Os Dois lados do rio: Etnicidade e Disputas Territoriais na Reserva Extrativista do Alto Juruá

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE WILIAN J. SANTOS DE ARRUDA OS DOIS LADOS DO RIO: ETNICIDADE E DISPUTAS TERRITORIAIS NA RESERVA EXTRATIVISTA DO ALTO JURUÁ Rio Branco Acre 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE

WILIAN J. SANTOS DE ARRUDA

OS DOIS LADOS DO RIO:

ETNICIDADE E DISPUTAS TERRITORIAIS

NA RESERVA EXTRATIVISTA DO ALTO JURUÁ

Rio Branco – Acre

2014

WILIAN J. SANTOS DE ARRUDA

OS DOIS LADOS DO RIO:

ETNICIDADE E DISPUTAS TERRITORIAIS

NA RESERVA EXTRATIVISTA DO ALTO JURUÁ

Monografia submetida ao corpo docente do

Centro de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal do Acre – UFAC, como

requisito necessário à obtenção do grau de

Bacharel em Ciências Sociais com Habilitação

em Antropologia.

Orientadora: Prof.ª D.ra

Mariana Ciavatta Pantoja

Rio Branco – Acre

2014

ARRUDA, 2014. ARRUDA, Wilian J. Santos de. Os dois lados do rio: etnicidade e disputas territoriais na reserva extrativista do Alto Juruá. Rio Branco, 2014. 105f. Monografia (Ciências Sociais) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Acre, Rio Branco. 2014.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC

Bibliotecária: Isabel dos Santos Lima CRB-3/1060

A773d Arruda, Wilian J. Santos de, 1991-

Os dois lados do rio: etnicidade e disputas territoriais na reserva extrativista do Alto Juruá / Wilian J. Santos de Arruda. – 2014.

105f. : il.; 30 cm.

Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Acre, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Curso de Bacharel em Ciências Sociais. Rio Branco, 2014.

Inclui referências bibliográficas. Orientador: Profª. Dra. Mariana Ciavatta Pantoja.

1. Reserva extrativista – Marechal Thaumaturgo (AC). 2.

Etnicidade. 3. Seringueiros – Acre – Condições Sociais. 4. Grupos indígenas – Acre. I. Título. II. Arruda, Wilian J. Santos de.

CDD: 305.563098112 CDD. 363.12098112

OS DOIS LADOS DO RIO:

ETNICIDADE E DISPUTAS TERRITORIAIS

NA RESERVA EXTRATIVISTA DO ALTO JURUÁ

Wilian J. Santos de Arruda

Monografia submetida ao corpo docente do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal do Acre – UFAC, como requisito necessário à obtenção do grau de

Bacharel em Ciências Sociais com Habilitação em Antropologia.

Aprovado em _______ de ______________________ de ___________

Banca examinadora:

_________________________________

Prof.ª D.ra

Mariana Ciavatta Pantoja

_________________________________

Prof.o D.

r Fernando Peres Peixoto

_________________________________

Prof.oD.

r Marcelo Piedrafita Iglesias

Com muito amor para meus pais e meus irmãos, cuja

trajetória de vida resiliente foi sempre a minha maior inspiração.

Para meu tio Arlindo (in memoriam)

Para os moradores das várias comunidades que conheci na Reserva Extrativista do Alto

Juruá e aos Kuntanawa

Para o Pitanga (in memoriam)

ÍNDICE

RESUMO ................................................................................................................................................7

ABSTRACT ............................................................................................................................................8

AGRADECIMENTOS ...........................................................................................................................9

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................13

CAPÍTULO 1 – PULANDO OS “MUROS BUROCRÁTICOS DA RAZÃO” ..............................21

Algumas notas sobre a objetividade e subjetividade na antropologia ................................................21

Impressões subjetivas: enfrentando o tema ........................................................................................25

Um aprendiz de antropólogo em campo ........................................................................................26

Entre a academia e o campo ..........................................................................................................28

A transformação exótico-familiar-exótico .....................................................................................30

Subjetividade e objetivos da pesquisa de campo ............................................................................31

Observação participante: alguns desafios .....................................................................................34

À guisa de conclusão ..........................................................................................................................39

CAPÍTULO 2 – BREVE HISTÓRICO DA CRIAÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO:

OS DIREITOS DA NATUREZA E DE POPULAÇÕES HUMANAS ............................................40

De onde surgiu a ideia de Unidades de Conservação da natureza? ....................................................40

Vivência e Preservação: as ciências e práticas de populações locais aliadas a preservação dos

recursos naturais .................................................................................................................................44

As Unidades de Conservação no Brasil: Um breve histórico.............................................................47

Reservas Extrativistas: uma proposta de preservação da natureza e autonomia dos seringueiros .....50

A Reserva Extrativista do Alto Juruá .............................................................................................52

CAPÍTULO 3 – ETNICIDADE: O PANO DE FUNDO DAS SOBREPOSIÇÕES

TERRITORIAIS ..................................................................................................................................55

Etnicidade e “Emergência Étnica” .....................................................................................................56

Considerações sobre “emergência étnica” .........................................................................................60

A “etnogênese” Atikum ..................................................................................................................61

Etnicidade e território .........................................................................................................................63

Etnicidade e a dimensão política ........................................................................................................65

Eduardo Viveiros de Castro – Um contraponto .................................................................................68

4º CAPÍTULO – AMÔNIA E TEJO: DOIS CASOS DE SOBREPOSIÇÃO TERRITORIAL ...74

O caso dos Arara do rio Amônia ........................................................................................................75

Argumentos em defesa dos “reservistas” ...........................................................................................79

Circularidade e convergência .............................................................................................................82

Os Kuntanawa do Alto rio Tejo e os Moradores Agroextrativistas da Vila Restauração ..................83

Os dois lados do rio Tejo: diferenciação étnica e conflito no uso dos recursos naturais ...................85

As argumentações dos moradores da vila Restauração ......................................................................88

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................95

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................98

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RESUMO

Este trabalho tem como situação de pesquisa dois casos de sobreposição de demandas

territoriais em curso na Reserva Extrativista do Alto Juruá, Município de Marechal

Thaumaturgo, Acre, criada em 1990. De um lado, agroextrativistas “seringueiros”, de outro,

os grupos indígenas Arara e Kuntanawa que, desde o início deste século, deram início a

processos de autorreconhecimento étnico e reivindicação da demarcação de suas respectivas

Terras Indígenas que incidem, por sua vez, parcial ou totalmente, sobre a Reserva. O objetivo

central deste trabalho é a compreensão do ponto de vista dos agroextrativistas sobre as

reivindicações indígenas de reconhecimento étnico e territorial, ou seja, que visão têm sobre o

recente processo de auto-identificação étnica (que (i)legitimidade conferem a ele?) e como

percebem as consequências para si das reivindicações territoriais indígenas. Discutir-se-á

primeiramente, a partir de fontes documentais secundárias, a sobreposição de territórios entre

os índios Arara do rio Amônia e agroextrativistas daquele rio, que incluem moradores da

referida Reserva e ainda do Projeto de Assentamento Amônia. O outro caso de sobreposição

territorial, entre o povo indígena Kuntanawa e moradores agroextrativistas da vila

Restauração, localizada no alto rio Tejo, será discutido mais detidamente a partir de um

estudo feito in loco. Será visto, por exemplo, que na disputa territorial, ali em curso, as

coletividades sociais envolvidas estão diferentemente contempladas na legislação e

relacionam-se com as instâncias estatais também de maneira diferente; que a sobreposição

territorial no rio Tejo tem como principal mote o acesso e uso de recursos naturais

considerados imprescindíveis para a vida na floresta, no caso caça e pesca; que a demanda

territorial Kuntanawa coloca em questão o próprio futuro da Reserva diante do processo de

desregulação em curso do uso dos recursos naturais, e ainda do crescimento da vila

Restauração e seu modo de vida com aparência “urbana”. Para fazer estas discussões, o

presente trabalho irá recorrer à discussão de outros temas, como a experiência da pesquisa de

campo na antropologia, o histórico da criação de Unidades de Conservação no Brasil, assim

como o debate sobre a questão da etnicidade.

Palavras-chave: Etnicidade, Sobreposição Territorial, Unidades de Conservação, Terra

Indígena

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ABSTRACT

This work aims the research situation two cases of overlapping territorial claims in the

ongoing Alto Juruá Extractive Reserve, Municipality of MarechalThaumaturgo, Acre , created

in 1990 . On one side , agroextractivist " tappers ", the other one, the Arara indigenous groups

and Kuntanawa that since the beginning of this century , began to ethnic self-recognition

processes and claim the demarcation of their respective Indigenous Lands levied , in turn ,

partly or wholly , on the Reservation . The central objective of this work is to understand the

viewpoint of agroextractivist on indigenous claims of ethnic and territorial recognition ,

namely, what vision they have on the recent process of ethnic self-identification (which

legitimacy confer to it?) and how they perceive the consequences for themselves of

indigenous territorial claims . Will be discussed primarily from secondary documentary

sources, overlapping territories between Arara’s Indians of the Amônia River and their

agroextractivist, including residents of that reserve and still the Settlement Project Amonia.

The other case of territorial overlap between the indigenous people and

KuntanawaagroextractivistRestauração village, located in Tejo River, will be discussed in

more detail from a study done in place. It will be seen , for example, that the territorial dispute

, there ongoing social collectivities involved are covered by the legislation differently and

relate to the state agencies also differently ; territorial overlap in the Tejo river 's main motto

access and use of natural resources considered essential for life in the forest , like hunting and

fishing, that the territorial claim Kuntanawa calls into question the very future of the Reserve

before the deregulation process in the course of use of natural resources , and even the growth

of Restauração village and their way of life with " urban " look. To make these discussions ,

this work will involve the discussion of other topics such as the experience of fieldwork in

anthropology , the history of the creation of conservation units in Brazil , as well as the debate

on the issue of ethnicity .

Keywords : Ethnicity , Territorial overlapping , Conservation Units , Indigenous Lands

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AGRADECIMENTOS

Foram anos “inesquecíveis” esses que passei no curso de Ciências Sociais. O curso em

si foi a coisa que mais mudou meus paradigmas, provocando mudanças boas e ruins. É claro

que em todo esse tempo houve altos e baixos, seja em minha vida pessoal, seja na academia.

Houve pessoas que realmente valeu a pena tê-las conhecido, houve professores que realmente

fizeram o seu papel enquanto tal. Houve momentos em que eu realmente fiz as coisas valerem

a pena. Mas também não guardo mágoas de ninguém, apenas percebi a deficiência das

pessoas de assimilarem e incorporarem o exercício de pensar que às vezes propõe o curso, de

livrarem-se de suas concepções preconceituosas que, muitas vezes, se fortalecem dentro do

próprio curso, quando as pessoas achando que por terem lido algumas apostilas já podem sair

do curso se achando donos de verdades fabricadas por portarem um diploma (insignificante

como de qualquer outro curso que seja uma falácia, numa universidade também falaciosa) de

graduado em ciências sociais (eu só posso me perguntar, “mas o que isso significa?”).

Creio que há muita coisa para se construir no curso de ciências sociais, digo mais, no

Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), e não falo aqui de construções apenas

físicas, mas também de construções que estabeleçam relações entre os cursos do mesmo

centro e de outros também. Veja que a UFAC é completamente desintegrada, e isso muito me

parece ser estratégico desde os tempos da ditadura até os tempos atuais de ditadura da

mentirosa democracia. Acredito que há um interesse subjacente nessas separações. As

ciências sociais, sejam elas aplicadas ou não (eu sinceramente não entendo essa separação

entre aplicadas e não aplicadas, como se Antropologia, Ciência Política e Sociologia não

tivessem aplicação assim como teriam Direito e Economia, por exemplo), precisam dialogar

com a Biologia, com a Engenharia Florestal, com a Medicina, e muito com o Direito, com a

Economia e Geografia. O CFCH necessita ser repensado, reconstruído. O curso de Ciências

Sociais precisa ser reformulado para além das grades curriculares e das grades do isolamento

e separações físicas, e precisa-se de uma transgressão dos pés à cabeça, dos alunos aos

professores, dos professores ao centro. Assim como a UFAC necessita de vida por estar

praticamente morta perante o seu verdadeiro papel na sociedade. Assim como precisam de

vida as nossas vivências perante a vida ela mesma.

Para além dessas palavras atemporais que terão efeito muito temporário para quem o lê

com olhos sinceros e sensíveis, teço aqui alguns agradecimentos muito verdadeiros.

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Agradeço muito aos meus pais e aos meus irmãos que são a maior inspiração para todo

o trabalho aqui apresentado. Fui o primeiro filho na família que pôde estudar em uma

universidade, mesmo com as tantas dificuldades iniciais de dinheiro para o deslocamento para

Rio Branco, ao invés de ter a obrigação de trabalhar para buscar sustento. Ainda a vocês,

dedico tudo isso e dou obrigado pelo nada e pelo tudo, pelo bem e pelo mal que vocês me

fizeram, pelo frio e pela fome que um dia passamos, pelo bom e pelo ruim, pelo ódio e pelo

amor, pelo ensinamento de indiferença à dor, pelo sangue, suor e lágrimas que vocês por mim

e de mim derramaram. Eu sou o fruto maduro e quase podre de tudo isso.

Meus sinceros agradecimentos a Professora Mariana Pantoja pela sua confiança,

sinceridade, sanidade, e tantos outros adjetivos que só um abraço longo e apertado pode

traduzir. Agradeço a ela ainda por ter me dado a oportunidade de fazer todo esse trabalho de

três anos com a sua orientação muito presente e acolhedora, pelo conhecimento que

compartilhou e que ainda compartilha a cada momento. Agradeço a todos os colegas que

conheci durante o curso, saibam que de cada um eu guardo sempre o melhor, o positivo.

Obrigado a Alana KelineManchineri e Thiago Pereira pela grande amizade,

companheirismo e cumplicidade.

Muito bom ter conhecido o professor Enock Pessoa, o professor Fernando Peixoto,

Marcos Almeida, João Lima, a professora MarisolBrandt, agradeço a todos vocês pelos

conhecimentos comigo compartilhados. Agradeço pela prontidão, assim como pelo seu

conhecimento compartilhado, a professora Célia Collet. Nesse sentido, foi muito bom ter

conhecido Amilton Mattos, um anarco-punk, eu diria, uma pessoa com quem aprendi muito

sobre antropologia. Foi bom ter conhecido, entre tantos loucos, Wesley Goldstein, um corpo

sem órgãos, um desterritorializado.

Agradeço ainda por toda a confiança e conhecimento que Lígia e Marcelo Apel me

passaram. Guardo uma grande admiração por vocês, pela coragem, pela desterritorializaçao e

territorialização que vocês exercem nesse nomadismo até então sem fim, pela inteligência,

humildade e tantas outras qualidades. Agradeço ainda a Geraldo Silva e Marcela Vecchione

pela amizade.

Meus sinceros agradecimentos a Enaiê Mairê Apel, que me acompanhou em boa parte

dessa jornada. Obrigado pelo seu companheirismo acolhedor!

Agradeço a Marcos Arruda, irmão e amigo, e a Carcará, amigo e irmão. Agradeço a

meu amigo Frank Silva, geógrafo que só tende a crescer a partir de agora. Agradeço ao

professor de capoeira Zagarra, pela força e pela paciência de aceitar tanta a minha ausência

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em seus treinos. Agradeço ainda a duas pessoas que conheci a pouco tempo, mas que pelas

quais guardo um grande apreço, Emilly Soares e João Gabriel.

A Karl Marx, Michel Foucault, Montaigne, Henry Miller, Clarice Lispector, Nietzsche,

Deleuze, John Lydon, Raul Seixas, Jim Morrison e tantos outros.

Com muito amor agradeço, enfim, a todos que para mim dirigiram pensamentos e

sentimentos bons. Sem mais, sem palavras...

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Eu me vejo assim: um viajante, um

arqueólogo do espaço, tentando em vão restaurar o

exótico com o uso de partículas e fragmentos.

(Claude Lévi-Strauss)

“Eu fiz isto?”, me diz a memória. “Não posso tê-

lo feito”, sustém a meu orgulho que é inexorável.

Finalmente cede a memória.

(Friedrich Wilhelm Nietzsche)

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INTRODUÇÃO

Foi no ano de 2009 que ingressei no Curso de Ciências Sociais da Universidade

Federal do Acre (UFAC). A escolha do curso não foi aleatória. Desde o ensino médio

tinha simpatia pelas ciências humanas. Naquela época tive contato com um pouco de

sociologia, filosofia e de psicologia, mas nada muito significativo. Por outro lado, não

entendia direito quando via aquelas citações de grandes autores naqueles programas de

TV, como o “Café Filosófico”, “A Invenção do Contemporâneo” ou “Provocações”1.

Tomo o tempo do leitor com esse tipo de conversa pelo fato de que foi, entre outros,

aqueles programas que me chamaram atenção para as ciências humanas, e que

influenciaram na minha escolha de cursar Ciências Sociais.

Quando já no curso de Ciências Sociais fiz um movimento de mudança contínua

pelas opções de habilitação: Ciência Política, Sociologia e Antropologia. Foi

exatamente por esta ordem de escolhas que passei no decorrer do curso. Mas uma vez

que optei pela Antropologia não tive mais dúvida de que era o que eu queria mais

estudar, pelo menos naquele momento. A Antropologia me chamou atenção de coisas

que pareciam me levar a uma esfera de conhecimento um tanto diferentedas outras

ciências sociais. Achei-a mais “romântica” e até “misteriosa”. Explico-me. Uma coisa

que percebi na Antropologia foi algo que percebo na literatura. Algo como uma

liberdade de “criar”, que não consegui perceber nas demais ciências sociais, talvez

também a liberdade de inovar os métodos de pesquisa, buscando um

redimensionamento da teoria de acordo com as situações e práticas sociais observadas.

Essa relação entre a antropologia e a literatura, me parece, é até um tanto

perigosa pelo fato de haver um certo desafio para a relação de oposição entre o que é

ciência e o que é arte, entre o que é objetivo e o que é subjetivo. A antropologia, ao que

percebo, dentre as demais ciências sociais, é a que mais se aproximaria da literatura.

(Caldeira, 1988). E, claro, quando falo em literatura estou falando de arte, portanto eis

aqui uma oposição cujas fronteiras estariam meio borradas: ciência e arte.

1Esses três programas de televisão eram, ou ainda são, pois não tenho mais contato com a programação

televisiva, programas que, em suma, colocavam em debate diferentes temas sociológicos, filosóficos e

psicológicos, trazendo muitas vezes discussões voltadas para grandes pensadores, e também temas mais

literários, arte, poesia. Então, foi a partir desses programas que comecei a ouvir falar em Freud, Marx e

Engels, Weber, Foucault, Jung, Bauman, dentre outros, e também soube da existência da antropologia, da

psicanálise e da sociologia, por exemplo.

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A antropologia deixa muito claro, pelo menos pra mim, o quanto vai de

subjetivo em sua produção, inclusive dando mesmo abertura para a relevância da

subjetividade do cientista, por assim dizer. O antropólogo, assim como o cientista social

de uma forma geral, tende a ficar demasiadamente perto dos seus “objetos” de estudo.

Para os defensores de um rigor teórico-metodológico de cunho mais positivista, essa

proximidade e contato, principalmente no que tange ao trabalho de campo, poderia

comprometer a “cientificidade” do próprio estudo. Portanto, a partir de formalidades

científicas, que às vezes poderíamos chamar de “burocracias científicas”, temos outra

oposição: de um lado as ciências tomadas como duras, tidas como mais cientificas, e de

outro lado as ciências sociais, consideradas menos científicas, mais próximas e

vulneráveis às interferências da subjetividade humana (Da Matta, 1981). Teremos a

chance de ter uma melhor discussão a esse respeito ao decorrer desta monografia,

inclusive, mais detidamente no primeiro capítulo.

Por fim, é nesse sentido da influência e criação subjetiva que vejo mesmo uma

proximidade entre os dois gêneros de textos, o antropológico e o literário. Digo, de

antemão, que esta vem a ser uma perspectiva propriamente minha, ou seja, a que

cheguei por mim mesmo. Quero dizer com isto que não estou, de modo algum,

teorizando sobre o que é a Antropologia em lato sensu, pois eis que estou a tentar

explicar apenas o que ela é para mim. Portanto, não creio que esta seja uma parte tão

destacável em meu trabalho, pelo menos por hora, já que poderemos ver isso com mais

detenção mais a frente. Mas continuemos.

O meu maior envolvimento e interesse pela Antropologia começa em 2010, que

foi o ano em que fui selecionado para ser monitor da disciplina de Antropologia I do

curso de Ciências Sociais, e, ainda mais importante, fui convidado pela professora

Mariana Ciavatta Pantoja para participar de um grupo de pesquisa onde poderia

desenvolver um projeto próprio dentro doPrograma Institucionalde Bolsas de Iniciação

Científica (PIBIC) da UFAC. Além de mim, um outro colega de classe, Thiago Pereira,

também fora convidado. Esta última atividade me trouxe um amadurecimento

intelectual importantíssimo. Por isso me atenho a descrever melhor essa fase.

Por volta do dia 19 do mês de agosto de 2010 começamos. O grupo de pesquisa

se reunia em torno do projeto “Etnicidade, Cultura e Território no Alto Juruá, Estado do

Acre” (projeto institucional da profa. Mariana Pantoja e financiado com recursos

doCNPq) e objetivava naquele primeiro momentoler a bibliografia prevista e conversar

sobre ela. Ou seja, vi-me participando de um projeto desenvolvido por especialistas em

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antropologia que tinham já delimitado materiais bibliográficos, objetivos e

metodologias a serem trabalhados dentro daquela pesquisa. Eu e meu colega estávamos

adentrando em um universo de leituras e questões que não tínhamos visto no curso. Era,

realmente, uma chance de nos aprofundar na ciência social que mais tinha nos chamado

atenção.

Dentro daquele projeto maior que citei acima entrariam as temáticas que foram

subdivididas entre Thiago e eu. Digamos que o Thiago tenha ficado com uma temática

mais ligada a questões relacionadas à etnicidade, identidade e cultura. Já a mim coube

uma parte mais ligada às implicações políticas da problemática que compunha o projeto

como um todo. O meu subprojeto, portanto, chamou-se “Emergência Étnica e Disputas

Territoriais na Amazônia”2. Eis que estava posta a divisão dos trabalhos, mas estávamos

sempre juntos em nossas leituras, caminhando juntos, principalmente Mariana, Thiago e

eu, para entendermos as questões pertinentes aos nossos respectivos estudos. Esta, vejo

agora, foi uma fase apaixonante.

Uma coisa que devo dizer é que, a princípio, tinha muito pouco conhecimento

sobre os assuntos que meu subprojeto abordava. O pouco que sabia antes do subprojeto

eram algumas coisas que acabaram me interessando quando atuei como monitor na

disciplina de Antropologia I (1º semestre de 2010), ministrada pela mesma professora.

Naquela época, uma das tarefas que fiquei encarregado de cumprir era fazer uma

espécie de organização de documentos referentes à Associação dos Seringueiros e

Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá (ASAREAJ), que fora criada no ano

de 1990, como algo que representava resistência e consolidação da criação da primeira

Reserva Extrativista do mundo, a Reserva Extrativista do Alto Juruá. Além dessa tarefa,

outra que se correlacionou foi a digitalização das fitas cassete gravadas no processo de

pesquisa do doutorado da professora. Tive acesso então à dimensão do conteúdo

antropológico comportado nas entrevistas daquelas fitas, basicamente as narrativas de

histórias vividas por uma família de seringueiros de ascendência indígena, isto é, o

diálogo, retratado (parte dele) no livro “Os Milton. Cem anos de história nos seringais”,

entre a autora e os protagonistas desta história (Pantoja, 2008).

Enfim, dessa forma foi se dando o processo de identificação com a temática

que o projeto, por fim, se propunha a trabalhar. O que tínhamos como objetivo principal

2 O subprojeto de pesquisa trabalhado por Thiago Pereira se chamava "Etnicidade e Cultura: afinal, o que

é ser índio?", que depois se tornaria a monografia “Com base na Tradição: Um Estudo sobre o que

normalmente é chamado de “Resgate Cultural”, defendida em 2013 (Pereira, 2013).

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do meu primeiro subprojeto era realizar um levantamento qualitativo e comparativo

sobre os casos de emergência étnica associados à sobreposição entre Terras Indígenas e

Unidades de Conservação (em particular as de Uso Sustentável) que têm ocorrido na

Amazônia nos últimos 20 anos. Ou seja, antes de tudo precisávamos ter um panorama

nacional e histórico da problemática, de modo a termos uma especificação a partir da

identificação e análise das características comuns e diferenciais de que se revestem os

processos de emergência étnica no interior ou na fronteira de unidades de conservação,

e as disputas territoriais que implicam. Nesse sentido, fiz a montagem de um quadro

comparativo de casos de emergência étnica e sobreposição territorial que permitiu a

identificação de alguns processos envolvidos nessas situações. Esse quadro poderá ser

visto no último capítulo desta monografia. Foi também necessário a reflexão e o

entendimento sobre as questões, tanto teóricas quanto do ponto de vista das políticas

públicas, que essas disputas territoriais geradas pelas situações de sobreposição

territorial originam.

Minhas atividades de pesquisa e estudo perduraram até meados do ano de

2012, tendo tido duas fases já que meu subprojeto foi renovado em 2011. Haviam

surgido muitas outras questões que gostaríamos de estudar. Como dito anteriormente,

pretendíamos investigar as questões, teóricas e políticas,suscitadas a partir dessas

realidades de sobreposição territorial. Com efeito, tivemos êxito em nossos estudos

teóricos, porém, justamente por termos tido sucesso teoricamente, terminaram por

surgir, naturalmente, novas perguntas. Com a possibilidade de uma viagem de campo à

Reserva Extrativista do Alto Juruá, solicitamos a renovação do subprojeto, que tinha

como principal justificativa a possibilidade de se fazer um estudo de caso de uma

anunciada sobreposição territorial naquela Reserva Extrativista, especificamente entre

moradores da Vila Restauração e os índios Kuntanawa do alto rio Tejo, e o meu novo

subprojeto passou a se chamar “Emergência Étnica e Disputas Territoriais na

Amazônia: Um estudo de caso na Reserva Extrativista do Alto Juruá”3. Além disso, não

descartamos em nenhum momento o plano de continuar com nossas pesquisas

bibliográficas. Depois de muitas leituras, relatórios e artigos apresentados ao final de

cada período do PIBIC, e do trabalho de campo realizado em fevereiro de 2012, vi que

tinha produzido uma boa quantidade de material.

3Este nome também viria a mudar para “Diferenciação Étnica e disputas territoriais na Amazônia: Um

estudo de caso na Reserva Extrativista do Alto Juruá, Acre” por motivos relacionados ao

desenvolvimento de questões que exigiram, de certa maneira, essa mudança. Poderemos observar essa

motivação mais posteriormente neste estudo.

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Nesse sentido, ver-se-á que todo o conteúdo que será aqui exposto tem sua

origem naquele trabalho que começou em 2010 e que “terminou” em 2012. Logo, em

muitas partes reproduzirei e mencionarei os resultados, questionamentos, dúvidas, que

surgiram durante aquele estudo. Mas, é claro, este trabalho é também formado por

questões que continuo estudando e por estudos que continuo acompanhando.

Trabalharemos, portanto, com e a partir dos materiais que produzi outrora.

A problemática, ou objeto se assim o quiser, de todo o meu trabalho, se insere,

antes de tudo, em um cenário cujo contexto é o que se segue.

Mais acentuadamente a partir da década de 1990, grupos indígenas julgados

extintos ou mesmo sobre os quais não havia até então registros históricos começaram a

(re)aparecer publicamente e a reivindicar reconhecimento étnico e território próprio. Tal

fenômeno de “reavivamento étnico” tem características similares ao que foi descrito

como “emergência étnica” em relação aos “índios do nordeste” (Oliveira,1993 e 2004).

O ressurgimento dos índios do Nordeste colocou, para os antropólogos em

especial, a necessidade de munir-se de ferramentas de análise e conceituais para abordar

adequadamente a problemática: após quase 500 anos de contato e “mistura”,

descendentes dos já longínquos povos ditos originais reapareciam exercendo a sua

diferença étnica e buscando seus direitos legais (Oliveira, 2004). Esses casos

instigantes, contudo, não ficaram restritos ao Nordeste. De fato, observa-se, nos últimos

dez anos, a proliferação do mesmo fenômeno na Amazônia (ver Vaz Filho, 2004;

Correia, 2004; Ioris, 2005), mesmo considerando que nesta região o contato interétnico

é mais recente, remontando, no Acre por exemplo, há pouco mais de 100 anos.

Apesar da similaridade com o Nordeste, vários dos casos de reavivamento étnico

ocorridos na Amazônia resvalam numa outra problemática: a sobreposição dos

territórios reivindicados por grupos indígenas a Unidades de Conservação (UCs) de uso

sustentável, implicando disputas territoriais entre os grupos indígenas e as populações

agroextrativistas locais, e também aUCs de uso indireto (ver, por exemplo, Ióris, 2006 e

Ricardo e Macedo, 2004). Vê-se então que Reservas Extrativistas ou Parques Nacionais,

respectivamente, tem enfrentado a realidade da presença de populações indígenas

ressurgidas em suas fronteiras reivindicando Terras Indígenas próprias, parcial ou

integralmente superpostas àquelas UCs.

No Acre, mais especificamente no Alto Juruá, há pelo menos três casos já

identificados: os Nawa, no Parque Nacional da Serra do Divisor (Correia, 2004); os

Arara do Rio Amônia, cujo território atingiu partes do mesmo Parque Nacional, da

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Reserva Extrativista do Alto Juruá e do Projeto de Assentamento Rio Amônia (Paula,

2008); e os Kuntanawa do Alto Rio Tejo, cujo território reivindicado está inteiramente

superposto a Reserva Extrativista do Alto Juruá (Pantoja, 2008; PNCSA, 2009).

No caso da reivindicação Kuntanawa, que vem a ser o foco do presente trabalho,

observa-se, como em outros casos de sobreposição entre TIs e UCs de uso direto, a

disputa entre direitos territoriais de populações etnicamente diferenciadas mas num

certo sentido também similares, porém diferentemente contempladas na legislação. Se

até o momento não se observa nitidamente uma situação de conflito aberto entre os dois

grupos co-residentes(agroextrativistas e indígenas) e etnicamente diferenciados, como

pude constatar no trabalho de campo que realizei, há sem dúvida um processo recíproco

de construção de “fronteiras étnicas”, já que estamos falando de um processo que

envolve interrelações étnicas (Barth, 1998). Se algumas das consequências desta

problemática podem ser previstas – como a provável desintrusão da Terra Indígena tão

logo seja criada – o conjunto de causas que levaram até ela mereceriam ser analisadas

de uma perspectiva situacional4 e comparativa, como pretendi fazer durante todo o

tempo de estudo que assinalei. Assim, na Reserva Extrativista do Alto Juruá me detive

no estudo de caso que envolve os Kuntanawa e os moradores agroextrativistas da vila

Restauração. Mas também, visando uma perspectiva comparativa, estudei, mesmo que

de forma superficial, outro caso de sobreposição territorial na mesma UC, o dos Arara

do Rio Amônia.

Observa-se na literatura, porém, que muito pouca, ou quase nenhuma, atenção

tem sido dada, em casos como o dos Kuntanawa, à visão que os moradores não

indígenas constroem sobre os indígenas com quem disputam territórios e reivindicações,

bem como sobre seus [dos moradores nãoindígenas] próprios direitos como população

tradicional residente numa UC. Nesse viés, investigar como os moradores não indígenas

da vila Restauração enxergam a situação criada pela demanda indígena Kuntanawa e

sob que perspectivas legitimam ou não a “emergência étnica” em curso, constituiu um

dos grandes objetivos do meu segundo ano no PIBIC-UFAC, e é o principal objetivo

desta monografia. Este objetivo foi, pelo menos para mim, alcançado com a ida a campo

entre os meses de fevereiro e março do ano de 2012, já que pude observar in loco a

situação criada pela demanda étnico-territorial, tanto do ponto de vista indígena quanto

4 Por situacional entendo a ideia de que a sobreposição territorial deve ser compreendida a partir de um

contexto histórico e sociocultural no qual os sujeitos envolvidos estabelecem relações, sejam de aliança

ou de conflito de interesses.

19

da perspectiva dos moradores não-índios da vila Restauração que estão se vendo

atingidos pela reivindicação. Irei detalhar isso em momento próprio.

Será visto que trato um pouco detidamente docaso similar que envolve os Arara

do Rio Amônia e os moradores não índios da Reserva e do Projeto de Assentamento

Amônia. Diferentemente da forma como abordei o caso Kuntanawa, onde além de ter

me aprofundado teoricamente, pude também fazer uma pesquisa de campo, no caso

Arara fiz uma análise bibliográficae documental menos aprofundada.

Outro aspecto importante do qual irei me aproximar é a discussão de como

demandas territoriais indígenas no interior da Reserva Extrativista do Alto Juruá estão

sendo geridas pelo poder público e as situações locais que vão se configurando entre os

moradores agroextrativistas e os indígenas. Ou seja, além de descrever o que observei

em campo em relação a como as pessoas envolvidas na sobreposição estão se

relacionando, como se apresentam as mudanças na convivência entre os dois grupos - se

é que existe uma reconfiguração das relações que seja bem visível, e isso eu vou poder

esclarecer melhor em outro momento – discutir-se-á também, até mesmo

arriscadamente, questões que dizem respeito às relações que o Estado assume com essas

problemáticas. Relações estas que acabam por também constituir uma parte pertinente

da mesma problemática. Vai estar-se, aqui também, buscando entendimentos sobre

como o Estado, com seu poder mor, lida com estas questões, pois se percebe em muitos

momentos divergências entre órgãos governamentais no tratamento dessas querelas,

como também parece haver situações de engano e de grande confusão “cosmológica” e

“semântica” entre as populações envolvidas e o Estado/agentes do Estado, onde

este/estes último/últimos não entenderia/entenderiam o sentido das situações e das

reivindicações. Vamos à frente.

De modo a esclarecer ao leitor sobre a sequência das questões a serem tratadas,

já que assinalei resumidamente boa parte do que irei expor, pontuo então a estrutura

desta monografia para concluir a Introdução deste trabalho.

No primeiro capítulo, vou tratar do meu estudo de campo na Reserva Extrativista

do Alto Juruá5. Porém, estarei em uma abordagem diferente, pois não discutirei

exatamente sobre os objetivos que levei para o campo, nem falarei dos resultados

obtidos a partir dos objetivos lançados antes da atividade prática. Vou discutir o que

5Optei, neste escrito, por chamar a Reserva Extrativista do Alto Juruá apenas por Reserva ou REAJ,

excluindo, por exemplo, a sigla Resex. Ter optado por“Reserva” se deve mais ao fato de ter ouvido muito

as pessoas de lá falarem apenas “Reserva”. Para evitar confusões no caso de mencionar outras Reservas

Extrativistas, especificarei o nome completo destas.

20

resolvi chamar de “impressões subjetivas” do trabalho de campo, de minhas sensações,

de meus sentimentos e estranhamentos, e das sutilezas da pesquisa de campo com as

quais me deparei. Buscarei apoio em uma perspectiva teórica que discute sobre o

trabalho do etnólogo a partir do ponto de vista que compreende e destaca a relação de

trocas e de mudanças externas e internas que ocorrem entre o pesquisador e os seus

“sujeitos de estudo”.

No segundo capítulo farei um pequeno histórico da origem das UCs no mundo e

uma análise sobre a criação destas no Brasil, abarcando assim a proposta de criação da

Reserva Extrativista do Alto Juruá. Consequentemente, irei introduzir as questões de

sobreposição territorial naquela Reserva Extrativista.

Já no terceiro capítulo irei discorrer sobre a temática da etnicidade. As teorias da

etnicidade constituíram uma parte muito relevante e central em todo o meu estudo.

Portanto, essa é uma parte importante deste trabalho, já que será o momento em que

estarei expondo detidamente a questão da identidade étnica e do que se denomina

“emergência étnica”. Primeiro irei passar por algumas discussões sobre identidade

étnica feitas principalmente por Max Weber (1984), Fredrik Barth (1998) e pela

antropóloga brasileira Manuela Carneiro da Cunha (1987), mas poder-se-á inserir outros

de modo menos abrangente. Sobre o tema das “emergências étnicas” irei abordar

inicialmente autores que trataram de fenômenos dessa espécie no Nordeste brasileiro,

dentre eles, o antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho (2004). Tentar-se-á ainda, de

maneira pouco prolongada, contrapor essa primeira perspectiva teórica acerca das

questões de identidade étnica e “etnogêneses étnicas” e as questões que o antropólogo

Eduardo Viveiros de Castro (2008) coloca em discussão como, por exemplo, a ideia de

“indianidade” desenvolvida pelo mesmo. Feito esse movimento, encaminharei a

discussão para a realidade amazônica, ou seja, estarei mais voltado para os casos

ocorridos na Amazônia, principalmente no Estado do Acre. Esse movimento todo

desembocará no quarto capítulo, que versará sobre as sobreposições territoriais no

Estado do Acre, precisamente os casos Kuntanawa e Arara.

Ao fim, tecerei um arremate de toda a complexidade das principais questões

abordadas neste trabalho, frisando algumas conclusões e alguns apontamentos.

21

CAPÍTULO 1 – PULANDO OS “MUROS BUROCRÁTICOS DA RAZÃO”

Como dito anteriormente na introdução deste trabalho, neste primeiro capítulo irei

discutir, a partir da experiência de campo que tive na REAJ, a importância que o

trabalho de campo teve e tem para a produção de conhecimento na antropologia.

Acredito que essa característica muito própria da disciplina tem várias faces a serem

conhecidas e exploradas. Será perceptível a minha insistência em falar do grau de

relevância da subjetividade, que de certa forma, podemos sim dizer, é uma característica

base, principalmente para o conhecimento antropológico. Faço isso, como na

introdução, me arriscando mesmo a considerar a proximidade entre antropologia e

literatura. Por ser um assunto que muito me envolve, penso que devo permitir-me trilhar

esse “varadouro” de subjetividades, sendo isso uma espécie de meta-antropologia que

vem sendo trabalhada por antropólogos contemporâneos.

Algumas notas sobre a objetividade e subjetividade na antropologia

Sabe-se que há um antigo debate sobre a problemática epistemológica que diz

respeito à relação entre sujeito-pesquisadoreobjeto de estudo; ou seja, de modo direto, a

discussão sobre a necessidade do pesquisador manter um relativo distanciamento em

relação ao seu objeto de estudo. Essa é realmente uma discussão antiga no meio

científico, principalmente quando se trata de ciências sociais. Veja que, por exemplo,

podemos mencionar o sociólogo Max Weber a proposito disso.

Em seus estudos, Max Weber partiu de uma proposta teórica que levava em conta

a influência dos valores do pesquisador na investigação científica. Diferentemente de

positivistas como Durkheim, Weber considerava os valores do cientista não como uma

coisa negativa, mas como algo importante e constituinte da própria produção

científica(Löwy, 2006). Lembremos, ainda que rapidamente, que o positivismo defendia

que os métodos científicos das ciências naturais fossem adaptados às ciências sociais,

uma espécie de biologia e física social como, de certa maneira, queria August Comte.

Essa proposição, portanto, visava também o afastamento do cientista em relação ao seu

objeto de pesquisa, já que aquele com seus preconceitos e valores poderia influenciar

nos rumos e nos resultados da pesquisa, comprometendo assim a cientificidade da

mesma.

Weber irá se diferenciar da tese defendida pelos positivistas mais tradicionais

afirmando que a relação valorativa que o cientista tem com uma pesquisa não é algo

22

negativo. Ele se pronunciava nesse sentido considerando que para que haja produção de

ciência é inevitável que haja essa interferência de valores, pois os mesmos são

indispensáveis para que o próprio pesquisador saiba o que vai pesquisar, pois o que ele

pesquisa é também o que ele quer pesquisar, pelo menos normalmente. A ser assim,

podemos alcançar o entendimento de que os pontos de vista valorativos são essenciais,

pois são como pressuposições de qualquer problemática a ser pesquisada (Löwy, 2006).

Todavia, Weber esclarece que as ideias valorativas e subjetivas que são

importantes para a pesquisa têm seus limites de influência. Isto é, a maneira como se

conduz uma pesquisa, as ferramentas analíticas e os métodos são escolhidos a partir das

preferências do pesquisador, porém ao serem utilizados devem pautar-se pelas “regras

gerais” das investigações científicas de modo a conduzir os resultados para o “lado

objetivo”, digamos assim.

Por conseguinte, observemos que essa pequena passagem por Weber, através do

trabalho de Michael Löwy, nos faz ver que a problemática da parcialidade X

imparcialidade não está realmente resolvida, por assim dizer, pois os resultados da

pesquisa científica continuam presos a um rigor científico em certa medida positivista.

Falo isso pelo fato de podermos ver aqui uma análise, mesmo que preliminar, da

pesquisa de campo em antropologia, no qual interferências subjetivas, emocionais,

valorativas se farão sentir continuamente. Me pergunto: como poderei afirmar que fiz

meu trabalho de pesquisa tendo escolhido as minhas ferramentas analíticas e os meus

métodos de pesquisa sofrendo influências valorativas, e, além disso, tendo tido todo um

envolvimento emocional com o campo-objeto de estudo e com as pessoas que fazem

parte desse estudo, mas que os resultados são totalmente livres de qualquer interferência

valorativa? Como dizer que os resultados obtidos em uma pesquisa aleatória podem não

ter sofrido certo influxo subjetivo?

Se é difícil pensar em neutralidade nas ciências sociais, é ainda mais complicado

ser totalmente neutro na antropologia, que,a partir do século XX, tem o trabalho de

campo e a ideia de observação participante mediante longas estadias como base

característica. (Malinowski, 1980, Da Matta, 1981). Os resultados de um trabalho de

campo em antropologia são marcados por uma ligação muito forte com a maneira como

se sucedeu a relação do antropólogo com a sociedade estudada, como também com o

desempenho do pesquisador diante das várias situações com que se deparou, aceitação

do mesmo na sociedade, como se deu a interlocução com os “nativos”, entre outras

coisas que ainda poderei dizer adiante (Seeger, 1980).

23

Consideremos que o antropólogo, me parece, mais que todos os demais cientistas,

vive uma forte ambiguidade em seus estudos. Por estar muito perto e envolvido com

seus sujeitos e campos de estudo, ele fica a vivenciar uma realidade dupla, pois ao

mesmo tempo em que vive uma experiência pessoal no trabalho de campo, vive também

o lado objetivo da pesquisa que, por vezes, foi e é um dilema para os cientistas sociais,

no sentido de que vivenciar essa interface entre subjetividade e objetividade é

problemático por vezes – não é à toa que existe este debate que estou assinalando aqui

sumariamente. A ambiguidade se dá ainda quando o antropólogo, primeiro, está em

campo e, depois, quando necessita sistematizar para análise os dados que produziu em

campo. (Caldeira, 1988, p.134).

Ou seja, primeiro o pesquisador tenta se tornar igual ou parecido com os sujeitos

estudados fazendo parte das atividades diárias do grupo, inserindo-se devagar no mundo

que quer conhecer. Depois, porém, necessita retornar à realidade, à sua sociedade, à

universidade. É possível abstrair uma coisa da outra? É possível considerar que uma

coisa são as relações e laços de amizade e confiança, ou inimizade e desconfiança, que

são ganhas em campo, e outra são os resultados e os relatórios de caráter objetivo que

devem ser produzidos? A ausência do “eu” do pesquisador na análise e na exposição

dos dados recolhidos, pelo que me parece, não é possível de ser totalmente obtida, e, de

certo modo, também não é o caso que assim seja, pois “a presença do antropólogo

profissional tanto no trabalho de campo quanto no texto etnográfico foi essencial para a

constituição do conhecimento antropológico” (Ibidem).

No texto “A presença do autor e a pós-modernidade em Antropologia”, Teresa

Pires do Rio Caldeira fala de uma mudança epistemológica na produção dos estudos

antropológicos na chamada modernidade. Segundo ela, “o antropólogo contemporâneo

tende a rejeitar as descrições holísticas, se interroga sobre os limites da sua capacidade

de conhecer o outro (...) a legibilidade e a legitimidade do texto etnográfico, estão

mudando” (Ibidem, 1988, p.133). Seria, pois, essa uma mudança autocrítica. E ainda,

mais uma vez, nesse viés, recaímos na antiga discussão sobre o distanciamento entre

sujeito e objeto, da neutralidade e objetividade como características sinequa non da

ciência, onde a Antropologia entra como ciência diferente e diferenciadora, não tratando

essas condições de distanciamento e neutralidade como essenciais, sem as quais não se

poderia obter conhecimentos.

24

Nesse sentido, completo essa ideia citando novamente Anthony Seeger quando

escreve sobre a sua experiência entre os índios Suyá do Mato Grosso do Norte do

Brasil. O antropólogo diz claramente que:

O material etnográfico sobre o qual a Antropologia trabalha é quase sempre o

resultado da atividade singular do pesquisador no campo, num momento

específico de sua trajetória pessoal e teórica, de suas condições de saúde e do

contexto dado, e essa atividade é exercida sobre um grupo social que se

encontra num certo momento de seu próprio processo de transformação. O

contato é comumente difícil para ambas as partes, e se a Antropologia pode

reivindicar qualquer validade dentro da contingência da pesquisa de campo

na qual se baseia, isso se deve apenas à dificuldade do trabalho e à dedicação

a uma teoria e a um método por parte do pesquisador, e a muita paciência por

parte do grupo com o qual está trabalhando. (Seeger, 1980: 25)

É com essa perspectiva que introduzo mesmo o meu relato sobre a minha própria

experiência de campo na Reserva. Pode-se ver como Seeger traduz muito bem a

relatividade do trabalho de campo. Digo relatividade no sentido do grau de

transformações que o trabalho pode vir a assumir durante o tempo de execução ou

depois de sua execução. Hoje posso dizer que percebo minha experiência de campo de

uma outra maneira, entendo melhor os resultados que trouxe da pesquisa, Sei que estou

em um momento intelectual distinto, além do que, como já assinalado por Seeger, a

abordagem feita no trabalho de campo varia de acordo com as próprias circunstâncias

particulares, e o mesmo autor ainda assinala que “o modo pelo qual se trabalhou e o que

se fez exercerão um efeito profundo sobre o que quer que seja que venha a escrever”

(Ibidem: p.25).

Dito tudo o que foi dito, penso que esta seja uma boa hora de começar a escrever

sobre a minha pesquisa. De certo modo estarei aqui fazendo um “movimento contrário”

em relação ao fazer científico e o seu aparato teórico-metodológico, já que estarei

pensando, como tenho feito até agora, o trabalho de campo a partir de diferentes

análises teóricas sobre tal temática ou ainda sobre algo paralelo à questão científico-

metodológica. Continuar-se-á, portanto, a fazer um “diálogo” sobre questões da

objetividade e metodologia científica diante de uma prática que envolve processos e

influências subjetivas, o trabalho de campo. Estamos, enfim, “pulando os muros da

razão” que às vezes nos prendem, e que foram erguidos a partir do pensamento de

Aristóteles e de Descartes, donde surgiram várias das dicotomias e anulações que

teimamos ainda em obedecer e seguir, a ver, em nosso caso, subjetividade/objetividadee

25

sujeito/objeto. De forma que a subjetividade estaria ao lado do não científico, do

artístico, da experiência, da sensibilidade, do espiritual, e não ao lado do trabalho

científico, rigoroso e objetivo. Por outro lado, é mais do que necessário deixar claro que

de nenhum modo estou a desconsiderar o plano do rigor científico, mas sim estou

interessado em relativizar e discutir sobre outros vieses que também precisam ser

considerados.

Impressões subjetivas: enfrentando o tema

O que estarei discutindo a partir de agora é quase que totalmente reprodução de

um artigo resultado de uma ideia que tivemos, eu e minha orientadora Mariana Pantoja,

de colocar em texto uma exposição que fiz num seminário de pesquisa com outros

estudantes (Enaiê Apel, Thiago Pereira Borges e Maria Luíza Santos), onde

apresentamos nossas respectivas atividades científicas dentro do curso de Ciências

Sociais na Universidade Federal do Acre, no ano de 2012. No meu caso, por exemplo,

estava apresentando um relatório semestral referente ao Programa Institucional de

Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do qual fazia parte até então. Esse exercício foi

significativo para analisarmos conjuntamente nosso rendimento e definir quais seriam

os próximos passos a avançar em nossos projetos.

Naquele momento eu tinha recentemente chegado de minha viagem de estudo de

campo na Reserva, que aconteceu entre os meses de fevereiro e março de 2012. Então,

paralelo às atividades que tinha feito antes da viagem, tinha muito material proveniente

da viagem para analisar e organizar. Mesmo assim, Mariana me disse que eu precisava

já inserir naquele relatório semestral algo sobre a experiência de campo. Dessa forma,

ao começar a falar sobre ela acabaram por sair com mais facilidade aspectos que eu não

dava até então muita relevância. Como estávamos em uma conversa meio informal

acabei tratando de coisas de certa maneira mais “banais” e tidas por mim como menos

importantes. Ou seja, eu estava naquela conversa falando para pessoas muito próximas

sobre aspectos cotidianos da minha vivência na Reseva. Logo, vieram à tona

informações menos atreladas aos meus objetivos científicos levados a campo, e mais

“corriqueiras”.

Antes deste seminário, quando escrevi meu relatório mais geral sobre a viagem,

eu achava que falar sobre os meus sentimentos e sensações não seria algo importante

para um trabalho mais elaborado e “formal”, digamos assim. No entanto isso não me

impediu de pontuar algumas das minhas sensações mais particulares. Durante o

26

seminário de pesquisa, fui bastante econômico, portanto, em relação as minhas

impressões e vivências de campo. Foi exatamente aí que Mariana me encorajou a

elaborar mais essa discussão. Ela foi pontuando coisas que eu havia dito e me alertando

para a importância que elas tinham. Eu estava, de acordo com ela, além de tentando

expressar as primeiras impressões do que vi,revelando também minhas impressões mais

pessoais e introspectivas: minhas primeiras dificuldades, desconfortos, meus

sentimentos de muita saudade, como também o sentimento de alegria de estar ali vendo

tanta beleza. Em campo, sentimentos de tristeza e de alegria haviam me preenchido às

vezes ao mesmo tempo. Logo Mariana indicou-me uma pequena bibliografia que me

esclareceu e me incentivou a pensar em muitas outras coisas ligadas a essa parte mais

subjetiva do trabalho de campo, sobre as situações mais específicas e íntimas com as

quais o antropólogo se depara.

É justamente a partir dessa bibliografia que pretendo discutir um pouco dessa

parte humana do ser antropólogo, da especificidade do que eu vivi com “outros” muito

diferentes de mim e que vivi comigo mesmo sofrendo alguma transformação da minha

visão de mundo e de minha personalidade, me percebendo de modo distinto. Por outro

lado, espero conseguir expor tudo que formulei de uma forma bem inteligível. Acredito

que os textos com os quais dialoguei realmente deram-me grande suporte, pois os

mesmos me possibilitaram uma boa noção de como concretizar o que eu tinha em

mente, ou seja, o que quero dizer é que a partir deles me senti mais livre para fazer

“análises de mim mesmo” em relação ao campo, e do campo em relação a mim também.

No mais, paremos um pouco os adiantamentos desta parte.

Um aprendiz de antropólogo em campo

Antes, porém, de discutir a partir de um quadro teórico os nossos assuntos, ainda

penso que é interessante explicitar os meus principais sentimentos e conturbações em

relação ao campo, tal como expostos na ocasião referida acima.

Primeiro comecei falando de minhas impressões introspectivas, as mais iniciais.

Num primeiro momento me senti assustado, me sentia engolido como que por uma

beleza que me dava medo. Era um outro mundo, pra mim um mundo de águas, chovia

muito e os rios estavam cheios. Para intensificar tudo, eu não sei nadar, e o tempo todo,

quando em viagem de canoa, estive utilizando um colete salva-vidas. Nosso grupo de

viagem – composto por mim, Mariana, Amilton Mattos, da UFAC, e Antônio Caxixa,

27

morador da Reserva e liderança de um projeto de agroecologia – subia o rio Juruá em

direção ao rio Tejo, afluente daquele. Estávamos na Reserva! A beleza daquele lugar me

apareceu como diferente. Lá estava eu, cercado de uma “paisagem composta de vida

pura”, parafraseando Baudelaire.

Mas também, e isso aconteceu do começo ao fim da viagem, diria eu, fiquei

muitos momentos me “ajustando” para me “portar” como cientista, para produzir um

efeito mínimo nas pessoas. Na verdade não sei bem porque eu pensava ainda nisto, pois

até mesmo antes do campo li coisas que me indicavam que essa questão de afetar o

campo não é algo ruim, além do que, penso, todos mudam na interação afinal.

Perguntava-me muitas vezes, principalmente nas horas de desconforto e saudade,

“o que é ser um antropólogo?”; “será que serei mesmo um antropólogo?”; “será que é

exatamente isso que eu quero pra mim?”; “será que eu aguentarei ser um antropólogo?”.

Nesse mesmo rumo vinham-me preocupações com os objetivos do estudo. “Como e

quando devo fazer as perguntas?”. Flagrava-me pensando sobre conceitos, tentando

construí-los. Às vezes, quando dava por mim, estava eu preocupado em ir ou já indo

atrás dos objetivos do estudo, um tipo de ânsia de cumpri-los, talvez para fazer as horas

passarem, ou para ir embora assim que estivessem “sanados” todos os problemas que eu

levei para o campo, assim que tivesse uma boa coleta de informações. Os objetivos do

meu estudo, observe-se, me marcavam muito, apesar de que com o tempo acabei,

confesso, esquecendo-os, e isso não foi ruim. No entanto, houve momentos em que me

perguntava: “o que estou fazendo aqui agora? O que preciso fazer?”. Achava que

sempre tinha que estar fazendo algo, seja entrevistando, escrevendo algo ou relendo

meu diário de campo. Ver-se-á essas questões sendo discutidas mais à frente.

Mas também chegavam os momentos em que me inquietava a dúvida sobre o que

as pessoas estavam achando de mim. Queria poder saber o que elas estavam

sistematizando mentalmente sobre a minha pessoa e minha presença, de que maneira

elas estavam me compreendendo dentro de suas representações. E simplesmente houve

momentos em que só pensava em mim mesmo, ocasiões de desolação, desconforto, falta

de ânimo e nostalgia.

Todavia avisto que será melhor, enfim, começar o pretendido diálogo com os

textos e a partir deles continuar esse relatório de impressões do trabalho de campo. Se o

leitor já estiver se sentindo desanimado ao achar muito romantizado este relato, peço

paciência: é que, na verdade, ele é parte fiel do que foi.

28

As minhas referências bibliográficas para o que vem a seguir se concentram de

modo direto,principalmente, em quatro autores, a saber: Roberto Da Matta, Bronislaw

Malinowski, William Foote-Whyte e Howard S. Becker. Tentarei discutir o que li de

cada um de forma separada, mas quando for interessante estabelecerei algum diálogo

entre eles.

Entre a academia e o campo

Li dois textos de Roberto Da Matta. O primeiro chama-se “O ofício do etnólogo,

ou como ter anthropological blues” (Da Matta, 1978). Da Matta divide, nesse texto, o

trabalho de campo em três fases complementares assim por ele definidas: 1- Teórico-

intelectual; 2- Período prático e 3- Pessoal ou existencial. A primeira fase é “marcada

pelo divórcio entre o futuro pesquisador e a tribo, classe social, mito (...) quando ainda

não temos nenhum contato com os seres humanos que, vivendo em grupos, constituem

nos nossos objetos de trabalho” (Ibidem, p.24). Com efeito, em nosso trabalho

investimos um razoável tempo em estudos bibliográficos condizentes às realidades com

as quais, de certa forma, esperamos nos deparar. A partir desses estudos é que teríamos,

penso eu, o suporte teórico para analisar e interpretar as situações que viveremos em

campo, ou não. Talvez a teoria em alguns casos não ofereça esse suporte. Nessa

primeira fase, conhecemos o que os outros antropólogos viveram e sabem, mas é, para

nós, estudantes inexperientes, um saber “mediatizado pelo abstrato”, como nos assinala

Da Matta.

Nessa mesma fase teórico-intelectual, onde “as aldeias são diagramas” e “os

índios são de papel”, eu tinha uma preocupação, maior à medida que o trabalho de

campo se aproximava, com a pergunta: a teoria que eu tinha apreendido daria conta da

minha experiência prática? Tinha a preocupação de haver um encaixe perfeito do que eu

tinha visto na teoria com a experiência prática.

A segunda fase, o período prático, “diz respeito a nossa antevéspera de pesquisa”,

onde se deixa um pouco de lado as “teorias mais universais” e dá-se mais preocupação

“para os problemas mais banalmente concretos” (Ibidem, p.24). Ou seja, essa fase é

relativa às nossas preocupações pré-viagem. Lembro-me de que pensava como reagiria

ao campo, se suportaria a saudade e solidão, o medo dos “perigos” do campo. Antes de

ir à Reserva eu já sabia que encontraria muita água, algo perigoso para quem não sabe

nadar, e que poderia encontrar, por exemplo, bichos peçonhentos e bem perigosos como

29

cobras ou até mesmo onças. Felizmente e infelizmente, ao mesmo tempo, não as

encontrei. Outrossim, quando paramos na sede municipal de Marechal Thaumaturgo

para comprar todas as nossas estivas e outros itens necessários que tínhamos listado

mais de um mês antes da viagem, acabamos esquecendo certos mantimentos. As

preocupações de onde dormir, comer, tomar banho, ou outras necessidades fisiológicas

básicas, não foram algo que me tenham ocorrido tanto precedentemente à viagem. A

não ser para as pessoas mais próximas de mim e que estão distanciadas dos estudos

antropológicos, como familiares e amigos, que me perguntavam como que eu iria comer

e dormir sendo um desconhecido total (na verdade tinha um pouco de dificuldade de

responder esse tipo de pergunta). Mas, de fato, essas preocupações surgiram

agudamente quando já em campo. A explicação que poderia dar a isso seria que a

circunstância de eu estar acompanhado de pessoas já bem familiarizadas com as

realidades e com as pessoas do campo de estudo me deixou calmo nesse aspecto até um

certo momento. Veja que, de fato, estou tentando seguir o que Da Matta diz ser o

problema fundamental da antropologia: “o da especificidade e relatividade de sua

própria experiência.” (1978, p.25).

A terceira fase elencada por aquele autor é digna de atenção, pois “(...) ela deve

sintetizar a biografia com a prática do mundo com a do ofício.” (idem, p.25). Nessa fase

está-se submerso em um mundo distante e diferente. No campo percebi que o que vi em

teoria nem sempre dava conta de analisar o entorno e as pessoas, e o entorno e as

pessoas em relação a mim. Acontecimentos inéditos surgiam, pois agora era eu o

antropólogo, não mais apenas um estudante com suas leituras. Estava lidando com

pessoas de verdade, “de carne e osso”, de defeitos e virtudes. Nada ou quase nada era

tão previsível. Os acontecimentos são aleatórios e, às vezes misteriosos, para o

pesquisador que pela primeira vez se aproxima de seu ambiente de estudo. As pessoas

nem sempre vão ter a mesma reação em todos os lugares. Por exemplo, fui recebido de

modo muito acolhedor em vários lugares, porém em outros nem tanto assim.

Justamente nessa fase fiquei muitas vezes tentando repetir rotinas, traçar objetivos

a cada dia. Mas é engraçado lembrar que ao mesmo em que isso acontecia, sucedia

igualmente que eu às vezes me deixava mais solto, seguindo os conselhos de minha

orientadora, que me recomendava deixar-se relaxar e viver e conviver de acordo com o

ritmo das pessoas. Em sentido parecido, friso o que o nosso autor fala sobre “um modo

envergonhado de não assumir o lado humano e fenomenológico da disciplina, com um

temor infantil de revelar o quanto vai de subjetivo nas pesquisas de campo” (Ibidem, p.

30

27) para que se possa entender a expressão “anthropological blues”, de modo grosseiro,

como o caráter inconstante do trabalho de campo, e digo inconstante como característica

humana. Aquele termo vem também significar os “aspectos interpretativos do ofício de

etnólogo” e os aspectos específicos e extraordinários que são por muitas vezes

banalizados.

A transformação exótico-familiar-exótico

Na minha experiência de campo, eu diria, acredito que fiz essa dupla

transformação de que nos fala Da Matta (1978). Fui para lugares que constituem o que

se chama de seringais6. E a minha família, mais especificamente os meus pais, nasceram

e viveram em seringais. Muitos de meus irmãos também viveram grande tempo nos

seringais onde meu pai cortou seringa7. Isso quer dizer que, não obstante eu não ter

alcançado essa época de minha família – inclusive se o tivesse, talvez não estivesse

agora escrevendo antropologia, em outras palavras, não teria tido muita chance de ter

entrado na academia –e ter crescido na cidade, mesmo assim fui educado com o dever

de seguir algumas das etiquetas e costumes da vida nos seringais, e que um dia já

tiveram muita importância ou que ainda a tem para pessoas muito próximas de mim.

É até interessante lembrar o que muitas vezes a Mariana dizia aos moradores que

eu ia conhecendo, e que ela já conhecia de longa data, algo do tipo: “esse meu aluno é

filho de seringueiro, mas foi preciso que eu viesse lá do Rio de Janeiro pra trazer e

mostrar a mata pra ele”. A propósito lembro-me de Seu Juscelino, mais conhecido como

Peba, dizendo “ah, eu percebi pelo jeito dele, o jeito dele falar é parecido com o

nosso...”. No entanto os costumes e o modo de vida da cidade transformam ou até

desfazem algumas das “maneiras seringueiras de ser”, eu diria. Lembro-me que por um

determinado tempo eu não dava muita atenção às reclamações de meus pais de que as

coisas estão a cada dia mais erradas, que antigamente as coisas eram de outro modo,

enfim... Admirava, no entanto, algumas histórias de seus tempos de seringueiros, de

dificuldades e superações. Só a partir do meu contato com a antropologia comecei a

querer saber mais sobre coisas que, mesmo tão próximas, são muitas vezes distanciadas

por ações e discursos que tomam essas histórias e realidades, modos de ser e de viver,

como coisas arcaicas.

6Sobre a história e realidade dos seringais consultar, por exemplo, Carneiro da Cunha e Almeida (2002) e

Pantoja (2008). 7 Ou seja, extraiu látex e produziu borracha.

31

Muitas vezes, em campo, certas coisas me eram familiares e exóticas ao mesmo

tempo.Houve acontecimentos que me lembravam sem querer os meus pais –

acontecimentos familiares, portanto. Outros fatos que só percebi em mim e na minha

vida quando me deparei com eles em campo, estranhando-os. Cito, por exemplo, o

hábito de se comer no chão, e não na mesa, ainda hoje vigente em minha casa e no meu

dia a dia. Ou seja, tratar-se-ia de um costume a princípio familiar. Porém, quando em

campo, aquilo me chamou certa atenção, o que me parece que, de algum modo, percebi

algo de exótico numa prática que me era e é muito habitual. Claramente eu estava

vivenciando um processo de estranhamento, processo pelo qual, como apontam Da

Matta e também Gilberto Velho (1978), todo antropólogo passa (ou que mesmo

qualquer pessoa se depara, porém de modo menos elaborado, digamos assim). A

proposito disso, Velho afirma que “(...) o fato de dois indivíduos pertencerem à mesma

sociedade não significa que estejam mais próximos do que se fossem de sociedades

diferentes...” (Ibidem, p.38). Ou seja, grosso modo, o que o autor está tratando é de uma

questão de mesmo sentido e ordem que Da Matta discute. Isto é, a contradição entre o

que nos é familiar e o que nos aparece como exótico.

Então “o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é

necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até

certo ponto, conhecido” (Velho, 1978, p.39). Imediatamente percebo que a

familiaridade, e mesmo o conhecimento, que tinha em relação aos costumes que, se não

eram iguais aos meus, eram muito próximos, era de um grau que variava, pois “(...) o

meu conhecimento pode estar seriamente comprometido pela rotina, hábitos,

estereótipos”(Ibidem, p.41). Acabamos em certas ocasiões desconhecendo realidades

muito próximas pelo fato de nos ser censurado ou distanciado o saber sobre coisas que

nos deveriam ser mais familiares. Então, por várias vezes, para me aprofundar em

minhas próprias maneiras de ver aquilo que me era familiar, foi necessário haver esse

estranhamento, ou um certo “fingimento” de não saber direito o que significava certas

expressões, palavras e gestos, para que as pessoas me explicassem algo que amiúde eu

conhecia parcialmente, ou melhor, já tinha algum conhecimento.

Subjetividade e objetivos da pesquisa de campo

Estar em sua própria casa com certeza, ao menos para mim, é algo que produz as

melhores sensações de conforto e tranqüilidade. Quase tudo você pode fazer. De acordo

32

com os seus limites, você não tem impedimento algum pra se sentir bem ou fazer o que

quiser pra poder sentir-se melhor. A viagem de volta para casa depois de uma viagem

longa também traz sentimentos de aconchego, de paz, de entusiasmo. Afinal, você irá se

reencontrar com aquelas pessoas que há muito não via... Você irá se sentir tranqüilo,

pois tudo já lhe é conhecido. As ruas, as pessoas, mesmo as desconhecidas não lhe

parecerão tão estranhas, as casas, a cidade, ou a floresta, seja lá qual for a sua terra

natal, você vai se sentir bem por estar retornando ao seu lar; se você realmente tiver um,

será um dos lugares mais agradáveis de estar. É, pois, o lugar onde as pessoas falam

como você e sobre coisas que você normalmente entende. Quero dizer, afinal, que

temos um vinculo muito extenso e forte com o lugar onde nascemos e nos criamos e

somos criados. Temos também, consequentemente, uma grande resistência em nos

separarmos do nosso “habitat”. Não é à toa que existem expressões como “as minhas

raízes” ou “sou de origem tal...” para designar a ligação que temos com a terra em que

nascemos e, exatamente, criamos raízes na mesma.

Acredito que estas considerações podem fundamentar a discussão das situações

várias com que o antropólogo se depara e que Da Matta trata, conforme já citado, como

“anthropological blues”. Ou seja, o fato de que ao mesmo tempo em que temos em

mente uma certa objetividade, temos, outrossim, as interferências do próprio campo.

Circunstancias vão sendo geradas a partir da convivência com pessoas antes jamais

vistas, de sentimentos e sensações internas, de impressões de um lugar estranho, onde é-

se o estranho, o forasteiro. Então, há toda uma relação entre a subjetividade e os

resultados da pesquisa, eu diria. Diria também que encontro na antropologia uma maior

liberdade de expressar, como já vem sendo feito desde o começo deste capítulo, essas

relações do sujeito que afeta o campo e é, simultaneamente, afetado por este.

Malinowski (1984), explanando sobre sua primeira experiência de campo na costa

sul da Nova Guiné, fala que nas primeiras semanas naquele lugar vivenciou sentimentos

de desânimo e desespero. Isso condiz com o que foi anteriormente comentado a cerca da

ligação que temos com nossa terra natal. Ficar longe de seu ambiente cultural, digamos

assim, faz com que experimentemos sensações desconfortáveis, de vazio e solidão, por

exemplo. No entanto, não só de sensações ruins experimentamos. No meu caso, tenho

que confessar que senti muita paz interior, alegria, euforia e deslumbramento.

A propósito, já que citamos algo de Malinowski, elenco três grandes princípios de

método do trabalho de campo que o mesmo assinala: 1- o pesquisador deve ter objetivos

33

realmente científicos; 2- viver sem a companhia de outros homens brancos; 3- aplicar

métodos particulares para coletar, manipular e estabelecer seus dados.

Penso que isso é interessante para continuar meu relato sobre a subjetividade e

objetividade no trabalho de campo, principalmente o segundo item.

Houve um momento em minha viagem de campo que me separei dos outros

pesquisadores que me acompanhavam. Desde o começo da viagem eu estava fazendo

mais uma observação participante, porém me preocupando pouco com entrevistas, pois

estas estavam sendo mais executadas pelos meus companheiros que eram, na verdade,

meus três orientadores, eu diria: Mariana, Amilton e Caxixa. Sentia-me bem confortável

nessa minha posição, pois conseguia ir construindo uma familiaridade a partir de

informações sobre os costumes e os lugares, problemas e trabalhos locais, porém, de

certa forma, de um modo tímido.

Também examinava a mim mesmo e o campo de uma forma que eu conseguia me

controlar nas horas vazias de saudade e de tristeza, e além disso me sentia mais liberto

para me habituar melhor ao campo, em parte despreocupado com os objetivos e os

métodos mais gerais de minha investigação científica (esclareço que essa

despreocupação não implicava de forma nenhuma desleixo). Tenho que frisar ainda que

o tempo que passei com eles (meus companheiros) me foi muito produtivo e divertido,

até porque quando estava com eles as horas de solidão eram pouco recorrentes, ou

mesmo rápidas, uma vez que havia sempre algo para se fazer, algo em comum para se

conversar. Inclusive me era extremamente confortável conversar com Amilton: durante

nossa convivência identifiquei uma afinidade muito grande em nossos gostos musicais.

Mas falo isso para completar com o seguinte: viver a experiência de campo com

alguém que tenha uma proximidade com o seu estilo de vida pode fazer com que a sua

pesquisa tenha alguns “desvios”, digamos assim, no sentido de que algumas coisas

serão mais confortáveis, já que você terá alguém para compartilhar muitas de suas

angústias, por exemplo. Ou seja, ter alguém do “seu mundo” por perto pode ser uma

estratégia de fuga da situação de pesquisa, podendo comprometê-la, como já alertou

Malinowiski. Nas minhas reflexões a partir da minha própria experiência, penso que há

coisas que só ocorrem mediante o afastamento de pessoas muito parecidas consigo

próprio. A partir do momento em que fiquei sozinho, longe dos meus colegas

pesquisadores, vivendo um certo isolamento naquele meio, com pessoas desconhecidas,

comecei a criar os meus próprios mecanismos de pesquisa, de entrevistas, a observar

34

melhor a conjuntura do convívio entre as pessoas, a ganhar aos poucos uma

personalidade concernente à adaptação no campo de pesquisa.

Eu passei pouco mais que quinze dias com os outros três pesquisadores, entre eles

a minha orientadora, Mariana. Durante esse tempo fui recebendo dicas de pesquisa

importantes, conhecendo uma boa parte da Reserva Extrativista do Alto Juruá,

conhecendo várias pessoas de diferentes comunidades, em suma, conhecendo novos

modos de viver, criar e conhecer. Em contrapartida, houve o momento em que me senti

desequilibrado. Foi quando chegamos à Vila Restauração, lugar em que todos nós

tínhamos nossas próprias metas de pesquisas. Enfim, chegara a hora em que eu estava

na situação central de minha pesquisa: a sobreposição territorial – tema do meu projeto

– está focada ali na Vila Restauração, onde existem os Kuntanawa que reivindicam a

sua Terra Indígena e os moradores da Reserva que resistem até certo ponto à essa

reclamação. Lembro-me muito bem que escrevi em meu diário de campo que o dia em

que os outros pesquisadores se foram e fiquei sozinho foi o dia mais triste até então. Eu

era um etnólogo e estava só, me sentido tão sozinho como em nenhum outro momento.

Observação participante: alguns desafios

Willian Foote-White (1984) nos conta que em seu trabalho de campo ele andava

com um amigo que conhecia e participava da realidade que ele queria conhecer melhor.

E enquanto ele andava com esse amigo “ninguém perguntava quem era eu e o que eu

fazia.” Porém, quando já circulava sozinho pelos lugares foi-lhe questionado a seu

respeito, quis-se saber o que ele estava a fazer, o que ele pretendia.

Isso é interessante, pois me faz lembrar o que sucedeu comigo. Primeiro, as coisas

que perguntava a mim mesmo. As questões que me fazia enquanto ser humano,

enquanto “estrangeiro”, enquanto “aspirante” a antropólogo. Como que eu deveria me

conduzir e me portar como pessoa diferente, vinda de longe para estudar outras pessoas.

Mas o fato é que, tal como Foote-White, quando eu estava com pessoas há muito

“iniciadas” naquele campo, digamos assim, e que já conheciam de longa data aquelas

pessoas, pouco me era perguntado. Muitas vezes ficava a cargo de minha orientadora

me apresentar. Ou outras vezes, as perguntas sobre mim não me eram dirigidas e sim

eram dirigidas a ela. Houve sim momentos em que era questionado sobre mim mesmo e

sobre meu trabalho, mas foram poucos. O que, na verdade, recordo mais são as

35

perguntas do tipo “e aí tá gostando daqui?”; “o que tá achando da floresta?”; “já tá com

vontade de ir embora?”; “tá com muita saudade da cidade?”...

Já no outro momento em fiquei sozinho, aí sim era eu quem respondia por mim

mesmo. Apesar de na maioria das vezes ouvir “ah, tu tá andando com a Mariana, né?

Entra aí, vamos tomar um café e comer beiju...”, ou ainda “quero te apresentar,

compadre, esse rapaz, tá andando esses rios com a Mariana...”. Mas depois desses tipos

de apresentações, eu me pronunciava, e em outras oportunidades também me

apresentava.

A tarefa de explicar o que se está a fazer para as pessoas é algo difícil. No caso de

Foote-White (1984), que tinha uma “explicação um tanto elaborada”, as pessoas davam

significados diferentes ao seu trabalho de acordo com a explicação que ele mesmo

elaborava. Ou seja, as pessoas iam elaborando pari passu a impressão que ele estava a

passar, a significação do que ele representava e o que estava fazendo. “Descobri”,

conclui Foote-White, “que a minha aceitação no bairro dependia muito mais das

relações pessoais que desenvolvesse do que das explicações que pudesse dar” (1984, p.

79). No meu caso, a confiança, então, que eu lograva entre aqueles moradores dependia

também da referência da minha orientadora. Creio que em algum momento, talvez, foi

perguntado a ela sobre a minha presença sem que eu estivesse por perto.

É notável o conceito de “indivíduos-chaves” que Foote-White usa para designar

aquelas pessoas que têm importância crucial para o entrosamento em grupos ou

organizações sociais. Ele diz ser relevante, pois assim não é necessário explicar-se para

todas as pessoas uma por uma. As informações que se dão a esses tipos de líderes se

difundem, por isso também é importante que se forneça informações completas a eles

(Ibidem, p.80). Esses líderes podem vir a ser verdadeiros colaboradores da pesquisa,

com quem podemos discutir mais abertamente sobre o andamento, duvidas e confusões

do trabalho. A posição de líder permite observações mais apuradas do que está ao redor,

já que, de algum modo, por razões determinadas, eles têm muita aceitação em seus

meios, são sempre bem conhecidos e conhecem todo mundo, conversam com outras

pessoas importantes em seus espaços de vivência. Então a ligação com eles implica uma

aceitação maior dentro dos grupos familiares, por exemplo. Mas o cotidiano também o

insere, através da repetição das pessoas verem você todos os dias fazendo o mesmo

trajeto, indo às mesmas casas.

Em relação a isso, eu diria que em minha estadia na Restauração a figura de seu

Peba me foi muito importante. Primeiro porque eu fiquei instalado em sua casa por mais

36

ou menos dez dias seguidos. E depois o Seu Peba foi essa espécie de líder em minha

pesquisa, de certo modo. A partir dele conheci outras pessoas importantes de serem

entrevistadas, pessoas que muitas vezes visitavam a sua casa, já que seu Peba é bem

conhecido e querido naquela vila. Realmente as informações que eu lhe dava sobre

mim, muitas vezes, eram repassadas para vizinhos. Além disso, Seu Peba representou

uma fonte de conhecimentos sobre a floresta e sobre a criação daquela Reserva.

Foote-White ainda menciona algo sobre um difícil adentramento nos assuntos

locais. O autor diz que a partir de um certo momento ele aprendeu a tomar parte das

discussões de rua, porém não em todos os assuntos. O seu conhecimento sobre baseball

o ajudou a ter participação nas conversas (no meu caso foi o futebol).

Igualmente, há uma passagem no seu texto que muito me interessou, pois que tem

muita relação com a minha pesquisa. “Se envolver e participar de mais de um grupo

pode complicar o trabalho”, alerta Foote-White (1984, p.84). Desde a chegada na

Restauração, e até mesmo antes de ir a campo, eu sentia um pouco de medo desse tipo

de coisa acontecer já que estava trabalhando com um estudo de conflito, porém não

ainda exatamente deflagrado, entre grupos que afirmam identidades desiguais e que

afirmam também direitos territoriais diferenciados, embora espacialmente sobrepostos.

Sentia temor que as pessoas me olhassem de forma estranha ou com desconfiança de

que eu tomasse partido mais de um lado do que de outro, que colocasse um grupo contra

o outro. Exatamente por esse tipo de situação, penso eu, que algumas pessoas não

falavam, algumas falavam bem pouco, outras já pediam para que eu não gravasse as

conversas. Com efeito, tinham razões para ficarem desconfiadas. Eu estava a maior

parte do tempo na vila, onde os brancos, digamos assim, estão. Porém, de vez em

quando convivia com alguns integrantes dos Kuntanawa, juntamente com a minha

orientadora, que tem uma ligação muito estreita com o grupo. E as pessoas da vila

tinham esse conhecimento. Até porque, preciso muito afirmar, não existe uma oposição

muito voraz entre os dois grupos. Seu Peba, por exemplo, tem uma amizade muito

grande com Seu Milton, o patriarca e cacique dos Kuntanawa, são pessoas muito

próximas que, afinal, lutaram juntas pela criação daquela Reserva8.

Os Kuntanawa, por seu turno, também podiam ter suas razões, mais ainda do que

os moradores da Vila, para suspeitarda minha pessoa, principalmente pelo fato de eu ter

passado a maior parte do tempo conversando e morando do “outro lado do rio Tejo”.

8Sobre o processo de luta e conquista da Reserva Extrativista do Alto Juruá, consultar Carneiro da Cunha

e Almeida (2002).

37

Mas creio que posso ainda indicar duas coisas, uma de cada “lado”, que afirmam de

uma forma sucinta o que estou tentando esclarecer.

Por algumas vezes via, na vila, que algumas pessoas não hesitavam em conversar

comigo, mas evitavam alguns assuntos, exatamente o que estava ligado à sobreposição,

preferiam não falar muito. Houve mesmo uma pessoa, moradora da vila, que deixou

bem claro que não estava muito segura e que, na verdade, estava com medo de que o

que ela me dissesse gerasse alguma confusão.Eu, sem muito saber como agir, acabei

falando que na verdade eu não estava ali para fazer esse tipo de coisa, e deixei bem

claro que o meu interesse em estar por mais tempo na vila era que a opinião e as

argumentações dos “brancos” para a minha pesquisa eram muito relevantes. Daí,

expliquei um pouco o que aconteceu no caso dos Arara do rio Amônia, onde a

população extrativista da Reserva não foi corretamente incluída na discussão do

processo de demarcação daquela TI. Mesmo assim esta pessoa ainda se conteve por

alguns dias, e só aos poucos foi me revelando o que ela pensava e sabia sobre aquele

assunto. Isto, inclusive, entra em consonância com o que Foote-White aponta sobre as

respostas que vêm naturalmente após um tempo razoável de bom convívio, sem a

necessidade de interrogatórios formais ou informais.

Nessa mesma direção, o que aconteceu nos Kuntanawa foi algo mais complicado

de explicar. Posso dizer que, além de tudo, às vezes, achava que eu não era bem vindo à

aldeia Sete Estrelas, onde Mariana estava. Ela até tentou me explicar que não era bem

isso, disse que as lideranças mais novas do grupo são bem sóbrias até com ela mesma.

No final das contas,fui bem recebido, em especial pelo professor do grupo, de nome

Iraldo. Ele muito amigavelmente, assim que cheguei a sua casa, conversou comigo

sobre como era a vida na vila. Incrivelmente, o que ele me disse teve um efeito estranho

em mim. O mesmo mencionou algo como: “Wilian, a vida lá no outro lado do rio [na

vila] é triste, não é? É tudo parado, o pessoal lá é bem triste né?”. Tenho que dizer que

essas palavras me deixaram sem palavras por um momento relativamente longo, pois

realmente, talvez pelo fato de eu ter ficado sozinho na Restauração, como já expliquei,

sentia muita tristeza. Existia uma falta de interlocuçãona casa onde me hospedei quando

seu Peba ia para o roçado, e à noite a televisão era o centro de todas as atenções, fosse

novela ou programas evangélicos ninguém tirava os olhos daquele aparelho emissor de

imagens. Concomitante a isso, na aldeia acabava me sentindo bem melhor: lá, por

exemplo, não se via televisão até a hora de deitar e dormir, havia mais diálogo, mais

coisas para ver e fazer. Em contraste, na vila segue-se uma dinâmica de trabalhona

38

semana e de igreja aos domingos de manha, ou à noite nos dias de semana. Iraldo logo

me convidou para passar pelo menos uma semana na aldeiacom a seguinte

“reclamação”: “Wilian tu já passou mais de uma semana ouvindo os brancos... agora é

hora de tu ouvir e ficar um pouco mais com a gente... aqui tu ainda vai poder conhecer

muita coisa da mata...”.

Para término de minhas análises bibliográficas citarei agora o texto “De que lado

estamos?” de Howard S.Becker, que faz menção ao efeito de “bias” que o pesquisador

está sujeito a sofrer em seu trabalho de campo. Isto, inclusive, complementa o texto

comentado anteriormente, principalmente no que concerne ao meu medo de parecer

estar mais envolvido com um lado do que com o outro, como procurei explicar há

pouco.

Em seu texto Becker analisa mais apuradamente a situação do “bias” em casos

onde de alguma forma existem superiores e subordinados, ou seja, onde há uma relação

de poder e dominação em jogo e o pesquisador está sujeito a questionamentos a cerca de

sua influência e simpatia em relação ao grupo de subordinados, como muitas vezes

acontece. Ou seja, acontecer de o antropólogo sentir mais afinidade e se aproximar mais

de um determinado grupo do que de outro pelo fato de aquele ter menos poder,

privilégios, status, voz, do que este último. Em meu caso, na verdade, não há grupo

superior ou mais poderoso. Porém, existe claramente uma polarização mantida

politicamente a partir das distinções identitárias diariamente constituídas.

É difícil, por exemplo, fazendo menção ao texto de Becker e à realidade da

Reserva, situar-se, de algum modo, mais pendente para um dos lados (“brancos” e

“índios”). Tendo em vista a situação da Resex como um todo, os dois grupos estão

sendo prejudicados pelas mudanças que vem ocorrendo, o que engloba, de um modo

geral, o enfraquecimento dos ideais da Reserva e de suas instituições, derrubadas das

matas para pastagens de gado, caçadas predatórias e com fins comerciais9. Portanto,

tomar partido diante de alguns fatos era, para mim, impossível.

Entretanto, tenho que confessar que, por muitas vezes, diante das razões e

argumentos que ouvia dos não-índios – ou seja, diante de forma como este grupo lidava

com as mudanças em curso – me situava mais, mesmo que não explicitamente, ao lado

destes. Penso que os dois grupos também, ao mesmo tempo, se sentiram em algum

momento menos merecedores do que o outro em relação à minha presença. Nesse

9 Sobre o contexto contemporâneo da Reserva, consultar Pantoja, Costa e Postigo (2009), e

especificamente sobre pecuária na Reserva, consultar Apel (2013).

39

sentido, talvez os Kuntanawa tenham achado pouco o tempo que fiquei com eles – e

isso muito interessava a eles, já que eu estava pesquisando sobre algo que os envolvia

completamente – visto que, realmente, me instalei por mais tempo na vila. De toda

forma, talvez Becker tenha mesmo razão, pois é impossível não se posicionar de alguma

forma já que a pesquisa é sempre feita ouvindo um grupo em detrimento de outro(s), e é

esta versão, mais ouvida e explorada, que irá permear as análises do antropólogo.

Becker adverte que não há problema com este (inevitável) “bias”, desde que o

antropólogo explicite as condições em que a pesquisa foi feita e qual ponto de vista

acabou sendo privilegiado.

À guisa de conclusão

Boa parte do que acabei tratando neste trabalho, balizada por referências teórico-

metodológicas, é produto de interferências do subjetivismo que é intrínseco

aoantropólogo, assim como em todas as pessoas, em sua viagem de campo, como, por

exemplo, a noção de uma “vulnerabilidade” do antropólogo por ser de alguma maneira,

e inevitavelmente, envolvido por seus interlocutores em campo (Velho, 1984). Penso

que a vivência por certo tempo em um grupo social que não o seu constitui a maneira

mais fiel e interessante de se apreender a cerca de aspectos coletivos e individuais que

jamais serão descobertos rapidamente, sem observação e convivência, sem esforço em

aprofundar para ver além da superfície dos acontecimentos. Ao ler alguns desses textos

que citei, senti que ficaram lacunas em minha pesquisa. Foi como se eu tivesse deixado

de observar e conhecer mais do que poderia. Todavia, vejo que a minha experiência de

campo rendeu muito mais do que eu tinha levado como objetivos fechados e

determinados teoricamente.

40

CAPÍTULO 2 – BREVE HISTÓRICO DA CRIAÇÃO DE UNIDADES DE

CONSERVAÇÃO: OS DIREITOS DA NATUREZA E DE POPULAÇÕES

HUMANAS

Neste capítulo irei expor as razões que historicamente deram suporte à ideia de se

resguardar espaços especiais para conservação da natureza e quais efeitos essas ações

conservacionistas surtiram em países do hemisfério sul.

Para abordar esta temática utilizarei, principalmente, a leitura que fiz do livro “O

mito moderno da natureza intocada”, de Antônio Carlos Diegues(2001), pelo fato dessa

obra conter em si um histórico sucinto das iniciativas que levaram à política de proteção

de áreas naturais para proteção de “áreas naturais”. Mas esse trabalho se torna

importante, para o nosso caso, também porque Diegues, analisando historicamente o

advento da ideia de conservação da natureza, vai criticar a tragédia que foi gerada em

países da América Latina a partir da importação do modelo americano de criação de

espaços de preservação da natureza. Em seguida, tratarei um pouco da criação de

Unidades de Conservação no Brasil e finalizarei o capitulo me detendo um pouco na

criação da Reserva Extrativista do Alto Juruá.

De onde surgiu a ideia de Unidades de Conservação da natureza?10

Inicialmente, “(...) as áreas naturais protegidas se constituíram em propriedade ou

espaços públicos” (Diegues, 2011. p.11). Esses espaços eram como refúgios do homem

urbano-industrial dos Estados Unidos, onde ele tinha momentos para apreciar e

reverenciar a natureza selvagem. É interessante pensar nessa espécie de isolamento

temporário ao qual o homem urbano-industrial anseia tanto, pois não são poucos os

exemplos que ainda temos a cerca desse tema, sejam aqueles mais próximos ou os mais

distantes de nós. Proximamente teríamos donos de pequenas ou grandes terras usadas,

na maioria das vezes, como lugares de veraneio, fazendas, chácarasou colônias visitadas

pelos donos apenas em finais de semana ou em períodos de férias. Ao longe teríamos

um bom exemplo nos norte-americanos ou europeus que vão visitar os melhores

“lugares selvagens” da África ou da América Latina, verdadeiros “parques amostrais”

de algo que ainda é. A propósito, o historiador indiano RamachandraGuha (2000), de

forma bem elucidativa, cita exemplos do que estou tentando precisar:

10

Como será visto, esta sessão está centralmente apoiada na leitura do trabalho de Diegues (2001).

41

Cinco maiores grupos sociais alimentam a conservação da vida selvagem no

Terceiro Mundo: em primeiro lugar estão os moradores das cidades e turistas

estrangeiros que tomam algum tempo de férias para visitar o mundo

selvagem. Seus motivos são diretos: prazer e recreação. O segundo grupo são

as elites governantes que veem na proteção de um animal (o tigre, por

exemplo) a veneração de um símbolo de prestígio nacional. O terceiro grupo

é formado pelas organizações ambientalistas internacionais, como IUCN e

WWF, que trabalham para “educar” os indivíduos nas virtudes da

conservação biológica. O quarto grupo é formado pelos funcionários dos

serviços de parques. Ainda que uma minoria deles esteja motivada pelo amor

à natureza (ao menos na Índia) a maioria deles está motivada pelos

privilégios que podem extrair (viagens ao exterior, projetos). Finalmente, o

ultimo grupo é o dos biólogos que acreditam na importância da vida

selvagem e na preservação das espécies por causa da “ciência”. (p. 82)

De toda forma, quando pensamos ainda as áreas de proteção da natureza nos

países tropicais como um modelo importado dos EUA em meados do séc. XIX,verifica-

se uma incompatibilidade principalmente no que diz respeito às populações indígenas

ou não indígenas residentes das florestas.

Dieguesaborda o fato de se ter criado mitos como o da “natureza selvagem

intocada”, ou de que a constituição de espaços públicos (geridos por institucionalidades

propriamente ditas) em sobreposição aos espaços comunitariamente administrados

provocou muitos problemas e conflitos no que concerne a realidade dos países do

“terceiro mundo” que importaram o modelo estadunidense. A realidade desses países é

diferente exatamente pelo motivo de que existem ou existiam moradores tradicionais

desses espaços naturais “que desenvolveram formas de apropriação comunal daqueles

espaços e recursos naturais” e que “foram capazes de criar engenhosos sistemas de

manejo da fauna e da flora, digamos assim, protegendo, conservando e até

potencializando a diversidade biológica” (Diegues, 2001, p.11).

O autor faz uma cronologia que contextualiza momentos e fatores que

influenciaram a constituição das primeiras ações de proteção e conservação da natureza.

Assim, ele vai dizer, primeiramente, que a ideia de conservação da natureza é uma ideia

nascida nos EUA a partir da ascensão do “naturalismo reativo” que defendia a proteção

da natureza, da vida selvagem que vinha sendo ameaçada pela civilização urbano-

industrial. Para essa corrente a única maneira de dar essa proteção era mantendo o

homem longe da natureza. Aliás, o homem poderia apenas visitar a natureza,

verdadeiras ilhas paradisíacas dignas de admiração, e nada mais além disso. É relevante

42

que se entenda que nessa época os EUA já haviam exterminado quase que inteiramente

a população indígena que lá habitava. E o autor toca nesse fato. Com efeito, ao se trazer

o modelo de conservação da natureza norte-americano para os países do “terceiro

mundo”, instaura-se desde então um processo mais turbulento e conflituoso, tendo em

vista não só a diversidade ecológica, mas também a diversidade social e cultural, ou

melhor, a sociobiodiversidade do hemisfério sul. Ora, disso tiramos a mais importante e

interessante problemática: a criação dos Parques Nacionais no Brasil traz em suas

origens o ideal conservacionista estadunidense, o qual prezava uma natureza isolada e

distanciada do homem. A consequência disso foi a transferência dos habitantes das

florestas para outros ambientes, lugares que não eram compatíveis com seus modos de

viver e fazer, o que causou historicamente “uma série de problemas de caráter ético,

social, econômico, político e cultural” (Diegues, 2011, p. 14).

No entanto, a criação do primeiro parque dos EUA e do mundo, o Yellowstone,

em meados do século XIX, não indica que as ideias preservacionistas surgiram

exatamente naquele país. Na verdade, parece ter sido na Europa, a partir do início do

século XIX, onde primeiro começou a haver uma valorização muito grande do mundo

selvagem. Entre os fatores importantes que contribuíram para tal, estaria, por exemplo, a

relação de respeito que os naturalistas tinham com a “natureza intocada”, isto é, “áreas

selvagens não transformadas pelo homem”. Mas também, por outro lado, as

transformações e crescimento significativos da cidade inglesa em decorrência do

desenvolvimento do sistema industrial, que fez com que surgisse, de alguma forma, “um

sentimento antissocial ou antiagregativo” (Ibidem, p. 24). Isso tudo teria feito com que

uma parte da população, os que não participavam diretamente da produção agrícola,

tomasse a natureza para contemplação, “lugar de reflexão e de isolamento espiritual.”

Haveria também uma grande influencia dos românticos e dos ideais cristãos. Toma-se,

nesse caso, a “natureza selvagem” como o paraíso perdido. Percebe-se, contudo, o valor

estético do belo, algo que se tornaria um espaço que conduziria à reflexão, à

espiritualidade. Além do que, vê-se aí a ideia da natureza como fim recreativo para as

populações urbano-industriais. Toda essa influência chegou aos EUA.

No entanto, voltando à criação do primeiro parque nacional do mundo, o

Yellowstone não foi criado em uma região “virgem”, livre da habitação

permanentemente humana. Naquele território estavam alguns grupos indígenas. Isso é

reforçado pela crítica ao conceito de wildernesscomo uma forma de etnocentrismo, pois

o modelo de parques nacionais que chegou aos países da América Latina é o mesmo que

43

não levava em conta as relações que as comunidades tradicionais tinham com a

natureza. Isso, de alguma forma, envolve o que Guha fala sobre o surgimento da

biologia da conservação, no final do século XX, e o aparecimento da ciência florestal,

ainda no final do século XIX. Os dois grupos científicos, segundo o mesmo autor,

mesmo temporalmente distantes, usaram o discurso de que os habitantes de áreas

naturais, “áreas selvagens”, representavam grande perigo para a biodiversidade de tais

locais, assim desprivilegiando o conhecimento das populações locais e também

retirando, através de um discurso científico monopolista, o direito de essas populações

permanecerem em seus lugares de moradia (Guha, 2000). Nesse sentido, é que surgirão

mais tarde, por exemplo, movimentos chamados por alguns de “ecologismo camponês”

e que criticavam esse “ambientalismo importado dos países industrializados que não

refletia as aspirações e os conceitos sobre a relação homem/natureza nos países do sul”

(Diegues, 2001, p. 38).

Essa separação que estamos a ver, entre homem e natureza, é algo que possui

raízes até mesmo no cristianismo, como foi antes mencionado, no que diz respeito à

ideia de “paraíso perdido”. Aquela dicotomia vem de algum modo, a originar uma

outra: ambiente natural/ambiente urbano. O ambiente urbano seria o espaço já

modificado e explorado pelo homem. O ambiente natural seria, por seu turno, digamos,

o paraíso que foi perdido pelo homem, a terra inviolada, intocada. Dessa forma, era

preciso proteger o ambiente natural, ou seja, o pedaço de paraíso que ainda restava.

No entanto, Diegues, assim como outros autores por ele citados (como Gómez-

Pompa e Kaus), contra argumentam que há um grande equívoco nessas ideias, pois os

habitantes rurais, ou seja, moradores desses espaços naturais têm visões distintas. Eles

não tornam a natureza um objeto, a floresta não é uma selva. É a casa onde se vive.11

“O

termo conservação pode não fazer parte de seu vocabulário, mas é parte de seu modo de

vida e de suas percepções das relações do homem como a natureza”, defende Diegues.

E ainda seguindo esse viés, aquelas populações chamadas de tradicionais ou

aborígines (sejam elas indígenas da América do Norte ou da América do Sul, ou

também as populações extrativistas, pescadores, castanheiros, caçadores, entre outros)

detêm saberes e técnicas relativas às suas realidades, e também possuem suas mitologias

e simbologias. Essas duas formas de apreender a realidade, diz o autor, não são

11

Na antropologia atual, o tema das relações entre natureza e cultura, ou melhor, o tema das relações de

alteridade tal como se colocam em sociedades indígenas, mas não só, é um campo de pesquisas bastante

produtivo. Ver, por exemplo, Viveiros de Castro (2005), a seguir citado.

44

separáveis, são praticados conjuntamente. Existem ciclos, calendários, determinações da

lua, entre outras simbologias, que indicam quando se deve pescar, caçar, plantar e

colher... No entanto são saberes excluídos pelo rigor científico-acadêmico, coloquemos

assim. Ou seja, são cosmologias e saberes tradicionais que não foram legitimados e nem

mesmo passaram pelos limiares dos saberes institucionalizados e, portanto, não são

reconhecidos como ciências (Foucault, 2005).

Vivência e Preservação: as ciências e práticas de populações locais aliadas à

preservação dos recursos naturais

Nesse sentido, pode-se dizer que é necessário prescindir um pouco das “velhas

categorias” do pensamento ocidental para, além de tudo, compreender as “taxonomias”,

ou melhor, o conjunto de classificações, digamos assim, das sociedades indígenas e

sociedades tradicionais, ou seja, populações ribeirinhas, agroextrativistas, pescadores

artesanais, “que desenvolveram modos de vida particulares que envolvem grande

dependência dos ciclos naturais, conhecimento profundo dos ciclos naturais,

conhecimento profundo dos ciclos biológicos e dos recursos naturais...” (Diegues, 2011

p.14).

Tocando nesse viés, aproveito o momento, pois penso que será interessante

comentar dois textos que fazem uma abordagem sobre o assunto. Trata-se, em um

primeiro momento, de algumas importantes questões que podem ser suscitadas pelo

“perspectivismo ameríndio ou a natureza em pessoa” do antropólogo Eduardo Viveiros

de Castro (2005). E depois podemos relacionar nessa discussão o texto “Ecologia e

Cosmologia” do antropólogo francês Philippe Descola (2000).

É comum vermos uma concepção um tanto quanto errônea a respeito dos povos

indígenas em relação à natureza sendo difundida e comentada não só por pessoas leigas,

mas também, e isso é bem pior, por estudos antropológicos “tributários de um

pseudodarwinismo” (Viveiros de Castro, 2005, p.31), que vê de maneira simplista e

orgânica a relação entre povos indígenas e a natureza. De maneira que, como

entendemos a natureza como o oposto de cultura, e dentre tantas outras dicotomias

(animalidade como oposto à humanidade), essas populações são tidas como algo

organicamente natural (ou sobrenatural). Podemos entender isso melhor pensando um

pouco mais sobre os nossos modos de conhecimento.

É entendido que o conhecimento da sociedade ocidental está pautado em muitas

noções de divisão, ou ainda melhor, de concepções dualistas, dentre as quais, natureza e

45

cultura. Percebe-se que quando nós operamos com esta divisão, de alguma forma nós

não fazemos parte da natureza, pois somos seres da civilização que, portanto, têm

cultura. Assim, a sociedade ocidental tenderia a não perceber as populações indígenas

como seres que portam cultura. O argumento para essa visão assentar-se-ia na ideia de

que os povos indígenas estão em uma constituição plenamente natural, e nunca social,

com a natureza. Talvez, eu possa estar caindo em erro, mas é como se o índio fosse

parte de uma “mata virgem”, fizesse parte da fauna, não exercendo função alguma

naquele espaço que o distinguisse gradual e efetivamente – como nós o fizemos – da

composição “natural” da qual faz parte, ou seja, ele não sendo um ser social.

Eduardo Viveiros de Castro (2005), nesse sentido, vai defender a posição de que

as nações indígenas, na verdade, tem uma história de evolução e transformação

associada à natureza, ou do que chamamos “natureza”. Ou seja, o que vemos hoje como

natureza não é, digamos, aquele “mito da natureza intocada”, e sim o resultado de

muitos processos naturais e, sobretudo, culturais, de transformação histórica, de

intervenção e atividade humanas naquele espaço. Porém, essa atividade humana é

infinitamente menos exploradora da natureza. Viveiros de Castro diz que, exatamente

nesse sentido, “nem natural, nem sobrenatural, a sintonia dos índios com a natureza é

social” (2005, p.32).

Philippe Descola toma esse mesmo caminho. Este autor também vai se referir à

diversidade amazônica como algo muito pouco natural, “podendo ser considerada, ao

contrário, o produto cultural de uma manipulação muito antiga da fauna e da flora”

(Descola 2000, p.150). Esse notável equilíbrio foi obtido a partir do conjunto de

princípios, saberes e técnicas desenvolvidas e aplicadas pelos povos ameríndios.

Descola mostra também, assim como Viveiros de Castro, que as cosmologias desses

povos também ajudaram a manter esse equilíbrio. Por exemplo, os Achuares da

Amazônia Equatorial, segundo Descola, acreditam que, assim como os humanos, parte

das plantas e dos animais também possui espírito. Dessa maneira, os homens Achuares

não tratam a caça apenas como um animal a ser morto. Há uma relação de respeito

mútuo e de consciência de que tudo isso é uma relação complexa. Complexa no sentido

de que é exatamente por isso que a natureza não é tratada como mero objeto de

exploração. Para diferentes povos ditos tradicionais, a natureza é vista como um sujeito

de uma relação social. De maneira talvez um tanto romântica aos olhos científico-

ocidentais, seria como se toda a natureza tivesse sentidos como os seres humanos (e

quem é que sabe se não tem realmente?), como se ela sentisse, visse, ouvisse, falasse...

46

É notável, pois, a relação de afinidade que muitos povos estabelecem com os

animais, por exemplo. Como também, em sociedades de diferentes lugares, acredita-se

numa proximidade tão grande entre humanos e animais que os últimos podem torna-se

humanos e vice-versa. Ou seja, ao contrário do que os preceitos da cultura e ciência

ocidentais defendem, os povos ameríndios não compartilham dessa nossa ideia de

separação radical entre humanidade (cultura) e animalidade (natureza), preferindo a

percepção de que, na verdade, os animais têm consciência e espírito assim como nós.

Aliás, a forma visível dos animais pode ser apenas disfarce, e por isso esses povos

interagem social e respeitosamente com esses seres.

Concebe-se que, nesse âmbito, os dois antropólogos estão em confluência.

Viveiros de Castro vai entender que essa relação, de certo modo convergente entre os

povos indígenas e a natureza, é possível porque não há a divisão “nós somos a

sociedade e aquilo é a natureza”, ou “nós somos seres com alma, aqueles não o são”. O

que há é uma cosmologia que se assenta na reciprocidade comunicativa que faz com que

haja mais de um sujeito, ou melhor, mais de uma subjetividade.

O perspectivismo ameríndio é, nesse sentido, a ideia de que a subjetividade, assim

como a humanidade, não é monopólio dos humanos. Viveiros de Castro tenta, assim

penso, apontar que é preciso se ver como sendo o outro, de maneira que se veja outros

seres como portadores de subjetividade. De acordo com a lógica cosmológica desses

povos, que diz que no princípio dos tempos todos eram humanos (e não animais, como

reza a nossa cosmologia evolucionista), o que se percebe quando ele diz que animais

como a onça, por exemplo, se vê como gente, é que “a condição original comum aos

humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade” (Viveiros de Castro, 2005,

p.129). Nessa perspectiva todas as espécies veem a si próprias como humanas,

atribuindo, pois, a não humanidade às demais.

Outrossim, o autor diz que há uma diferença de perspectiva porque apesar de

todos poderem se ver como humanos, os corpos são distintos e o ponto de vista está no

corpo, ou é dado por suas afecções. Nesse sentido, o autor frisa: “os ameríndios

imaginam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do

cosmos.” (Viveiros de Castro, 2005, p.131). Afinal, o texto de Viveiros de Castro tenta

demonstrar que a partir do ponto de vista indígena, ou usando as próprias palavras do

autor, das ontologias e epistemologias dos povos indígenas, podemos ou, talvez, até

devamos, repensar as nossas próprias ontologias e epistemologias.

47

É nesse viés que podemos compreender que a retirada de populações locais que

têm uma relação muito íntima com a natureza, digamos assim, de seus territórios pode

ser bem problemática. Sejam seringueiros, indígenas ou ribeirinhos, todos têm uma

maneira peculiar de se apropriar e gerir seus territórios de forma a manter equilíbrio e

eficiência no uso dos recursos naturais. Possuem uma maneira distinta de perceber e

conviver com a natureza a partir de outras técnicas, categorias e pontos de vista. Dessa

forma, como vimos anteriormente, a retirada de populações que vivem em florestas para

conservação da “natureza pura” causa impactos sociais, culturais e naturais.

Adianto, para melhor entendimento, que os seringueiros ou agroextrativistas que

moram, por exemplo, na Reserva Extrativista do Alto Juruá, são historicamente

populações que retiraram da natureza, de modo a causar baixo impacto ambiental, o seu

sustento. Conhecem extensivamente a floresta, já que historicamente as gerações mais

velhas desenvolveram o conhecimento sobre a mesma através da experimentação, da

vivência na mata, da convivência e trocas culturais e científicas com povos indígenas.

Este conhecimento e saber tem sido repassado ao longo das gerações sucedâneas,

embora o contexto onde isto é feito esteja em mudança constante. Isso quer dizer que o

uso dos recursos, seja na exploração de estradas de seringa, na abertura de roçados, na

caça e na pesca, na coleta de outros recursos, tende a respeitar determinadas normas,

evitando-se, por exemplo, caçar e pescar mais do que o suficiente. É interessante que

muitas vezes as proibições estão apoiadas em “mitos” e tabus. Há exemplo de animais

que não devem ser consumidos sob risco do caçador ficar empanemado (“azarado”,

poderíamos dizer). Além disso, há, já com a Reserva criada, o Plano de Utilização que

contém regras de acesso e uso dos recursos naturais que são estabelecidas pelos próprios

moradores da Reserva, formalizando de alguma forma o antigo direito costumeiro

(Carneiro da Cunha e Almeida, 2002).

Para colocar mais um pouco dessas questões em destaque, quer dizer, a existência

de Unidades de Conservação (UC) em territórios já habitados e, diga-se de passagem,

conservados por moradores tradicionais, irei, no próximo momento, por em discussão

um pouco da história de criação de UCs no Brasil.

As Unidades de Conservação no Brasil: Um breve histórico

Quero agora me deter num texto bem conciso de Henyo Trindade Barreto Filho

(2004) que trata de uma contextualização histórica e sociológica das políticas

ambientais através da configuração de UCs de Proteção Integral no Brasil. É importante

48

este momento, posto que estou introduzindo um pertinente ponto do meu trabalho.

Citando outro autor, José Augusto Pádua, Barreto Filho diz:

A defesa do meio ambiente natural não se justifica por motivos éticos ou

estéticos universais, mas, sim, pela sua importância para a construção

nacional, para a sobrevivência e desenvolvimento da sociedade brasileira. O

que estava em jogo era ‘o valor instrumental da natureza para a sociedade

nacional’, os recursos naturais sendo definidos como ‘o grande trunfo para o

progresso futuro do país’. Daí porque deveriam ‘ser utilizados de forma

racional e cuidadosa e não de acordo com as ‘práticas e tecnologias

rudimentares herdadas do passado colonial’ (Barreto Filho, 2004, p.53).

É a partir disso, então, que devemos entender as primeiras ações que visavam

regular a “apropriação dos recursos naturais e criar reservas - entre as quais, Parques

Nacionais no Brasil. Essas propostas foram feitas, via de regra, ou por cientistas

estrangeiros (...) ou por brasileiros com formação acadêmica e científica no exterior”

(Barreto Filho, 2004, p.54).

Nos fins do século XVIII, a coroa portuguesa resolveu “fomentar o

conhecimento sobre as possibilidades das floras local e exótica das colônias” (Ibidem,

p.54). Nesse sentido Portugal tomou duas resoluções na carta régia de 07 de novembro

de 1798. As duas resoluções diziam respeito à organização de espaços botânicos,

“voltados para o intercâmbio de plantas úteis à economia portuguesa” (Ibidem, p. 54),

dirigidos às capitanias do Pará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e São Paulo. Já entre

1817 e 1818, Dom João VI baixou dois decretos, ambos determinando sumamente a

preservação da vegetação próximas de rios e riachos ameaçados de secar. Por essa

época, a realeza estava assustada pela ideia de uma crise ecológica na colônia. E

realmente, em anos posteriores ocorreram secas como a de 1833, que fez com que fosse

decretada uma Reserva de Florestas, e a de 1844, que fez com que fosse proposta a

desapropriação de terras particulares para serem reflorestadas, exatamente no que diz

respeito às áreas próximas a rios ou outros cursos d’água. Já bem posteriormente, o

espaço de tempo entre as décadas de 1920 e 1930 “caracterizou-se por uma enorme

produção legislativa e pela criação de um conjunto de instituições vinculadas à gestão

dos recursos naturais” (Ibidem, p.56). Justamente nesse espaço de tempo foram criados

dispositivos jurídicos, assim como a criação do Serviço Florestal, em 1921. E em 1934,

foi introduzido na lei brasileira...

... a categoria de monumento público natural, enquanto que o código florestal

introduziu a noção de área reservada reconhecendo naquele momento três

49

categorias básicas: Parques Nacionais, Florestas Nacionais, Estaduais e

Municipais, e Florestas Protetoras (2004, p. 56).

Esse conjunto de medidas fazia parte de um plano proposto e adotado no

primeiro governo de Getúlio Vargas que “objetivava tanto uma ordenação territorial

quanto uma estrita regulamentação do uso e da apropriação dos recursos naturais,

colocados sobre a propriedade do Estado” (Ibidem, p. 57). Esse fortalecimento do

domínio estatal dos recursos naturais indica exatamente que será o Estado que irá

decidir, por exemplo, como os recursos e os territórios serão usados e ocupados

posteriormente.

Nessa direção, Barreto Filho também assinala a criação de treze parques

nacionais entre 1959 e 1961. E, ainda em 1961, “foram criados mais de dez parques

nacionais. Somando-se estes às nove reservas florestais decretadas por Jânio Quadros na

Amazônia em apenas um dia, 25 de julho de 1961, temos aí um verdadeiro ‘boom’ de

criação de UCs de Proteção Integral” (Ibidem, p. 57). Algo do tipo só iria acontecer

mais tarde na Amazônia nas décadas de 70 e 80 do século passado. Neste sentido,

Barreto Filho diz: “o fato é que a partir de 1979 deu-se um grande impulso à criação de

novas UCs de Proteção Integral no país como um todo – e na Amazônia em particular”

(Idem, p.58). O antropólogo chama atenção para a grande contradição entre a grande

expansão das áreas de conservação, mas, ao mesmo tempo a expansão da fronteira

agrícola lançada para a Amazônia. Por isso o autor completa que, paradoxalmente, a

época em que se teve um grande crescimento de medidas conservacionistas “foi,

portanto, o mesmo contexto histórico em que o regime militar levou adiante as políticas

que têm sido responsabilizadas por efeitos sociais e ambientes deletérios na região.”

(2004, p. 58).

Em relação a essa visível contradição, o antropólogo vai atestar que nessas

ações conservacionistas se destaca a pretensão de gerir estrategicamente o território

nacional “visando um planejamento globalizante e integrado do desenvolvimento do

país, de caráter centralizado e hegemonicamente econômico, e à apropriação da

dimensão política do espaço, como forma de controle social” (2004, p. 58). Ou seja,

uma ação de dimensão militar e desenvolvimentista. Essa análise condiz com a

discussão que Diegues faz no seu já citado trabalho sobre a maneira historicamente

tecnocrática e autoritária do Estado brasileiro, através de uma legislação que favorece os

grandes grupos econômicos e seus projetos de exploração predatória da natureza, e não

as populações tradicionais residentes nesses territórios transformados em UCs, de lidar

50

com a realidade de políticas ambientais. Mais recentemente, o que Diegues diz sobre o

SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), por exemplo, é bem claro: ele

o classifica como um “sistema fechado, isolado da realidade do espaço total brasileiro,

que tem sido amplamente degradado e mal desenvolvido há décadas” (Diegues, 1996,

p.118).

O que estou tentando dizer, sobretudo, é que não se leva em conta a interação que

as populações residentes nesses ambientes naturais têm com a “natureza”, e nem mesmo

não se entende que o que chamam de “espaço natural” é na verdade um espaço

manipulado por elas há muito tempo, quiçá séculos ou milênios. É justamente a partir

dessa realidade que surgem, bem mais tarde, entre os anos 80 e 90, as reivindicações de

populações extrativistas, por exemplo, dos seringueiros amazônicos, de criação de

Reservas Extrativistas.

Reservas Extrativistas: uma proposta de preservação da natureza e autonomia dos

seringueiros

Para esse momento, acho que posso falar do que li no trabalho de Mary Allegretti

(2002), sendo que o que a antropóloga vem refletir, de modo muito geral, é o advento da

luta dos seringueiros. Ou melhor, como grupos de seringueiros que não possuíam força

econômica e política, ou até mesmo representação política, pelo menos até certo

momento, conseguem se inserir num contexto político mais amplo, quer dizer, o

contexto da política nacional e buscar um espaço que os permitissem discutir seus

direitos e seus caminhos. Assim, a autora faz uma descrição das etapas que antecederam

a criação das Reservas Extrativistas, ou seja, o processo que se desdobrou até a

elaboração de uma política que reivindicava a criação de áreas de proteção dos recursos

naturais e do direito de uso sustentável pelas populações nativas, tradicionais.

A autora dá enorme valor à figura do líder seringueiro Chico Mendes, como uma

das maiores lideranças da luta dos seringueiros pelo direito de posse das terras em que

trabalhavam arduamente. E realmente Chico Mendes tornou a causa dos seringueiros

conhecida não só nacionalmente (principalmente após sua morte o problema fundiário

dos seringueiros ganhou maior dimensão). Sabemos que boa parte do que o Movimento

dos Seringueiros conseguiu foi com a ajuda vinda do âmbito internacional.

É interessante notar que o movimento seringueiro, possuindo essa esfera da

consciência ambiental, está na nova ala de movimentos de lutas territoriais que o

antropólogo Alfredo Wagner de Almeida conceitua de “Terras Tradicionalmente

51

Ocupadas” (Almeida, 2006). Nesse texto Alfredo Wagner analisa o advento de novos

movimentos sociais desde 1970 e os processos de territorialização que lhe são

intrínsecos. Esses movimentos sociais, protagonizados por povos indígenas,

comunidades remanescentes de quilombos, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros,

castanheiros, pescadores, entre outros, estariam em uma outra “ala” dos movimentos

sociais, pelo fato de terem rompido com as bases e com o sentido de luta e associação

concernente às entidades sindicais, como também, esses movimentos têm outro aspecto

diferenciador: a incorporação de “fatores étnicos, elementos de consciência ecológica e

critérios de gênero e de auto definição coletiva” (Ibidem, p.21) nas suas “apresentações

reivindicatórias” frente aos poderes públicos.

Em relação ao descaso do Governo Federal para com os seringueiros da

Amazônia, durante o “Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros” em Brasília, em

1985, surge a proposta de criação de Reservas Extrativistas, como uma forma de conter

os conflitos territoriais e reconhecer o direito dos grupos locais.

As Reservas Extrativistas, de uma forma bastante interessante, foram uma ideia

inspirada na noção de Terras Indígenas que, grosso modo, seria um espaço onde se

poderia conciliar o uso da natureza, como fonte de vivência e subsistência, a partir de

formas tradicionais de ocupação espacial, sendo a União a detentora da propriedade

sobre o território juridicamente criado. Talvez aí sim, a ideia de sustentabilidade

realmente se concretizava, apesar do próprio termo não fazer parte, anteriormente, das

noções das populações tradicionais ou indígenas. Mas, de todo modo, as Reservas

Extrativistas surgem como um novo conceito diante do cenário de criação de Unidades

de Conservação, onde se concilia a necessária preservação da biodiversidade com a

manutenção dos modos de vida das populações locais. Nesse sentido, são áreas onde

essas populações poderiam assegurar seus direitos de uso, posse e acesso aos recursos

naturais e, portanto, viver naqueles territórios tradicionalmente ocupados por elas,

mantendo seus modos de subsistência e a sua cultura.

Portanto, assinalo que a ideia da criação de Reservas Extrativistas se sobressai

pelo fato de unir a conservação da natureza com o respeito às populações extrativistas e

as suas especificidades culturais, sendo uma alternativa interessante para a

sociobiodiversidade. Veremos isso claramente a seguir, quando estarei abordando um

pouco rapidamente a história de criação da Reserva Extrativista do Alto Juruá.

52

A Reserva Extrativista do Alto Juruá

Região situada no extremo oeste do Estado do Acre, o Alto Juruá é uma

extensa área de floresta amazônica com grande diversidade biológica, além da

diversidade étnico-cultural. Nesse complexo de florestas inclui-se o Parque Nacional

(PARNA) da Serra do Divisor, dezenove áreas indígenas e três reservas extrativistas, o

que forma um corredor de áreas protegidas, com marcante sociobiodiversidade. Vários

grupos indígenas e populações seringueiras, através dos tempos, convivem ali de modo

a misturar-se cultural e biologicamente (Carneiro da Cunha e Almeida, 2002).

Inicialmente, os seringais do Acre, como sabemos, sofreram um processo de

povoação e despovoação ao mesmo tempo. Refiro-me ao massacre de vários povos

indígenas no final do século XIX para instalação da empresa seringalista no Acre

(Carneiro da Cunha e Almeida, 2002). Houve uma parcial despovoação indígena, mas

também houve o contrário: levas de nordestinos trazidas para os seringais acreanos para

trabalhar na extração de seringa, principalmente a partir da década de 1880. Considere-

se que o contexto era de crescente demanda internacional por borracha para atender a

indústria automobilística, e para os seringais era necessária uma grande quantidade de

mão-de-obra.

Os seringais, portanto, foram povoados principalmente por populações

migrantes do Nordeste brasileiro, sendo que muitas das famílias formadas eram

constituídas por casamentos interétnicos entre os chegantes e os povos nativos,

notadamente mulheres indígenas capturadas nas expedições armadas que ficaram

conhecidas como “correrias” (Wolff, 1999 e Pantoja, 2008). Tal como um campesinato

florestal (Almeida, 1991), as famílias de seringueiros exploravam os recursos naturais

com sua própria mão de obra e dentro de uma lógica de venda (a borracha) e consumo

(os demais recursos: caça, pesca, madeira etc). Embora subordinadas ao “barracão” pelo

aviamento, por meio do qual o patrão recolhia toda a borracha produzida e vendia, em

troca, os artigos industrializados necessários à vida na floresta, os seringais eram

dotados de expressiva vida social (festas, adjuntos, passeios) e as famílias estavam

ligadas entre si por laços de amizade, compadrio e parentesco (Pantoja, 2008).

Muita coisa se passou em 100 anos, porém infelizmente não poderei abrir mais

espaço aqui para centrar historicamente ainda mais o leitor. O fato é que até os anos de

1980, no Alto Juruá, ainda não existia a Reserva Extrativista, sendo os seringais

dominados pelos patrões. Porém, em tal época os seringueiros já estavam se

53

organizando e já se articulavam por meio de sindicatos e, posteriormente, do Conselho

Nacional dos Seringueiros. Grandes reuniões chegaram a ser realizadas, como é o caso

do II Encontro dos Seringueiros, realizado na cidade de Cruzeiro do Sul, em 1988, e que

contou com a presença de quase mil pessoas (Pantoja, 2008). Como principais pautas de

reivindicação do encontro estavam o fim do pagamento da “renda”12

aos patrões, do

monopólio comercial da borracha pelos barracões e o fim da violência (punições físicas,

roubos nas contas, expulsão de seringueiros de suas colocações). Portanto, as

insatisfações, o sentimento de ausência de liberdade e autonomia por parte dos

seringueiros fizeram com que, no final dos anos de 1980, eclodisse um movimento de

lutas políticas, aliado ao movimento indígena, que desaguou na reivindicação da

Reserva Extrativista.

Podemos ver isso também, de modo mais detalhado, com a antropóloga Eliza

Lozano Costa (1998) que mostraque criação da Reserva foi antes de tudo protagonizada

pela ação do movimento social dos seringueiros. Este foicaracterizado pela resistência

às fortes exigências e imposições dos patrões seringalistas (donos dos seringais) em

relação aos seringueiros (responsáveis pela produção da borracha). Ainda segundo

Costa (1998),na década de 1970 ocorrem entre os seringueiros as primeiras relações

com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR). Com as primeiras reuniões vieram as

primeiras reivindicações que giravam em torno do pedido, por meio do sindicato, de

diminuição das dívidas dos seringueiros e também o fim do pagamento da renda já que,

na maioria das vezes, o patrão não cumpria com o que estava escrito no “contrato de

trabalho” como, por exemplo, abrir e cuidar das estradas de seringa. No entanto, os

patrões reagiram e começaram a cooptar pessoas (delegados) do sindicato.

O contexto era de desvalorização da Amazônia e de seus habitantes, e também de

crise econômica no país. A exploração do seringueiro torna-se mais forte já que o Banco

do Brasil começa a cobrar mais dos patrões por conta da baixa nos preços da borracha.

As cobranças em cima dos seringueiros tendem a aumentar, e passam a incluir ações

coercitivas com presença policial, invadindo as casas dos seringueiros e tomandosua

borracha e posses.

Um ponto que a autora coloca como algo de muito relevância é a questão do

carisma dos vários líderes, como Chico Ginu, delegado sindical de atuação destacada, e

também Antonio Macedo. A liderança de Macedo, a frente do CNS, fez com que a

12

Espécie de aluguel que os seringueiros eram obrigados a pagar pelo uso das estradas de seringa.

54

movimentação dos seringueiros crescesse de forma muito surpreendente. Juntamente a

isso, o assassinato de Chico Mendes em 1989, fez com que a luta seringueira se

fortalecesse ainda mais.

Em meio a uma grande turbulência que, tanto envolve as pressões ambientalistas

em cima do governo federal, e também a ameaça de Fernando Collor ganhar a eleição e

suprimir as lutas sociais, é lançada, já após a vitória de Collor, que, no entanto, não

tinha tomado posse, a proposta da Reserva Extrativista do Alto Juruá, que logo é

assinada pelo presidente José Sarney, que inclusive, aprova mais três Reservas

Extrativistas antes de sair do cargo de presidente.

Portanto, como já é sabido, em 1990 foi criada a Reserva Extrativista do Alto

Juruá, como fruto de muito trabalho e luta política dos próprios seringueiros,

protagonistas desse grande episódio que tentei, mesmo que sinteticamente, narrar para

que o leitor se situe dentro de todo o contexto que vem sendo apresentado até aqui, e

que será ainda visto mais a frente quando formos tratar do principal objetivo desta

monografia, qual seja, as sobreposições territoriais em curso na referida Reserva.

As sobreposições territoriais das quais pretendo tratar mais a frente são situações

que envolvem uma discussão e um processo que tem relação com as identidades étnicas

dos grupos, onde, como o leitor poderá ver, grupos indígenas julgados extintos ou tidos

como “assimilados”, “misturados” a outros grupos locais (no caso, os seringueiros de

origem nordestina), de alguma maneira ressurgem, como que algo intempestivo,

organizadamente para reivindicar reconhecimento étnico-territorial. Tratarei melhor

sobre o tema de etnicidade no próximo capítulo, através, principalmente, de releituras

de alguns teóricos. Este tema é amplamente relevante para podermos entender as

situações de superposição territorial entre Reservas Extrativistas e Terras Indígenas.

55

CAPÍTULO 3 – ETNICIDADE: O PANO DE FUNDO DAS SOBREPOSIÇÕES

TERRITORIAIS

Neste capítulo, como se percebe, irei falar sobre o tema da “identidade étnica”,

entendendo que o mesmo é como um pano de fundo da problemática das sobreposições

territoriais, ao menos nos casos aqui considerados. Para abordar o tema, a forma que

adotei foi rebuscar leituras bem anteriores, ainda da época do já mencionado subprojeto

de pesquisa “Emergência Étnica e disputas territoriais na Amazônia”. Chega a ser um

tanto estranho reler algumas coisas que foram vistas no começo do meu contato com o

tema. De todo modo, quero de imediato aqui dizer que reproduzirei as leituras e

reflexões sistematicamente organizadas anteriormente a partir da temática da

“emergência étnica”, mesmo que algumas dessas leituras já não façam o mesmo sentido,

ou melhor, já não condigam com a evolução deste trabalho. Explico.

Com o passar de todo o estudo produzido no âmbito do projeto vinculado ao

PIBIC, fui adquirindo diferentes perspectivas sobre o tema da (auto)identificação étnica.

O que define um grupo étnico e quem faz parte de um grupo étnico? Quais as

atribuições para que um indivíduo seja incluso ou excluído de um grupo étnico? Foram

com perguntas como estas que começamos13

nossos estudos, seguindo depois com as

questões que estavam mais próximas, principalmente a partir do caso de auto

reconhecimento étnico dos indígenas Kuntanawa do alto rio Tejo. Buscarei, portanto,

incrementar a revisão das teorias da etnicidade com as quais tive contato com

informações e o conhecimento adquirido no trabalho de campo que executei na Reserva.

Finalmente, introduzirei um pouco da ideia de “indianidade” cunhada pelo antropólogo

Eduardo Viveiros de Castro que, de certa maneira, acabará por se apresentar como

contraponto das outras teorias da etnicidade, não exatamente como uma oposição

simples entre as mesmas, porém mais como uma reflexão alternativa para o assunto, e

também complementar.

Acredito que seja pertinente, antes de mais nada, esclarecer que precisamos tratar

com certa ressalva alguns dos conceitos ou termos que doravante poderão encontrados

recorrentemente ao longo deste capítulo, tais como “emergência étnica”,

“ressurgimentos étnicos” e “etnogênese” – todos referindo-se ao autorreconhecimento

étnicopor parte de coletividades até então tidas como não-indígenas. Digo isso porque,

13

Refiro-me aos seminários de pesquisa que, nos anos de 2011 e 2012, participei com Mariana Pantoja,

minha orientadora, e Thiago Pereira, meu colega de curso e que já defendeu monografia sobre tema afim

(Pereira, 2012).

56

de certa maneira, a aplicação desses termos a um conjunto de povos e culturas pode vim

a singularizar e substantivar um processo que se constitui historicamente, dando a falsa

impressão de que, nos outros casos em que não se fala de “etnogênese” ou de

“emergência étnica”, por exemplo, formas de autorreconhecimento estariam ausentes

(Oliveira, 2004, p.30). Então, tomemos esses termos como uma espécie de “convenção

conceitual”, já que podemos, enfim, dizer que esses são conceitos externos à realidade

mesma dos grupos que estão nesses processos de auto(re)afirmação étnica.

Destarte, não é meu objetivo neste terceiro capítulo, fazer uma análise extensa

ou apresentar um histórico sobre o conceito de etnicidade e seu uso na literatura

antropológica. Diferente disso, meu principal intuito é trabalhar um contexto básico

sobre a temática para abordar mais adiante a temática dos “ressurgimetos étnicos” e

consequentes sobreposições territoriais na Reserva. Mesmo assim, tentar-se-á

problematizar os próprios conceitos que serão mencionados, como feito acima. Ou seja,

fez-se necessário entender a questão da identidade étnica para poder então

problematizar as questões de diferenciação étnica concernentes às sobreposições

territoriais aqui tratadas. O conceito de etnicidade entrará, portanto, em discussão para

podermos entender melhor, de certo modo, as “motivações” que levam ao

(re)surgimento de identidades étnicas.

Etnicidade e “Emergência Étnica”

Poder-se-ia dizer que a discussão sobre emergência étnica remonta a antigos

debates sobre etnicidade. Max Weber (1984[1922]) em “Relações comunitárias

étnicas”,discutia as formas de agrupamentos humanos, ou melhor, a formação de

comunidades étnicas ou coletividades étnicas, ou ainda grupos étnicos. O sociólogo

quando trata das relações comunitárias étnicas toma o conceito de etnicidade como uma

concepção que sobrepuja a ideia de cultura e de raça.

Weber é realmente importante para a discussão, pois o mesmo discute a identidade

étnica, ou seja, a etnicidade, como sentimento de pertencimento a um grupo

determinado, de forma que ela (a identidade étnica) não se resume aos traços físicos,

raciais, isto é, traços biológicos, e também aos aspectos culturais. O mesmo autor diz

que o vínculo entre pessoas que se reconhecem como de uma mesma comunidade pode

estar além dos traços externos. Isto é, laços sanguíneos, herança biológica e valores

culturais não são suficientes tanto para que as próprias pessoas se concebam como um

57

grupo étnico, como para este ser identificado como tal14

. Por conseguinte, Weber lança

mão da ideia de sentimento de pertença, ou pertencimento, ou ainda de parentesco de

origem. É realmente interessante a perspectiva weberiana no sentido de ser quase

“profética” em relação ao tema que estamos tratando, como poderemos perceber mais a

frente.

O que penso ser muito importante de se reter do texto de Weber é o âmago de

subjetividade que ele expõe quando coloca em questão a ideia de “sentimento de

pertencimento” acima dos laços biológicos e sanguíneos para definir grupos étnicos. Ou

seja, o sentimento de pertencimento a uma origem ancestral, a ideia de uma

descendência comum que reúne indivíduos em um grupo, é o que constitui, em Weber,

um grupo étnico. Esta formulação recobre, portanto, a existência de grupos que

agrupam pessoas de diferentes origens e “disposições raciais” mas que têm o sentimento

e crença de pertencer a um mesmo grupo ancestral.

O que marca a diferenciação étnica não é, de modo algum, imóvel. As situações e

o tempo histórico não sendo fixas acabam por mudar os elementos usados como

contrastivos. Penso, nesse sentido, que o que promove a diferenciação são também

circunstâncias históricas bem específicas, como é o caso dos Kuntanawa do Alto Rio

Tejo, no qual, posso aqui adiantar, a auto-afirmação indígena se deve a um conjunto de

fatores que, combinados, formaram uma situação de diferenciação em relação aos

agroextrativistas para, mas não somente para isso, lograr o direito de preservar a

floresta. Veremos melhor mais adiante.

Mas continuando a nossa análise teórica, nesse mesmo viés, Fredrik Barth (1998)

vai criticar uma espécie de “tipo ideal” criado por uma determinada antropologia que

caracterizava de maneira simplificada grupos etnicamente diferenciados e que, por

assim dizer, reduzia o estudo dos grupos étnicos sempre aos mesmos conteúdos,

principalmente aos aspectos biológicos. Por outro lado, Barth vai argumentar

principalmente contra a ideia de que compartilhar uma mesma cultura seria a única ou

principal condição da etnicidade. Para Barth, o grupo étnico é o sujeito da etnicidade, e

as diferenças culturais não conduzem por si só à formação de grupos distintos

(Barth,1998). O grupo étnico é, na verdade, uma forma de um coletivo organizar-se

socialmente e demarcar suas fronteiras de pertencimento. Assim, para além de fatores

externos e culturais, mais importante é visualizar os processos de interação social que

14

Interessante, pois essa acepção weberiana entra em confluência com o que veremos adiante com

Eduardo Viveiros de Castro.

58

produzem e mantém as identidades e diferenças étnicas, e simultaneamente fronteiras

étnicas entre os grupos. Vê-se, na perspectiva de Barth, que existe uma dinâmica entre

os grupos etnicamente diferenciados; a análise de Barth mostra que os fluxos, a

mobilidade e os contatos interétnicos acarretam processos e critérios sociais de inclusão

e exclusão entre os grupos, construindo e mantendo, assim, as fronteiras étnicas.

A ideia da construção de fronteiras étnicas dá um certo apoio à nossa discussão no

seguinte sentido: “ver” no meu trabalho de campo a formação diária de fronteiras

demarcando os dois grupos envolvidos na sobreposição territorial que se faz presente no

alto rio Tejo, na Reserva. O uso das aspas se deve ao fato da criação destas

fronteirasnão ser assim tão perceptível já que as pessoas continuam convivendo quase

que normalmente. Quer dizer, continuam caçando nos mesmos lugares, pescando nos

mesmos rios e lagos, continuam conversando amigavelmente, continuam indo jogar

futebol todas as tardes. Mas em alguns momentos os discursos de contrasteétnico se

revelam, e com eles as fronteiras – físicas e/ou subjetivas – que organizam as diferenças

entre os grupos. Seja quando alguém começa a falar que os Kuntanawa “comem e

estragam” demais o que caçam, seja quando alguns Kuntanawa falam que os moradores

da Reserva caçam e pescam de maneira ilegal, ou seja, em desacordo com o Plano de

Utilização, o que os moradores da vizinha vila Restauração também alegam em relação

aos Kuntanawa. Nestas acusações recíprocas a diferenciação étnica aparece em toda a

sua capacidade de explicitação de fronteiras sociais. Para além de saber quem caça ou

não de maneira inadequada – se os agroextrativistas ou os Kuntanawa – o fato é que é o

Outro sujeito étnico que o faz.

É interessante que algumas vezes conversei com moradores da Restauração que

diziam que as desconfianças e preocupações tendiam a surgir quando apareciam órgãos

do Estado, como a FUNAI, associados a direitos etnicamente diferenciados, e neste caso

os moradores não indígenas da Reserva se viam em clara desvantagem. Nesses

momentos, diziam, é que a demarcação propriamente dita da Terra Indígena tornava-se

algo próximo, e as suas consequentes mudanças para a vida daqueles que não eram

indígenas mas viviam ou utilizavam a área pleiteada pelos Kuntanawa. Acredito que as

fronteiras – aqui tanto físicas quanto legais – estão sendo constituídas, de certa forma,

mais vagarosamente pelos moradores da vila Restauração. E diria que, para os

Kuntanawa, os tramites em busca da sua territorialidade específica tem uma outra

dinâmica, um outro ritmo. Pude perceber tanto em campo, como em conversas

posteriores com a orientadora desta monografia, que os Kuntanawa se mobilizam e se

59

articulam com mais facilidade e se saem mais facilmente das amarras de órgãos estatais,

diferenciando-se talvez justamente por uma certa autonomia. Os agroextrativistas, ainda

que nem todos, mas uma boa parte ainda vive muito imobilizada, presa aos laços de

dependência do Estado. Poderemos ver isso mais adiante. Continuemos pois a ver o

tema da etnicidade teoricamente.

Retornando a Weber, ele também via que os grupos étnicos eram agrupamentos de

pessoas que acreditavam compartilhar uma lembrança ou crença em uma mesma origem

ou descendência comum. Este autor apontou, além disso, que as comunidades étnicas

são também comunidades políticas. Há um sentimento político de pertencer a um grupo,

o que significa não sentir-se parte de outros, o que por sua vez leva ao estabelecimento

de uma diferença, diferença esta que tem na crença em uma origem comum e em

tradições compartilhadas seus sustentáculos. Isso tudo tem a ver também com o

estabelecimento de fronteiras.

Na sobreposição territorial entre os Kuntanawa e os moradores agroextrativistas

da vila Restauração, poderíamos talvez dar essa assertiva de que existe uma fronteira,

até certos limites, física, quer dizer, entre os dois lados do rio Tejo, e que é também uma

fronteira política que se estabelece através da afirmação da identidade étnica, indígena.

Quer dizer, o direito territorial diferenciado é garantido, ou pelo menos deve ser, pela

diferenciação identitária, pois o Estado prescreve que haja essa diferenciação, e que ela

deve ser mostrada externamente. É como que exigido que o índio se forje, se

(re)invente, como em casos acontecidos no Nordeste brasileiro, onde grupos indígenas

tiveram que provar a sua diferenciação étnico-cultural através da aprendizagem de uma

dança, o “toré”, que nem pertencia aos seus rituais (Oliveira, 2004).

Mas, enfim, a ideia é também entender que essa dimensão política da identidade

étnica dá-se no seguinte sentido: quando se fala em auto atribuição, autoafirmação da

identidade étnica, isso implica o reconhecimento formal e constitucional não só da

própria identidade étnica, mas também, claramente, implica a garantia do

reconhecimento territorial, do cumprimento do artigo 231 da Constituição Federal de

1988.

Talvez, possamos explorar essa questão pela perspectiva que o antropólogo João

Pacheco de Oliveira (2004) utiliza para abordar a problemática dos “índios do

Nordeste”, e com isso abordarei, afinal, o fenômeno das “emergências étnicas”.

60

Considerações sobre “emergência étnica”

Os chamados índios do Nordeste são, numa certa acepção, os primeiros índios

“emergentes”. O Nordeste brasileiro, sendo uma das regiões que a colonização

portuguesa mais explorou, teria tido sua população autóctone praticamente extinta.

Contudo, a pesquisa etnológica no Nordeste feita, a partir dos anos 90, por João

Pacheco de Oliveira e colaboradores vai em sentido oposto, e demonstra o que estamos

a tentar esclarecer aqui sobre os grupos étnicos como grupos políticos sob determinadas

condições.

Ao tratar da problemática dos “índios misturados”, Oliveira (2004) se pergunta

sobre como seria possível realizar uma abordagem etnológica dos “índios do Nordeste”.

Para construir sua análise, ele faz uso de leituras que se assentam em perspectivas

históricas, mas escapa de formulações como a de Eduardo Galvão (1979) quando este

autor lança mão de conceitos como o de “aculturação”, “mesclagem” e “mestiçagem”

nos seus estudos sobre os índios do Nordeste. Oliveira também critica vigorosamente a

concepção de Darcy Ribeiro (1986) quanto à forma de mencionar tais índios como

resíduos de uma população indígena que, por meio da “aculturação”, teriam se tornado

“mestiços” no contato com a população sertaneja local, e assim perderam não só as suas

tradições, mas também a língua. O resultado dessas análises é que os índios do Nordeste

foram paulatinamente sendo desqualificados e, até mesmo, esquecidos pela

antropologia.

Oliveira, entretanto, aponta que a população indígena do Nordeste sofreu dois

processos de territorialização. O primeiro ocorreu entre os séculos XVII e XVIII. Ou

seja, a época em que os povos nativos foram literalmente desterritorializados. O outro

processo data do século XX, e trata-se da instauração e reconhecimento dos direitos

indígenas. E é exatamente dessa configuração de criação de políticas governamentais

para a proteção, reconhecimento étnico e territorial que surgem os fenômenos de

emergência étnica.

Principalmente a partir do final dos anos de 1970, começam a aparecer no

Nordeste um grande número de casos de reivindicação de reconhecimento étnico-

territorial por parte de agrupamentos de pessoas de diferentes etnias (índios de

diferentes grupos, negros e brancos), todos afirmando ascendência indígena. Em muitos

casos, como o dos Atikum-Umã, descrito pelo antropólogo Rodrigo Grunewald (2004),

61

a emergência étnica é acompanhada justamente pela ameaça que sofrem as

comunidades de perderem o seu recurso básico de vida: a terra.

Aos grupos que diziam ter ascendência indígena e reivindicavam seus direitos

legais, era imposto pelo Estado pré-condições para lograr o requerido reconhecimento

étnico-territorial. Especifiquemos com o exemplo dos Atikum-Umã (Grunewald, 2004).

A “etnogênese” Atikum

O antropólogo Rodrigo Grunewaldtoma como seu sujeito de pesquisa uma

comunidade indígena que se formou na década de 1940 – que se encontra na Serra do

Umã, que por sua vez, encontra-se no distrito de Carnaubeira, município de Floresta,

sertão pernambucano. O autor apresenta um trabalho feito em termos da temática da

etnicidade, no qual troca a noção de aculturação pela de “etnogênese”. Dessa forma, não

se visualizará perdas simplesmente, mas sim se perceberá a formação de novos grupos

étnicos a partir de descontinuidades históricas. De forma que o que o autor tenta

representar é o processo de constituição através dos tempos, por assim dizer, como

também da transformação de novos agrupamentos étnicos, como bem mostra a

passagem seguinte:

(...) O caso dos índios de Atikum-Umã mostra bem

esse processo; eles não são um caso de perdas que

um grupo específico sofreu até se tornar resíduo de

uma cultura aborígine prévia; ao contrario, trata-se

de um agrupamento de pessoas de diversas origens

étnicas (índios descendentes de diversos grupos

distintos, negros e brancos) que, ameaçadas de

perderem a terra (recurso básico) resolvem

constituir-se como comunidade indígena (...)

(Grunewald, 2004, p. 140)

Nesse viés, ele apresenta um conceito próprio, o conceito de “ilusão autóctone”,

em relação, de certo modo, ao erro de se querer pensar o índio como aquele sujeito que

guarda uma tradição aborígine, algo de certa forma até mesmo “intocada”, ou seja, uma

cultura nativa, original. Seu conceito defende a ideia de que “grupos indígenas surgem

situacionalmente da mesma forma que suas tradições podem ser situacionalmente

construídas”.(Grunewald, 2004, p. 140)

Entre os autores utilizados por Grunewald está Pierre Bourdieu, que trata do

conceito de “campo social”. Deste conceito, o autor retira para o seu contexto de

62

pesquisa a ideia de que não se pode pensar em passado e presente linearmente em

termos de identidades culturais, isto é, o reconhecimento de uma identidade coletiva

como tal existe a partir de uma longa e lenta elaboração coletiva. Tal elaboração é

proposta em termos de processos históricos, de maneira que se torna possível evitar a

ideia de uma “essência aborígine”, pois as identidades sociais são suscetíveis de

transformações ao longo do trabalho histórico. Nesse sentido cito aqui também, em

certa consonância, Marshall Sahlins, que chama atenção para “a realização prática das

categorias culturais em um contexto histórico específico” (Sahlins, apud Grunewald,

2004, p.148).

Destaca-se também o que o autor diz sobre “fluxos culturais”, que em resumo

sugere e ressalta o caráter processual da cultura, como também o conceito de interação

entre o transnacional e o indígena, o que será de extrema importância para se perceber

no caso dos índios de Atikum-Umã as combinações e as sínteses com a cultura local

através dos tempos. Ou seja, estou falando aqui das “misturas culturais” e também

“raciais” dos Atikum-Umã, como também de como esse mesmo processo levou esse

mesmo povo, na atualidade, a não ter muitos traços contrastantes da sociedade

envolvente.

O desenrolar dos processos de transformações históricas que levou a formação

do grupo de Atikum-Umã tal como se conhece e se reconhece hoje, tem como ponto de

partida o início dos anos 1940.

De certa insatisfação dos habitantes em relação aos seus direitos à terra (invasão

de gado, de fazendeiros e cobrança de impostos por parte da prefeitura de Floresta),

estes habitantes que tinham contato com os índios Tuxá, ficaram sabendo da existência

de um órgão governamental que criava reservas indígenas para “remanescentes

indígenas”. Então a partir disso começa-se a articulação para a busca desse direito. Um

grupo representante entra em contato como o órgão do governo, o Serviço de Proteção

aos Índios (SPI), que aceita reconhecer tais pessoas como indígenas, com tanto que, as

mesmas organizem um “toré”, para que aja um reconhecimento oficial da área indígena.

Enfim, o SPI em meados da década de 1940 vai até a serra para verificar a presença

indígena ali. Os Atikum que foram treinados pelos Tuxá conseguem então o seu direito

a terra, ou seja, é constituída a reserva indígena Atikum.

Faço aqui, sobretudo, uma ressalva em relação ao que vem a ser o “toré”. Esta

seria de certa maneira uma referência para o indício de um traço indígena, de acordo

com o SPI. O “toré” seria além desse objeto de domínio, ou seja, aquilo que é usado

63

pelo Estado para manter a “ordem” das reivindicações étnicas,é também, na verdade,

uma dança, uma tradição, dessa forma também uma construção cultural.

Observo aqui desde já o que no momento remete às considerações da etnóloga

Manuela da Cunha, que serão vistas mais adiante, que é o fato de que, de certa maneira,

é aleatória a escolha de traços retirados do “acervo cultural”, já que nem mesmo os

agentes culturais sabem o que vai ser escolhido para se contrapor e se organizar no

sistema. Contudo, estou me referindo à imposição do regime criado pelo SPI em relação

ao reconhecimento da etnicidadeAtikum.

Mas ainda em relação à imposição do toré, é pertinente a reflexão baseada

teoricamente em Bourdieu e Grignon, onde Grunewald discute a aceitação da

dominação exercida pelo órgão do governo, no caso dos Atikum, como uma possível

estratégia deliberada para o fim de conquistar um espaço próprio na sociedade. No

entanto, nesse mesmo momento, o autor dá importância à outra dimensão do fato: o ato

de buscar reconhecimento é também o ato de se reconhecer, pois se investe, todo o ser

social nas lutas de classificação.

Então se, por um lado, Grunewald cita autores que observam o posicionamento

político da afirmação étnica, por outro lado, alguns destes mesmos autores, como

Epstein (1978), defendem o lado não racional do fenômeno da etnicidade. A identidade

assumida por grupos étnicos pode existir, ou vir a existir, antes mesmo dos âmbitos de

organização política e cultural. Além disso, o autor bem esclarece que ao se tentar traçar

a história do grupo indígena em questão, não se busca traçar também a historia da

identidade cultural do grupo, já que esta é contextual, e até mesmo fluida, e desse modo

é situacional.

Etnicidade e território

O toré é o grande diferenciador que atua no contraste entre os Atikum e a

população envolvente. O toré, mesmo tendo muitos significados para diferentes

percepções, é finalmente uma tradição propriamente dita dos índios do Nordeste

brasileiro. Penso como é interessante observar que mesmo o toré sendo uma imposição

para este grupo, a mesma imposição tornou-se tradição e fator da identificação

étnica.De forma que a tradição do toré é tão relevante que se tornou uma espécie de

condição e classificação de quem faz parte e de quem não faz parte do grupo e da área

indígena. Ou seja, a existência de uma norma interna que inclui ou exclui aqueles que

não seguem o “regime”.

64

Se por um lado concordei em muitos aspectos com o autor, houve um momento

em que me soou estranha a sua discussão a cerca da identidade étnica dos Atikum como

algo que, pelo que observei (principalmente nas páginas 169 e 170), recairia em grande

parte para o âmbito essencialmente político e instrumental na busca por recursos. E isso

mesmo tendo o autor considerado durante o texto toda uma conjuntura epistemológica

que identificava a etnicidade principalmente em dois âmbitos, grosso modo: a percepção

do fenômeno étnico como uma possível inclusão e organização de grupos políticos,

como também a percepção da etnicidade em uma esfera que não é tão concreta e

objetiva.

Tudo isso é importante para podermos, enfim, mostrar a dimensão política que

possui a etnicidade. Oliveira (2004, p. 22) vai dizer então que pensar etnicidade implica

considerar que está em jogo a conquista de um território, e que este processo afeta o

modo como o grupo se reorganiza socialmente, afirmando uma identidade étnica

diferenciadora, criando formas de representação política próprias, redefinindo seu

controle sobre terra e recursos, e reelaborando sua cultura. Etnicidade tem assim uma

dimensão política e instrumental, para não dizer estratégica, que se apóia na crença

compartilhada numa ancestralidade comum para alcançar um objetivo: direitos, em

particular territoriais. Entenda-se, a partir do momento em que um grupo vem a público

demonstrar e afirmar seus valores culturais e sua identidade étnica, tal gesto já

pressupõe uma ação política, pois que o localiza na cena pública, estabelece fronteiras e

posições. Para Oliveira (2004), portanto, processos de emergência étnica são

fundamentalmente, embora não apenas, processos de territorialização.

No caso da reivindicação étnico-territorial Kuntanawa, há mesmo uma

reorganização sócio-política do grupo frente ao poder público principalmente. Eles

começam a apresentar de modo sublinhado coisas que, por vezes, já faziam parte do seu

dia-a-dia, como o uso da ayahuasca, por exemplo. Porém agora, buscam fazer-se

presentes cada vez mais noâmbito de tomadas políticas. Não estou certo se concordo

que este movimento poderia ser descrito como a instrumentalização da identidade

étnica. Talvez seja ainda mais importante dizer que o próprio processo de apresentação

e articulação política faz uma certa “dialética” com a subjetividade das pessoas do

grupo. Quer dizer, acontecimentos, como os festivais culturais organizados, promovem

uma força interna no próprio grupo.

65

Etnicidade e a dimensão política

Entretanto, ainda continuando a análise teórica relativa à etnicidade, prossigo

citando um pouco do que a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (1987) diz num

artigo em que trata do tema:

Em um primeiro momento, a etnóloga mostra um relato analítico, que é uma

interpretação preliminar do catolicismo brasileiro em Lagos no século XIX. O primeiro

ponto a ser tratado é, então, uma comunidade que se diz descendente de brasileiros

iorubanos em Lagos, capital da Nigéria. O trabalho dessa pesquisa consta em analisar o

âmbito da identidade étnica durante o período de formação da comunidade. Tal análise

será relacionada diretamente à presença constante da religião católica. Carneiro da

Cunha vai traçar todo um quadro de razões, principalmente de cunho econômico, e,

segundo suas análises, a identidade étnica estaria sendo até certo ponto manipulada de

acordo com os interesses da comunidade em formação. Ou seja, o compartilhamento

daquela identidade se justifica, segundo ela, de certa maneira, com os estudos de Abner

Cohen, para quem os grupos étnicos seriam organizações adaptativas às condições e aos

interesses do grupo (Carneiro da Cunha, 1987). Dessa forma, a religião católica

influenciaria de forma importante nos fins políticos e econômicos do grupo.

Num outro artigo (Carneiro da Cunha, 1987a), ela começa projetando uma

relação do conceito de linguagem com o de etnicidade. Em suma, etnicidade seria uma

representação, que na antropologia refere-se à uma articulação para “a organização da

vida material e das relações de poder em cada sociedade” (Carneiro da Cunha, 1987, p.

98). Sendo assim, a etnicidade, para a antropóloga, se refere à linguagem e forma de

organização política. É linguagem no sentido de se promover a comunicação com algo

exterior a ela mesma, já que a ideia de etnicidade se dá em um meio mais amplo, o meio

social-político, que por sua vez dá os quadros e as categorias da linguagem usada pela

etnicidade. E nesse mesmo viés, a etnicidade está ligada a uma organização política que

se diferencia de outros grupos organizados politicamente através da retórica colocada

pelos grupos étnicos para se fazerem reconhecidos, fazendo isso através da invocação

através de uma origem e uma cultura comuns em relação a uma genealogia parental

antiga, por exemplo.

Nesse sentido ela toma como objeto de discussão a “substância da etnicidade”. A

autora vai relatar sobre e como a antropologia já tratou essa questão. Segundo Carneiro

da Cunha, a antropologia já não lança mão de conceitos biológicos, ou melhor, do

66

conceito de raça, como temos visto até aqui. Dessa forma também recusa a redução que

existia em relação à cultura como fator maior para a etnicidade. Dessa maneira, como

em Barth, “compartilhar uma cultura é uma consequência da etnicidade e não sua

explicação” (Barth, 1987). Nessa mesma direção, a autora diz, por exemplo, que “não se

leva para a diáspora todos os pertences, manda-se buscar o que é operativo para servir

ao contraste (...)” (Ibidem, p. 101). Ou seja, surge então o conceito de “cultura de

contraste”, que explica que a cultura é um dos itens da etnicidade, não o único. A

cultura, na verdade, adquire função em interações entre grupos étnicos desiguais. Ainda

nesse sentido, a autora sustenta a ideia do processo de estabelecimento de sinais

diacríticos que serão usados como um modo de organização dos grupos.

Voltando um pouco, vimos que a etnicidade é tratada pela autora como

linguagem, no sentido de que a mesma permite a comunicação, isto é, o caráter retórico

da etnicidade. É relevante estabelecer a relação de que a etnicidade como forma de

organização política só existe em um meio que forneça contato, um meio mais amplo

por assim dizer. Isto deixa clara a relação da etnicidade com a comunicação, já que

ninguém, em nenhuma situação dessa natureza, se comunica sem ter um outro como

objeto da própria comunicação.O abandono do conceito de cultura como determinante

na identificação de grupos étnicos, levou antropólogos interacionistas a utilizarem o

termo “adscrição” como fator principal da identidade étnica. Desse modo, por exemplo,

“é índio quem se considera e é considerado índio” (Ibidem, p.101).

Assim, a construção da identidade étnica é complexo, já que as questões centrais

não entram de forma definitiva. A cultura, diz a autora, “é algo constantemente

reinventado, recomposto investido de novos significados” (Ibidem, p.101). Dessa

forma, existe uma dinâmica da cultura, onde também existe uma “bagagem cultural”

possuidora de significados promovidos por via de símbolos e signos. Os pertences dessa

bagagem serão escolhidos para, como já foi dito, se construir distintividade. Tal escolha

que não é feita arbitrariamente, mas sim de acordo com âmbitos situacionais.

Nesse momento do texto, a etnóloga dá início à uma discussão pertinente em seu

debate. Donde “a etnicidade faz da tradição ideologia ao fazer passar o outro pelo

mesmo” (Ibidem, p.101). Isso quer dizer que são retirados da tradição e rearranjados no

discurso étnico elementos culturais sob o argumento de que seriam “originais”.

Então, pode-se perceber com o texto da Manuela que, mais uma vez, a reflexão

sobre a etnicidade recai em termos situacionais e referentes a organização social e

política, e, como em Weber, em situações de relação e, em Barth, no estabelecimento de

67

fronteiras. Uma articulação da etnicidade pode ser focalizada principalmente em dois

campos. O primeiro é o campo da autoafirmação; o segundo está focado em uma

resposta a uma determinada conjuntura político-econômica.

Essa percepção é muito fecunda, eu diria, se pensarmos nos Kuntanawa mais uma

vez. A ideia de situação se encaixa no sentido de que, como dito antes, existe uma

formação, uma conjuntura de processos históricos que determinaram as condições e as

razões pelas quais aqueles indígenas sobrepusessem um território diferenciado, a TI, a

um outro território já existente, a Reserva, mas que vem sofrendo, ao mesmo tempo,

várias mudanças, um território que se encontra em contradições de formas de

territorialização. Já que ao mesmo tempo que tem alguns querendo preservar a floresta,

defendendo o Plano de Utilização, tem outras pessoas que estão desrespeitando o

mesmo, usando a floresta de forma mercantilizada, como veremos no próximo capítulo.

Enfim, o que quero dizer é que a perspectiva situacional da etnicidade pode ser tida

como verdadeira até certo ponto.

Como também a ideia muito pertinente que diz respeito à etnicidade enquanto

linguagem, enquanto retórica, comunicação. Comunicação essa que é feita através da

busca de elementos “tradicionais” que traçam a diferenciação, que promove o discurso

de distintividade, ainda que esses recursos e elementos tenham uma outra significação

hoje. Nesse sentido, poderíamos dizer que muitos ornamentos estéticos ou não estéticos

tem essa atribuição. O cocar e as pinturas, por exemplo, tem uma outra função para os

Kuntanawa de hoje, diferente do que deve ter sido em épocas anteriores. Hoje, os

ornamentos culturais são realmente utilizados em situações de comunicação,

principalmente no diálogo com o Estado.

Seguindo ainda essa linha de percepção, cogito que a visão sobre etnicidade que vi

em Oliveira (2004) nos encaminha para um bom entendimento de algumas questões. A

etnicidade, à luz da teoria deste autor, seria uma ação política através da cultura.15

Os

Kuntanawa, mesmo tendo uma proximidade em termos de costumes e laços afetivos,

históricos, lingüísticos com os moradores da vila Restauração, acionaram os

dispositivos que foram necessários para os diferenciarem na defesa de seus próprios

interesses e direitos. Porém, essa tomada de decisão e função política envolve-se com a

15

“A noção de territorialização (...) é uma intervenção da esfera política que associa – de forma

prescritiva e insofismável- um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados. É

esse ato político – constituidor de objetos étnicos através de mecanismos arbitrários e de arbitragem (no

sentido de exteriores à população considerada e resultante das relações de força entre os diferentes grupos

que integram o Estado).”(Oliveira, 2004, p.23)

68

dimensão subjetiva desses grupos, da autoconsciência, auto atribuição das pessoas que

pertencem ao grupo.

Acredito que talvez é ainda necessário que se faça um esclarecimento. Quando

disse no início do capítulo que algumas leituras soavam um tanto estranhas, a razão era

que ao ter contato com ideias de Eduardo Viveiros de Castro, alguns desses conceitos

perderam parte de seu sentido. De modo que, como o leitor poderá ver adiante, notei

que não faz tanto sentido o próprio fato de se buscar o que constitui mesmo a identidade

étnica, que isso não seria o mais relevante. O antropólogo Viveiros de Castro nos dará

um contraponto a cerca de toda essa discussão anterior. Tentarei não me alongar tanto

nessa última parte. Porém, buscarei problematizar um pouco mais sobre a questão da

etnicidade.

Eduardo Viveiros de Castro – Um contraponto

Os indígenas da Amazônia, trato aqui mais especificamente do caso do Acre,

passaram pelo processo de integração à sociedade hegemônica, que dizer a empresa

seringalista que aqui se instalou com o intuito de enriquecer a qualquer custo com a

borracha produzida na floresta no final do século XIX. Foi neste contexto, como já

sabemos, que indígenas foram mortos nas correrias16

, houve guerras entre seringueiros e

índios, perseguições, migrações forçadas de indígenas para locais onde não houvesse

exploração de borracha. Também houve indígenas que conseguiram sobreviver

aceitando as ordens dos seringalistas, mesmo que de algum modo conservando,

secretamente poderíamos dizer, a sua indianidade, a sua identificação étnica, indígena, o

seu modo de ser. Cortaram seringa e falaram em português para manter-se vivos. Enfim,

algumas etnias foram exterminadas, porém de muitas etnias restaram pessoas que

acharam por bem melhor entrar na nova ordem da economia de seringal. Pessoas com

traços indígenas visíveis, cultural e fisicamente falando, começaram a “ficar brancas” na

mistura étnica que se formava. Indígenas aparentados mantiveram contato, como o caso

dos Apolima-Arara do rio Amônea. (Iglesias, 2010; Pantoja, 2008). Mesmo com uma

mistura de origens étnicas na região amazônica, ainda que estranhamente o preconceito

étnico se constituiu. De modo que ser índio começa a ser sinônimo de atraso diante do

que é tido como civilizado; ser índio, então, seria um estágio até o patamar mais alto

16

As correrias dizem respeito aos tempos em que os territórios indígenas foram invadidos, seja na época

de Cabral ou na época do primeiro ciclo da borracha. Em tais épocas o que aconteceu foi a matança de

populações indígenas ou ainda a exploração da mão-de-obra das mesmas, e exatamente a espoliação dos

indígenas de suas terras.

69

que é ser branco (Rocha, 1988). Nesse sentido, indígenas que cortavam seringa e

falavam a língua portuguesa, vestiam roupa e já não moravam em casas de palha, mas

que mantinham laços marcantes indígenas, por vergonha, acharam melhor, de alguma

forma, esconder a sua etnicidade, o seu sentimento de pertença, os seus laços familiares

e culturais indígenas, e começaram, mesmo que forçadamente, a esquecer de sua

especificidade étnica, cultural, frente àquilo que lhes eram imposto. (Viveiros de Castro,

2008). Talvez, isso tenha realmente sido o que aconteceu, por exemplo, com etnias que

depois “ressurgem”, como os Apolima-Arara e os Kuntanawa, que começam a exigir o

reconhecimento do seu pertencimento étnico e direitos territoriais correspondentes, o

que enseja não apenas, claro, uma porção de terra, mas aquilo que remonta à historia

dos seus antepassados. Talvez se deseje ainda o reconhecimento de que houve uma

forçada “alienação étnica”, e ainda mais, é necessário reparar que há uma oclusão

étnica, ainda em curso, quando ainda precisamos discutir quem é ou não é índio. Nesse

viés, rebusco a entrevista “No Brasil todo mundo é índio, exceto que não é” do

antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2008).

Utilizar esse texto-entrevista é pertinente para este momento porque ele vem

realmente para promover uma “desconstrução” da pergunta “o que é ser índio?”, ou

“quem é índio?”. Ou seja, nos fará pensar de forma um tanto desconstrutiva as teorias

da etnicidade que conhecemos até então, pois o autor vai refazer esse tipo de questão. Já

adiantando, inclusive, que para o autor essas não são perguntas, são na verdade

respostas pré-concebidas pelo Estado.

A questão do pertencimento étnico indígena é propriamente ontológica, diz

respeito propriamente ao ser, ao espírito, à subjetividade, havendo o aparecimento de

confusão, de caos, quando há a mistura entre ontológico e jurídico. O antropólogo cita a

invasão desenvolvimentista da Amazônia nos anos de 1970, naquele momento com o

ideal da emancipação, e que vinha com uma instrumentalização jurídica para fazer a

separação entre quem era e quem não era indígena.

O propósito era emancipar, isto é, retirar da responsabilidade tutelar do

Estado os índios que se teriam tornado não-índios, os índios que não eram

mais índios, isto é, aqueles indivíduos indígenas que ‘já’ não apresentassem

‘mais’ os estigmas da indianidade estimados necessários para o

reconhecimento de seu regime especial de cidadania. (Viveiros de Castro,

2008, p.134).

70

A pergunta “quem é índio” seria, na verdade, já uma resposta pelo fato de que o

Estado determinava que “índio era um atributo determinável por inspeção e

mencionável por ostensão, uma substancia dotada de propriedades características, algo

que se podia dizer o que é, e quem preenche os requisitos de tal quididade.” (Ibidem,

p.135).

O objetivo do antropólogo, portanto, como diz Viveiros de Castro, seria

“estabelecer definitivamente que índio não é uma questão de cocar de pena, urucum,

arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma

questão de estado de espírito”. (Ibidem, p.135). Como pude perceber, e agora me volto

mais uma vez para a realidade que conheci no trabalho de campo, essa ideia da

essencialização, do estereótipo, foi muito ouvida nas conversas com as pessoas da Vila

Restauração, por exemplo. Vários moradores indicavam e, até com um certo caráter de

exigência, falavam que para ser tido como índio “mesmo” seria necessário “seguir a

tradição” da culinária, das roupas, das moradias. Ou seja, o que muitas vezes é ainda

exigido é o modo de aparecer e não o modo de ser e de viver. Há uma grande

importância ainda dada ao que se apresenta exteriormente. Diz o autor em questão:

A indianidade designa para nós um certo modo de devir, algo essencialmente

invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento infinitesimal

incessante de diferenciação, não um estado massivo de ‘diferença’

anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade. (Ibidem, p.137).

A ideia de um “devir indígena” é interessante para a nossa discussão, pois vê-se

no caso dos Kuntanawa uma trajetória de lutas políticas que chega numa certa

radicalização de uma recusa quando eles se retiram, além de serem também excluídos,

da Reserva que, segundo eles mesmos, já não guarda os ideais propostos em sua

criação. Nesse sentido, ainda inserindo a discussão mais concreta sobre os Kuntanawa

nesse viés da etnicidade, dentre outros casos, foge do devir esperado por todos e pelo

Estado. Viveiros de Castro aponta neste sentido ao dizer que antigamente, mas se

poderia dizer que isso ainda ocorre claramente hoje, esperava-se que o “processo

histórico” desse conta de transformar, “transfigurar”, os indígenas em camponeses, em

proletários, era uma destinação incomplacente dos indígenas de “serem exterminados”

de uma vez por todas. Talvez, as ações históricas do Estado tenham mesmo acreditado

em um relativo êxito quanto a isso. “Mas, eis que, pouco a pouco, os índios começam a

reivindicar e terminam por obter o reconhecimento constitucional de um estatuto

diferenciado permanente dentro da comunhão nacional” (Ibidem, p.139).

71

Esse processo de “emergência” de identidades indígenas se impulsiona bastante

com a Constituição Federal de 1988. A submersão, diz Viveiros de Castro, tem várias

razões:

porque tinham sido ensinadas a não dizer que não eram indígenas, ou

ensinadas a dizer que não eram mais indígenas; porque tinham sido colocadas

em um liquidificador político-religioso, um moedor cultural que mistura

etnias, línguas, povos, regiões e religiões, para produzir uma massa

homogênea capaz de servir de ‘população’, isto é, de sujeito (no sentido de

súdito) do Estado. (2008, p.141)

Porém, a Constituinte conseguiu com que fosse interrompido esse processo, esse

projeto de desindianização. Sendo assim, surgem as populações que estavam sendo

obrigadas a se distanciarem das suas referencias indígenas.“Começaram a perceber que

voltar a ‘ser’ índio – isto é, voltar a virar índio, retomar o processo incessante de virar

índio – podia ser uma coisa interessante. Converter, reverter, perverter ou subverter

(como se queira) o dispositivo de subjetivação.” (Ibidem, p.141)

Seria, pois, o reconhecimento de sua própria indianidade um processo de

“recuperação” de uma autoconsciência transformada e traumatizada historicamente,

desde 1500, digamos assim, por fim uma “gigantesca ab-reação coletiva”, o “retorno do

recalcado nacional”. É uma espécie de “eterno retorno” que o Estado não espera e que

por isso vai exigir que os antropólogos comprovem o que os indígenas sustentam. Quer

dizer, os indígenas precisam provar-se índios ao Estado, representado pelos

“distribuidores autorizados de identidade”, para que assim haja a comprovação da

legitimidade e autenticidade da identidade. Ou seja, de que existe algo como

“identidade”.

Contudo, para o autor, a pergunta “quem é índio” não vem a ser uma pergunta

antropológica; é, na verdade, uma pergunta do Estado e do seu arcabouço jurídico-legal

que pretende organizar o país, que “funcionam como moinhos produtores de

substancias, categorias, papéis, funções, sujeitos, titulares desse ou daquele direito, etc.

O que não é carimbado pelos oficiais competentes não existe – não existe porque foi

produzido fora das normas e padrões, não recebe selo de qualidade.” (Ibidem, p.144). E

ele arremata uma importante asserção: “ao antropólogo não somente não cabe decidir o

que é uma comunidade indígena, como cabe, muito ao contrário, mostrar que esse tipo

de problema é indecidível”. (Ibidem, p.145). Ou seja, o mais importante é mostrar que a

questão é muito além de se dizer quem é e quem não é indígena. É, talvez, mais

72

relevante considerar que a própria questão ontológica é imprópria e sem sentido, já que

cabe mais aos próprios indígenas falarem por si mesmos, e não o Estado ter ainda, de

algum modo, a competência de afirmar quem é e quem não é o que (indígena). É, nessa

direção, que o autor diz que o real problema no Brasil é provar quem não é indígena,

seria a “resposta política à resposta (isto é, à pergunta) política que se oferece ao

antropólogo.” (Ibidem, p.146).

A etnicidade não está ligada, pelo menos não essencialmente, à questão da cultura.

Os conteúdos culturais de um determinado grupo indígena não determinam, ou pelo

menos não deveriam indicar, ao menos por si só, a identidade étnica do grupo, “pois um

coletivo não é jamais a encarnação de uma cultura, não porque seja mais que isso, mas

porque é outra coisa”, sustenta Viveiros de Castro. (Ibidem, p.146).

Mas, como já disse ainda pouco, o que chamamos de “emergência étnica”, apesar

de não ser, de todo, uma expressão correta, torna-se muito problemático para o Estado,

já que “é como querer ‘virar índio’ fosse uma contradição em termos, só pode desvirar.”

(Viveiros de Castro, 2007, p. 150).

Afinal de tudo, somente aos povos indígenas caberia responder sobre a sua

indianidade, a sua identidade étnica, sobre as razões das suas “mobilidades étnicas”, do

“retorno”, da sua “emergência”. Não cabe nem ao antropólogo, nem aos juristas

decidirem essas questões que estou aqui tratando. É direito desses povos se constituir

como corpo socialmente diferenciado dando-se “autonomia para estatuir e deliberar

sobre a sua composição, isto é, os modos de recrutamento e critérios de exclusão da

comunidade”. (Ibidem, p.160).

* * *

Tentei durante esse capítulo delinear distintas teorias da etnicidade, já ensaiando,

vez por outra, analisar a sobreposição entre grupos indígenas e os agroextrativistas da

Reserva Extrativista do Alto Juruá. Acredito que mais importante do que me colocar

contra ou a favor de determinadas teorias, ou tentar contradizê-las, talvez, é retirar de

cada uma o que têm mais de interessante para utilizar no contexto das realidades locais

que estudei. No próximo capítulo, estarei tratando do principal tema desta monografia,

que é abordar dois casos de sobreposição territorial na Reserva. Um deles será discutido

somente por fontes secundárias, principalmente documentos de reuniões jurídicas. Este

é o caso dos Arara do rio Amônea e moradores da Reserva. Por outro lado, o caso dos

73

Kuntanawa será tratado, além das fontes secundárias, a partir da experiência que tive

com as próprias pessoas envolvidas nesta sobreposição.

74

4º CAPÍTULO – AMÔNIA E TEJO:DOIS CASOS DE SOBREPOSIÇÃO

TERRITORIAL

Finalmente, este derradeiro capítulo tratará de dois casos de sobreposição

territorial em curso na Reserva: um entre os índios Arara do Rio Amônia e moradores

agroextrativistas17

daquele rio, e outro entre os Kuntanawa do Alto Rio Tejo e os

moradores agroextrativistas da vila Restauração, localizada também na Reserva. Sendo

estes dois casos os primeiros com essa característica no Brasil (Rezende, 2012), me

chamou sempre muita atenção o fato de ver-se surgir uma estranha oposição entre

populações muito similares, isto é, com modos de viver e de fazer que poderiam ser

ditos muito parecidos. Além disso, me chamou atenção também, desde muito cedo, o

fato de haver uma ausência das argumentações e considerações dos moradores

agroextrativistas nos “fóruns de discussão”, nas documentações, na mídia.

À vista disso, a partir de algum momento da pesquisa vi que era necessário ouvir

o que os moradores da vila Restauração, por exemplo, pensavam sobre a situação que se

anuncia desde o início dos anos 2000. Tanto o é que no segundo ano de projeto de

pesquisa no PIBIC, em 2012, tínhamos como grande objetivo investigar como os

moradores não indígenas da Reserva Extrativista do Alto Juruá enxergavam a situação

criada pela demanda indígena Kuntanawa e sob que perspectiva legitimavam ou não a

“emergência étnica” em curso, ainda mais que avistávamos a oportunidade de uma ida a

campo que, com efeito, concretizou-se (Arruda, 2012). Na ocasião, não me aventurei no

rio Amônia, mas tive acesso a fontes secundárias sobre o caso.

A consulta aos “brancos” é relevante, nesses casos principalmente, pelo fato de

sabermos que no caso de sobreposição dos Arara do Rio Amônia, como primeiro caso

de sobreposição dessa espécie na Reserva, os moradores não índios não tiveram a

devida participação nas decisões que diziam respeito não só aos índios Arara, mas

também a eles. O fato é queas famílias agroextrativistasda Reserva e do Projeto de

Assentamento (PA) do Rio Amônia (também atingido pela sobreposição) não

foramconsultadas ou sequer bem informadassobre o processo de identificação e

demarcação da TI Arara do Amônia, e portanto, não chegaram a ter a oportunidade de

apresentar o pedido de contraditório18

.

17

Este termo recobre uma diversidade de realidades, podendo indicar, por exemplo, agricultores,

seringueiros, pequenos e médios criadores de gado, funcionários de escolas locais. 18

O termo, sumamente, versa sobre o direito de ação e direito de defesa.

75

Assim sendo, primeiramente estarei tratando do caso acontecido entre os Arara do

Rio Amônia e moradores da Reserva e do PA, procurando seguir os argumentos em

defesa destes últimos. Na segunda parte do capítulo, estarei analisando a sobreposição

territorial entre os moradores da vila Restauração, e os Kuntanawa do Alto Rio Tejo,

caso que já vem sendo pincelado desde o início desta monografia. A análise desse

último caso se constitui como objetivo maior de todo o trabalho, e será justamente feita

a partir do que, ao longo de toda a minha pesquisa, se fez como maior pergunta,

principal anseio de saber, qual seja: como os moradores não indígenas da Reserva

enxergam a situação criada pela demanda indígena Kuntanawa e sob que perspectiva

legitimam, ou não, a reivindicação étnico-territorial em curso?

O caso dos Arara do rio Amônia

Para tratar desse caso fiz uso de materiais bibliográfico e documental.Foi dada

muita atenção a organização e sistematização das argumentações dos “brancos” afetados

por esta sobreposição territorial, principalmente por meio de leitura e análise de

resumos e atas de várias reuniões com participação de distintas instituições e

autoridades jurídicas acerca do caso dos Arara do Amônia19

, como também verificou-se

o que foi publicado na imprensa, principalmente a eletrônica.

Os Arara do rio Amônia são um grupo de procedência étnica variada20

. Nessa

formação estão, por exemplo, índios de origem Amawaca, Koníbo, Santa Rosa, Kampa

e Kaxinawa (Coutinho, 2001).Membros dessas etnias foram retirados dos limites da TI

Kampa do Rio Amônia homologada em 1992. Houve, então, uma dispersão. Algumas

famílias ficaram em um local que viria logo a ser, em 1996, o PA do Amônia,

administrado pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária),

como também nas margens do rio Amônia que incidiam dentro da Reserva. Veja que,

em 1992, foram também removidas da TI Kampa do Rio Amoniafamílias “brancas”.

Parte delas hoje resiste a uma segunda desintrusão com a criação da TI Arara.

A reivindicação dos Arara data de 1999. O primeiro relatório de identificação

da terra é de 2001, de Walter Alves Coutinho Jr. (Coutinho, 2001), e o segundo de

2003, este coordenado pelo antropólogo da FUNAI Antônio Pereira Neto, tendo sido

uma reivindicação dos próprios Arara, que não concordaram com os limites propostos

19Este material foi organizado pelo antropólogo Mauro Almeida (da UNICAMP) e me foi repassado pela

orientadora deste sub-projeto. 20

Observo que inicialmente o grupo foi denominado e se auto-denominou “Apolima Arara”, tendo

posteriormente adotado apenas o nome Arara.

76

pelo GT de 2001 (Pereira Neto, 2003). Entretanto, vamos aos fatos mais recentes e aqui

analisados.

Um dos importantes acontecimentos acerca desse caso se deu no ano de 2007,

quando o MPF (Ministério Público Federal) propôs ao juiz federal do estado uma ação

civil pública com pedido de antecipação de tutela21

contra órgãos como a FUNAI

(Fundação Nacional do Índio), INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária) e também a União. A justificativa do MPF foi a omissão destes órgãos na

resolução dos conflitos fundiários no rio Amônia. Ou seja, por essa época os conflitos já

estavam bem presentes naquela área de superposição, porém esses órgãos mencionados

não se movimentaram de modo a impedir os conflitos até então acontecidos, como por

exemplo, a queima de uma casa de um morador “branco” que tentou se estabelecer em

uma área já identificada como TI Arara.

Em 2008,ano em que a portaria ministerial de identificação física da TI Arara

foi publicada no Diário Oficial da União, o clima foi de conflito e denúncias naquela

parte do Amônia, como as reclamações por parte dos índios de saques e invasões de

moradores do PA. Já em 2009, esses assentados mostraram que não pretendiam sair da

área pleiteada pelos Arara. Uma das mais contundentes oposições se baseava no fato de

que na época da criação do PA Amônia, em 1996 foi enviado a FUNAI, garante Adaido

Silva, procurador agrário do INCRA da região, umdocumento que, de algum modo,

perguntava àquela instituição se havia algum interesse indígena naquele espaço.22

O MPF conduziu uma reunião no dia 15 de março de 2010, com o objetivo de

fazer caminhar os tramites que se reportam à demarcação definitiva da Terra

IndígenaArara. Em tal reunião estiveram presentes os representantes indígenas, a

FUNAI, INCRA e o ITERACRE (Instituto de Terras do Acre). Nesta ocasião, inclusive,

o INCRA deu prazo até o final de 2012 para o término do processo de reassentamento

dos moradores do PA do rio Amônia que estavam sendo territorialmente afetados pela

criação da Terra Indígena. Nessa mesma reunião, entre outras coisas que ficaram

“acertadas” e agendadas esteve a decisão de que os órgãos responsáveis pelo processo

promoveriam reuniões bimestrais em Marechal Thaumaturgo para apresentação do

andamento do processo de reassentamento e demarcação da TI.

21

A “antecipação de tutela”, prevista no artigo 273 do Código de Processo Civil, é um dispositivo jurídico

que, em termos simplificados, permite a antecipação do direito enquanto ocorre determinado processo e,

portanto, antes de ter-se a sentença. 22

Consultar o seguinte endereço virtual: http://ti.socioambiental.org/#!/noticia/72739

77

O mais importante deste fato é que em tais reuniões seria garantida a

participação da comunidade envolvida nesse conjunto de processos. Porém,

infelizmente, até onde se sabe, essas reuniões bimestrais não ocorreram23

. Ou seja, as

pessoas realmente envolvidas e mais interessadas no assunto não puderam participar das

decisões sobre o mesmo.

Numa outra reunião, ocorrida no dia 9 de junho de 2011 na Procuradoria da

República, em Brasília, por uma ação do Instituto Chico Mendes de Conservação da

Biodiversidade(ICMBio), para também discutir sobre os direitos dos povos tradicionais

em Reservas Extrativistas, destaco a primeira fala de Dona Maritô,agroextrativista,

moradorada Reserva e que vem se destacando como uma grande representante dos

moradores da referida Unidade de Conservação. Dona Maritô mostrou desde o início da

reunião seu descontentamento em relação a FUNAI e ao INCRA, já que, segundo ela,

os mesmos órgãos garantiram, em 1990, quando a Reserva foi criada, o uso permanente

da área pelos “brancos”. Ela relembrou a remoção anterior desses moradores não índios

quando da demarcação da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia. Defendeu também

que a Reserva é uma área de conservação, o que é feito pelos “reservistas”, termo

propriamente utilizado por Dona Maritô. Outrossim, ela argumentou que os Arara do

Amônia foram assentados no PA depois dos “brancos”, ou seja, segundo ela os Arara

foram reassentados depois dos não índios após a desintrusão da TI Ashaninka do

Amônia, e sublinhou a diferença numérica entre o número de famílias indígenas (32) e

de famíliasagroextrativistas (50) respectivamente beneficiadas e atingidas pela demanda

da Terra Indígena.

Como ainda poderemos ver adiante, estamos diante de uma interessante, mas

problemática questão: um conflito entre os direitos territoriais deagroextrativistas e os

direitos territoriais de indígenas. Quando me dei conta desse conflito, ficando, inclusive,

“asfixiado” ao me deparar com questões de longe preocupantes, lembrei-me de um bom

texto do sociólogo português Boaventura de Souza Santos (1999). Logo, desde então,

achei que seria construtivo rebuscar tal texto, pelo menos parte do que julguei ter mais

relação com o que estou enunciando, para refletir justamente sobre o fato de que direitos

parecidos e tão relevantes – “parecidos” no sentido de que são direitos territoriais e que

dizem respeito a coletividades que vivem de modo similar, ou seja, retirando e vivendo

23

No início do mês de junho de 2013 aconteceu um movimento dos Arara reivindicando a indenização

aos moradores agroextrativistas, como ainda a desocupação dos mesmos de suas terras. Ver mais:

http://crjurua.blogspot.com.br/2013/06/indios-suspendem-manifesto-em-marechal.html (Acessado em 17

de dezembro de 2013)

78

da floresta, e, justamente por essa importância que elas dão à floresta, esses direitos são

relevantes –,quando postos dentro da lógica divisória e excludente da lei/do Estado,

acabam anulando-se, contrapondo-se de modo muito radical.

A ser assim, Boaventura de Souza Santos trata do que ele chama de “contrato

social da modernidade”, que a princípio não difere, até certo ponto, da antiga discussão

de contratualistas como Rousseau ou Hobbes, já que o contrato social moderno é “uma

obrigação complexa e contraditória”. Isto é, o contrato social como expressão de uma

tensão entre o individual e o coletivo, o interesse particular e o bem comum. Mas o que

vem a ser relevante realmente em nosso caso é principalmente a passagem que se segue:

“Como qualquer outro, o contrato social assenta em critérios de inclusão que, assim, são

também critérios de exclusão”(Santos, 1999, p.34). Entre esses critérios, o seguinte é

bem pertinente em nosso caso: “2 - Só os cidadãos integram o contrato. Todos os outros

- sejam mulheres, estrangeiros, imigrantes, minorias (e às vezes, maiorias) étnicas - são

dele excluídos” (Santos, 1999, p.34, grifo meu).

Faço, ainda, minhas as palavras as do autor para concluir essa intervenção:

“(...) Embora a contratualização assente numa lógica de

inclusão/exclusão, ela só se legitima pela não existência de excluídos.

Para isso, estes últimos são declarados vivos em regime de morte civil

(...) os excluídos de um momento emergem no momento seguinte

como candidatos à inclusão e, quiçá, podem ser incluídos num

momento posterior. Mas, em obediência à lógica operativa do

contrato, os novos incluídos só o são à custa de novos ou velhos

excluídos (...)”. (Ibidem, p. 34)

Espero que tenha ficado clara a relação do texto citado com a situação das duas

coletividades e o impasse jurídico relativo a casos de sobreposição territorial como o

aqui enunciado. Quer dizer, podemos ver claramente que indígenas e agroextrativistas

que têm direitos territoriais garantidos legalmente passam a se excluir mutuamente,

passam a se separar, a rivalizar diante da situação político-jurídica, onde se se inclui,

também se exclui. Estaremos mais adiante tocando nessa discussão. Logo, retorno a

falar da reunião que vinha sendo comentada e analisada, para que assim possamos

compreender e discutir melhor esse viés.

Entre o que as outras pessoas que participaram dessa reunião falaram - como

pode ser observado, venho sempre salientando pontos que de alguma maneira me

chamaram a atenção – destaco a ideia de uma Câmara de Conciliação, uma espécie de

pedido de “retrocesso” do processo, de forma que o ICMBio pudesse pedir um novo

79

laudo antropológico, ou não aceitasse o atual, cujo resumo já fora publicado no Diário

Oficial e o ICMBio, no prazo legal de 90 dias, não o tinha contestado. O que na verdade

só afirma que as contra-reivindicações, ou melhor, o pedido de contraditório pelo

ICMBio estaria ocorrendo tardiamente, fora dos prazos administrativos.

Uma das coisas que o antropólogo Augusto Postigo (da UNICAMP) argumentou

na ocasião foi que o governo federal (ICMBio e FUNAI) sente e tem dificuldade de

trabalhar com esse tipo de sobreposição, pois não se avistam fronteiras sociais

totalmente claras, formuladas, instituídas, estabelecidas. Ou seja, são casos em que há

uma grande mistura e também divisão de opinião entre os próprios extrativistas e os

indígenas, não havendo, portanto, limites estabelecidos muito previamente e que o

Estado consiga visualizá-los.O antropólogo então disse que “conciliar a gestão do

território em comum” seria uma alternativa – esta seria a proposta da “dupla afetação”,

que vem sendo com certa frequência defendida pelo ICMBio.

As dificuldades dos órgãos do governo em trabalhar com esse tipo de caso

parecem advir daquela espécie de “mecanização” e “sistemática” do governo de

enquadrar as pessoas em padrões pré-estabelecidos e “categorias nítidas” e inertes, o

que acaba por desvaler e desconsiderar fatos e causas mais específicas, ou mesmo

suplantar coisas bem mais construtivas, como a questão da

“sociobiodiversidade”.Augusto Postigo, ainda nesse sentido, fala em dupla afetação

como uma alternativa para a convivência de dois “modos de territorializar”.

É interessante observar esta ideia de compatibilização entre os direitos das duas

coletividades que se reconhecemcomo distintas. No entanto,o fato é que há muitas

resistências de ambos os lados para uma gestão compartilhada.

Argumentos em defesa dos “reservistas”

A partir dessa reunião, comecei a observar os argumentos das populações

agroextrativistas sujeitas a perder seus territórios. Podemos, então, já elencar alguns:

“As Reservas extrativistas foram criadas para proteger a atividade

extrativista e as pessoas que estão nela. O pressuposto é que as

pessoas que estão lá são defensoras daquele espaço.” (Aurélio Rios –

Ministério Publico Federal - Reunião na Procuradoria da República,

09 de junho de 2011).Ou seja, a ideia de que proteger a atividade

extrativista e os próprios extrativistas é a função pela qual as

Reservas Extrativistas foram criadas.

80

Outro argumento que muito aparece é a prova do contrato real de

uso por tempo indeterminado, cedido aos moradores

agroextrativistas.

Como também em outras ocasiões, será recorrente a defesa do

direito de viver na Reserva Extrativista pelo argumento do benefício

que as futuras gerações poderão receber. Esse argumento é muito

importante, pois eis que traz à baila um dos grandes significados da

criação da Reserva, qual seja: o de assegurar o direito de gerações

futuras poderem usufruir e viver na e da floresta.

Já aqui eu poderia complementar esses argumentos com muitas das falas de

Dona Maritô, mas transcrevo agora só alguns trechos:

“(...) Somos extrativistas, somos seringueiros, que moramos há

tempos na área (...) somos seringueiros tradicionais. Temos nossas

culturas, nossas matas, nossas plantas. É uma área de conservação,

então estamos conservando (...). Estamos sendo expulsos por duas

causas de terra indígena (...). Queremos nossos direitos como

reservistas, guardiões da floresta; nascemos e crescemos na floresta,

somos como pássaros na floresta, a cidade não é nossa moradia.

Quero saber onde fica nosso direito; acredito que como reservista,

morador da floresta, temos direito de ficar na floresta; sou

seringueira, e provo que sou seringueira, ainda vivo plantando

seringa, porque sou mãe de sangue, e elas são mãe de leite, porque

são elas que criaram meus filhos. Nós chamamos nossa mãe de

seringa porque criou meu pai, e criou meus filhos. Queremos

reconhecer nossos direitos de extrativistas.” (Dona Maritô, reunião

na Procuradoria da República, 09 de junho de 2011).

Outro argumento bem marcante que Dona Maritô, e não somente

ela, assinalou nesta e em outras reuniões, como a que ocorreu no

ICMBio no dia 06 de outubro de 2011, é o “abandono” que os

extrativistas estariam sofrendo. Ou seja, reclama-se que os órgãos

públicos, principalmente o ICMBio, não cumpriu sua obrigação ou,

como é dito, não fez a sua parte. Ao contrário, os indígenas “tem a

81

FUNAI, o CIMI, Procuradoria da República”, diz Dona Maritô

diferenciando o apoio que aquelas têm.

Quando, no dia 06 de julho de 2011, o juiz do caso marcou uma

audiência de conciliação entre os órgãos estatais envolvidos no caso

(INCRA, ICMBio, FUNAI, o Ministério Público e a Procuradoria

Geral da União), ficou visível os desencontros e conflitos entre esses

órgãos, “já não bastassem os problemas entre as duas populações”.

“Aceitamos os direitos dos índios, mas não podemos sair como se

fôssemos posseiros quaisquer” disse Dona Maritô na mesma reunião

no ICMBio. Esse argumento se complementa com outras falas da

mesma, nas quais defende a “tradicionalidade” do modo de vida dos

agroextrativistas. O que mostra também que a vivência na Reserva

não vem a ser algo desvinculado e sem contexto, ou seja, residir

naquele território além de implicar uma forma de vida subjacente ao

mesmo, significa e remete à uma luta por direitos, sendo valorizada,

nesse sentido, a constitucionalidade da criação, por ato presidencial,

da Reserva, o que claramente faz referência a uma noção política de

defesa de um direito já constitucionalizado.Com a criação da TI

Arara do rio Amônia, esses agroextrativistas, mais uma vez (já que

foram retirados da área que hoje é a TI Kampa do Rio Amônia), se

sentirão desamparados e excluídos pelo Estado, o “senhor” que tudo

“vê”, o “senhor” de “tudo” e de “todos”, que se contradiz, que entra

em conflitos internos consigo mesmo24

.

Repare-se que os próprios órgãos do Estado estão vivendo um embate nesse

processo. A organização de uma câmara de conciliação com o ICMBio, FUNAI e

INCRA serviria exatamente para analisar e discutir sobre o caso. A FUNAI, desde uma

mais antiga reunião (2007), ao que se percebe, se apresentava surpresa com o fato do

ICMBio não ter apresentado o processo de contraditório, ou seja, não teria se esforçado

para defender os moradores não-índios da Reserva.

Irei agora falar sobre outra reunião, e assim estarei fechando esta parte

sobre o caso de sobreposição territorial presente no rio Amônia, completando o

24

Nesse momento quem está falando não é a Dona Maritô, deixo claro. Na verdade estou aqui falando do

Estado que mantém as pessoas em submissão que, no nosso caso, se traduz em um certo “desamparo” e

“abandono” que remete inclusive aos escritos de La Boetie, quando o mesmo trata de perguntar as causas

que levam as pessoas a entregarem toda a sua liberdade, a se sujeitarem completamente a um tirano.

82

conjunto de argumentos que está sendo até aqui apresentado.Tal reunião aconteceu em

Rio Branco, no Acre, no dia 06 de julho de 2011, na 3ª Vara Pública.

A FUNAI defendeu o processo de demarcação e homologação da TI. No

entanto, mostrando preocupação, afirmou que era necessário que também se

encaminhasse o processo de reassentamento e pagamentos de benfeitorias e

indenização, o que, inclusive, implicarianuma dificuldade financeira já que pagar e

indenizar não seriam uma garantia para o ano de 2012.Já o ICMBio defendeu, assim

como em várias outras ocasiões, a dupla afetação. Muitos dos argumentos do ICMBio

para defender os moradores, estão concentrados abaixo:

A importância do meio ambiente como bem constitucional (art.225). Observaria

que, à primeira vista, o que se percebe é que o que está sendo defendido mais

eminentemente é a floresta (meio-ambiente);

O tempo de moradia da população agroextrativista;

A UC só pode ser extinta por lei. Haveria nisso, por outro lado, uma

sobreposição de leis, pois tanto a UC como a TI estão amparadas na legislação;

A Reserva é ato do Presidente da República;

A existência do Contrato de Concessão Real de Uso que obrigaria a resguardar o

direito de uso da população agroextrativista.

Circularidade e convergência

Por fim, suponho que é perceptível, apesar de que talvez os documentos citados e

os não citados possam mostrar outras coisas importantes, uma circularidade nos

argumentos, sejam eles da comunidade agroextrativista, ou ainda dos órgãos públicos

envolvidos no problema.

É interessante, por exemplo, notar que os argumentos empregados por Dona

Maritô e também os argumentos com os quais se defendem osArara, são similares25

.A

argumentação que busca legitimar-se através do discurso de “ocupação territorial”,

“ocupação imemorial”, como também por meio de uma “genealogia local”, o que seria

uma construção de uma linha do tempo que mostra a vivência histórica desses grupos

naquele local,é perceptível nos dois lados. A questão da originalidade do grupo naquele

território – quem chegou ali antes, é um ponto em comum entre as duas coletividades

étnica e juridicamente diferenciadas.

25

O principal porta-voz dos Arara é o seu cacique, Chiquinho Arara. Reconheço que, neste trabalho,

pouco espaço foi dado para as falas dos representantes indígenas eles mesmos.

83

Conjuntamente, é circular em ambos os grupos um discurso que mostra um nítido

“processo de territorialização”, onde existem dois grupos constantemente afirmando as

suas identidades em relação ao território, ou seja, defendendo a sua permanência em

uma terra que foi e é tradicionalmente,por cada um deles, ocupada26

.

Por outro lado, a análise desses documentos demonstra, além do que já foi falado,

um processo no qual as novidades, os acordos e as ideias vão também aparecendo. Por

exemplo: em um dado momento temos a defesa dos agroextrativistas a partir da própria

voz de Dona Maritô. Temos, enfim, o ICMBio mostrando interesse em defender a dupla

afetação como proposta de solução, também como uma reação ao “absolutismo” do

direito dos indígenas. Creio que posso terminar aqui minha breve análise sobre a

sobreposição territorial dos Arara do Amônia. Sendo assim encaminho o meu texto para

o caso dos Kuntanawa.

Os Kuntanawa do Alto rio Tejo e os Moradores Agroextrativistas da Vila Restauração

Nesta seção estarei discutindo, a partir do trabalho de campo, as implicações que

percebi a cerca da sobreposição territorial que envolve moradores da vila Restauração e

o povo indígena Kuntanawa que vive na mesma área, o alto rio Tejo. Meu principal

objetivo aqui, como antes dito, é colocar as falas dos não indígenas envolvidos no caso.

Como se sabe, os Kuntanawa são um grupo étnico que encontra o seu mais

recente vestígio de ascendência indígena na história de seu Milton e, principalmente, na

de dona Mariana, respectivamente patriarca e matriarca do grupo. A auto-afirmação

étnica se fundamenta nas narrativas de dona Mariana sobre sua mãe indígena, capturada

na época das “correrias”, no rio Envira, início do século XIX (Pantoja, 2008). No

entanto, antes de declarar a identidade étnica hoje assumida, historicamente a família de

seu Milton e de dona Mariana, conhecida como “os Milton”, teve uma trajetória muito

ativa politicamente na época da resistência à dominação patronal e reivindicação de

criação da primeira Reserva Extrativista do Brasil, a do Alto Juruá. Tendo em vista uma

mescla de insatisfações, como preconceito étnico e exclusão política, e igualmente os

26

Quando me refiro a “terrastradicionalmente ocupadas”, tenho em mente o que o antropólogo

Alfredo Wagner diz sobre a existência de diversos modos de ocupação e uso coletivo dos recursos

naturais, entre eles a terra, por diversos grupos sociais (Almeida, 2006). O mesmo autor trabalha a ideia

de “processos de territorialização” como as disputas e conflitos que aqueles grupos precisam enfrentar

quando têm seus territórios ameaçados, por exemplo, por algum grande empreendimento econômico da

iniciativa privado-estatal, e devem constituir sua demanda numa política pública. No caso aqui em

questão, o aspecto dramático é que a ameaça é os pleitos territoriais de um outro grupo de moradores da

floresta.

84

rumos que estavam tomando a gestão da Reserva (com o aumento, por exemplo, da

desregulação das atividades de caça e pesca e do desmatamento), a partir de 2002 seu

Milton, dona Mariana e familiares começaram a buscar ajuda para o seu

reconhecimento étnico junto ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em Cruzeiro

do Sul. Isto foi sendo feito por meio de ofícios encaminhados à FUNAI, cartas públicas,

promoção de e participação em eventos (como festivais culturais) e militância em

organizações indígenas. Desde então, os Kuntanawa vieram se (re)constituindo como

povo indígena e se mobilizando no sentido de serem reconhecidos como um grupo

etnicamente diferenciado (Pantoja 2010).

De certa maneira, eu diria, existe um caráter intempestivo nessas diferenciações

étnicas protagonizadas por esses povos indígenas27

. Como eu mesmo pude entender

quando moradores da vila Restauração comentavam que não era algo que se esperava

que acontecesse. Seu Peba, por exemplo, que foi o meu principal interlocutor, afirmou-

me que não esperava o fenômeno étnico-territorial, pois a família de seu Milton, os

Kuntanawa vivia do mesmo modo que eles, sem brigas, sem conflitos. Mas é claro que

esta é a percepção de seu Peba, os Kuntanawa, por sua vez, tinham uma outra leitura

disso. Por outro lado, é intempestivo também para o Estado, já que o mesmo, muitas

vezes, trabalha com uma certa homogeneização das identidades, quer dizer, esse

“retorno étnico” é fenomenal diante da lógica dos órgãos públicos.

Mas o que é ainda mais interessante é o fato das populações locais seguirem a

lógica essencialista na qual o Estado, várias vezes, se apoia trazendo um discurso

histórico, onde a diferenciação étnica, no caso da Reserva, não seria legítima tendo em

vista a mistura interétnica pela qual a região do Alto Juruá passou. Ou seja, há

moradores não índios que cobram uma certa “purificação” mesmo tendo havido tantas

trocas culturais e casamentos interétnicos. Poderemos perceber isso com nitidez mais a

frente quando forem colocados no texto fragmentos de conversações com os moradores

da vila Restauração. Portanto, em um contexto de multiplicidade de

autorreconhecimentos, étnicos e não (“índio”, “branco”, “morador da Reserva”,

“reservistas”, “caboclo” etc) o Estado se embaraça, ele não tem noções prévias de como

27

É necessário entender o termo “intempestivo” como algo que uso para designar o caráter inesperado

que as “emergências étnicas” tem para o Estado e também, nesse caso, para os agroextrativistas. Apesar

de existir, pelo que consegui perceber, uma diferença entre o que é inesperado para o Estado, aqui falo de

um modo macro, Estado no sentido mais lato, contando com todas os seus “tentáculos”, e o que é

inesperado para os “brancos”, no sentido de que os últimos vivem a realidade local, veem os

acontecimentos, o andamento dos problemas mais concretos, já o Estado, mais do que todos, se

surpreende, pois o mesmo não tem conhecimento da realidade que se constrói a cada dia, os problemas

com os quais aquelas populações se confrontam.

85

lidar com essas situações. E talvez os pesquisadores (como eu mesmo) se embaracem

também, por assim dizer, buscando formas de enfrentar analítica e politicamente esses

contextos múltiplos e fluidos.

De um modo geral são casos em que há também, como pude notar, uma grande

mistura e divisão da opinião dos próprios agroextrativistas e indígenas, não havendo,

portanto, limites estabelecidos muito previamente.

Os dois lados do rio Tejo: diferenciação étnica e conflito no uso dos recursos naturais

Durante a minha estadia na vila Restauração, notei algo curioso: uma situação de

separação geográfica que começa a se fazer presente, a partir da qual na margem direita

do rio Tejo estão os moradores da Restauração e do lado esquerdo estão os Kuntanawa.

Acabei por achar interessante tratar dessa forma, mesmo que se refira a uma oposição, o

que, de certa forma o é, porém ainda não de modo muito drástico, pelo fato de que, por

vários momentos, as pessoas falavam de modo a opor os lados do rio. Tanto de um lado

como de outro, presenciei pessoas falando coisas do tipo “o pessoal do outro lado pensa

isso, faz aquilo...”. Portanto, tomo a liberdade de assim dizer.

É importante fazer um esclarecimento sobre a mudança de conceituação de

“emergência étnica” para “diferenciação étnica”. Como já tentei esclarecer no capítulo

anterior, é relevante entender a relatividade dos conceitos que são usados. No final do

segundo ano de PIBIC, durante a redação do artigo final, juntamente às considerações

da professora Mariana, foi decidido que a expressão “diferenciação” seria mais salutar e

verdadeira do que “emergência”. Explico isso, pois primeiro penso ser importante

considerar que os próprios Kuntanawa não tem lá suas simpatias com o termo

“emergência”, inclusive discordam do mesmo ao falar que eles não emergiram, mas sim

sempre existiram enquanto indígenas (Pantoja, 2008). E também o conceito de

“diferenciação étnica” chama atenção para os próprios fatos que contextualizam

historicamente a reivindicação étnico-territorial daquele povo indígena, já que assim

estou considerando que o que aconteceu foi, na verdade, um movimento de destaque da

identidade étnica, movimento político-subjetivo de “sublinhar” certas características já

conhecidas (no caso os Kuntanawa) frente ao poder público para lograr reconhecimento

étnico-territorial, assim mantendo o direito de conservar a floresta, como será falado

mais adiante.

Pude conhecer com os próprios moradores da vila Restauração, principalmente

com o seu Peba, histórias interessantes como a que conta que, já durante a criação da

86

Reserva, Antônio Macedo (coordenador regional do Conselho Nacional dos

Seringueiros) chegou a perguntar para o seu Milton se ele não gostaria de “tirar” uma

área para a sua família no igarapé Machadinho, ou se ele queria continuar politicamente

engajado com os seringueiros na defesa da Reserva. Seu Milton e sua família, diz a

história que ouvi, decidiram escolher a segunda opção. Logo, a ideia de emergência não

condiz com a perspectiva dos Kuntanawa, não dá nem mesmo conta do fato da

identidade étnica agora sublinhada pelo grupo, já que tal história mostra que os

Kuntanawa sempre existiram, porém em determinado momento para eles era mais

importante existir como seringueiros. Ser seringueiro na época da criação da Reserva

talvez não contrastasse tanto quanto hoje, pois hoje os Kuntanawa postulam direitos

étnico-territoriais para assegurar o “direito de preservar”, como vi mencionar o índio

Pedrinho Kuntanawa e o morador agroextrativista Caxixa, morador da comunidade

Cinco Voltas na foz do rio Tejo.

Porém, apesar de toda a diferenciação, é de se notar que algumas coisas são

compartilhadas entre as duas coletividades, ou seja, é necessário, desde cedo, assinalar

tanto uma circularidade como também uma convergência dos discursos e argumentos.

Ou seja, durante o processo de estudo e análise, mas principalmente a partir do trabalho

de campo, observei que tanto os Kuntanawa como os moradores da vila reclamam dos

mesmos problemas com os quais convivem, ou que eles veem. Apesar desses

problemas, ao que tudo indica, serem enfrentados de formas diferentes. Senão vejamos.

É muito visível nas conversas com os Kuntanawa que uma das coisas que mais os

mobilizou para uma reorganização coletiva para reivindicação de um território

propriamente indígena foi justamente a perda de controle e gestão sustentável dos

recursos naturais concernentes a Reserva. Reclamações contra a ineficiente fiscalização,

contra o uso inadequado e sem critérios dos recursos naturais, como a pesca e a caça

predatórias para comercialização dentro e fora da Reserva, extração ilegal de madeira e

contra a perda dos ideais e valores que foram estabelecidos e defendidos quando da

criação da UC fazem parte do diagnóstico feito pelos Kuntanawa. Sentem ainda que esta

perda de ideais e valores significa a deficiência de autonomia dos moradores em gerir os

seus territórios sem depender da presença direta dos órgãos governamentais. Quer dizer,

trata-se de reclamações que indicam sumamente o descontrole do uso dos recursos

naturais e o desequilíbrio político pelo qual a Reserva passa desde, principalmente, os

anos 2000, o que indica ainda a ausência do poder publico na fiscalização e na gestão da

UC, e também em questões muito básicas como saúde e educação.

87

Agora vejamos. Todo esse momento complicado é sentido pelos moradores da

Reserva enquanto um todo. Na pesquisa de campo, pude reparar que em todas as

comunidades pelas quais passei e visitei com os outros pesquisadores havia

reivindicações desses aspectos todos precedentemente citados. E na aldeia Sete Estrelas

dos Kuntanawa e na vila Restauração não foi diferente, e inclusive senti que os

problemas eram ainda maiores justamente na área de sobreposição, melhor dizendo, na

Restauração pude observar nas conversas temas que eram circulares, como a diminuição

de caças, de peixes em determinados rios e igarapés, e igualmente, percebi vastas áreas

de floresta que foram transformadas em pasto. Como disse ainda há pouco, esses

problemas estão sendo enfrentados e vividos por todos, seja pelos indígenas, seja pelos

agroextrativistas. Sem embargo, ao que consta, os dois grupos, até certo ponto, têm

maneiras diferentes de lidar com tais problemas.

Enquanto os moradores da Restauração estão, de certo modo, à mercê das

iniciativas e tomadas de decisão dos órgãos públicos e estão, talvez, congelados pela

ausência do poder público e o que poderia ser talvez descrito como uma paralisia da

associação de representação dos moradores da Reserva28

, os Kuntanawa, por seu turno,

se movem. E pudera, pois, querendo ou não, têm mais oportunidades, movimentam-se

em direções contrárias ao imobilismo estatal e da organização institucional local. Fazem

tal movimentação através da criação de redes comunicativas e cooperativas com outros

povos indígenas, logrando recursos e apoio em suas reivindicações. Vejo que os

moradores não indígenas acabam tornando-se mais enfraquecidos, de certa forma, por

não visualizarem facilmente ou saberem como operacionalizar oportunidades de

intercâmbios com outras instâncias políticas estratégicas e alternativas que façam com

que eles saiam dessa dependência do ICMBio ou da Prefeitura de Marechal

Thaumaturgo.

Em suma, há uma mesma preocupação por parte das duas coletividades com os

problemas que assolam a Reserva, embora os enfrentem de forma diferenciada. No caso

da sobreposição ocorre novamente um encontro – interesse de ambas sobre uma mesma

área que, mais do que habitada (poucos moradores teriam que sair), é intensamente

utilizada pelos moradores da vila e das aldeias Kuntanawa – e uma separação, espécie

de pomo da discórdia: os moradores da Reserva não podem acessar recursos de uma TI.

28

Trata-se da Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá

(ASAREAJ), que não está sendo alvo de análise nesta monografia. A mesma funciona na sede municipal,

em edifício pertencente à Prefeitura. A falta de projetos próprios tem tornado, conforme ouvi, a

ASAREAJ bastante dependente da Prefeitura e do ICMBio.

88

A manifestação da etnicidade Kuntanawa, portanto, implica uma demanda

territorial que se sobrepõe a um território de uso comum (pesca, caça e roçados) a vários

moradores da Reserva, e a grande maioria desses moradores mora na vila Restauração.

Irei, por conseguinte, contar de modo conciso como as pessoas da vila enxergam e se

posicionam perante essa situação, expondo algumas de suas falas.

As argumentações dos moradores da vila Restauração

Para este momento, buscarei organizar os principais depoimentos que recolhi

durante a minha estadia de dez dias na vila Restauração. Sublinharei as principais

entrevistas, mas também citarei falas mais secundárias, digamos assim. Digo isto

porque conversei não só com pessoas da Restauração, mas também com pessoas de

outras comunidades sobre a sobreposição, como, por exemplo, o próprio Antônio

Caxixa, com quem convivi durante boa parte da minha estadia em campo; com Eliéte,

moradora da comunidade Alegria e que tem parentesco com os Kuntanawa; o falecido

Pitanga, morador do rio Caipora; Zé Magro, também morador do mesmo rio; Natália e

Raimundo, casal que mora na comunidade Morro da Glória, no rio São João. Já na vila

Restauração tive a oportunidade de conversar com as seguintes pessoas: Nino,

Germano, seu Osterno, seu Peba, Pedro Santana, dona Zumira (esposa de Seu Peba),

dona Evanice, dona Evacir Pinto Mesquita, Marinete (filha de seu Peba e de dona

Zumira), Márcio (marido da Marinete), dentre outros que, infelizmente, não registrei os

nomes. Conversei também com integrantes dos Kuntanawa, Pedrinho, Ó, Haru, seu

Milton e dona Mariana, Cidoca, entre outros. Por fim, comecemos.

Em minha estadia na Restauração, entre os dias 23 de fevereiro e 5 de março de

2012, fiquei hospedado quase todo tempo na casa de seu Juscelino Rodrigues de Souza,

mais conhecido por seu Peba, uma pessoa bem antiga, com 52 anos de idade e

conhecida na Reserva, principalmente no alto rio Tejo. Na primeira entrevista gravada

que fiz com seu Peba, ele apresentou, a partir de um mapa da vila, de modo sucinto, o

que pensa sobre a situação de sobreposição. Observando e comentando a partir da base

cartográfica, ele começou falando que, na sua avaliação, o alto rio Tejo ficará todo

dentro da TI, e igualmente o igarapé Machadinho, “depois o Manteiga já pega área do

[rio] Bagé” (o leitor pode acessar dois mapas relativos à Reserva e outro mais específico

da TI reivindicada pelo Kuntanawa). Seu Peba foi me mostrando então a área pleiteada

89

pelos Kuntanawa, e afirmando que todo o povo da Restauração vai ficar limitado a uma

porção de terra que possui pouca caça e pouco peixe.29

“É a área melhor... onde você vai encontrar muita fartura, é uma área que o povo

da Restauração busca hoje, porque são lagos que foram feitos pela natureza, aí todas as

espécies estão lá”. Seu Peba mostrou nessa entrevista, através dos mapas, a sua

avaliação de que os moradores da Restauração tenderão a ficar presos numa área de

pouco valor. Nesse sentido, ele discorda dos limites colocados pelos indígenas, e isso

será inclusive visto nas falas de outras pessoas:

...Mas assim, de entrar cortando o Acuriá, uma parte do Acuriá, e aí vai subindo,

vai subindo pra confrontar com a área do Breu, e depois Jordão, uma área dos

Kaxinawa, pra sair aqui na boca dos dois rios [Tejo, Jordão]. Até porque a gente sabe

que lá proDourado não tem nada, até porque foi escolhido, porque ele [mencionando o

Seu Milton] também tem o conhecimento, como eu tenho, que aonde tem alimento que a

gente possa se alimentar, aí eu não sei como é que vai ficar essa questão dessa ‘reserva

indígena’, a gente vai ver, né? Eu creio que eu também não sou contrário, contra essa

área sair, mas eu quero de maneira que a gente também busque o alimento, faça isso,

busque uma madeira, pois do jeito que eles precisam sobreviver, com certeza nós

também precisamos sobreviver, de maneira, assim, de acordo um com o outro. Porque

nós somos brancos, mas ninguém nunca sovinou uma madeira, uma mata pra caçar,

nunca a gente foi contra, a gente foi parceiro de trabalho de muitos anos, desde que a

gente se conhece. Então, mas aí, com a retirada da área indígena não sei como é que

vai ficar, se vão manter a lei que a área indígena pede, porque ela proíbe, e que se

pegar um branco dentro da área pode ser preso, pode ser tomado tudo que vem

trazendo e pode ser multado também, e pra isso eu não tô bem certo assim se posso

concordar ou se não posso concordar. Sei que pessoalmente somos tipos uns irmãos,

nós se conhece de muitos anos, são bons parceiros, nunca tivemos dúvida nenhuma, e

eu não sou contra eles tirar a área indígena, se eu pudesse ajudar eu poderia até

ajudar, agora de maneira que pensem neles e pensem nos outros também, porque, na

verdade, os Kuntanawa são poucos em numero de pessoas pra atingir toda essa área

aqui, tem muita, muita terra, nunca vão acabar, e o povo branco que está desse lado

aqui fica muito agrupado só num canto só, porque não tem como se sair, porque detrás

29

Um mapa contendo a demanda Kuntanawa pode também ser encontrado no seguinte link:

http://www.novacartografiasocial.com/index.php?option=com_phocadownload&view=file&id=148:31-

kuntanawa-do-alto-rio-tejo-alto-jurua-ac&Itemid=64 (ultimo acesso em 29 de novembro de 2013).

90

dessa costa de terra, de mata que você tá vendo aqui já vem a área indígena do Bagé,

então só tem pedaço... (Seu Peba, Vila Restauração, 25 de fevereiro de 2012).

Percebemos aqui as primeiras constatações que se reafirmarão em vários outros

momentos nas conversas com seu Peba e com outros entrevistados, quais sejam: não há

de modo muito radical uma relação de oposição e de ilegitimidade à identidade étnica

Kuntanawa, mas sim há um conflito diante do uso coletivo que as duas coletividades

fazem dos recursos naturais de uma mesma área. A sobreposição em si mesma não

incide sobre todo o território que compreende a Restauração (ou melhor, o antigo

seringal Restauração), mas sim as áreas de uso comum, áreas onde atualmente todos os

moradores estão indo buscar caça, principalmente.

Apesar de não haver uma oposição drástica à auto-afirmação étnica, há outras

passagens menores dessa entrevista que devem ser comentadas, pois que fazem

referência a temas que foram recorrentes em diversas conversas com outros moradores.

Seu Peba falou sobre as “extravagâncias” que, diz ele, os Kuntanawa estão

acostumados a fazer, como, por exemplo, “matam e comem tudo de uma vez só”,

“caçam de muito, pescam de muito...”. Em contraparte, há também um certo “discurso

essencialista” que é repetido em várias conversas:

Todos nós era branco. Não existia Kuntanawa. Existia, mas não declarado.

Ninguém se declarava que queria ser Kuntanawa. Era simplesmente branco que nem

nós. Era o mesmo idioma, a tradição a mesma, as casas cobertas de alumínio e fechada

de madeira, é que os índios tem que ser de palha pra usar a tradição; o assoalho de

paxiúba pra usar a tradição... e usando do mesmo jeito que nós usava, né? Usasse

cusma, que é a tradição do índio; usar o que tem que usar, e não falava-se nisso (...) e

você vê a diferença só pelo traje e pelo idioma das pessoas (...).

Mas volto à transcrição de outra fala de Seu Peba, para reforçar a ideia da

importância dessa área de uso comum.

Agora, todo mundo sabe, o nosso mercado é a nossa floresta. Se fecharem essa

floresta o que é que somos de nós? Então é uns comer bem e outros passar fome,

porque não vai ter da onde tirar pra dar de sobreviver esse povo inteiro. Porque todo

mundo sabe que aqui é uma Reserva, ninguém tá permitido pra criar gado, pra ser

fazendeiro, pra isso o ICMBio e o IBAMA que proíbe de você fazer grandes campos pra

criar gado pra sustentar esse povo, com alimento. Aí já não vai criar porque é difícil, já

tem essa parte que a lei federal diz que nós não devemos derrubar a floresta, e nós só

91

contamos mesmo com a mata (...) Então, se for cortado assim, o branco vai sofrer, e a

gente não tem culpa disso né?.

Depois dessa fala, seu Peba retomou o assunto da discordância que os moradores

da Vila tem em relação à extensão de terra reivindicada pelos indígenas:

É uma extensão muito grande, e não tem gente pra ocupar toda essa terra, aonde

os brancos somos muitos. Mas essa área vai cobrir tudo. A gente tá aqui na

Restauração, eu vejo a largura do rio [Tejo]. Esse rio morre todo dentro da área deles.

O Machadinho é comprido que a gente gasta dia de motor subindo, e fica dentro dessa

área aqui [dos Kuntanawa], e o Tejo do mesmo jeito, é comprido que a gente gasta

mais de dia de motor subindo, e fica todo dentro dessa área deles. E aí pra onde é que a

gente vai? Pega uma parte do Acuriá também, uma parte do Caipora, outra parte do

São João. E o povo do São João e do Caipora vão falar sobre isso, e o povo do Acuriá

do mesmo jeito. O que eu sei é que o pessoal da FUNAI não vão consentir conviver

junto né? Porque índio é índio. (Seu Peba, Vila Restauração, 26 de fevereiro de 2012).

Vemos, portanto, uma discordância de seu Peba em relação à extensão da área

pleiteada pelos Kuntanawa, o que se pode ver claramente na entrevista que fiz com um

morador bem jovem, solteiro, o Germano. Conversei com ele pois o mesmo sempre foi

bem aberto à conversação e, além disso, se diferencia bastante de outros jovens da

Restauração, sendo muito empenhado em sua própria atividade agroflorestal. Em suas

falas, Germano demonstra grande preocupação com os rumos da Reserva e defende

bastante a preservação e uso sustentável da mesma. Ele sempre ressaltou nas conversas

a cerca da sobreposição a sua discordância não com a demanda étnico-territorial

Kuntanawa em si, mas sim com relação à extensão da área pleiteada.

O tamanho é muito exagerado, o tamanho que eles querem tirar. E também a

área que eles querem tirar é a única área que tem onde as pessoas ainda podem entrar

pra matar um animal pra comer, pra se alimentar mais a família. Aí a área que eles

querem tirar o pessoal tá achando um absurdo por causa disso, o tamanho que é

grande e também se eles chegarem a tirar não tem mais como a pessoa entrar pra

caçar (...) A gente é da família dos Kuntanawa, sabe? Mas a gente não se mistura com

a cultura deles, porque sempre a gente viveu assim sem ter contato com negócio de

índio, aí ninguém nem liga, não faz parte da cultura do povo deles, do pessoal que tá lá

no outro lado. (Entrevista com Germano no dia 26 de fevereiro de 2012).

Germano observou ainda que é possível que “haja confusão” se os Kuntanawa

chegarem a conseguir a área requerida por conta, principalmente, dos roçados que a

92

maioria das pessoas tem em vários lugares espalhados nas imediações da vila

Restauração.

É roçado na beira do rio, é roçado pra todo canto. Se eles chegarem a tirar acho

que, se eles chegarem a fazer uma indenização, dá confusão porque tem gente que

mora há tanto tempo aqui e de uma hora pra outra chegar uma lei pra tirar os caras,

desabrigar as pessoas, perder o que tem... (Germano, 26 de fevereiro de 2012).

Germano reafirma ainda questionamentos, como “onde é que fica a

sobrevivência? As pessoas vivem da caça, dos roçados, dos plantios, né?”. Além disso,

ele diz: “já tem a proibição do gado, vai tirar carne de onde se não for de caça?”, e

reclama inclusive do próprio plano de manejo da Reserva, pois “não vê o lado do

pessoal da mata como se manter, não pensa em açude, mercado pra comprar alimentos”.

O morador Antônio Osterno da Silva, casado com uma sobrinha e filha de criação de

Seu Milton, também reitera essa opinião: “mas é uma área muito grande, de

sobrevivência de outros moradores”.

Diante dessas informações que são muito repetidas por outros moradores da vila,

pude notar uma circularidade de argumentações que envolvem não só os dois lados do

rio Tejo, mas também outras localidades da Reserva. Estou falando novamente das

conversas sobre os altos níveis de desmatamento na Reserva, o uso predatório dos

recursos naturais, no que se inclui: a caça e a pesca predatórias, extração ilegal de

madeira para comércio na sede do município de Marechal Thaumaturgo. Isto tem como

consequência a insatisfação e questionamento quanto aos órgãos estatais responsáveis

pela gestão da Reserva. Essa insatisfação de muitos implica uma descrença e

reavaliação da vigência do Plano de Utilização. Como pudemos ver anteriormente, isso

ficou claro nas falas de seu Peba e do Germano, por exemplo. E com os Kuntanawa,

sucede-se a mesma avaliação. A partir principalmente do descontrole do uso dos

recursos naturais, eles, como se tivessem outra “carta na manga”, se retiram dessa

realidade que a Reserva vive, para tentar construir outra realidade, outro território.

De certa forma, os Kuntanawa começam a se inserir numa outra esfera de ações e

começam a ter mais disposição e espaço para ações políticas, sendo, então, libertos da

imobilidade e inação dos órgãos governamentais, enquanto que os moradores

agroextrativistas têm menos redes de conexões para movimentações políticas mais

ágeis, digamos assim, mesmo que existam já pequenas ações que possam mudar essa

paisagem de desequilíbrio político e uso indiscriminado dos recursos naturais, como

será pontuado nas conclusões desta monografia.

93

É importante observar uma certa “rivalidade” criada entre direitos diferentes, mas

muito semelhantes ao mesmo tempo, direitos expressamente estabelecidos

constitucionalmente, mas que nem sempre são resguardados pelo Estado que é moroso

em seu tratamento com as causas, que toma, às vezes, medidas que apenas protelam os

problemas. Além disso, a diferenciação em termos legislativos entre os dois grupos

distintos tende, muitas vezes, para uma relação conflituosa.

Eliza Lozano Costa (2007) assinalou, em relação ao conflito travado entre os

Arara do Amônia, moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá e parceleiros do PA,

que não se trataria de uma situação que envolve “mocinhos e bandidos”, de quem tem

mais direito e de quem deve ser punido, e sim uma questão que exige uma ação

inovadora, como diz a autora, por parte dos poderes públicos. Enfim, uma atitude que

reverta esse cenário que inclui e exclui ao mesmo tempo.

Mas, essa não é a verdadeira questão. A nossa constatação é que o conflito de

usos assinala uma situação, como estamos a ver, onde não há uma negação da

legitimidade da identidade étnica Kuntanawa de forma muito constante e agressiva,

digamos assim. Há, na verdade, uma preocupação dos moradores da Vila de perderem o

direito de usar os recursos de uma área essencial para o modo de vida de muitos deles, a

despeito do crescimento caótico daquela.30

Pode-se indicar, portanto, um conflito de

usos existente nessa sobreposição, de usos sobrepostos, por assim dizer. Ou seja, vi que

a todo tempo os argumentos dos agroextrativistas recaem na problemática de onde eles

tirarão o seu alimento. A reclamação maior seria em relação às regiões melhores de caça

e pesca. E também há uma preocupação grande com os roçados que estão na área que os

Kuntanawa estão requerendo. Por exemplo, o roçado de seu Peba, o qual eu visitei será

atingido pela futura TI.31

É de se avaliar também que em algumas conversas com integrantes dos

Kuntanawa percebi uma possível fonte de conflitos em relação às áreas que ficariam

livres para os “brancos” explorarem. Ouvi, por exemplo, José Osmildo, mais conhecido

como “Ó”, e também seu Milton falarem que os não índios poderiam ir caçar em matas

dos igarapés (Moreira e Dourado) fora da TI, áreas essas que, como podemos ver acima,

foram reconhecidas por seu Peba como áreas “que não têm nada”, ou seja, não haveria a

30

Sobre o crescimento da Vila Restauração veja a dissertação de mestrado de Roberto Rezende (2010). 31

Entenda-se que não há, portanto, na vila Restauração, uma continuidade territorial em relação às casas

de moradia e os roçados e plantios das famílias, isto é, os roçados são, muitas vezes, um pouco mais longe

de casa. Por exemplo, seu Peba mora no lado direito de quem desce o rio Tejo, porém o seu roçado fica

no outro lado do rio.

94

fartura de caça a que estão acostumados no alto rio Tejo e sobre a qual defendem seus

direitos de acesso.

Tive também a impressão de ter percebido certo ressentimento das pessoas mais

antigas, que participaram, diria, da construção de uma ordem coletivamente instituída –

no caso, a criação da Reserva. É como se alguns enxergassem, na demanda Kuntanawa,

a quebra de vínculos de amizade e lealdade aos ideais da Reserva, mesmo que estes

venham perdendo muito de sua essência. Os Kuntanawa, por seu turno, parecem ter

reconhecido na demarcação de uma TI a melhor alternativa para manter atividades que

são típicas de uma área de conservação. Porém, isso é análogo ao que pessoas como os

“agentes agroflorestais” da Reserva estão defendendo (Pantoja e Mattos, 2012).

95

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parece-me que não seria exclusividade dos Kuntanawa a insatisfação pela

realidade “de destruição” dos princípios e normas de funcionamento da Reserva.

Moradores da vila Restauração e de outras localidades também recorrem a alternativas e

procuram meios de ainda fazer valer a vida naquele espaço, sendo contrárias às grandes

criações de fazendas, às derrubadas, à caça e pesca predatórias para comércio, dentre

outros problemas correntes. Nessa direção, em novembro de 2011 foi criado o “Grupo

Agroflorestal Vida e Esperança”, onde as famílias que dele fazem parte trabalham na

recuperação de áreas degradadas e na implantação de sistemas agroflorestais que visam

a diversificação da alimentação diária e a criação de outras alternativas econômicas.

Esse trabalho é liderado pelo, já nosso conhecido nesta monografia, Antônio Caxixa,

que é um “incentivador da diversificação dos cultivos visando a alimentação e a

conservação da floresta...” (Pantoja e Mattos, 2012, p. 157).

Lembro-me que seu Peba, seus filhos e outros parentes e vizinhos observavam por

muito tempo, de modo realmente detido, os mapas que eu portava, mapas da vila

Restauração, que mostravam imagens de satélite de áreas desmatadas e não desmatadas.

Desse modo, eles iam reconhecendo e pontuando os lugares que realmente estavam

sendo transformados em campo para criação de gado e, em contraste, as áreas de refúgio

de caça. De toda maneira, quero afirmar que há moradores da Reserva que estão

buscando, mesmo que ainda timidamente, outras táticas mais emancipatórias, digamos

assim. O grupo agroflorestal “Vida e Esperança” é, talvez, o maior exemplo disso. Tem-

se tentado sair das amarras da ação dos órgãos estatais que se baseia justamente, por

vezes, no não agir.

Neste sentido, cogito que se trata de uma fronteira muito estreita a que separa os

agroextrativistas “brancos”, ou pelo menos parte deles, dos indígenas. Mas, ao mesmo

tempo, é uma fronteira que, uma vez estabelecida, delimita direitos territoriais. Essa

mesma fronteira tem contida nela, além de tudo, uma identidade étnica assumida, e isso

é decisivo.

Por outro lado, é compreensível a resistência dos moradores da Restauração. Para a

família de seu Peba, por exemplo, que está na vila há nove anos, além da possível perda

do roçado e mudança das áreas de caça, está em jogo também a perda de um território

constituído que envolve uma dimensão sentimental, modos de vida adequados de

acordo com a distância entre o roçado, casa de farinha e a casa de moradia. Lugares

96

esses que são locais de descanso nos finais de semana, como me disse seu Peba, que

gosta de passar estes dias com a família num lugar menos movimentado e menos

quente, já que a vila é praticamente já um núcleo populacional com características de

uma cidadezinha.

Há, contudo, uma grande contradição presente no modo de vida na vila Restauração.

Se, de um lado, seus moradores falam na necessidade de locais de caça e pesca

abundante, por outro lado, resistem em sair da vila, pois como explicou dona Zulmira,

esposa de seu Peba, se morassem em colocações mais distantes, perderiam a chance de

colocar os filhos na escola, não teriam o Bolsa Família, e nem seu Peba estaria

empregado. Ou seja, independente de poderem ficar em suas casas (pois a TI não afetará

a área de moradia da vila), mas não terem como caçar e terem que abandonar os seus

roçados, há essas outras razões não aceitar completamente a demanda territorial

Kuntanawa. Observa-se nisso uma contradição na vivência na vila, pois se anuncia ali

um crescimento sem precedentes, um crescimento populacional que, a princípio não

converge com a quantidade de recursos naturais ali oferecidos.

O caso Kuntanawa coloca claramente em questão, portanto, o próprio

destino da Reserva como UC de Uso Sustentável. A TI Kuntanawa confronta a presença

de uma vila cujo sistema de vida de seus moradores parece se distanciar

progressivamente da vida no seringal, ou na floresta. A TI, neste sentido,

paradoxalmente, recoloca a questão da conservação ambiental, pois questiona o modo

como os recursos naturais estão sendo utilizados pelos moradores da Reserva e o modo

de vida que estes estão cultivando (tornando-se assalariados, por exemplo, e não mais

autônomos), deixando no ar a pergunta sobre o próprio futuro da Reserva frente a todas

essas mudanças.

Do ponto de vista dos moradores da vila, por outro lado, o futuro da Reserva

também se coloca, pois há sim insatisfações com os desmatamentos e caçadas

predatórias. Parece-me que haveria uma diferença entre gerações, os mais velhos, como

seu Peba, sentindo falta da “vida na mata”, associada, entre outros, a fartura de caça.

Dona Zulmira, por sua vez, repete sempre os benefícios de que agora usufruem, como o

Bolsa Família e o “estudo” para os filhos, o que considera pontos positivos da vida na

vila. Os mais novos, como os próprios filhos do casal, não cogitam em nenhuma

hipótese morar em colocações como fizeram seus pais. Sair da vila significaria ir para

outra localidade maior, como a sede municipal. Percebi, de alguma forma, algo que

mencionei em conversas com a minha orientadora, como o surgimento cada vez mais

97

forte de um “espírito citadino” que envolve principalmente a população mais jovem.

Germano, contudo, que ainda não possui esposa e filhos, reflete sobre políticas e ações

que poderiam melhorar as condições de vida na vila, compatibilizando-a com a Reserva,

como a existência de açougues (já que há rebanhos expressivos no entorno) e açudes,

diminuindo, em tese, a pressão sobre a caça.

Durante grande parte do meu estudo pensei em poder ouvir e analisar o ponto de

vista dos moradores brancos envolvidos em casos de sobreposição territorial. Esse

objetivo foi alcançado. O mais interessante de tudo é que, a partir do contraponto

articulado entre índios e não índios, terminei por perceber algo muito importante: o fato

de que o problema, como vimos, é bem maior e diz respeito não só a uma oposição

entre populações juridica e etnicamente diferenciadas, mas também, e muito mais, a

problemática na qual a Reserva Extrativista do Alto Juruá está inclusa.

98

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