensaremsairagora.Ostrovões e as faíscas deflagravam cada vez mais irmanados, projetando-se nosrostos assustados dos garotos. Foi num desses lampejos que Eryk deu comShionka tombadasobreYankel.Repetiaosgestossinuososno rostodoamigo,circulandoosolhoscomosdedosmirrados.Porém,aofulgorseguinte,Shionkajá vertia alguma coisa na boca entreaberta do rapaz. Utilizava asmãos comopinças, retirando da bolsa umas aparas pardas que a Eryk pareceram algas oucogumelos.Temendopelavidadoamigo,quisdesferirumapalmadanamãodarapariga,masas trevassúbitasdesviaram-lheapancadacontraapontadeumarocha. Quando a luz voltou, viu que ela também mastigava e sossegou.Entretanto, ao desabrigo, o vento desmaiava e a chuva caía a prumocadavezmais rala: era tempo de abalar. Uma aberta momentânea e levantaram-se.SeguindoospassosdeShionka,partirampelo trilhomaismacioque levavaaoshtetl.Mas,àsprimeirasluzes,aindadistantes,Yankellargouacorrercomoseastivesse visto. Logo à frente, derrubou Eryk e evitou Shionka por uma mãotravessa.Araparigafoiaprimeiraareagiresaiu-lhenoencalço.Desapareceramos dois no breu da floresta, deixando Eryk tombado na lama a olhar à roda.Quandoselevantou,sentiumedo.Ascasaslongínquasnãooconfortaram,entresieelasmilharesdecriaturasfantásticasqueoseuespíritoerrantesecoibiadever apenas como troncos. Ficou ali, lutou consigo, esfregou o rosto, rezou,blasfemou, até que, sem saber como, se viu desarvorado entre os demónios,escapando em corrida aos seus abraços, mãos em frente a abrir caminho. Aopisaroprimeirocascalho,voltouasiemanteveopassolargo.Percorreuasruasdesertas sem saber aonde ir. Temia pelo amigo, não o queria nas mãos dabruxinha. E de repente, lá do casco, uma voz terrível, uma voz cortante decriança,avozdeYankel.Eryksaiudisparado,berrandoparatodososlados,esóse calou quando os encontrou. Estavam no Largo doMercado, ali mesmo, a

meio,juntoaopardeestátuas.Shionka,sentadasobreoscalcanhares,mãosnosjoelhos,balançavacomoumpênduloexibindoorostoaocéu.Yankelcaminhavaemcírculosnumapressadesbragada,deixando-setombarcomoummortoparalogoseerguer,foradesi.Poressaaltura,jácadajaneladolargomostravaoseucurioso,porvezesaostrêseaosquatro,disparandopalpitesaoacaso.Eryknãopôdeesperarmais,estavaconsternado.PassouporShionkaeouviu-lhequalquercoisa,umaespéciedeladainhacantada,masnemlheocorreuqueelaeramuda.Então,num impulso,barrouacorridaalucinadadoamigo.Aosenti-lo,Yankelexpôsumsorrisodiáfano,quasepateta:«Overde,Eryk!Afinal,jáseioqueéoverde…»Yankelnuncaserecordariadoquealiacontecerae,diasdepois,comumolhar

comprometidoeamãosobreopeito,Shionkahaveriadejurarquenãomaislhedariaaprovaroscogumelos.2TermoemiídichequedesignaaspequenascidadesexistentesnoLestedaEuropa,cujapopulaçãoeraconstituída,emlargapercentagem,porjudeus.3Pani/Pan–termosempolacoquesignificam,respetivamente,Senhora/Senhor.4Forçamilitarpolacaconstituídaem1924comamissãodedefenderasfronteirasorientaisdopaís.

PARIS,2001

AssimqueVivienne terminou,pousouosóculos sobreomanuscrito.Yankeldemoroualgumtempoaperceberquealeiturachegaraaofim.Naverdade,cedodeixaradeligaroqueouviaaqualquercoisalida.Aspalavrasroucasdaeditora,desfeitasnaboca,eramvozesqueafinalnãoesquecera.–Tornastudotãonítido–dissemaisparasipróprio.–Filsdepute.Tinhampassadoduassemanasdesdeoúltimoencontro.Naquelemomentoninguémpareceucapazdedizernada.Estavamsozinhos,a

livrariafecharamaiscedo.FideliativeradesairparalevaramãeaoSalpêtrière;outravezosrins,umamaçada,omaiscertoeravirtarde,ou«…talvezfiqueafazercompanhiaàmamacita».–Masnãodeixasdeserumfarsante–acrescentouolivreiro.–Nuncahouve

ummortonasacristia,oqueéquetepassoupelacabeça?–Éofantasmaqueescolhiparameacompanharaolongodoromance–troçou

Eryk.–Massossega,logosevê,aindatenhomuitaspáginasparadecidiroquefazer com ele. Se não for capaz de desatar o nó, não há problema, volto aoprincípio e apago-o, nenhuma personagem está a salvo nos meus livros. E,depois,nãoénadadenovo,garanto-te,façoissomuitasvezes.Porqueéqueheidesaberlogoofimdahistória?Tenhotantodireitoadivertir-mecomooleitor.–Écomoelediz,acredite–admitiuVivienne.–Passadostantosanos,ainda

nãoresisteabrincaràsescondidascomoqueescreve.Yankelnãoouviuaspalavrasdaeditora.AoaceitaroreptodeEryk,jásabia

que se condenara àquilo: à devastação damemória e ao divertimento amargocom que iria tropeçar nas mentiras do amigo. Mas havia memórias que nãoadmitiamconcessões:–NuncamedissestequeaShionkacantounomeiodapraça.–Averdade e a fantasia andaramenleadas nessa noite, não tive a certeza –

disseEryk.–Numromanceésempremaisfácil.–Éimportanteparasisaberseelacantou?–perguntouVivienneaolivreiro.–AShionkamorreu–respondeuele.–Hásessentaanos.

–Maséimportante?–insistiuamulher.–Nãoouviu o seumarido?Comesta idade, a única coisa importante é não

mijarascalças.–Aindaassim,tocounoassunto.Porquê?–Leiaolivroatéaofim–sugeriuYankel,encenandoumsorrisoingénuona

direçãodeEryk.–Istoseoescritortivertempoparaoamor.Yankel congelou o sorriso durante algum tempo.Era umaprovocação,Eryk

sabia-o, e Vivienne também.Uma dasmuitas que se seguiriam. Nessa altura,porém,aeditorapreferiutentarasorte:–Ligoogravador?Yankelabanouasmãos,desvalorizando:–Não façacaso, são tolicesdeumvelhoque semeteondenãoé chamado.

Pergunteantesaocavalheiroqueatrouxeatéaquiporquediaboriscouonomedoshtetl.Pergunte-lheatéondeestádispostoalevarasomissões.–Desiludi-te–afirmouEryk.–Jásabíamosqueiaacontecer,nãoera?– Oh, claro – acenou Yankel, num tom jocoso. – Mas logo no primeiro

capítulo?– Esperavas o quê? Que terminasse a carreira a contar a história de um

lugarejo?Oshtetleraumburaco,umpedaçodeflorestasujodehumanidade,amaisvulgardasmaldições.Nãomereceduaslinhas!Sólhepegoporqueprecisodeumpalcoparaoromance,precisodepessoas,precisodamerda todaque láfizeram. Mas depois há o resto. E o meu último livro tem de ser universal.Tragédiascomoaquelapassaram-seemmillugares.Quandofalodoshtetl, falodelestodos.Então,paraodiabocomonome,nãoprecisodeleparanada.–Nãomechamasteparafalardemillugares.Ahistórianãoseescreveassim.–Ahistóriamorreu,Yankel,éumlastrodeesterco.Sóserveparanosrecordar

queéinútil.Oqueatépodiaserbom,senãofosseumparadoxo.Yankel não insistiu. Sabia quem tinha à frente. Se esperara por outra coisa,

culpa sua. Agora era tarde, havia que levar aquilo até ao fim. Alguém lhedissesseoquevinhadepoisdainocência.

NORDESTEDAPOLÓNIA,1935

Shionka apoderara-se dos dois rapazes e isso notava-se na hora de escolheraondeir.Deixava-osfalar,discutire,umavezesgotados,jáestavamnoencalçodelasemsabercomo.Omaiscuriosoeraqueoconseguiaapenascomosseussilênciosetrejeitos.Maserapoucoparaaambiçãoquenãoescondia.Averdadeéquetambémelaqueriacontarhistóriase,àfaltadevoz,haviadesevalerdadosoutros.Paramais,aintrigaeraaculturadominantenacidade.Odomestavanaescolhadaspalavrasaescutareelasabiaoqueprocurava:queria-asabafadase clandestinas, ditas atrás das cortinas à hora da ceia, quando todos melhorconspiravamealcovitavam.EfoiassimqueosrapazesconheceramashistóriasdeShionka,umlivrodecontosqueelacompunhaempequenoscapítulosditadospelasmaisvistosaspersonagensdacidade,aolongodasvisitasnoturnasqueseseguiram.Todososdiasdeverão,depoisdojantar,ostrêsgarotosencontravam-se à porta deYankel e seguiamos passos da rapariga num trajeto escolhido adedo.UmadasparagenspreferidaseraacasadePaniKrysia,asombravirtuosado padre Kazimierz. Sobrinha do antigo prior, sem conhecer pai nem mãe,cresceranasacristiaeporláficara.Otiopadre,queacriaracomosuaatéàhoradamorte,abafara-acomtantadoutrinaquederaazoaprofecias.«Oudábeataoudevassa»,jurava-seamiúde.Masajovemnãoosouvia.Crescidasadiaetementea Deus, devotara-se ao novo pároco com a mesma lealdade. Quantas vezesencobrira o sacristão que, roubado aos deveres pelo vinho de missa, deixavaesgotar os óleos ou a côngrua por cobrar? Foi então que o círculo perfeitoreparou nela, naquele ror de cuidados que chegava a enternecer: as flores quecultivava para perfumar a igreja, os xailinhos tricotados ao serão com queagasalhava os santos no inverno, o lustro dos cibórios, as alvas sempreengomadasnoroupeirodosenhorpadre.Porém,sepulsavatantagraçanopeitodePaniKrysia,nemumsófiodeluztrespassavaaquelacouraçadeazedumeefazenda preta. Um bolo de papoila, ummotejo, um rasgo de sol no inverno,pouco importava, seria sempre sofrida, nada lhe aliviava os olhos contraídos,Nossa Senhora da Consternação, como passaram a chamar-lhe pelas costas.

Tinha traços de retrato antigo, escaveirada, quase tão alta como o padreKazimierz, era um farol de virtudes. Iludidos por tanta austeridade, algunsjulgavam-navelha,masosmaisantigos,recordandoosseustemposdemenina,faziamascontasmaiscertasegarantiam-nafértil,quandomuitoquarentona.Krysia deitava-se cedo, era a primeira a apagar a luz, e Shionka, que não

prescindia dela nas suas histórias, apressava os dois rapazes para ainda aapanharemacordada.Ditaabênçãofinaldamissadasseis,abeatacorriaparacasaseguidaporquatrodevotas.Aíchegadas,comiamumasopaereuniam-seàvoltadamesaparadesfiarorosário.Comosolhospostosnomesmopontodosobrado,cadaumafixavaasvidasde trazerporcasaeasdoresquedeixara láfora. As mesmas roupas, os mesmos gestos, as mesmas palavras,Ave Maria,Gratia plena, cinco bonecas de corda e dedosmecânicos a fazerem correr ascontas.Ámen.Eraporessaalturaqueostrêsgarotos,acabadosdejantar,assomavamàjanela

paravernoquedava.Muitasvezes,Krysialevantava-se,caminhavaatéàsaída,abriaaportaàsmulheresedespedia-secomacenosdaquelaprocissãoarrastada.Mashaviadiasdiferentes,momentosemquedespachavaaslitaniasparapoderfalardosoutros.Sabiadecadaparoquianooqueprecisava,media-lhesasculpaspelo tempo de confessionário, registava em caderninhos as manhas queencontrava,asconversasnospasseios,osolhares transviados, tudoparanãoseperder,tudoemnomedoSenhor.Guardariaparasiocrucial,masfariaconstartudooresto.Eparaissonadamelhordoqueasbeatasquetinhaàfrente,sempredesesperadasporouvir e soprar pela cidadeoventodamaledicência.Naquelefimdetarde,Krysiaficousentadaelimpoucomosdedosasalivadoscantosdaboca.EraosinalporqueShionkaaguardava,eostrêsmiúdoscolaramasorelhasao vidro. Durante uma hora, a mulher afundou os braços na lama do círculoperfeito, remexeu-a, retirouos torrõesquequiseesfarelou-oscomprolongadodeleite perante os quatro olhares esganados. E no dia seguinte, por altura doalmoço,acidadeinteiratambémpalpitariasobreocalorqueafloravaorostodajovemGlowickanapresençadeoutrasraparigasesobreosatosdecontriçãoquea viúva Dabrowska carpia manhãs inteiras num dos bancos da igreja; falariaaindadorapazinhoemceracomumsexoexorbitantequeoIgorcoveiro,paidesete meninas, abandonara aos pés da Virgem Negra, novidades que seintrometiamnas conversas rotineiras comque o povo comentava o suicida dopresbitérioouoleilãodamãozinha.Quandoterminavam,Shionkalevavaosamigosdali;àsvezescorriam,como

aconteceu naquela noite, a caminho da vivenda de TadeuszOrlosk. Constara-lhesqualquercoisasobreumcertojantardefesta.TadeuszeraopresidentedaCâmarae,segundoopróprio,orostodacidade.

Gastaraosanosdegarotocomopadrastopadeiro.Quandoelemorreu,Tadeuszficou-lhecomosfornos,onegóciofermentouejánãoseenfarinhavanemfaziamadrugadas. Fora sempre um rapaz vexado, ázimo, diminuído pela alturairrisória.Cresceraamedir-seaoacordar,acelebraroscentímetrosquesomava,amaldizer-lhesateimosia,aanotartudonumdiáriocompulsivo.Fezquinzeanose queimou o livrinho: tinha ummetro e quarenta e nove e assim ficaria até avelhice o definhar.Nessemesmo dia, jurou converter a estatura em prestígio.Haveria de virar-se para a abundância e por isso, anos mais tarde, escolheuApolónia, uma esposa imensa com pele transparente, três queixos e um bustodesmedido.Emprivado,Tadeuszgostavadelhedarpeloombro,despejá-lanuasobreacamaemoldá-lacomomassalêveda.Quandosossegavam,aninhadonocolofarto,embalava-senoarfardamulher,sonhandosóparasi.Eraali,naquelesobe-e-descematernal,quepreferiatraçarasuavida,poishaviamaismontanhasporescalar.Adopoder,detodasamaispedregosa,subira-acomoscotovelos,golpeandoàesquerdaeàdireitaosamigose rivaisqueapolítica lhepuseraàfrente. Mas Tadeusz era um homem doente, sofria de manias, acordavadesaustinadoameiodanoiteeensopavadesuoroseiocondoídodeApolónia.Nemomalerararo–muitosalidespertavamnomesmodesassossego–nemacausaeraobscura–haviamuitoqueoparasitaforaidentificado:«Cadajudeuéum prego espetado em Cristo», gritaria Tadeusz a quem o quisesse acalmar.Gritariamasnãogritava,engoliaacustoasanha,talcomofizeraaotomarposse,numdiscursoaclamadoemquejurararespeitoeequidistância.Aquelaeraafestaqueprometeraasimesmonodiaemquenasceraafilha.E

agora,defrenteparaela,fulminava-acomoolharaustero,tãoostensivoquantoosbonsmodos lhepermitiam.Naverdade,nãopassavadeumavisoque tinhaoutro destinatário: Cibor, o jovem noivo que, separado por metro e meio derespeito, partilhava o sofá comWalentyna. O dono da casa estava triunfante,investiramuito tempoe imaginaçãonaquele enlace, afinalo rapazeraumdosgémeos do Skiba. Ao longo dos anos, Tadeusz nunca olhara a meios para sefazernotado,atravessara-seacadaensejonocaminhodocomendador,gabara-oempúblicoe,seoencontrasseemcerimóniaoficial,ajeitar-lhe-iaamedalhaaopeitopararecordarquetaldistinçãosósubiraaplenáriopor insistênciasua.Oresultadodetantoesforçoestavaali,naspontasdoseusofá,eeleaproximou-separa estender ao jovem Skiba uma mão solene. O outro levantou-se e

correspondeu ao aperto, constrangido pela telepatia com que Tadeusz lhesublinhavaovalordaoferenda:Walentynapodianãoserbonita,mastinhamuitodeseu.Edepois,quediabo,dobradososvinte,erafartacomoamãe,omesmopeitoopulento,ancasparideiras,umtesouro.«Elevas-maseladinha»,sussurrouopresidentedaCâmaranoabraçoquefechouocontrato.Entretanto,espalhadosemgruposdedoisou três,osconvidadosrepetiamas

conversasdacidade:falavamdeComunismoedasguerrasnoSejm5,choravamamorte de Pilsudski e a última viagem do navio Pulaski para Nova Iorque,terminandocomosemprenoassuntodomomento:oleilãodamãozinha.Aumcantodasala,eacabadodechegardoseminário,Pavel,o irmãomaisnovodeWalentyna,mexiacomodedoocopodelimonadaesorriacompudorolhandoospés.Tadeusznão escondiaodesgostodeo ter a estudar parapadre.Se lhevisse a ambição paterna, quem sabe chegasse a bispo, talvez primaz, porquenão?Mas era escusado, o rapaz sómostrava fé; uma fé surda, bradava o pai,nada que o levasse ao palácio Borch6. Além disso, eram passos perdidos,trabalhara-o para pisar outros corredores, deixasse lá as Alturas e olhasse oexemploquetinhaemcasa.Masaculpaeradela!,damulher,maisasconfiançascom a padralhada. E, nem de propósito, lá estava Apolónia, segurando umpratinhodeacepipes, à conversacomopriorKazimierz.Oclérigo, convidadoparatestemunharapromessaalinhavada,trocavaopesodotédiodeumpéparaooutro.«NãolargaoPauPreto»,rosnouTadeuszparaqueofilhooouvisse.PauPretoeraonomequeficaraaopadredosbancosdoseminárioedevia-setantoàalturacomoàsotainanegraepuídanasbainhas.Umhomemsanto,diziam.Olhodepássaro,bexigoso,exibindoasmarcasdorostocomosefossemaschagasdeCristo,pareciaumaestacacravadanomeiodosalão,escondendoocabeçãodelinhoatrásdabarbacrescida,que,porsermuitohebraica,jálhevaleraremoquesdobispo.Entretanto,ciosadeouvidospios,Apolóniaconfessava-sealimesmo,desfiandoumporumospecadosdomarido,dosfilhosedemeiacidade.CorremosatardeinteiraeShionkacheiraatranspiração.Masestáeufórica,

quando chegamosaopé da janela fica sempre eufórica, passao dia à esperadisto.Hoje,aindanãomelargouamão.Passouumanoeaprendemosafalarassim,háapertosparatudo,paraosim

eparaonão,paraonuncaeparaotalvez,paraapressaeparaasraivasdecadaum.Masháoutroqueédiferente,quenuncaafrouxa,comoseestivéssemossempreadizeralgumacoisa.Certasvezes,comoagora,sintooseupolegarnascostasdaminhamão,acarícia,ospequenosdeslizessobreapele,eesqueço-me

deondeestou.AtéqueavozdeErykmedesperta,dizendo-mequeopresidentedaCâmara

estáfurioso.E, por estarmais irritado,Tadeusz acercou-se damulher para a lembrar das

horas,haviaum jantarpor servir.Contrariada, ela saiuparaacozinha levandoatrás ummarido a cuspir fogo.Desamparado, o padre olhou em volta até darcomPaveleoseucopodelimonada.Gostavadorapaz,ungira-o,vira-ocrescernadoutrinaerecomendara-onoseminário.EntãoquissabernovasdeVarsóviaefoi ter com ele. O noviço endireitou-se e manteve o sorriso enquanto lherespondia.Quandooprior lhe faloudemulheres,Pavelvoltouaolharparaospéseouviuatéaofim:«Senãoprovaste,nãovaiseragora.Sejáexperimentaste,vai-tedesabituando.»FoiavozdeApolóniaquedesfezasconversasdasala:ojantar!ojantarestava

servido,graçasaDeus,etodossedirigiramparaasalaaolado.Shionkaestavacansada,nãoiamudardejanela,umjantarcomconvidadossó

setornainteressanteláparaasobremesa,nempensaremesperar.Então,saltoupara o chão e amparou Yankel, que fazia o mesmo. «Já chega. Vamos beberlicor», disseEryk, como se a ideia fosse dele.Na verdade, todas as noites deverão terminavam no mesmo sítio e ao lado da mesma figura; uma figuraestupenda, pois nada batia certo na personalidade de Shlomo Pasternak, oprofessordaRuaMazur.Encadernador, poeta e dono damina de ouro, era tambémcomunista, tenor,

judeueiaparavelho.Moravanumcasarãodedoispisossemmuroparaarua,compridocomoumcomboio,edoaraosarmazénsmaisumterçodojardimparaquealiseerguesseaprimeiraescoladacidade.Eraláqueensinavahaviavinteanos.Saíadoshtetlumavezporano,sempreemjunho,malacabavamasaulas,e

nunca dizia ao que ia. Quando voltava, um mês mais tarde, aparecia sembagagem, mas todos sabiam que atrás dele chegaria uma tipoia puxada porcavalos. Era um acontecimento. A cidade inteira afunilava-se à porta doprofessorparaverchegarascaixas.Assimqueaspousavamnaorladojardim,Shlomo avançava no meio de dois voluntários e, quando os pés de cabrarevelavamostesouros,apopulaçarecuavaumpassoporprudência.Umaauma,àvistadosbasbaques,oprofessor levavaaspeçascommilcuidados:umpotecom pó amarelo, outro com cinzas, uma peruca, funis e lamparinas, avesembalsamadas,umalambique,brocadosevelasdesebo,mapasdepergaminho,meiofetodemacacoampliadonolíquidodeumfrasco,garrafinhasdeorvalhoe

livros, sempre livros. Mal se via a sós com eles, arrancava-lhes as capas!Passariaosmesesseguintesalê-loseaencaderná-loscompeledeburro.Nemelesabiaporqueseapaixonaraporaqueletrabalho,ashorasperdidasnaprensa,acostura,ocorte,acoladefarinhaacozercomapedra-ume.Nofinal,todososlivrospareciamiguais,asmesmascapasescarlate,os rótulosde3x4,assuasiniciaisgravadasaouroentreasnervurasdaslombadaselogoabaixodotítulo.Assimqueacabavaumtrabalho,punhaasvestesdecãomolhadoeiasacudirameticulosidadeparaoLargodoMercado,correndooujogandocomascrianças,ocultonasarcadasdafarmáciaKowalskaparalhespregarsustosourircomelas.Mashaviasempreumlugar reservadoparaYankel,oseuqueridoboychick7.

Conhecera-onarua,malequilibradonosprimeirospassos,agarradoàssaiasdeRasia.Certodia,noterreirodasinagoga,resolverasentar-seaseulado,mesmono meio do chão, e deixara-se estar muito tempo a vê-lo brincar com aspedrinhas. Rodava-as com os dedos, cheirava-as, chocalhava-as nas mãos emconcha e dobrava o riso por causa do barulho, ou talvez por saber que asconhecia melhor do que ninguém. Mais tarde, vira-o à porta da escolaacompanhadoporRasia,quetorciaasmãossemsabersevaliaapena.«Traga-oamanhã»,elatrouxe,eleficou,encheuasalacomperguntasdecegoeomestreusou-asparaensinarosoutros.Àsvezeslevava-oparacasaemostrava-lhe,peçaapeça,orecheiodascaixas.Cadaobjetoexibiaumsomaotoque,umaroma,umsabor, uma textura, uma história, e o professor adorava misturar tudo numafábulafulguranteondeconviviamcriançasdeoutroslugares,cançõesemlínguasnuncaouvidaselagosdeprataincandescente.Entãoraspavaosfósforosgigantesque construíra com o pó amarelo, e o garoto, ao escutar os dragões cuspindofogo, recuava encantado com o calor da chama e o cheiro a enxofre. MasShlomotambémtomoucontadeShionka,tambémlheabriuaescolaeaportadecasa.Aofimdatarde,passava-lheolápisparaamãoeficavaaolharparaela,paraos traçosqueondulavamnopapel, letrasqueerammuitomaisdoqueasletrascomqueescreviaonome,S-h-i-onka:odesenhoprimorosodaserpente,operfildeumtrono,omiúdodecabeçanoar…Depoisensinou-aaler,eparaissoleu-lhe contos,poemas inteiros, epopeiasditadas comodedoa sublinhar cadapalavra, cada sílaba. Foi paciente e valeu a pena; soube-o pelos olhos ávidoscomqueela,doladodeládolivro,varriaaslinhasumaauma.Nos últimos tempos já eram três a visitá-lo; Eryk venerava o professor.

Vinhamdenoite,quasesempreàmesmahora,echegavamalvoroçados.Depois,sentavam-se à suamesa para beber o licor de laranja que ele diluía em águafresca e contar-lhe as histórias acabadinhas de saber. Daquela vez, foi a

confissãodeApolóniaaquemaisodivertiu,osacramentocumpridoempécombolachinhaseospecadosdosoutros.Entãoalguémbateuàporta,oqueeraestranhoàquelahora.Oprofessor foi

abrire,assimqueofez,deflagrounomeiodaruaumburburinhoentusiasmado.O cavalheiro de uniforme que aguardava na soleira trazia atrás de si umapequena multidão que agora se apertava, tentando bisbilhotar para dentro dacasa. Além dos populares, contavam-se alguns polícias, e, bem afastado dogrupo,ojuizMarszałekdavaaresdeimpaciência.Apósdizerqualquercoisaaoprofessor, o cavalheiro de uniforme pôs-lhe um papel à frente dos olhos,aguardouuminstante,dobrouafolhaemquatroepassou-aaalguémquetinhanas costas, sem sequer olhar para trás. Os dois homens ficaram assim pormomentos,cadaumespreitandoporcimadoombrodooutro,atéodesconhecidoencontrar o olhar inquieto das três crianças. Nenhuma delas se apercebeu dequem deu a ordem, alguém teria mandado entrar a matilha inflamada queengoliuoprofessor,queolaçoupelopescoçoelheatouasmãoseostornozelos,levando-onoitedentro.5CâmaraBaixadoparlamentopolaco.6ResidênciadosarcebisposdeVarsóvia.7Designaçãoafetuosaquesignifica«jovemrapaz»(iídiche).

NORDESTEDAPOLÓNIA,1936

Um triângulo branco. Surgia-lhe muitas vezes sob a forma de montanhadesolada, umcumecobertodeneve,mas, amaiorparte dasvezes, era apenasisso: um triângulo branco. Eryk acordava a meio da noite a pensar naquelaimagem,via-aduranteodia,via-aemtodoolado,enuncaselivrariadelaatéaoúltimodosseusdias.Nãoeraqueaachasseestranha,jácresceraaafastá-ladacabeça.Para ser franco, nem se lembravadopai deoutramaneira, deitadonoquartoondeEryknuncaentravapornãoestarautorizado.Bastava-lheaquiloqueviapelaportaentreaberta:umaluzadoentadaeaspernasfletidasdopaicobertasporumlençol,umtriânguloinamovível.PobreEryk.Oourives,desmiolado, tivera-o forade tempo, resistindoacaducarcomose

esperadeumvelho.Nempensar, seencontraraaquela jovemarrojada, tontaobastanteparaoquerer jácheiodeachaques,haviade irmaisalém,atéporqueessascoisassepagam.Eporissodera-lheumfilho.Contasfeitas,odelírioduroupouco.Tinhasido fulminante,dizquemviu.Nummomentoestavabem,aseguir já

estavatorto,abocaamurcharparaaesquerda,nuncamaisfoioqueera.E,derepente,comovelhopostoaumcanto,viu-seajovemasóscomofilho

de seis anos e um armazém de joias. Vencido o primeiro abalo, não tardou aemancipar-se, deu largas à alforria e foi esbanjar o tesouro. Fê-lo com taldesgovernoqueacaboualvodairadequemviaassimesbanjadasaspoupançasdo ourives. Porém, sem ouvidos nem vergonha, a rapariga não prescindiu denenhumdosexcessosetalvezfosseissomesmoqueafezcairàcama.Afebresubiu-lhe tantoqueaderreteupordentroebastaramoitodiasparapôr fimaomartírio.Asmás-línguasdecretaramquemorreradealegriaefoiissoqueficou.Isso e um velho imprestável mais um filho por criar. Valeu-lhes então PaniKrysia, que destacou sete amigas. Cada uma tinha um dia da semana paraaparecer,eeraporessaordemqueErykasconhecia.Naquele dia era a Sábado que estava a lavar o pai.O rapaz saiu damesa e

olhoupelajanela.Nãoseouviamospássaros,maisumatardeaescaldar.Yankelpassara amanhã na sinagoga e, comoo almoço doShabat nunca o demoravamuito, já devia estar à espera. Encontrou-o à porta de casa e foram ter comShionka.Assimqueadescobriram,Erykfezquestãodepassarnomatadouro.Osoutros torceram o nariz, mas não o contrariaram, sabiam que ele não perdiaaquilopornada.Primeiroapertava-acomosjoelhos,aseguirpousava-lheacabeçanocepode

umsalgueiroecuspiaparaopunhodocutelo.Omaisdasvezes,ogolpecaía-lheemcheio,mastambémeraverdadequeperderaumdedoporterféemdemasia.Quando a via degolada, espremia-a para o balção e atirava o corpo exanguesobreomontedascarcaças.Conhecidoporsertonto,oMata-Galinhasserviaàjustaparaaquilo.Secalhasseantesdoalmoço,despachavacincodúzias,massesobrasse para a tarde só sabia espenicá-las. Shionka e os dois rapazesabismavam-seaouvi-lodooutroladodomuro.Tinhasempreumapalavraparasedespedirdasaves,umagraçaindecorosaquejulgavasóparasi,semdarfédasgargalhadas que causava à garotada. Às vezes, Eryk arriscava soerguer-se eforçava-se a assistir. O que via era obsceno, mas também irresistível: haviacabecinhasespalhadaspelochão,cabecinhaspenduradasaolharcomesperançatolaparaosseuscorposandarilhos,eele,oMata-Galinhas,apassarnorostoasmãos sebentas, embebendo os pés descalços na mesma lama preta, feita desangueedeterra,quelhedavaacoràsunhas.ErasempreShionkaaenjoar-se,amostrarqueseiaembora,eosrapazes,jáse

sabe,acabavamporsegui-la.Daquelavez,edepoisdeumasvoltasnacidade,acompanharam-naatéàorla

daflorestaedespediram-se.FoipertodoscemitériosqueErykmudoudeideias:e se fossem refrescar-se?O lago não era perto, porém, caso se despachassem,valiaapenaaviagem.Yankeldissequesim,maseramelhorchamá-la.Shionkatinhaosanguefrio,sósequeriadentrodeágua;oquehaviadepensarsefossemnadarsemela?Eassim, largaramacorrernasuapeugada;sequeriamevitarabruxa,tinhamdeaapanharantesquechegasseacasa.AverdadeéqueShionkalheslevavaumgrandeavançoe,porisso,chegaram

ao palhal sem a alcançarem. Fazendo por passar despercebidos, desceram aravinaacobertodomoutedoeforampôr-sedevigia,deitadosatrásdeunsfetos.Entreeleseocasebre,acoisadecincopassos,haviaumatinadeáguapousadanomeiodochão.Shionkasurgiudetrásdaesquina.Ataraoscabelosemnósgrossoselevavaas

pernasbrancasporcausadaterraseca.Aproximou-sedatinae,semnuncaparardeandar,deixoucairovestido.Mesmoassim,porseterenroladonacintura,nãochegouamostrar tudo.Aoveroquetinhaàfrente,Erykmordeuamanga.Derepente,eratudoaomesmotempo:orisosustidoàforça,osuorcaídoembicaeasperguntasqueYankellheiasegredando.Porfim,conseguiurespirarfundoecontaraquiloquevia.Melhor:seoamigoassimquisesse,prometiaexplicar-lheanudezdarapariga.Ecomeçoupelasmamas.Descreveu-as como peras, já contando com os mamilos. Ainda haviam de

crescer,mas já tinham o seu peso e, se aquilo era do leite, tambémpodia sermãe, deduziu entusiasmado. Ao chegar junto da tina, Shionka virou-lhes ascostas e libertou-se finalmente do vestido, deixando-o escorregar até ao chão.Depois,mergulhouostornozeloseaáguatransbordou.Erykpassouasmãosnorosto.Asancas,caramba,comosedizdeumpardecurvastudoaquiloquelheianacabeça?Semsaberbemdetalhar,falouantesdacintura,exageroucomoquis,paragarantirnofimqueeraestreitacomoumbraço.Sempredecostas,Shionkabaixou-separaensaboarospés,sóque,aofazê-lo,expôs-sedetalmaneiraqueErykperdeuacor.Pordentro,oraboeraigualaodele,explicoudesconcertado;comosepodeterumfilhoporali?Yankelficoucalado,tambémnãofaziaideia.Porfim,elavirou-sedefrenteeespremeuumpanoencharcadosobreosombros.Deseguida,esfregouosabãonapeleeespalhouaespumacomasmãos.Erykesqueceu-se deYankel, esqueceu-se da floresta e até da razão de ali estar.Osseus olhos perseguiram os dedos de Shionka por todos os recantos e assimcontinuariammesmodepoisdeelapartir.Yankeltranspiravacomoele,masnãoquisfazerperguntas.Aquiloqueoamigocontarasabiaeledasbrincadeiras,dosempurrões,dasvezesemqueelaseencostaraparamelhoroguiar.Derepente,Erykdeu-secontadoseuêxtaseepareceuenvergonhado;inventouacorrerumapiada,qualquercoisasobrepilas,queambosaproveitaramparaforçaroriso.A verdade é que algo se passou naquela tarde que quebrou os dois rapazes.

Nãoderamlogoporisso,apenasnamanhãseguinte,quandoacordaramtristes.Nenhumcontaracomessador,nãopodiamimaginarqueoamorcomeçaassim.Dali em diante, iriam atravessar-se no caminho de Shionka as vezes que

pudessem,mesmoqueparatalsepisassemumaooutro.Porém,semprequeissoacontecia,nemtocavamnoassunto,nãofossemarreliar-se.De surpresa em surpresa, a disputa entretinha a rapariga. Sem parar de

vasculharnoseuespíritoengenhoso,Erykencontravasemprealgumacoisa:umbilhete com um poema, uma história inverosímil em que ele sobressaía,

pequenosheroísmoscomoquando lheapareceucomumcasaldesalamandras.JáYankelsefazianotarpelodesvelo.Descobriacheirosocultosentreasfolhasdafloresta,amassava-osentreosdedoselevava-osaShionkaparalheperfumaro pescoço com gestos delicados. Mas não foi apenas isso que a fez tomarpartido.Haviamaisumacoisa,aúnicacrucial:Yankelofereceutudooquetinha:nãoavianemouvia,maspôs-lheavidanas

mãoseaindasesentiuindestrutível.Aquiloqueelapisasseseriaterrenofirme,eele seguia-a. Issovia-se-lhenosgestos,nacertezados seuspassos, comoseochão em que andava já não fosse traiçoeiro. Por vezes, dizia-lhe o que sentiaquandoseencostavaaela;outrasvezes,sóqueriasaberdesiechamava-aparalhepedirsepodiapenteá-lo,sepodiaver-lheasunhas,aquelaspequenascoisasquequemvêfazemrecato.Shionka começou por divertir-se, mas, mesmo sem dar por isso, já tinha

escolhidoYankel; tantahonestidadehaviade ser obastanteparapodermorrerporele.

*Eryk foioprimeiroaconheceroCheco.Vistodocampanário,começoupor

serumaserpentedepóamovimentar-secompressapelomeiodafloresta,eorapazcalculouquelevariadezminutosachegaràcidade.Desceuasescadasdemadeiraemsaltosdetrêsdegrausepreparou-separasairdaigrejasemavisaropadre. PaniKrysia agarrou-o ameio caminho, aonde ia com tanta pressa?, asaldrabas eram para ela arear? Eryk choramingou, voltaria no dia seguinte,dobrariaoesforço,faria tudooqueelaquisesse;eprometia-lhoalimesmo,nacasadeDeus.Ela láo largou,mas jáelepassaraoportaleainda lheouviaasimprecações.Foientãoquecorreuatéà ruadoscemitérios,ondeentroncavaaestradadasvisitas.Quandoestavaaumapracetaeduasruasdechegaràsportasda cidade, a caleche apareceu-lhe desenfreada de uma viela, não oesborrachando por um triz. Amaldiçoou entredentes os minutos roubados porPani Krysia e perseguiu furiosamente o som dos cascos até ao Largo doMercado.Assimquechegou,Erykviuohomemjáapeadoasacudirapoeiradaslapelas e a olhar em volta para a praça vazia. Aproximou-se dele enquantolimpava o suor com amanga e, num gesto de boas-vindas, ou talvez para sefazernotado,agarrounumapedraparaacertaràprimeiranocãoquerosnavaaocavalo.Resultou:ohomemvirou-see acenou-lhecomas sobrancelhas.Então,

curioso e descarado, o pequeno olhou-o de alto a baixo e fascinou-se com afiguraquetinhaàfrente:ocabeloerabrancoeofuscante,compridocomoodasmulheres,eusavachapéudeabalarga,americano,umpoucotombadoàfrentepara dar sombra aos olhos mais azuis que Eryk alguma vez vira. A casacaterminavaaumpalmodojoelho,poucoacimadoscanospoentosdasbotase,aoolhardogaroto,pareciamaisrequintadadoqueerausoencontrarporali.Mashaviaqualquercoisagrosseiranoconjunto,Eryknãosabiaexplicaroquê,talvezo rosto tisnado ou os vincos descoloridos no fim dos olhos, talvez os ombroslargos,osbraçosgrossoscomotroncosarepuxaremasmangas;naturalseriaqueporbaixodetantaelegânciaseescondesseumcavalodetrabalho.Entretanto,oEmildafarmácia,queouviraumcãoaganir,jásepostaranaarcadaaolharparaomeiodapraça.Aseguir foiPani Igaeasclientesda retrosaria, amulherdoguarda-livroseomaridoaespreitaremporcimadosóculosdeveraoperto,ovelhoFelykscomossapatosnamão,eKrystian,odentista,maisumdoentedeboca aberta.Quem tomoua iniciativa foi IsaacGold, que alugavaquartosnosdois extremos da cidade. Aproximou-se e, abusando da deferência, fez o quepôdepelonegócio.Opreçoeraimbatívele,porapenasmaisumzlóti,punha-lheàportadezgalõesdeáguaquenteparaobanhodedomingo.Ooutrodissequesim,masporpouco tempo,pois já tinhaonde ficar.Bastavam-lhedoisdias,osuficienteparaseinstalar,e,sendoassim,gostariadedormirumanoiteemcadaladodapovoação.EspicaçadospelaaudáciadeIsaac,ospopularesacercaram-se,sem saberem o que pensar. Não era o caso de Eryk, já extasiado pelasconstruçõesqueensaiavaenquantosorriaasimesmo.Olhavaparaoviajanteevia aquele agiota de Praga que atravessara a cidade havia uns anos; que foracorridopelosjudeuscomosqueixospartidoseumacoroadeespinhoscravadaafundo;omesmocabelodeneve,amesmaroupadegabinete,osmodosdequemestádepassagem.Porissonãoesperoucomoosoutrosparasaberquemera;porisso lhe chamouCheco e continuou a fazê-lomesmo depois de descobrir queaquele homem era tão polaco como ele e respondia pelo nome de IreneuszBogumilSienkiewicz.

*Amãozinhaencarquilharacomaidade,mirrara,pareciaagorademulheroude

criança. Tornara-se cinzenta, quase preta, côncava como se tivesse queridoenclavinhar-seàvidaatéaofim.Mumificarabem,pelomenostendoemcontaosséculos que lhe atribuíam, e por ela se zangaram gerações, e sobre ela se

afirmaram muitas coisas: que era hebreia, dos tempos de Salomão, doada aoshteltporunscaixeiros sefarditas,ouqueeracristã,deumcertopaladinoqueregressaradasCruzadasescandalizadocomaprópriamãoeacortaraedeixarana cidade como relíquia de penitência. Andara perdida desde os tempos dossuecose,numaalturaemqueacidade jádeixaradeachorar, foraencontrada,poracaso,nasilhargasdeumchiqueiro.Averdadeéqueadiscórdiafossilizaracom a mãozinha, e a descoberta só serviu para reavivar as chamas.Empertigados, os dois povos da cidade prepararam-se para a guerra, lutariamsemquartelporaqueleachadoressequido,pois,comoditavaaprofecia,aquemde entre os dois coubesse a sua guarda causaria ao outro a desgraça eterna.Cansados do disparate, o rabino e o prior juntaram as fações no Largo doMercado.Entreeles,numpedestal,comopedradeidolatria,amãozinha.Obomjuízo acabou por triunfar, não se perderiam vidas, a relíquia ficaria emmãosneutrais,noPaçodoMunicípioeaodispordecadaum.Apesardosazedumes,quemveioaseguirláfoiditandoasregras:judeusegentiosvisitariamemdiasalternados,asmulheresdepoisdealmoçoesóporumahora,crucifixosequipás8deixados à porta, e ousode luvas tornou-seobrigatórioparaqueoutrasmãosnão se vissem além da mão venerada. Os anos passaram e com eles veio avergonha.Asvisitas tornaram-semais raras,clandestinas, ecadaumdisfarçoucomo quis a crendice. Sabia-se de mãozinhas presas em fios ao pescoço ouabafadasentrearoupadasgavetas,masacabaram-seasfilasàportadoPaço.FoientãoqueoConselhosereuniu.Tadeuszesmurrouamesaduranteduashoras:amelhorsaladaCâmaraaservirdealtaràsmoscas?Umatolice!Osconselheirosaplaudiram, trasladasse-se amãozinha.Maspara onde?Emais grave: quemaguardaria?OPresidente,quejátraziaaresposta,chupoudoisdedosdecharutoeengasgouospresentescoma suaconvicção:«Ocomendadorguarda-aeaindapagaporela!»Osjudeusdasalaergueram-secomoumsóeoescrivãodecidiunão assentar os nomes que foram ditos. Tadeusz pediu calma, longe de sifavorecer os gentios. Por fim, e depois de uma tarde sem decisões, alguémpropôs que fosse o dinheiro a escolher por eles: um leilão era omais justo e,antevendoos licitantes,maisproveitosoparaos cofresdaCâmara.Teria lugardali a um ano, tempo suficiente para os dois homens mais ricos da cidadeprepararemasofertas.

*Roman Skiba e Salomão Finkelstein recolheram aos seus quartos quase ao

mesmotempo.Fecharamasportadasedeitaram-secompanosespremidossobrea testa. Não precisavam demais reflexões, estavam desgraçados. Amãozinhaqueardessedeumavez!,nenhumdelesseralaria,desprezavam-nahojemaisdoquenunca.Eagoraiamterdepagarporela!EsquecidanoPaçoerainofensiva,mas, caída em mãos erradas, valeria o ouro do mundo. Alguém evocou aprofecia,asruastransbordaram,judeusecristãosgritaramaltoparaqueosdoishomens poderosos não esquecessem o que se esperava de cada um.Roman eSalomãocontinuaramdeitadossemabriremasportadas.Quandotudoacabasse,umdelesseriaamaldiçoadopeloseupovo,ooutroestariaarruinado.

*AcasaqueoChecofoiocuparsituava-sealimesmo,numgavetoadarparao

largoeparaaRuadosDoisTerreiros.Haveriadeseinstalarnopisodecimaeusaria os baixos para montar o balcão da loja e a oficina das traseiras paraprepararastintas.Oedifícioeradosmaisvistosos.Vagohaviamuito,perdera-seorastoaoproprietário,dizia-sequepordívidasàfábricadaigreja.Questionado,onovoinquilinonadasabiadoassunto,trataradetudocomumintermediáriodeLomza. Também quiseram saber os seusmotivos, que diabo o levara ali? Elerespondiacomodestinoeaoportunidade;ouvirafalardeumprédiodevolutoealguémlhecontaraqueacidadeeratriste,carecidadechamaedecoresvivas.Passouas semanas seguintesamobilar a casae amontaronegócio, enquantodeixava atrás um lastro de simpatia e bolsos cheios. A verdade é que,descontando os pigmentos chegados por encomenda, o Checo teimava emcomprar tudoporali: amobíliaeascortinasparaosdoispisos,umagrosadelatões,trêsfatospormedida,crinaparaastrinchas,álcooleresinas,umrelógiodeparede,escaparatesparaaloja,tudooqueprecisaquemsequerestabelecereficarparasempre.Comocorrerdotempo,osseushábitostornaram-seumdosmotivos favoritosparaocavaqueiodacidade.Dizia-sequenãodormia, já lheviamluzpelascincodamadrugadae,bemantesdeoSoldespontar,umachamadearchoteatravessavaaflorestaacaminhodolagoondeoChecosebanhavanutodososdias.Mesmoassim,nãocontandocoma tabernadoMarek,a lojadetintaseraaprimeiraaabrirasportas.OChecopassavaasmanhãscomclientesencostadosaobalcão,homensvelhosa falar, ciososdepaciência, equenuncacompravamnada.Àtarde,enrolavaacabeçanumturbanteparanãomacularocabeloalabastrinoeiapintartetoseparedes.Almoçavaejantavanapensãoporcimadafarmáciaepassavaosserõesajogarnogrémio.Cedosesoubequenão

rezava,pelomenosempúblico,jáqueninguémovianasinagogaounaigreja.Mas que importava, se era justo e generoso com os judeus e os gentios? Noentanto,foinanovasinagogaqueoChecomelhorexpôsoseutalento.Noacasodeumaconversa,lembraraosseustemposdeCracóvia,quandofaziarestaurosnos altares das capelas. Foi o bastante para ser chamado à Kehilla9, haviatrabalhoparaele.O mural encontrava-se a meia altura do vestíbulo e representava uma

paisagemcomoMonteSiãoetrêsprofetasnumaperspetivadistorcida.Osdanosnão eram grandes, pior era a sujidade que lhe levou uma semana a limpar.Depois ensaiou as cores em placas de gesso fresco, esperou que secassem,comparoucomooriginal,voltouaensaiareaaguardarerepetiuospassostodosvárias vezes. Só então retirou com mil cuidados as camadas danificadas doestuqueeduranteummêsnãofezmaisnada:começavademanhãcedoesósaíaànoite.Eraaofinaldodiaquemaisgostavadetrabalhar,aproveitandoomelhorestadodogesso.Aoseulado,orabinoAvigdorperdiaahoradaoração,absortonamaestriadoCheco.Quandoterminou,arrumouoestaleiroeesperoudezdiasqueo frescocurasse.Omural resplandecianodia emque foi apresentadoaosfiéis.Quandoospanoscaíram,ovestíbuloaindasusteveumsilêncioadmirado,para logo explodir em aplausos. De tal maneira que o artista foi elevado amembrohonoráriodaKehilla,umahonranuncavistaporali.Masoseumaioradmirador era Salomão Finkelstein, o judeu milionário. Convidou-o para suacasa e, depois de lhe mostrar as quarenta e duas divisões, perguntou-lhe seconhecia a sinagoga de Chodorow. Era assim mesmo que ele queria, podiavisitá-la e copiar os motivos. E depois o dinheiro não era assunto, sempreambicionaraum teto esplendoroso emcada sala; imaginava-se sobrevoadoporleões,unicórnios,galos,macacosetrepadeiras,tudopintadoasangueeouro,eagorasabia terencontradoohomemidealpara lhedarcoraosonho.OChecodissequesim,masteriadeesperar,haviatrabalhosjáajustadoseeraescravodapalavra. A verdade é que o pintor e o patrono pareciam inseparáveis, unidoscomovelhosamigosemtornodasteimosiasdojudeudastrigas.Masnãosepensassequeerasópelasmãoshábeisqueaquelehomemreluzia.

Ainda que tal se omitisse, sempre que atravessava o Largo do Mercado, ascortinas mexiam nas janelas e o hálito do pecado embaciava as vidraças. Osolhos lascivos que o despiam lá do alto eram, afinal, os mais insuspeitos docírculo perfeito, mulheres de exemplo, mães de virtude a esconderem asfantasias nas rotinas do lar, imaginando-o por todo o lado: nas manhãsvertiginosaseàbeiradosmiúdosprontosparaaescola, tocando-assempudor

nos banhos de alguidar, sentado à mesa nos almoços de domingo, ou até nacama,fazendoavezdosmaridos.E,aovoltaremasi,rezavamhorasseguidas,tentandoesconderdeDeusoprazerdaquelasculpas.São três da tarde e o sol escalda, acho que o shtetl é capaz de começar a

arder. Aqui, sentado no chão, à frente da loja de tintas, apanho a sombra noúnico passeio da praça que tem árvores. As outras pessoas devem pensar omesmo,porquecontinuamapassaràminhafrente.Comoacontecesemprequeestousozinhoenãoqueroirparacasa,jogoàsadivinhas.Inclinoacabeçaparatrás,otroncoparatrás,eapoio-mecomasmãosnochão;torno-memaisatentodestamaneira.Começo com o arrastar de pés que se aproxima à minha esquerda… Não,

afinalésóumpéquesearrasta.Porissoéfácil,temdeserovelhoSobol,opaidomédico.Derepente,doismiúdosarireacorrer.Umdelesparaaomeulado,ooutroderrapamaisàfrenteeparatambém.Nãoduvidodequeestãoaolharparamim.Como vêm a arfar, é fácil perceber ao certo onde estão e viro-meparaeles.Nãofalha,fogemdisparados.Agorasintoumaaragemmuitofraca,umalíviobrevequejápassou,escalda

outra vez e ninguém aparece durante algum tempo. Finalmente mais passos,passos velozes, de mulher, tenho a certeza. Ah! Vem com um cheiro forte aalfazema:assimnem tempiada, éa viúvaDabrowska.Nãome liganenhuma,pudera, vai apressada. Quase imediatamente, e vindo do mesmo lado, umhomematossir.Épesadomastambémtempressa.Cheiraacigarrosearoupaacabadadepassar,umacombinaçãoquemeéfamiliar.Que nervos! O peso, o cheiro… Está debaixo da língua e não consigo

lembrar-me.–Viva,rapazola.Pois,claro!OsenhorMalinowski;umpontoavoar.Éentãoqueosintomesmoaolado.Sobreestenãotenhodúvidas,éoCheco,

já estive com ele à porta da farmácia no dia em que o Eryk mo apresentou.Nuncasentiumcheiroassim,nãoseidizer.Existecheiroahomem?Seexiste,éisto:umamisturadeperfume,álcooletabaco.Esuortambém,achoeu,umsuorameno.Masaindahámais,inspiroàprocura…Tinta!Sim,temdesertinta;ouverniz,seilá,ohomemépintor,vendeessascoisas.Agoraouçooraspardeumfósforoecalculoqueeletenhavindofumarlonge

dosquímicosdaoficina.Pergunta-meseconheçomiúdasbonitasnacidade,estáameter-secomigo,eu

sei, mas respondo-lhe à letra: «Sim, Shionka é bonita. Mas não fala.» Eleinsiste,querquelhedigaoquemaissepodequererdeumamulher,masdepoisri-se e diz que não, está a brincar, respeita-as muito. Então sou eu que meatrevo, quero saber se é casado.OCheco ri-se outra vez, jáme disse que asrespeitamuito.Eassimficamosmaisumahora,falamosotempotodo,eagora,quevoltouàloja,reparoquenãoaprendinadasobreele.Entretanto, o sol arrefeceu. Levanto-me e caminho uns metros enquanto

arrastoamãonaparede.Jásintoopasseiotodoàsombraeporissoseiqueéhoradeirparacasa.Umpoucoadiante,cruzo-meoutravezcomoperfumedealfazema.Nãoétãofortecomohápouco,mastemdeseraviúvaDabrowskanoregresso,edestavezvemdevagar.Afinal,avozédehomem:–Adeus,rapazola.OsenhorMalinowski?Nãoseioquepensar.

*Afachadaeraenganadora,amaisestreitadapraceta.Pareciatãoacanhadaque

quemnãoaconhecessenuncasuporiaasfestasqueescondia.Averdadeéque,transposta aportadogrémio, o edifício se escancaravanumátriogenerosodemármores,madeirastorneadasebiombosdevidroopalino.ParaacederaoSalãode Ouros, era preciso vencer os quatro lanços de escadas, embora ninguémsubisse como descera: os jogadores chegavam aprumados mas febris, a bufarcomocavalosdecorrida;porém,horasdepois,aescadariaenchia-sedebazófiaegargalhadas,queabafavamospassosdesconsoladosdaquelesque juravamnãovoltar. Quando os cavalheiros ali se juntavam ao serão, alisavam as casacasengomadas e admiravam-senos espelhos embutidos, sentindo-se tãoopulentoscomo os cenários em redor. Desvanecidos, recusavam a lembrança de que oprédio de três pisos albergara um dia o prostíbulo da cidade e, pior ainda, omatadourodosjudeus.Porém,naquelanoite,ninguémpoderiapreveroquealisepassaria.À entrada, o balcão e, encostado a ele, o Remigiusz balofo, empregado da

casa. Com os braços cruzados sobre o tampo, pousava-lhes tudo em cima: osseios de mulher, a papada, depois o queixo e a boca babosa, mais os olhosescondidosporduaspregasadormecidas.Quandoestavanesseestado,ninguémoincomodava.Sefossepreciso,algumjogadormaisnovoabandonariaamesaparaencherocopoou levarumpratodequeijo.No restoda sala, e alinhados

numpar de filas, os altares do jogo.Eramconesde fumoe luz amarela, cadaqualcomumtrioderostos,umaliturgiadegestosiguais,olhosgraves,lequesdecartas,garrafasepontasdecigarroaqueimaremsozinhasnospires.Remigiuszdescolouosolhosàterceiratentativa.Foraatossedoguarda-livros

aarrancá-loaosono,queardessenoinferno.Endireitou-seapraguejareagarrouopanoquetraziaaoombroparalimparobalcão.Enquantoesfregavasembrio,fez as contas à sala: só havia cincomesas ocupadas, uma delas a aguardar ojogador que faltava para a Mizerka10. Grunhiu qualquer coisa ao dar com oCheco a jogar. Gostava dele, apreciava-o à mesa das cartas, mesmo semcompreender as estratégias que adotava.Parecia dominar o jogo a seu talante,controlava as partidas e ganhava o dinheiro que queria; até que, destroçada aoposição,desatavaaasnear,desbaratandovazascerteiras.Reanimados,osrivaisrecuperavam até ao último zlóti e tudo terminava como no início, cada um adescrever,cartaacarta,aperíciacomquetinhaenganadooCheco.Estesorriaedeixava-osacreditar,antesdesairàsonzeemeia,teimosamenteàsonzeemeia.QuandooSkibaeocoronelentraramnosalão,asvozesextinguiram-senum

ápice.Remigiuszaprumou-senumsaltoeescondeuopanoentreasgarrafas.Ocomendadoratirouabengalaeochapéuparaumsofá,alguémlhosguardaria,efoi com o coronel encostar-se ao balcão. Varrendo as mesas com os olhos,cumprimentou o empregado, enquanto se livrava das luvas puxando por cadadedo.Apreciavaogostodasurpresa,sabiaquenãoeraesperado.Jáforaassíduo,sim, jogadorexímio, respeitadocomoumcampeãomesmonas terrasvizinhas,masagoraassuasvisitaseramraras.Foraumatragédiaaafastá-lodasmesasdejogo.Acontecerahaviamuitoenaquelamesmasala.JuliuszDabrowski,odonodaserração,inebriadoporumanoitedeganhos,desafiaraSkibaàfrentedetodaagente.Aparadaeraalta,tãoaltaqueasoutrasmesasvagaramparaassistir.Ojogoarrastou-sepelamadrugadae,comele,adesgraçadomadeireiro.Esgotadososproveitosdoserão,Juliuszassinouoprimeiropapel,novalordemilzlótis.Apartida prosseguiu,mais papéis,mais perdas e sempre para omesmo lado.Acerta altura, Skiba aceitou-lhe um cordão de prata e, a seguir, a aliança decasamento,masasortenãomudou.Desaustinado,Juliuszpediuoutravezondeescrevereassentouqualquercoisafebrilmente.«Tenhajuízo!»,gritaram-lhe,«Aserraçãoestánafamíliaháquaseumséculo».Quandotudoseperdeu,numgestoapalermado, o infeliz aindapousou sobre amesa a armação comosdentesdeouro, mas o Skiba olhou para o chão e disse que não com a cabeça. Juliuszesbugalhouosolhos,estremeceue,porfim,capitulou.Ergueu-sedevagareficouassim, rígido, perante o pudor da assistência. De súbito, com um berro

tresloucado, arrancou do bolso um revólver e, sem dar tempo a ninguém,disparounaprópriaboca.Todosderamumpasso atrás, horrorizados,menosocomendador, que continuou sentado. À sua frente, o cadáver do madeireiropermanecia acusadoramente de pé. Até que, cedendo finalmente pelas pernas,caiu de joelhos, tombando o rosto sobre o colo de Roman Skiba, como numpedidotardiodeclemência.Aquilodevastouomilionário.AindaorecordavamnamanhãemqueforaprestarcondolênciasàviúvaDabrowska,ocorpocurvadopelavergonha,orostodoremorso;numamãoumlençoencharcado,naoutra,omaçodepromissórias.Podiaserpor issoqueoSkibaolhavaagoraparaumponto fixonomeioda

sala. A sua expressão era tremenda e todos imaginaram que ainda visse omadeireiro por ali a espirrar sangue. Mas não, o seu olhar não se perdia nopassado, o alvo era outro, era tangível e muito mais detestado: «O pintor?»,atirouparaoar.Ninguémrespondeu,mas,aoconstatarqueopontofixoeraoCheco, cada um deduziu o motivo por que chispava Roman Skiba. E quempoderia censurá-lo? Era demais que sentisse o desagravo? Também ele tinhatetosporpintaredinheiroparaesbanjar;eoChecosabia-o,quediabo!Porquenãoprocuraraocristão?Porquese foraafilharaooutro?E logoaumpacóviocomo Salomão Finkelstein, o judeu das trigas. Não!, ali todos gostavam dopintor,masdestaveznãoforajusto.Quando os recém-chegados se aproximaram damesa doCheco, temeu-se o

pior,mas,pelocontrário,chegouahavertrocadevénias.Cordial,oSkibapediulicença, se estivessem de acordo, aguardaria vez para jogar. O pintor nãorespondeu,masosdoisparceirosdejogoolharamumparaooutro,arrumaramas fichas e desculparam-se com os afazeres do dia seguinte. Já sentado, ocomendadorpropôsaparada,oChecoencolheuosombros,etodosperceberamqueseiavertersangue.Ocoronel,aquemcabiafecharotrio,sentou-setambéme tirou do bolso um baralho por estrear. Distribuídas as cartas e firmados oscontratosdapartida, foiomilitaraabrircomadamadecopas.Depoisdeumduqueàesquerda,asenadetrunfocomqueoChecoarrecadouaprimeiravaza.Ojogoprosseguiu,eosjogadoresdasoutrasmesas,sabendooquesepassavaàsua beira, distraíam-se sem querer. Foi então que Remigiusz decidiu – que odiabocarregasseoembaraço–,nãoseviacoisaassimhaviamuito.Cheiodecoragem,atascou-senacadeiraqueapanharaameiocaminhoepôs-seali,aumpassodamesaondetudoacontecia.Sugestionadospeloempregado,algunsdospresentesapressaramascontasparasejuntaremaocírculoqueseiaformando.Vistocomatenção,oespetáculonão

desmerecia:osolhosmudosdoCheco–olhosnas cartas, nuncanosoutros; ocoronel, transpirado,aforjarconfiançacomumrisoaparvalhado, jogavacomoumcobardeemantinhaasperdasbaixas;eoSkiba…Ah,oSkiba,quepostura,queafoiteza.Mesmoaperdereragigante,via-se-lhepropósito,amesmavontadeinsondávelcomquesempreseriradosmalesdavida.Comocorrerdotempo,oscuriososmostraramaoquevinhame,deixandoqueaperversidadelhessecasseaboca, fixaram-se em quem mais perdia: Skiba. Frustrados, não o viramestrebuchar, nunca o faria; pelo contrário, somava as derrotas com galhardia,mesmo que a tabela das contas nãomentisse e o saldo começasse a assustar.Assustar?!Aele?Conheciam-nomal,acobardiaeraumluxoaindamaiscaro.Via-se como umgalo de combate e, concluída a primeira série, em vez de seretirar,fugiuparaafrente,encheuopeitoefezcomoavidalheensinara:«Cemzlótis o ponto», desafiou. O assombro bastou para que o círculo de abutresrecuasseporinstinto:cemzlótis?!Nãohaviamemória.Foientãoqueocoronelperdeuacor,nãoqueriaestragara festa,maserademaisparaele.«Fique!Eucubroasperdas», rosnouSkibasem tirarosolhosdoúnicoadversárioque lheinteressava.Este,comoscotovelospousadosnamesa,limpavaasunhascomoásdecopas.Remigiusz,quesentiaocoraçãoamartelarnaspernas,nopeitoenopescoço,ergueu-seacustoebamboleoucomoformigueiroatéaobar.Quandoregressou,traziaumagarrafadevodkaeserviuostrêshomens,eraporcontadacasa.Namesa,apartidajácomeçaraeasaladividiaaatençãoentreSkibaeopintor. Até que, a certa altura, o comendador foi abafado. Aquilo a queassistiram não deveria ser esquecido, nunca se vira por ali jogador daquelecalibre,tantaargúciaacartear:oChecojogavacomodesmazeloexasperantedequem não sabe o que é perder, prendendo sempre entre os dedos uma cartaimpaciente, uma carta adivinha a arder para ser jogada. Skiba e o coronelolharamumparaooutrodeviés,semperceber.EstarrecidoscomaintuiçãodoCheco, apertavam o jogo contra o peito, leques de naipes inúteis e tãotransparentes como os seus olhares vencidos. Passou uma hora. «São onze emeia», declarou o pintor, recolhendo outra vaza, a última, «nunca depois dasonzeemeia».Ocoronel lá respirou, sairia comoentrara, semvergonhas. Jáocomendador, que ficou com as perdas todas, vacilou e olhou para as cartasespalhadas à sua frente. Era o olhar possível, tudo o mais lhe lembraria ahumilhação. Aos poucos, o abominável: os afagos, mãos à pressa sobre osombros, as palavras compassivas, a desprezível simpatia de quem consola amentir. Miseráveis. Só pararam para ouvir as contas: dois mil e quinhentoszlótis! Perdera dois mil e quinhentos zlótis numa noite…Daria para os tetos

todos.Então,tirouacarteiradeumdosbolsos–«Vemrecheado»,dissealguém– e começou a contar o dinheiro. As notas pesavam-lhe nas mãos, era comesforçoqueaspousavaumaaumasobreamesa.Mesmoaolado,semdaremporisso,doisoutrêspatetasmexiamoslábios,contandoaomesmotempo.Quandoacabou,Skibapercebeuquenãochegava, faltavamduzentoszlótis.«Passeporminhacasaamanhã»,disseeleaoCheco,masesteolhouparaochãoedissequenãocomacabeça:«Aceito-lheodentedeouro.»Ocomendadorfez-seescarlate,nenhum suplício doentio deixou de lhe passar pela cabeça. Valeram-lhe osoutros:entretodos,reuniu-seaquantiaexataeláseemprestouoquefaltavaaohomemmaisricodacidade.Contassaldadas,oSkibalevantou-seeficouali,depé, parado, a trespassar o adversário com os olhos. «Se for para tombar dejoelhos,evitecair-meaocolo»,disseopintor,enquantoarrumavaascartas.Ocopo de vodka do comendador foi despejado com tanta violência que aindaapanhoucavalheirosplantadosatrásdoCheco.Encharcado,opintor ergueu-sede um pulo. Quando se endireitou, já o Skiba jazia nomeio do chão com asmarcas da bofetada. Ninguém disse uma palavra, a sala petrificara e ocomendadorsófalouparamandarocoronelguardarorevólver.

*Jásemquartosparaarrendar,IsaacGoldnãoseperdoou.Comoforapossível

nunca lhe terocorridoqueviesse tantagente?Pudesseelevoltaratráse tinha-lhespedidootriplo.Agoraeratarde,maisvaliaesqueceressedescuidoevirar-separaotrabalho.Querendoacudiraoshóspedes,irmãmentedivididospelasduashospedarias,chegavaaatravessaracidadevintevezesnumsódia.Efoiissoqueo levou a esquecer-se da vergonha e ir apreçar a burra.O velho Felyks ficousentadoenemsecalçouparaoreceber.Andavaoutravezcomaputaeaofimdecada visita ficava naquele estado, louco com a assadura e os bolsos vazios.Ainda tirou a mão da braguilha para o cumprimentar, mas cortou-lhe aexpectativa:«Aburranãosealuga.Voltamalandra.» Isaacvirou-lheascostas,vadio imprestável, e conformou-se a usar as pernas. Afinal só faltava umasemana,umasemanaedeixariaoscorrupios.Oshóspedesnemdiziamdeondevinham, apareciamnervosos e, segundo o deus que os guiara, instalavam-se anorteouasul.Comaânsiadoleilão,saltavamasrefeições,falhavamosjejunseashorasdesono.Eravê-losnosterreirosounoLargodoMercado, insinuadosentre o povo, ouvido à escuta, ansiosos por prever o destino da mãozinha.Agoniados pela espera, havia por ali quem raiasse a insensatez, a julgar pelas

cartas deixadas à porta de Skiba e Finkelstein, ameaças de morte, pragas,promessasdeiradivina,casoperdessemarelíquiaparaosinfiéis.Quando o dia chegou, o Largo do Mercado parecia um cesto de uvas. As

bancas da feira disputavam comos lojistas um lugar sob as arcadas.Marcadopara as dez em ponto, o leilão atraíra os seus notáveis. Viam-se de farda ouchapéusaltosadescerdascarruagensmesmoàsportasdacidade;emseuredor,olhares indígenas, pasmados, bandos de pássaros, bandos de crianças, homenstão curiosos como as mulheres que tinham deixado em casa. Na esquina doPaço,umgrupoapertava-separaconsultaroedital,doistextosladoalado,umem iídiche, outro em polaco, cada qual a contar a sua história, Salomão ou ocruzadoarrependido.Em frente da Câmara, os madrugadores que ocupavam as poucas tábuas

corridaspareciamdobrarogozoaover aquelemurodegente a espremer-se àsua volta. Entre a plateia e a grande escadaria, as cadeiras reservadas docostume.Seriamocupadaspelosque,naquelemomento,faziamtempoaconvitedeTadeuszOrlosk.Chegadosemdoisgruposseparados,adulavamoSkibaeoFinkelstein, bebendo e conversando em cantos opostos da sala do Conselho.Assim que os doismilionários pousaram os copos, a sala esvaziou-se e todosdesceramemdireçãoaoslugaresdafrente.Tadeuszficouameiocaminhoefoiocupar o segundo patamar da escadaria exterior. O sol de verão, o licor e aexcitaçãodavam-lheoartrigueirinhodecampónioquetantodetestavaerebatiacomomelhorfatolistrado.Aoverdecimaapraçacheia,consolou-se.Lembrou-se então dos tempos de criança, quando ia ajudar na padaria; das centenas depãezinhosacabadosdecozerearrumadosnasripasdepinhocomoumexércitoperfiladoapenasparaoouvir;eele,sóeleeosseussúbditos,aensaiarcomoumreiosdiscursosemsilêncio.Foiotoquedaigrejaadespertá-lo:dezhoras,chegaraaaltura!Aoseulado,

quatro enormes castiçais de bronze suportavam uma salva redonda. Em cimadesta,haviaqualquercoisa tapadaporumpano:amãozinha,adivinhou todaagente. Além da relíquia, ninguém fez companhia ao Presidente; e ainda bem,foraassimqueeledecretara,postoaoladodeoutroshomens,ummetroemeiomalmedidopareciaatraçãode feira.Quando iacomeçarodiscurso,descobriuYankelespalmadonafiladafrente.Umjudeualeijadinho?Queensejo!Tadeuszneutral,Tadeuszpiedoso:«Oceguinho!Deixemsentaro ceguinho.»Gritada aordem, cadamadrugador se pôs a olhar para o céu, até que, por vergonha, láapareceuumapontadetábuaparaacomodarocego.MasYankelnãoestavasó,comelesurgiramErykeShionkaparaoguiaremaoassento.Semsurpresa,foia

rapariga a chamar a atenção.Ganhara formas no último inverno,mas viam-semelhornoverão,aocaminhar,sacudidasnovestido,omesmoqueusavanessamanhã.Eraumvestidodacordapele–oudacordacarne,comoErykdescrevia–,omaiscurtoqueseousavaporali.Derepente,Shionkadecidiuquenãotinhadeficarempéeprocurouocolode

Yankel.Umapernaparacadalado,esentou-senoseujoelho,nãoquissaber.Oshomensquealiestavampararamdefalar,alínguacomeçavaaquerercolar-se,eos seus olhares também. Mais ostensivas, as mulheres encararam-na eesbofetearam-naàdistância;PaniKrysiaempertigou-se,alagou-seemsuores,aidesisenãoapontassenocaderno;aoseulado,apenasdoislugaresàesquerda,ajovemGlowickainclinou-separaafrenteedeucomoperfildeShionka;depoisendireitou-se, cerrou os olhos e os lábios, sorriu, e apertou as coxas uma naoutra.Elasentou-se,élouca.Nãopisaomeucalção,sóapartedespidadaperna,

logoatrásdojoelho,eeunãoseiondepôrasmãos.Aquiaoladooshomensjápararam de falar, talvez adivinhem que Shionka não traz nada por baixo dovestido.Émesmoassim:pelecompele.Não…carnecomcarne,Erykestácerto.De repente, dá a ideia de que a praça se esvazia, como se estivéssemos sós.Entãoperceboqueeraaquilo,foisempreaquilo:adançadosseusdedosnomeurosto,osapertosviolentosdasmãosdadas,asmágoas,oêxtase,apressaouashorasqueesticávamosmesmoàfaltademotivo;tudoparadescobrirqueafinalquerovivermilanos.Milzlótis?Masquaismilzlótis?Afinal,nãoestamossós.«Milzlótisparaocavalheirodapernaromba!»O cavalheiro da perna romba sentiu-se tão afrontado por ter sido assim

referido que saiu dali aos berros, caminhando aos solavancos: para o infernocom a mãozinha!, o leiloeiro que se empalasse com ela. A verdade é que oincidentenãodeuparaentusiasmar;opovoesperavasangue,asofertasdecememcemsoavamcomobocejos.Foi entãoqueoFinkelstein tomouas rédeaseofereceudezmilzlótis.Eraapenasumaamostra,sabia-obem,masbastouparaarrumarospequenos licitantes.Separadospor trintametros,ocomendadoreojudeudastrigastinhamcolocadoascadeirasfrenteafrenteenãoparavamdeseolhar. «Doze!», respondeuSkiba.E assim se fez a escalada, lanço após lanço,semfimàvistaesemsentido,doispovosajogartudonosobejodeumdefunto.Atéque,paraassombrodospresentes,aquelediálogodesurdosfoitravadopor

umavozinesperadavindadomeiodapraça:«Cemmil!»Oleiloeirofezcomotoda a gente e esticou-se na ponta dos sapatos. Lá de cima, Tadeusz viu amultidãoapertadaaremexer-separadeixarpassarumchapéudeabalarga.Erykperdeuosorriso:«É…oCheco?»«Éopintor!»,confirmouaplateia,semsaberoquepensar.Finkelsteinergueu-senumpulo:traídopeloprotegido?Foraparaissoquelheencheraosbolsos?Entãodeixou-secair,afazercontasàpressa.Nãoerapelovalor, se antes lhedissessemque, pormeros cemmil zlótis, saía dalicom a mãozinha, faria festa na certa. Nada disso, o que o arreliava era oimprevisto,dispensavabemmaisumavoz licitante.Quando sepreparavaparacobrir a oferta, o lançomorreu-lhe na boca. E se…?Olhou outra vez para opintor.Mas,sim…Semserjudeuoucristão,tornava-seoindicado.Finkelsteinexultou,estavaachadaasolução:comaquelepardemãosisentas,mantinha-seoequilíbrio,cumpria-seatradição,enãotinhadeesbanjarafortunaparalevarumcotoimundo.Alémdisso,opintorerabemvistoentreoshomenseasmulheres;fizera-senotadoasuleanortepelaartedaspinturas,pelacortesianamesadejogo,pelapreferênciaquesemprederaaocomérciodacidade.Ninguémpoderiaacusar Finkelstein de defraudar o seu povo. Restava saber se o comendadorpensava da mesma forma. Mas, mal se virou para ele, vislumbrou o acenoimpercetível com que o Skiba concordava. Melhor assim. No entanto, porestaremjáescaldados,osdoishomenspreveniram-seemarcaram-seumaooutroaté ao fim do leilão. Já Tadeusz, desesperado com o silêncio inoportuno, nãopareciaconformar-se,malditopintor!,estavaacontarcomummilhão.Foientãoqueoleiloeirofezaúltimacontagem,paraanunciaracontragosto:«Arrematadaporcemmilzlótis.Umaplausoparaocavalheirodocabelobranco.»

*Ocírculoperfeitonão sedistinguiada floresta àsquatrodamanhã.Umcão

atravessou a Rua dos Dois Terreiros, parou a meio para cheirar o chão econtinuouacaminhodoLargodoMercado.Aíchegado,deslumbrou-secomassobras do leilão, havia restos de comida espalhados por todo o lado, garrafaspartidas,frutasesborrachadas,ossinhosdegalinhaepapéisaesvoaçar.Oanimalnão soube por onde começar e, durante meia hora, não tirou o nariz doempedrado, provando de tudo. Embuchado, arrastou-se até às duas estátuas eacomodou-se.O barulho que o acordou fê-lo espetar as orelhas. Era uma lataempurrada pela aragem que rolava na calçada. Voltou a adormecer, mas nãodemorou até despertar outra vez.Agora o ruído era diferente, longínquo,mas

mais interessante. Era um som humano, talvez valesse a pena, e por issolevantou-se.Àquelahora,osomdasunhasabatucarnopasseioencheuapraçaearuaparaondevirou.Aolonge,viuovultoacaminhar,farejouoaredisparouatrásdele.Quandoestavaprestesaalcançá-lo,desiludiu-seaovê-lodesaparecerporumportão.Já dentro da propriedade de Roman Skiba, o homem ignorou um ganido

tímidonascostaseseguiuacaminhodamansão.O comendador ia e vinha entre o salão e o vestíbulo. Parou a olhar para o

relógio,esfregouorostocomosonoefoiespreitaràjanela.Nada!Tudoescuro,tudo na mesma. Estava atrasado, talvez não aparecesse, talvez o traísse… Aprimeirapancadafoitãosubtilquenãoteveacerteza.Depois,outra.Agora,sim,eraele!Caminhouatéàportaeabriu-acomcautela.Ohomementroueseguiuodonodacasaatéàsalaaolado;nemumapalavra,sóassolasnochãodepedra.Assimquechegaram,ohomemabriuosacoedespejoucomdesdémamãozinhasobreamesa.Quandoergueuosolhos,jáSkibalheestendiaumenvelope:–Podecontar–disseeleaoCheco.–Desconteiosdoismilequinhentos.Opintornãoabriuabocanemoenvelope,limitando-seaesconderodinheiro

numcanodabota.Láde cima,penduradosnamoldura, osolhosdesmesuradosdo comendador

reforçavamoaviso:–Jáfezoquetinhaafazer–declarouSkiba.–Partahojemesmo.Nãooquero

voltaraver.8Pequenosbarretescomquealgunsjudeuscobremoaltodacabeça.9Estruturacomunitáriajudaica,encarregadadegeriravidadacomunidadeeassuasinstituições.Podereferir-seàprópriacomunidade.10Jogodecartasdeorigempolacaemqueparticipamtrêsjogadores.

PARIS,2001

Eryk bochechou com o gin antes de engolir o comprimido. Estava bêbedo;alémdissosentia-sedoenteepreferirareunir-sealimesmo,nasuitedoCrillon.Apesardetudo,avozeraamesmadesempre,talvezumpoucosobranceira:–NuncameesquecidesseCheco.Eraumtipointeressante.Bemmaisdoque

osanimaisquetevedeaturar.Yankel não contara com aquilo, Eryk arrefecera, sentia-lhe o bafo frio,

desagradável, só podia ser desprezo, o desprezode umhomemque se sente àvontadenasuaborracheira,quelheconheceosrecantos.E,depois,Vivienne.O livreironão lhevia aperna cruzada,nemocotovelo

assentenobraçodacadeira,nemacabeçadelado,apoiadanamesmamãoqueseguravaocigarro.Mesmoassim,enquantoseenjoavacomocheirodoGitanes,Yankelentreteve-seàprocuradossinais:otamborilaresporádicodosdedosnotampodamesadevidro,osoproprolongadocomqueexpulsavaofumo,ouatéaforma brusca como tilintava o gelo no copo, parecendo sacudir algum fastio.Sim, calculava que aquilo não fosse novo, era assim que ela lidava com osexcessosdomarido,tãocapazdeseexaltarcomodecairapiqueempurradoporumgin.Todavia,eapesardaperspicácia,Yankelaindanãotinhapercebidoqueoescritorpioravaacadadiaequeissoaconteciadesdequeoreencontrara.De repente, Eryk cortou-lhe o pensamento e emergiu da bebedeira para se

mostrarirritado:–Ainda pensam que fui eu a escrever estamerda?Vá lá, conhecem-me há

temposuficiente;ousãocomoosnésciosquecompramosmeuslivros?Nuncavosapresenteiomeugajo?Omeugajo,sim,ogajoqueseescondenasminhastripas,naminhacabeçaenaminhapiça.Todostemosonosso,omeuéeste,umtraste,maséelequemmeescreveoslivros.ComoeramdeleosdelíriosqueoYankelaturouemmiúdo,comoeraelequeme tiravadecasaporduasou trêssemanas sem dar cavaco a ninguém. Foi ele, foi sempre ele a distrair-me, aapanhar-me desprevenido. Todo o escritor tem um gajo desses a puxar-lhe o

tapete.Ouentãonãosesurpreendecomoqueescreve;e,senãosesurpreende,não é escritor, é umpedante, omaior dos filhosdaputa.Omeugajo é assimmesmo,dá-metudooquesou,maslixa-metodososdias.Aculpaéminha,bemsei,babo-mecomoumadolescenteaolharparaeleeaindamequeroconvencerdequeissoéamor-próprio.Viviennejáconheciaaquelediscurso,jásehabituaraàmultidãocomquemse

casara:Eryk,PaulLestrange,aspersonagens;o«gajo»sópodiasermaisuma.Ahaverdiferença,tinhadeestarnaira,notombelicosoqueomaridodeixaradedisfarçar.FoientãoqueErykseendireitouparaemborcarorestodabebida.Assimqueo

fez,pousouocoponobraçodacadeiraeficouaolharparaochão.Aquilofez-lhebem,pelomenosquebrou-o.Detalmaneiraqueoquedissefoi,palavraporpalavra:–Depoisosanospassam,ascoisasmudam,oteugajojádormeanoiteinteira

eomelhorque tensa fazerédormires também.Porque, secalhaacordaresdemadrugada,nãoháfantasiasquetevalham,dásportiasóscomamorte,pões-teaolharparaelaeestásfodido.–Nessemomento,ergueuocopovazioàfrentedo rosto como se brindasse e pareceu olhar através dele. – É isto que te vaivalendo.Agora,queogajomorreaosbocados,unsbonscoposaindapuxamporti.Masnãoduraparasempre,euseiquenão.Láviráaalturaemque teviraspara o espelho e só vês um par de olhos desenganados, acabou o sonho, nãopassas de um pedaço de papel com reumatismo a embrulhar a vida como elarealmente é. Há quem lhe chame lucidez, não faço ideia. Mas, se é lucidez,tambéméofimdetudo,tornas-teumvelhoàesperadamorte.AspalavrasdeErykprecisaramdetempo,eosoutrosderam-lho,osuficiente

para que o escritor despejasse o resto da garrafa.QuandoVivienne falou, nãoteveacertezaseeleaestavaaouvir:–Possocontinuaraler?Omarido olhou-a como se não percebesse o que ela queria dizer. Por fim,

descobriu na algibeira um par de óculos articulados, que desdobroudesajeitadamente antes de pousar à frente dos olhos vermelhos. Nessa altura,arrancou as folhas das mãos de Vivienne e aproximou-as do rosto para selembrardoquevinhaaseguir.–Diverte-te–disse,enquantolhedevolviaotexto.–Nãotevãofaltarmotivos

paraissoatéleressobreodesastre.E,depois,nãohánadacomotirarovéuàsbeatas.

NORDESTEDAPOLÓNIA,1937

Yankeleraomaisalto;esguiodosombrosparabaixo,ganharaocorpodetrutanos banhos do lago. Os olhos eram castanhos, baços como o cabelo quasesempredesgrenhado.Erabelo, tãobeloquantoumrapazpodeaspirare,muitoperto de ser homem, a pele retesava nos ângulos do rosto e lembrava pedramacia, veiadadepequenas cicatrizesque a cegueira lhemarcara ao longodosanos.JáErykmedraraacustoe ficara-lheaumpalmo;quasealbino,olhosdegatonoescuro,talvezencorpassecomaidade.Entreeles,viviaShionka.Continuariamadividi-la até terema certezadequenãochegavaparaosdois.Quandoissoacontecesse,oquequerqueserompessejamaisseriaremendado.Naquela noite, deu-lhes para ir ao Largo do Mercado. No verão, havia ali

bancas, haviaqueijo e refrescos e, depois,Shionka cansara-sedashistórias, jásabia o crucial. Sentaram-se a comer nos bancos de pedra e Eryk declamouexcertosdispersosdoPanTadeusz11.Se lhe falhavaamemória,completava-oscomalexandrinosfeitosàpressa,exibindoigualtalentoparaamétricaeparaodisparate. Yankel ria, Shionka sorria, e quando se cansaram eram os únicosdebaixo das arcadas. Foram-se embora pelo caminho mais curto, iam deixarShionkanaorladacidade.Foi ela quem os alertou. Parou e guiou-os até ao lado de lá do passeio. À

primeiravista,acasadePaniKrysiapareciatãoadormecidacomoorestodarua,mas,olhandocomatenção,haviamaisqualquercoisa,a janeladasalapareciamalfechada,descuidobastanteparaqueoventoagitasseacortinaedestapasseuma nesga de luz. Àquela hora?! Teria de ser esquecimento. Ainda assim,aproximaram-se cheios de cautelas. Yankel foi o primeiro a ouvir, era umrangidointermitente,qualquercoisaacertadapelobaterdeumcoração,nãodavaparaperceber.Shionkagalgouumaraizquebrotarajuntoàcasaecolouorostoao vidro. Assim que o fez, recuou e levou a mão à boca. Eryk quase que aempurrou para ver o que se passava. Não percebeu à primeira e, mesmo àsegunda,tevedefocaraimagem:PaniKrysia,debruçadasobreamesadejantar,saiaarregaçada,esticavaosbraçoscomosefosseumacruz,fincandoasmãosà

toalhaderenda.Comopeitoespremidono tampo,erguiaoqueixoparao tetocomo se visse o céu. Atrás dela, com os pés apoiados num banquinho, opresidentedaCâmaratraziaascalçaspelosjoelhosedominavaabeatapuxando-apelosatilhosdocorpete.Acertaaltura,Tadeuszsusteveossolavancose,semnunca olhar para baixo por causa do respeito, afrouxou as rédeas, prendeu-asnumamão e usou a que tinha livre para alcançar o cigarro. Puxada a fumaça,deixou a prisca acesa no canto da boca e voltou à desvergonha, desta vezcerrandoumolho.Mal seesvaziou,desceudopedestal, abotoou-se,esticouaslapelaseapanhouobanquinhoparaseirembora.Desancorada,Krysiapôs-sedepé,deixandoasaiacairporsi,eprendeuumapontasoltadocabelo.Aseguir,restauradaaposedetroncoseco,virouascostasaocavalheiroquebatiaaporta,sentou-se à escrivaninha e foi acrescentar mais um pecado ao caderninho.Entretanto,jánopasseio,Tadeuszpassourenteàsebeondeosgarotossetinhamescondido à pressa. Levava com ele um desejo, uma ideia fixa: gostara daexperiência,gostaradea terdecostas,deacomandar…Eradoseufeitio,quediabo!, tinhadeexperimentar comApolónia.Haviaoproblemadobanquinho,cortara-lheaspernasàmedidadeKrysiae,seoviesseausaremcasa,teriadecalçaramesa.Naverdade,aobsessãocresceutãodesmesuradaque,parapodergastar o vício, elevou-a ao estatuto dos discursos importantes, inaugurações etodaasortedefavorescomqueserviaoseleitores,passandoadistribuircalçosporoutrasmesasdacidade.11PoemaépicodaautoriadoescritorAdamMickiewicz,publicadopelaprimeiravezem1834.Éconsideradoumadasmaisimportantesobrasdaliteraturapolaca.

PARIS,2001

Assim que acabou de ler, a editora virou-se para o marido. Calculara quetivesseadormecido,masencontrou-odesperto,amastigaremsecoeabalançarocopovazio.Yankel sorria comoumacriança eVivienne ficou apática, os doiscalados,umsilênciodemasiadocéticoparaqueEryknãosesentisseinsultado.–Choquei-vos?–rosnou.–Queeusaiba,umlivrotambémserveparaajustar

contas.Osilênciomanteve-sepormomentos,atéYankelocensurarcomvozdetroça:–Umbanquinho,Eryk?–Ogajonãoprestava,nãovalianada!Umtipodaquele tamanhonãochega

aondeelechegousemseempoleirar.Háquemlhechamecanalhice,euvialiumbanquinho, qual é o problema? Tens um banquinho, tens uma história. Se ésaspirante, pões alguém a limpar o pó às prateleiras; se és escritor, apodrecestudo.–Nessemomento,estremeceucomviolência.–Merde,Vivienne!,arranja-mequalquercoisaquesebeba.Foiobastanteparaqueamulherpusessetermoàquilo.Virou-separaYankel:–Étarde.Euacompanho-o.Ésóotempodechamarumtáxi.O livreiro levantou-se devagar. Ficou ali mesmo, a um metro do amigo

embriagado,enquantoaguardavaqueViviennelhechegasseosobretudo.Depoisdeovestir,ajeitouagolaparaseprotegerdosprimeirosdiasdeinverno.Antesdepartir,estendeuumamãoindecisanadireçãodeEryk.Quandolhetocounobraço,tateouatéaoombro,masnuminstantedeixoudesaberoquefazeresaiudalicompressa.

NORDESTEDAPOLÓNIA,1937

Aprimeirasuspeitaveiocomopesodafruta.Àsduasmaçãsdocostume,ElkaMenchersomououtrastantas,maisumadúziadeameixas.Jáselheconheciaocoração, pelo que a fartura súbita teria de coincidir com a aflição de algumvizinho.MasaRuaMazureraacanhada,todosseconheciam,enãoconstavaquequalquerdosmoradoresestivessedoenteoupassassenecessidades.Comoaquilocontinuoudiasafio,lembraram-sedeaseguir,masnuncalheviramdesviosaocaminhohabitual.Atéque,naquelanoite, IsraelHaussmansaiudisparadoparavomitarnopasseioedeudecarascomElkaàportadoprofessor.Éclaroqueavozdeumbêbedosedeveouvircomcautela,masosegredonadapôdecontraacuriosidadeda rua inteira e, emmenosdeumamanhã, lá veio a confirmação:ShlomoPasternakestavadevolta!Osdetalhesvieramdepois:ojulgamentonãodera em nada, as provas afinal não o eram, e, mau grado as desculpas daRepública,nãoseapagouavergonha.Doisanosdecalabouço,contadosassimsem culpa, são dois séculos de injustiça. E depois a humilhação, a calúniadesprezível, ele e as crianças – logo as crianças… Que as seduzia, que asfechavaemcasa,queasalcoolizava,queabusavadelas.Etinhadeserverdade,opovo assistira à detenção e espreitara-as à volta de umamesa, testemunhara apouca-vergonha e compadecera-se dos seus olhos inocentes, suplicantes,relutantes, ébriosde licor de laranja.Fossequem fosseo autor dadenúncia, acidadedevia-lheoquetinhademelhorepoucosquiseramsaberporquerazãoosgarotos nunca chegaram a depor ou até porque tanto choraram a ausência dePasternak.YankelfoiquemmaissofreucomastramasdaJustiça,sabiaquesercegonão

era aquilo, tinhade falar comoprofessor.AcompanhadoporEryk eShionka,procurou-o todos os dias na sua casa,mas nunca foi atendido.Até que, certanoite, depois de muito bater, a porta se abriu. Não totalmente, apenas umafrincha,obastanteparaumamãovacilantesairàruaeafagarocabelodorapaz,depoisumombro,depoiso rosto,depoismaisnada.Foiassimadespedida, já

que,damesmamaneiraqueregressara,ShlomoPasternakpartiu,desvaneceu-sedoisdiasdepois.Atéaosprimeirospalpites,ninguémsabiaparaonde,sómaistardeseriavistonaAmérica,naHungria,naPalestinaeatéemRoma,àbeiradoColiseu, amudaropneudeumcarrode luxo; eraumaquestãode inspiração,tudo se lia na correspondência que a cidade trocava com aqueles que tinhampartido,tudosemultiplicavanasconversasdomeiodarua.Passadasumassemanas,chegouàcidadeumduonotável:asmesmascasacas,

osmesmoschapéus,asmesmaspolainas,umdestro,outrocanhoto,seguravamasmalasealinhavamopassonumasimetriahilariante.Porém,quemosvissedepertoperderiaaalegria;eramumpardesbotado,carregado,adoecidopelodever,estavamalicomumsópropósitoeamandodePasternak:darbomdestinoaopatrimónio deixado ao abandono. Durante quinze dias, os dois homensdistribuíram-sepelacidadeemesquinharammaisdoqueoprofessoralgumavezseatreveria,para,nofinal,abandonaremaquelelugarcomasmalasinchadasdedinheiroeosbensentregues.Àexceçãodaminadeouro,queporoser sódenome não encontrou interessados, nada ficou por vender: os armazéns foramparaaCâmara,queassimmanteveaescola;aslojasdasarcadasparaquemjáasarrendava; e as extensaspropriedades a norteda cidade, tão férteis e ricas emágua, juntavam-seagoraaovasto territóriodeSalomãoFinkelstein,umdesejode décadas.Alémdisso, entre prédios e baldios,mais umadúzia de negócios,mais uma dúzia de cidadãos radiantes. Bem vistas as coisas, a perdição dePasternakaproveitaraatantagentequelogohouvequemsomassenovascausasparaadenúncia.Na justa tradiçãodocírculoperfeito, taissuspeitasmorreriammesmo assim, juntando-se às outras culpas, culpas sem rosto,mais antigas doque a memória daquele lugar. Mas havia ainda a honra, e o professor fezquestão:aorastodeindignidade,imporiaumamarcadegrandeza.Eporissonãovendeuocasarão,doou-oaoMunicípioparaquealisealbergassemosdementesdacidade.Deixou tambémdecretadoquenãosobrasse recheio,peloque,numfimdetarde,eàvistadetodaagente,sedeitoufogoaosseuspertences.Apilhaimpressionava:láestavaamobília,aroupaeacomidaestragada,mastambémos potes, as substâncias, as perucas, os funis, as lamparinas, a faunaembalsamadaeosfrascosdeorvalho,coisasdetodoomundo.Apreencherosinterstícios,oslivrosdoprofessor…Afogueiralevoucincodiasaapagar,masarderiaparasemprenosolhosdequemaviu.Abrasadapelaschamasdetodasascores conhecidas, a amálgama rangia desesperada, o guincho de mil animaisferidos, explosões de enxofre e limalha, lágrimas de ouro que escorriam dasiniciais das lombadas, o fumo miraculosamente branco, pestilento, a cobrir a

cidade como um cogumelo. Shionka e os dois rapazes também lá foramdespedir-se, mas cada um se aqueceu de maneira diferente: ela com osbamboleios,oslábiosfebrisafalaremparadentro,talvezpossuídapelopróprioPasternak; Yankel, calado, a dor que crescia com o cheiro a dragão, cheiro aprata incandescente, eraoúnicoaouviroquediziao fumo;eEryk, figuradeestátua, olhos vidrados, encantados, conseguia discernir no fogo as figurasdantescas,contorcidassóparaele.

*Osdignitárioscheiraramorumoaoventoantesdeseperfilaremnoladocerto

dascinzas.Sentadosnaescadaria,osdoentessorriramparaobrasidoqueaindafumegava no tapete calcinado. Os seus olhos visionários transformavam ostiçõesempódasestrelas,emdiamantes,laranjasincandescentes,qualquercoisaencantadora que os distraísse dos discursos dos políticos, tão preocupados emvarrerparalongeonomedoprofessor,mesmoqueaplacadescerradaanunciasseemletrasdepalmo:

MANICÓMIOPASTERNAK,paraacudiraosaflitosdarazão,

porgenerosíssimaofertainauguradoa26demaiode1937/16Sivan,569712,

napresençadoSenhorPresidentedaCâmara,ohonorávelTadeuszOrlosk.

*

Opisodecimaeraumesqueletodepeixe,umúnicocorredoraocompridoe

dozebaiasdecada lado, tantasquantasas janelas lateraisprotegidasporfortesgradesdeferro.Eraassimquesedistribuíamosloucosdomanicómioeeraaliquepassavamamaiorpartedotempo.Apoente,seismulheres,naoutraala,setehomens,umdosquaisamarradoeamordaçadonoiteediaporcausadoodiosocostumedelamberasdoentes.MasFlorian,não,eraumrapazdocee, comovinhaa tornar-sehábito, foio

primeiroasairparaojardim.Movia-secomoumprodígionoseuespaçoimaginadoeporissotraçoucomos

olhos umas retas sobre a relva. Seguiu a primeira até ao vaso de bronze; aí

chegado, alinhouavista coma tília dosvizinhos, deu setepassos em frente eparouumavezmais;paraconcluir,virouemânguloretoecaminhououtrostrêsmetros. Tinha chegado, era aquele o ponto certo, o fim do percurso. Só ali,exatamenteali,poderiavislumbrar,entredoisprédiosdaRuaMazur,oprimeirocontorno doSol a nascer sobre os ulmeiros. Ficou assimmuito tempo, de pé,comoalvoracesonorosto.Semprequeissoacontecia,começavaafalar,arir,comovia-se e calava-se outra vez. Quando os outros doentes saíam para opasseiodamanhã,encontravam-nosentadona relvaaolharparauma larvanobraço,arodarumtrevonosdedos,avirar-separaoventocomoseovissepassar.Econversava, tinhasempreoquedizerà larva,ao trevoeaovento.Àsvezestiravadobolsoumaflautaminúscula,lascadanaspontas,gastaesembrilho,uminstrumento tão ridículo como ele.Mas, quando a levava aos lábios, tambémsugavaoareotempoeosfantasmasdosloucosàsuavolta.O padre Kazimierz, que incluía o manicómio nas visitas de domingo, já

esbarrara naquele quadro de outras vezes. Deixava-se ficar a olhar para omúsico, parecendo levitar com o resto do grupo. Certo dia, aproximou-se dorapazelevou-oparaumasombra,quissaberoquelherespondiaovento.Florianempertigou-se–«Nãofaloparaoar,falocomDeus»–,eranosvermesqueOencontrava,naservas,nosoprodoventoedasuaflauta.Opadreassombrou-seedisse que Deus era mais do que isso, falou-lhe de três pessoas, falou-lhe docorpoedopão,dosangueedovinho,falou-lhedemuitasoutrascoisaseatédospecadosquelhepoderialavaralimesmo.Orapaz,queeralouco,sópercebeuapartedoamor,porissosaiudasombraeregressouaojardim.DepoishaviaKasia,airmãzinhadeFlorian, tiradadaruapoucosdiasdepois

dele.Eraumacatraia, amaisnovadohospício, enuncaseconformaraporaliestar: aquilo erapara loucos e o seumal estavanosolhos, nãona cabeça.Nolugardepessoas,viaanimais,eentão?Quandoomercadoseenchiaàs terças-feiras,Kasianãoselevantava,nãosedestapava,alagava-seemsuoregritavaatéaofimdatarde.Jáosviraaoredordasbancas,umvespeirodemáscompanhias:saposuntuososatresandaremamorte,cobrasquedescamavamentreosdejetosdacidade,lacraus,ratosobesos,moscaseescaravelhosespremidos,umzumbidofuriosoemformadenuvem.Masnãoerasóali,nãoeramsóosfeirantes,osquecompravam e os que vendiam, pois Kasia encontrava as criaturas por todo olado.Nocírculoperfeito,sóoscãeseramcãeseascriançascrianças.Opadredosdomingostambémlhepareciahumano,umasescamasnopescoçoqueiamevinham,mas,sim,eradesanguequente.Deresto,haviaosoutros,osmutantes,aqueles que lembravam tantas coisas, como Tadeusz, a quem chamavam

Presidente.Encontrara-onasfestascitadinasearrepiara-se:portrásdolequedepenas fulgurante, vivia umpavão em corpo de perdigoto que saltitava, que seagarravacomasunhasàroupadosoutros,queeracapazdeferirsócomosolhosdesalamandra.MastambémSkibaeFinkelstein,asserpentesqueesventravamosalicercesdacidadeemlabirintosobscuros, túneisbafientosentreasraízesetudooqueaterraapodrecia.Jáasviraaosol,estendidasnopasseioafazerdemortas, a cheirar o vento com as línguas bifurcadas, e Kasia, aos berros, aapontar para elas perante o pasmo de quem passava. Uma vez levaram-na dearrasto,omédicoqueaaturasse. Jánaenfermaria,odoutorSobol recebeu-aefaloumuito tempo sem fazer ideia de que tudo o que ela via era uma cabeçainchadadepeixe,olhosesbugalhadosababarclaradeovoeumbeiçobovinoamastigarpalavrasestrangeiras.Quandoporfimpercebeuqueelanãooescutava,resolveu sentá-la ao colo, agarrou-lhe a mão franzina e, já que os olhos nãoserviam,mandou-a usar o tato guiando-lhe os dedos pelas pregas anafadas doseufatodefazenda.Arapariga,queera louca,continuousemachar formasdegente,porissofoiamarradaelevadaparaohospício.

*Yankelenterrouospésnaterramolhada,masdeixou-secaireficousentadode

frente para o lago.Ameia dúzia demetros, encostados a uma árvore, Eryk eShionka: ele sentado numa raiz a desenhar nas folhas de papel pardo que lhedava o Pasternak; ela, deitada no ervado, apoiada nos cotovelos para irespreitandoosbonecos.Naquelemomento, o rapaz rabiscava pelo a pelo, ínfimos tracinhos uns por

cimadosoutros,formandoaospoucosumamanchaparaocompridoadarideiade um bicho lãzudo. Shionka terá pensado a mesma coisa, pois, num gestosinuoso,serpenteouamãoporentreaservasimitandoumanimaleapontouparaamargemdolago.Erykdeuumagargalhada:«Quedizestu?Umalontra?»Elaencolheuosombrose riu-secomouma tola,oqueemsilêncioeraaindamaisestranho.Semnuncalhedizerseestavacerta,elecontinuou.Agora,umpoucoacima do primeiro, desenhoumais dois bichos lado a lado, em tudo iguais aooriginal, porém com metade do tamanho. A seguir olhou para a rapariga eesperou por novo palpite. Shionka, que se debruçara sobre a folha de papel,endireitou-sedeumsalto,sentou-secomaspernascruzadase,cheiadecertezas,embalouemcadabraçoumfilhoteimaginário,apertando-osternamentecontraopeito.Erykriu-seoutravezedissequenãocomacabeça.Entãodecidiupôrfim

aojogoecorrigi-lanopapel, traçandoumriscorápidoentreos trêsmontesdepelo. Unidos por aquela linha em forma de nariz, as crias e a mãe lontratransformaram-se de repente no vistoso par de sobrancelhas e no bigodeformidável de Tadeusz Orlosk. O resto era mais simples, um traço largo acontornar o rosto, o corpo atarracado a parecer fora de escala, as calças pelosjoelhos, e asmãos cruzadas logo abaixo da cintura por causa da vergonha.Aacabar,obanquinhodetrêspernaseaspalmasentusiasmadasdeShionka.Ao ouvi-los tão efusivos, Yankel quis saber o que se passava e Eryk

descreveu-lheoquetinhadesenhado,procurandonãoesquecernenhumdetalhe.«Não te esquecestedeninguém?»,perguntouo cego,denovoviradoparao

lago.Erykolhouparaele,olhouparaa folhae,numgesto repentino, saiu-lheum

perfiladunco.Shionkanemhesitouebenzeu-separadizerqueeraabeata.«PaniKrysia»,confirmouorapazparaqueYankeloouvisse.Depois,sempreamordero lábio, continuou pelo pescoço, os ombros nus e, como frutos maduros, osseios, tão murchos que chegavam à cintura. Aí, parou de repente e pareceudesnorteado, incapaz de prosseguir. Fazendo um ar provocador, olhou paraShionka, «agora não sei o que faça». E levantou-lhe a saia do vestido para odeixarvercomoera.Semparecerlevaramal,eladeu-lheumapalmadanobraçoe, já composta, arrancou-lhe o pauzinho de carvão. Então, muito meticulosa,desenhouumtufonegroque,aospoucos,alastravapelaspernasdabeata.Aovê-la fazer aquilo, Eryk ficou transtornado e Shionka apercebeu-se. Divertida,deixou cair o desenho, levantou-se de repente emascarrou-lhe o nariz com amãoencarvoada.Sóentãosaiudisparadaparaseirbanharnolago.12Deacordocomocalendáriojudaico.

NORDESTEDAPOLÓNIA,1939

Guerra.Emdiademercado,apalavraalastroudebocaemboca,debancaembanca,e,

antesdoalmoço,orumorjápegaraaorestodacidade.Osvelhoseascriançascalaram-se e ficaram a assistir.À sua frente, fervia o sangue dos rapazes e asmãescorriamparaaigrejaemandavamrezarmissas.Foientãoqueonevoeirocaiusobreasruelas,tãodensoqueninguémserecordavadeoutroigual.Houveainda quem jurasse vislumbrar na neblina qualquer coisa pavorosa a lembrarcorcéisrampantes,cavaleirosteutónicosnasombradeumguerreiroformidávelque tinha de ser o próprioOdin, elemesmo a avassalar de espada em riste osagradochãopolaco,edequempoucosesabiaalémdonome:Hitler.Os tempos seguintes trouxeramoutrasnovas,o recortede jornal acaboupor

sossegar:afinaleraparaobaixo,tinhatraçosdejudeu,nãoviriamaldali.Mas o nevoeiro não chegou a dissipar-se e o círculo perfeito encheu-se de

outros vultos ainda mais tenebrosos. Falou-se então das fogueiras, das pirasfeitas de livros, dos vidros partidos, da sentença de aleijados, das prisões,campos,castigoselibelosdesangue,tudoaquiloqueelesimporiamnodiaemque chegassem. Ah, sim, não tardariam. E viriam pelos judeus; viriam paraexpurgar,paraqueimarelançarassortessobreopoucoquesobrasse.AKehillareuniu-semuitasvezes,ossionistasgritaramserotempodeAliyah,

oregressoàterradeIsrael.Maslogohouvequemfalassedopassadoedetodosos direitos resgatados com o sangue dos judeus. Não, haveriam de ficar. E,depois,talvezfossemsórumores,talvezonevoeirolevantasse.Menoscrédulo,oexércitopolacofoibateracadaporta.Sónocírculoperfeito

reuniucempatriotas,garotosempédeguerramascaradosdesoldados.Erykfoiumdosceme,mesmoaosairdecasa,parouàportadopai,olhoudesoslaioparaaspernasdobradasesaiusemsedespedir.Aseguir,foitercomeles.Erykterminatodasasfrasescomoselhefaltasseofôlego.Deveserporserir

efalaraomesmotempo.Diz-nosquetemduashorasparaseapresentaràfrentedaCâmara,nãochegaparadespedidas.Ouchegaria, se fôssemoscapazesdeser sinceros e confessar que amorte não nos sai da cabeça.Não somos.Porisso,oquedizemosnãoénadaparecidocomumadeus:euperguntoseocéulheparececomardechuva,eleresponde-mequesimeacrescentanomesmotomcasualquealguémterádelheentregarumaespingarda.Aseguir,cala-se.Ouço-oaremexeroembrulhodepapelqueaminhamãelhemandou.Háumqueijoebolosdecebola,econta-osemvozalta:«Sãodoze»,informa-mecomosefosseimportante;«Onze»,corrigejácomabocacheia.Shionkaaparecefinalmente.Apoia-senomeuombroparasesentarenotoqueestáapingar;veioacorrer,

quetonta.Edepois jáaconheço,estoumesmoaverque,comapressa, tropeçoue se

esfolou nas árvores, não quis saber; pisou todos osmíscaros e groselhas queencontrounocaminhodaflorestaedecertezaquetrazocabelocheiodefolhas.Asuapelequenteetranspiradaespalhaagoraumaromaaçucaradoaseivaeafrutos esborrachados, o que, em vez de nos confortar, só realça o cheiro damortequetalveznuncanoslargue.Passaramasduashoras,comemososbolostodos,nemissoErykhádelevar

para a guerra. Nomeio, repisámos piadas e histórias velhas, mais nada, umesforçoindecenteparanãofraquejarmos.Quandodoupormim,perceboquechegámosaoLargodoMercado,sóaíé

que cabem tantas vozes. Mas são só vozes de mães; se há por ali pais emancebos guardam tudo para si. Parece também ser essa a escolha de Eryk.Shionkatrava-mepelamanga,émelhordeixá-loir.

PARIS,2001

SegundoYankel,oseuapartamentonaRuedeBucieraumaréplicaaceitáveldaLivrariaThibault.Alitambémhavialivrosnasprateleirasemobíliavelha,umcheiroqueseriaomesmo,nãofossemospistácioseagorduraaderreternocaféafegãodoprédioemfrente.Eramsetedatarde,achuvaouvia-semelhornasruasestreitaseelesentou-seàjanela.Eraumvultoquietonumasalaàsescurase,seaimagem valesse alguma coisa, serviria para lembrar que Fidelia partira e nãovoltara,ummêsinteirocomasluzesapagadas.Deixoutombaramãoaoladodosofá e os seus dedos tocaram emArmand. Afagou-o com cuidado para não oacordar,poisestavacheiodedrogasetumores.Yankelafligiu-se,játiveraoutroscãeseoutrasamantes,masnuncaperderadoisaomesmotempo.Amaneira que encontrou para deixar de pensar nisso foi lembrar-se do seu

estado ruinoso. Todos os dias se sentiamais decrépito, a dor que o andava aincomodar ultimamente já lhe apanhava o ombro, o pescoço, e descia até aopeito. Porém, se deixava de a sentir, então estava desgraçado; cada vez setornavamaisdifícilpassarsemaqueladistração.Naquelemomento, o telefone tocou ao pé de si, eraVivienne. Pelos vistos,

Erykterminaraunscapítuloseelagostariadelhosler;podiaseralimesmo,senãoseimportasse.Yankeldissequesim,viessemquandoquisessem,edesligou.Aospoucos,achuvadeuavezaocorosussurrantedoscentoenoventae seisrelógios de coleção que trabalhavam como insetos um pouco por toda a casa.Fechado num mundo escuro, Yankel viciara-se no tempo por causa daquelezunido, mesmo que agora lhe parecesse corrosivo. Tevemedo damorte, tevetantomedodequeocasalafinalnãoaparecessequedeuporsiatelefonar-lhes.Quando Vivienne atendeu, Yankel não soube o que dizer e acabou por sersincero:–Tragaqueijo,podeser?Viviennedeveterditoquesim,porqueeleagradeceu.SemFidelia,eseador

lhedavatréguas,Yankelcomiaqueijoaochegarofimdatarde.Esboroavaumafatiaentreosdedosedepoischeiravaamão.Aseguir,levavatudoaoslábiose

deixavaderreternaboca,paraentãosalgaralíngualentamenteesempredetráspara a frente; era assim a fome às escuras e também o que fazia para poderesqueceroresto.Quandoo casal chegou, já ele acendera as luzes.Convidou-os para a sala e

disse-lhesondeguardavaasgarrafas.Mesmoporbaixo,haviapratosefacasparaoqueijo.Enquantocompunhaotabuleiro,Viviennevarreuasalacomosolhos.EstranhouafaltadeFidelia,estranhouosdeslizesqueencontrou,coisasforadolugar,errosdecegoaconfirmaremosumiçodaargentina:oblusãodesportivoqueusavacomagravata,asmoldurasarrumadasdepernasparaoar–Yankelea amante, os dois de cabeça para baixo, a rirem às gargalhadas da figura quefaziam–,arevistaeróticaesquecidaporFideliaqueeleexpuserasemsabernotopodeumapilhadejornais.Eryk,queignorarataisdetalhes,sentou-seaoladodoamigo.–EFidelia?–perguntouseminteresse.Yankelnãohesitou:–Mudou-separaBatignolles,foivivercomumcasaldeturcosoucoisaqueo

valha.Pelosvistosama-os.Vivienneespreitouporcimadosóculoselambeuopolegarantesdepegarna

tábuadoqueijoeirtercomeles.–Comoseestáaarranjarsozinho?–quissaber.–MademoiselleFoss–respondeuYankel.–QuandodescobriuqueFideliase

pôsaandar,lembrou-sedequenãotemdeserporteiranemsolteiratodaavida.Éoquemetemvalido,mas,senãolhedouatenção,vira-meascostasedeixaoserviçoameio.Durantequinzeminutos,falaramaoacaso,beberamvinhoeYankelfoioúnico

anãotocarnoqueijo.Adadaaltura,jásópensavanumacoisa:–Nãoquercomeçaraler?–perguntouaVivienne.Aeditoradissequesimeacaboudemastigar.Sóentãofoiàpastabuscaras

folhas,queerampoucas.ComeçoupelahistóriadoPasternake,assimquefalouda guerra, fez uma pausa para mais um gole de vinho. No meio, uma únicainterrupção,quandoYankellhepediupararepetiroparágrafosobrealoucaqueviacriaturas:–Eraaúnicacabeçasãdacidade–disse,comoquemdáumanotícia.–Mas,

desculpe,continue.

NORDESTEDAPOLÓNIA,1939

Aquelaeraafatiamaisrecônditadocírculoperfeito,amaisortodoxa,moradados judeus hassídicos havia vários séculos, e em nenhum local do shtetl seobservavaaHalachá13comigualpureza.Eraumsítioenevoado,compostoportrês quarteirões, cadaqual comumadúzia de casas viradas para umpátio.Osjudeuschamavam-lheoVigele,oberço,poisavirtudenasciaaliedaliirradiava.Nocentrodessetriângulo,haviaseteárvores,setesobrascentenáriasdaflorestadispostas em torno da pequena sinagoga, um prédio vetusto de madeira, tãoestimávelcomoumpaidefamília.Àvoltadobairro,oeruv,umacercaduradepostes e arame que travava os visitantes e abria as ruas ao transporte de bensduranteoShabat.Haviaaindaummercado,umbarbeiroeumpeleiro,acasadeoração, os banhos e o cheder onde os rapazinhos aprendiam hebraico. Já àsombradafloresta,omatadourodeMeirBerkovicheasquarentaeduasdivisõesdojudeudastrigas.CadapátiodoVigeleeraumasalareservadaqueapenasseenchia à noite: a norte, os homens, Deus e a política; mais abaixo, os doisvértices estridentes, mulheres a poente, gaiatos a nascente, um conjuntointerligado por ruelas apertadas onde se cruzavam, em grupos separados,raparigaserapazescasadouros.EraaliqueviviaTaubaSandberg.Diziamqueacordeazeitonalhevinhadeumtioarménio,masnemelanema

mãe nem o pai nem o resto da família pareciam perdoar aquele tom de pele.Talvezfosseissoquelevavaaraparigaaver-senuaaoespelhoduasvezespordia; rodavaempassinhosparasedesnudaraindamais;não fosse tingida, seriaideal:ombrosestreitosdefidalga,mãosebraçosmelindrosos,Pasternakchegaraa gabar-lhe o pescocinho de Modigliani. Nessas alturas, torcia a cabeça parapoder olhar as nádegas abastadas, assentes em coxas generosas – só erabranquinha dos joelhos ao umbigo. Já a mãe, gorda por igual, parecia tãodesbotada como uma gentia. Foi por isso que Tauba pensou em engordar,rechear-sedecomidaparaesticarapeleeassimperdercoreafamadebastarda.

Nempensar, gritouBaruch, oprimoendinheiradoque lhe estavaprometido: afarturaondeédevida,queria-acomoumaperaegostavadeombrosdelgados.Comosempreaconteciaaosentir-seangustiada,foifalarcomPerlaWeissmann,queridaamiga,quehaveriadeiluminá-la.Ombrosdelgados?,riu-seaoutra;queserisseelatambémefizesseoqueeledizia.Entãoabraçaram-se,tinhamsentidoa falta daquelesmomentos, das horas calcorreadas sob a pérgola do cemitériojudaico, para onde fugiam juntas desde crianças. Daquela vez, porém, eradiferente.Adezdiasdocasamento,Taubaestavaempolvorosa,detestavaqueaapressassem.Querialásaberdaguerramaisdashistóriasqueinventavam.MasBaruchnãosefiava–setivessedeirlutar,jáqueriairarrumado.Depoishaviaopaidanoiva,commaisolhoparaonegócio:calhandoenviuvar,voltavaàcasapaterna,mas com o nome domarido e tudo o que dele herdasse. Perla ficoucalada; quase sempre categórica, desta vez mordia o lábio. Ao contrário daamiga,assustavam-naosrumores,eseosalemãeschegassemninguémsabiaoqueesperar.Umacoisaeracerta,asmeninasdespachadassempretinhamoutroamparo, e um marido como Baruch podia vir a valer-lhe. Tauba pareceuconvencida,porpouconãosorriu,dequalquermodoera tardeparamudanças.Porfim,láolhouparaPerla,casadadefresco,edesatouafazerperguntas.Jáqueia mesmo em frente, ardia por saber tudo. Em resposta ao desafio, a amigavincouosorrisotravessoquetraziadanoitedenúpciasedeuumacorridinhaatéum banco de pedra. Já sentada, alisoumuitas vezes o vestido sobre as coxas,estavaansiosa,teatral,epôs-seaolharàvoltacomumacautelafingida.«Nuncanoscasamossócomumhomem»,revelou.Depoisfaloudomarido:Pinchaseraeleeopaidele,orabinoAvigdor;eraaassembleiaqueenchiaasinagoga;eratodososhomenshirsutosdefatoescuroqueamodéstiaequiparavaaumsó.Deseu,omaridotinhapouco,maseratudooquebastaraaPerla:amaneiracomosedesperdiçavanumrisodegaroto,nosmotivosdegaroto,norostoindecisoqueguardavasóparaela,pois,diziadesarmada,«adúvidaéaúnicaformasinceraqueumhomemencontraparadizerqueteama».Depoiscontou-lhequePinchassezangarasótrêsvezes,poucoparaummêsadois,esempreporrazõesjustas:umcandeeirodeixadoacesoduranteaintimidade,oqueijoservidopoucoantesdo cholent14 e o cabelo solto que Perla desvendara ao espreitar pela janela.Tauba,sempremetódica,iaarrumandoosdeslizesdaamigaentreomuitoaquejáseproibira.Afinal,dapróximavezquepasseassemsobapérgola,seriaelaacorrerparaobancodepedra,quisesseDeuscomigualcontento.OVigelefoipostoaolumenosúltimossetedias.Duranteesseperíodo,Tauba

nãoviuBaruch,BaruchnãoviuTauba,enenhumsepasseoupeloshtetlsemacorte obrigatória. Do lado de lá do eruv, também se contava o tempo, poisnenhumjudeuforaesquecidonalistadeconvidados.Dadaàsgrandezasquenãotinha, toda a judiaria destravou as fantasias e anteviu um dia inesquecível.Haveria comida e esplendor a romper a madrugada; chegariam forasteiros deVarsóviaePoznan,mastambémdeMukachevo,BudapesteeatédaAlemanha–afinal,dizia-se,haviaumSandbergemcadakehilla.Comoerahabitual,oVigelecedeuostrêspátiosparaaboda.Nosdiasqueaantecederam,despejaram-seosburrosdas lojasantesdeosconduziràeiraemprestadapelo judeudas trigasearejaram-se as casas. As mulheres descravaram e limparam as mezuzot15,esfregaramas ombreiras das portas da rua, lavaramas sacadas e os filhos portrásdasorelhas.E,nanoiteanterior,cadafamíliacolocouaumcantodopátioonúmerodecadeirasaquecontavadaruso,paraqueosrapazesasalinhassemaolongodasmesascorridas.Chegadoodia,Taubaacordouameiodanoite.Temiapelorostomaldormido

e desesperou por regressar ao sonho interrompido. Já pouco se lembrava, aimagemeradifusa,parecia-lheBaruch,sim,mashaviamaisalguém,muitagentedesfocada.Quandoseachousócomeles,jáestavaadormirdenovo.Derepente,viu-se do teto a dançar com o marido, a multidão desvanecera-se, e, a cadarodopio,orostodeBarucheraorostodamãedele.Aimagemestarreceu-adetalmodoque acordou comdores nopeito.Nessemomento, descolouo lençol dorostotranspiradoepôsdeladoorelógio,aindaeraescuro,nãoquissaber,fossequehorafosse,nodiaseguinte,poressaaltura,estariadeitadacomumhomemeseriaassimparasempre.Deixou-seestarquieta,aolharparacima;láembaixoosprimeiros ruídosda cozinha.Não faltariamuitoparaque amãe irrompessequartoadentrocomastoalhaslavadas,umgestodemuitosanoseigualatantosoutros,extintosdaíanada.Assimtambémeraocheiroaforno,ocheiroabolosealeitequente,ocheiromaternalqueasmanhãstinham.Riu-se:dotantoqueperdia, conceber manhãs diferentes era a sua maior dor. Nesse momento,lembrou-sedafomeesentiu-seestonteada;paraanoiva,eradiadejejum,ditavaa Lei. Quando a mãe chegou ao quarto, dirigiu-se para a janela, correu ascortinas e encheu a bacia de esmalte coma águamorna que trazia num jarro.Depoisdependurarastoalhasnumvarãozinhodeferro,foiabriroguarda-fatos.Ficouali,decostasparaTauba,aseparararoupadafilhapelaúltimavez.Peçaapeça,ia-sevirandoparapousartudonoladovaziodacama.Perdidanaqueleafã,parecianãoverninguém.Maseraengano:«Então?»,perguntousemolharparaTauba e sem parar de arrumar. A jovem não disse nada, era escusado, nos

últimosdiasamãefaziaasimesmamuitasperguntasdaquelas.Umahoramaistarde,enquantosepurificavanaságuasdomikvé16,aescoltadasdozemulheresaguardavapelanoiva àportado edifício.Ainda lhe fariamcompanhiaquandofosseàsinagogaparaaúltimaoração,carpindosempreaoseuladoparaqueelanão esquecesse aquilo que ia perder. Vã lembrança, saberia quem lhe lesse oolharerrante,poisnemduranteacerimóniaTaubapôsdeladoaquelaangústia.Foiavozsonolentadorabinoadespertá-la,aspalavrasaramaicascomquelia

aladainhaindecifrávelcomaspromessasdocasal.Atrásdomestre,espalhadospelo pátio, os convidados vigiavam em silêncio. Separados das mulheres poruma cortina translúcida, os homens pareceram-lhe mais iguais do que nunca,olhares afins diminuídos por óculos semelhantes, barbas castanhas, chapéuscastanhosempele,fatospretos,sapatospretos,rostosemãosdacordasmeias,os gestos mínimos que pareciam comandados por uma única vontade. Atrásdeles,haviaumsegundogrupoconstituídopeloshomenserapazesquenãoeramdoVigele.Tãojudeuscomoosdafrente,havia-osdeváriosfeitios,mastodossecingiamaopapelquedelesseesperava,mantendo-semodestoseatentos.ForaentreestesqueYankelsesentara.Detestavacasamentos,horasseguidas

de tagarelice, os mil cheiros diferentes da comida, as danças delirantes, atranspiração, a filha deste e daquele a quem Rasia sugeria um dedinho deconversa.Não era que não protestasse,mas amãe levava-o sempre, nem quefossepelafarturaquenãopodiadar-lheemcasa.Naqueleinstante,sóqueriasairdali,correratéàfloresta;dariatudoparapoderestarcomShionka.Acontece que, de súbito, o seu sonho fez-se em cacos, tal como o copo de

vidroqueBaruchesmagoucomasola.«MazalTov!»,estavamcasados!,etodoogruposeembriagoudealegria,cumprindoomandamentodealegrarosnoivos,oque fez dançando à sua volta e ao somdosklezmorim17.A festaprolongou-sepela tarde, desaguando destravada nos três pátios. A cada sinal de euforia, orabinoAvigdorsegredavasobreoombro,eamúsicacediaprontamenteolugaraos epitalâmios e piadas do badchen, o bufão contratado. Foi num dessesmomentoscomedidosqueseouvirampassosdecorrida.Obadchen,vermelhodeofensa,calouopoemaadoisversosdofim.Surpreendendo todaagente,odesenfreado surgiudaquelha sombriaquedavapara a saídadoVigele.Assimquefoireconhecido,umrumorpasmadotransbordoudeumpátioaooutro:eraSimonLeichter,oamanuense,umjudeucomunistatãomalvistoporali.Vinhaexaltado, fora de si, e, achando-se no meio da boda, pareceu desamparado,olhandoàsuavoltasemsabercomquemfalar.Porfim,ládescobriuojudeudastrigaseorabinosentadosaopédonoivo.Aproximou-sedosdoiseinclinou-se

paradizerqualquercoisa,gesticulandoaomesmotempo.Osvelhosouviram-noemsilêncioeassimficarammesmodepoisdeeleterpartido.Naquelemomento,jáoshomensemulheresseacotovelavam,ninguémqueriaperderasnovidades.Coubeaorabinotransmitiraquiloqueouvira.Paratal,fechouosolhoserezouemnomedoseupovo.Anoite caíra sobreo shtetl.Havia fios de fumo a subiremdas fogueiras do

Vigelee,comeles,aoraçãoprolongava-seatéDeus.Aospoucos,outrasprecesse juntaram vindas dos outros pátios, dos outros bairros, de todo o círculoperfeito.Mais tarde,Yankel eRasia ampararam-seumaooutropelas ruasdacidade.

Quando chegassem a casa, tambémela acenderia amenorah e, sempre comofilhoaolado,maldiriaadesgraçaqueorabinoanunciara:Osalemãesnãoestavamlonge.

*Erykesfregouosolhoscomosdoisdedosquenãotinhaentrapados.Assimtão

próxima, amão cheirava-lhe a vomitado e distraiu-o pormomentos do ar querespirava,daurina,dosexcrementos,datranspiraçãoedacomidaazeda.Adornopépareceu-lhesuficienteparamorrer.Seconseguisse,arrastava-seatéàportablindada,saíacomaarmaemristeedavaopeitoàsbalasparatombarcomoumherói.Melhorainda:podiachamarputasàsmãesdosbocheseassimdeixar-lhesumcadávercomarde troça.Ali,nobúnquer,nenhumsoldadosabiacontarashoras.Àsuaesquerda,ocaboMareknuncasecalou,conseguindochorarerezaraomesmo tempo.Eryk tentou imaginarDeus ali comeles, sentado comoelessobreasprópriasimundícies,essalamapestilentaqueoscolavaatodos.Estavaescuro,masosomesporádicodasbombas trouxeflagrantesde luzerevelouacatástrofe dos rostos iguais,mortos e vivos, omesmoolhar.De repente, outraexplosão,agoramais forteoumaispróxima.Erykvomitououtravezeocaborezoumaisalto,gritouporDeus,gritoucomDeus.Aseguirfoialguémqueselembroudamãe e falou comela: palavrasdesarmadas, apalermadas, que cadaumfoiescutandoatéperceberqueeramsuas.Depoisveioosilêncio,osilênciopreparatório.E finalmente avozporque todos aguardavam, avozdo capitão.Raginis fora ferido, os olhos purulentos já nem distinguiam os seus homens,mesmo assim foi capaz de os lembrar do muito que já haviam conseguido.Chegara,porém,omomento.Ele,quejuraraprescindirdaprópriavidaemlugarda rendição, pedia-lhes agora que fugissem. Lá fora, uma onda depravada

prometia varrer tudo; por cada polaco agonizante, cinquenta alemães mais ospanzersetodoofogocaídodocéu.Ocapitãoencostou-seàportadoabrigoparahonrarosseussoldados.Saíramdevagar,passandoporeleumaum,ofuscadospela luz que agora invadia a casamata. Junto à saída, Eryk deixou-se estar.Reconheceuumamigoque viera comele do círculo perfeito e quis chamá-lo,mas já não ouviu a própria voz, apenas o zumbido da última bomba.Depois,passouocaboMarek;jásemchorarourezar,agarravacontraopeitoumamãodecepada na esperança de que fosse a sua; logo atrás, amparado por doiscompanheiros,umrapazinho.Erykfixou-lhemaisosolhosesbugalhadosdoqueastripasqueabraçava,aparvalhado.Sóentãoselevantou,foioúltimoasairesaudou Raginis com um aceno. Ao chegar lá fora, olhou para trás sem saberporquê e viu o capitão a arrancar a cavilha da granada e a atirar-se para cimadela.QuandoapromessadeRaginissecumpriu,Erykdeixoudeveretomboutambém.Porém,assimqueofez,abriuosolhos.Havia qualquer coisa errada, o céu estava amarelo. Depois, aquele som

estranho,aquelesilvometálicoenclausuradonacabeçaqueofaziaendoidecer.Aospoucos,obrigou-seasossegar,estavadeitadoeergueuumamãoparaverosdedos.Pareciamdesfocados,masmexiam.Fezomesmoàoutramão e, nessaaltura, a dor no pé lembrou-o do búnquer, do cheiro a gasóleo e dos gritos.Desvairado, quis levantar-se, deixara de respirar, o corpo não respondia. Semnadaaqueseagarrar,socorreu-sedasimagense,nomeiodaaflição,conseguiudescobriruma:aáguaparadadolago,asárvores.Então,voltouaganharfôlego.Não sabia onde estava, mas salvara-se, o céu amarelo era afinal um tetoiluminado.Nessa altura, alguém se debruçou sobre ele, umamulher, um rostodifuso. Seria a mãe?, pensou, mas a mãe morrera havia muito. E queinteressava?Podiasonharqueatinhaalicomeleefoioquefezquandovoltouaadormecer. O segundo despertar foi muito mais lúcido. Alguém o recolhera,alguémcuidaradele,restavasaberquem.Ocandeeirocontinuavaaceso.Ouerasempre noite, ou era um lugar sem janelas, e assim não conseguiria contar otempo. Até que a mulher apareceu uma vez mais. Era velha e não mostrouempatiamesmoaolavar-lheorosto.Primeiro,Eryksentiuavistaaarder,depoiso gosto antissético da vodka que escorria em fio do sobrolho, e só entãopercebeu que tinha estilhaços na testa.Quando terminou, a velha virou-lhe ascostasecorreuacortinaqueoseparavadacamaaolado.Nãofosseomalditozunido,Erykjáteriadadopelochoro,massóagorapercebiaquemestavaàsuabeira.Ocabonãochegouadarporele, soluçavaaolharparao tetoeparaas

imagensquealiviadesfilar.Numgestodemente,balançavajuntoaorostoocotoensanguentado,mas,quandoamulher lheafastouoscobertores, todooquartotresandouapodridão.Erykdesviouoolhartãodepressaquequasedesfaleceu.Ocabomorreudoisdiasdepois.Comele,enterrou-semeiapernagangrenadaeamão de outro soldado. Também foi nesse dia que Eryk se levantou paraexperimentaropéeconseguiucaminharatéàporta.Horasdepois,comroupasdecamponês,subiuàcarroçadePanKaminskiparaviajarerezaranoiteinteira.Quandoavistoua torredaigreja,esqueceu-sedasorações.Nãohaviasinaisdealemães,tinhachegadoantesdeles,masnãoseiludiu,eraumaquestãodedias.Poucodepois,cavalosestacados,Erykdesceunumsópéàportadasuacasa.Entrou.Ocheiroadetergenteera tãoagrestequeseentranhounonarize lhecausou

picadasnagarganta.Aoouviremobarulho,asquatromulheressaíramdoquartodoourivese,assimquederamcomEryk,deixaramcairosbraçoseos lençóissujosquetraziam.Incapazdedesviarosolhosdaroupaespalhadapelochão,orapaznãochegouaencará-las,nemmesmoquandoseafastaramparaodeixarentrar no quarto. Lá dentro, outras três agachavam-se ao lado dos baldesenquantoesfregavamochãocomasescovas.Aoveremorapaz,calaram-senuminstante,esbugalharamosolhosecontinuaramaesfregar,destavezacaminhodasaída.Semdarporelas,Erykergueuacabeçadevagareolhouparaacama.Restavaumcolchãovagoeacovaaliinscritapordezanosdetorpor.FoientãoqueaQuinta-Feira,dassetemulheresamaisafoita,embargouavozàforçaedeprontoesclareceu:ovelhomorreraadormirejáforaaenterrar.Haviadeveromortório, acrescentou, omar de gente! Como Eryk não reagisse, asmulheresarrumaramascoisasedirigiram-separaaportadarua.Umaauma,deSegundaaDomingo,saíramparanãovoltar.

13CódigodasLeisJudaicas.14PratodecarneelegumesguisadoshabitualmenteservidoaoalmoçonoShabatentreascomunidadesjudaicas.15Pluraldemezuzah,umrolodepergaminhocompassagensdaTorá,quemuitosjudeuscolocamnasombreirasdasportasdassuascasas,normalmenteacondicionadosempequenoscontentoresdecoradosdepedra,madeira,cerâmica,metal,etc.16Banhoritualjudaico.17IntérpretesdemúsicaKlezmer,umgénerodominantenaculturadosjudeusasquenazes.

PARIS,2001

Não fossem os anos seguidos que passavam sem se ver, teriam o suficientepara ser amigos. Yankel conhecera Jaleleddine na livraria quando ele lá forapedirparaexporfotografias.Emjulhode68,Parisaindafumegavaeolivreiroteve de lhe dizer que não queria mais tralha incendiária.Mais non, o jovemtunisino descreveu-lhe as imagens dos árabes de Belleville com tantahumanidadequeacabouporpermitir.Averdadeéqueosretratosdemoravamosclientes entre as estantes, faziam-nos voltarmais vezes, e, sem contar com asvendidas,asmoldurasnuncaforamretiradas.JaleleddinevivianagaragemmaisarruinadadoQuaideConti,comvistaparaoarcoquecobriaalivraria,epassaraavisitarYankeldesdeentão.Apareciaforadehoras,esganadodefome,comumalforge a tiracolo onde enfiara uma baguete com fatias de beringela e umagarrafa de cerveja choca que insistia em partilhar. Yankel, a quem divertia odesgoverno,despejavaacervejanumvasoemandava-oprocuraroquebebernonichodoMaupassant.Aseguirpunha-oajantarnofundodalivraria,deixava-ofalar da única maneira que sabia, a correr ou a travar só para engolir.Conversavamsobrelivros,conversavamsobreimagens,nemumapalavraalémdisso.Dofotógrafo,o livreironãosabiagrandecoisa:que tinhaoutravidaemCórdova, que fugia de Paris de vez em quando, que gostava das meninaspubescentesqueretratavaàsescondidas.Dolivreiro,orapazsópodiaimaginaretinhapoucopara isso:osotaqueforasteiro,oolhar turvo,amulherque liaporele, era tudo. Ora no dia em que a primeira amante se cansou de ler, Yankelafligiu-se e o jovem percebeu.Não era tanto por ela, outra se arranjaria,mashavia que fazer na livraria e um cego sem bengala não dá conta do recado.Primeiro, Jaleleddine abespinhou-se, depois consolou-o, «era uma puta!», porfimsoubesossegá-loaoprometer-lhesercapazdechegarahoras.E foiassimqueo tunisinocumpriuoprimeirodevários turnosavender livrosea acertarencomendas, enquantoYankelnãovoltavaàs leiturasde alcova.Fê-lo com taldenodoque,desdeentão,olivreiromanteve-osempredereservaparasupriros

intervalosentreasamantes.Naquelaquinta-feira,foiofotógrafoquemosatendeu.Aoreconheceravozdo

casal,Yankelchamou-osdofundoda loja.Erykvinhaàfrenteedava ideiadeestaralicontrariado.Amulhernão;prestesalevantarfervura,Viviennemalsecontinha,notava-se-lhenofalarenoapertodemão.Quandosesentaramaoladodolivreiro,eladirigiu-seaosdoishomens:–Soueuqueestouatornar-meimpaciente,ouoscavalheirosquemeestãoa

fazerperdertempo?–Cruzouapernaeaguardoupelaresposta.Qualquerdelessaberiaoquedizer,masparaYankelnãoeratãodifícil:–Hálivrosmaisfáceisdeescrever.–Eusei–ripostouVivienne.–Oquemefaltadescobriréseaindaoquerem

acabar.Háquasedoismesesquenãofalamumcomooutro.Digam-meoquepretendemdeumavezportodas.Seéparadesistir,prefirosabê-lojá.Oescritorpassouamãopelacara.Nãohárostosfáceis,quemosdesenhasabe-o,sabequeumrostosemsombras

éumrostoesmorecido,mas tambémoéseos lábiosdescolamcomopesodoqueixo ou se encurta a distância dos olhos ao sobrolho. Caso Yankel seatrevesse, tocariano rostodoamigoparadescobriresses sinaisdedesistência;nãofoipreciso,bastou-lheotempoqueelelevouaresponder.–Pararporaqui?Jámeocorreu–disseErykfinalmente.–Estáasertramado.–Oqueéquetefalta?–perguntouVivienne.Erykolhouemvoltaeencolheuosombros.–Urgência–disse.–Oquemetemvalidonavelhiceéaurgência,sóquero

escrevereacabardeescrever,éumachaticeseamortemeapanhacomumlivroameio.Mascomestenão, tudoédiferente.Agoraapressa…Pfff! – abriu asmãosderompante.–Foi-se,esvaneceu-se,ondequerqueaprocure,nãodouporela. – Nesse instante, virou-se para Yankel e pousou-lhe no ombro uma mãofraternal.–Jávistequemiséria,meuirmão?Afinal,nemtumevales.Ninguém quis esmiuçar aquela imagem; pelo contrário,Vivienne lutou para

manter o marido à tona. Conhecia bem a sua angústia, aquilo que o iademorando.Asúltimaspáginasdolivroseriamterríveisdeescrever;quemviudefrenteoinferno,nãopodequererlávoltarnemcontaroqueencontrou.Mashaviaoutrasdoresavisitar,eViviennefezquestãodeorecordar:– Talvez seja o momento de borrares a pintura – disse ela. – Yankel já te

desafiouaacharestempoparaoamor,eaguerraestáàsportasdacidade.Porquenãoagora,antesqueoshtetlardadevez?

Naquele momento, ninguém se quis comprometer, e a verdade é que, nassemanas seguintes, Eryk não escreveu nem uma linha. Mas, ao longo dessesdias,forammuitasasvezesquepassounalivraria.Chegavasozinhoesempreàtarde,quaseàhoradefechar.Depoissentava-secomYankeleligavaogravador.Jaleleddine, que atrasava a saída só para lhes fazer um chá, corriametade doestoredeferroedeixava-osàconversa.Nemsemprecorriabem,aprincípioeradifíciliralémdatimidez,dizeragoraoqueantessecalara,eissodavacabodoescritor.Acabava a insistir com o livreiro,mandava-o repetir e dizer de outramaneira, deixasse-se de ponderações e contasse o que sentira. Yankel lá seescudava nos anos decorridos, mas, sem conseguir ser convincente, só lherestava a verdade. Quando chegaram ao fim, Eryk levou as cassetes para oquartodohoteleouviu-asatéassaberdecor.Sóentãosesentouparaescrever.Acertaaltura,porvoltadomeiodahistória, recordouodesafiodeVivienneecensurou-se:imbecil!,jádeviaestaràespera:seeraparafalardeamor,teriadevoltaraondenãoqueria.FoientãoqueligouaYankeleperguntouse lhe tinhacontadotudo.

NORDESTEDAPOLÓNIA,

11desetembrode1939

A princípio tão longínquos, os sons da guerra foram confundidos com osqueixumesdafloresta,masosfiosdefumoespreitadosdocampanárioacabaramcom a incerteza, podiam contar com ela. Imagine-se porém como a guerra seinstalara.Entreomedoeaprevidência,aspessoasforamdeixandodefalaredecomer;diziamelevavamàbocaoessencial,reservandoaspalavraseafarturapara lidarcomo imprevisível.Aseguir, tornaram-seapressadas; aurgênciadeatravessararua,aurgênciadedeixarumfilhopronto,aurgênciadeadormeceredeacordar.Opostalcoloridoemodorrentodacidadelembravaagoraumfilmeapreto e branco, acelerado, carreiros de gente frenética debaixo de um céucarregadoeprestesadesabar.Ofervedourosóesmoreciapelafé.Quandoissoacontecia, a igreja e a sinagoga enchiam-se com a devoção dasmães.Mas ostemploseramescassosparatantaaflição,ealguémlembrouaoSkibaqueaindahaviaumamãozinha.Magnânimo,ocomendadorvergou-seaoclamordopovoeemprestou-a.Mais:usasse-aquemprecisasse,nãoqueriasaberdecredos.Comoa ordem não tardou, foi num instante devolvida ao Paço doMunicípio. Ficouprotegidanumagaioladeprata,emcujasbarrasseataramcompudorfarripasderoupa e outras relíquias dos mancebos que, a dois dias de distância, jáarriscavamavidapararechaçarosnazis.Dooutroladodacidade,destavezsemembaraço,dezenasderostoscândidos,moldurasgravadascomnomesderapaz,tudoexpostoaospésdaVirgem,entrevelaseraminhosdeurze.Com o passar das horas, o medo assentou de vez e as ruas esvaziaram-se.

Sobraramapenasdoisvultos,umcasalacorreraopédoscemitérioseprestesadesaparecernaorladafloresta.YankeleShionkaestavamtãoangustiadoscomoosoutros,mas,aocontráriodestes,preferiramresguardar-seentreospinheiros.Poucopassavadomeio-dia,enenhumdosjovensselembravadeumcalortãoopressivo.Assimquechegaramaolago,Shionkanãofoiàprocuradassombras,preferiupuxaroamigoatéumapedraqueescaldavaesentou-oaseulado.De

repente,levantou-seetirouovestidopelacabeça,ficandocompletamentenua.Aseguir tomou consciência do seu corpo, viu-o pelos olhos cegos do rapaz quetinha à frente e excitou-se. Foi então que surgiu a frustração, sentiu-se etérea,invisível,odioua imagemvãque lheoferecia:oconjunto telúrico,a folhagemcrespadecabelosnegroseimensos,aspernaseosbraçoslongos,osmúsculosetendõescomoasestriasdostroncosouosnósdosramos;eraumaárvoreaumtempodespudoradaeinocente.Entãomergulhoucomestrondo.Yankelsentiuaáguafrianorostoenopeito.Depoisteveacertezadoquetinhaafazeredespiu-secomoela.Desprezavaavergonhadeestarnu;cumpria-a,masnãoaconcebia.Caminhoupelamargematéospésreconheceremoamontoadodeseixosqueolagoempurraracontraafraga.Subiucomcautelaemergulhoucomaconfiançade quem já o fizeramuitas vezes. Shionka nadou até ele. Os corpos estavamagoramuitopróximos,tocando-seaoacasonumbailadodesregradoaosabordaágua.Eladeu-lheamãoeforamaofundo.Aseguir,nadaramapar,voltaramatocar-se e a empurrar-se. Depois, a explosão de bolhas, talvez fosse do riso;subiramofegantesàsuperfície,e,sim,riam-se.Aindaoutromergulho,eoutro.Quando finalmente saíram,Shionka conduziu-o até ao tapete de erva pisada àbeiradeumamieiro.Deitaram-seladoalado,deixandoosbraçosencostadoseoscorposhúmidosàchapadosol.Sabiamoqueiriaacontecercasoumdelessevirasse.

PARIS,2001

Viviennecalou-se,voltouatráserepetiualeiturasóparasi.Osolhoscorreramas últimas linhas com rapidez, parecia que saltavam as palavras, pareciadesprezo.Quandochegouaofim,atirouasfolhasparacimadamesaetiroudomaço um cigarro que não acendeu. Ao invés, ficou a olhar para ele, rodou-oentre os dedos, até que, num gesto intempestivo, o partiu em dois sobre ocinzeiro:–Umdesperdício. –Tirou outro cigarro e desta vez acendeu-o, antes de se

virarparaomarido:–Foiparaistoquechamasteoteuamigo?Lamento,éumdesperdício,nãopresta.Estetextoesbanjatudo.Eryknãodissenada,nemsequerolhouparaela.Yankel recostou-seesorriu

paraoarantesdesugerir:–Éóbvioquenosvaidizercomofazer.–Jáofiz,lembra-se?–disseVivienne.–Ah,naturalmente…–concluiuo livreiro,divertido.–Édaminhavozque

estamosafalar.Querqueeumedispaàsuafrente,certo?–Nãofaçademimtola,tinhamdezasseisanos!Estavamdeitadosedespidose

encostados um ao outro. Não me interessa o tempo que levaram a cozinharaquele momento, só sei que no livro isso se arrasta por oito capítulos. Édemasiadoparaacabarnumasugestão.Erykdeu-lhevoz,nãodeu?Use-a!Yankel ouviu e ficou calado. Nem lhe ocorreu revelar que já tinha contado

tudo;seErykoomitira,eraporqueaindalhedoía.

*EramuitotardequandosedespediramdeYankel.Parischeiravaintensamente

achuvaeVivienne,quegostavadecaminharemeditaraolharparaochão,nãosedistraiucomasfachadasdeSaint-Germain-des-Présprojetadasaquiealinaspoças da rua. Eryk dera-lhe o braço, mas era ela a carregar o peso dos dois.

Pareceu-lheestranho,haviaqualquercoisana formacomoseagarravam,maisdo que um marido embriagado a chapinhar os pés na água do passeio e asalpicar-lheasmeiasdevidro.QuandoErykdissequequeriabeberchampagne,Viviennelimitou-seadobraraesquinaedesceraRueSaint-Benoîtsemnuncaoapressar.Porém,malchegaramaoFlore,oescritorfezumsinalcomacabeçaemandou-aseguiremfrente.Durantemuitotempo,nenhumdelesfalou.Aochegaraofimdaavenida,Erykconduziu-apelaPontedaConcórdia,mas

parouameioparadescansar.Encostou-seàbalaustrada,apoiandooscotovelos,eficouaolharparaoSena.Vivienneaproximou-se,masviroucostasaorio.Sabiaque o marido ia falar, conseguia ouvi-lo antes do tempo, julgou-se capaz deprever tudo, até o tom da acusação. Por isso irritou-se quando Eryk preferiucomeçarpelador:–Naprimeiravezqueaquiestivemosoriocorriaaocontrário.–Foiaseguiràguerra.Pariscorriaaocontrário–comentouVivienne.Então

teveacertezadequenãoexistianostalgiaeissosossegou-a.–Nãofaziaideiadoquefazercontigo–disseele.–Nuncafizeste.Esempretedivertistecomisso.Umapersonagemdecarnee

ossoàguardadograndePaulLestrange,prontaaserinventadatodososdias.–Disparate,atéasmulheresdosmeuslivrosaprendemafalarporsi.–Eusei–declarouela.–Mas,nofim,cortamospulsosoumatamosmaridos.

Éissoquemeespera?–Sempresoubemosqueistoiaacabarmal,nãoesperoatuaclemência.Sónão

podia imaginarqueusassesum livroparameabater.A ironiamais trágicaemcinquentaanosdecasamento.–Parece-me justo.Foiesseo tempoque levasteadesenterraroYankel,não

foi? Agora olha para ti, vê o que andaste a fazer ao longo de meio século.Construísteummundoàtuamedida,umlocaldoentio,oúnicoondeéscapazdeescreverosteuslivros.Despejastudoparalá,possosereu,podeseroteuamigodeinfância,nãointeressa,temostodosumlugarreservadojuntoàspersonagense às intrigas que inventas. É o ideal para escreveres a nossa história como teconvém.–Aí,calou-seporinstantes.Apoucosmetros,namargemdoSena,umcasaldenamoradosinterrompeuumbeijoporcausadogendarmequepassavaaassobiar.Aseguir,osrisinhos,oabraçoretomadoenovamenteosomdaságuasque passavam debaixo da ponte. Quando falou de novo, Vivienne olhou paraEryk,masfoisóparaoferircomosorriso:–Deu-tejeitofazeres-meacreditarqueoYankelmorreunoshtetl?Eentão?,oescritoréstu;custou-tetantocomodespacharesoheróiameiodeumlivro.

–MateioYankel,eentão?DesdesemprequeoHomemofazporciúme.Oulivra-sedousurpador,ouliberta-sedoobjetodoamor.Otelofê-lo,eaindahojelhechamamheróitrágico.De repente, a ponte desapareceu no meio de um nevoeiro cerrado, e Eryk

descolou-se domurete só para a encararmais de perto. Ali, ameio das duasmargens,umpostaldesbotadodeParis:oescritor,amulhereocandeeiroderua,tudoatrásdeumvidrofosco.Depois,continuouaolhá-lacomoseolhaparaumdesenho, um retrato acabado de pintar; focou os detalhes e os contrastes,procurouimprecisões,dedadasnatela,cadatraçoquealiiaacrescentandodesdeostemposdegaroto.Haviatantodedestrutivonaquiloqueeledisseaseguir:–Arranquei-te daquele chiqueiro, lembras-te? Fui eu quem te foi buscar ao

fogo.Ninguémmaisqueimouasmãospor tuacausa.Olhapara tihoje–dissecom um sorriso apático. – Uma flâneuse…Nada sobra da Shionka, o animalselvagemqueaquichegouabalbuciarasprimeiraspalavras.Hámaisdemimemti do que é teu por natureza. O resto? O resto foi Paris que fez sozinha.Transformou-tenumafrancesa,comasmerdastodasqueasfrancesastêm.Etuadoraste. Casei-me com uma mulher apaixonada pelo meu melhor amigo, tucasaste-tecomumestafermo.Eentão?Eusabia-o,tutambém.Foiaúnicavezque nos fodemos honestamente. Mas agora estás velha, Vivienne, que podesquerernestaaltura?Magoar-me?Avingançanãoéamelhorescolhaparaacabarumlivro.–Talveznão,maséoquetenho–afirmouela.Nesseinstante,chegou-seao

candeeiroeabriuabolsaHermèsparaprocurarqualquercoisa.Agarrouoestojoeretirouobatom,pôsoespelhoàfrentedorostoeretocouoslábios.Podiaservinho envelhecido, sangue venoso, ou outra cor cansada e devassa, masprecisavadabocaassimparadizeraquilo:–Quisesteo teu livro,o teuúltimolivro, precisaste tão desesperadamente de Yankel para o escrever que o fostebuscaraosmortos.Malditosejas,eeu?Nãoteocorreuquetalvezpreferissenãosaber que desperdicei a vida por causa de uma mentira? Mas acredita que oYankelfoisempreomeuamante,nuncamedeiteicomoutrohomem,cadavezqueteabriaspernasegriteideprazerfuitãocegacomoele;sóassimoviaemeextasiava.Agora chega, ganhei o direito a ser rancorosa. E tu, do alto da tuaprosápia,nem issopercebeste; foste ingénuo, foste incautoeemprestaste-lheavoz.Tempaciência,Eryk,étarde,nãoseparaumlivroameio.Vaisassistirnaprimeira fila ao teu ultraje, ouvir cada história que ele tem para contar; vaissurpreender-meemflagrante,enroladacomoteumelhoramigo,eescreveroque

vêscomosefossestuadeleitar-me.Ali,ondeestavam,perdera-seocheiroachuva.Aopartir,usaramomesmopasseiodaponteeobraçoumdooutro.Quando

voltaramafalar,jáestavamàportadoCrillon.–Vaiscontar-lhe?–perguntouEryk.Elasorriuaoconcierge,antesdeolharparaomaridocompiedade.

NORDESTEDAPOLÓNIA,11desetembrode1939

[…]Shionkaconduziu-oatéao tapetedeervapisadaàbeiradeumamieiro.Deitaram-seladoalado,deixandoosbraçosencostadoseoscorposhúmidosàchapadosol.Sabiamoqueiriaacontecercasoumdelessevirasse.Virei-meeu.Agora,queestoudejoelhosaoseulado,sento-menoscalcanhareseinclino-

mesobreeladispostoasaberoquemefalta.Alguémdissequenãoseimaginaàscegas,masissoéignorância.Aserverdade,comopoderiahaversurpresa?Asurpresa deste instante em que lhe toco nos pés, em que os comparo a tudoaquiloqueeuseidepés,osmeussemqualquermistério,osdeRasiaporteremsidoosprimeirosbrinquedos.JáosdeShionkasãomaisestreitos,maisduros,parecemfeitosdepau.Porbaixoapeleégrossa,deandarsempredescalça,elembratecidoamachucado,aindaesponjosoporcausadaáguadolago.Mexo-lhenosdedosumaum,sãocompridos,asunhasmalcortadas,cheiasdefalhas,sãocomoasminhas,parecemcascasdurascrescidasnapele.Piorsóoscabelosdo corpo, os meus são asquerosos, a maior desilusão quando me toco; masShionkanãoostem,ouaindanãoosencontreiejávoupelojoelho.Agoraquedescubroosprimeirossulcosdegordura,usoasmãosabertasparalheapertarascoxas.Abranduratornou-seinsuportável,porissofaço-ocomforça.Apeleainda não secou, mas a água ali é mais viscosa e estaco com receio deescorregar. Ergo os braços por instinto, estou confuso pois há mais umasurpresa,asurpresadademora,otempocomquerespondoàpressadesvairadadomeucorpo comestas relutâncias.Então elaafastaaspernas e eu repitoogesto,destavezsócomumamão.Eécomapalmadamãoquelhesobrevooaperna inteira quase sem a tocar. Mas toco, e ela estremece. Talvez a tenhaouvido,talvezelatenhafalado,masqueinteressanestaaltura?Derepente,asmãosjánãomechegam,afundoabocaeonarizondecalhar.Calhaameio,a

doisdedosdascostelasdeShionka,eponho-meàprocuradetudooqueédoceourepulsivo.Éabuscatresloucadapelosgostoseodores,aquiloaquesabeecheiraumcorpodemulhernumleitodeterraencharcada:ocheirodasaliva,dosuor,osaboralodo,ouocabelofrioaqueaderiucadaaromadafloresta.Mexemo-nos agora de uma forma tão convulsa que acabamos à beira de

água, eupor baixo, ela sentadanomeupescoço, prensa-mea cabeça comascoxas e move-se devagar, uma dança espiralada, alagadiça, embalada pelasancas.Éaíquemeagarraocabeloeseempurraparabaixo,escorregadia;deslizae

para,deslizaepara.Eparamesmo,malmesente.Poruminstante,pareçodentrodela,masse foréquasenada,umdescuido,

umamaldadeacorrer,Shionkaeleva-secomosetivessetocadonumabrasa.Afinal,talveznãotanto,ei-ladenovo,primeirotitubeante,unspelosgrossos

flutuam agora por ali a encharcar tudo, até que os sinto no umbigo como aspatasgeladasdeumaaranha.Pormomentos,apenasisto.Éentãoquemeafundadentrodela.Golpeia-seàprimeiracomosetivessea

certezade tudo.ÉShionka,pois.Molhada,morna,bestial,abrandaagorapornão crer naquilo que sente. De repente, as unhas lascadas lanham-me osombros,eela,ríspidaeprimitiva,esfrega-secomtantaraivaqueparecequererqueafiraatéàalma.Seassimé,trespasso-lhacomamesmaselvajariaeenchoaflorestadesonsdelutasemquartel.E,semsaber,jáestouporcima;noescuro,procuro-lheabocacomaminha,

falhopormuito,beijoaoacaso,beijo-acomosdentes,alimesmo,nopescoço,no queixo e então nos lábios. Quando o cuspome sabe a sangue, paro paradescobriroqueé istoquenosestáaacontecer.OsoproaflitodeShionkaéomesmoquemeencheeesvaziaopeito,oúnicosinaldevidaentreasárvores.Depois, tudo recomeça, mas desta vez a medo, uma cadência lenta, aindaestupefacta, dando-me tempo de voltar a mim. Uso a pele e o nariz pararecordar osmomentos passados com Shionka,muito se perdeu pelo caminho,masaquiloque ficarestitui-seaomenosumaveznavidaeesteéomomento:reconheçoaquelesgestosqueumdiatraçounaminhapele;reencontroocheirode Shionka demanhã, o cheiro de Shionka ao ir dormir, o cheiro de Shionkaquandocorreaomeuencontro;precisodelestodosparaqueistosignifiquemaisdoqueagora.Oh,HaShem!, sóquero ser umabraçoadebater-se à beiradeágua;e,seistoéaminhavida,poisqueaespremajubilosonavidadeShionka.

NORDESTEDAPOLÓNIA,13desetembrode1939

Quandoamosca levantouvooda janela, jáYankeldespertaracomosomdavibração. Era tão ténue que não soube de onde vinha e por isso levantou-se.Encostou a orelha a uma parede, mas não sentiu nada. A seguir, afastou ocortinado,pressionouavidraçacomaspontasdosdedoseentão,sim,otremordeixou de se ouvir. Quando abriu a janela, a madrugada arrefeceu o quarto,enquantotudosetornavamaisdistinto:alguresnafloresta,haviaqualquercoisaaaproximar-se,umacoisainominável,umrangersurdoquesóagoracomeçavaa agitar o sono dos gansos. Sem imaginar o que fosse,Yankel lembrou-se deShionka,sozinhacomamãenomeiodamata,esentiumedopelaprimeiravez.Passouumahora,Rasiaacordoucomofrioelevantou-separaircozerosbolos.Estranhouverofilhoapé,debruçadoàjanela,estranhouosgrasnidosaflitosquevinhamdo barraco.A luz pareceu-lhe daLua e foi ter comYankel para ter acerteza: «O que é?», perguntou, como se os olhos cegos do filho pudessemalcançarmais longe. Ele não disse nada, ficou assim algum tempo,mas, malescutou os homens, soube quem estava a chegar. A língua era diferente, umiídichelapidado,mastãohostilcomoumgritodeguerra.Sóentãocontouàmãe,abraçou-a e passou-lhe os dedos ao longo do cabelo como fazia para aadormecer.Rasia deu-lheumbeijo, libertou-sedele e olhou à volta sem saberpara onde apontar. Em cima do escabelo, com a boca escancarada e olhos demorto,opaideYankeldormiacomoumpalerma.Semmaisnadaparafazer,elacorreu a cortina, puxou o filho para dentro e sentaram-se aos pés da cama.Nenhumselevantouquandoosalemãeslhespassaramàporta.

*Kasia,ameninaquesóviabichos,pôs-seàjanelaeolhouparabaixo.Nopiso

decimadomanicómio,entreasgradesdeferro,viuoirmãonojardim,depé,aolhar para o Sol.O som vinha dos cemitérios, e ela procurou imaginar o queseria.Colou-semaisaovidro,masatíliatapava-lheofimdarua.Deuporsiaestremecerenquantodiscerniaotrabalhardosmotoreseoscânticosdoshomens.Quando os camiões desfilaram à frente domanicómio, Florian não deixou deolhar para o céu, e Kasia viu os soldados de relance por baixo dos oleados.Estranhouaspalavrasbizarrasdaqueleshinosdeguerra,masnãodistinguiuosvisitantesdascriaturasquesempreviraarastejaràsuavolta.

*Tadeuszacordoucomofiodeluzapontadoemcheioaumolho.Sentiuorosto

pegajoso,tinhaadormecidoemcimadaprópriababaeencharcadoaalmofada.Ao seu lado,Apolónia torcia-se num sono alvoroçado, enrolando a camisa dedormirnaspregasdabarriga.Omaridoolhouparaela,descomposta,eacalorou-se.Ponderouatéacordá-la–seusassedemeiguice,talveznemfossepreciso–,mas,emvezdisso,arrotoueocheiroaretretelembrou-odanoiteanterioredasvodkas que emborcara na casa de Roman Skiba. Ao ouvir o som distante devozesacantar,deduziuqueoutrosohouvessemimitadoe,depoisdeumsorrisoconformado,preferiuvoltaraadormecer.Numinstante,encontrou-senovamentenograndesalãodeSkiba,destavezrepletodecavalheirosfrenéticosaosberros.A certa altura, vindadovestíbulo,PaniKrysia pareceu flutuar emdireção aoshomens,acabandopordesaparecernomeiodeles.Ogrupoapertou-seemvoltadabeataeviram-secalçasecasacosavoar.Agritariaaumentoueopresidenteda Câmara, louco de desejo, juntou-se aos outros. Infelizmente, quanto maisTadeuszsaltava,maiselesseagigantavameelediminuía.Afrustraçãopareciasemremédio,quandovislumbrounomeiodojardimdepernasumseiodepeletransparente. «Krysia!», gritou, enquanto irrompia ao seu encontro, agora semqualqueresforço.Porém,assimque lhe tocou,elavirou-see,para suaaflição,mostrou-lheumrostosereno:eraApolónia!Nomeiodetantosgritos,amulherquissossegá-lo:«Tadeusz…Tadeusz.»Acordou desorientado. Apolónia estava à janela e chamava-o sem nunca

desviaroolhardequalquercoisa:«Tadeusz…»,insistiu.Eleouviuoclamorquevinhadaruaelevantou-separaverificar.Dali,sópodiaverumcantodapraça,obastanteparasaberquemacabaradechegar.

*Acortinaqueserviadebiomboforaestampadacomoumálbumdehistórias

paracrianças:daesquerdaparaadireita,ojudeuzinhodabarbacompridasurgiamontadonumburrocomolhosdepessoa;aseguir,ojudeuzinhoàportadeumcasebrepasmava-separaameninaquejávestiadenoiva;maisaolado,ocasalpartilhavaoburroacaminhodealgumsítio;enofim,rodeadosporrapazinhosde barba que brincavam, davam a mão um ao outro. Cortina fora, o padrãorepetia-se embandas separadasporumpalmo, eTauba, agachadaemcimadabacia,liaereliaaquelahistóriaconhecidaenquantoselavavaporbaixo.Osomdochapiscofoiabafadopelasvozesdaruaeelalimpou-seàpressa.Semtempopara escolher roupa, vestiu a camisadedormir quepuserapara lavar e correuparaa janela, recuandoassimqueosviu:paradoàsombradasinagoga,estavaum descapotável militar com o motor ainda a trabalhar. Lá dentro, os quatrosoldadosalemãesagrediamemvozaltaosilênciodoVigele.Nãoseviaumsójudeunasruelasnemnospátios,masTaubaacreditouque,talcomoela,muitasfamílias espreitavampor entre as frinchasdasportadas.Foi entãoqueumdossoldados saiu do carro. Era umhomem alto, escanhoado, parecia engraxado eprontoparaaparada,ninguémdiriaqueacabaradechegardomeiodaguerraeda floresta.Caminhouatéaocentrodo terreiroparamelhorverosedifíciose,rodando sobre si, vasculhou as fachadas dali mesmo. Demorou-se em cadajanela, parecendo avaliar omedo escondido atrás das cortinas. Perante aqueleolhar ciente, Tauba encolheu-se e tentou compreendê-lo. Porém, não lheencontroucoisaalguma,nemsequerumaameaça,efoiissoqueaassustou.Semnuncatirarosolhosdasjanelas,oalemãodirigiu-seatéàsinagoga.Aummetrodedistânciadoportal,viroucostasatudoeurinoucontraotemplo.Pouco depois, os homens partiram, o terreiro ficou vazio, os judeus

continuaram à janela e o Vigele, não fosse aquela mancha, voltaria a ser omesmo.

PARIS,1dejaneirode2002

AnotíciadamortedePaulLestrange,oescritorbelgaquenasceranaPolónia,fezchamadadecapanoLeMondedoprimeirodiadoano.Abafadoentreumaimagem efusiva de Paris e o símbolo do Euro acabado de estrear, o retratoperfiladodoautoreumalegenda:«1923–2001».Umpoucoportodoomundo,o destaque foi moderado, alguns artigos à pressa no fecho das redações,encómios recolhidos por telefone junto de autores consagrados, maçadas deúltimahoraemnoitederéveillon.Mastudomudoumalsesoubeaqueledetalhe:Eryk fora encontrado na igreja du Saint-Esprit. Sentado na fila da frente, empleno presbitério, o único sinal de morte pairava nos olhos baços. Depois depassarnonecrotério,Viviennecismariamuitotempocomosorrisoquelheviraantes de o cobrir com a mortalha. Foram precisos dois dias para apurar averdade, tempo mais do que necessário para motivar intrigas no rosto dostablóides. Confirmado o suicídio, alastrou a frustração e o nome do escritorregressouaopédepágina.Masaindahaviaoslivroseachamareacendida.Nosdiasque se seguiram, asmontrasdas livrarias encheram-sedePaulLestrange,reedições apressadas pela febre do momento, esquinas dobradas por filas deleitores.Morto o autor, o mundo reparou em Vivienne. Acossada dia e noite, a

memória viva de Lestrange refugiou-se na suite do Crillon e avisou que nãoestava para ninguém, não queria saber de homenagens nem pensar ementrevistas.E,sim,jávasculharaasgavetas,nãohaviaoriginais!Sóaofimdeumasemanasentiuforçasparaseatrever.Saiudohotel,játinhao

táxiàespera.AochegaràRuedeBuci,sentiureceiooutravez.Yankelesperava-a lá em cima. Ela telefonara-lhe uma hora antes a dizer que o ia visitar,masagora,queguardavaotrocodaviagem,pensouemdesistir,voltaraoCrillon,sairde Paris. Então, passou a mão pelo cabelo, ajeitando-o à frente da portaenvidraçadadoprédio.Sorriu. Indiferenteao tempoeàcegueira,continuavaaarranjar-sesóparaele.Depoistocouàcampainhaesubiuasescadasdesistindoacada degrau. Mas chegou. E, assim que o fez, viu a porta do apartamento

escancarada.Encostadaàombreira,MademoiselleFosspareceuquelheiacuspiremcima.«Elejantaahoras»,foicomoacumprimentouantesdesepôraandar.Vivienneficouaolhá-laatéaofimdocorredor,ganhandotempo,esóentrounovestíbuloquandoaviudesaparecer.Nãoestranhouacortesiadaporteiraaoter-lhe apagado as luzes, e chegou a admitir que talvez fosse preferível. Napenumbra,aorquestrados relógiosdeparedepareciamaisdistinta,e,contraaclaridade da janela,Vivienne encontrou o perfil que procurava.Yankel não semexeu,nãoaconvidouaaproximar-se,não lheofereceuumacadeira,maselaaproximou-se, arrastou uma cadeira e sentou-se à sua frente. Ninguém dissenada,ninguémsoubeporondecomeçar.Atéque,aofimdedezminutos,Yankelergueuorosto:–OArmandmorreu.Vivienne vacilou. Numa frase, aquele homemmostrava-lhe asmãos vazias,

confessava-lhe já não ter nada. E, com a sala às escuras, tudo lhe pareceuinsuportável,atéodiálogoqueseseguiu.–Nosúltimosdias,tenho-meperguntadoseterásidomelhorassim–disseela.Olivreiroergueuorosto;jáestavamafalardeEryk.–Nãoserácedoparaperguntas?–questionoumaisparasimesmo.Novomomentodesilêncio.– Ao menos não foi surpreendente – declarou ela, passado algum tempo.

Então,puxouofumodocigarrodevagar,masexpulsou-ocomosetivessepressa.–Quemjulgaqueeraomortodoprimeirocapítulo?Quempensaqueeraaquelapersonagem encontrada na igreja e que Eryk não sabia se chegava ao fim dolivro?–Ofrenesimdurou-lhepouco,numinstanteestavaabsortacomoantes.–Cinquenta anos é muito tempo, são muitos livros. Vi-o vezes sem conta adisfarçar-senestaounaquelapersonagemsóparapoderimiscuir-senashistóriasque escrevia. E sabe porquê? Porque adorava ensaiar a própria vida nosromances.Adiferençaéque,destavez,ofezcomamorte;elevouascoisasatéaofim.Yankelacenoudeformaimperceptívelemanteve-secaladoatéesquecertodas

asperguntas.Sobrou-lheapenasuma,eessafoicapazdeafazersorrir:–Eagora?Temideiadoquesefazcommeiolivro?Vivienneinclinou-separaafrentenacadeira.Quandofalou,osseusrostosnão

distavammaisdeumpalmo:– Meio livro? Não seja inocente. Há mais de vinte anos que Eryk o tem

escrito.

NORDESTEDAPOLÓNIA,1936

(ou1937nãotenhoacerteza,nãoéimportanteV.queencaixeondelheapetecer)

Mal se livrou da sombra dos pinheiros,Yankel descalçou-se.Deumais dois

passos e, assim que sentiu a terra húmida, soltou os suspensórios e quasetropeçounas calças.Entãopisou-as para se livrar delas, aomesmo tempoqueatiravaparalongeacamisola.Estavanuesóparouquandoolagolhedeupelosjoelhos.Atrásdesi,Erykdesabotoavaaúltimabotasentadonomeiodochão.Acaboudesedespircomrelutância,anudezpesava-lhetantoquelhecustoualevantareprotelouomaisquepôde;olhouàvolta,dobrouaroupacomonuncafazia em casa e tornou a olhar.Nomomento em que se ergueu, descobriu nomeiodasárvoresumarbustoclandestinoquereconheceuàprimeira:agaforinadeShionka oculta nomeio dos fetos, e só podia estar a olhar para ele.Nesseinstante, resolveunãodizernada,preferia sentirnapeledespidaaqueleprazerinefáveldeserespiadoporela.E,comoissofoimaisfortedoqueavergonha,avançoudespudoradamenteatéaoamigo,mesmoque,aoseulado,soubessequeperdia: Yankel chegara primeiro a homem, eramais alto, tinha o corpo duro,tisnado, hirsuto onde devia; nada como Eryk, embebido em leite, o rabinhoenrubescidosóporterestadosentado,osjoelhoscolados,ascoxasdemenina,oavançotemerosodentrodeágua,easmãosmolhadasnosombrosadarcoragem.Comoparaoincentivar,oamigodeuumpassoemfrenteevirou-separaele.Sóque,aofazê-lo,tambémseexpôsàrapariga.Erykestremeceu,aimagemnãolheeranova,mas,cientedequemtinhaatrás,

viuYankelcomosolhosdeShionkaetomoudelaoardorpeloquevia.Chocadocomoprópriocoração,achou-seridículo.Piordoqueisso:sentiuumdesprezoimpiedoso pelo rapazinho de braços cruzados que se interpunha entre aqueles

corposesplêndidos.AnegaçãoOconflitodurou-lheapenasumfogacho,nãomaisdoqueYankel

precisoupara sevirar emergulhar.OSol caírapara ládas árvores, eo jovemjudeu nadava num lago cada vez mais escuro. Passado algum tempo, Erykdespertou e gritou-lhe «mais à esquerda!», estava a afastar-se. Assim queregressou,Yankel ficoupelamargem,caminhouemcírculosàvoltadoamigo,varrendoolagocomospésparalevantarcortinasdeáguaeencharcartudo.Acadagolpegelado,Erykmal reagia,parecendoperder-senocorpoque tinhaàfrente.ResguardadonacegueiradeYankel,olhou-osemrestriçõesepensounoque lhe apeteceu. Por isso saiu do lugar e atravessou-se à sua frente como sefosse sem querer. Ao chocarem, os corpos desequilibraram-se e caíramcontrastantesumporcimadooutro.Quandoselevantaram,nãohaviaembaraço.Yankeldeitou-seaosol,Erykescondeu-senolago.E, ainda no meio das árvores, Shionka persistia. Nunca confessou que ali

estivera,nemEryklhecontouqueatinhavisto.

PARIS,2002

Vivienne pousou as folhas e guardou-as na pasta. Depois ficou à espera,Yankelquefalasse.–Coisasdegaroto–disseeleasimesmo.–Coisasdegaroto…–assentiuelavagamente.–Eoquelhesfaço?–OEryknuncamedissequeShionkaestavalá.–Pelosvistosnãodisseaninguém.Seaceitarcontinuarafazeristo,arrisca-se

asersurpreendidomaisvezes.O livreiro recostou-see inclinouacabeçapara trás.Ocheirodopapeldesta

vez enjoava-o.A editora descrevera-lhe os caixotes de cartão que encostara àparede, uns por cima dos outros, inchados, a transbordar de pastas,maços deenvelopes, cadernos amarrados com elásticos, fotografias, recortes, embrulhosrebentados com papéis à vista e rolos de máquina de escrever, tudo o que oescritoracumularadurantedécadasnacasadossubúrbiosdeBruxelas.Viviennemandara-osvirhaviaummês,massóagoraosempilharaali,nanovamorada.Jáliberta das extravagâncias do marido, abandonara o Crillon e instalara-se nopequenoapartamentonoMarais,nãomuitolongedaLivrariaThibault,oúltimoque ocupara antes de semudar para a Bélgica. Eryk nunca se desfizera dele,utilizando-o sempre que passava por Paris, desde que fosse sem ela.Viviennenunca o confrontara por causa disso, mas poder sobreviver-lhe naquela água-furtadaeraagoraumdeleiteirresistível.Yankel,quealiestavapelaprimeiravez,fincaraasmãosnosbraçosdosofá,

parecendopoucoàvontade.–Quantoscaixotesjáviu?–quiselesaber.–Três.Até agora, estahistóriano lagodeve ser aúnica coisaquepodemos

usar.Orestosãofotografias,cartasdaPolónia,tratodissomaistarde.Tambémencontreiasatasdojulgamentoaseguiràguerra.Querquelhasleia?– Para quê? – perguntou Yankel, sem querer tempo para pensar. – Prefiro

acabaristodepressa,seforpossível.

–Nãoseiluda,oseuamigonãonosfacilitouavida.Olivroestáescondidonomeiodestapapelada.Omais certoéqueovamosdescobrindoaospoucos,damesmaformaquedemoscomoqueacabeidelheler.–Tenhopenadesi,terádeofazersozinha.– Não se preocupe. Enquanto acreditei que valia a pena, passei anos a

vasculharamentedele.Nãodevesermuitodiferentederevolverunscaixotesàprocuradeumahistóriacomsentido.–Aodizeristo,reparouqueYankellevaraamão ao pescoço nummovimento repentino, aomesmo tempo que franzia orosto.–Sente-sebem?Olivreiroabanoulentamenteacabeça,oquetantopodiaserumnãocomoum

gestoparaaliviarador.–Duraháunsdias–disseele.–Maspassarápido,umhomemhabitua-se.–

Então,desejosodemudardeassunto,decidiuprovocá-la:–Nãoleveamal,mas,mesmoàsescuras,aimagemdedoisvelhossentadosnumarmazémdecaixotesatentarcolaraspáginasdeumlivroparece-meestúpida.– O quadro é estranho, eu sei, mas foi assim que Eryk o imaginou. Fica

espantado? Não fique, é exatamente como ele quis: nós os dois, perdidos nomeio da sua tralha, e um livro aos bocados espalhado por várias caixas.Diabólico,hem?Nãooouveariraínoescuro?– Não me diga que foi para ser maquiavélico que o Eryk veio ter comigo

passadostantosanos.–Oh,não,pelomenosaprincípio–disseela, jovial.Aseguir,olhouparao

cigarroquetinhaentreosdedosedecidiusacudirofumo:–OErykcomeçouolivro pouco depois de nos mudarmos para a Bélgica. Sabe quanto tempo lhelevou a escrevê-lo? Vinte e dois anos. Para se contar uma história, é umaeternidade, não concorda? E, mesmo assim, durante todo esse tempo, nuncadesconfiei, ele sóme falou do livro quando o terminou.Hoje, imagino que otenha escritono intervalodosoutros romances; ou, se calhar, foi ao contrário,nãosei.Averdadeéque,quandoviuoresultado,sedetestou.Aindafaltavafalardecertascoisas,coisasquesóoamigodeinfânciapoderiasaber.Etalvezfosseporissoquenuncamemostrouoqueescreveu.Orestojásabe,demorououtrosvinteanosaganharcoragemparavirterconsigo.–Nãolhevaleudemuito.Viviennelevantou-selentamentedacadeira.Aseguir,caminhouatéàparedee

pôs-seaolharparaos relógioseparaospássarosmecânicos.Traziaosbraçoscruzados,maslevouocigarroàbocaesoprouumrolodefumopara intoxicarumcuco.Depois,apagouocigarronumvasoe,sempredecostasparaYankel,

mediuaspalavrasparanãodizermaisdoqueeracapaznaquelaaltura:–Não,nãovaleu;oErykcaiuapiquedesdeovossoreencontro.Tudooque

escreveuapartirdaísóserviuparaodestroçar.Emparte,compreendo-o,sabe?Há memórias execráveis. A ideia com que fico é a de que o Eryk não quisregressaràqueledesastresemoterasiporperto.–Estáasugerirquefoiissoqueomatou?–Nadacomolerolivroparaosabermos.–Temosseusriscos–sorriuYankel.–Háqueserhumilde, reconhecerque

não fazemos ideia do que está nestas pastas, nestes cadernos, nos envelopes.Ninguémpodegarantirqueistoacabasemmaisvítimas.Vivienne procurou outro cigarro. Assim que riscou o fósforo, hipnotizou-se

comachama.–Nadanosobrigaafazê-lo,sabe?Podemossempreserdrásticos–declarou

ela,lançandoumolharsardónico,antesaoscaixotes,depoisaofósforoaceso.–Masnãoqueremosisso,poisnão?Apagouachamacomumsopro.–Pergunte-menofim–sugeriuolivreiro.–Parajá,basta-mesabercomovai

serdaquiparaafrente.– Sóme ocorre continuar a despejarmais caixotes. Ler tudo o que veio da

Bélgicaecompararcomoqueeleescreveujáaoseulado.Depois,équeimarapalhaearrumaroqueprestarpelaordemqueentendermos.

NORDESTEDAPOLÓNIA,25desetembrode1939

Dozedias.Nemduassemanasosalemãesficaramporali.Saírampelaestradadaflorestaporondehaviamentrado,destavezsemcânticos,despedindo-sedeumacidadeembasbacada.Doze horas. Nem um dia os russos demoraram a aparecer. Chegaram pela

mesma estrada da floresta e, contas feitas, haviam de se ter cruzado com osalemães.Masnãoseviammarcasdecombate,roupasmanchadasdesangueouferidosàscostas, fazendosuporqueambasascolunasestivessemcombinadas.Alémdisso,aocontráriodastropasquerendiam,oscomunistasvinhamsujoseaolharparaasbotas.Lentamente,ocírculoperfeitosaiudecasa.Primeiro,apareceramosjudeus.O

rabino foi-lhes dizendo que, se os russos se instalassem, os nazis já nãovoltariam. Mesmo assim, por não quererem celebrar antes de tempo,encostaram-seàsparedesparaverpassarastropasepreferiramaguardar.Entretanto,os soldadosbolcheviquesconfluíramnoLargodoMercadopara,

alichegados,quasedesfalecerememcimadolajedo.Deixaram-seestarsentadosoudeitados nasmochilas, comas armas caídas ao lado, semvontadede dizerfosse o que fosse. Os camiões surgiram pouco depois e a praça tresandou aogasóleomal queimado.Nessa altura, já com os primeiros cristãos, a populaçaacercou-se e misturou-se com os militares. Não tardou a que chegassem asmulherescarregadascomcestosdepãoequeijofumado.Logoaseguir,avodkae,comela,aressurreiçãodosrussos.Derepente,jáseouviamasgargalhadaseumalínguaquepoucosconheciam;depois,eraaKalinkacantadaedançadanaspequenasclareirasqueseabriamumpoucoportodaapraça.Ao mesmo tempo, no resguardo das arcadas, trocavam-se as primeiras

conclusões. Ao contrário dos judeus, os cristãos mostravam-se soturnos.ConheciamoabraçodaMãeRússia,sabiam-lheasmanhas,opesodoagasalho,

etinham-naalidenovo,restavasaberparaquê.Acrernamaioria,vierarechaçaros alemães, mas cedo se percebeu que não seria bem assim. A verdade eradiferente e falavadeumacordo alcançado semanas antes, quando,para ládasfronteiras, alguém escrevera debaixo da mesa o destino da Polónia. Vergadossobreomapa,Hitler eEstalinedesenharamdealtoabaixoum riscoaomeio,tomandoparacadaumametadedopaísquelheconvinha.Acertadaadivisão,coube aos bolcheviques a guarda do círculo perfeito, assim como de toda aregiãodoKresy18.Nos dias que se seguiram, foram muitos os soldados que abandonaram a

cidade, ficando só uma dúzia para mostrar autoridade. Também por isso, ocírculo perfeito foi-se enchendo de sujeitos à civil, burocratas que o PartidoenviaradeMoscovoparaimporanovaordem.AspousadasdeIsaacGoldforamentão requisitadas e, aos quatropor cadaquarto, os funcionários instalaram-seempoucosdias.18RegiãoorientaldaPolónia,abrangendoaproximadamentemetadedoseuterritório.

MOSCOVO,URSS,27desetembrode1939

VindodaPraçaDzerzhinsky,ocarrodesligouomotorcinquentametrosantesdeseimobilizaràfrentedoedifício.Ocondutorcolouorostoaopara-brisasedescobriualuzacesanoquartoandar.Aoseulado,umhomemfardadodormiacomacabeçatombadasobreopeito;nobancodetrás,outrosoldado,igualmenteadormecido.Àquelahoradanoite,asruasestavamfriaseocondutornãoabriuajanelaparafumar.Estavaadiantado,nãotinhapressa.Aomesmotempo,láemcima,Govorovpassavaasmãospelorosto,sentado

aos pés da cama. Quando se levantou, aproximou-se da janela e olhou parabaixo. Não se surpreendeu nem apressou por ver o carro à espera. Dirigiu-separaaportadoquartoe,antesdesair,enfiouospésnossapatos,acalcanhando-os pelo corredor até à cozinha comum. No caminho, ignorou os ruídos dosoutrosquartos.Okommunalkan.º7eraoapartamentomaisatulhadodoprédio,oque,demadrugada, tambémsededuziapeloqueseouviaatrásdasportas:abronquite da Elena Galiyeva, o choro do miúdo mal jantado, o grunhidoasmáticoquevinhadoquartoG,oflato,ocolchãodemolas.Outrosintomaeraocheiro.Naquietude,ocheirodas refeiçõescozinhadasàveznotava-semais,aconfusão de ingredientes, os odores que se pegavam à panela e ficavam nasparedes, na roupa e na pele, acompanhando Govorov para todo o lado. Malchegou à cozinha, lembrou-se de que não trouxera a chave do cacifo epraguejou.Aindaassim,experimentouabri-lo,asdistraçõesdeAliyatambémseviam naquelas coisas e já antes se esquecera de o trancar. Confirmando aexpectativa, aportado armário abriu-se àprimeira, e elepraguejououtravez.Aquiloirritava-o.Nãoeratantoapossibilidadedetersidoroubado,masmaisodesmazelo da mulher. Afinal, quem se lembraria de assaltar Ivan FedorovichGovorov,otenentedaSegurançadoEstado?Pelocontrário,aquelescomquempartilhavaoapartamentoeramosprimeirosavasculharnopoucoquepossuíamum mimo que lhe agradasse: meio quilo de biscoitos, um copo de hidromel

bebido no corredor, ou, se o quisessem ver consolado, uma informação, umadenúnciacompernasparaandar.Masnemessaaurademedochegavaparaoseuconforto, já que em nenhum outro lugar se vivia a Revolução como nokommunalka. Ali, todos se equivaliam, mais não fosse perante os tempos deespera:afilaparaacasadebanho,afilaparaofogão,afilaparao tanquedaroupa, a fila para a varanda. E por isso, naquela noite,mesmo com o carro àespera, Govorov fez questão de apreciar cadaminuto a sós sobre a banca dacozinha.Cortouumcantoaopãoejuntouquatrofatiasdequeijo.Comeuumaeguardouo restoparaaviagemnumsacodepapel.Antesde se irvestir, aindaaqueceuorestodecháqueAliyadeixaranumtachinhodeesmalte,mas,assimqueobebeu,sentiuo líquidoquenteacorrer-lhepelas tripasedisparouparaacasadebanho.Quandoabriuaporta, estranhoua luzacesaatédeparar comaimagematrozdeAnatolyPomerantsev,ovelhosargento,adormecidonaretrete.Ascalçaseasceroulastapavamossapatos,mesmoaoladodagarrafadevodkameiocheia.Comoqueixo enterradonapapada, ohomempassariapormorto,não fossemos espasmos comque ia respirando.Desesperadopor tomaro seulugar,Govorov sacudiu-o furiosamente,mas só conseguiu acordá-lo quando ocorpoinertetombouparaoladoeseespalmounosladrilhos.Estonteado,ovelhoPomerantsev acabou por sair dali com as calças pelos pés e em passinhostravados, deixando atrás de si uma sanita por despejar. Agoniado, IvanFedorovichjánãotevetempodealcançarobalde,massentou-seatempo.Ficoua esvaziar-se e a olhar para as paredes húmidas, parecendo ver o cheiro atranspirar nos azulejos. Não deixara de ser cheiro a comida, mas espessara eazedara enquanto apodrecia naquele cubículo sem janela. Quando terminou,voltou ao quarto para se vestir. Odiava aquele quarto, odiava a cama sempredesfeita, os pratos pendurados como quadros baratos, a paisagem fabril, oproletário,opunhoemriste,arendinhaaatapetarobustodeLenine,acoleçãode miniaturas, oito Kremlins encolhidos nem sempre com a mesma escala;tambémodiavaamesinha,obacio,oroupeiroearoupaquenãocabia.Afinal,umbazarsemespaçoparamaiscoresebagatelas,masquetinhadecontertodaasuadesilusãomaisofeitiocorrosivodeAliya.Aliyaestavaacordada,chegarahaviapouco.Trazianaspernasumanoiteinteiradeesforço,ashorasquelevavaderreadaa

esfregarcantariasnoLubyanka.Quandochegava,cansadademaisparadormir,ouviarádio.Daquelavez,porém,omaridojáestavaapé.Seminteressequesevisse,elaobservou-oafecharamaletaondenãocaberiamaisdoqueumpardecalças,duascamisolas,umasceroulaseocasacodeinverno.Aindaassim,Ivan

Fedorovichconseguiuacrescentar-lheosacodepãocomqueijoeumexemplardoCursoBreve.Porfim,sentou-sedenovonacamaparasecalçareabotoarospunhos da farda. A um passo de distância, e deitada de lado no sofá, Aliyapareciaagora tãoabsortaqueelepôdeolhá-la livremente.Nãose lembravadaúltima vez que o fizera, que atentara nos detalhes. Preferia iludir-se com alembrançadajovemrevolucionáriaquecorrianasruasdeMoscovoparachegarahorasàreuniãodoKomsomol,daspernascomqueofazia,dorostoesbraseadoafalar-lhedoqueouvira.Quediaboaconteceradesdeentão?Quemeraaquelaqueocupavao seu sofá?Não tinha idadepara aquelas rugas,que raiodevidalhas escrevera assim no rosto?Depois, o peso bestial, os botins tombados nochão,apernapordepilar,amãoqueafagavaopédescalçodescolandoosdedosumaum,esfarelandoqualquercoisaparao tapete.Maldição!Agoraera tarde,agorajáaolhara,alémdocheiroamerda,levariaagarradamaisessarecordação.Pegounamaletaesaiusemsedespedir.Depoisdebateraporta,aindaficou

alisóparaouviratelefoniacomosefosseavozdeAliya.Sefalassemumcomooutro,talvezdescobrissemporquesedetestavam,oquemorreranaquelequartoeoquemorreranasruas.Não quis saber e atravessou o corredor. Na terceira porta, alguém acordara

para amar, o último som que queria ouvir. Ao chegar às escadas, ouviu-se arespirar,pousouamaletanopatamareensopouo lençona testa,nopescoçoeatrás das orelhas; um minuto a mais no kommunalka n.o 7 e talvez tivesseenlouquecido.Só então desceu e pensou finalmente para onde ia, a pequena cidade na

Polóniadequenemsabiaonome.

PARIS,2002

LePassageduR…Não dava para ver o resto porque o bilhete estava rasgado aomeio.Mas o

filmeeracomoAznavour,logo,tinhadetersidoideiadeEryk.Vivienneolhouparaadata,6-12-1960,umasexta-feira.Ahoradasessãotambémforacortada,assimcomoonomedocinema,via-seapenasqueeranaToisond‘Or.Havialáumasala,sim.Deresto,Viviennenãoselembravademaisnada.Atéporqueotempo que vivera em Bruxelas era a última coisa que lhe poderia interessarnaquelemomento.Omotivoporqueestavahádezminutosaolharparameiobilhetede cinemadesbotado sópodia ter a ver comoblocodenotasdeondecaíra.Nomeiodaspáginasescritasàmãopelomarido,aindaencontrououtrospretextos para adiar umpoucomais a leitura: o guardanapo de papel comumnúmero de telefone, a prata de chiclete e três calendários de bolso, todos de1997,fazendosuporqueEryknuncaperderadevistaaquelecadernocoçadodecapaàscores.Então,mostrandoumvigorquenãosentia,endireitou-sederepenteedeuduas

palmadinhasnamesa.Seeraparaler,paraquêprotelarmais?Játinhamarcadoapáginaporondeiacomeçarenãoperdeutempo.EraalimesmoqueErykdavacontadassuasfrustrações.Diziaoseguinte:12-04-1963Continuoaacreditarquenãovaleapena insistircomVivienne.Sequisesse

falardamãe,jáoteriafeito.AgoranãoseioquefazercomShionka.Ficocomumgato selvagem criado na floresta que se lembrou de que não temde falarcomninguémenempossoexplicarporquê.A resposta temdeestarnabruxa,talvez insista. Yankel haveria de saber alguma coisa, o filho da puta tinha deestaraquicomigoaescreveristo!!PerguntaraV.seselembradonomedogajoquetirouafotografiaaoSkiba.

Nãoéimportante,senãoselembrar,inventa-se.Porenquanto,IgorJerzyserve.Ainda há que falar dos russos e de toda a merda que fizeram. Continua a

faltar-mepaciênciaparaescreversobreestascoisas.Parajá,istotemdechegar:Láaolonge,otriodesilhuetasvia-secadavezmaisnítido.Acemmetros,era

umcasal eumacriança; a cinquenta,doishomenseum rapazinhoendiabradocom um brinquedo na mão; ali mesmo, um par de russos a arrastarem opresidente daCâmara, que não largava o seu banquinho.Carregado como umfardo, Tadeusz, ensandecido, berrava e pedalava na atmosfera.Mal viu aRuaMazur, os espasmos redobraram, pois sabia o seu destino. O ManicómioPasternakdeixaradeoseremexclusivounsdiasantes,quandooscomunistasalidecidiramtrancaros inimigosdaRevolução.Mateuszerasómaisumculpado.Além dele, todos os membros do Conselho Municipal, o juiz Marszałekapanhadodepassagem,antigoscombatentesdoexércitopolaco,quatro judeus,cinco nacionais-democratas e mais uns tantos a quem faltava saber porquê.Misturados com os dementes, os prisioneiros repartiam-se entre as baias,dormindonoscatresouespalhadospelochão.Kasia,ameninaquevialacraus,jáconheciabemascriaturasacabadasdechegar,mas,encolhidascomoestavam,pareceram-lhemenosescamosas,maishumanas.Assim,no lapsodeummês,omanto repressordosbolcheviquespousouno

círculoperfeito,asruastornaram-seperigosaseopovodesconfiado.Osgentiosacusavam os judeus, os judeus culpavam os cristãos, e as denúnciasarremessadas de um lado ao outro da cidade apanhavam sempre alguém,enchendo com mais inocentes as salas do manicómio e meia dúzia de cavesescolhidaspelosrussosparalhessoltaralíngua.Masoterrortinhaumrosto,aquelequeosfaziaolharparaochão,estacarde

rompanteoumudardepasseio.Quandodesceudocarro,ninguémviumaisdoqueumafarda.EmplenoLargodoMercado,Govorovdeixoudemãoestendidaaqueles que o esperavam e dirigiu-se em passada militar até às estátuas. Erameio-dia, e ele pisava a própria sombra enquanto rodeava os pedestais. Entãoparoue,comamãoempalasobreosolhos,deixou-seestaraobservá-las.Nocentro da praça, um cristão de pedra, um judeu de bronze e um russoempedernido como eles. Quando o tenente virou as costas às esculturas, jásomaraoutratarefaàsualista.

Aindaháaquestãodacriança.Jáescreviqualquercoisasobreacriança,não

seiondepus,nãointeressa,erafraco,émelhorreescrever.Logosevêseresulta,nofimdecidoseusoourasgo.Podeficarmaisoumenosassim:Rasianãofaziaideia,quevissenolargo.Tinha-lhedadoumbeijo,ocostume,

depoisvira-osaircomopãonosdentese,agoraquefalavanisso,parecera-lheapressado.Levaraqualquercoisaenroladadebaixodobraço,mas,aopassarpelaporta,esbarraracomopaiacairdebêbadoejánãolheperguntaranada.«Umatoalha», palpitou, «ou talvez um cobertor». Eryk estranhou, Yankel esperavasemprepor ele, nunca saía sozinhodepois de jantar.Bom,podia ter alguémàespera, Shionka, quemmais?,mas issoRasia já não podia confirmar.O rapazagradeceu e despediu-se antes que ela percebesse como aquilo o irritava. IriaprocurarYankelnos lugaresde sempre, copiaropercursoque faziam todasasnoites, as ruelas que levavam ao Largo doMercado, debaixo das arcadas, daigrejaàsinagoga,haveriadedarcomele.NaesquinadaRuaMazurencontroutrêsrussosàconversa.Eramcivisepararamdefalarassimquepassouporeles.Seguiram-nocomosolhosdurantemaisalgumtempoeErykteveacertezadequeoiammandarparar.Masnão,dessaveznão.Àportadomanicómiojánãoteve tanta sorte. Agora eram dois homens fardados e gritaram-lhe. Quandoparou,vieramtercomele.Omaisaltosegurou-oporumbraçoearrastou-opelopasseio até lhe ver o rosto à luz de um candeeiro. Perguntou a mesma coisavárias vezes,masEryk, que não falava russo, só repetia o seu nome.O outroabanou-o, não era isso que queria, e acabou por chamar o companheiro.Numpolaco arrevesado, o segundo soldado conseguiu fazer saber que não queriaminsurretosavaguearpelacidadeàquelahora.Quenão,nãoeraisso,bradouEryklevando a mão ao peito. Estava ali por um amigo, um cego que devia andarperdido. Os russos conferenciaram por momentos e, depois de lhe verem ospapéis, mandaram-no para casa. Para casa, ouvira bem? Ele dirigiu-lhes umsorriso imbecilesaiudaliàsarrecuas:sim,comrades,ouvira,nãoseralassem.Umpoucomais à frente, ainda eufóricopelogozodeosmandar à fava,Erykescolheuumcaminhoalternativoeretomouabusca,nãoeraumpardeidiotasqueo iriadesviar.Porém,malalcançouaorlada floresta,esbarrounoprópriomedo e não soube o que fazer. Já não eram os fantasmas de criança que otravavam,masasuspeitaindefinidadequetalvezencontrasseoquenãoqueria.Nessaaltura,sentiuacorrentedeargeladoquevinhadospinheiroseencolheu-

seinteiriçado.Seatéaflorestaorepelia,talvezfosseparalevarasério.Aquiloacabouporexcitá-loe,nãoprecisandodeoutroalentoparaavançar,embrenhou-senassombrasdispostoavasculharatéaofundodolago.Eratalofrenesimquea viagem durou pouco e, mesmo arranhado pelos galhos secos, só usou decautelasaoverporentreasárvoresobrilhodaságuas tranquilas.Apartirdaí,debruçou-seefezosúltimosmetrosarastejarnotojal.Desabrigada,aamálgamade arbustos que circundavao lago estridulava coma aragem.Quandooventoparouparainspirar,ouviu-seumsomintruso,umsomdegente,pareciaumavozderapaz.Àforçadebraços,soergueu-separaosverdeitados:Shionkaporcima,odecotecaídodesnudandooombro;Yankelaagarrar-lheascoxasdebaixodocobertor,fazendo-arircomoquedizia.Erykficoupetrificado.Oquequerqueexplodiradentrodelecausaraestragos

sérios. Com a cara afundada nas folhas mortas, manteve os olhos fechados,capazdeficaraliparasemprearasgaraquelaimagememmilbocados.Nofim,deveteracabadoporsair, jáqueseviuderepenteàportadecasa,aandaremcírculoslargos.ComaLuadescoberta,continuouaperseguiraprópriasombrano passeio, esfregando o peito com as mãos como se a roupa húmida lheprovasseondeestiveraeoquevira.O fimdaqueleparágrafocoincidiacomo fimdapágina,eViviennepareceu

relutante em prosseguir. Sozinha na água-furtada, reparou que o que lera jáparecia desfocado no papel. Conhecia esse sinal, perdera-se em pensamentos.Então,pousouocadernoecerrouospunhos,irritadacomatremura.Nãosabiaoque podia encontrar e, com um gesto seco, empurrou o livrinho, fazendo-odeslizar até à bordadamesa.Depois, revoltou-se coma sua candura.Que lhepassarapelacabeça?Comoacreditaraquesepodesair incólumedeumacoisaassim?Apesardetudo,esticou-se,agarrounocadernoevoltoualer:Aolongodosmesesseguintes,adoralastroudetalmaneiraqueErykdeixou

deserquemera.Entreeleeoexterior,umaúnicacamadadepeleaprotegeraferida imensa em que se transformara. Cada sinal, cada evidência, tocava-ocomoumferrãoe iadeixandomarcas.Se seviaa sóscomYankeleShionka,perscrutava-lhesosrostos,osgestoseasfrases,palavraporpalavra,descobrindosempre um trejeito clandestino. Não voltou a procurá-los na floresta, masmanteve-osjuntodesi,desafiando-oscomasuapresençadespeitada.AtéqueumdiaShionkadeixoudeaparecer.

Oprimeiroanotá-lofoiYankel,deixadoàesperanasoleiradoportãoquaseatédemadrugada.Namanhãseguinte,Erykfoiencontrá-lodebruçadosobreomurodacasa,viradoparaarua,comoseapudesseverchegar.MasShionkanãochegou; nem nesse dia, nem no outro, nem depois. Até que, no fim daquelasemana, Yankel pediu a Eryk que o levasse ao palhal da feiticeira. Este,consternado como ele, puxou-o ali mesmo pela manga e internaram-se nafloresta.Aochegaremaodeclive,pararamparaespreitarcomodaprimeiravezemquelátinhamestado.Ficaramquietos,aolharparabaixo,masnadaviram.Malgradoofrio,nãohaviasinaisdefumoeajaneladeixadaabertasugeriaumasaída atropelada. Agarrando-se às raízes que a chuva descobrira, os rapazesdesceramaescarpa, cabendoaYankel susteravertigemdoamigo.Assimquechegaramàbeiradocasebre,começouanevarecolaramascostaseosouvidosàparede.Comoumcãodeguarda,ajanelaempurradapeloventopôs-seagolpearobatente.Aseguir,outra janelaassanhada,depois jáeraaporta.Desnorteado,Eryk fez-se de forte, mandou o amigo esperar e avançou para não perder aúltimaluzdatarde.Aquiloqueviulembravaumacaverna,cheiravacomouma,pareciaescavadanasfragasenemosutensílioscaídosportodaapartesugeriampresençahumana.Nessaaltura,chamouporYankel,quesearrastoupelaparedeatédarcomele.«Ninguém»,disse-lheEryk.Eeratudo,apáginaseguinteestavaembrancoeasrestantespreenchidascom

poemas.Eramsonetoscolocadosladoalado:àesquerda,asestrofesempolaconumaletradisplicente;àdireita,osmesmosversosescritosemfrancêsecheiosde emendas, traduções penosas com queEryk ensaiara a língua que o daria aconhecer.Devezemquandoe semordemaparente,Vivienneaindadescobriuunspedaçosdesgarradosdeprosa,meiadúziadenotasbiográficas,edesenhos,muitosdesenhos.IssoaconteciaporqueEryknuncapararadedesenharefazia-oem todo o lado, no café, no metro e até quando escrevia, sobretudo quandoescrevia.Dandoaideiadequeotextonãobastava,ensaiavaemtraçosrápidosasimagens,antesdeaspôrporpalavras.Entretanto,Vivienne olhou para o relógio e para os papéis amontoados.Era

tarde,nãolheapeteciaficarmaisumanoitearemexer.Poroutrolado,sabiaqueali mesmo, perdido nos caixotes, estava o fim daquele capítulo. Frustrada,folheouocadernoumavezmaise foientãoqueosviu.Eramesboçosa lápis,desenhosdemulheresnuas,ou,quemsabe,sempreamesmaemváriasposições.Vivienne achou-se no lago, deitada numa fraga e a dançar abraçada ao cabelomolhado. Na mesma página, o retrato de um rapaz. Era Yankel, pois. Não o

soubepelorostoquasedeixadoaoacaso,trêslinhasapagadas,outrastantasparaocabelo.Distinguiu-o,sim,pelosbraçosdesenhadoscomoasasparaconseguirandarnoescuro.OolhardeViviennefluiupelafolhaseguindocadariscoatéaofim. E foi assim que encontrou o pretexto do desenho, o lugar por ondecomeçara.Ali,olápiseramaispreto,aguçado,atingirasombraqueobotãodascalças fazia no tecido. O cós descaído destapava-lhe a cintura e o traçadoaligeiravaparasombrearamusculatura,osprimeiroscabeloseopontomaisaltoda perna. Dali para baixo, as linhas desmaiavam, os pés eram garatujas tãogrosseirascomoaservasquepisavam.Viviennepassouodedonodesenho,umafagoquedeixouumrastocinza.Fechouocadernoefoideitar-se.

*Peloreceiodenãoserlevadoasério,olivreironuncarevelarasercapazdese

cheirarpordentro,esquadrinharasentranhasàprocuradapestilênciaque,haviaumpardemeses,lheauguravamásnotícias.Nãofosseadorqueiaevinha,nemdiria nada aomédico,mas, assim, acaboupor sujeitar-se, cumprindo à risca oextenso rol de maçadas prescritas com certa urgência. Na sala de espera,enquanto aguardava que Yankel terminasse a ressonância, Jaleleddinepreocupava-se:acadadiapassado,via-omaisamarelo.Masnuncaforacapazdeoalertar–adesculpaeraaceitável,nãosabiacomolhefalardecores.Naquelanoite,contudo,sentadonoseusofá,Yankelpareciatranquiloepode

inebriar-se comadádivaque lhe chegavado andarde cima.O soprodooboéabafava o pulso aos relógios logo ao primeiro andamento. Ele amava aquelapeça,mas,nosúltimosanos,ouvia-acadavezmaisapagada.Aculpa,sabia-o,estavanaveteraniado intérprete,MonsieurGrimauld,quasecentenárioefalhodefôlego,vizinhodoquartopiso.Yankelencontrava-onasescadasumavezporoutra, cumprimentavam-se, mas era tudo. Uma ocasião, porém, confessou-lheque gostara do que ouvira na noite anterior. «Ah, Bach», disse o músico. Averdadeéque,naquelemomento,MonsieurGrimaulddeveterpensadoquenãosevivetantosanossobreotetodeoutrohomemsemquehajaalgumagratidão.Porisso,apartirdaqueleencontro,Yankelpassouaouviraquelamúsicamuitasvezes.Mas não era apenasMonsieurGrimauld a tocar no quarto piso.De vez em

quando,oouvidoapuradodeYankeldistinguiaoutrooboé.Menosversátil,era,aindaassim,harmoniosoeseguiaorepertóriodoprimeiro.ForaMademoiselleFossquemdesfizeraomistério.«Nãoháoutrooboé»,esclarecera.«ÉMarceau»,

opapagaiodemeioquilomanchadocomquatrocoresque,aporteiragarantia,nãofalava,masassobiavacomoumoboévienense.Daquelavez,contudo,eramoutrosossonsasobrepor-seaosrelógios.Desdeo

princípiodatardequeasescadasdoprédionãocessavamderanger.Aocontráriodos passos vagarosos a que Yankel se habituara, estes eram mais pesados,apressados, e eram-nonos dois sentidos.Só à noite é que tocou a campainha,depois o som do ferrolho e o estalido que acendia o candeeiro da entrada.QuandoMademoiselleFossperguntousepodia,jáestavacoladaaele,exauridae ofegante. Sempre que se punha assim, a porteira parecia um radiador,encostava-se e arfava-lhe para cima.Yankel sabia que era apenas o fervor domexerico.–Decertezaquejásabe–disseela.–Certamentequenão–bufouele.MademoiselleFossnãoquissaberdoenfado.–MonsieurGrimauld,pobrezinho…morreunosono.Yankeldeixoudeaouvir,nãodissenada.Apanhadadesprevenidapelosilêncio,aporteiraaindatentouahisteria:–Fuieuqueoencontrei,ouviu?Fuieuquedeicomele.Fazideiadochoque?

–Mas nem assimYankel reagiu.Descoroçoada, amulher virou-lhe as costas.Assim que chegou à porta, pareceu lembrar-se de qualquer coisa, pois parouintempestivaeaguardouummomentoantesde rodarnoscalcanhares.Quandofaloudenovo,o tomeraparaapoucar:–Ovelhodeixou-lheesta lembrança–afirmou, enquanto se esticava pela porta entreaberta e puxava qualquer coisadeixadanocorredor.–Ficaaquimesmo.Vaiverquelhefazcompanhia.Depois,oestrondoirritadodeumaportaeumbaterdeasas.Eeleaindasemouvir.Passou uma hora, a campainha tocou outra vez, e Yankel acordou confuso.

Desta vez, era o telefone.Dooutro lado,Vivienne a desculpar-se, não iria tercomelenaquelanoite. Jáviramaisumcaixote, semnadaqueseaproveitasse.Estavaestafada,nodiaseguintecontinuaria.Eramentira.Noutras circunstâncias,numdiamenosdifícil, talvezYankel lhedescobrisse

nas palavras nasaladas o choro apagado pouco antes ou mesmo a pressa emdesligar.Masnão.Semquerersaber,desligouelutouparavoltaraadormecer.Nãomuitolonge,naágua-furtadadoMarais,aluzficariaacesatodaanoite.

Sentadaàescrivaninha,Vivienneleuaquilotudoumavezmais:

O círculomurchara na floresta, agora lembrava a pegada de uma besta.Aolongo dos últimos meses, a população espezinhada reduzira-se a dois terçosgraças às deportações. Dezenas de judeus e gentios da cidade enviados decomboio para as quintas coletivas e campos de trabalho que Estaline semearapelasestepesrussas.RomanSkibaeSalomãoFinkelsteintinhamestadoentreosprimeiros. O comendador fora apanhado uma manhã à beira da mansão eamarradocomocoronel auma travedoportão.Até anoite chegar,Skiba eoesbirro puderam assistir ao desfile ininterrupto à sua frente. Entre a casa e oscamiões, os russos pareciam não esquecer nada: os brocados, as pratas, osespelhos,asestátuas,osmóveisearoupadecama.Skiba,enlouquecido,rasgavaapeledospulsosde tanto forçaracorda.Mesmoà sua frente, algunsdosquepassavam envergavam-lhe as botas e os casacos de inverno como larápiosvulgares. A certa altura, dois soldados pararam ao seu lado e pousaram amolduraparalimparatesta.Skibadescobriu-seaolharparasi,atelaapretoebranco com a metade do seu rosto acusava-o com um esgar desiludido,expressão que amulher repetiria pouco depois quando lhe foi atirada aos péspelopróprioGovorov.«Acadelapertence-te,guarda-abem»,disse-lheotenente.«Éaúnicacoisaquepodeslevarcontigo.»Finkelsteinfoipresonodiaseguinte.Aacusaçãoeraamesma:«Capitalista»,

«Cãotrotskista»,tantodava.Ocertoéquesaiudaliagrilhoado,sentindo-setãoesvaziadocomoasquarentaeduassalasquedeixavaparatrás.Após seis noites passadas no hospício, os dois homens mais poderosos da

cidadeforamseparadosdosrestantesprisioneiroselevadosnomesmocamiãoacaminho de uma cave à saída da cidade. Era lá que se guardavam os pioressubversivos, aqueles a quem cabia um tratamento especial. Ficariam ali aapodrecer o tempo necessário para se reeducarem e, assim que estivessemprontos,seriamenviadosparaosgulagsnaMãeRússia.Entretanto, a cidade taciturna ensaiava a Revolução. Despidas dos seus

excessosburgueses,asmansõesdeSkibaeFinkelsteinserviramapreceitoparaalbergarmaiscomunistas, funcionáriosdoPartidoquenãoparavamdechegar:propagandistas,membrosdaNKVD,atenebrosaagênciadesegurançasoviética,bemcomooutrasfiguraszelosaseversadasnadoutrinaenadenúncia.OPaçofoitomadopeloComitéTemporário,oórgãocomqueossoviéticospassaramagerir a cidade, composto por agentes bolcheviques e representantes locaisescolhidos a dedo. Aos poucos, tudo parecia mudar de mãos. Muitas lojas earmazéns foram esvaziados e os seus bens enviados para Moscovo, e quatroterrenosdecultivoacabaramtransformadosemcolcozesdepequenadimensão.

Nofim,atéoGrémiofoiforçadoaempilharasmesasdaMizerka,malpassouareceber as atividades que o Partido organizava. Nessas sessões, todos eramconvocados.Duranteduashoras,opovomultiplicava-senosespelhosembutidosparaouvirgritaraRevolução.Masnãofoitudo.Nolapsodeumanoite,ozlótideixou de existir, dando lugar ao rublo e a umpovo empobrecido e agastado.Nunca como então, Govorov conheceu tanto trabalho, pelo menos tendo emcontaonúmerodeinconformadosquedeixaramdeservistosouforamcarpirasqueixasentreasbaiasdomanicómio.Naquelesdias,Yankelmal sevia.Erykbatera-lheàportamuitasvezes,mas

Rasia só sabia desculpar o filho, «Ele dorme, anda diferente». Por fim, lávoltaram aos passeios, sempre depois do jantar, pois Eryk passava o dia atrabalharnacooperativa.Oseuempregoeraduroecustavamuitomaisdoqueosrublosquelevavaparacasaaofimdomês,masserviroPovoeraomelhorestratagemaparapassardespercebido.Certanoite, ganhoucoragemevoltou afalar-lhedeShionka.Yankelnãodissenada,masEryk fixou-lheo rostoenãotevepressa,tudooqueporlápassasseseriafidedigno.Comonãoviumaisnadadoquemágoa,acabouporjurarasimesmonãovoltarafalardarapariga.Bom,nãopodiaadivinharque,logonodiaseguinte,Cibor,umdosgémeosdoSkiba,passassenacooperativaagritaratodaagentequeabruxaregressara.Yankel parou de chofre: «E Shionka?» Eryk não sabia, mas, especados no

meiodopasseio,estavamaperdertempo;eradecorrerjáparaafloresta!Ocegosaiudali,masfoiparavoltaracasa:«Shionkasabeondemoro.»Perplexo,Erykficouavê-loatravessaroLargodoMercado.Eratarde,apraçaestavaàsmoscas,e teve de correr para o alcançar. O resto do percurso não bastou para oconvencer;entreamágoaeoamor-próprio,Yankelpreferiaesperarporela.MasEryknão.Porisso,assimqueodeixouemcasa,disparouentreospinheirosesóestacou para apreciar aquele cheiro repentino. Era um aroma estranho, nãopertencia ali, e fê-lo olhar para o céu. Foi então que viu o fumo e soube queestavaperto.Aproximou-see, aochegaraodeclive,viua luznopalhal.Ondeestava,oodoreramaisforteeadocicado,sópodiaterquevercomovaporsaídoem fio da chaminé.Mas aquilo que lhe interessava estava dentro do casebre.Durantemuitotempo,eolhandoparaajanela,sóviuassombrasqueafogueiraampliavanasparedesradiantes.Derepente,aquelevultoalaranjado:eraDreide.Estava de costas, parecia vestida apenas com o cabelo e inclinava-se sobrequalquercoisa.Eryknãoviumaisnada,nemumsósinaldeShionka,nemumavoz,nemoutrasombra.Dreideacabouporsesumire,aospoucos,comomorrer

dafogueira, tudoseextinguiunonegrumedafloresta.Orapazaindaaguardoualgumtempo,mastevedeseconformareregressaràcidade.Mesmoassim,nãosedeuporvencidoe,duranteoquefaltavadasemana,voltoulátodasasnoites.Ao quinto dia, logo aquele em que chovia, ouviu um brado selvagem já bempertodopalhal.Numinstante,voltouaseromiúdoestarrecido,amesmamentedesprovidadecensura,escancaradaatudooquefossegrotescoeasqueroso.Amelhormaneiraqueencontrouparaesconjurarosseresdaflorestafoicorreraoseuencontro.Oumuitoseenganava,ouiriadarcomelesacirandaràvoltadoantro da feiticeira. E assim aconteceu, já que os berros irrompiam damesmajanelaemqueovultofrenéticodabruxaseatravessavaemcorreria,parecendoacudiraváriasfrentes.Achuvacaíacadavezmaisfuriosa,comoserespondesseacadagritodeDreidecomnovapancadadeágua.Erykestavaencharcado,sólhefaltavadarporisso.Nãocompreendiaocorrupio,nãoconcebiaodesesperopor detrás de gritos como aqueles. De repente, o fumo da chaminé pareceupetrificar,asárvoreseoventotambém,asagulhasdechuvasuspenderam-senoar, tudo para se ouvir o choro de uma criança. A intempérie explodiu logo aseguir, mas nada apagou a limpidez daquele som, parecia uma canção, umafragilidade a ferir a escuridão. Eryk não quis saber, desceu a escarpa aosrebolõesechegouaopédacasa.Abrigadopelobeiraldexisto, espreitoupelajanelaeviu-adeitada.Shionkaemcimadeumaenxerga,nua,malcobertaporumpanoenxovalhado,aspernasdesmaiadas,cadaumaparaseulado.Entreelas,Dreide,decostasparaajanela,sentava-senoscalcanhares.Ochorodacriançaacabadadenascereracadavezmaislancinante,atéqueabruxaalevouenroladanoscabelosesaiuparaomeiodarua.Emvezdecontornaracasaepassarjuntodele, seguiu em frente até desaparecer entre os pinheiros. Aí, os seus gritosabafaram a borrasca e os vagidos que levava junto ao peito. Talvez tivesseenlouquecido,julgouEryk,oprantoerademente,umcacarejoescarninhoaquea própria respondia com mais uivos de animal. Nesse instante, o rapazdesabrigou-se e foi ter com Shionka. Assim que entrou, começou por vê-lamorta,empapadaemáguarosa,ocabelopesadosobreorosto,asmãosdeceraabandonadasnofimdosbraçoscaídoscomoasvigasdeumacruz.Eryktombou-lheaospésetocou-lhe.Afinal,nãoestavamorta,apenasdesfalecera,eporissochamou-a várias vezes semque ela reagisse.Entretanto, lá fora, a bruxa já secalara, aquiloquea levaraà florestaestarianessaalturaconsumado.Temendoserapanhado,levantou-se,correuatéàescarpaecomeçouasubi-la.Ameiodapendente, parou e olhou para baixo. Dreide acabara de surgir de entre ospinheiros. A sua figura derreada tropeçava a cada passo, enquanto erguia os

braçosemostravaaocéuasmãosvazias.Acordada, a imagem não passava de um borrão. Já se sonhasse, Vivienne

conseguiadistingui-lae reviviacomdetalheaquelesdiasexecráveis:aliestavaDreideaolhá-lacomose fazaosdesalmados;aliestavaa filha tãonovaaumpassodesermãe.Depoisdoespaventoinicial,amãotrémula,amãoincrédulaqueafeiticeirapousavasobreoventredurodeShionka,acataplasmadefolhaspodres e grilos esborrachados com que lhe desenhava na pele o nome de trásparaafrente.Desúbito,umapressaesbaforidaemtê-lalongedali,acorridaparaaflorestaameiodanoite,osmesesocultos,asfragas,osfetoseosbichos.Sóentão,oregressoaopalhalparaasderradeirasrezas,osunguentosaprepararasprimeirasdores.Eela,Shionkadasárvores,Shionkadaságuasedetudooqueerainsofismável,acrerestupidamentequetudoaquiloeradesvelo.Aseguir,nãoserecordavademaisnada:semsaberporqueartesseapagara,umaimensasalaàsescuras,osberrospavorososea forma terríveldanotícia:Dreide,agachadamesmoaoladoaescalavrarorosto,contorcia-selentamentecontraaquiloqueapossuía, numesforço tão cruel que dava para ouvir os ossos.Adada altura, abruxa desfalecia, caindo desconjuntada. Ficava assim, a cabeça pendurada abalançar e a língua saburrenta a pender da boca de pregos. Aos poucos, o arenchia-secomoseuhálitoacinzase,semnuncaolharparaShionka,acusava-aàgargalhadadeterparidoumbichomorto.Mentirosa!Bruxaexecrável.Masa imagemerapouco,queria tê-laemcarneeossoparavercomnitidez

como lhe matara o filho. Abafara-o contra o peito e deixara-o às feras dafloresta?Ouverteraosanguedele,quetambémpulsavanela,elançara-osobreaspedras?Oh,sim,mãe,bruxaexecrável,emcarneeossoparapodercuspir-teorostoe

esfacelar-te.OmesmodiriaaErykpornãoterrasgadoaquelasfolhas,porlheterpostonas

mãos uma história doentia. Podia também ser mentira, mais um dos seusdevaneios,mas que diferença fazia se nunca soubesse ao certo?Condenada aduvidar,seriasempremãedeummártirefrutodeumaassassina.Foiaíqueserecordou do marido estendido no necrotério e do sorriso de cera que tanto aincomodara. Eryk fora a enterrar com todas as feridas antigas; se morreraconsolado,morreravingado.Eela,tola,aceitararebuscar-lheospapéiseexpor-se a crueldades como aquela. Então, pensou de novo em queimar tudo, mastornoualembrar-sedeYankel.

Duranteduassemanas,Viviennenãoprocurounemleumaisnada.Saíamuitas

vezessemdestinoevoltavaaofimdatarde.LigavaatelevisãoàhoradoBurgerQuizeficavaabebercháearesponderantesdosconcorrentes.Aseguir,viaoquecalhasseatéadormecernosofá.Acordavasempreameiodanoiteeameiodeumfilme.Daquelavez,AudreyHepburnexplicavaoquefazernoprimeirodiaemParis,

enquanto Bogart bebia um expresso; a seguir, a orquestra tocava, e o casaldançavaLaVieenRose.Tudoapretoebrancocomoa salaondeVivienne sepunhaaolharparaosdois.Àsuavolta,aluzdotelevisorprojetavasombrasnasparedes.E,entreelas,aindaosvultosdoscaixotes.Depois,haviaamoinha,semprepioràquelahora,queatolhiaemantinhano

sofá.Masnãodaquelavez.Endireitou-seeficousentadaumbreveinstante,atéseerguerpenosamente.A

caneca, que estava quase vazia, tombou-lhe dos joelhos e partiu a asa nosobrado, deixando uma nódoa de chá. Vivienne nem deu por isso e avançoudeterminada até à papelada; para o diabo com as cautelas! Despejou tudo nochãodaágua-furtadae,nosdiasqueseseguiram,rasgouoqueerasupérfluoeleuaquiloqueinteressavasemsepreocuparcomaordem.

NORDESTEDAPOLÓNIA,outubrode1939

Asinagogaestáfechada,ninguémsabeporquê.Contoonúmerodeperguntas,devemtervindotodos.Masorabinonãodásinaldesijálávãoquasetrêsdiase há muita aflição. De repente, todos se calam e os cães começam a ladrar.Agora tenho a certeza de que ouço ladrar em russo, são os camaradas quechegamenosmandamdispersar.Umdelespassaaomeulado,tãopertoquemedáumencontrão,obastanteparaqueRasiamearrasteparacasaporumbraço.Nocaminho,aminhamãenãoabreaboca,deveestardesalentadaportervindosem respostas.Que fria estáanoite, a neveacamou, amanhãpelamanhã vaiestarempedra,masporenquantoaindaaouçoamastigarosnossospassos.Deresto,asruasestãodesertas;ultimamente,noshtetl,acontecemuitasvezes.Ou talvez não…O ouvido não me engana, agora vem alguém a caminhar

atrásdenós.Nãoquerosermaisumadesapareceresintoocoraçãoaospontapésaopeito.

Viramosnaesquina,anossacasaestálogoalieomelhoréprosseguir.Faltamcemmetros,noventa…Sejaquemfor,nãopretendepassardespercebidoeestáagoratãopróximoqueacabamosporparar.Quandonosviramos,douumpassoemfrenteefaçodeescudoàminhamãe;pelosvistos,continuatranquila.«Vouentrando»,diz-me.Rasiaafasta-seedeixa-mealicomela.ÉaShionka,sópodeseraShionka.Passoumuito tempo, não sei o que pode esperar demim, não sei se há na

minhacaraalgumacoisaamostrar ressentimento.Sinto-aagora tãopertodemim,massóme tocacomarespiração.Ficamosassimalgumtempo,atéque,num gesto rápido, me desenha uma nuvem no peito. O sinal é conhecido,pergunta-meporEryk.Digo-lhequenãosei,desapareceuháumasemana,tenhomedo das notícias.Assim que lhe respondo, ela deixa tombar o rosto no sítioonde desenhou a nuvem. Num instante a nuvem encharca-se, e eu, com ocoraçãoàchuva,mostro-lhequesouumfraco.Éentãoqueagarraaminhamão

eapõenopeitodela,depoisnaboca,nosolhos,nasfaces.Nãoseioquepercoaquinoescuro,masé istoqueganhocomosilêncio.Secalharheidemorrersem saber o que a fez estar longe tanto tempo, mas, de repente, já não meimporto.Shionkaestádevoltaetraztudooquelevou.

NORDESTEDAPOLÓNIA,novembrode1939

Tinham-se entre as mais grosseiras do círculo perfeito, eram descomunais,calosas,encarvoadas,eessaasperezaouvia-sesemprequeseesfregavamumanaoutraparasossegarofrio.Zygmunt,oferreirojudeuquetantolembravaLenine,gostavadelasassim–mãoshonradas,mãosoperárias.Naquelatarde,escondeu-asnasalgibeiras.Maisacima,entreogorroeasgolas levantadas, sódeixouàvista os olhos e esses levava-os presos ao chão. Foi o acaso que os ergueu eapontou ao fim da rua. Lá ao fundo, como duas estacas negras cravadas nopasseio,doishomenspareciamaguardá-lo.Zygmuntadivinhoulogoquemerameparoudeimediato.Aindapensouemfugir,masparaquê,sechegaraasuavez?Quandoalcançouaportadaoficina,oshomenschamaram-noeeleacompanhou-os. Minutos mais tarde, à beira da escadaria do Paço do Município, foramrecebidosporumcavalheiroquetrazianalapelaainsígniadoPartido.Ohomemolhouoferreirodealtoabaixoe,depoisdedispensarosoutrosdois,ordenou-lhequefossecomele.Enquantosubiamasescadas,Zygmuntnãofezqualquerpergunta.Passadooátrio,dirigiram-separaogabinetedopresidentedaCâmara,destavezocupadoporalguémbemmaissinistrodoqueTadeusz.Govorov estava dobrado sobre a secretária a estudar uns desenhos. Ao seu

lado,tambéminclinadosobreasfolhas,umcamaradatrajadoàcivilesquissavaalápis mais bonecos, tentando explicar o que pretendia. Assim que Zygmuntchegou,ocavalheiroqueoescoltavaarranhouagargantaparaseanunciar.Aovirarem-se, Govorov e o camarada deram de caras com o ferreiro e quase seperfilaram: à frente deles, comogorro entre asmãos suadas, bempodia estarLenine,elemesmo,oGrandeCamarada.Recuperadaacompostura,Govoroveooutrohomemaproximaram-seeesquadrinharamZygmuntcomminúcia.Atéqueo tenentedeuumpasso atrás, cruzouosbraços e levou amão aoqueixoparaapreciarcommaisjustiça.Porfim,láconcordoucomacabeça:nãoforaabarba

cerrada, o rosto era tal e qual, servia na perfeição. Só então se lembrou de ointimar:«Apartirdehoje,venhatodososdias.»EZygmuntcumpriuàrisca;duranteosdiasseguintes,nãofalhouumamanhã.

Deacordocomasordens,chegavaàsseteempontoaumarmazémdaCâmaraenãomexia um sómúsculo até à hora de almoço. Ficava sentado, a olhar emfrente,enquantoohomemqueconheceranogabinetedeGovoroviamoldandoobarrohúmido.Aprincípio,sóacabeçainteressava,porissotransformouabarbahirsuta num losango sobre o queixo e manteve as sobrancelhas arranjadas.Porém, a dada altura, trocou o banco de pau pela poltrona retirada da sala doConselho e vestiu um fato de bom corte que os funcionários do PartidodescobriramentreosdespojosdeSkiba.OrestoeraposedeEstado,osjoelhosseparadospordoispalmos,asmãosagarradasaosbraçosdapoltronaeotroncorígidoapertadocomumacordaaoespaldarparamanteraposição.Assimqueoartistaterminou,cortouaesculturaaindafrescaemmeia-dúziadepartesefezosmoldesemgesso.Aseisdiasdoprazocombinado,aspeçasforamlevadasparaaforja, colocadas em robustos caixotes de madeira, cobertas por areia húmidamisturadacomargilae,finalmente,retiradascomcautela,deixandonoseulugara figura esvaziada de Lenine. Só então se despejou o bronze liquefeito e seesperouquearrefecesse.Govorov fezquestãodeestarpresentequandoaareiafoi quebrada,mas ficou desapontado.As peças vinhamgrosseiras, não luziamcomooesperado.Oescultornãolheligouepassouosúltimosdiasasoldarasváriasparteseadaropolimento.Usandoosmesmosmoldes,ergueram-seoutrasestátuasnas cidadesdodistrito, como compromissode seremdescerradas emsimultâneo na data indicada por Moscovo, a 23 de fevereiro, o feriado doExército.Chegadoodia,estavatudoapostosnoLargodoMercado.Logoàfrentedas

estátuasdosfundadores,emuitomaisaltodoqueestas,ocolossoforaassentenumpedestal de cimento. Porém, ninguémolhou para a base, aquilo que lhesinteressava já tinha sido escondido pelomanto de bandeiras vermelhas presasumas às outras com atilhos. Enquanto isso, algumas patrulhas de camaradascorriamtodasasruasàcaçadedissidentes,oquenemeraprecisopoisninguémficara emcasa eo largoestava àpinha.Osguardas, em sentidohavia jáduashoras,olhavamdeladoparaopalanqueàesperadequealguémpusessefimaosuplício.AtéqueGovorovdesceuos trêsdegraus.À sua frente, ameninaquevestia o sarafan levava nas mãos erguidas um cesto com uma tesoura numacaminhadepétalase, juntoaopedestal,estendeu-oao tenente,que,numgestodemorado, cortou o cordel que suportava o manto. Destapado o herói da

Revolução entre umanuvemdepó, amultidão aplaudiu como fora decretado.Pormerafaltadesorte,umadasbandeirassoltou-sedasoutraseprendeu-seaopescoço da estátua, dando a ideia de um babete. Fora isso, não desmerecia, apostura era a de um líder e as mãos de um proletário. Fascinados com asparecenças, os olhares da multidão balançavam entre a escultura e o rostotriunfante de umZygmunt bemciente das réplicas que se descobriamnaqueleprecisomomentonoutraspraçascomoaquela.Aseguir,foiavezdoGovorovlercomopôdeodiscursoenviadoporMoscovo.Numpolacoferrugento,despachouemesforçoosméritosdaRevolução,nãoesquecendoosrecadosdocostume.Acerimónianãofoimuitomaisdoqueisso.Ameninadocestoaindalançou

as pétalas ao vento e leu com voz ensaiada os feitos de Lenine num textinhoescolhido entre os vários redigidos pelas crianças da cidade. Depois de novoaplauso,amultidãodispersou,obrigando-seaesqueceroquealiacontecera.Masnemtodos,jáqueZygmuntguardariaparasempreamemóriadessedia.Apartirdeentão,obrigou-seamanterabarbaaparadaepassouotempolivrenoLargodoMercado.Passeava-seemtornodaescultura,deixava-seestar,fazia-senotar,adoravaver-seali.Masdepoucolhevaleuasemelhança,erasóoquefaltavaaGovorovpermitirnassuasruasumjudeumascaradodepaidaRevolução.E,daí,preferiu ser drástico. Despachada num comboio a imitação, as cavalgaduraspassaramacalçar-senoutralojadacidade,eaestátuarecuperouoexclusivo.

PARIS,1948

EmParis,trêsanosdepoisdaguerra,aindaseolhavaparaocéudechumbo.OsdiaspassarameninguémtornouaavistarosMesserschmitt.Oventodeixaradesoprarporvoltadomeio-dia,earuanãoseouvia,mesmo

carregadadegente.Umimensomantocinzentoecarregadopareciatocarostelhados,prometendo

chuva. Logo abaixo, a fileira de homens e mulheres, todos parados, todos aaguardar. Os homens vestiam sobretudos iguais, as mulheres casacos pelojoelho; traziam as cabeças bem cobertas: eles, de chapéu; elas, de lençoapertado; cada um levava um saco para o pão: eles, na algibeira; elas, bem àvista.UnseoutrasalinhadosnopasseiodesdeaesquinadodepósitodetabacosatéàpâtisserieSaint-Michel.O jovemcasalquecaminhavanosentidocontrário foipôr-seno fimda fila.

Aí,orapaztiroudoislivrosdosbolsos,deuumàcompanheiraesegurouoseucomosdentes,enquantoabotoavaagabardina.Aseguir,encostaram-seàparedeecomeçaramaler.Shionkafumavaumcigarro,Erykmordiaolápiscomqueiaescrevinhandonasmargens.Devezemquando,elachamava-oeapontavacomo dedo para o que estava a ler.O rapaz debruçava-se e, se não encolhesse osombroseregressasseaolivro,eracapazdefalardaqueleexcertoatéelasefartar.Passoumeiahoraenãosaíramdolugar.Erykpôs-seembicosdepésparaverofimdafila.Depois,soproucomirritaçãoedissepalavrõesemfrancês.Aoseulado,umamulhervestidadeenfermeiraconferiaacartedepaine,aosentir-lheobafoagastado,lembrou-setambémdashorasegritouqualquercoisacommausmodos lá para a frente. Foi então que a fila andou; nem dois metros, mas osuficienteparaShionkaficarpara trásabsortana leitura.Erykdisse-lhequesemexesse,masnãolhechamouShionkaeficouapensarnisso.Aindalhecustavatratá-laporVivienne,aindalhesoavaafalso.Foraelequemquiseraafrancesá-la,soprarascinzas,fazê-larenascer,agoracomumnovonome.Quandolhodissera,Shionka olhara-o de frente. No seu rosto não havia um só traço demágoa, o

desastreapagara-lhetudo,querialásaberdonome.Edepois,tambémelemudaraoseu.Comoteriadeser,Jean-Alphonseteveculpanessadecisão.Jean-Alphonse, o belga, que caminhava aos pontapés pelas ruas de Paris,

lembravaumbonecoanimadodesenhadoàpressaaquemfaltavamuitacoisa.Acomeçarpelo rasgonahorade sevestir, semprecastanho, sempreumnúmeroacima,umparigotdetrazerporcasa,nãofosseapaixãoquenutriapeloslivroseque, segundo ele, lhe permitira sobreviver à guerra como um ser civilizado.Assimqueapazseinstalou,eacadatardedesábado,Jean-AlphonsepassouarecebernacantinadaMissãoduasdúziasdepolacos–aseguiràguerra,Paristransbordavadepolacos.Eraaliqueos talhavaparaacidade,queapontavaasportascertasoucediaumvãodeescadaeumpardecobertores.Mas,assimquedespiaofatodebombeiro,Jean-Alphonse,que tambémerapoeta, fustigava-oscomosseusversosinsurretos.Nemtodosficavamparaoouvir,mas,dosquesedeixavamestar,Erykea jovemrecatada ficavammaisdoqueosoutros.ComunsanosdeParis,ocasalaprenderaosrudimentosdofrancêscomospadresdaMissão, mas foi o belga a aprimorá-los. Dava-lhes livros a ler, obrigava-os aescrever,mantinha-osali fechadossempreàvoltadagramáticaedos jogosdepalavras. Eryk carregava no sotaque como o resto dos polacos, ao passo queShionka,umafalanteimatura,nãoforaatempodeoter.Apenasissoexplicavaoseufrancêsaveludado,tãoparisienseesedutorqueEryklhepediaparafalarsóparaaouvir.Eentão,embevecido, julgavaperceber tantosanosdesilêncio:aspalavras em Paris eram diferentes, quem sabe a rapariga as tivesse reservadoparalhaspoderdizerassim.Afilacontinuavaparada.DetalmodoquedeutempoaVivienneparaacabaro

capítuloeaindavoltaratrás.Segostavadoquelia,regressavasempreàspáginasqueassinalaraàsuamaneira.Daquelavez,dobraraquatro:trêsnocantodecima,paramarcarcertaspassagensqueiriatranscrever;aoutranocantodebaixo,umsinaldeambiguidadequepedia releitura.Nesse instante, a filamexeu-seeelaolhou em frente.Mesmo ali, Eryk parecia não dar por nada, pois continuavaalucinado a escrever nasmargens do livro.Vivienne deixou-o estar, não dissenada,elembrou-sedosprimeirostemposnacidade.Lembrou-se dele a ensaiar a nova língua na tradução dos poemas que já

escreviaatodaahora.Jean-Alphonsetorcia-lheonariz:aotrocarapoesiapeloesforço, estragava tudo; deixasse-se de traduções, escrevesse logo em francês.

Eleassimofez,emuitoseriuobelgaquandooleu.Nãoerapelatroça,longedisso;acimadagargalhadahaviadoisolhosmolhados,comovidospelotantoquepodiamaspalavras,mesmonasmãosdequempoucaspalavrastinha.Aolongodosanosseguintes,ErykeShionkapassaramosserõesaaprendere

aconvivernoT1deJean-Alphonse,emLaChapelle.Semprequealichegavam,por costume ao fim da tarde, já a tribo se instalara: Hubert e Toulouse, doisfuncionáriosdoMinistériodoInteriorqueapareciamdefatocinzento,sempreàmesmahora,comasgravatasenroladasdentrodosbolsos;Auguste,umescritorarrivistaquebochechavaogineestoiravaosoldodegendarmeaimprimirlivrosdepoesiailegível;eIreland,elamesmaumairlandesa,comidadeparasermãede todaagente.Havia tambémPerrichon,ovizinhodo résdochão,masesseninguém sabia quem era nem o que ia ali fazer. A verdade é que as noitesacabavam sempre iguais:Vivienne a tomar chá na bancada cozinha e a olharparaarua,Erykdeitadonumcolchãoaescrever,eJean-Alphonse,quenuncasesentava, a caminhar em círculos e a fumar aquela porcaria que enjoava echeiravaachocolate.Quantoaosoutros,espalhadospelochão,liamàvezoqueescreviam. Depois, aplaudiam-se, bebiam além da conta e acabavam a noiteagarradosàcanetaeaostextosquehaveriamderasgarnodiaseguinte.ObelgasópareciasossegaraochegaravezdeEryk.Nessaaltura,encostava-seàparedeedeixavaqueocigarrolheardessesozinhonapontadosdedos.Opolacoeraomelhor,oúniconaquelasalacomtalentobastanteparaescreveroquequeria.Numanoiteemqueestavatodaagente,alguémbateuàporta.Jean-Alphonse

foi abrir sem mostrar curiosidade, mesmo quando viu de quem se tratava. Ohomem enchia a porta; a sobrancelha esquerda, mais alta do que a direita, aesboçar curiosidade, enquanto se inclinava para espreitar. Deixou-se estar pormomentos a olhar para os poetas como se soubesse aquilo queprocurava.Foientão que Jean-Alphonse o agarrou pelo braço e, enquanto apresentava toda agente, conduziu-o ao colchão junto à janela. Ao ver que era com ele, Eryklevantou-sedeumpuloe,atabalhoado,cumprimentouooutrosemnuncalargaros poemas que prendia com o queixo e a mão sobre o peito. Com um certodespropósito,Jean-Alphonsenãoparavadefalar.Nãoolhavaparaoamigo,masalertavaparaatragédiaqueseriaperderalguémassim,umaapostaseguríssima,um novoMickiewicz.Monsieur Renaud, um bretão chauvinista que lançara arevistaCalliopehaviaumano,deixouobelgaafalarsozinhoelevouErykparaacozinha.Jáaí,esperouqueViviennesaísseefoidireitoaoassunto:queriaumsonetoporsemana,alguémescolheriaaquelesapublicar,e,porcadaum,pagariatrinta francos. Ah, e que não falasse da guerra, ultimamente todos escreviam

sobre omesmo.Depois faloumais baixinho, havia ainda outra coisa, não eraparalevaramal,masonome,tinhademudardenome,osleitoresansiavampelavoz da França livre. E foi assim que nasceu Paul Lestrange, um francês tãogenuíno como os que o leram nos meses seguintes. Durante esse período,escreveu quarenta e dois poemas e todos falavam da guerra, mas Renaud,incapazde lernasentrelinhas,entendeu-oscomopoesiadeamorenãodeixouumsóporpublicar.Aseguirpediu-lhecontos,eErykescreveu-lhosnumfrancêscadavezmaisesclarecido.Certoéque,apáginastantas,jáhaviamuitagenteafalardePaulLestrange.Entretanto,Viviennefaziaaquiloquepodiaparateroqueleremcasa.Depois

de um dia a trabalhar, ficava com as costas massacradas e as mãosencarquilhadaseacheiraradetergente;mesmoassim,mallargavaacozinhadorestaurante,iaàRichelieue,senãolheapontassemparaorelógio,passariahorasesquecidas a correr as prateleiras. Quando chegava a casa, empurrava com ojoelhoaportadaágua-furtadaacabadadearrendarnoMaraisedespejavanumamesaoslivrosquerequisitara.Aseguir,dormitavaemcimadosofá,semprecomo rádio ligado para evitar sonos profundos; aos seus pés,meio sentado,meiodeitado,Erykperdia-senoslivrosrecebidoseassimficariaanoiteinteira.Issodevia-seemparteaoespíritovagabundodoescritor, jáquelê-losnormalmentenão lhe bastava. A verdade é que adorava reescrevê-los; fazia-o com frasesavulsasoumesmocapítulos inteiros,pouco se importandoque lhechamassempresunçoso.Importanteeraensaiar,testar,mudarostextosdosoutrosparavernoquedava,«Suamãemoribunda.Enterroembreve.Sentidospêsames.»19Oqueelesedivertiaasomarpossibilidades,ouatéatravestiraspersonagens,convocá-las de outras obras, amancebá-las, assanhá-las, deitá-las na mesma cama,Aquiles,OféliaeocoelhodeAlice,paranofimserirdoqueescrevia.Talvezumdiaalguémfizesseamesmacoisaaoseuromance,mas,paraisso,precisavadeoescrever.Afilaavançououtrosdoismetros.Elestinham-secasadonoutrodia.A ideia fora outra vez de Jean-Alphonse. A cerimónia não passou de um

acidente,umimprovisodequeobelgaselembrouduranteumpasseioemgrupo,aoverorioeocasalqueiaunsdezmetrosadiante.Assimquechegouameiodaponte, Jean-Alphonse parou e pôs-se a bater as palmas. Ao seu lado, Irelanddava o braço a Toulouse.Um pouco atrás,Hubert caminhava empoleirado nomurete, eAuguste, embriagado, seguia atrás de todos.Aover o belgaparado,

foramtercomele.Este,viradoparaoSenaeparaosol-posto,pareciacheiodegraça, o rosto a brilhar e os braços abertos para o Grand Palais.Mal Eryk eViviennechegaramaopédele,abraçou-os.Ficaramos trêsassim,elanomeiodosdois,obelgaadiscursarcomoquemcontaumsegredo,enquantoAuguste,alembrarummiúdo impertinente, iaevinhaàsgargalhadasparaouviroquesedizia.Quandoselargaram,ErykeViviennemantiveram-sedemãodadaeviramo belga a acercar-se domurete.Aí, tirou um frasco de conhaque do bolso dosobretudoedesarrolhou-o.Depoisdeobeberquaseatéaofim,virou-separaocasaleaspergiu-ocomoresto.Foisóisto.Estavamcasados.Quandochegaramaobalcão,afilaatrásdelesaumentaraparaodobro.Nessa

altura, trocaramassenhaspelopãoque lhescabiaevoltaramaoMarais.Erykconseguia caminhar enquanto lia o que escrevera, parandoumaouduas vezesparaacrescentarqualquercoisa.Assimqueentraramemcasa,foramlogoparaacozinha. Vivienne pôs água ao lume e ele mencionou-lhe os poemas aindafrescos. Era sempre assim, precisava dela para acreditar no que escrevia. Aseguir, o costume: ela pedia-lhos e sentava-se descalça no chão, as pernasdobradas,joelhosnopeito,olivroalipreso,umamãoafolhear,aoutraabrincarcomopé.Eocopodecháquente,pois;aqueleemquenãotocavaenquantolia,masnuncaseesqueciadepousareteràmão.Depois,láchegavamostrejeitosdeVivienne, os pequenos esgares, cada dor ou gargalhada que encontrava nospoemassubia-lheaosolhoseaoscantosdaboca.Malacabavadeler,deixava-seestar sossegada e ficava a olhar para os versos. Só então provava o chá, aomesmotempoquedobravaedesdobravaaspernasdevagar.Eryk,queassistiadeviés, não se atrevia a apressá-la,mas fumava cigarros de enfiada. Por fim, lásurgia o veredito. Quando era acutilante, dava sempre azo a melindres, masnenhumdelesduvidavadequeseriatidoemconta.19Adulteraçãodafrase«Suamãefalecida.Enterroamanhã.Sentidospêsames.»,extraídadoparágrafodeaberturadeOEstrangeiro,deAlbertCamus.

NORDESTEDAPOLÓNIA,fevereirode1940

Ogotejartinhasomdepoçoerespingavaparaforadagamela.Àsuavolta,opedaçodechãoalagadorefletiacomdetalheajanelaeolusco-fusco.Orestodoátrio estava tão sombrio que ninguém conseguia condoer-se de ninguém. E,depois,cheiravaprofundamenteagente.Devezemquando,haviaumquetossiaeaquilopegava-se,umagosmaextenuadaqueenchiaasalahúmida.Láfora,oventovergastavaocaisdaestaçãoefaziatorvelinhoscomasfolhasdechoupoeos papéis velhos. Escondendo as cabeças entre os ombros, os dois soldadosinverteram a marcha no final da plataforma e, dando o peito à ventania,regressaramdobradosnumânguloinverosímil.Aopassaremjuntoàsjanelas,omaisgordoembaciouavidraçacomobafocurioso,parecendocontarastossespara saber se estavam todos. E estavam, tinham de estar, deduziu ao afagar acorreiadaespingarda.Alimesmo,atrásdovidro,Skibavasculhouasalgibeiras talqualacreditasse

poderacharumtesouro.Masnão,esboroaraoúltimopedaçodepãoduronessamanhã,restavaagamelaencardidaecheiadeáguaferrugenta.Então,estendeu-se no chão, a dois metros da mulher, que ali fora despejada com outrosprisioneiros não havia duas horas. Depois de tanto tempo nas caves dosbolcheviques,ocomendadorperderaaesperançadearever,eagora,aotê-laali,atreveu-seaacreditarmaisumaveznasuasorte.Foientãoqueadormeceu.Anoitepassounuminstante,destavezaluzeastossesanteciparam-seaofrio

eacordaram-no.Deixou-seestardeitado,masergueuopescoçoparaolharemvolta.Dooutro ladodoátrio,Finkelsteinexperimentavaaspernascaminhandojuntoàfiadadasjanelas.Haviamaisjudeusdaquelelado,Skibadescobriuseis,quasetodossentadoseencostadosàparede,arepartiremcobertores.Derepente,oestrépitodeumaportaaabrir-secomviolênciaea luzquecegouospresos.Quandoosolhossehabituaram,viramovulto,umasilhuetaderapazparadaem

contraluz; logo atrás, outros prisioneiros, nãomais demeia dúzia.Alguém osteria empurrado, pois tropeçaram para cima dos que já lá estavam. Ao rapazcalhouestatelar-semesmoàfrentedeSkiba,que,hámuitosemosóculos,tevedeseesforçarparaoreconhecer:parecia-lheaindaumgarotelho,talvezfosseofilhodoourives.Eryk,quepassaraasúltimashorasnumacelaenlameada,surgiaali imundo, a olhar para todo o lado. Depois, levantou-se e caminhou aosbamboleiosatéaocantomaispróximo.Jáaí,tombououtravezdesconjuntadoeficousentado.Comosbraçosaenvolveraspernas,escondeuorostonosjoelhoseaguardoucomoosoutros.Nãofoiprecisoesperarmuito.Osdeitadosforamosprimeirosasaber,ochão

decimentodeusinaldevidamuitoantesdosilvodoscarris.Quandoelechegou,os presos olharam pela porta ainda escancarada e contaram-lhe os vagões aperderemvelocidade.Láfora,osdoissoldadoscaminhavamapressadosentreossoprosfatigadosdocomboioenfimparado.Nessaaltura,jáocaisforaengolidopelo fumo e os vultos dos guardas que saltavamdos vagões encostaram-se àsjanelasdaestação.Vistosdecostas,pareciamtãotolhidoscomoaquelesqueosaguardavame,malacabaramdefumar,voltaram-separaasvidraças,puseramasmãosempalaeespreitaramláparadentro.Erykpreparou-se,pensousercoisadesegundos,masenganou-se.Emvezdeentraremparafazerfosseoquefosse,deixaram-seestarnaruaabaterosdenteseospésnochão,enquantopassavamgarrafasunsaosoutros.Derepente,entreduascarruagens,surgiualuzfoscadeuns faróis.Osomdocamiãoaaproximar-se levouosguardasaembolsaremabebidaeadescolarem-sedasjanelas.Poucodepois,vindodeumsítioqualquer,umnovogrupodevultosfurouonevoeiroatéàportaquedavaparaoátrio.Oqueiaàfrenteentrounasalaetirouobonéparasacudiranevecontraumcacifo.Logoaseguir,afundou-ocomforçanacabeçaesóentãofezquestãodeergueroqueixo: era Govorov, o tenente que ninguém queria encontrar. De trás dele,surgiu mais um soldado a segurar uma prancheta. Tudo aquilo que Govorovdisse então, o outro traduziu num polaco razoável. Daquilo que se entendeu,ficou a certeza da viagem,mas nada sobre o destino.Depois,mandou-os sair,masquetivessemjuízo.Àmedidaquedesfilavamàfrentedotenente,osoldadoda prancheta ia dando baixa dos nomes. Assim que os prisioneiros pisaram aplataforma,alguémlhesfezsaberporgestosquedeviamaguardar.Passoumaisumahoraatéos soldadosvoltaremàação.Aneblinadamadrugadamisturadacomosvaporesdocomboiomaldeixavaverascarruagens,mas,acadaordemgritada em russo, havia sempre um guarda a separar alguns do grupo,conduzindo-osaovagãoquelhescoubera.Erykfoinaterceiraleva,arrastando

consigoumadúziadehomenseduasoutrêsmulheres.

*O teto estava decrépito e a caliça estalara formando crostas de gesso da

espessuradopapel.Aquelelugarcondenadotolhiaotempoearazão,eTadeuszsó sabia olhar para o estuque. Na sua cabeça errante, viu um imenso mapabranco, continentes com a forma de animais e extensos mares de salitre. Oplanisférioerairreal,masissonãolheinteressou.Imaginou-seapulardecrostaemcrosta,avencerosoceanos,livrecomoumcorsário.Semsabermaisoquefazer, ensaiava assim os dias que haveria de viver para lá daquelesmuros. Aviagemdurou-lhetantoque,quandosevirounocatre,jáestavaescurooutravez.Tadeusz ainda não se habituara, à noite o manicómio era pior. Prostrados amonte, os dementes e os prisioneiros agarravam-se ao sono com urgência, aúnica pressa que ali se admitia. Para os despertos, a maneira como aquiloressoavanasparedeseraopiordosflagelos,maisaindadoqueosruídosqueosfaziam escorregar para debaixo das cobertas: um choro demulher, o bichanarríspido com que alguém se censurava, uma prece, a gargalhada ocasional aalastraràsoutrasbaiasdescobrindooutrasinsónias.Eleconseguiraumaenxergasóparasi.Oanteriorocupantedormiaagoraao

seulado,emcimadochãogelado,comacabeçapousadanumabota.Assimqueolhouparaobanquinho,Tadeuszfoifielelembrou-sedeApolónia,daspregasdepele de sedaondeomundonuncapoderia descobri-lo.O assomode terrorveioaseguir,aorecordar-sedoqueouviraaumprisioneirochegadohaviadias.Depoisdeoschamarparaaopédesi,ohomemdeitou-seacontarhistóriasealevarasmãosaorosto.Faloudoscomboiosquepartiam,faloudogelorusso,dosjudeus e dos polacos dispersos pelos campos de trabalho na Sibéria, e dosvassalosdaRevoluçãoquemorriamàresinanataigadosUrais;falouaindadosmassacres,dasvalas,doscorposindistintos,edetudoaquiloqueosesperavaaseguir ao manicómio. Ao ouvi-lo, Tadeusz cruzou os braços com uma forçademoníaca,resfolegoue,rosnandosóparasi,tratoudeacharculpadosechamar-lhesospioresimpropérios:aeles,pois!,aosisraelitas,quedesdeoprimeirodiaandavamemconluiocomosbolcheviques,viciadosnaperfídiaenadenúncia,delatandocristãos, tomando-lhesospostos,assenhoreando-sedasmigalhasqueos russos lhes atiravam em troca. Com o ódio, o seu corpo mirrado pareceurebentarpelascosturas,eosoutrosdevemter-lheouvidoasentranhasaferver,poisdesviaramoolharparaochão.Masagora,comaescuridãoeosbarulhosà

sua volta, Tadeusz tornou a encolher-se e o pavor esqueceu-o dos judeus. Pormomentos, devia ter adormecido; viu ao longe um cão a correr desnorteadonumaestepeenregelada.Chamouporele,masocãocontinuouatéserumpontonegroafugirdealgumacoisa.Eocomboioaliaolado;olhouparaaesquerda,paraadireita,nãoviufimàscarruagensechoroucomoumfedelho.Acordou ranhoso como berro tresloucado que vinha do corredor, um louco

certamente,masaquilodeu-lheumaideia.Durantemaisdeumahora,Tadeuszdesenhouoseuboneco,somouosdetalhesquequis,apagouosexcessos,deu-lheofeitioquejulgouconvenientee,acimadetudo,comprometeu-seavestiraquelapelepelotempoquefossenecessário.E,semsaberquandoosrussossurgiriamparaolevar,maisvaliacomeçarnaqueleinstante.Então,levantou-sedevagare,semadespir,abriuacamisadeumsógolpe,espalhandobotõesportodoolado.Trazia umas ceroulas muito curtas, manchadas de urina e pó de tijolo, quetambémdeixouvestidas.Commaisumgestobrusco,arrancouabotadebaixodacabeçadooutroprisioneiro,quenãochegouaacordar.Nãosabendodopardabota,valeu-sedeumtamancodemadeiraqueencontrouporbaixodaenxergaecalçou-se.Depoisdeagarrarobanquinho,saiuparaocorredor.Aclaridadequevinha das lucernas mais o lampião na porta ao fundo seria o suficiente paraevitaroscorposadormecidosnochãoàsuafrente,masnãolhesligounenhumanem tentou abafar o passo desirmanado. Queria-os a todos acordados,principalmente ao velho que os comunistas tinham posto a tomar conta dosloucoseque,naquelaaltura,estariaadormirsentadonacadeirajuntoàsescadas.Depoisdepisarmaismeiadúzia,indiferenteaosqueixumesquedeixavaatrásdesi,pousouobanquinhoaoladodaportadadespensa.Malogalgou,encostouopeitoàparedee,abrindoosbraços,nãomaisparoudeberrar.Mesmohabituadoàquelesacessos,omanicómioacaboupordespertare,poucoapouco,pôs-seempesoàvoltadeTadeusz.Oguardafoioúltimoaaparecer,furandoporentreosreclusos.Transportavacomeleumavergastadecordaeumlampiãoporacender,mas,assimqueviuosenhorpresidentedaCâmara,deixoudesaberoquefazer.Tadeuszlembravaumcrucifixo,osbraçosparalelosaochão,asmãospareciampregadasaotabiqueenquantodobravaasunhasaarranharogesso.Masopioreraacabeça,osencontrõesritmadoscomqueesmagavaatestacontraaparede.Amancha de sangue a aumentar, os gritos cada vezmais excruciantes, o risoconvulso a provar a insanidade. Até que o velho reagiu e mandou que oajudassem. Foram precisos seis homens para descerem o Presidente, para omanietarem e levarem dali para fora. Foi posto ao fundo da ala, atrás de umbiomborasgado,juntoaoloucogenuínoque,porestaramarrado,jánãolambia

asdoentes.Ficariaporali,tãoatadocomoooutro,acurardevidamenteatestaeo juízo. Paramal dos seus vizinhos, a cabeça deTadeusz só tinha arranjo porfora, pelo menos tendo em conta aquilo que ia gritando. Como um louco deverdade, ainda se ria dos outros, agora, sim, tresloucados pelos berrosincessantes.Ocertoéque,umasemanamaistarde,osrussossempreapareceram.Vinham

fardadosetraziamumalista.Dosváriosnomes,umdeles, logooprimeiro,foiriscadoatodaalargura.

*Osvagõesjávinhamcheiose,assim,quandoossoldadoscorreramasportas

docomboio,oqueixumealastrouportodoocais.Osprisioneirosespremiam-sedentro das carruagens, olhando lá para fora e uivando ao nevoeiro, não fosseesconderalgumguardapiedoso.Pediamáguaehaviaquemerguesseacimadacabeça uma ou outra criança espavorida.Nenhumdeles se afastou para que orapazentrasse,mas,empurradoporalguém,Erykláseenfiounomeiodogrupo.Já dentro do vagão, aproveitou a aglomeração junto à porta para escolher umlugar debaixo de um lanternim. Pouco a pouco, alguns daqueles que tinhamesperadocomeleiamtropeçandoláparadentroedeixavam-seficarondecaíam.OúltimofoiRomanSkiba,quevinhaatarantadoesemamulher.Acertaaltura,abriu-seumabrechaentreosqueprotestavamesurgiuumbolcheviqueenluvadoatéaoscotovelos.Semolharparaninguém,dirigiu-separaocantodovagãoe,com um urro de esforço, alçou com as duas mãos uma vasilha imunda.Encostando-aàcintura,dobrouotroncoparatrásearrastou-aempassoscurtos,poucoseimportandoqueestivesseatransbordar.Aochegaràporta,passou-aàsquatro mãos estendidas que aguardavam no exterior, recebendo em troca umbaldevazio.Atirou-oparaochãocomviolência,amelhorformaqueencontroupara insultar os prisioneiros, e saltou da carruagem. Só então Eryk admitiu apestilência,apalhaencharcadaemquesesentara,asededosoutrosquejáeraasuasede,a fome,o frioeatéobaldeobsceno.Quandoasportas se fecharam,confirmando mais uma paragem sem pão, houve quem desesperasse. Talvezvoltassem a abrir, disparataram alguns, talvez ficassem ali, talvez osalimentassem.Eporissofoicomasvíscerasqueescutaramosomirremediávelquechegavadoscarris.Aprincípio,orodadorenitentedocomboiosólembravaopesobruto,acadênciavagarosadoaçocontraoaço,apressaquehesitavaedava esperança aos condenados, como se a vontade deles ainda importasse

algumacoisa.Mas,piordoqueavozdamáquina,sóoestertordacargahumana:denovoastosses,osescarros,osvagidoseasprecestolas.Quandodeixaramaestação,nemtodossesentaram,maisvaliaaparvoícecomqueolhavamparaaportaaferrolhada.Amanhã já ia alta, mas ali parecia noite. Os lanternins sem vidro eram as

únicasfrestasporondepassavaaluzeoarparacempessoas.Erykcontinuavasentado comas pernas dobradas e os joelhosprensados contra o peito.Estavaloucoporselevantar,cadaosso,cadamúsculo,aexigir-lheumanovaposição,um movimento que fosse, mas os corpos esmagados contra si tinham-no alitolhido.Passaramquasedezhoras,atéque,semsesaberbemporquê,oapertoafrouxou, dando-lhe enfim algum espaço. Tudo para somar mais um revés,quandonãosentiuaspernas;misericordiosamentenãolhedoíam,mastambémnãosemexiam.Empurrou-ascomasmãos,estendendo-assobreotroncodeumjudeuadormecidoepôs-seamassajá-las.Àmedidaqueganhavamvida,sentiuas primeiras picadas e, quando foi trespassado por um milhão de agulhas,esfregou-se cheio de fúria como se pudesse espremer a dor. Por fim, lá selevantou com a ajuda de um qualquer e subiu ao lanternim. A noite estava achegar,jáseviamluzesaofundo,muitopoucas,nãomaisdequatrooucinco,decerteza homens livres no calor das suas casas. Eryk recusou aquela imagem,preferindovirar-separaosmiseráveisamontoadosemseuredor.Aosseuspés,uma mulher sentada dava a mão a um garoto que trazia um carapuço. Napenumbra do vagão, o rapaz já lembrava um homenzinho, uns doze anos, oumais.Doispassosàesquerda,espojadonumsacodepalha,umpolacocolossalaquemalguémchamaraSoboldormiaaumcantodacarruagem.Erykreparou-lhenas mãos cruzadas, na largura da cabeça e no casaco de soldado que o sonorepuxavaacada inspiração.Mesmoadormecido,Sobolnãoparecia inofensivo,haviaqualquercoisadoentianosseussonhos,oxalánãoacordassecomele.ErademadrugadaquandoEryk,mesmoempé,prolongoua inconsciênciao

maisquepôde.Apoiando-senaparedeenosoutrosprisioneiros,concentrou-seatodoocustonodeleitepreciosoquesentia.Malseconvenceudequejáestavaacordado,deucontadequeacabaradeurinar,dequeseencharcaraadormir.Porissosentia-semorno,sentia-sebem,e,podendoprolongaraqueleconsolo,quemsabeesqueceriaalínguaeoslábiosgretadospelasede.Poucodepois,ascalçasgelaram,asedecontinuou,mashaviaumadiferençanoqueouvia.Ocompassometálicoquechegavadoscarrisdavamostrasdeceder,ocomboio iaa travar.Num instante, os lanternins encheram-se de rostos ávidos, e ele fez omesmo,

apoiando-senumavigotaparapoderespreitar.Calculouquefosseumaestação,até porque estava parado um comboio na outra linha. Assim que o delesestacionou, Eryk forçou a cabeça contra a fresta e olhou para baixo. A nevecomeçaraaderreter,destapandoobalastroeformandopoças.Desesperadopelasede,Eryktorturou-seaveraágua,atéque,debaixodeumvagão,surgiramdoiscães lazarentos.Aopassaremjuntoàspoças,pararamparacheiraraágua,masnenhumbebeu.Aoinvés,espetaramasorelhasefarejaramoaremdireçãoaosolhosesgazeadosdorapazqueespreitavaládecima.Desinteressados,seguiramcaminho.Nesseinstanteaportaabriu-se.Erykfezcomoosoutrosechegou-seàsaída.

Os prisioneiros foram então autorizados a abandonar as carruagens e aplataformaapinhou-sedequeixumes,protestosemiídicheeempolaco,quesetornaramferozesmalsurgiramarrastadosnocimentoosgrandescestosdevime.A chuva oblíqua ia empapando o pão acabado de chegar e a avidezdesmanchava-oantesdechegaràboca.Esvaziadososcestos,aindahaviamãossemnada,muitosdecócorasaapanhardochãoos restosensopadosdomiolo.Depois,comoninguémlhesdeuágua,beberamtodaachuvaqueconseguirameosmaisprevenidosaindaencheramoscantis.Aquiloduroupoucosminutos,atéos russos começarem a cuspir ordens. Quando regressaram ao comboio, Erykfoi-sepôrnomesmo sítio, amulher eogarotodocarapuço sentaram-seoutravezaos seuspés, eSobol, opolacocolossal, afastouapontapéosdois judeusque ocupavam o seu canto. Roman Skiba, ainda mais desnorteado, voltou aaparecersemamulher.Haviampassadoquatrodiasdesdeaúltimaparagem.Ospãesqueumououtro

tinhamescondidonasroupasesgotaram-seaofimdedois,oúltimocantilantesainda.Efoimesmopelasedequecomeçaramamorrer.Erykviuovelhosentadoe encostado junto à porta. Parecia espantado com a morte, os olhosdesmesurados, o trejeito da boca a dar a ideia de que teria rezado até ao fim.Todos os lanternins estavam agora ocupados, os homens esticavam os braçosparaalcançaracoberturadovagãoerasparogeloacumulado.Depoisdedescer,osquetinhamfilhosoumulheresdavam-lhesasunhasalamber.Mas sobrava ainda espaço para o engenho, desta vez num dos extremos do

vagão,ummetroacimadacabeçadeSobol.Amanchadeáguaeracompridaealastravapelo teto.Assimquechegavaaocantodacarruagem,escureciaaindamais, largando de quando em quando uma gota miudinha. Mal se apercebeudisso, o gigante passou a recolher os pingos na mesma caixinha de lata que

usavaparaguardarosdentes.Paraissoprecisavadeumsuporte,queencontrouao arrancar as hastes dos óculos, espetando-as de seguida entre as tábuas daparedeparaapoiaracaixinha.Contadospelorelógio,nãodariatrêssalpicosporminuto,coisapoucaaofimdeumdia,aindaassim,Soboltinhaalioseutesouro.Numdessesdias,ogarotodocarapuçoacordoudesatinadoeadiscutircoma

mãe.Azangaeraabafadaeàânsiadofilhoretorquiaelaabichanareapuxá-loparasi.Derepente,orapazlevantou-seefoiarranjandosítioparapousarospésaté chegar ao canto do vagão. Como se tornara habitual, Sobol adormecerasentado na palha e com a cabeça encostada à parede. Eryk sobressaltou-se,adivinhouoque ia acontecer epreferiu esconderosolhosnos joelhos.Assim,nãoviuorapazaesticar-seeaestenderamãoparachegaràcaixinha.Masouviuorugidopavorosoqueseseguiu.Ao levantaro rosto, jáohomemempunhavaumanavalhanamãoesquerda.Quandoomonstroeorapazseencararam,todaacarruagemolhouparaochão.Prostradasobreas ripasdosobrado,amãecalou todasassúplicas logoque,

porcausadeumsógolpe,o filho lhecaiuà frentecomumlanhonopescoço.Pondoumrostoapalermado,aindausouasmãospara lheestancarosanguee,numatorrentedeimprecações,ralhou-lhepordormir,beijou-oesacudiu-opelosombros como a um boneco de trapos. Aomesmo tempo, Sobol virou-lhes ascostase,meticuloso,alinhoudenovoacaixacomasgotasquepingavam.Àsuavolta,orestodogrupoespremeu-semaisumpoucoparaevitartocarnamorte.Nessemesmodia,láparaofimdatarde,ouviu-sedofundodovagãoumavoz

festiva: casas!, centenas de casas, milhares de casas, uma cidade inteira logoatrásdaquelasárvores.Passadosdezminutos,tinhamchegadoaMinsk.Mal deram com o comboio, os soldados que aguardavam na estação

distribuíram-seatrásdeumastábuascorridasapoiadasnunsbidões.Aseguir,ossonsjáconhecidos:osferrolhoseasportasacorrer,ospresosasaltaremparaocimento e as solas a arrastarem. Ali à frente, as panelas, o fumo a subir dasmalgas prontas a servir, a sopa rala, a côdea e os bidões de água capazes deencher cemmil caixinhas. Eryk sentou-se no chão para comer. À sua frente,passouRomanSkiba. Já traziaumpãonamãoque levavaàboca semanseio.Olhava em frente, olhavapara todoo lado, eo rapaz calculouque estivesse àprocura da mulher. Pobre comendador, outra vez igual aos outros: os sapatosrebentados,a roupacomnódoase restosdepalha,ocasacoenfiadonascalçasparaevitarqueofrioentrasse,amedalhadacidadequeusavacomoumaferida.Logoatrás,vinhatambémFinkelstein,tãorendidocomoele,masdesgrenhadoeafalarsozinho.Nesseinstante,Erykolhouparaascarruagens.Enganchadasnos

estribos,viuasrampasdemadeirafeitascomportasvelhas.Ossujeitosqueasgalgavamvestiamàcivil,caminhandosempreaospares.Foraaelesquecouberalibertarocomboiodosseusmortos,empilhá-losnascarretasevazaracargaparadentro do camião estacionado no final da plataforma.Numa das carretas, ia amulher de Roman Skiba embrulhada entre os cadáveres. Levava a mãopendurada, a arrastarpelo chão, eporpouconão tocounopédocomendador.Assimqueareconheceu,Skibadeuumbradoagonizanteeperseguiuacarreta,lançando-se por cima dela. Foramprecisos três homens para o arrancar de lá,deixando-ocomardelouco,degatasnomeiodocais.Entretanto,apareceramunssoldadosapuxarumasmangueirasqueapontaram

para dentro dos vagões. Dali a pouco, a água preta já escorria pelas portas,trazendo consigo a palha e os excrementos mais os baldes que rolavamesvaziados. Finalmente, uma carroça puxada por cavalos atravessou o cais,enquantoosdoisocupantesatestavamcomcarumaascarruagens.Rendidos os fogueiros e os maquinistas, silvaram enfim os apitos e todos

voltaramaocomboio.

PARIS,2002

AopassarporMarceau,Viviennepisouascascasdassementes.–Jásehabituouatê-loporcá?–perguntouaolivreiro.–Émaisumacoisaparaeumedesviar.–Olhequeeleoouve.Yankeldeixou-secairnosofá.–Poisqueouça.Nestesoitentaanosnãoencontreininguémcapazdetroçarde

umcego.MonsieurMarceaufá-loàdescarada.–Então?– Não dá conta da ironia? Dizem que parece um arco-íris, gabam-lhe a

conversafiada,eeupergunto:paraquê?!Oqueéquefaçocomascoresdele?Edepois só usa o bico para se encher com as porcarias que lhe traz a porteira,acabou-seooboé,nemumarpejo.Viviennenãosabiaseeleestavaafalarasério,mastambémnãoseimportoue

sentou-senapoltrona logoàbeirada janela,pousandonos joelhosumamaletadecouro.Apastaqueretirouerapesada,haviadúziasdepequenosmarcadorescoloridoscoladosàsfolhas,epousoutudonoassentodeumacadeirapróxima,antesdesevirarparaele:–Easuador?O livreiro mostrou-lhe um trejeito de indiferença, mas, talvez por instinto,

levouamãoàzonadopescoço.– Vai e vem, o meu médico é um herói – disse com pressa de mudar de

assunto. – Já percebi que traz papelada. Descobriu alguma coisa que valha apena?Elanãoinsistiuecolocouapastaaocolo.–Sim.Tantonostextosantigos,comonosmaisrecentes.Tudoforadeordem,

comoimagina,masporenquantoéindiferente.Quandoacabarderasgaroquenãointeressa,logosearruma.–Ehojeveioaquiparaadiantarserviço.

–Nemmais.Encontreiistoontem–disseVivienne,enquantoseparavaquatroou cinco folhas escritas em letra miudinha, cheias de notas nas margens eparágrafos inteiros riscados com intolerância. – Há muito mais, mas para jágostavade ler-lheestaparte.Lembra-sedequandooErykfoideportado?Temaquiaviagemquase toda.Senãoencontrarmaisnada,chegaesobraparaumcapítulo.Yankelpreparou-separaaouvirecruzouaspernas.Lembrava-seporaltodo

relatoqueEryklhecontarahaviamuito,masnuncaconheceraosdetalhes.A leitura já durava há uma hora, Yankel interrompera-a muitas vezes,

perguntaraoquequiseraechegaraacomover-se,atéqueViviennefoiperdendoforçanaspalavras:– «… Rendidos os fogueiros e os maquinistas, silvaram os apitos e todos

voltaramaocomboio.»–Umapausa.–Oquelhedisseomédico?–perguntouela,semlevantarosolhosdopapel.Yankel demorouum instante a perceber que a pergunta não fora lida. Ficou

calado, trocou a perna cruzada e, como se fosse capaz, pareceu procurarqualquercoisaentreobulíciodosrelógios.Nãosabiausarorostoparadizeroque não queria, e, assim, preferiu um aviso inexpressivo para lhe dizer averdade:–Sequercontarcomigoatéaofim,émelhorapressar-se.Vivienne olhou para as próprias mãos cerradas, exangues, a arrepanhar as

folhasmanuscritas. A seguir, susteve a mágoa omais que pôde, até se sentircapazdefalar.–Queestáaquererdizer-me?–perguntouela,detestando-seporcausadavoz

húmida.Yankelolhou-acegamente.–Nuncadepoisdooutono–respondeu.–Parece-lhesuficiente?Suficiente…?Vivienne abominou ouvir-lhe aquilo, de todas, a palavramais

impiedosa.Háquantotemposeesgotaraodireitodeadizeremumaooutro?

SUDOESTEDEELNIKI,RÚSSIA,fevereirode1940

Levaram mais um dia a chegar ao destino. Era de madrugada quando ocomboioparouenãohavianinguémparaosreceber.Aestaçãonãopassavadeumcaixotedemadeirasemjanelas.Doaltodolanternim,Erykviuumimensodescampadoemilharesdecotosdeárvoresdecepadasrenteaosolo.Entreeles,umaestradadeterraemlinharetaqueuniaocaisàflorestaláaofundo.Ficaramaliparados,atéque,ameiodamanhã,viramasnuvensdepóasairdomeiodasárvores. Ao chegarem à estação, os camiões estacionaram do lado de lá docaixote, mantendo os motores a trabalhar. Dentro do vagão, aqueles queespreitavamparaaruadesceramdoslanterninseesperaramcomoosoutros.Derepente, precedendo a gritaria, a porta abriu-se de chofre para entrar o frio daRússia.Láfora,comasespingardasaoombro,osguardasenregeladosenchiamoardefumocomobafoembriagado,enquantogritavamaosprisioneirosparaquesedespachassem.Comapressa,algunsestatelaram-senochãomusgosodocais,logopisadospelosquesaltaramaseguir.Erykemaisunsquantosficarampor ali a convencer os desistentes, a ajudar a levantá-los, e, emmenos de umquartodehora,os camiões já estavamaabarrotar e a caminhoda floresta.Aslombas da estrada feriam-lhes as costas nos taipais e aqueles que iam de péfizeramopossívelpornãosercuspidos.Viradosparaaestação,puderamverocomboioapartirumavezmais.Muitosdosvagõesnãotinhamchegadoaabrirasportasetalvezsóofizessemparadespejarorestodosescravosnoutrocampomaisaleste.Antes de alcançarem a floresta, Eryk reparou nos troncos empilhados,

descascados, marcados a tinta branca com letras e números sem aparentesentido.Depois, já na orla, os primeiros homens.Carregavam a custo os seuscorpos descarnados e ainda os machados com que rachavam os pinheiros.Deixavam-nos cair sobre os troncos, a seguir caíam eles, ajoelhados, e

descravavamdamadeiraascunhasmalafiadas.Nenhumse importoudeolharparaosquechegavam.Aestradamanteve-sealinhadapormaiscemmetros,mas,depoisdaprimeira

curva,seguiram-sedezminutossinuososatéaoamontoadodebarracõesemqueterminava.Acercaqueosrodeavanãopassavadeumsem-fimdepostestortosunidosporfiosdearame,quasesempreinterrompidosemalgumsítio.Paradoaopédaentrada,ocamiãodafrenteaindatentoubuzinar,masoguinchoroufenhoabafadopeloventotevedesersubstituídoporumpardetirosparaoar.Poucodepois, vindo de um dos barracões, aproximou-se um vulto aos tropeções.Oscamiões voltaram a arrancar e, ao passar pela entrada, Eryk reparou naquelerusso que lhes abrira o portão: fardado, mas imundo, a mostrar o peito e abarriga descaídos, os seus olhos vermelhos pareciam atiçar-se à passagemdosnovos prisioneiros. Já lá dentro, sempre carregadas, algumas mulheresatravessavam o campo; outras, quase escondidas no fumo das panelasgigantescas, terminavam ao ar livre a sopa do meio-dia. Havia muitas mais,como Eryk não tardaria a descobrir, mas essas estavam para lá da cerca, nodescarrascodasárvores.Edepoisascrianças:quasesempreemgruposde trêsouquatro,deambulavamporalisemrisosnemcorrerias.Erykolhouemvoltaecontouosbarracões.Doze, semcontarcomasduascarruagensarrancadasaosrodados de um comboio e arrastadas até ali para abrigar as ferramentas e ossacosdefarinha.Quandosaltaramdoscamiões,mandaram-nosesperar.Tinhamfomeesedee

frio,porissocaminharamatépertodaspanelas.Nessaaltura,alguémlhesberroudooutrolado:eraorussoquelhesabriraoportãoabrandirumpistolãoe,pelosgestos,mandava-osficarquietos.Eelesficaram.Poucodepois,oshomenseasmulheresqueandavamnaflorestaregressaramparacomer.Vinhamalquebrados,calados,ealinharam-seàfrentedoalmoçoporordemdechegada.Erykfoidosprimeirosa juntar-seà fila,mas,assimquechegouasuavez,asmulheresqueestavam a servir olharam-lhe para asmãos vazias emandaramvir o próximo.Famintocomoestava,acabouporse indisporesónãousoude forçaporqueorussoandavaperto.Acenarepetiu-secomosoutrosrecém-chegados.Umaum,ficavamaolharparaaspanelascomumarapalermado,atéperceberemquesemmalganãosesobrevivia.Osmaisdesesperadosaindauniramasmãosemconchaouesticaramumabota,massaíramdali tãoesganadoscomoantes.Por fim, láforamvasculharocampo,eaquelesqueencontraramqualquercoisaondelevaroranchovoltaramapôr-senafila.Comotempo,aprenderiamque,nocampo,asopasabiasempreàsopadeontem,sabiasempreabarro,edavaparaouviras

areiasestalaremnomeiodosdentes.Masaquelaestavaquente,amelhorsopadomundo, e, assimque terminaram, ainda usaramos dedos para rapar a gamela.Comachegadada tarde,oSoldespontoue todossedispersarampelo terreiro.Encostados aos barracões,muitos aproveitaram para dormir, outros nem dissoforamcapazes–ficaramalisentados,depernasestendidasebraçoscruzados,aolharparaasbotasesfarrapadas.Ao toque da sirene, o campo assistiu à coreografia dolorosa a que já se

habituara,quandoosquinhentosprisioneirosrepetiramosgestosesforçadosunsdos outros: primeiro, deitados de lado; depois, de gatas; por fim, ajoelhados,antesdeselevantarem,pegaremnosmachadosesaíremacaminhodafloresta.As mulheres que tratavam da comida deram a vez a outras, e as criançascontinuaramporali, imiscuindo-seentreosnovoshabitantesdocampoque,denovoamontoados,continuavamaaguardarquealguémdessepelasuapresença.Atardeteriasidoapenasisso,nãofosseamatilhaquedeucabodosilêncio.Oscães vinhammal articulados, pareciam tropeçar nos próprios ossos, caíam deexaustãoesóseerguiamporcausadascadelas.Orestodaenergiaiatodaparaos protestos, os cainhos roucos amostrarmacheza. Eryk viu-osmesmo à suafrente,asfalhasdopelo,aschagaseasorelhasretalhadaspelaslutas.Olhando-osassimdeperto,lembrou-sedesiedogrupodeindigentescomquemestava.Só ameioda tarde é que alguém lhes deu atenção.E foi outra vezo russo.

Depoisdeosreuniràsuavolta,Shuraapresentou-se:eraocapatazdocampoe,segundoopróprio,aúnicavozquecontavanumraiodemilquilómetros.Assimsendo,haviaqueatentarnasinstruções:chegadoodiaseguinte,todosteriamquefazer,queria-osàsseisempontojuntodacarruagempararecolheraferramenta.Iampassarodianafloresta,elesacortarárvores,elasàresina.Ascriançasmaispequenas podiam ficar no campo, mas era por conta delas. Nessa altura, umjudeuescanzeladoperguntouoqueseriadosdoentes.Shuraaproximou-sedelecomumsorrisoradiantequenãochegouadesfazernemmesmoquandoosocou.«Os doentes?Os doentes vão para ali», disse, apontando para a esquerda.Noenfiamentodoseudedo,doladodeládacerca,encontravam-sedoishomensaesgaravatarochão.Mesmoaopé,haviaumacarretainclinadaejávaziae,emredor, dezenas de cruzes grosseiras cravadas na terra, campas cobertas compedras,restosderoupaapodrecidaerelíquiasenlameadasqueoventoarrancaraàs sepulturas.Cadaum ficou a olhar para aquilo, aomesmo tempoqueShuralhesviravaascostasacaminhodeumanexo.Seriaali,noseupardieiroprivado,queocapatazbeberiaoquepudesseatécaircomomorto.Passaram mais duas horas. Durante esse tempo, Eryk e o seu grupo

espalharam-se pelo campo. Uns sentaram-se à espera, outros procuraramqualquer coisa onde levar a sopa, mas, quando os outros prisioneirosregressaramda floresta, já todosaguardavampela filado jantar.A refeiçãodofimdatardelembravarealmenteasopadomeio-dia,menoslíquida,écerto,mascom omesmo sabor a porcaria que nem as lascas de peixe seco conseguiamdisfarçar.Comanoite,veioovento,eosquetinhamparaondeirresguardaram-se do frio. Não se viam guardas, mesmo assim as filas à porta dos blocosdurarampouco.Numinstante,aquelesquehaviamchegadodemanhãacharam-seoutravezasós.FoiquandoSobol,oassassino,avançouempertigadoatéaobarracão mais próximo, esbarrando na porta trancada. Transtornado pelo frio,esmurrou tudo o que encontrou, esfolou-se contra as tábuas, prometeu-lhes oinferno caso não o atendessem, mas nem a porta se abriu nem ninguém lherespondeu.Acenarepetiu-seumpoucoportodoocampo,deixandoogiganteaodesabrigo, bem como o resto do grupo. Foi então que as luzes se apagaram,restando apenas os focos desmaiados junto à cerca. Depois, a chuva e umacorridadesorientada,osencontrõeseo somdospésadespegaremda lama.Àfaltaderesguardos,sentaram-seencostadosaqualquercoisanoescuro,taparam-se com as golas e esperaram que a manhã viesse desmentir as horas quepassaramsemdormir.Osvultosdocampocomeçaramaganharformaecor,maspoucopassariamdo

cinzento. A sirene voltou a ouvir-se e, passados momentos, as portas dosbarracões abriram-se ao mesmo tempo. Os residentes saíram com as mãosmetidas nos bolsos e os queixos apertados contra o peito.A seguir, formaramparaocafé,umafiladeescravossilenciososabateremcomospésnochãoparaespantarofrio.Semterporondebeber,Erykfoitrabalharnamesma,peloque,chegada a altura, seguiu atrás dos outros a caminho da floresta. Assim queregressasse,haveriadefazercomoosdemaiselutar,qualanimal,porumcopoou uma colher. Também poderia levar aquilo a bem e ajustar, negociar semqualquerescrúpulo,atéporquenocampotudoestava tabelado:umamalgaporrapareraomesmoqueumcigarro,umas folhasdepapelparaescreverdavamparaoutrastantassopas,eporcercademeiopãoeumbocadodelábialevava-seumgarotoparaobeliche.

NORDESTEDAPOLÓNIA,maiode1941

Sealgumforasteiropassassepelocírculoperfeitoeosvisseassimcismados,nunca imaginaria como era aquela gente apenas uns meses antes. Outrorainchadosesoberbos,oscristãospareciamtísicos,espavoridos;eraolhá-losagorapelas ruas da cidade como sombras fugidias no passeio, a esbarraremuns nosoutros,mortinhospor iremparacasa.Acidadetresandavaacomunistas,e issobastavaparaosdeixarnaqueleestado.Já o efeito nos judeus era diferente. Vergados desde sempre à vontade dos

gentios,viam-seenfimigualados,nemquefossenamiséria.Depois,cientesdosrumoresquesopravamdesdeaAlemanha,olhavamparaosbolcheviquescomoummalmenorepareciamresguardar-seàsuasombra.Para grande irritação dos batizados, os judeus tornaram-se insolentes. Sem

qualquerconstrangimento,calcorreavamlivrementeametadedacidadequenãolhespertencia,juntavam-senolargodaigrejaduranteasmissaseconversavamemvozalta,conspurcandoaliturgiacomoseulinguajarvenenoso.Masfaziampior:semsaberemoque inventarparabajularosrussos,mostravam-sesempreservis,eusavamdaperfídiaparaacusaremoscristãos.Estesviamnogestoamaisnefandadastraiçõese,quandoosseuscomeçaram

a partir enjaulados nos comboios, não pensaram duas vezes para saber quemculpar.Osrussos,jásesabia,erammalignos,masosjudeus,vizinhosdecincoséculos,mostravamserdemoníacos.Queninguémlhesdissessequetambémiamnoscomboiosemorriamcomoosoutros;não!,ondehouvesse israelitas,haviaumninhodevíboras.Por isso, fizeram a Cristo a mais solene das promessas: se um dia os

bolcheviquespartissem,cadacristãoquesobrassesaberiaoquefazeràraçadesabujosenemumacabeçaficariaporpisar.

Shionkaconduz-mepela ruaquevaidarà sinagoga.De repente, desvia-mecomumpuxão,oquemefaz tropeçarassimquedesçoopasseio.Metemo-nosnoutrarua;não,ésóumbeco,ouçoanossacorreriaaressoarentreasparedesapertadas e acho que sei aonde vamos. Ultimamente, sempre que saímos, éassim: Shionka a querer proteger-me, a travar sem avisar, a empurrar-me, aesconder-me,a tapar-meabocaparaver seelespassamsemdarpormim.Aprincípio,julgueiqueeramsóosrussos,masagoraseiqueháoutros,conheçoassuasvozespolacas,crescicomelas.Derepente,osomdospassosédiferente,saímosdobeco;enãomeenganei,

vamosacaminhodafloresta.Rasia jáme tinhaavisado,oscristãosandamdiferentes,eeu,se tiver juízo,

nãomeaventuronoladoerradodoshtetl.Shionka ainda é mais cautelosa, prefere as árvores, só ali ninguém a

surpreende.Distinguetodososbarulhos,aperta-meobraçocomforçaquandoquer que eu me cale e põe-se a ouvir a floresta. Às vezes é só por quererbrincar;então,faço-lheavontadeealinhonosseusjogosinfantis.Éoquefaznestemomento,põe-meaadivinharossons:Acodorniz!,arriscoàsorte.Descubroquefalheiquandomesopranacara–

diz-meàsuamaneiraqueéapenasoventoasacudirumramo.Masaindanãoestásatisfeitaecontinuaapôr-meàprova.Comoadoraanimais,pegaemtudooquemexe.Agoraéumsapoqueabafanoseucolo;ouentãomaisumengano.Eu que veja pormimmesmo e, para isso, agarra-me asmãos e pousa-as nabarriga.Pois, não é um sapo; encontro apenaso somcavodo seu estômago;alémdequererdivertir-se,estácomfome,nadadenovo.Saiacorrerevoltanuminstante;leva-meàbocaosmorangos,elamesmaos

vaicomendoporqueaouçomastigar.Eobarulhoquefazacomersópodeserde propósito, sabe que me irrita, não quer parar de brincar. Mando-a estarsossegada, digo-lhe para ser crescida,mas é escusado,mastiga furiosamente;atéqueesticoamãocheiodegenica,paralhetaparaboca.Porazar,calculeimal, já está em cimademim,mais perto do que eu pensava, e acerto-lhe emcheio no nariz. Cospe-se toda e, claro, cospe-me também, devo termorangosportodoolado.Shionka!A seguir, o costume: as gargalhadas, eu estridente, ela a sacudir-se, e só

paramosderepenteporqueéimpossíveldisparatarsemnoslembrarmosdeErykedafaltaterrívelquenosfaz.

*TaubaSandbergachou-selinda.Mesmodepoisdecasada,continuavaaolhar-

seaoespelho,mas,destavez,nãoandavaempassinhoscirculares.Eradeperfilque se queria, agora, sim, esticada pela vida que trazia no ventre. Vestiu-sedevagareapreciou-seacadapeçaderoupaacrescentada.Ocorpetedegrávidademorou-a mais do que o resto, tantos os cuidados com que o ajustou. Emalturas como aquela, sentia-se tocada por Deus. Esquecia as ruas, osbolcheviques,atéoolharagrestedosgoyim20.EdepoishaviaPerla,tambémàsportasdesermãe.Tauba,quecresceracomela,vira-asempreumpassoàfrente:Perlanasceraprimeiro, entraraprimeironaBaisYaakov, fizeraprimeirooBatMitzvá,casara-seprimeiroe,claro,seriamãeantesdela.Paraasduas,maisdoqueofrutodeumacaso,foraaescolhadoAltíssimo:eraaPerlaquecabiaabrircaminho e, se algum dia esbarrasse na tragédia, haveria de esperar por Taubaparapodersofrercomela.Assimqueacaboudesevestir,desceuasescadas.Amãecombinaraesperá-la

àportadecasaejádevialáestar.OprédiodePerlaficavaaovirardaesquina,masasjovensdoVigelenãopasseavamsozinhas.Taubalevariaodiaemcasadaamiga,deliravacomaideiadeajudaraprepararachegadadobebé,masteriaderegressarantesdeBaruch.Oarmazémdealgodãoforadasprimeirascasasqueosbolcheviquestinhamfechadoeissolevavaomaridoasairmesmosemteroquefazerevoltaraofimdatarde,incapazdeolharparaela.Mal abriu a porta, Tauba franziu o rosto por causa do barulho. A mãe

aguardava-a no passeio e tiveram de gritar para se fazerem ouvir. O somenrouquecido daquelemegafone pendurado pelos russos no telhado juntava-seaoquevinhadeaparelhossemelhantesespalhadosnosúltimosmesesportodoocírculoperfeito.Assimdesencontrada,aInternacionalrepetia-sedoalvoraofimdatarde,levandoàinsanidadeatéquemficavaemcasa.Detalformaecoavanacabeçaque,mesmocontravontade,erampoucososquenãoatrauteavambemparaládorecolher.Asduasmulheresnãovoltaramafalaratéchegaremaofimda rua. Perla espreitava-as da janela e desapareceu para lhes ir abrir a porta.Passaramorestodatardeàsvoltascomoenxovaleaindaacharamtempoparamudaro sítio aosmóveisdoquartinhoda criança.Quandoderampelashoras,Taubaeamãelevaramasmãosàcabeça.Despediram-senuminstanteefizeramocaminhoderegressoquaseempassodecorrida.Talvezfosseporissoquenãose aperceberam dos dois homens de fato com quem se cruzaram. A poucosmetrosdecasa,estranharamverBaruchparadonasoleiraaolharparaaruacom

umaraparvalhado.Tinhaumpapelnamãoe,aoveramulher,entrouemcasasemfecharaporta.Taubafoitercomele,masnãolheconheceuoolhar,nuncaovira devastado. «Está assinado pelo Govorov», disse ele, mostrando-lhe anotificação.Apenasduaslinhasescritasàmáquina,qualquerumainequívocaebrutal:Taubadeveriaapresentar-senoManicómioPasternaknamanhãseguinte.Mesmolevandoamãoàboca,amãedarapariganãofoiatempodeabafarumgrito:aprisão!,aSibéria!EfoiissoquearrancouBaruchàletargia:empertigou-seemandoucalarasogra,deixar-sededisparates,nãoseprendeninguémcomumpostalzinho.No outro dia, Tauba e o marido chegaram ao manicómio antes da hora

marcada. O edifício parecia abandonado, as paredes descascadas, certamenteuma moléstia que lhe vinha das entranhas. Coberto pelas cepas e ervasdesgrenhadas,ojardimtambémganharacoresdedoente,eocasalatravessou-osempre a ver onde pisava. A porta do hospício estava entreaberta, e Baruchpreferiuespreitarpelafrinchaantesdebater.Porém,aofazê-lo,alguémaabriude rompante. O velho funcionário olhou para eles e, num instante, o desdémimpôs-seaoazedumedeosteralitãocedo.Nessaaltura,Baruchmostrou-lheopostal.Semsequero segurar, ooutro leu àpressa a intimação evirou-separaTauba. Percorreu-a com os olhos e a seguir cravou-lhos na barriga. Depois,abanou a cabeça antes de encolher os ombros. «Vens fazer a vez da velha»,informou,«ecomeçashojemesmo».Baruchpôs-seentreosdois,elequetivessejuízo, a mulher não podia trabalhar, estava prestes a ser mãe. O funcionárioencolheuosombrosevirou-lheascostas,deixandoaportafechar-selentamenteatrásdesi.Enquantoseafastava,perguntounumtomjocososedeviatransmitiraGovorov a relutância damenina em servir a Revolução. Tauba afligiu-se, e omarido teve de decidir a tempode usar o pé e travar a porta.Meia horamaistarde,jáBaruchregressavaacasadestroçadoeTaubadescobriaoqueesperavamdela.Ascincovoltasdechave,todasmaloleadas,parecerammarteladasnosilêncio

que lhes chegava das escadas. A porta quis abrir-se, mas estava perra ouprendeu-seemqualquercoisa,eovelhofuncionáriodeu-lheumencontrãocomo joelho. Nessa altura, já Tauba recuara um passo, empurrada pelo fedorindescritível.Fosseoquefosse, tornavaoarmastigável,pútrido,eseocheirofossedegentemaisvaliaacreditarqueomundoseestragaradevez.Ohomemchamou-a,maselasóoouviuàsegunda.«Bem-vindaaoCorredor»,disseele,

mostrando-lheumsorrisoescalavrado.Malentraram,Taubapregouosolhosaochão enquanto era apresentada: a camarada Sandberg estava ali para auxiliar,massólhepertenciaatenderàsprisioneiras;oshomenseramcomele,porissonão a aborrecessem. E mais não disse, foi-se embora, deixou-a a sós nopurgatórioefechouaporta,nãoseesquecendodenenhumadascincovoltas.Àsuafrente,Taubaviuumaextensasalanapenumbra.Entãoaquiloéqueera

o Corredor? A tal gruta ominosa que povoava os pesadelos do shtetl desde achegadadosrussos?Taubavacilou,nuncaoimaginaratãodecrépito.Deumladoe do outro, as baias tinham cedido à humidade e às refregas dos detidos,revelando duas fileiras de catres. Em cada um havia mulheres e homenssentados,oraaolharparaos joelhos,orapara todaaparte.Cada janelaestavaentaipada pelo exterior, escondendo da rua as grades de ferro, e a única luzchegavadotelhado.Asduasclarabóiaseramamplas,masapelículagordurosaquecobriaovidrosódeixavaverumcéuacastanhado.Naparededofundo,logoporcimadaportadaslatrinas,alguémdesenharacomlascasdetijoloumretratode Estaline a fornicar com um bode.Ali todos semisturavam: loucos e sãos,judeusegentios,homensemulheres,emboraestasformassemumgrupoàparte,junto à entrada. Mesmo ao seu lado, entretidos num concurso de arremesso,quatroloucoscuspiamomaislongequeconseguiam.Taubaquisdesviar-se,massentiu-secoladaaochão.Olodopegajosoquecobriaopavimentotresandavaaurina e a excrementos, empestando tudo e todos. Quando secava, já estavaagarradoàsroupas,àpeleeaoscabelos,umacrostasemremédio,bastavaviverali.Nesseinstante,ouviram-sepassos,alguémlargaraoseucatreeaproximava-sepelo corredor.Afinal eramdois: a jovemquevinha à frente, eum rostoderapazaespreitarlogoatrásdela.Kasia,adossaposelacraus,fixavaTaubacomumolharesforçadoeavaliador.JáFlorian,odoSolsobreosulmeiros,refulgia,sorrindo com a pressa de chegar ao pé da nova funcionária.Assimque o fez,caiude joelhosà sua frente, emadoração,deolhospostosnabarriga.Depois,usando asmãos que tremiam de ansiedade, percorreu-lha como se afagasse omundointeiro.Aomesmotempo,Kasiaandavaaliàsvoltas,estudandoTaubaaopormenor.Reservavaosorrisoparaomomentodacerteza,haveriadecomprovarqueaquelaraparigaassustadiçanãoerarastejante.Paraissocheirou-a,tocou-lheasmãoseopescoço,colou-lheoouvidoaoventreàprocuradevozesdeanimal,esóentãopôdesorrir.Radiosos,osdoisirmãoslevaram-napelamãoatravésdoCorredor emostraram-lhe tudo.Ao longodo caminho,Taubamordeuo lábio,mas decidiu fazer o esforço de olhar para cada prisioneiro e dizer-lhes dessemodoque,talcomoeles,sóqueriasobreviver.ComoKasiaosconheciaatodos,

tratoudeapresentá-lospelonome,porém, jámuitopertodofim,estacouantesdobiombo.Florianhesitou,masacabouporfazeromesmo.Semseaperceber,Taubaprosseguiuedeudecarascomaquilo:mesmoàsuafrente,estavamduasenxergasocupadas.Numadelas,TadeuszOrloskperdia-se aolhar parao teto,mas,assimquedeuporela,fezoseupapeldeloucoe,nomeiodeespasmoseinsultos, procurou libertar-se das correias. Ao seu lado, aquele que lambia asdoentesdesvairou-secomapresençafeminina.Mantinham-noamarradoàcama,deixando-lhe os braços livres dos cotovelos para baixo. Se assim não fosse,berrariao tempo todo.Comasmãos libertas, jápodiaesfregar-seàvontade,efazia-osemparar.Chegavaasatisfazer-sedezenasdevezespordia,semprenumritmo certinho, de quinze em quinze minutos. Embaraçado, Florian lançou-sesobreeleecobriu-ocomumamanta,mandandoTaubasair.Sóentãoaraparigasucumbiuelargouacorreracaminhodasaída.Aoalcançaraporta,castigou-acommurrosepontapés,enquantogritavapelo funcionário.Asvoltasdechavenãotardarame,assimqueviuafrincha,Taubasaiudisparada.Ovelhonãolheligou,jáviraaquilotantasvezes,seelafossecomoasoutrashaveriadevoltar.Eassim foi, realmente.Apartirdeentão,Taubanunca falhou, apareciapela

alvoradae,aoentrarnoCorredor,viaosdoisirmãosàespera.Semperderaluzdo rosto,Floriancontinuouacairde joelhos,olhando-lheparaabarrigacomofazia ao Sol antes de este lhe ter sido roubado pelos russos. Obrigada aconformar-se, a rapariga começou por arregaçar as mangas. Depois tratou deencherosalguidares,oquefezcomoauxíliodosirmãos.Quandofoitercomasmulheres,começoupelaquechorava,umavelha.Assimqueadestapou,chocou-secomadecadência,desconheciaaquelaformaengelhadadenudez,odesleixoouaausênciadavergonha.Ocatreestavaencharcado,porissopediuaFlorianqueaajudasse.Orapaznemhesitoueergueuocorpodefinhadosemumesgardeesforço.Nesseinstante,Kasiaeoutraprisioneiramudaramapalhamolhada,enquanto Tauba, ajoelhada à frente da mulher, a lavou da cintura aos pés.Sentindo-semaisconfiante,fezomesmoaoutrasquatroedeuporfindooturno.Nodiaseguinte,aofinaldatarde,Barucheumsobrinhoaguardaram-naàsaída.Encavalitadosnacarroçaquejáserviraparaosrolosdetecido,osdoishomensajudaram Tauba a enchê-la com as mantas e lençóis imundos trazidos doCorredor.Nasmanhãsque se seguiram, as penhas à volta do lago apareceramcobertasderoupaàchapadosol,enquantoasmulheresdoVigeleprosseguiamsem descanso: umas, imersas até aos joelhos, estendiam os panos nas águasparadas; outras esfregavam-nos contra as fragas; asmais velhas despejavam afervura sobre a cinza e a flor de laranjeira que cobriam os cestos da roupa

ensaboada.Comascamasfeitasdelavado,nenhumaprisioneiraseesqueceudeagradecer.Faziam-nosócomosolhos,éverdade,maserasuficienteparaTaubaquererregressar.Menos sorte coube aos homens. O funcionário só entrava em caso de

altercaçãoepoucopassavadaporta,peloqueajovemseviuforçadaarepartir-se.Assim,tambémosprisioneiros,ciososdecompaixão,recolhiamàsenxergaspelahoradahigiene.Comoelasócuidavadosloucosouentrevados,valeu-lheKasia,queajudavaadiscerni-los.Começavanumapontaecorriaafileiraatéaofim.Tauba,ajudiaortodoxaquecobriaocabeloparasairàruaenuncadespiraomarido,aliestavaarepuxarosprepúciosdeoutroshomens,aenxaguá-loscompressacautelosa,aturvarosalguidaresqueteriamdedarparatodos.Algunsdosprisioneiros,nuncaantes tocadospormãosmeigas,cravavamnapeleasunhasparafugiremàtentação.Jáosdevassosnãoescondiamodesejo,agarravam-nadebaixo do vestido, e quando Florian se lançava sobre eles, viravam-se paraTaubaarireacheirarosdedos.Assimqueterminava,elafaziaoquepodiaparaseesquecerdetudo.OsdiaspassaramejásepodiarespirarnoCorredor.Mas,acrernoolhardos

prisioneiros, ainda faltava alguma coisa. Como espetros sem vontade,lembravam feras castradas numa jaula, arrastando os passos lerdos entre oscatres, a provar que o asseio não era tudo.O remédio encontrou-se por acasonumamanhãigualàsoutras.Oprimeirodiadejunhoacordoupardacento.Aochegaraomanicómio,Tauba

atravessouo jardim,enquantoolhavaparacima,frustradacomaquelecéu.Foiao baixar os olhos que descobriu a janela circular no piso dos prisioneiros.Talvez por ser irrisória, os russos nem tinham dado com ela, deixando-a porentaipar.Assim,aquiloquefezaoentrarnoCorredorfoiprocurá-la.Segundolhepareceraládebaixo,deviaestarpertodasenxergasdasmulheres,logoàentrada.Mal viu o armário, percebeu porque nunca a descobrira. O roupeiro que aencobria era colossal, a tocar o teto, e pertencera ao Pasternak. Alguém seesqueceradeojuntaraospertencesconsumidosnafogueira,peloqueficoualiaobstruiraluznascente.Taubaentusiasmou-seepediuajuda,precisavadebraçosfortesparaoarrastar.Florianchamoudoishomens,depoisvierammaistrês,masnemassimoarmáriosemoveu,pareciacravadoaochão.Atéqueàstantas,comumrangidoaflitivo, acaboupordeslocar-sequaseumpalmo. Infelizmente, foitamanhaa forçausadaqueumdospés colapsou, estatelandoomastodontenocimento.Nesseinstante,umaespessanuvemdepoeiraarroxeadalibertou-sedomóvelescaqueirado,cegandotodaagente.Quandoassentou,Taubae todosos

outrosestavampintadosdevioleta, talcomoasparedes,ochãoeasenxergas.Mal se sacudiram, o ar encheu-se outra vez com os pós do Pasternak, agoraabrilhantadospelocilindrodeluzquerompiadajanela.Ocenário,quenãoeradestemundo,trouxeumrisotresloucadoaosprisioneiros.Aslimpezashaveriamde durar mais de um mês, mas nem as paredes nem o chão nem as roupasperderiamalgumavezaqueletomquaresmal.Averdadeéque,nessedia,assimque a viram desimpedida, todos acorreram à janela. Para tanto, construiu-se àpressaumplintodemadeiracomassobrasdoarmárioetodossubiramàvez.Seoóculonãodavaparaosombros,sobravaespaçoparaenfiaracabeçaerecordaroventoouostelhadosdacidade.Foitaloentusiasmoquedeulugaraquezílias.Algunsdosempoleirados,sequiososdearpuro,afastaramàpatadaosprotestosdos que esperavam, prolongando o mais possível as vistas redentoras.Desapontada,Taubaquispôrfimàquelesabusos,estabelecendoumtempoexatoparacadaprisioneiro.Àfaltaderelógios,alguémselembroudequehaviaoutramaneiradecontarosminutos.Oloucodobiomboquetivessepaciênciaefizesseo seu papel, era altura de expiar os pecados, as noites mal dormidas queimpusera aos outros presos, as ofensas tantas vezes repetidas às mulheres doCorredor. E depois, ninguém lhe pedia grande coisa, bastava agarrar a sinetacom amão que tivesse livre.O resto era omesmo do costume, nem tinha depensarnaquilo.Oraoesquemaresultounaperfeição.Desdeentão,acadaquinzeminutos,semprequeoloucoestrebuchava,asinetaretiniaeaquelequeestivesseempoleirado cedia o seu lugar na janela sem atritos de maior. Tauba sorriuquandoviuqueresultava.No final desse dia, encostou-se a uma parede para aliviar as costas; era tão

tarde, estava esgotada. Foi então que sentiu a primeira dor. Levou asmãos àbarrigaenãoseatreveuarespiraraté teracertezadequedesaparecera.Àdorseguinte,deixou-seescorregarpelaparedee ficousentada.Nãoprecisoudesetocar para saber que tinha encharcado a saia do vestido. Kasia, que estavapróxima,ajoelhou-seaoseu ladoe, semfazerperguntas, limpou-lheosuordorosto.Moshenasceuao fimda tardenumcatredomanicómio.Asmulheresqueo

receberamergueram-noà luzmortiçadas lucernasparaqueTauba lhevisseasboascores.MasogarotopareciavioláceoelogohouvequemculpasseospósdoPasternak. Porém, quando o choro violento estridulou no Corredor, Moshedesentupiu-seeláganhoutezdegente.Era noite quando se ouviram as voltas do ferrolho. Baruch estava no átrio

haviahoraseaindanãopararadediscutircomofuncionário,masperdeuavoz

numápiceassimqueviuafamília.Jánarua,amparadanomarido,Taubavirou-separatrás.Foiaúltimavezque

olhouparaomanicómio.Daliaquarentadias,elaeofilhomorreriam.

20Pluraldegoy(hebraico/íidiche),termoquedesignaaquelequenãoéjudeu.

SUDOESTEDEELNIKI,RÚSSIA,junhode1941

Nos longosmesesque se seguiramà chegada, houve semprequalquer coisapara comer, qualquer coisa para trocar,mas, sem ninguém saber porquê, tudoacabouno finaldaprimavera.Ocampodeixoudeserabastecidoeascriançasforam as primeiras a morrer. O pouco que sobrava era para os guardas e,despachada amatilha até aos ossos, cada um procurou sobreviver com aquiloqueencontravanafloresta.Masnemassimotrabalhoaliviou,continuavaaserprecisocortarárvores,desbastá-las,marcá-las,empilhá-lasecarregarostroncosnoscomboiosquepassavamtodososquinzedias.Semprequevoltavaaofimdatarde, Eryk dirigia-se para o bloco onde dormia e, ao passar pelos velhosestendidos no terreiro, evitava olhar para eles. Já sem forças para viver,deitavam-se no meio do chão, só descolando os olhos para descobrir queestavamvivos.Eralá,emcampoaberto,queesperavampelamorte;osdiaseasnoites prostrados sobre a terra pegajosa; a troça de Shura que passava por aliparaosdestratar, paraos lembrar do cheiro amijo e fazer contas emvoz altasobre o tempo que restava a cada um. Skiba e Finkelstein, que o campoenvelhecera antes de tempo, faziam parte do grupo. Quis o acaso queapodrecessemladoalado,separadospordoispassos,vigiando-secomohaviamfeito a vida inteira, até porque nenhum suportaria morrer antes do outro. FoiSkiba quem triunfou. Assistiu durante a noite à agonia do rival, viu-o aestrebuchar,abocanharoarcomoumpeixeforadeáguaeroerosdedoscomasdores.Quejúbiloparaocomendadorquandoooutroseapagou!Sobrassem-lheforças,dançariaàvoltadojudeuetodoocamposaberiaqueumvelhacoacabarade morrer. Em vez disso, arrastou-se pelo chão e, ao chegar junto do outro,puxou uma navalha e desventrou-o. A seguir, comeu-lhe o fígado antes queoutrosofizessemeassimpôdedurarmaisoitodias.Eryk,queassistiraatudodajaneladoseubloco,viu-senafiguradojudeu,tambémcomastripasdefora,osseus restos disputados pelos presos lazarentos. Não, isso nunca!, decidiu. E

assim,foiacordarSobol.Oassassinodocomboioouviu-oatéaofim,semnuncaseentusiasmar.Fugirseria fácil,osguardasandavamdesmazelados,opioreradepois. Entre eles e a cidade mais próxima só havia a estepe enxuta, umcemitérioaperderdevista,eraimpossívelpreverquantosdiasdeviagem.Erykanotou-lheasprecauções,masjáconsideraratudo.Ajornadaerapossível,masprecisava dos músculos dele e disse-lhe porquê. Esclarecido, o giganteentusiasmou-seedeixou-seconvencer.Restava-lhesdescobrirquandopassavaopróximo comboio, brincadeira de crianças para quem tem sempre à mão umcapataz emborrachado. A crer em Shura, esperava-se um transporte para aUcrâniadaliaumasemana.Eraoquequeriamouvir.Assim,quandoocomboiochegou,Eryk eSobol juntaram-se aos homens que carregavamos troncos nascarruagens. Como era habitual, foi ao último que coubemanobrar a grua.Nochão, Eryk e outros dois prisioneiros iam passando os cabos pelos troncos.Assim que os vissem a balançar sobre o vagão, ajeitavam-nos à medida quedesciamparaquepousassemalinhados.Acertaaltura,umpresomaisperspicazreparouqueumdostroncoscarregadostinhaapenasdoisterçosdotamanho,sópodiaserengano.Eryk,queohaviacortadoassimunsdiasantes,disse-lhequesecalasse,seotroncoestavaali,eraparaseguirviagem.Quandoterminaram,ocais já estava às escuras e o grupo regressou ao campo mais tarde do que ocostume.Ocomboiopartirianamanhãseguintee,setudocorressebem,levariaumacargaadicional.Eryk e Sobol passaram a noite em branco, porém, pouco depois de o Sol

nascer, pegaram nos machados e saíram decididos para o trabalho. Mal seapanharamentreasárvores,deixaramcairasferramentaselargaramacorreracaminhodaestação,poishaviamdechegarantesdosoutros.Talcomo tinhamcalculado, o comboio carregado ainda aguardava osmaquinistas que dormiamcertamentenumadas carruagens.Travandoopasso, aproximaram-sedovagãoonde tinham trabalhado na tarde anterior. Sem uma palavra, Eryk subiu pelosengatesedesapareceunomeiodacarga,escondendo-senovaziodeixadopelotronco mais pequeno. Sem a mesma agilidade, Sobol conseguiu ainda assimfazeromesmoe,malseapanhounoesconderijo,desenroloudacinturaumcabodeaçocomumaganchetanaponta.Depois,estendendoosbraçospelabocadotúnel, conseguiu prender o cabo ao coto de um tronco que, no dia anterior,deixaraescondidoentreorodadodocomboio.Comumesforçotremendo,puxouocotoatésieencaixou-onaabertura,arrolhando-secomEryknapenumbra.O comboio partiu já perto domeio-dia. Só voltaria a parar ao fim da tarde

seguinte,mas,quandoissoaconteceu,nemEryknemSobolfaziamideiadeonde

estavam.Abafadosentreos troncos, sentiam-sea ferver,doridos, semposição,ensopados de urina e suor. E depois, aquela sede podia enlouquecê-losmuitoantes de chegarem ao destino. Ficaram ali parados a noite inteira, mas sóadormeceramquandooSolselevantou.Ao voltar a si, Eryk não percebeu de onde vinha a felicidade.A sua e a de

Sobol, que se ria mesmo ao lado. Quando tocou no rosto, sentiu-o logoencharcadoeaípercebeuqueeraaáguaaescorrerporentreostroncos.Achuvagrossaouvia-seláforaeelepôsasmãosemconchaparabeber.Trêsdiasdepois,pararammais uma vez e foi Sobol o primeiro a ouvir as vozes.Não estavammuito próximas, mas dava para festejar porque eram ucranianas. Tinhamconseguido!, estavam às portas de casa. Decidiram naquele instante queabandonariamocomboioassimqueachassemseguro.Eissoaconteceuameiodanoite.Semnuncalargarocabo,Soboldesceuapontadotroncoepousou-adevagarsobreobalastroparanãofazerbarulho.Depois,saíramdevagarederamcomum cais àsmoscas. Procuraramo nome da estação,mas não chegaram aencontrá-lo. Lá ao longe, a luz de uma casa, e era tudo. Só mais tardedescobriramquetinhamdescidonumapeadeiroanortedeLvov,oquedeixavaErykadezdiasde caminhodocírculoperfeito.Aviagemapé eraperigosa eeles iam extenuados, mas ali estavam em casa, era diferente. E assim foi;caminhavam à noite, descansavam de dia, encontrando sempre alguém noslugares onde passavam disposto a ser generoso. Sobol, que ia para Chelm,preferiu uma estrada alternativa e desapareceu certa manhã sem sequer sedespedir. Mesmo sozinho, Eryk não se amedrontou e arrastou o corpodepauperado,prosseguindosemdesvios.Ao passar perto de Izbica, reparou que a aldeia transbordava de soldados

alemãesehaviaumafilaininterruptadecamiõesadespejararmamentonomeioda povoação. Hitler preparava-se para atacar os comunistas e, quando issoacontecesse,jáorapazestariaescondidoemcasaháumasemana.

PARIS,2002

Comoerahabitual,Jaleleddineouviu-oemsilêncio.Yankelexplicou-lheoqueesperavadele,falou-lhedasencomendas,lembrou-odoprazoparapagaraluzedos dois livros reservados por certo cliente cujo nome agora lhe falhava– elequevissenamesadotelefone,talvezhouvesseumcartãozinho.Gostariadelhedizer quando contava voltar à livraria, mas, infelizmente, nem sequer estavacertodoregresso.Amanhãfalariam,secalharsóàtarde,tinhaassuntosatratarantes de almoço.Para já, era tudo, «algumadúvida?»Do outro lado da linha,Jaleleddine encolheu os ombros, que dúvida poderia haver? Aquilo que ointrigavanãodavadireitoaperguntas.Desligaram.A seguir, Yankel afastou o lençol, o quarto ardia em setembro, e tateou o

ombroeopescoçodandoatençãoacadacentímetroapalpado.Comonãosentiuador,pensousevaleriaapenadesperdiçartemponomédiconamanhãseguinte.Noentanto, ameiodanoite, aguinada regressoucomviolência,deixando-oatranspirareàbeiradaloucura.Eramquatrohorasenoveminutos,eachuvadeverãoacordavaParisdesobressalto.Eramquatrohorasenoveminutos,merda!,outranoiteigual.Destavezforaa

chuva,eViviennedetestavaquefosseachuvaaacordá-la.Entreelaeocéudechumbo, só o telhado da água-furtada, muito pouco para quem temmedo doescuro. Por azar, concentrou-se na moinha, aquela dor fina e cansativa eresistentequeinsistiaemmudardesítiocomosefosseumbichoàsoltanoseucorpo.MolestavaVivienne havia anos, só esmorecendo pormaldade e para alembrarcomoseria seumdiaadeixasseempaz.Naquelemomento,ouviuospapéis a restolhar e percebeu que adormecera sobre a história do comboio.Deixaraaluzacesaeporissopôdeverospésnofimdacama.Aluzdesmaiadaenchiaoquartodesombrasefazia-osdecadentesegrotescosapesardasunhaspintadas.Erabemcertoqueavelhicecomeçaraporali,nosdedosaleijadospela

artriteounodiaemque,aovergar-se,jánãopuderaalcançá-los.Logoacima,apaisagemdodesastre,aspernascorroídaspelofogoque,passados tantosanos,ainda a atormentavam.Então, desviouoolhar para o teto e passou amãoporentreaspernas.Primeirotocou-se,depoistocounolençol,estavaseca,aomenosisso. Nessa altura inclinou-se para apanhar as folhas e retomar a leitura. Àterceiralinha,contudo,deixoutombarobraçoeomanuscritosobreacama.Nãovaliaapena,oaguaceiroditava-lheoutrascoisas,fazia-apensaremYankel.Aindanãodecidiracomocontar-lhetudo.

NORDESTEDAPOLÓNIA,junhode1941

Dobrouopapelemdois,depoisemquatro.Daquilofezumtriângulo,aseguirmaisumcommetadedotamanhoerepetiuasvezesnecessáriasparatornartudominúsculo.Olhouparaasecretáriasemsaberoqueprocurar,atédescobrirumamoeda de vinte copeques que usou para vincar a dobragem. Por fim, com osmesmos gestos vagarosos, desfez tudo, acabando com uma folha tãoencarquilhadacomooseurostoestafado.Foientãoquealeudenovo,mas,aofimdoprimeiroparágrafo,fechouopunhocomacartaládentro,amarrotou-adevezelançouaboladepapelparaocestodolixo.Falhou,oqueachounatural.Era assim que Govorov respondia à pressa de Moscovo. Podiam ir para o

inferno,não ia fugir comoumcobarde.Nesse instante, levantou-se e foi até àjanela.Aindaera cedo,masvia-segente a corrernoLargodoMercado; eraorumor a alastrar: Hitler rasgara o acordo e ordenara aos seus exércitos quemarchassem sobre a Rússia; pelo caminho, haviam de dar com a cidade eespezinharoqueencontrassem.Poisqueo fizessem,nãoqueria saberdaqueleburaco.Oseutormentoeraoutro,erapensarnoregresso.VoltaraMoscovoseriavoltaraAliya,voltaraokommunalkan.o7,voltaraoquartoirrisórioondejaziaaRevoluçãoetodososseussonhos.Afastou-sedajanelaefoibuscaragarrafadevodkapolaca,umamerda.Aindaassim,apoiouorabonotampodasecretáriaebebeu a metade que faltava. Só então saiu para o corredor, mas apenas osuficienteparadescomporquemquerquealiestivesseparaoouvir.Deveterditomaisqualquercoisa,poiselesforamchegandounsatrásdosoutros.EramquasetodosfuncionáriosdoPartidoeGovorovvoltouàjanelaetornouaolharparaolargo.Asordensestavamnocestodolixo,disse-lhes,agoraeracomeles.Queriasairdaliparaforaantesdoanoitecer.Masqueselivrassemdeservistosacorrer!Coubeentãoaumdoscamaradasirbuscaraboladepapeleestendê-lasobreotampo da secretária. Enquanto a lia em voz sumida, os outros escutavam sem

mostrar o que sentiam,mesmo quando perceberam que os alemães estavam adoisdiasdecaminhoehaviaquepartirsemdeixarrasto.Averdadeéquenãosobravagrandecoisaparalevar.Aolongodaquelesdois

anos, o círculo perfeito já dera o que tinha a dar pelo esforço da Revolução,despachando paraMoscovo tudo o que era de valor.Ainda assim, os camiõesquecirculavamnacidadedesdeomeiodamanhãnão tardaramaencher-see,horasmaistarde,aodespedirem-se,osrussospareciammaiscarregadosdoquequandoalichegaram.

*Arrasto os dedos comcuidado, os seus pulsos podemquebrar-se só de lhes

tocar.Depoisafago-lheascostasdasmãos,masnãoasreconheço,dáaideiadeque a pele se descolou dos ossos. Pelo contrário, as palmas são demadeira,nodosas, rachadas.Deusde Israel,quem foi capazdeumacoisaassim?Erykquerresponder-me,masaspalavrasdesfazem-senumsilvodébilqueé,parajá,o choro possível. À medida que passeio aqueles gestos no seu corpoenfraquecido,cruzo-mecomosdeShionka;seosmeuslêem,osdelaescrevem-lhenapele,eéfácilsaberoquê.Sintoagoraumamãosobreomeuombro.OpadreKazimierzdiz-meemsurdinaquesãohoras,Erykprecisadedescanso.SeiqueShionkanãoquersaberdopadre,porissotateioaoacasoatélheencontrarosdedosepuxo-acom firmeza.Assimque saímosda sacristia,ouçoavozdePaniKrysia,pergunta-me se tenho fome. Jáque ignorouShionka,nemsequerlhe respondo, quero ir-me embora. O padre aproxima-se, fala-me comconfiança,daliaduassemanasomeuamigoestarácomonovo.Acompanha-nosaoadrodaigrejaelamentaseestiverarepetir-se,masmanda-metercuidado:paraosjudeus,osalemãessãopioresdoqueoscomunistas.Depois,todoeleseagita e resfolega, quer saber se o levei a sério. Agradeço-lhe e sossego-o –«sabemo-lohámuitotempo».SóentãosaioagarradoaobraçodeShionka.As ruas estavamesquisitas.Osmegafones já não se ouviam,mas o silêncio

teria outra explicação, pensou Yankel. Shionka, que também se interrogava,puxava-opelamanga enquanto ia contandode cabeçaos gentios nopasseio–aindanãoviramulherese,oqueeramaisinsólito,umúnicojudeu.Porsuavez,osalemães iamchegandoaospoucosedeviamestara instalar-senacidade.Aluzaomeio-diaofuscava,pareciaqueocírculoperfeitoembranquecera,efoiocalor a desviá-los para o Largo do Mercado, à procura das árvores. Aíencontraram outros homens, desta vez parados à frente das lojas fechadas e,

agorasim,jáseencontravamjudeus.Shionkareconheceu-osquasetodos,eramaquelesaquemosrussoshaviamespoliadoeque,deolhospostosnasmontras,queriamveroquefazerpararecuperarosnegócios.Derepente,todaagentequealiestavasevirouparaomesmosítio.Ozunido

distante vinha daRuaMazur e, cada vezmais próximo, transformava-se numclamor entusiasmado. Ansiosos por saber o que era aquilo, os homensesvaziaramo largo e correramaté à esquina.Aí chegados, para não perderempitada,galgaramascostasdosda frente,usaramoscotovelos, insultaram-se,eapenas esmoreceram com o assombro. Yankel e Shionka também seaproximaram,mas,comtantagentejunta,sósofreramencontrões.Valeu-lhesocarpinteiro,quetinhaespreitadotudoecorriaatécasaparacontaràvizinhança.Era tal a exaltaçãoque ia falando alto, oferecendo aquempassavaum retratorigorosodaavalanchaqueaívinha.A cem metros de distância, o manicómio escancarara finalmente as suas

portas. Tadeusz, altivo, caminhava à frente, abraçado ao seu banquinho;desgrenhado, encardido, mijado nas calças, cada nódoa era uma medalha debravura e resistência. Atrás de si, via-se menos prosápia, o séquito domanicómionãomarchavaaomesmopasso:osjudeusescondiam-senomeiodosoutros, os polacos festejavam, os sãos iam apressados, os doentes iam comopodiam; em comum só os olhos franzidos pela luz que alguns já tinhamesquecido.Derepente,umdos loucossaiudesembestadodogrupoesó travounofimdarua.Depoisdefurarpelomeiodapopulaça,correuparaolargo.Aochegarjuntodasestátuas,virou-separaadeLenine,apontouusandoosbraçosedisparousemclemência:Pum!Pum!Pum!Logo os outros concluíram que deviam fazer alguma coisa: houve quem o

imitasse,houvequemsuplicasseporumabebidaforte,muitosforamengolidospelas famílias,outros choraramou riramparaquemcalhasse.Por seu lado,osjudeus preferiram juntar-se debaixo das arcadas e entreolhar-se em silêncio,comoseasuafelicidadepudessedespertarosalemães.Mas não foi por causa dos nazis que os primeiros vidros se quebraram.Os

estilhaços vieram do outro lado, do escritório do guarda-livros, um judeumelindroso.Numinstante, todaagenteacorreuaté lá,espremendo-separavermelhor. Os ruídos de luta que chegavam do interior eram acompanhados pornovos estilhaços, cartapácios atirados pela montra escaqueirada e centenas depapéis a esvoaçarem. Aquilo prolongou-se por momentos, quando, de súbito,surgiramdo escritório os gémeosdeRomanSkiba, encabeçandoumgrupode

seis homens. Levavam um olhar esgazeado, os ombros derreados como quemvemdeumgrande esforço, e passarampelomeio da populaça que agora lhesrendia um silêncio respeitoso. De repente, o som terrível, um gemido tãopungentequetodosseinteiriçaram.Ajulgarpeloestadoemquevinhaoguarda-livros,nãoeraparamenos.Osolhoslembravamdoistomatesesborrachados,eaboca,rasgadaatéàsorelhas,traçava-lhenorostolívidoumsorrisodeidiota.Foientãoquecaiuaprimeirapedra.Oguarda-livrosevitou-aporumtrizepousousobreacabeçaapastadecartãoqueinsistiaemnãolargar.Depoucolhevaleu,já que as pedras arrancadas da calçada choviam agora de todo o lado,dispersandoospopularesquefugiamaterrados.Unschocaramcontraosoutrosetombaram estonteados, outros esgaravataram a calçada na busca de maispedregulhos que pudessem atirar. Quando estes se esgotaram, sete ou oitogentios correram para o guarda-livros e engoliram-no ali mesmo. Aquilo quedeixaramnochãosóserviuparaestarreceraindamaisosjudeusqueespreitavamdas arcadas.Apavorados, tambémelesdispararampelo largo, expondo-se semremédioàsanhadoscristãos.Osinsultosvoaramcomoaspedrasdacalçada–comunistas, traidores,bufos!–,mas, àpartealgunsbofetões,não sederramoumaissangue.Shionka, que agora escondia Yankel atrás de uma coluna, viu os judeus a

fugiremdooutroladodolargoeamultidãoqueosescorraçava.Aproveitandoodesvio das atenções, conduziu o rapaz pela travessa que ia dar à praceta dogrémio,efoideixá-loemcasa.Tadeusznãoescorraçou,nãoinsultou,nãolançoupedras,eraoquelhefaltava,

nãoforafeitoparaessascoisas.Nãoeraqueoespetáculodesmerecesse, longedisso,osjudeussócolhiamoquetinhamsemeado.Postosàsombradosrussos,tinhamtraídoasagradaterraquepisavameosseusvizinhoscristãos,acusando-osdeatentaremcontra aRevolução,destinando-os assimàmorteouaoexílionas estepes congeladas da Sibéria. Oh, sim, «Comunistas, traidores, bufos!»,mereciamcadaumadaspedrasdacalçada.Maisconsolado,virou-lhesascostase comoveu-se aoolharparaoPaço.Quantasvezes recordarao faustodaquelelugar,enquantosedebatianocatredomanicómio.Masagoranão!,agoraestavaali e só tinhaumacoisa a fazer.Por isso subiu.Enquantogalgavaosdegraus,irritou-secomotapetedeimundicequecobriaaescadaria,aomesmotempoqueamaldiçoavaosbolcheviques.Jásabiaqueostiposnãoeramasseados,mas,quediabo, era a sala de visitas da cidade. Enquanto subia, ainda viu o mastroinclinadonofrontãomaisofarrapovermelhoquesobravadabandeiracomunista

arrancadaàbruta.Jáláemcima,aspernasfalharam-lheequaseseestatelounopatamar.Fosse a emoção, ou apenasos resquícios dedois anosde indolência,teve de se agarrar à balaustrada para recuperar as forças. Quando se sentiupronto,endireitouaespinhae,adespropósito,fezomesmoàslapelassurradasdacamisadopijama.Foiassim,comoummonarca,queatravessouoportalparatomar outra vez posse.Mas, mal o fez, não quis acreditar no que encontrou.SantoAdalbertodePraga!,quemousaraaquelaafronta?Denovoa fraquezaaacometê-lo, a dobrá-lo pelas pernas, fazendo-o, agora, sim, cair de joelhos.Vergado, com as mãos assentes no chão de pedra, varreu tudo com o olharofendidoe,poruminstantebrevíssimo,desejouregressaraoCorredor.Masnãoiria ser aquilo a derrubá-lo, preferia enfurecer-se e aguardar que o sangue lhevoltasseàspernas,enquantose forçavaaacreditar:estavaonde tinhadeestar!Nenhumoutrolugarfizeratantoporele,nemocolodeApolónia,nemmesmooventredamãe.Então,levantou-see,espezinhandoosmilharesdepanfletoscomaimagemdeEstaline,percorreutodoovestíbulo.Entreaquelespapéisimundosespalhados pelo chão, viu garrafas vazias, pastas vazias, pontas pisadas decigarroseumnarizempedraqueforaarrancadoatiroaobustodeS.Estanislau.Mashaviamaisindignidades:ofedoraurinadeixadonadespedida,asfrasesemcirílicopintadasavermelhonasparedes,oretratodePiłsudskicomaspontasdobigoderasuradasparafazerlembrarHitlereasportasdesencaixadasdosgonzos.Semsaberoqueaindapoderiadescobrir,ganhoufôlegoeavançouatéaoantigogabinete, aquele que fora o seu palco privado, o seu pedestal, o pico damontanha. Por momentos, não o reconheceu. Despojado dos livros e dasgravuras, lembrava um armazém ao abandono. Como tinham levado oscortinados, alguém pregara ao janelão uma ilharga arrancada à sua fulgurantesecretária. Tadeusz aproximou-se dela e abanou a cabeça enquanto passava amãopelotampodemármore.Aseguir,rodeou-a,pousouobanquinhoesubiuaoestradoqueumdiamandaraconstruirparapoderolhardecimaaquelesquealicomparecessem. Quando se sentou, fechou os olhos, deixou-se estar e viu ofuturoquelheapeteceu.Mesmoexauridoemiserável,passouorestodatardedegatas no gabinete a apanhar lixo. Haveria de voltar as vezes necessárias paradeixar tudo impecável e instalar-se para sempre no seu trono. Só então saiu;chegaraavezdeApolonia.

PARIS,2002

Admitir que não tornaria a adormecer foi a primeira coisa que lhe ocorreu.Depoistentoudescobriraquiloqueoacordara.Yankelpensounador,masnãoasentia,foraoutracoisa.Sóentãoselembroudotrabalhardosrelógiose,quantomais pensava nisso, mais se convencia. Miseráveis! Ultimamente andava asonhar com rodas dentadas e ponteiros que giravam ao contrário, fosse qualfosseosignificado.Pior:duranteodia,sentadonoescuro,podiajurarqueouviaossegundosacorreremmaisdepressa.Ora,comonãoseembalaumvelhocomrelógios apressados, levou aquilo a peito. Daí à decisão, foi o tempo de selevantareiràcozinhaencherumfiltrodecafé,oquefaziahabitualmenteecomassinaláveldestreza.Quandopousouachávena,manteveolíquidonabocamaistempo do que era costume e pareceu saboreá-lo, embora os seus olhos sóbrilhassemcomogostinhodavingança.Dentrodepoucashoras,jácontavaver-se livredaquele ruídocruelepodercontaro tempoapenasse lhe interessasse.Para isso, lembrou-se da porteira. Com as mãos untadas, Mademoiselle Fossprestava-seaquasetudoeaindasesentiadevedora.Assim,quandoelaapareceucom o saco de mistura para papagaio, Yankel desafiou-a: cem euros e aindapodiadespacharosrelógiosnomarchéauxpuces,guardandoparasioproveito.Poucohabituadaànovamoeda,amulherfezcontasrápidas:seiscentosfrancoseradinheiro.Porisso,logoaofimdamanhã,deuinícioaosobe-e-desce,levandoaostrêsequatrodecadavez,queiadepositandonaarrecadaçãodoprédio.Paraosmaispesados,recorreuaospréstimosdeJaleleddine,queapareceudepoisdealmoçocomunspapéisparaassinar.Quandoterminou,estavaarrasada,deixarade sentir as pernas ao trigésimo relógio, mas tinha a carga arrumada. Aodespedir-se de Yankel, depois de contar as notas e enquanto fechava a porta,Mademoiselle Foss olhou para trás como se se tivesse lembrado de qualquercoisa. As paredes, faltara-lhe olhar para as paredes. Porém, ao fazê-lo,incomodou-se; um pouco por todo o lado, no lugar onde antes se exibiam osrelógios,viuamultidãodemarcasqueo tempodesbotara.Semsabera razão,sentiupenadovelho,masfechouaportaedeixou-oasóscomelas.

A noite chegou,mas vinha diferente, tão silenciosa como lhe cabia. Yankelpousouoauscultador,acabaradefalarcomVivienneeficaraasaberquejánãohaviamuitoporvasculharnoscaixotes.Apesardelheparecermaisfriadoqueera hábito – o que ele atribuiu à exaustão –, ela tentou sossegá-lo: se tudocorressebem,iriavisitá-loumdiadesses,jácomtudoreunidoeordenado.Atrásdamesado telefone,haviaumaestantecomdiscosdevinil,maisuma

peculiaridade do livreiro. Yankel organizara-a desprezando qualquer ordemtemporal ou alfabética e, mesmo assim, acertava na peça que queria ouvir àprimeiratentativa.Efoioqueaconteceunaquelemomento.Caladosfinalmenteosmecanismos, sentou-se no sofá para ouvirMahler como se nunca o tivessefeitoesóadormeceuporcausadanoiteembranco.Acordoucomfrio,mastinhasido o ruído a despertá-lo. Era um arranhar repetitivo e Yankel demorou adescobrir de onde vinha. Quando percebeu, ergueu-se pesadamente e foi àsapalpadelas levantar a agulha que ia e vinha em cima do rótulo do disco. Aseguir,voltoua sentar-se,puxouocobertor sobreaspernase tornouacairnosono.Masfoiporpoucotempo,denovoomalditoruídoapersistir.Yankellutoupara adormecer, até se lembrar de que o som já não podia ser da agulha.Endireitou-seno sofá, concentrou-seomaisquepôde e sentiuuma tontura aoconcluirquesetratavadeumrelógioatrabalhar.Confuso,levantou-seumavezmaisecaminhoucomosbraçosesticadosàprocuradobarulho.Quandoodescobriu,quispegar-lheeatirá-lopelajanela.Tic-tac,tic-tac…Aosentir asmãosdocego,Marceau preferiu ser sensato e calou-sedeuma

vez.

NORDESTEDAPOLÓNIA,junhode1941

Amargemdo lagorecuara, já tinhamospéssecos,eeraosextopoemaqueErykdiziadeenfiada.Sim, tambémtinhaescritounscontos,masprecisavadapoesia para explicar «a que cheiram cem tipos espremidos num vagão».Entretanto,aspedrasqueYankelatiravacontraaáguaiamaofundosemchegara repicar – um sinal de irritação, pensou Shionka. Eryk vinha diferente,escondia-se nos versos para não ter de dizer o que não queria, e em cadaperguntaqueficavasemrespostaYankelviaumadesfeitaepegavanoutrapedra.Piorsóofeitio:Eryktornara-semordaz,atéinsolente,eissopercebia-semelhorquandoestavacomocasal.DetalmodoqueYankeleShionkaprescindiamumdooutrosemprequeoencontravam,reservandoparadepoisqualquerindíciodeamor. Impostores!, rosnavaEryk logo que se via a sós. E ele um imbecil pordesejarcairmortocasonãoaconquistasse.Oh,quantovalerianuncaterfeitoaviagem.Pudessevoltar atrás e teria ficado a cortar árvoresou até a apodrecerentreosvelhosdoterreiroeascarcaçasdoscães.Foi então que optou pelo castigo, amava-os demasiado para lhes perdoar.

Ocorreu-lheperguntaraYankelpelofilhoassassinadoerevelaraShionkaquemseviralivredele.Irresistível!,comumaúnicaverdaderasgavaocasalaomeio;só lhe faltava escolher o momento apropriado. Entretanto, decidiu afastar-se,deixá-losgozar a sós antes deosmartirizar.Passara a vida comum judeu e afilhadeumabruxa,eraalturadesetornarumbomcristãoefazeroquepudessepara se introduzir entre os seus. Por ter sido sempre visto em tão fracacompanhia,talveznãofosseàprimeira,mashaveriadetentareatésabiaonde.Devolvidoàboémiadacidade,ogrémiotransbordavadecristãosacadanoite

de sábado. Eram todos bons polacos e só queriam celebrar a retirada dosbolcheviques.Foi aí queErykencontrouosgémeosdoSkiba e lhes faloudosseus pais. Sem saber descrever a imagem de uma mãe empilhada entrecadáveres, acabou por inventar-lhe uma morte piedosa; já quanto ao

comendador, só tinha bema dizer: portara-se comoumherói, umexemplo deestoicismo.Comovidoscomoqueouviram,osgémeosaceitaram-no,mastinhadeprometerqueseriamaissensatoaoescolhercomquemsedava.

NORDESTEDAPOLÓNIA,julhode1941

1h30Tauba passava cada vezmais tempo atrás da cortina que servia de biombo.

Numcantinhodoseuquartodecasada,faziatudoatrásdela:aliviava-se,lavava-se, despia-se, vestia-se e lia às escondidas. E, agora, era ali que amamentavaquandoBaruchestavaemcasa.Moshe parecia saciado e, quando largou amãe,Tauba atreveu-se a respirar.

Tinhaosmamilosemchaga,tremiadedoreosuorescorreu-lhepelotronco.Aí,misturou-secomofiorosadodeleitequelhebrotavadopeitoelimpoucomumlencinho.Então,curvou-seedeitouogarotonumaseira,acabandodecompor-seainda sentada.Depois, foi pousá-lo junto à cama de casal e sentiu umgrandealívioaonotarqueadormecera–Baruchnuncaprotestara,masTaubadetestavapô-loàprova.2h30OpadreKazimierzpensouseteriachegadoaadormecer.Mas,sim,eraóbvio

quesim,nuncachamariadepravadoaTadeuszOrloskcasoestivesseacordado.Duranteasúltimasnoites,sonharamuitasvezescomopresidentedaCâmaraetemia descobrir porquê. Talvez profetizasse alguma coisa aterradora, talvez seinquietasse com os sinais. Os alemães não paravam de subir as escadas doMunicípioe,desdequeissoacontecia,acidadeentreolhava-sesemsaberoquepensar.Tadeusz,alvoroçado,jácalcorreavaasruassemobanquinho,parandoacada dez passos para dar recados ou palmadinhas nas costas.Ultimamente, asluzesdogrémionãochegavamaapagar-seeviam-seforasteirosasairdeládemadrugada.Jáaos judeusninguémpunhaavistaemcima,haviaquemfalasseemdesacatos,provocaçõesdosgentios,coisasantigas.Alagado em suor, o padre secou o rosto com o lençol e procurou voltar a

adormecer.

Estevequaseaconsegui-lo,masdepoisouviuaquilo.Vinha da rua, alguém batia à porta da sacristia. O prior arrepiou-se, mas

levantou-se lentamente para não ser ouvido. Sem acender a luz, foi espreitaratrás dos cortinados.Os dois homens encolhidos que o chamavam no passeioolhavamparatodooladomenosparaajanela.Foientãoqueopadreseabismou,conheciabemumdosrostos,masnãofaziasentido.Porfim,desceuasescadaseatravessou o corredor que ligava à cabeceira da igreja. Ao chegar à sacristia,levantouolivrodeassentosparaapanharachave,abriuaportaedisse-lhesqueentrassem.O rabinoAvigdorpassouporele taciturno, logoseguidopelooutrocavalheiro, um judeu que não chegou a abrir a boca. Os dois religiososconheciam-se havia muito, respeitavam-se, teriam sido amigos não fosse acontençãoqueseimpunha,masnadaexplicavaumavisitaàquelahora.Excetoaexpressãoperturbadadorabino,deduziuosacerdoteapontando-lheumacadeira.Avigdor não se sentou. Em vez disso, agarrou as mangas do padre e abriu ocoração.Faloubaixo,falouacorrer,pareciarecearserouvidoenãotertempodeexpor tudo.Os judeus!Andavamadar cabodos judeus.Unsdias antes, tinhasido em Radzilow, a três horas de caminho, falava-se numa tragédia, ummassacrenuncavisto.Eagoraeraavezdeles,nãotinhadúvidas.Nãoviraoquese passara como guarda-livros?Não dera conta dos desacatos?Havia ódio láfora;sentia-senasruas,nasvozes,nosolhares;de tãoescaldados,os judeusjánão se deixavam enganar. O padre entendia aqueles receios, mas procurousossegá-lo, talveznãopassassede rumores.Alémdisso,acidade tinhapoucosalemães, não davam para grandes estragos. «Alemães?!», gritou o rabino,esquecidodorecato.Querialásaberdosalemães,estavaafalardospolacos.Erapor isso que ali estava, para lhe implorar que falasse ao seu rebanho, que osrecordassedeCristo.Depoiscalou-seeesquadrinhouosolhosdopadreparaveroqueficara.Sóencontroudesnorteeumacoisaquetantopodiasermedocomoincredulidade.Desapontado,chamouooutroesaiu.4h00Dreide não se deitara.Nos últimos dois dias, desistira de dormir, passava o

tempo sentada à frente da lareira. Mantinha duas brasas debaixo de um potesebentoqueescorriagorduraa fervilhar,enquantomexiaoxaropeborbulhanteaosabordaladainharepetidanalínguadafloresta.Entretanto,nooutroladodocasebre, Shionka surpreendia-se: nunca ouvira a mãe assim, tão dolente, tãoagoirenta. Consternada, a rapariga puxou a manta, cobriu o rosto, tapou osouvidoscomasmãosevoltouaadormecer.Foiosomdasvozesqueaacordou

poucodepois,vozesdehomens,vozespolacasquevinhamdomeiodasárvores.Nessaaltura, jáDreideenlouquecerae sedobravaemespasmosquenãoeramnaturais.A reza sepulcraldera lugar aumuivoanimalescoe esticavaasmãosparaoCéucomosepudesseapressaroseuauxílio.Derepente,aportadesfez-seemlascasesurgiuoprimeiroarchote.Sódepoisentrouohomem,curvando-separanãobaternoteto.Esbraseado,chocoucomavisãogrotescadafeiticeiraemconvulsõesebenzeu-seenquanto saíaàsarrecuas.Shionka,quenãochegaraalevantar-se, sentou-se na cama, abraçou-se às pernas e assistiu por cima dosjoelhos.Láfora,aluzdastochaspareciacresceràmedidaqueoutroshomenssejuntavam.Peloburburinho,eracertoquediscutiam,atéque,derepente,láterãochegado a acordo. Nesse momento, cada um se encorajou com os própriosberros,irrompendopelacasaaostropeções.Vinhameufóricos.Amenosdeumahora de caminho, em pleno círculo perfeito, aguardava-os amais sagrada dasmissões;nadamelhordoqueumabruxaparaseporemàprova.FoientãoquedoisdelescaíramsobreDreide,arrancando-lheatúnicagrosseira.Vendo-anua,todos esconjuraramo demónio que lhes subia pelas pernas e deramumpassoatrás.Todos,menosum:Arkadiusz,ocarpinteirodeKolno,quese tinhacomolíder. Foi ele quem avançou e soltou os suspensórios. Com as calças pelosjoelhos, aguardou que o membro definhasse para poder escarnecer dela: «Ódesditosaentreasmulheres,bruxarameira,quehádelavarospecadosemnomedeMariaSantíssima.»Eentãolavou-lhosalimesmo.Àfrentedafilhaselvagemede tantoshomens justos, regou-a commijo cristãoparaquemorresse limpa.Quandoacabou,compôs-seesaiu,forapiedoso,agoraeracomeles.Eelesnãohesitaram;agarraram-napeloscabelosearrastaram-naparaarua.Aoveraquilo,Shionkasaltoucomoumacorça,lançou-sesobreamãeefoiderojocomela.Osoutros pararam sem saber o que fazer, até o carpinteiro perder a paciência evoltar para trás. Assim que chegou junto das duas, desferiu uns pontapés nascostasdeShionka,massóconseguiuenclavinhá-lacommaisforçanaspernasdafeiticeira.Desvairado,limpouaespumadabocacomascostasdamão,antesdeacastigarcomnovadosedecoiceserepetirqueamatava.Porfim,aoverquenãoselargavam,saiuacambalear,vergadopeloesforçoepelofracasso.Semdarfé do regozijo que os parceiros disfarçavam, passou por eles a cuspir-se. «Éporcacomoamãe»,queaslevassemenganchadasdeumavez.5h40Ocãojásedeitaracomfomeeporissofoipiorquandoacordou.Levantou-se,

esticou-se quanto pôde e olhou para a companheira que continuava a dormir.

Movidosópelovício,inclinou-sesemgrandemotivaçãoecheirou-lheaspartesíntimas. Ao som da chave, os dois deram um salto e saíram disparados atéesbarraremnaporta.PaniKrysia saiucarregadacomumcestode floresenãolhes ligounenhuma;queaesperassemalimesmo,noregresso logoseveriasetinha tempopara eles.Mais atentos aosprotestosdo estômago, os cãesnemadevem ter ouvido, já que correram ao seu lado até à entrada da igreja. Aíchegada, a beata levou-os ao engano quando pousou o cesto na soleira parapoderabriraporta.Já ládentro,fletiuojoelho,benzeu-seefezopossívelpornãopensarnaescuridão.Depois,respiroufundoeavançoupelanaveacaminhodo altar. Ao longo do percurso, que parecia interminável, bateu os saltos dossapatoscomforçaparaespantarodiabo,enquanto,entredentes,seamparavaemS. Miguel. Assim que chegou ao presbitério, subiu um degrau e, depois deacenderolampiãoquepousaraaoladodosacrário,trocouosarranjosmurchospelos gerânios que ela própria cultivava atrás da capela mortuária. Só entãosubiuaocampanárioparairveramanhecer,aúnicarazãoqueadespertavaantesdodia.Muitoaofundo,paraládasárvores,océucomeçavaaclarear,azulandoos telhados do círculo perfeito.O seu olhar aquilino sabia onde procurar,masnem foi preciso tanto, porque a luz já estava acesa na casa de Tadeusz. Aprincípioachouesquisito;oumuitoseenganava,ouàquelahoraeraaprimeiravez. Depois lembrou-se de Apolónia e estremeceu: valente puta!, tambémacordava ameio da noite encharcada como as outras. Imaginou distintamenteuma vaca a arrastar-se no colchão, até conseguia ouvir os estalidos aflitos damadeira, e Tadeusz, o seu Tadeusz, desperdiçando o descanso a esfregar-se acontragosto.Puta,sim!Milvezesputa.Foientãoqueviuaquilo.Primeirojulgoutratar-sedeumincêndionafloresta,

mas depressa soube que não. Fosse o que fosse, a chama mexia-se, vinha acaminho.Aseguirmaisumaluz,depoisoutraeoutra,atéseformarumalinhaalaranjada a correr nomeio das árvores. Eram archotes, gente que por algummotivo preferia a noite para fazer visitas. Vendo naquilo um mau presságio,Krysiafoitercomopadre.Apolónia sentiu-o acordado e abriu um olho a medo. Por tremenda

infelicidade, naquela precisa altura, Tadeusz olhava para ela. Resignada, pôsumapernaparacadalado,arregaçouacamisaeconseguiucairnosono–sonhoucomo serviço de chá, portanto era provável que nada tivesse acontecido. E averdade é que não aconteceu. A cabeça de Tadeusz só pairava na floresta enaquelesqueestariamparachegar.Daíocorrupioentreacamaeajanela.Orase

deitavaaoladodeApolónia,oraiaverasárvoresparasaberseelesvinhamaí.Porém, quando deu com a luz laranja a mover-se no pinhal, em vez de seabonançar, por pouco não vomitou. Lívido, deixou-se cair sentado aos pés dacamaetapouorostocomasmãos,balançandoparaafrenteeparatrás.«Tudoestá consumado!» Recordou-se de Cristo e dos fariseus e acabou a rir àgargalhada. Depois, vestiu omelhor fato listrado e apertou os atacadores dossapatos com o esmero necessário para se acalmar de vez. Por fim, desceu asescadasedirigiu-separaovestíbulo.Malabriuaporta,lembrou-seaoqueiaeresolveuserprevidente.Assim,voltouatrás,procurounagarrafeiraeserviu-seduasvezesdabebidamais fortequeencontrou, talvezviessea ser-lheútil.Sóentãosaiudecasaefoiesperarosforasteiros.6h20Ouviu os cascos do cavalo. Como os gansos já grassitavam no barraco, só

podiaserChaim,eraahoradele.Yankelesperouqueseaproximasse,sentiu-oparar à porta e deu-lhe tempo.Quando o velho partiu, levantou-se da cadeiraondepassaraanoitee, repetindoosgestosde todososdias, foià ruabuscaravasilha e deixar os gansos no aprisco.Voltou a casa sem fazer barulho e sementornarnada.Chaimandavaaroubar,sentia-onopesodoleite,talvezmenosdeumachávena,maserazindikn21namesmaehaviadelhodizer.Aofimdecincopassos,Yankeldesviouàdireita,coisapouca,apenasosuficienteparaevitaropaiquedormianoescabeloecheiravaavinhoazedo.Atéalitudofariasuporumdiaigualaosoutros,maseleapoquentou-se.Assim,silenciosa,aflorestanãooenganava; restava saber o que aí vinha. Fosse o que fosse, quis que Rasiaacordasseconfortável.Paraisso,pôs-seàprocuracomasmãosemcimadamesade pau. Descobriu num instante a malga, a seguir tocou num frasco, depoisnoutro,mas sóo terceiro lhedeixouosdedospegajosos, era esse.Despejouomel na malga e acabou de enchê-la com o leite ainda morno. Rasia acordounessemomentoeperguntou-lhesechegaraairàcama.Ofilhonãorespondeu,masestendeu-lheoleiteeesperouqueelaoagarrasse.Aseguirsentou-seeficouaouvir:osorvodamãe,osonodopaia tornar-se intermitente.Então,alguémbateu àporta.Quemera, fizera-o comosnósdosdedos, semdúvidaumbomsinal. Rasia levantou-se e foi abrir. Yankel reconheceu à primeira a voz deKrystian, o dentista. A saudação soou-lhe atrapalhada, mas não deu lugar adúvidas:estavaaliparacumprirordens, tinhamdeacompanhá-loatéaoLargodoMercado.Rasia terá visto qualquer coisa na expressão daquelegoy, já quenemlhefezperguntas.Agarrouofilhoporumbraçoesaiuparaomeiodarua.

«E o outro?», perguntou o dentista. Ela virou-se para trás, espreitou omaridoadormecido,pesouoqueviu,eseguiuestradaforadebraçodadocomYankel.Krystian desorientou-se, ficou parado um instante, primeiro olhou para obêbado, depois para a mulher que já ia a meio da rua amparada no rapaz, eacabou por ir ter com os dois em passo de corrida. Assim que os alcançou,caminhou à sua frente para mostrar autoridade. Ao chegarem ao fim da rua,cruzaram-secomdoiscristãos.Quietosnomeiodaestrada,descansavamentreospésos seusmalhosde ferreiro.Assimqueosviu,Krystianaproximou-seedisse-lhesqualquer coisa, apontandocomoqueixoparaa casadeondevinha.Comumacaretadeesforço,oshomensergueramosmalhos,pousaram-nosaoombroedirigiram-separalá.Aoretomaramarcha,Rasiaabraçouofilhocommaisforça,enquantopediaa

Deusqueomaridonãosofresse.8h00Eryklevouamangaaosolhos,masfoipior,tambémjáasalgaracomosuor.E

aindahaviaopóquelevantavaaocaminhar,apontadadeesforçoeomedodeolhar em frente. Até que ergueu o rosto, não tinha outro remédio. Naquelemomento,jáiaquaseparado,masestarreceuquandodeucomaportaaberta.AcasadeYankelpareciaabandonada;dali,sóconseguiaverassombrasparadas,umajanelaaofundoeosarejosqueagitavamacortina.Quarentapassos.Ocemitériojudeuestendia-seatéali,eumdoscarvalhoscresceratãojuntoao

muroqueasraízesenredadasnasossadasfendiamaestradadeumladoaooutro.Erguida num barral de lágrimas, a árvore gemia de velha, e as ramagensestalavamcomopesodoscorvosqueasvergavamàsdezenas.Erykfoiandandoatésairdasuasombra.Vintepassos.No chão, logo à frente, viu as pegadas e o pó tingido de vermelho; pouco

depois, mais uma mancha. A avezinha caíra morta e restava aquela massaensanguentada.Erykaproximou-seepôs-sedecócorasparaaverdeperto.Foiquandooestômagolhesubiuàbocaeofeztombardecostas.Afinalnãoeraumpássaro, era um tufo de cabelo que trazia escalpe e tudo. Enquanto serecompunha, um corvo pousou ao seu lado e bicou o achado, engolindo-o alimesmo. Eryk agoniou-se, teve a certeza de que o corvo se alimentara com acarnedoamigoetentoupontapeá-locheiodeascoederevolta.Parado nomeio da estrada, chorou como ummiúdo.Mas aí lembrou-se de

Shionka;viu-adenovocomYankel,osdoisdeitadosàbeiradolago.Passadosinstantes,comorostomaissereno,levantou-seefoiparacasa.

*Tadeuszpôs-seondegostava:emcimadaescadaria,logoabaixodofrontão,a

apanhar o sol de frente.Dali, podia guiar omundo.Tinha a cidade nasmãos,queria lá saber se era tratado por fantoche, capacho dos alemães.Mesmo quefosse verdade – e isso estava por provar –, fizera por estar ali, resistira aosbolcheviques, resistira ao manicómio, havia de recolher tudo aquilo quesemeara.Entãofechouosolhos,asalturasprovocavam-lhevertigens,equandoosreabriuapreciou lentamenteoque tinhaà frente:ascasas,o largoeopovoqueagorasejuntavaàvoltadastrêsestátuas.Tadeuszolhoubemparacadauma,via-setambémnumpedestaletalhadocomoportedeTrajano.Paraisso,deveriaservalenteatéaofimedeixaraobrarematada.Jámuitosotinhamtentado,mas,na hora decisiva, faltara a vontade férrea. Cada vez que pensava nisso, sorriaincendiado.Ninguémo conhecia de verdade. Ele, TadeuszOrlosk, saberia sertenazondeosoutrosvacilavam.Afinal,esperaraporaquiloavidainteira.Trêsdias antes, um grupo de patriotas já provara ser possível. A poucas horas deviagem,noutracidadeinfestada, tinhamlavadoahonracomosangueisraelita.Nem um só judeu sobrara, o resto não lhe interessava. Se houvera perda devidas,sehouveraselvajaria,forasópelaambiçãodedeixartudobemfeito.Foi entãoqueergueuosbraços, agitando-osaté ter a certezadequealguém

daria por ele. Não teve de esperar muito. Os homens que estavam no largopararam de conversar e viraram-se para cima. Parecendo estar já à espera,galgaramaescadariapara ir tercomoPresidente.Osseus rostosabrasavamenãoerasódoesforço.Misturadoscomoslocais,vinhamosviajantesdafloresta.Chegados das cercanias, já sabiam ao que iam, já levavam as mãos sujas.Quandochegaramláacima,entraramemfilaparaoátriodoMunicípio.Tadeusz,fraterno,postara-seàportaparadistribuircumprimentosepalavrasdeincentivo.Mal a porta se fechou, o edifício estremeceu e ia pegando fogo. Os gritosincendiárioscustaramadissipar-seeTadeuszexasperou-separaconseguirdarasordens.Poucodepois,saindodenovoemfila,cadaumbrandiaumferro,umamarretadepau,oolharesgazeado.Logoatrás,opresidentedaCâmaraficouavê-los partir. Assim que desapareceram, voltou as costas ao largo e foi fazertempoparaoscorredoresdoPaço.Passouumahora.Poressaaltura,jáametadejudaicadacidadetransbordava

decristãos.Nuncanaquelescincoséculostinhampululadotantosporali.Havia-os de todo o feitio: rancorosos, constrangidos, virulentos, mas com a mesmaideiafixa:persuadirosjudeusajuntarem-senolargo.Aprincípio,viu-sealgumcomedimento,masquandoArkadiusz,omaisferozdosforasteiros,quismostrarcomo fazer, o festim de violência alastrou desenfreado. As portas das casasforamfeitasemestilhaçoseosjudeuspostosnaruasobachuvadaspancadas.Para evitar os maus-tratos, muitos já estavam no passeio quando os gentiospassarameseguiramatrásdelesatéaocentrodapraça.OMataGalinhasandavatresloucadopelasruasdoVigele.Levavaocuteloà

anca, embainhado num bolso, sem nunca largar a empunhadura, não fossealguém duvidar daquilo de que era capaz. Com ele, mais dois arruaceiros:Anatol,odafarmácia,eofilho,umlatagãoconhecidoporsorvertampinhasdeálcool escondido atrás do balcão. Ao passarem pela casa do alfaiate, viram aporta entreaberta. Pararam tão excitados que quase se atropelaram.A colheitaprometia,conheciambemohomem,umjudeucomcincofilhos.Secontassemcomamulher,eramsetedeumavez,umfretequenãoseesbanja.Mas,paraseugrandeinfortúnio,oprémiocalharaaoutro,tinhamchegadotarde.Ládentro,sóocaosdoabandono,amesapartidaemdois,ospratosemcacos,rolosdetecido,varõescarregadosderoupa,pregadeirasetesouras,tudonomeiodochãoentremarcasdegizpisadoàpressa.Certosdequeoalfaiatejátiveraasuaconta,ostrêsconformaram-seesaíramàprocuradeoutrapresa.Noentanto,malpisaramo passeio, ouviram um barulho que os fez voltar atrás. O choro abafado dacriançachegava-lhesdeumcanto,escondidopeloreposteirodasprovas.Acertaaltura, o choro hesitou e deu lugar ao sussurro de quem o tentava calar. FoiAnatol a avançar e a correr a cortina de rompante.Agachadas no sobrado, asduasmeninas nemolharampara cima.Amais velha, compoucomais de oitoanos, apertava contra si uma bebé coradinha, tapando-lhe a boca com amão.Nesseinstante,doladodeládasala,outroruído,destavezumsomdeesforçoquepareciavirdetrásdasfazendascorderato.Osrolosaprumadoscomeçaramaoscilar, até que acabarampor cair comgrande estrondo, revelandoos rostosansiososdetrêsrapazes.Agarradosunsaosoutros,osgarotosatreveram-seairtercomasirmãzinhas,semnuncatiraremosolhosdosgoyimcomardelobos.De repente,parecendoabrir-se sozinha, aportadoarmárioescangalhado ficoupresanumsógonzo, até surgir o alfaiate, logo seguidopelamulher.Enquantoestacorriaparaosfilhos,odonodacasaencarouosoutroshomensàesperadopior.Então,oMataGalinhaspôs-seaandaràsuavolta,olhando-otãodeperto

quepareciaquerer farejá-lo.Por seu turno,o filhodo farmacêuticodedicou-seaosmaispequenos.Grandecomoumacasa,porpoucoquenãoosesborrachousócomoseuolharbovino.Semterquemlhedesseluta,Anatoldesiludiu-seegritou-lhes que saíssem, tinham serviço à espera lá para os lados domercado.Peranteotomdeameaça,ninguémsedemorounosesconderijosetodaafamíliasejuntouaopédaporta.Depois,formaramumafilaecomeçaramasair:amãeemprimeiro,comabebéaocolo,depoisostrêsgarotos,ameninaeoalfaiateafecharogrupo.Ofarmacêuticonãoparavadegritarparaosapressar,masmalolhou para o filho as ordens morreram-lhe nos lábios: o latagão pareciaenfeitiçadoaoverpassarosjudeus.Semsaberoquepensar,Anatolseguiu-lheoolharatéencontraroalvoaqueapontava.Assimquepercebeuoquelheianacabeça,agiusemhesitar.Comumencontrão,fechouaporta,deixandonomeioda rua a mãe, a bebé e os três rapazes, logo arrastados por um grupo quepassava.Aoverem-seencurraladosdentrodaprópriacasa,ameninamaisvelhaeoalfaiateolharamincrédulosparaosgoyim.FoiquandoAnatolpuxouabarrade ferroe,deumsógolpe,estilhaçouos joelhosao judeu,queseestatelouaocomprido.Nessa altura, já o filho tinha as calças pelos artelhos emostrava aspernasgrossas,refegadas,amachucadaspelopesocarregado.Depois,tresandavaaadolescente,asurroea roupapormudar.Comadesvergonhadosestúpidos,levouamãoabaixodabarrigadescaídaeprocurouentreasmassasdegordura.Quando o encontrou, ainda que não o visse, brincou com ele, sacudiu-o,arregaçou-o, cheirou a mão e, sem nunca tirar os olhos da filha do alfaiate,limpouofiodebabaquelheescorriadaboca.Assimquesesentiupronto,olhouparaopai.Semperdertempo,Anatolagarrouameninapelobraço,deitou-anochão,deu-lheduasbofetadasparaacabarcomostremeliquesepreparou-aparaorapaz.Ojudeu,querastejavanochão,tãodepressaameaçava,comosuplicava,como prometia tesouros ridículos. Mesmo à sua frente, o Mata Galinhascaminhava em passos largos, divertido, a chamar nomes. Foi então que ofarmacêutico,vermelhodeesforço,ajudouolatagãoaajoelhar-se.Depoisdeodeixarnosítio,deucincopassosatráseficouaapreciar.Nessaaltura,jáorapazfaziacontasàsdistâncias.Comosolhos turvosdosuor,alinhou-seomaisquepôdee,aoter-seondequeria,aluiusobreamenina,abafando-acomoseupeso.Ao deixar de ver a filha, o judeu gritou na sua vez e,mesmo com as pernaspartidas, teria ido salvá-la não fosse oMataGalinhas e o seu cutelo em riste.Entretanto,opaquidermepareciaatrapalhado.Assentenoscotovelos,remexia-sepenosamenteemcimadameninasemacertarondequeria.EratãoconfrangedorqueAnatol se apiedou e teve de lhe valer.De gatas à sua beira, foi capaz de

encontrarumaperninhaepuxá-laparafora,deixandoofilhoajeitar-se.Orestonãoduroumuitoefoimarcadoacompassopelosurrosdorapazeaspalmasdosmais velhos.Quando acabou,mais pesadodo que o costume, ainda se deixouestar,parecendonemselembrardequetinhaalguémporbaixo.Finalmente,lárosnouapedirqueoajudasseme,entrebufosdeesforço,foiiçadopelosoutros.Enquantoomancebosevestia,ofarmacêuticosentiuumamãonascalças,eraoalfaiate.Choroso, ranhosoedesonrado, faltava-lheavozparapedirpela filha.Só então Anatol voltou a lembrar-se da rapariga. Ali estava ela, tombada nomesmo sítio, ovestido esfarrapado, aspernas arroxeadas, o rostoparaooutrolado.Ocristãoaproximou-see,aochegarjuntodajovem,usouapontadabotapara lhe virar a cabeça. A expressão surpreendeu-o, parecia adormecida, só otomazuldapelepoderiadaraideiadeumamorteviolenta;deresto,nãohaviasofrimento,nemumlaivodesurpresa,orostomaisneutralquealgumavezvira.Porisso,aofalarparaoalfaiate,Anatoltroçoudelecomvozpesarosa:«Queraiodedeusovossoqueadeixoumorrersemgozo…»Evirou-lheascostas,enquantoordenavaaosoutrosqueoseguissem.Quando

estavamasair,oMataGalinhaslembrou-sedequalquercoisa,poisagarrou-seaAnatolesegredou-lheaoouvido.Aseguir,ficouàespera,comardegarotoempulgas,semdarfédoascoquecausaraaofarmacêutico.Malooutroencolheuosombrosesaiuparaopasseio,oMataGalinhastirouocutelodobolso,cuspiu-lhenopunho,bateuaportadaruaefoitercomoalfaiate.Tauba não precisou de ir à janela para saber que o mundo talvez acabasse

nessedia.Láfora,osgritosnãolhelembravamnadaconhecido,nãofaziaideiade que se pudesse sofrer assim. Por isso, aproximou-se da seira, pegou emMoshee levou-opara trásdobiombo.Sentou-secomofilhoaocoloerepetiupara si mesma a história dos judeuzinhos, pedindo a Deus que mantivesse omenino adormecido até aquilo terminar. Baruch não estava em casa, saíra aoouvirorebuliço,masjuraravirbuscá-los.Averdadeéqueotempofoipassando,osgritosnãocessaram,eomaridonãovoltou.Entãoalguémbateuàporta.Otoqueerainsistentemasdiscreto,comosequemchamassereceasseserouvido.Tauba apertou o filho contra o peito, Baruch tinha a chave, não era ele. Aspancadas repetiram-se, pareciam mais urgentes, e ela levantou-se, deitou ogarotoeencostou-seàportadarua.Avozdooutroladoeraquaseimpercetível,masdesesperada,eissofoiobastanteparaTaubaarriscar.Perla entrou aos tropeções, levava o filho ao colo, os dois rostos colados e

mascarrados.Atabalhoava tudo,osgestos,osolhareseaspalavrascomque ia

descrevendooshorroresdeque fugia.As crianças!Havia crianças estropiadasnospasseios.Taubaquissabermais,pediu-lheparanãoescondernada,masfoiagarrar-se a Moshe não fosse aquilo ser verdade. Assim que teve a certeza,levantou-se,olhouparao filho,olhouparaPerlaeoseubebé,edecidiupelosquatro: fosse o que fosse que as aguardava nas ruas, havia que fugir naquelemomento.Eporissodisseàamigaqueaseguisse.Umaatrásdaoutra,cadaqualcomoseumenino,percorreramocorredorquepassavaaopédasescadasatédarcom a porta de ferro. Do outro lado, a sala estava às escuras, os fardos dealgodãotresandavamamofoeaavesmortas.Semverondepunhaospés,PerlaagarrouTaubapelovestidoecontinuouaandaratélheesbarrarnascostas.Foientão que viu a luz; primeiro uma fresta cautelosa, depois, com o rangidoferrugento das bisagras, o esplendor das dez da manhã. Encandeadas, asraparigas puseram-se à escuta antes de saírem para o saguão. A um sinal deTauba, atravessaramo pátio, debruçaram-se ao passar sob os janelões daBaisYaakoveforamteràvielaqueaslevariaàfloresta.Láaofundo,viam-sejáospinheiros;erapouco,nãoeranada,mesmoassimcadaumasegredouaofilhoaboanova.Ocaminholevou-lhesmeiahora,pararammuitasvezesporjulgaremouvirvozes,alguémquechamava,alguémqueseaproximava,tudosugestõesdaaflição.Quandoalcançaramasárvores,aindatentaramcorrer,mas,àmedidaquese afastavam do shtetl, a floresta tornava-se mais densa e o chão arenosoesboroava-seemcovastraiçoeirasqueasfaziamperderoequilíbrio.Numadasvezes, Perla chegou a cair e, para amparar o filho, rodou o corpo na queda,tombando sobre uma cepa.Tauba ajudou-a a levantar-se; o bebé parecia bem,mas a mãe não conseguia respirar. Dava a ideia de que partira uma costela,talveznãofossegrave,masamarchaeraagoramaispenosa.Foi Perla quem deu por eles. Sem dizer palavra, estacou e agarrou a amiga

pelobraço, enquanto encostavao indicador aos lábios.Comoqueixo, fez umsinalparaadireita,aorigemdobarulho.Taubanãoviuàprimeira,masacaboupornotarumamanchaamareladaentreos fustesdeunscarvalhos.Oquequerquefossemexia-se,eraperigoso.Depois,nemdoismetrosmaisàesquerda,umamanga encarnada e, logo acima, o rosto de um velho. A gargalhada seguintemostrou-lhes que aqueles homens não estavam ali com medo, e isso foi obastante para elas se prostrarem entre as ervas. Nesse instante, a gargalhadarepetiu-seeouviramcantaraRota22.Pelasvozes,davaparaverqueeramquatro;pelotom,haviamdeestarbêbados.FoientãoqueMoshesecontraiu,franziuorosto,pôs-severmelho,trêsprenúnciosqueTaubaconheciabem.Semtertempoparamaisnada,araparigaagarrouovestidopelagola,arrancouosbotõesdeum

só puxão e expôs asmamas inchadas.O garoto, que já se escancarara para oprimeirovagido,viu-sedebocacheiaebastou-lhesugarcomavidez.Receandoque o seu acordasse nomesmo estado, Perla desabotoou-se e, passando-lhe omamilopeloslábios,acaboupordespertá-lo.Assimqueosbebéssesaciaram,asmães baloiçaram-nos no colo, sussurraram-lhes palavras que tanto podiam serpreces como canções de embalar. Do outro lado, os homens não pareciamdispostos a partir. O hino dera lugar a umas vozes dispersas e havia cheiro afumo. Tauba calculou que fossem assar qualquer coisa e perdeu as ilusões:preparavamoalmoço,estavamaliparaficar.FoiissoquedisseaPerla,tinhamdefugirrapidamente,nãoiriamsercapazesdemanterascriançassossegadaspormuito tempo.Aoutraacenouaconcordarepuseram-sedecócoras.Prenderamos filhos comumbraçoeusaramamão livrepara se equilibrarem.Ospassosquearrastavameramcurtos,desajeitados,aameaçarcalamidadescadavezquerestolhavamnascarumas.«Umpardeputasjudiaseosseusbastardos!»Aseguir,aspalmaslentas,umaaprovaçãotrocistamesmoàsuafrente.Nem

TaubanemPerlasuportaramolhá-loacimadosjoelhos.Asbotaserampretasepoentas–numadelasdavaatéparaverosdedos–,epareciampoucofirmes,amudaremdeumpéparaooutro.Aspalmascontinuarameosinsultostambém.Aquilo serviu de chamamento, já que os outros apareceram num instantinho.Comagorduraaescorrer-lhespeloqueixoevencidaasurpresa,riram-secomoloucos, exibindo os restos da comida entre os dentes podres. Eram realmentequatro,estavamrealmentebêbados.Mesmocomavistatoldada,oquechegaraemprimeiropôs-seaolharparaTaubaeacertoucomavistaemcheionodecoteemdesalinho.Quandoeladeuporisso,eratardedemais.Aindaescondeuopeitoabraçandomaisofilho,mas,poressaocasião,jáoarruaceirolhebabavaocolo.Semperderorisoalarve,ohomemenfiouamãosurradaentreTaubaeobebéepôs-se a apertar-lhe um seio, a rodar-lhe omamilo que ainda vertia leite. «Aporcagosta»,dissecomestupidez,«oravejam!»,etirouamãoparaprovaraoscompanheiros como saíra a pingar. Os outros pareciam loucos, nem queriamacreditar, afinal era verdade tudo aquilo que se dizia: judias devassas, raça deserpentes! Mesmo assim, todos quiseram experimentar. Daí que, na horaseguinte, julgando dar gozo a Tauba ou julgando dar gozo a Perla, cada umcomprovouapodridãoencharcandoasmãosàvez.Masnãoforammaisalém,sabiamquemalitinhamenempensarempecar.Eoqueissolhescustou!Tantoque cada um, engendrando uma desculpa, procurou a sua árvore para poderpecarsozinho.Vendo-se,pormomentos, livresdeles,as judiasperceberamque

eraaaltura,nãoteriamoutrabrechacomoaquela.Umolharfoiobastanteparaseporemdeacordo,ergueram-secomcuidadoesaíramdebruçadaseagarradasaosgarotos.Aofimdeunstantospassos,largaramdesembestadasaostropeçosentre as árvores, indiferentes aos vergões que as ramagens lhes fustigavamnorosto.Comonãoconheciamafloresta,nãosabiamparaondeiam.Acorridaeratão desaustinada que perderam os sapatos. Sentindo os pés retalhados,obrigaram-seaabrandar.OSolapiqueprojetava-seentreasárvores,eostrilhosde luz forte cegavam-nas e queimavam-lhes a pele. Foi então que osmeninoscomeçaramaceder,muito tinhamsuportadoatéali.Asedeeos solavancos játinhamfeitoosseusestragos,nadahaviaqueoscalasse.Semsaberoquefazer,asmulheresabrandaramaindamaise,de tãoalquebradas,caminhavamjásemtino.Perlaperdeuasforçasnomomentoemqueopisou.Nãoprecisoudeolharparasaberoquecalcara;eratenro,morno,enredadoentreaservas.Sentiuopépegajoso e soluçou ainda antes das lágrimas. Tauba aproximou-se e olhou-lheparaospés.Assimqueviuoqueera,virou-sedeladoparapouparofilho.Masagora era tarde, pelo menos para ela; condenara-se com aquela imagem,amaldiçoara-separasemprepor tervistoopequenorostodistorcido,osbraçosabertoseonovelodetripinhas.EramaisummeninodoVigele,podiatersidoodela,podia ter sidoodePerla,quecriaturadeDeus fariaumacoisaassim?Arespostaveiodeperto,eramoutravezasvozes,maspareciamemmaiornúmero.E, para acabar de vez com a esperança, deram conta de mais gritos quechegavam do outro lado. A floresta estava a ser vasculhada por matilhas deselvagens, gentios desalmados no encalço dos judeus que fugiam entre asárvores; judeus como elas, judeus como a criança cujo sangue Perla aindaesfregavaagoniadanacaruma.Comodoisanimaisferidos,asraparigasvoltaramacorrer,nemospésasdetiveram,nemosgritosdosseusfilhos.Correramporpoucotempo,jáque,desúbito,aflorestainterrompeu-separadarlugaràterrahúmidaemredordolago.Sóaítravaram,pondo-seaolharemvoltasemsaberoquefazer.Foientãoqueosviramoutravez.Vinhamdetodaaparte,cortando-lhes sem remédio qualquer caminho de fuga. Mas talvez ainda houvessealternativa,aúnicarazoável.TaubaePerlalembraram-sedasmãossurradasdoshomens e das suas bocas podres; lembraram-se também dos gritos, das ruasdevassadasdoVigele,dascriançasnospasseiosedomeninoesfaceladonomeiodaservas.Porisso,comosfilhosapertadoscontrasieospésmetidosnolodo,caminharamemfrenteedemãodada.Olagodavaaideiadeumapoçadeáguachoca,mas tambémpodia ser o céu a derramar-se.Um e outro tocavam-se lálonge, o mesmo azul sossegado, tinha de ser o lugar certo. Quisesse Deus

fustigá-lo com o vento do oriente, passariam a pé enxuto entre as águasdivididas.MasDeusnãoquis.Láatrás,oshomensiamestacandonaareiamolhada,pasmadosaolharparaas

mães.Viram-nas enfim parar, já com a água ameio do peito, rodando logo aseguirpara ficarem frente a frente.Depois, trocaramos filhos.Abraçaram-noscomoseuseviraram-separaamargemláaofundo.Trêspassosdepois,oscabelosflutuaramedeixaramdeservistas.A feira subira a escadaria e já se instalara no vestíbulo. Tadeusz parecia

transtornado, berrava para quem passasse, queria-os dali para fora. Mas nemtodosoouviram,algunscaíramdebêbadoseosmaisindecentestrocaramentresi os troféus extirpados aos judeus. Pelomeio, havia cães desvairados com ocheiroacarnecruaquemuitosdaqueleshomenstraziamnasbotasenosdedos.Cadavezmaisexaltado,Tadeuszperseguiuosanimaiseacertou-lhesunsquinzepontapés,masfoitantaachiadeiraquesóconseguiuqueoutrossejuntassemàmatilha. De repente, o clamor que veio da rua acabou com a confusão. Aospoucos,todaagenteacorreuaopatamaresepôsaolharparaolargo.Osjudeuscontavam-sejáàscentenaseocupavamapraçainteira.Atodaavolta,estavaorestodacidade,osgentiosqueseapertavamparanãodeixarescaparninguém.Na primeira fila, os cristãos mais valentes, homens e rapazes munidos combastões; logoatrás,emmaiornúmero,oscuriososmaisosgritosde incentivo;por último, os que talvez preferissemestar emcasa.Entre estes,Eryk era dospoucos que olhavam em frente, incapaz de resistir à orgia dos selvagens.Conhecia-ospelonome,lembrava-sedeleshonrados,homenstidosporpacatos,bonscristãos;agoraeravê-losali,comocãesdesvairados.Devezemquando,um ou outro saía por ali a açoitar onde calhasse e, nessa altura, os judeusamalgamavam-secomoumúnicoanimalferido.Derepente,umabrecha,aprimeira,eafiladepolacosaromperamultidão.

Quando pararam à frente das três estátuas, abriu-se uma clareira à sua volta.Algunsdoshomenstraziamaoombrováriasvoltasdecordaquedeixaramcairjuntoaospedestais.Aseguir,escalaramaspeanhasdeLenineedeRebbeJakobHalberstein, o judeu fundador. Assim que se empoleiraram, receberam dosrestantesaslaçadasjáarmadasparaenvolverasestátuas.Quandoasvirambempresas,osqueosesperavamláembaixoolharamparaosjudeuseescolheramnomeiodelestrintahomensvigorosos.Foiaestesquecoubeesticarascordasatéestatelarosheróisnoempedrado.Assimqueopóassentou,todospuderamvera

miséria que sobrara: Halberstein em mil bocados e Lenine sem cabeça. ParaTadeusz,nadadaquiloeraestranho,sonharamuitasvezescomaquela imagem.Talvez por isso, ao ver as duas colunas de poeira e escutar o bramido do seupovo,tevedeseconter,nãoquiscomover-se.Sentia-setãotriunfantequeergueuasmãosaoareurroucomoumdemente.Foinaqueleestadoquedesceuparairter com a multidão. Enquanto passava pelos judeus, alguns estenderam-lhe amão, outros caíramde joelhos a lembrá-lodaspromessas,masTadeusz fez-seesquecido.Foientãoqueouviuumruídosurdoedenovoapoeiraaelevar-senomeiodapopulaça.Ficoucuriosoedeuumacorridinha,descobrindoumpoucoàfrentea estátuadeLenine semcabeçaa ser arrastadapelochão.Enquantoerapuxada pelo grupo de desgraçados que a havia derrubado pouco antes, osgémeosdoSkiba,andandoporali,varejavamosjudeuscomfeixesdejuncosebofetadasàscegas,ordenando-lhesquegritassembemaltoa suapenitência.Eeles obedeciam, mas sem brio: o cântico era funesto e dissonante e as vozesobrigadassócantavamumrefrão:«Estaéanossaculpa!»,aseguirosomdoesforço,ascordasaretesar,aesculturaarastejar,osomdas

bofetadas,«Estaéanossaculpa!»Ogrupofoilevadopelasruasdacidadeeacaboujánafloresta.Nessaaltura,

os judeus escavaramo buraco só com asmãos, rolaramo corpo deLenine láparadentro,enterraram-nosemhonrasnemcabeça,e,assimqueseendireitaram,viramasarmasapontadascontraeles.Ninguémnolargoouviuostiros.Asmulhereseascriançasapertaram-senocentrodapraçaparaescaparemàs

pancadas dos cristãos. Por causa do pânico, poucos tinham trazido água oucomidaehaviamuitagentemaltratada.Dreidejaziaalicomomorta.Porém,sealguémseaproximasse,vê-la-iaaimprecar,oslábiosfebrisesibilantescomquecondenava omundo. Shionka deitara-se sobre ela, cobrindo-lhe a nudez, masnem era essa a razão, queria apenas sossegá-la com o calor do seu corpo.Entretanto, ia pensando em Yankel. Às vezes, sem perder de vista a mãe,apoiava-senasmãos,erguiaotroncoeprocurava-oentreoshomens,masnuncachegava a encontrá-lo. E teria sido fácil, já que o rapaz estava ali mesmo, apoucomaisdedezpassos.Yankel tinha deixado Rasia junto das outras mulheres; escapara-se dela e

colocara-senaorladogrupodepropósitoparaservisto.Erykhaveriadepassar,haveriadeoencontrar,haveriadedizer-lheondeparavaShionkaeomaisque

estavaaacontecer.EErykpassoupoucodepois.Maldeudecaras comYankel, estacoue ficou

calado.Nãoseadmirou,jálheconstaraentretantoquehaviaumcegonapraçaequechegaracomamãe,quemmaispoderiaser?Então,semsequereranunciar,aproximou-se e ficou a observá-lo a uma distância prudente. Dali, achou-oestranho, desnorteado, nunca lhe parecera tão perdido. Constrangido entre osjudeus, Yankel esticava-se omais possível para poder farejar o ar e achar nomeiodasvozesalgumsinaldoamigo.Devezemquando,pareciadistinguirumsomfamiliar,poisvirava-sedesúbitoeesbugalhavaosolhoscomosevalesseapena.Erykafastou-se,semprecalado.Naverdade,nempensouemabrirabocaefoi

issoqueochocou.Poucodepois,unscristãosqueoconheciamchamaram-nodooutrolado.Erguiamasbarrasdeferroparalhechamaraatençãoemostraroquefazer.Erykacenou-lhesegritou-lhesqualquercoisaqueosfezrir.Agora,eraeleo apavorado. Movido pela excitação, sem saber o que fazer, caminhou emcírculoslargosepassouváriasvezesàfrentedosjudeus.Acertaaltura,deuporsi uma vezmais junto deYankel. Lá estava ele, tão lindo,mais cego do quenunca, o corpo escultural que enfim vergava; Yankel virtuoso, Yankel deShionka,tãodocevê-loassim,doladodequemperde.FoientãoqueosgémeosdoSkibapassaramporalieEryk tevededecidirà

pressa:podiachamá-losàparteepedir-lhespeloamigo,umvadioinofensivoaquemDeus já castigara comaescuridãoeterna;mas tambémpodiaoptarpelosilêncio,nãodizerumapalavraparaosalvar.

*JesusCristo pendeu a cabeça sobre o ombro emostrou-se compassivo.Aos

seus pés, prostrara-se o padre Kazimierz: o corpo paramentado estendido nochão de pedra, o rosto castigado nos ladrilhos, os braços bem abertos, aquelacruzdecarne,fracacomoadetodos,masqueEleamavacomosequeriaaumpai.PobreKazimierz,tãoindulgenteapastorear-Lheorebanhocomoincapazdeseapiedardesimesmo.Naqueleinstante, jazidonaslajesdocruzeiro,opadretranspiravagrossasgotasde sangue, enquantochoravaamargamente.OsolhosdorabinoAvigdornãocessavamdeoculparmesmoaofecharosseus.Ouviraosgritosnospasseios,aexpressãotresloucadadoseupovo,eraassimqueanteviraofimdostempos.Eele,cobarde,procuravaaredençãoaospésdeCristoquandoCristooaguardavajánarua.Então,levantou-seenvergonhado.Despiuacasula

esacudiuabarbaquelhechegavaameiodopeito.Aofazê-lo,sentiuocrucifixoemaranhadoeagarrou-ocomosefazaumpunhal.Aluzquejorravadarosáceaatingiu-onessaalturae,quandosaiudaigreja,estugouopassoefoiprocurarasalvação.Achou-anofimdarua,emplenoLargodoMercado,emcadaumdosjudeus encurralados. À medida que se aproximava, os rostos dos gentiostransformavam-se: alguns diminuíam-se, olhavam para chão e aí ficavam aremoernavergonha;outrosafastavam-separanãoseremvistos;haviaaindaosdesordeiros,osquenãooqueriamporalie faziamquestãode lhomostrar.Depeitofeito,osacerdotenãochegouavacilarefurouentreamultidãoparairtercomosjudeus.Assimqueosalcançou,perdeuapressa;vistodeperto,oterrorpareceu sujá-lo. Sem perder tempo, olhou à volta e aproximou-se de doishomensque sehabituara avernamissapara lhesperguntarporTadeusz.Nãosabiam.Porfim,jádepoisdepercorrerapraçainteira,viuumgrupodepolacosàconversa.AvozdopresidentedaCâmarasoavacomoumdiscursoefaziarirosoutros,mas,maleleseimiscuiu,Tadeuszperdeuascores.Oencontroduroupouco,ninguémqueriaouvirsermões.Opriorfalou-lhescomoumpai,tratou-ospor batizados, lembrou-os de S. Paulo, todo o Israel será salvo, mas só viurostosdepedraedeixouqueacatequese lhefossesecandoabocaatédesistir.Quando isso aconteceu, virou-se, taciturno, e foi juntar-se aos judeus.Reconhecia-osatodos,vira-oscrescer,chamara-ospelonome,entraranassuaslojase,agoraquesoçobravamàsmãosdoseurebanho,nãoiriaignorá-los.Nessemomentoavistouocasal.Entre ele e os judeus, caminhavam a brincar, uma dança feita aos pulos,

pareciaqueochãoescaldava.Florianfoioprimeiroadarcomopadreeficouparadoaolhar.Aoveroirmãoassim,Kasiaseguiu-lheosolhosepôs-semesmoaoseulado.Semligaremgrandecoisaaoqueeraapropriado,acabaramporserirparaosacerdote.Opriortorceuorosto,logoatrásdosdoisirmãoshaviagenteasofrer, aquele sorrisochocava-o.A seguir, reconsiderou, conhecia aquelesdoisloucos e não os via a fazer pouco. Na verdade, se fossem bem conversados,aindapodiamserúteis.Porisso,chamou-osesegredou-lhesqualquercoisa.Elesouviramempolgadosesaíramcomoflechas,paravoltaremnuminstantinhocomasvasilhasque lhespedira.E tinhamdadoo recado!, informaramarquejantes.Para o comprovar, cinco minutos depois, apareceu-lhes Pani Krysia a erguerpelosjoelhosasaiadovestido.Vinhaafogueada,aolharparaosjudeuscomosevisseodiabo,equaseesbarroucomopadre.Osacerdotevirou-separaabeataeparaosirmãoseexplicou-lhesoquequeria:deveriamcomeçarpelascrianças,aseguirpelosmaisvelhoseosqueparecessemdoentes.Haviaáguacomfartura

nabombaaopédasestátuase, sealguémosenfrentasse,mandassem-no ir tercom ele. Krysia disse qualquer coisa, mas apenas a si mesma; e, depois dearrancaraFlorianumavasilhadebarro,foicumprirapenitência.Opadreeosdois jovens ficaramaolhar para ela, viram-na empertigada, a romper entre osjudeus, e imitaram-na. Assim, na hora que se seguiu, entre súplicas e dedosapontados, valeram aos que puderam, despejando a água fresca pelas bocasressequidas.Atéquevieramnovasordens.Ninguém soube quem as tinha gritado, mas todos os judeus se levantaram

porqueeramaisprudente imitaramaioria.Quandoseouviramostiros, todoogruposeapertou.Unsempurraramparaumlado,outroscontrariaram,eosqueestavamnomeio balançaram ao acaso. Por essa altura, cristãos e judeus já setinhamenleadounsnosoutros;ochorodestes,asordensdaqueles,gritosdedoredeenxovalhoquejánãosedistinguiam.Averdadeéque,numinstante,deixoude haver teimosias e todos os judeus marcharam irmanados. Nos flancos dacoluna, talequalcãesaçulados,seguiamosgentiosempassadamilitar.Aindaassim, boa parte deles, por temer que os rumores se confirmassem, haviapreferidoirparacasaecorreroscortinados.MasEryk,não;eratardeparamudardeideias.Umpoucoàmargemdogrupo,iriacomodesfileatéaofim.Olargolevoutempoaesvaziare,quandooúltimodafiladobrouaesquinada

farmácia,oSoljátocavaláaofundonafloresta.OpadreseguiacomFloriandolado de fora do grupo, mas Kasia e Pani Krysia tinham ficado para trás. Aviagem era curta e, passado pouco tempo, a multidão já chegara aonde eraesperada.Omanicómionãopareciaomesmoe,ajulgarpelosolhares,osjudeuspressentiram qualquer coisa. Sempre tão abandonado, o edifício escancaravaagoraassuasportaseviam-segentiosasaireaentrar,maisalgunsnojardimaolharparaasjanelas.Cáfora,aindaantesdoportão,oscondenadosapertavam-se,esperandoordensparaavançar.Ficaramalialgumtempo,atéqueumgrupode cristãos se foi pôr junto à entrada. Vinham armados com ferros e foiArkadiusz, o forasteiro, quem gritou as instruções. Sempre em fila, deviamseguiraosparespelo jardimatéaocasarão.Aíchegados,só tinhamdesubiraescada,poisestariaalguémàsuaesperaparalhesdizeroquefazer.Eassimfoi.Procurandoficarjuntodosseus,osjudeusforamentrandodoisadois,semhaverquem resistisse. Shionka esteve sempre ao pé da mãe. O espírito de Dreidedesistiradoseucorpoeficaraaerrarporali,deixandoàraparigaumacarcaçaparaarrastar.Tomara aYankel poder fazer omesmo, chegar-se aRasia, poder ampará-la,

masperdera-aeaculpaerasódele.Quisiràsuaprocura,gritouporela,insistiucom quem passava, mas ninguém lhe respondeu. Foi então que sentiu aexplosão,adorveiologoaseguir,atroz,atestarasgadaaempaparopódochão.Opolacoameaçou-o,senãoselevantasseefosseatrásdosoutrosaindalevavamais; Yankel pôs-se de gatas, mas sentiu uma tontura e acabou outra vezestendido.Ogentiopousou-lheentãoasolanopescoçoeriu-separacontagiarosoutros;aseguircalcou-lheorostocomtodoopesodocorpoeDeussabeoqueteria acontecido se lhe tivessem dado rédea solta.A verdade é que de súbito,entre sons de escaramuça,Yankel achou-se livre. Sem saber quem lhe valera,num instante estava de pé, amparadopor dois homens.Se umdeles nãodissenada,ooutrovociferavaeavoznão lheeraestranha, sóhaviaumaassimemtodoocírculoperfeito.Yankelnãoseenganou:doaltodosseusdoismetros,eraopadreKazimierz

quemberravacomoumlouco.Tomadodeumabravuraquenuncaninguémlhevira,descompôsoagressoreosbiltresqueassistiam.Ele,quelheslavaraospés;ele,queostinhainstruídonadoutrina,via-osagoraaliaachincalharumcego?!Oshomensnãoresponderam,masnãobaixaramosolhos.Semsaberbemoqueesperar,opriorfezsinalaFlorianeláarrastaramYankelparaopasseiodooutrolado.Aindaatordoado,o rapazquis saberaondeo levavam,ondeestavaa suamãe. No momento em que o esconderam numa loja abandonada, perdeu aconsciência. A meia dúzia de metros, Eryk, que nunca o perdera de vista,afastou-seefoijuntar-seaoscristãos.Oprimeiroparde judeusparouassimqueentrouepôs-seaolharemfrente.

Oscatres,asbaias,oslençóiseascobertastinhamsidoamontoadosnoandardebaixo. Ficaram só as paredes, os bolores e os desenhos obscenos.OCorredorlembravaagoraanavedeumaigrejaabandonada:aluzdasclarabóiaseopóemsuspensão, o cheiro da humidade e os sons indistinguíveis de uma enormebarriga apodrecida. Pouco a pouco, o piso foi-se enchendo de judeus. Asfamíliasarrumaram-se:unspreferiramosesconsosládofundo,outrospuseram-seàjanelaaagarrarasgrades.Comachegadademaisgente,obarulhoalastrou,masjánãoseouviamgritos.Oproblemaeraoespaço,acertaalturafoiprecisolutar por um lugar e, de repente, já nem isso era possível porque todos seespremiamunscontraosoutros.Juntoàentrada,aindaodramadosquefaltavaencaixar.Doladodefora,osgentiosempurravamaportaqueteimavaemnãosefechar e de nada valeram as vergastas. Ciente do que estava a acontecer, amultidão apertou-se como pôde, dando folga para que os últimos entrassem.

Quandoaportasetrancoufinalmente,anoitecaiuàbrutasobreoshtetl.Láembaixo,aopédomuro,Tadeuszacabaradechegar.Nocaminho,avistara

osalemães.Debruçadosnasvarandasouparadosnospasseiosemgruposdetrêsou quatro, pareciammais discretos do que nunca e assistiam de longe ao queestava a acontecer. Assim que vira passar o presidente da Câmara, um deleserguera o braço para o chamar,mas Tadeusz desviara o olhar, comprometido,fingindo não dar por nada. Se houvesse qualquer coisa por dizer, era tardedemais.Nesse instante, Arkadiusz juntou-se a ele, mas, com pouco que conversar,

limitaram-seaolharparaocorrupio.Ospolacoscontinuavamnumaazáfamaaatafulharorésdochãodoedifíciocommobíliaeroupavelha,maspararammalouviram os motores. O carro imobilizou-se junto ao portão e, logo atrás, ocamião fez omesmo. Nessa altura, uma dúzia de voluntários acercou-se paradescarregar. Os outros permaneceram especados e viram-nos levar os bidõesparadentrodomanicómio.MasTadeusznãoestavasossegado,àsuavoltahaviabraços caídos; muitos daqueles que antes se apressavam, pareciam agora, naiminênciadatragédia,hesitar,perdercoragem,houveatéquemchegasseair-seembora. Arkadiusz chamou-lhes tudo, mas, assim que deu um passo para ostravar,Tadeuszbarrou-ocomobraço,deixasse-seestarquieto,nãoprecisavadecobardes.Erykfoiumdosqueficou.JátinhavistoShionka,nãoaiaabandonar,haveria

deestarpertodelaatéaofim.PassoumeiahoraquandoumdoshomensfoitercomoPresidente:«Estáfeito.

Não cabe mais tralha.» Nessa altura, já os goyim se espalhavam à volta domanicómioaumadistânciaseguraeTadeuszfoitercomeles.Defrenteparaoedifício, viu os homens a aguardar, pareceram-lhe ávidos, alucinados, tinha-oscomoqueria.Ainda ponderou dirigir-lhes umas palavras,mas não lhe ocorreunenhumacomsentido.Foientãoquedeuaordem.Todossebenzerameaquelesquelevavamosarchotesacercaram-sedasjanelas.NoCorredor,aluzdaluajádeixaradeimportar,masbanhouascabeçasdos

judeusetornou-asazuladas.Aquelesqueforamatempo,elevaramascriançasesentaram-nasaosombrosparaquepudessemrespirar.Nessaaltura,todaagentederacontadosvaporesdoquerosene.Comoaperto,asparedesgemeramcomooshomens.Poderia seromais tristedoscânticos,ochoro,a súplica, aoraçãocomque,nomeiodamultidão,orabinoinvocavaaProvidência.Derepente,osomtremendo.

Oprédiovaciloueumaondadeloucuravarreuomanicómio.Naânsiadeseevadirem,osjudeusatropelaram-seacaminhodassaídas.Osqueestavamjuntodaportaforamosprimeirosaseresmagados.Entretanto,aopédecadajanela,homensemulheressubiamàsdezenaspelascostasunsdosoutroseospoucosquechegavamjuntoàsgradesarrancavamquemláestava,nemquefossepelodespropósitodeabanarasbarras.Opisodebaixonãoparavadechiarefoipelochãoqueocalorchegou;logoaseguir,ofumotrespassouastábuasdosoalho.Comospésaderreter,importanteeraencontrarondepisar,efoinessedesesperoque morreram mais alguns. Shionka e a mãe estariam no meio deles, oxalácontinuassemabraçadas.Depois,osvidrosdasjanelasrebentaramumaum.Osgritosalifechadossaíramfinalmentepelasfrinchasdostaipaisecaíramsobreacidade, acusando até aqueles que se tinham trancado em casa. No meio dosuplício,avozdorabinonãochegouadesistir,mesmoquandoochãocolapsou.ShemaIsrael,AdonaiElohenu!Nem aí o céu se iluminou. Por se querer mostrar isento, até parecia mais

negro,massabiaaoqueassistia.Deondeestava,tinhadeverasclarabóias,osdoisretângulosdefogoeoscorposacontorcerem-se.Chicoteio a cabeça para trás e bato em qualquer coisa. Que foi que me

acordou?Quecheiroéeste?Ondeestou?,nãoseiondeestou.Eestasmãosquemeagarram?Serãoaindaasdopadre?Sintooslábiosgrossos,descomunais,asaber a sangue, e passo-lhes a mão porque quero ter a certeza de que sãomesmoosmeuslábios.Éinútil,nãoosencontro,nemamãosinto,dosombrospara baixo osmeusmembros estão dormentes.Entãomastigo para ver o queaconteceecomeçoatrincarsal.Afinalésóareiaencharcadanosuorquemeescorre do cabelo até à boca. Sei então que foi a febre a despertar-me epergunto a quem me agarra a razão daquele calor. É o padre quem tentaresponder,masdesisteporquedesataachorareadizercoisasestúpidassobreDeus.Não sei o que ele quer, nãome interessa, sinto outra vez a vertigem, équase certo que vou tornar a cair.Mas não é o que acontece. Em vez disso,começoasacudir-mesemcontroloassimquedistingoosgritos.Ouço-oscomasentranhaseaíhãodeficaratéeuapodrecer.Mãe!Rasia!Agora sou euquegrito, chamopelaminhamãeeatiro-meparaa frente.A

vertigemeasmãosdopadrenãomedeixamirmaislongeecaiodesamparado.Estendido nomeio do chão, deixo de respirar porque o ar endoideceu. É umventofuriosoquevemsujodohospícioecheiraafumo;eofumocheiraacarneea cabelosqueimados, osmesmosqueumdiadeixei escorregarpor entreos

dedoselimpeidasfolhassecas.Norésdochão,haviagenteestateladaaerguer-sedoslugaresondeaschamas

nãopegaram.Estropiadospelaquedaeinchadosdocalor,pisavamondecalhavaà procura da saída. Alguns, cegos pelo fumo, continuaram sem sorte eembrenharam-senofogoparamorreremnuminstantinho;osoutrosesbarraramcontraaportaetentaramespatifá-la.Paraisso,usaramospunhos,osjoelhos,ascabeças, as unhas e os dentes. Ao mesmo tempo, berraram, ou para pediremajudaoupor estarem já a arder.Quandoaporta rebentou, tropeçaramunsnosoutrosecaíramjáláfora.Oscorposabrasados,espalhadosnojardimafumegar,poderiamparecercadáveres,nãofosseatosseeasconvulsões.Pelospoucosqueaindaardiam,jánadahaviaafazer.Tombaramumpoucoàfrente,mesmoàbeiradosgoyim,quelhescuspiramemcima,divertidos,paralhesapagarofogo.Aover o que se passava, Arkadiusz enlouqueceu: havia judeus por torrar! Nesseinstante, ouviu-se a explosão das clarabóias e o estrondo do telhado que ruiulogoaseguir.Noprédio,ofogojálavravajuntoàportaesóoventocontrárioosegurava ali dentro. Ao verem Arkadiusz avançar, os outros despertaram dofeitiçoelargaramacorreratrásdele.Assimquechegaramaosjudeuscaídosnojardim, foi um dos gémeos do Skiba amostrar como fazer: olhou à volta atéescolherumdoscorpos;oqueelegeupareceu-lhemaismiúdodoqueosoutrosepôde erguê-lo sozinho.Assim que o pôs ao ombro, o judeuzinho dobrou-se eensopou-lhe as costas comumvómitode espumapreta.Assimdesentupido, ogarotojáfoicapazdegritar,mas,aospoucos,oberroacabouporseesgotarnunssoluços ressentidos.Nessa altura, ao achar-senosbraçosdogentio, omenino,ingénuoeridículo,sentiu-seaconchegado.Comumjudeuabraçadoaopescoço,Skibanemsequerreconsiderou,poissabiadaperfídiadetalraça.Efoiissoqueofezaceleraracaminhodoinferno.Adoispassosdoedifício,parouparanãosequeimaredesencravouogaroto.Entãoolhoupara trás,quissaberseosoutrosviam. Viam. Por isso, virou-se para o fogo e, com um gesto balançado, fezaquiloqueesperavamdele.Passadaumahora,oterrenoestavalimpoeoscristãostinhampartido.Opadre

Kazimierz saiu do esconderijo e ficou de pé nomeio da estrada.Ao seu ladopassaram os cães de Pani Kryzia e pararam para o olhar. Como não oreconheceram, acabaram por ladrar-lhe. Três vezes. A seguir desapareceram,deixandoosacerdoteachoraramargamente.Mesmoemfrente,asruínasdomanicómionãoparavamdecuspirchispaspara

ojardim,eastravesdemadeiraeasossadasaindacrepitavam.Derepente,com

umatrasoindesculpável,oscéusrasgaram-seeogranizoveioapagarofogo.Foientãoqueoscãesvoltaram,masdestaveznãovinhamsós.Seriammaisdo

queumadúziaepareciampossuídos.Oqueiaàfrentelevavaqualquercoisanaboca e era isso que endoidecia os outros. No meio da correria, acabou porescorregar no chão molhado e tombou desamparado, ali mesmo, aos pés dopadre.Semnadaqueoacudisse,foienvolvidopelorestodamatilha.Oquequerquemotivasse aquela disputa enraivecida, todos pareciam abocanhar amesmacoisa, enterrando as patas na lama para puxarem com mais força. Até que,valendo-se da envergadura, omachomais robusto se descolou do grupo comumaposetriunfante.Levavaumaorelhapenduradaporumfioe,entreosdentes,a mãozinha encarquilhada; por essa altura, a relíquia mais inútil do círculoperfeito.Aí levantou-se a ventania – tão demente quevarreu tudo à sua passagem: a

chuva,asruínascalcinadasdohospício,oscães.Sozinhonomeiodarua,àquelahoraesquecida,opadrevestidodenegro, comabarbaadrapejar,procuravaaquemrezar.21Termoemiídichequesignificapecar.22Cançãopolacadecarizpatrióticocujaletra,daautoriadapoetisaeativistaMariaKonopnicka,foimusicadaporFeliksNowowiejskiem1910.

PARIS,1957

Eryk idolatrava-a.UsavaViviennenos seuscontosparacomporasheroínas,mas,setinhadeaexporemcarneeosso,tornava-seviolento.Aideiadeperdê-laparaalguémparecialevá-loàloucura.Insultava-amuitasvezeseembriagava-seaseguirparaconseguirpedirperdão.Acertaaltura,pôsasculpasnacidade;jálevavamdozeanosdeParis,podiamsairdali.Opretexto,claro,apareceucomJean-Alphonsequandolhesbateuàportapelasduasdamanhã.Traziaumacartanamão,mas nemEryk foi capaz de imaginar que, ao aceitar o convite, já seestavaadespedir.Partiramumasemanadepoiseàhoradojantar.A viagem durou a noite inteira, Jean-Alphonse experimentou tantos atalhos

que entraram em Bruxelas com o sol pelas costas. Dali até Boitsfort, umsubúrbioenclausuradona florestadeSoignes,erasómaismeiahora–edessavez saiu-lhes à primeira.AVillaMertens, casa de infância de Jean-Alphonse,tinha as portas escancaradas. A mãe esperava-os cá fora e ia abraçar o filhoquandodeuumpassoatrás.Pareceu-lhemagro,malestimado,nãogostou.Porisso foi elequemaabraçou, fingindonãodarpornada; afinal era sóadordepartoaperdurar.Eryk arrumaraomanuscrito entre as roupasdabagagem.Vivienne já o lera

quatro vezes, Jean-Alphonse não tantas, mas fizera como ela e enchera oromance de notas e pontos de exclamação, que era o que lhe ocorria aodeslumbrar-se. O exemplar que Eryk trouxera para Bruxelas era a versãoacabada,pelomenosatéver.Setirasseopesoaoqueescrevera,nãopassavadeum livrinho, cem páginas escritas só com os indicadores numa Olivetti quedeixava os pp enviesados. Falava de Berlim depois da guerra, de uma casaimagináriaapisarosdoisladosdesavindos,edoberlinensequeaocuparaparanão terdefazerescolhas.Entretidoscomasguerrasdascolóniaseavergonhacoletiva que Vichy lhes destinara, os editores de Paris, certamente inebriadoscom«unecertaineidéedelaFrance»,mandaramaguardaraqueleaspirantede

pronúncia forasteira que escrevia acerca de cidades derrotadas. Eryk nãocapitulou:senãoqueriampublicá-lo,quefossemparaoinferno,haviaquemseinteressasse.Pelomenos,foraissoqueobelgagarantiraaopropor-lheaviagemaBruxelas.Paraalcançaro trunfodeJean-Alphonsebastavaprocurarentreaspraçasdo

Sablonpelaportacordevinho.Oúnicolançodeescadaslevavaaoutraportaeaumachapinhadelatão,Labassecour,Éditeurs.ComoErykpassariaadescrevê-la, a mulher que os atendeu parecia uma garrafa de bom vinho, cinzenta porcausadosanosedeumpóinvulgarmentefino.Nãoeradetodomentira:Marion,aeditora,erarealmentevelha,cordefumoedesprovidadetudomenosdeunsirrefutáveis olhos azuis. Assim que os viu, talvez tivesse elevado assobrancelhas, talvezsorrido,dequalquermaneiraseriasempreumgestocurto,umquasenada.AtéoabraçoaJean-Alphonsefoiassim:enquantoeleaapertavacontra si, eladeixou-lhe asmãosnosombrosdandoa ideiadeo suster, oqueseriaverdadenãofossemosolhosfechadoseacabeçasossegadanoseupeito.Quando falou foi com voz cava; saudou o belga, fê-lo ver que andavadescuidado, e estendeu amão aos outros.A seguir, levou-os por umcorredor,passaramporváriasportas,todasfechadasmenosaúltima.Ládentro,umanegrasentadaàmáquinaescreviacartas.Aeditoradisse-lhequalquercoisa,elasorriuporcimadosóculosesaiudasala.Aconversaprolongou-seatéàhoradealmoço,masoromancedeEryksólhes

levou quinze minutos. Marion, que o recebera por correio havia um mês,demorara muito pouco a saber o que ali tinha. Lida a frase de abertura, jápensavaemestrangularoberlinense;aofimdoterceirocapítulo–«Superbe…»–, envergonhara-se por ele; pelomeio, a boca ainda lhe soubera a ruibarbo emesmo o cheiro a gasóleo que chegava da janela aberta era, quem diria, dostanquesestacionadosnaPotsdamerPlatz.Publicava-o,sim,escreveraelaaJean-Alphonse; e, até ao fimdo ano, fá-lo-ia tambémem flamengo.Mas agora, napresença do autor, havia de dizer-lhe umas verdades. Debaixo da pacatez,Marioneraumapeste:«Garotelhoprepotente!»Queideiaadeledetirarotapeteàspersonagenssóparabrilharemvezdelas.SeaJean-Alphonsefugiuorisoepreferiuolharparaasmãos,Viviennedeixou-seestaraadmirá-la;quantasvezessugerira amesma coisa?Ao longo domês seguinte, ela eMarion riscaram asfolhas, escreveramnasmargens e entrelinhasdo romance, para, a cada fimdetarde, se reunirem comEryk e lhe darem instruções.Na sala ao lado, a negrateclava mais depressa para poder sair antes da hora e poupar-se àqueleespetáculo: o escritor parecia endoidecer, gritava em francês e em polaco e

noutra línguaqueeraa somadasprimeiras,batiacomasmãosnamesa,batiacomasmãosnopeitoajurarquenãomudavaumavírgula.Masmudou.Tantoqueolivrinhodecempáginasdobrouopeso,ganhouespessura,eemcoisadeseis meses tornou-se tão celebrado como um certo Paul Lestrange que oassinava.Erykaindatentouparecermodesto,masVivienne,queoouviarepetirduranteosonoaspalavrasgenerosasqueialendonosjornaissobreoromance,sabiaqueaquiloeravaidade.Noentanto,haviavezesemqueelesóchegavademanhã. Passava noites inteiras com os poetas marroquinos que visitava emMolenbeekouemtertúliasnacavedeMarollesondeseencafuavamosartistasde Bruxelas. Fizera-se amigo à pressa de escritores, de atores, ilustradores eoutrasfigurascapazesdesobreviversócomaquiloquebebiamefumavam.Umdeles desenhava as histórias que vendia para as revistas e oferecia-lhe osbonecos que sobravam, tiras inteiras que rasgava dos seus blocos só para ele.Numadasvinhetas,EryksurgiaafintarpombosnaGrand-Place,bemmaisaltodoqueoshomensqueparavamparaoolharcomosefosseoutromonumentodacidade. E no fundo era assim que ele se sentia, era lá que queria estar. Comfranqueza,talveznãofosseexatamenteali,quemsabesemeiahoramaisasul,nosubúrbiodeBoitsfort,aterradeJean-Alphonse.Mesmonãosendohabitadapelosseresdasuainfância,aflorestadeSoigneslevava-odevoltaacasasemadorinsuportáveldeláestar.Arranhadapelamata,acasavaziaqueencontrouacemmetrosdaVillaMertensparecera-lhelogoumcastelo.Asparedesgrossasepintadas de encarnado desapareciam a certa altura debaixo das trepadeiras ehaviadelicadasesculturasdeaçúcaragarradasaosbeiraisque tambémpodiamseroestercodoschapins.Eraali,sentenciousemolharparaVivienne.Efoi.Emmenosdedoisanos,pareciatãobelgacomoosoutros,naturalizou-se,echegouapôrporescritoosvotosquefizerasobreoSena.Vivienne, que ficara a trabalhar comMarion, resumia a vida aos livros que

ajudava a editar. A princípio só atendia os telefonemas e descia ao bistrotMagritte para ir buscar laranjadas, mas, um mês depois, já esmiuçava osoriginais,estudavacomdetalheasrevisõeseenchiaasmargenscommaisnotas,sugerindoaMarionoquenuncalheocorrera.Aeditoraficavaatordoadaaolharpara as páginas e ainda contestava,mais para se convencer.Quando percebeuque a queria ali para sempre, prometeu ensinar-lhe tudo. Para isso, Vivienneficava sempre até mais tarde e, se perdia o último autocarro para Boitsfort,Marionlevava-aacasanoseu2CVtricolor.Nessasalturas,enquantoatravessavaafloresta,olhavaparabaixoparanãoterdeverasárvores.Aocontrário,semprequeacordavademanhã,Erykdesciaàruaepunha-sea

olharparaelas.Decadavezqueofazia,alembrançadocírculoperfeitopareciaperdermaisqualquercoisa.Quandotudolhepareceuenfimdistante,Erykfechou-seemcasaporcausade

umlivroquelheianacabeça:Ouoescreviaoumorria.

NORDESTEDAPOLÓNIA,julhode1941

Fossequemfossequeberrara,estavadentrodoseupeito.Pelomenos,foiissoqueShionkapensou ao acordar no jardimdomanicómio.Apesar de não a terreconhecido, era uma voz tão íntima que se sentiu confusa. Quando o ventorepentinolhesoprouparacimaascinzasesvoaçantes,despertoucompletamenteepercebeuqueafinaleraelaquemberrava.Aprincípio,nãoquisacreditarquefosse sua aquela voz; que desastre lha arrancava da garganta ao fimde tantosanos de silêncio? A resposta veio com a dor excruciante que sentiu naquelemomento,cruelemdemasiaparapodersercalada.Porissogritoudenovo.Derepente,deixoudeseouvir,jáeramudaoutravez,haviaqualquercoisaaabafar-lhe o grito. Ainda tentou abrir os olhos,mas foi escusado, tinha-os inchados,purulentos,aardercomoorestodocorpo.Foientãoquelevouamãoàbocaedeucomosdedosgrossosqueaamordaçavam.Aseguir,avozpróximadeEryka segredar-lhe que se calasse – a ela, que o fizera toda a vida.De repente, aspálpebrasdescolaram-sesozinhas.Aimagemeraturva,levoutempoaperceberondeseencontrava.Comoela,haviavultosmoribundosatorcer-sepelochãoe,logo atrás, os gentios com os archotes. Também viu chamas a desfazerem oedifício e, quando se lembrou da mãe, ouviu a explosão das clarabóias e otelhadoadesabar.Tentoulevantar-se,masorapazagarrou-aedisse-lhequeeraescusado,Dreidenãosesalvara.Semreagir,Shionkavoltouaolharparaofogo.AindaquisperguntarqualquercoisaaEryk,mas,pornão saber como fazer, alínguaenrolou-se-lhenaboca.Inclinando-se,eleolhou-lheparaoslábiosepediuquerepetisse,massóàterceiraéqueaentendeu:«Yankel?»Eryk hesitou e virou-se para as ruínas do manicómio; parecia procurar aí

qualquer resposta, mas no fundo só quis tempo para pensar. Não precisou demuito:

«Morreu.»Umavezmais,Shionkanãoestremeceu,masusouasdoresdilacerantespara

ocupar o espírito. O cheiro a carne queimada enjoava-a, sabia que era seu osanguequefervia,eentãoolhouparaaspernas.Estavampretas,fumegavam,eErykseparavacomcuidadoosrestosdovestidodosfarraposdepelemorta.Apoucosmetros,osgritosdosgentiospareciamavivaraschamasporcadajudeulançadoaofogo.ErykconheciaodestinodeShionkasecontinuasseali,porisso,a coberto do encanto que mantinha os arruaceiros a olharem para o edifício,levou-apelosbraçoseescondeu-anumrecessodeervasaltas.Quandoosberrosdos outros se extinguiram e o jardim ficou vazio, caíram as primeiras pingas,depoisaspedrasgeladas.Erykespreitouporentreaservasenãoviusinaisdeperigo,mesmoassimsegredouàraparigaqueeramelhoraguardarem.Passadasduashoras,saíramfinalmenteacaminhodafloresta.Otrajetoatéàsárvoresnãolevavadezminutos,masaspernasdesgraçadasdeShionkaeasvezesqueperdeua consciência arrastaram-lhes a marcha quase até de madrugada. Depois dosprimeirospinheiros, ainda caminharamoutro tanto, parando finalmenteonde abrenhaeramaisdensa.Dezdiasdepois,ErykeShionkaaindaestavamporali.Passavamo tempoa

procurar no ramalhar das copas por sons estranhos à floresta, enquantomastigavam as bagas de sabugo que encontravam no moutedo. De noite, elefugiaatéaolagoparaencherdeáguaocabaçoquefizeracomcortiçae,assimqueoSoldespontava, recolhiae trituravaaservasapontadasporShionkaparafazerobálsamocomque lheuntavaaspernas.Quandoela se sentiu capazdecaminharsemamparo,finalmentepartiram.Durante os meses seguintes, ficaram onde os acolheram, aceitaram fazer

qualquerserviço,moraramemestradasechiqueiros,mastambémentrepessoas;Piatnica,Zambrow,Pulawy,nãointeressava,desdequefosseparasul.Aúltimaparagem foi emKrosno, a poucashorasda fronteira comaEslováquia.Foi aíquepassaramosúltimosanosdaguerra.O lugar que encontraram para viver estava longe do olhar de toda a gente.

Encostadoàfábricadetêxteisabandonada,ocasebrepertenceraaumtipógrafojudeuenviadoparaTreblinka23.Forausadoduranteanosparaguardarosprelosavariados e as bobinas de papel, nunca perdendo o cheiro a ferro nem a tintaressequida.Mas, como tinham ao dispor o baldio atrás da fábrica e Eryk nãoreceavaashorasdeesforçoquelevariaadesmatá-lo,ficaramalimesmo.Entretanto,naquelasbandas,ninguémsabiaquemeraocasalinho,eacidade

já somavamuitas histórias de desgraças para querer fazer perguntas. Dizia-se

quearaparigaeraesquisita,quefalavapoucoeninguémpercebiaàprimeiraoque dizia; já ele, não, chegava a fazer por dar nas vistas. Passeava pelas ruasprincipaisebatiaacadaportaàprocuradetrabalho.Selhediziamquesim,faziaomelhorquepodia,fosseamanharumquintaloulavarcantarias.Mesmoassim,Erykandavaacontragosto,sentiaosbraçospesadose,quandochegavaacasa,prometianãovoltar.Masvoltavatodososdias,atéquealguémochamouparaumserviçomaisdigno.FoiPaniFranciszek,avelharetroseiradacidade,quetinhafilhosnaAmérica,

masaquemfaltavaavistaeaspalavrasparalhesescrever.Comoquasetodaagente,jáouvirafalardoforasteiroque,entreosturnosdo

trabalho,sesentavaàparteaescrevinharnoblocoamarrotadoquelevavanumdosbolsos.Sendoumusopoucovistoporali,orapazfez-senotadoepassaramatratá-loporpoeta.Perfeito, pensara então Pani Franciszek, era o que precisava, só faltava

convencê-lo. E para isso foi ter comEryk. Se não fosse pedirmuito, poderiacederunsminutosdoseutempoeajudaraquelamãeadeixaraescritaemdia.Gostaria de ser mais generosa, mas, com a guerra, mal dava para as outrasdespesas.Eryknemhesitou,opoucoqueelaofereciapelascincocartasescritaseramaisdoqueajornadedoisdias.No final, o resultado superou as expectativas, pois, segundo afiançava a

retroseira pelas ruas da cidade, as palavras que o poeta dedicara aos seusmeninos exprimiamde formaadmiráveloquenunca lhes souberademonstrar.Daíàfamafoiumápice,oquenãoadmiravanumaterraquejávirapartirtantosfilhos.E seria assim, a vender cartas, que Eryk aguardaria pelo fim da guerra.

Escrevia-as noite e dia, sem nunca se repetir, e fazia-se pagar à linha por lheparecermaishonesto.Malterminavauma,entregavaorascunhoaShionka,queadesenhavacomasualetraprimorosaemfolhaslisaseamarelecidasaosol.Ocerto é que, ao fim de ummês, Eryk pode oferecer a Shionka a sua primeiraovelha. A seguir, construiu um aprisco no terreno da fábrica e esperou que aovelhaenchesseos trêsquartilhosde leitequeopastor lhegarantira.Shionka,queestragouunsvintelitrosantesdesesairbem,alegrou-seaodespejá-lojáempasta nas formas de madeira. A partir daí e a cada quinta-feira, fumados osqueijosnumrecantodocasebre,Erykarrumava-osnumaseiraelevava-osparaomercado,ondeosgrelhavaevendiafatiados.Mashaviaumacoisaquenãoforaresolvida:trêsanosapósodesastre,Eryke

Shionka debaixo domesmo teto, e ele nunca lhe tocara. Dormiam em camas

separadas, com uma mesa e tantas coisas pelo meio. Quando Eryk tentavaaproximar-se,Shionkaregressavaaosseussilêncios;seinsistisse,elaencarava-o,masobrilhodosseusolhosaindaerasódaschamas.Porém,certamanhãdedomingo,Shionkasentou-seàportadocasebre,cruzou

a perna e pousouo pé descalço em cimado joelho.Era apenas para cortar asunhas,masEryk,quevinhadelimparoaprisco,encostou-seaotanquedepedraeficouaolharparaela.Asaiadescaíraemostravaapernainteira.Shionka,queantes se resguardava, exibia agora a pele avermelhada e destruída pelo fogoquasecominsolência.Pelomenos,foiissoqueelepensou,ouentãonãoseteriaaproximadoelevadoaraparigaparaocasebre.Já lá dentro, Shionka deixou-se cair de costas na cama, arregaçou o vestido

quaseatéaopeitoeabriuaspernasparaqueErykfizesseoquelheapetecesse.Então, fechouosolhosparase lembrardeYankel,epensoutãoafincadamentenoseurostoquenãofoicapazdereprimirumsorriso.Eryk,jádeitadoemcimadela, não se deixou confundir, mas também não se importou. Afinal, ambossabiamquesósetinhamumaooutro.Mesesmaistarde,aguerraterminoueocasalpartiusemsedespedir,deixando

atrásdesiocasebreeoitoovelhas.Nenhumtinhaa ideiadevoltar.E,depois,estavampertodafronteira,daliatéàAméricanãopodiafaltarmuito.Masfaltou.Faltoutantoque,adadaalturadaviagem,nãohouveforçaspara

mais; o lugar onde pararam extenuados era o lugar onde haveriam de ficar.Ainda por cima, só Paris podia reservar-lhes alguém como um certo Jean-Alphonse.

*O padre Kazimierz virou-se devagar e atravessou a rua. Ocultos na loja

abandonada,YankeleFlorianouviram-nochegar.Opadremandou-oslevantarefoitudooquedisse.Depois,saíramostrês.Jásemcontarcomaluzdasbrasasdo incêndio, o círculo perfeito cobrira-se de negro e, mais agreste do que ocheirodascinzasencharcadaspelachuva,talvezosomdospassos,oesmigalhardas lascas calcinadas de madeira e outras coisas indistintas que seria maisprudenteignorar.Ogrupocaminhousobosbeiradosechegouàsacristiasemsecruzar comninguém.Entraramàvezeopadredemorou-se aolharpara a ruaantes de trancar a porta. Sem nada que alumiasse, levou-os ao presbitério;porém, a meio caminho, parou e pediu-lhes que aguardassem junto aoconfessionário.Nessaaltura,empoleirou-senobancodopenitentee,esticando-

se,levouobraçoaonichoparaalcançarumachavedisfarçadaentreospésdeS.Francisco Estigmatizado. Finalmente, afastou um reposteiro, descobrindo umaportademadeira.Assimqueaabriu,avançouporumcorredorestreitoeescuro,levando logo atrás os rapazes que avançavam às apalpadelas. Assim que oouviramdestrancarmaisumaporta,pararameficaramàespera.Ocheiroabafioatingiu-os aomesmo tempo que o ar frio e tiveram de se apoiar nas paredesenquantopisavamosdegraus.Asescadasnãoparavamderangerporfaltadeusoe, a julgar pelo tempo da descida, bem podiam estar a caminho do inferno.Quandochegaram,opadretateounaescuridãoatéencontrarocandeeiro.Depoisdelibertardoisdedosdepavio,aindagastoualgunsfósforosantesdeoacender.Acriptadaigrejamaisnãoeradoqueumquadradodeoitoporoitopassose,porcausadaluztrémula,asparedestranspiradaspareciamagoraapeledeumbichoa respirar.Numdos cantos, via-se uma enxerga e,mesmo ao lado, uma portadeitadaporcimadeunscaixotesafazerdemesa.Haviaaindaacadeira,atinadeesmalteapoiadanotripéeumbaldedezinco.Duranteahoraseguinte,opadresubiuedesceuasescadasasvezesnecessáriasparaabasteceracriptadetoalhas,duasmantas, uma caixa de fruta e um jarro de água fria. Quando parou paradescansar,agarrouYankelporumbraço,levou-oatéaocantoesentou-oaoseulado na enxerga. Não deixou nada por contar: falou-lhe damãe, falou-lhe deShionkae jurouquenão tinham tido tempode sofrer.Também lhedisseondeestavaeporqueotinhapostoali.Asruasandavamdemoníacas,soaraaprimeiradastrombetas,ogranizo,ofogoeosanguetinhamsidolançadossobreaterra,cumprira-seosinaldofimdostempos.Aquela grutamofenta seria o abrigo deYankel nosmeses que se seguiram.

SemcontarcomopadreKazimierzeojovemFlorian,nuncaninguémsupôsqueasentranhasda igrejaalbergassemum judeu.Todasasnoites,opriorapareciaparaconversar,para lhepôrumpardecalças limpasnascostasdacadeira,oupara jantar ao seu lado.Horasmais tarde, ainda no lusco-fusco e setemetrosacima,ocorriaaPaniKrysiaporqueandariaopadreagastarassimaroupaeacomeràtripa-forra.Noentanto,apesardecuriosa,nuncaoconfrontoucomisso.Certanoite,Yankelacordousobressaltadoe tinha razõespara tanto.Ouviaa

escada a ranger e passos que não conhecia. O padre Kazimierz surgiuacompanhadopordoishomens–doisamigosconfiáveis,sossegou-o–edisse-lhequesevestisseomaisdepressapossível.Asexplicaçõesvieramaseguir,jáàportadasacristia,enquantosedespediam.Segundoumdoshomens,constaranacidadequehaviaratosnaigreja,eosalemãespagavambempornotíciascomoessa.Yankel tinhadepartir,umahoraamaispodiaserdesastroso.Aí,opadre

voltouaabraça-loeentregou-lheumamalaazul.Dentrodela,inteirou-o,estavaummaçodepapéis,documentosqueeleforjarahaviaumtempo.Puseratambémumterçoeacertidãodebatismo,nãofosseserabordado.Depois,sóotempodeum olhar, e Yankel partiu para sempre. Desapareceu na floresta, levado pelosdoishomens,echegouaPludyduassemanasmaistarde.Asirmãsfranciscanasjáescondiamoutrosjudeus,amaiorpartecrianças,eaquelemosteiroanortedeVarsóviaseriaasuamoradaatéqueaguerraacabasse.Foiaíqueconheceuumrapaz chamado Fiszk, descendente de judeus venezianos, a quem todosconheciamporSereno.Assimqueterminouaguerraepartiuoúltimoalemão,orapazpropôsaYankelqueoacompanhasseaté Itália.Talcomooamigocego,Serenoperderatudo,nadatinhanaPolóniaqueoprendesse.Semmaisaquemseagarrar,Yankeldissequesime,umahorasdepois,juntou-seàstrêscentenasdehomens, mulheres e crianças que saíram a caminho da estação. A viagemdemorou duas semanas e, pouco depois de chegarem a Génova, o grupodispersou.Muitos seguiram até França, outros ficarammais uns dias, até queacabaram por partir sem dizer para onde. Foi então que Sereno disse adeus,faltava-lheirmaisparanorte,tinhadeirescavarraízes.Yankel ficou só, mas ficou bem. O centro de acolhimento nas faldas dos

Apeninos tornou-se uma casca impossível de largar e, não fosse a visita queapareceuummêsdepois,fariaoquepudesseparanãoterdeseirembora.Nessedia,umdosórfãosqueandavapor ali foi chamá-loà tarimba.Estava

alguémàsuaesperajuntoàtendadosremédios.Yankelagarrouorapazinhopelamangadacamisaeseguiu-oatéaopátio.Quandooguiasedesprendeuparairbrincar,eleparoueficouaaguardar.FoilogoaosprimeirospassosqueYankelestremeceu.Conhecia aquele andar, o pisar do calcanhar e omodo respeitosocomoseaproximava.Sóhaviaumproblema:nuncapoderiaserele.Masentãoouviuavoz.Eraele.ShlomoPasternak,oprofessordaRuaMazur.Eestavaaliparaolevar,queria-

oconsigoemMarselha,nãooirialargarnunca.Haviadeoinstruir,fazerdeleoque jurara no dia em que Rasia lhe levara o filho à escola. O professorenvelhecera,percebia-sepelamaneiradefalar.Edepoisestavacompressa,diziatudoacorrer,pareciatermedodemorrerantesdecontarcomooencontrara.Na rota de saída para ocidente, muitos daqueles que viajaram no comboio

tinhampassadoporMarselha,eosmilharesdejudeusqueaíviviamfustigaram-noscomperguntas.Pasternakforadosmaisinsistentes,alguémterianovidadessobreumacertacidadeemformademedalhaperdidanafloresta.Aoouvi-lotão

desesperado, dois ou três judeus ergueram o rosto ao mesmo tempo,entreolharam-seerumorejaramqualquercoisadeunsparaosoutros.Couberaaomaisvelhodizeroquesabia:nãotinhaacerteza,talveznãofosseamesma,masum cego que encontrara no comboio falara-lhes de um sítio assim. Logo namanhãseguinte,PasternakpartiradeFrançaacaminhodaLigúriaparavercomosprópriosolhos.Nosdozeanosseguintes,foicumpridooprometidoeYankelaprendeutodos

osdiasatéàmortedomestre.Quandoissoaconteceu,agarrounamalaazulefoisozinho a Paris para comprar a livraria, um negócio apalavrado havia muito.Sobreviver entre os livros fora aquilo quePasternak lhe ensinara; só faltavamduascoisas:procurarquemlhoscomprasseeseduzirquemlhoslesse.23CampodeextermínionazisituadoanordestedeVarsóvia.

PARIS,outubrode2002

Viviennedetestavaofimdastardesdedomingo.Entãoassim,aodarcomumasala quase às escuras, parecia-lhe insuportável. Ainda correu a cortina,mas otempoquelevaradesdeorésdochãoforasuficienteparaoSolseterescondido.Entreoprimeiroeosegundopiso,cruzara-secomJaleleddine,quevinhadevero livreiro e lhe deixara a porta encostada. Ele ia dizer-lhe alguma coisa, noentantoavozfalhou-lheedesviouoolharantesdedescerasescadasàpressa.MasagoraViviennejáláestavaeaideiadevoltaratrásnãochegouapassar-

lhepelacabeça.Então,procurouocandeeiro.Comaluzmortiça,oapartamentotornou-seamarelecido,lembrando-adequealitresandavaavelharias.Nãoquissaber, foi ter com ele. A porta do quarto estava encostada e resolveu chamarprimeiro.Comoninguém respondeu, olhou antes de entrar. Fosse qual fosse arazão,oquartoresplandeciacomasseislâmpadasacesas,ferindo-lheosolhos.Yankeldormianumdosladosdacamadecasal,entreduasmesasdecabeceiraatafulhadas: na mais distante, um candeeiro aceso, um prato com cascas dequeijo,o telefone foradodescansoeumlivrinhodeCelanmarcadonapáginaem que Fidélia partira; na mais próxima, outro candeeiro, duas caixas demedicamentos, um copo de água chalada e, a um palmo do seu rostoadormecido,agaiolaeotic-tacqueparousóparaMarceauverquemespreitava.Yankel tinha a testa encharcada, o quarto estava quente e abafado, eVivienneabriuajanelaantesdeseaproximardele.Aseguir,pousouentreospésosacoquecarregavaesentou-senoladovagodacama.Então,sim,pôdeolharmaisdepertoparaolivreiro.A princípio a imagem devastou-a, não sabia que era assim que se morria.

Depois,poucoapouco,enterneceu-se;debaixodamáscaraengelhada,dormiaomiúdocomquembrincarana floresta, e a águaqueescorriano seu rostobempodia ser a do lago. Havia ainda as rugas e tudo aquilo que lhe lembravam.Aquelas,aoscantosdaboca,foraelaadesenhá-lassemprequeofizerarir;jáasoutras,umpoucoportodoolado,eramapenassinaisdemágoa.

–Pode fechara janela?–perguntouele, semabrirosolhos.–Oar frescoébom,masnãoqueroouvirarua.Vivienne levantou-se e, após fazer o queYankel lhe pedira, aproveitou para

apagarasluzes,deixandosóadoteto.Antesdevoltarparajuntodele,apanhouosacoe,denovosentada,retirouummaçodefolhascosidascomagulhaelinha.–Foiocombinado–disse,pousando-lhonopeito.–Nunca

depoisdooutono.Yankelagarrouasfolhas,tomou-lhesopesoepassouminuciosamenteasmãos

sobreascosturas.–Jásoubefazeristo,acredita?Depoisdaaritmética,haviasempretempopara

ajudaroPasternakcomasencadernações.Esabequemais?Eutinhajeito.Viviennesorriu,eramentira.–Comosesente?–perguntouela.Yankeldevolveu-lheomaço.–Quandoadormedeixaempaz,nãomequeixo,agoraestoubem.Opioréo

resto,éestaraqui.Sepudesseescolher,morrianarua.Podiaserumaqualquer,não interessa, desde que houvesse uma padaria por perto para morrer com ocheiro a pão. Ah, e um passeio, também! Mas daqueles mais largos,desafogados,parapoderouvirossaltosdasparisienses.Járeparounosomdasparisiensesacaminharemnospasseios?–Nesseinstante,semlevantaracabeçadaalmofada,esticouopescoçolevementeàprocuradoperfumedeVivienne.–Claroquereparou,éumadelas.Entãocalou-seporcausadeumaportaquebateu.–Estáàesperadealguém?–perguntouVivienne.–MademoiselleFoss–deduziuele.–Aparecedehoraahora.–Importa-seseeu…?–Quermandá-la embora?Faça favor, ela agradece-lhe. Jánão sabeoque é

umanoitedescansada.Nãofoibemcomoeleprevira,MademoiselleFossnãosemostrougrata;pelo

contrário,depoisderesmungarahoradosremédios,bateucomaportaoutravez.–Deixeestar–disseYankelquandoVivienneregressouaoquarto.–Amanhã

hádevoltartãodedicadacomosempre.Viviennequissabermaistrêsouquatrocoisasacercadaporteira,atéadmitir

quesóestavaaganhartempo.EissoporqueYankelainterrompeu:–Nãotemnadaparameler?Elaencolheuosombros,oque,sefossevisto,serviriade«nãosei,secalhar

nãovaleapena».Mesmoassim,acabouporresponder-lhe:

–Está tudo aqui.Ainda tenho algumas dúvidas sobre a sequência. Se acharalguma coisa fora de ordem, diga. – A seguir, pôs os óculos que traziapenduradosaopescoço.–Possocomeçar?Começoupelaguerra.Uma hora mais tarde, estava Tadeusz a rachar a testa contra a parede do

manicómio, Vivienne deu conta de uma respiração mais pesada. Sem nuncaparardeler,olhouparaYankelenãogostoudoqueviu.Sóentãopousouotextonosjoelhos:–Estácomdores,nãoestá?Yankelnemaouviu;de repente,o seucorpocontraiu-seeo rostocobriu-se

commilharesdegotasdesuor.–Saia…Saia!ObradodeYankeldeixou-aatónita; fê-la levantar-seedardoispassosatrás

comas folhas à frentedopeito como se fossemumescudo.A seguir, saiudoquarto,fechouaportaefoiparaasalaàsescurasesconder-sedaaflição.Assim,nãopôdeouvirosgritosnoaugedasdores,atorrentedepalavrasobscenas,asqueixasaDeus,asqueixasdeDeus,ecomotudoserepetiapelamesmaordem.Esperou meia hora e experimentou ir ter com ele. O quarto parecia agorasossegado,porissoabriuaporta,masapenasumanesga.–Posso?–perguntousemespreitar.Nãohouveresposta,apenasotic-tac.Assimqueentrou,Viviennesurpreendeu-secomofedor,umcheiroazedo,a

diarreia. Mas aquilo que a magoou nem foi o cheiro, foi a raiva. No rostoextenuadodeYankel,sóviurancor.Paranãosedetestarmais,despiuàpressaocasaco,arregaçouasmangasda

camisae,apósabrirmaisumavezajanelaparaarejar,saiuàprocuradetoalhas.Foi evoltouasvezesnecessárias até ter aospésdacamaduasbaciasdeáguamorna, um cesto, um sabonete, uns cremes e tudo o mais que encontrou nolavatório. A seguir, puxou-lhe o lençol, rodou-lhe o corpo até ficar de lado edespiu-lhearoupasuja.Nuncatinhafeitoaquilo,nuncaviraumvelhonu,masnãosedeixou impressionar.Comumadas toalhasapanhouaporcariaedeitoutudo no cesto. Só então passou a esponja: ergueu-lhe uma perna, lavou-lhe ascoxas por dentro, as virilhas, o pénismirrado e circunciso.Virou-o de barrigaparabaixo;asnádegastinhamdesaparecido,sobravamduaspregasdepelefinaaquerer chagar, que ela ensaboou usando os dedos para não omagoar. Depoisprosseguiuportodoocorpo:untou-ocomoscremes,viu-lheasunhas,lavou-lheosolhosesónãoobarbeouporquelhetremiaamão.Porfim,comumadestreza

de que não se julgava capaz, fez a cama de lavado e vestiu-lhe outro pijama.Duranteotempotodo,Yankelnãodissenada,maselapercebeuquenãoeraporvergonha.Osataquesquesofriadeixavam-lhesempremarcas,poisenquantoofustigavamele julgavaquemorria.Atésaberaocertoquelhes tinhatriunfado,preferia ficar apático, não fosse aquilo repetir-se. Porém, assim que se via asalvo–eraassombroso!–,ria-sedeles,mandava-osàmerdaedavapalmadasnocolchão.MasnãoàfrentedeVivienne.Ali,preferiumostrar-segrato,aindaqueàsuamaneira:–Estraguei-lheodomingo.Ela tinha-seencostadoàombreiradaporta,estavaexaustae receavaque,ao

sentar-se, jánão fossecapazdevoltarapôr-sedepé.Masnãoparoudeolharparaele.–Nuncamaismepeçasparasair–disse-lhecomavozsumida.No quarto de hora seguinte, sóMarceau não se calou, eYankel acabou por

adormecer. A certa altura, cruzou os braços sobre o peito, um gesto que elareconheceuporlhotervistotantasvezes.Sim,aqueleeraorapazqueadormeciajuntoaolago,aimagemeraamesma,sófaltavaaliShionka.Porisso,Viviennepegounocasacoe,semovestir,saiudoquartoeentrouna

portaemfrente.Diantedolavatório,tirouobatomdeumdosbolsosdocasacoeaproximou o rosto do espelho para retocar os lábios com a tal cor de vinhoenvelhecido.Aseguir,retirouosganchosdocabelobrancoeusouosdedosparaosoltar.Deuumpassoatráseachou-sehonestamentebonita.Semnuncadeixardeseolharnosolhos,desabotoouacamisadevagar,desprendeuoscolchetesdasaia e deixou-as cair aomesmo tempo.Sentiu asdoresdo costumequando sesentounabordadabanheiraparadescalçarossapatosedespiroscollants.Porfim,tirouosoutien,ascuecaseacintadahérnia,masdeixouacombinação.Aestáticacolou-lheasedaaocorpoeissolembrou-adanudez;eraagradável,nãose lembrava de se sentir nua.Mal achou que estava pronta, foi ter com ele esentou-se na cama devagar para não o acordar; mas acordou-o, tanto melhor.Comaajudadasmãos, içouaspernasparacimadocolchãoe,deitando-sedelado,encostou-seaele.Sem nada que os lembrasse de fazer perguntas ou dizer fosse o que fosse,

Viviennerecordou-sedodiaemqueolevaraàflorestapelaprimeiravez.Viu-sedenovoali,namargemdolago,amassajar-lheosolhos,oscírculosdelicadosemvoltadaspálpebrasqueagorarepetiacomosdedoscheiosdeartrosesparasedaraconhecer.Aseguir,bastou-lhesficarquietos,emsilêncio.

Erajádemadrugadaquandoelapegououtraveznasfolhas.Yankelouviu-asapassar,primeiroderajada,depoisumaauma,atépararemnapáginadeixadaameio.Mesmoaolado,Marceaupareceudesistirdotic-tac.Shionkatinhaumahistóriaparaleratéaofim.

Notadoautor

No dia 10 de julho de 1941, em Jedwabne, pequena cidade do nordeste daPolónia,umgrupodecidadãos,nasuamaioriacristãos,reuniramàforçaosseusvizinhos judeusnapraçaprincipale,numfestimdeviolência,conduziram-nosatéumceleiropróximoqueincendiaram,queimandovivascentenasdepessoas,incluindomuitascrianças.Nosdiasqueseseguiram,sucederam-seaspilhagenseapagaram-separasempreostraçossecularesdapresençajudaicanacidade.AquiloquesepassouemJedwabneocorreunoutroslugaresdascercaniase,a

coberto dos invasores alemães, pôs a nu um antissemitismo virulento haviamuitoreprimido.Nos anos mais recentes, os acontecimentos desse verão têm motivado um

aceso debate na Polónia. Centrada na memória coletiva do país, a discussãoprocura esclarecer o papel dos polacos nas atrocidades perpetradas contra osconcidadãosjudeusduranteoperíododeocupaçãopelaAlemanhanazi.Ahistóriadeste livrobaseia-senessesepisódios,equalquersemelhançacom

pessoasesituaçõesdavidareal,semsercoincidência,nãoprejudicaocarácterficcionaldaobra.