O marcelismo, a Igreja e os católicos

22
José Barreto ________________________________________________________ O marcelismo, a Igreja e os católicos Versão corrigida do texto publicado em F. Rosas e P. A. Oliveira, A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), Lisboa: Editorial Notícias, 2004, pp. 137-170. 1. A herança Quando em Setembro de 1968 Marcelo Caetano assumiu a chefia do governo, encontrou bastante transfigurado e abalado o pilar católico da “frente nacional” em que o regime de Salazar apoiara a sua instauração e conservação. Tanto no plano interno como externo, sinais evidentes de um mal-estar tinham começado a ensombrar o harmonioso relacionamento do Estado Novo salazarista com a Igreja. A crescente hostilidade por parte de um sector da elite católica nacional, bem como relações pontualmente tensas com Roma faziam do dossier Igreja uma herança intranquila para o novo chefe do governo. Caetano enfrentou os problemas colocados por esse legado com atitudes e medidas que, em geral, denotaram da sua parte maior maleabilidade e adaptabilidade aos tempos que corriam que o seu predecessor. Contudo, as causas profundas dos problemas do regime com um sector da Igreja e dos atritos diplomáticos com o Vaticano mantiveram-se inalteradas durante os cinco anos e meio de governo marcelista. As manifestações do mal-estar conheceram logo desde o início um agravamento, frustrando até certo ponto o esforço desenvolvido por Caetano de captação e reunificação do campo católico em apoio do governo e do seu programa de “renovação na continuidade”. Com efeito, a oposição de alguns meios católicos ao regime ampliou- se e radicalizou-se, enquanto certos movimentos e correntes de opinião católicas internacionais adversos ao governo português intensificavam as suas pressões. Por seu turno, o Vaticano, aproveitando também a abertura do novo curso marcelista, ensaiou relativamente a Portugal e à África portuguesa, não propriamente uma viragem diplomática, mas uma política de pequenos passos e actos simbólicos, criando, porém, com isso problemas inesperados e graves ao governo. Boa parte, enfim, daqueles católicos críticos do salazarismo que tinham começado por corresponder ao apelo congregador e renovador de Caetano acabariam, com o tempo, por se afastar dele, em rupturas por vezes dramáticas e de recíproca desilusão. O esteio católico do regime, embora na aparência ainda sólido e funcional em 1968, enfraquecera, de facto, gradualmente desde a II Guerra Mundial, devido à conjugação de duas ordens principais de factores. No plano doméstico, dera-se o aparecimento no seio do clero e, sobretudo, da militância das organizações católicas de leigos, de uma atitude questionante, depois crescentemente contestatária, protagonizada por personalidades e grupos que criticavam o regime e o comprometimento da

Transcript of O marcelismo, a Igreja e os católicos

José Barreto

________________________________________________________

O marcelismo, a Igreja e os católicos

Versão corrigida do texto publicado em F. Rosas e P. A. Oliveira, A Transição Falhada. O Marcelismo e

o Fim do Estado Novo (1968-1974), Lisboa: Editorial Notícias, 2004, pp. 137-170.

1. A herança

Quando em Setembro de 1968 Marcelo Caetano assumiu a chefia do governo,

encontrou bastante transfigurado e abalado o pilar católico da “frente nacional” em que

o regime de Salazar apoiara a sua instauração e conservação. Tanto no plano interno

como externo, sinais evidentes de um mal-estar tinham começado a ensombrar o

harmonioso relacionamento do Estado Novo salazarista com a Igreja. A crescente

hostilidade por parte de um sector da elite católica nacional, bem como relações

pontualmente tensas com Roma faziam do dossier Igreja uma herança intranquila para o

novo chefe do governo.

Caetano enfrentou os problemas colocados por esse legado com atitudes e

medidas que, em geral, denotaram da sua parte maior maleabilidade e adaptabilidade

aos tempos que corriam que o seu predecessor. Contudo, as causas profundas dos

problemas do regime com um sector da Igreja e dos atritos diplomáticos com o Vaticano

mantiveram-se inalteradas durante os cinco anos e meio de governo marcelista.

As manifestações do mal-estar conheceram logo desde o início um agravamento,

frustrando até certo ponto o esforço desenvolvido por Caetano de captação e

reunificação do campo católico em apoio do governo e do seu programa de “renovação

na continuidade”. Com efeito, a oposição de alguns meios católicos ao regime ampliou-

se e radicalizou-se, enquanto certos movimentos e correntes de opinião católicas

internacionais adversos ao governo português intensificavam as suas pressões. Por seu

turno, o Vaticano, aproveitando também a abertura do novo curso marcelista, ensaiou

relativamente a Portugal e à África portuguesa, não propriamente uma viragem

diplomática, mas uma política de pequenos passos e actos simbólicos, criando, porém,

com isso problemas inesperados e graves ao governo. Boa parte, enfim, daqueles

católicos críticos do salazarismo que tinham começado por corresponder ao apelo

congregador e renovador de Caetano acabariam, com o tempo, por se afastar dele, em

rupturas por vezes dramáticas e de recíproca desilusão.

O esteio católico do regime, embora na aparência ainda sólido e funcional em

1968, enfraquecera, de facto, gradualmente desde a II Guerra Mundial, devido à

conjugação de duas ordens principais de factores. No plano doméstico, dera-se o

aparecimento no seio do clero e, sobretudo, da militância das organizações católicas de

leigos, de uma atitude questionante, depois crescentemente contestatária, protagonizada

por personalidades e grupos que criticavam o regime e o comprometimento da

2

hierarquia da Igreja com os poderosos. Já em 1958 o bispo do Porto se queixara, na sua

célebre carta-memorando a Salazar, de que a Igreja em Portugal, em consequência de se

encontrar “terrivelmente” comprometida com o corporativismo e outras políticas do

Estado Novo (exceptuava então ainda a política ultramarina), estava “perdendo a

confiança dos seus melhores”. Externamente, por seu turno, verificara-se um sensível

arrefecimento das relações do governo com os sucessores de Pio XII e, após a eclosão

das guerras coloniais, uma crescente hostilidade ao regime português por parte de

algumas faixas da opinião pública católica mundial. Interna como externamente, receios

e interrogações vários sobre o futuro da Igreja em Portugal provocavam uma certa

ansiedade entre os católicos. Pela sua própria natureza, a Igreja estava muito mais atenta

às questões do médio ou longo prazo do que o declinante governo de Salazar.

Colateralmente, outros problemas, do foro mais propriamente religioso ou

eclesial, confluíram para essa fragilização do sustentáculo católico do regime autoritário

português, decorrentes, em parte, da crise em que a própria Igreja (e não só a

portuguesa) começou a entrar na década de 60, com a escassez de “vocações”

sacerdotais, os numerosos abandonos do sacerdócio e o declínio da prática religiosa dos

fiéis a despovoar os seminários e as igrejas, tendências agravadas ainda pelo êxodo em

massa da população rural para as cidades e para a emigração europeia. A isso acresceria,

nos anos finais da década de 60, na sequência também do Concílio do Vaticano II, uma

“crise de autoridade”, uma “quebra de obediência” e uma “contestação permanente” no

seio das estruturas eclesiásticas ‒ fenómenos muito glosados pelo então patriarca de

Lisboa, que neles apontava a essência da debatida “crise da Igreja”1. Quando Marcelo

Caetano chegou ao poder, o octogenário cardeal patriarca D. Manuel Gonçalves

Cerejeira, alvo já de contestação aberta por uma parte do seu clero diocesano, estava

empenhado numa batalha pública contra as forças que alegadamente promoviam, de

dentro, a “dispersão do rebanho” e até a “desintegração” e “autodestruição” da Igreja2.

Uma batalha ‒ acusavam por sua vez os contestatários ‒ pela conservação das estruturas

autoritárias da Igreja.

Em compensação, é verdade, a grande maioria dos bispos da Metrópole e do

Ultramar, liderados pelo patriarca de Lisboa ‒ e com alguns sólidos apoios na Cúria

romana ‒ continuavam a assegurar uma relação de harmonia e colaboração com o

regime, do qual muitos eram entusiásticos apoiantes3. Igualmente, grande parte dos

sacerdotes ou se mantinham fiéis à aliança nacional-católica com o poder ou, pelo

menos, segundo a pia convicção expressa por Marcelo Caetano em 1970, não se

desviavam do seu “ministério espiritual” e não se imiscuíam nos problemas do “governo

temporal da sociedade”, não inquinando, assim, “o espírito de fiéis habituados a seguir

confiadamente os seus pastores”4. A “infecção” (sic) contestatária penetrara apenas uma

1 D. Manuel Gonçalves Cerejeira, A Crise da Igreja, União Gráfica, Lisboa, 1969

2 Vejam-se, além da obra atrás citada, os textos reunidos em D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Obras

Pastorais, vol. VII (1964-1970), União Gráfica, Lisboa, 1970, especialmente as mensagens de Natal de

1968 e 1969 e os quatro documentos reproduzidos a páginas 271-293.

3 Entre os principais, a avaliar pelo conteúdo da correspondência existente no Arquivo Salazar, destacam-

se, nos anos 50 ou 60, além do patriarca de Lisboa, os arcebispos de Braga, Évora e Mitilene, o cardeal D.

José da Costa Nunes e o bispo emérito de Cabo Verde, D. Rafael da Assunção.

4 Marcelo Caetano, “Balanço de dois anos de governo: a reforma da sociedade portuguesa tem de ser feita

em paz”, discurso proferido a 27 de Setembro de 1970 perante as comissões distritais da ANP.

3

“ínfima minoria do clero”, acreditava Caetano, ainda que não pretendesse desvalorizar a

“gravidade inegável” da situação.

Fátima, pelo seu lado, continuava a atrair anualmente milhões de peregrinos,

assegurando desse modo, em contraponto aos aspectos citados da “crise da Igreja”, uma

imagem tradicional e tranquilizadora do panorama católico nacional, que servia à

hierarquia da Igreja e ao poder político para vincar o contraste entre a alegada vitalidade

espiritual da massa dos crentes e a acção contestatária, dissolvente, desmoralizadora ou

antipatriótica de “minorias activas” de católicos. Mas Fátima ‒ em que o cardeal

Cerejeira, para além do fenómeno devocional de massas, via manifestado “o sentido da

história mundial que vivemos” 5

‒ era também um baluarte do nacionalismo católico, do

anti-laicismo e do anticomunismo, um lugar seguro, incorrupto e inspirador no meio da

“confusão ideológica” e da “inquinação que tem atingido o espírito e o coração até de

muitos que são e querem ser cristãos”6.

2. Uma elite católica contestatária

Na última década de governação de Salazar (1958-1968) ‒ anos da “resistência”

e do “último combate” do ditador, nas expressivas palavras do seu biógrafo ‒ assistiu-se

em Portugal à formação gradual de uma inédita vaga de dissidência política católica,

protagonizada por grupos de jovens militantes e intelectuais com ligação às

organizações da Acção Católica e a algumas figuras tutelares do clero. A Acção

Católica, elite dos leigos, afastando-se da função predominantemente espiritual de

apostolado a que Salazar, sem grande êxito, a quis desde sempre confinar, estava

lentamente a tornar-se, perante a impotência dos bispos para conter o fenómeno, num

alfobre de contestatários de vários matizes. Alguns deles, entrando em choque com as

autoridades estatais e eclesiásticas, acabavam por desertar ou ser afastados das

organizações de leigos, chegando a abandonar a própria Igreja7.

No seio do clero também se começaram a verificar acções e posições colectivas

de padres ‒ umas já no imediato seguimento do caso do bispo do Porto, outras após o

Concílio do Vaticano II. Nessas movimentações, as considerações políticas cruzavam-se

com as críticas, cada vez menos veladas, à hierarquia. Muitos dos sacerdotes

regressados de estudos teológicos ou filosóficos nas universidades de Roma, Lovaina,

etc., traziam consigo, sobretudo após o Concílio, o germe dessa dupla contestação, sob a

forma de uma concepção actualizada da Igreja e duma nova visão dos problemas do

meio social e político em que a Igreja desenvolvia a sua missão. Foi também em Roma

que vários sacerdotes africanos das colónias portuguesas foram adquirindo, no pós-

guerra, uma certa consciência política, caso do angolano Joaquim Pinto de Andrade.

5 D. Manuel Gonçalves Cerejeira, “Nota pastoral de confiança e exortação nacional”, com data de 20 de

Janeiro de 1962, assumindo “as dores da Pátria” pela perda de Goa, a “jóia mais preciosa” do “tesouro”

pátrio (Obras Pastorais, vol. VI, União Gráfica, Lisboa, 1964, pp. 409-416).

6 Idem, ibidem.

7 João Bénard da Costa, nas suas excelentes memórias de militante católico (Nós os Vencidos do

Catolicismo, ed. Tenacitas, Lisboa, 2003), sustenta mesmo que “quase todos” os católicos contestatários

deixaram o catolicismo (p. 99).

4

Este fenómeno disperso e espontâneo de distanciamento crítico em relação ao

regime ‒ unanimemente considerado como circunscrito a uma minoria no panorama

católico nacional ‒ foi sempre, desde os seus primórdios nos anos 40, amalgamado e

rotulado de “progressismo” pelo poder e pelo próprio episcopado, para os quais toda a

crítica pretendidamente católica ao Estado Novo era suspeita de contaminação marxista.

Na verdade, porém, sem verdadeira coesão doutrinária (para além da afirmação de

princípios genéricos de doutrina cristã e, em particular, da chamada doutrina social da

Igreja), sem uma plataforma programática, sem liderança, sem verdadeira legitimidade

representativa e, inicialmente, sem outros meios organizativos que os precariamente

proporcionados, quando o eram, pelas próprias estruturas eclesiais (Acção Católica,

algumas paróquias), a vaga nascente de dissidência política católica radicava numa

motivação central unificadora: o almejado “descomprometimento” da Igreja em relação

ao Estado Novo, isto é, a rejeição da “confusão” anteriormente estabelecida entre a

Igreja e a política do Estado Novo8. Tal confusão era percebida como obstáculo de

monta à evangelização em largos sectores da sociedade, sobretudo laborais, estudantis e

intelectuais, colocando também em risco, perante a eventualidade de uma reviravolta

política, o futuro do catolicismo e da Igreja em Portugal. Muito mais do que por efeito

duma “contaminação” ideológica vinda do exterior, os contestatários católicos eram,

pois, movidos em primeiro lugar por uma interpretação particular, mas zelosa, dos

interesses da Igreja e da moral cristã.

O caso do bispo do Porto ‒ nascido, no seguimento das eleições presidenciais de

1958, da referida exigência de descomprometimento em relação ao poder e da

preocupação com o futuro da Igreja no pós-salazarismo ‒ tinha pela primeira vez aberto

uma brecha visível quer na aliança da hierarquia com o regime, quer no seio do

episcopado, até então aparentemente unido em torno do cardeal Cerejeira. O grave

conflito entre o ditador e o ainda jovem bispo do Porto ‒ que certos meios do Vaticano

viam como a grande esperança do episcopado português ‒ actuara como revelador e

catalisador das clivagens políticas do clero e dos católicos portugueses, gerando também

inéditas tensões entre a Cúria de Roma e o governo de Lisboa. O exílio estrangeiro a

que o ditador forçou o bispo contou com o aval silencioso do episcopado nacional e, até

certo ponto, a complacência do papa João XXIII9. No entanto, o bispo D. António

Ferreira Gomes viu ser-lhe mantida por Roma, durante esses dez anos, a titularidade da

diocese do Porto, tornando-se assim numa espécie de figura tutelar dos católicos

resistentes ao regime, num símbolo da adiada perspectiva de aggiornamento da Igreja

portuguesa, bem como numa reserva da Igreja para o incerto futuro pós-salazarista. O

impacto da intervenção do bispo e o exemplo do seu longo exílio foram poderoso

incentivo para o arranque, nos anos 60, da oposição católica que, até às eleições

presidenciais de 1958, se mantivera numa fase bastante incipiente.

No exílio, a posição do bispo do Porto sobre várias questões eclesiais e políticas,

particularmente em matéria de política ultramarina, evoluiria no sentido dum cada vez

maior distanciamento em relação ao episcopado nacional e ao regime, tendo-se

8 Francisco Lino Neto, “Considerações de um católico sobre o período eleitoral” (Junho de 1958), em

Padre J. Felicidade Alves (edição e apresentação), Católicos e Política. De Humberto Delgado a Marcelo

Caetano, Lisboa, 1969, pp. 17-30.

9 Ver, do autor do presente trabalho, “O caso do Bispo do Porto” em A. Barreto e F. Mónica, Dicionário

de História de Portugal, vol. VII, Figueirinhas, Porto, 1999; “O caso do Bispo do Porto em arquivos do

Estado”, em Profecia e Liberdade em D. António Ferreira Gomes - Actas do Simpósio, Lisboa (1999),

AIQS, 119-145; e D. António Ferreira Gomes, Carta ao Cardeal Cerejeira (16 de Julho de 1968),

introdução e notas de José Barreto, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1996.

5

nomeadamente solidarizado com os padres angolanos deportados em Portugal10

.

Bastante exaustiva a respeito das posições do bispo, em 1968, sobre o colonialismo

português é a sua importante carta ‒ igualmente motivada pelo caso dos padres

angolanos ‒ ao arcebispo de Conakry, Raymond-Marie Tchidimbo, extenso documento

ainda hoje inédito, mas que não pode ter deixado de causar um forte impacto no seio do

episcopado português e até, plausivelmente, do Vaticano11

. Não é certamente por acaso

que, em 1968, Salazar e Franco Nogueira, que tinham dado por “encerrado” o caso do

bispo do Porto, continuavam a excluir em absoluto o regresso do prelado à diocese e ao

próprio país, mas alegando agora, note-se bem, que essa eventualidade teria como fatal

consequência nada menos que “a perda das nossas possessões ultramarinas”12

.

A partir da atitude inicial de simples descomprometimento, o movimento de

contestação católica ‒ sem abandonar o carácter disperso e grupuscular da sua acção,

sem sair do patamar de relativa indefinição programática e sem admitir a hipótese de se

organizar politicamente numa base confessional para, nomeadamente, se apresentar às

eleições separadamente do resto da oposição ‒ evoluiria ocasionalmente para outras

acções e posições críticas ou reivindicativas no domínio das liberdades individuais, dos

direitos políticos, da justiça social, da acção sindical, da política económica (em que foi

relevante a acção de um escol de jovens economistas católicos), da educação, da cultura

e informação (lançamento das cooperativas Pragma e Confronto, da revista O Tempo e o

Modo e da publicação clandestina Direito à Informação) e, mais adiante, no domínio da

contestação da política ultramarina e da guerra colonial. Nestes diferentes planos, os

militantes católicos, embora mantendo alguma coesão grupal, não se esquivariam a um

crescente diálogo e colaboração com sectores oposicionistas da esquerda laica, fossem

eles marxistas.

A precária cobertura fornecida pela Igreja e pela Acção Católica serviu, até certo

ponto, de pára-raios contra a repressão policial, daí também a decisão de os

contestatários católicos se terem sempre apresentado sob o simples rótulo de católicos,

embora lhes fosse comummente acrescentado, de fora, o qualificativo progressistas, que

uns acabariam por assumir, outros não13

. A hierarquia podia, pela sua parte, negar essa

cobertura e muitas vezes o fez, por exemplo, desautorizando ou destituindo dirigentes

da Acção Católica, amiúde no seguimento de pressões governamentais, como em 1958.

O reclamado direito de expressão e intervenção política dos contestatários sob o rótulo

de católicos, chocava com a autoridade, as posições e os compromissos dos bispos e,

em geral, com o campo católico apoiante do regime. O relacionamento entre a elite

contestatária católica e os seus bispos era, pois, bastante difícil, mutuamente acusatório

de parcialidade política, mas muitas vezes também ambiguamente afectivo ‒ pelo

menos numa primeira fase, em que a “indisciplina” e “desobediência” dos contestatários

10

Carta de D. António Ferreira Gomes a Joaquim Pinto de Andrade, 13 de Maio de 1967 (dia da

deslocação de Paulo VI a Fátima, lamentada pelo bispo do Porto), reprod. em Mário Brochado Coelho,

Em Defesa de Joaquim Pinto de Andrade, Afrontamento, Porto, 1972, pp. 127-128.

11

Trata-se de uma carta dactilografada, em francês, de 52 páginas, datada de 26 de Dezembro de 1967

(Arquivo da Fundação Spes), de que o bispo do Porto anexou uma cópia à carta que em 16 de Julho de

1968 enviou ao presidente da conferência episcopal portuguesa (ver Carta ao Cardeal Cerejeira, cit., p.

39, nota).

12

Carta do embaixador no Vaticano, Eduardo Brasão a Marcelo Caetano, de 6 de Junho de 1969, em J.

Freire Antunes, Cartas Particulares a Marcelo Caetano, 1.º vol., D. Quixote, Lisboa, 1985, p. 242.

13

João Bénard da Costa, Nós os Vencidos…, cit., e José Barreto, “Oposição e resistência de católicos ao

Estado Novo”, em Religião e Sociedade. Dois Ensaios, ICS, Lisboa, 2002, pp. 121-126.

6

não atingira o ponto de ruptura com a hierarquia. No respeitante ao clero, os momentos

fulcrais desta ruptura seriam a crise no Seminário dos Olivais, em 1967-68, que se

saldaria pela demissão colectiva de sete professores, incluindo o reitor e o vice-reitor, e

o quase simultâneo processo canónico de destituição, em 1968, do pároco de Belém,

José da Felicidade Alves, alvo também dum processo da PIDE por “incitação à luta

política pela violência e pelo ódio”. Ambos os casos tinham surgido por razões políticas

e opuseram o cardeal Cerejeira a padres contestatários que com ele tinham

anteriormente mantido relações de grande proximidade.

Apesar de tudo, a expressão de divergências políticas teve durante muito tempo

dentro da Igreja um espaço de liberdade e de expressão mais vasto do que fora das suas

estruturas. O próprio cardeal Cerejeira, infatigável promotor da unidade da Igreja pela

via do mando, mas também prudente cultor de imagens e “bandeiras” que atestassem a

sua reclamada independência em relação ao regime, agiu várias vezes junto do governo

em defesa das organizações e militantes da Acção Católica que, actuando por sua conta

e risco, incomodavam o poder. Ao mesmo tempo que instava os militantes a situarem a

sua acção num plano espiritual, “fora e acima da política”, o patriarca também declarava

que a religião não podia ficar “confinada na sacristia”.

Surpreendente, até certo ponto, foi o facto de Cerejeira se ter abstido de

desautorizar publicamente os 101 católicos signatários de um importante manifesto

político 14

divulgado no final da campanha eleitoral de 1965, ano também do assassinato

de Humberto Delgado e do encerramento do Concílio. Esse documento colectivo, “o

mais exaustivo de todos quanto foram publicados por católicos nesses anos de brasa”15

,

foi um acontecimento de múltiplo ineditismo. O texto, que pôde ser amplamente

divulgado pela imprensa, apoiava o manifesto eleitoral da Oposição Democrática,

criticava o “extremismo” da política ultramarina portuguesa e interrogava-se sobre a

legitimidade das guerras coloniais ‒ além das críticas que tecia à censura, à falta de

seriedade das eleições, aos entraves ao direito de associação, à actuação da polícia

política, etc., pontos já constantes de outros documentos produzidos desde 1958. Pejado

de citações das encíclicas, mensagens e alocuções de João XXIII e Paulo VI e

confrontando com a doutrina nelas expressa os diferentes aspectos da realidade social e

política portuguesa, o manifesto pedia contas ao poder político da propalada “inspiração

cristã” do regime de Salazar. Os signatários denunciavam, aliás, a hostilidade que o

governo português mostrava pelo pontificado e pela pessoa de Paulo VI, a ponto de lhe

censurar discursos, impedir o comentário das suas encíclicas e proibir reportagens sobre

as suas deslocações. Em nenhuma parte do texto se denunciava abertamente a

conivência da Igreja portuguesa com o poder, embora se anotasse significativamente

que só “raríssimos católicos” tivessem no passado feito ouvir a sua voz em defesa dos

direitos e liberdades públicas, facto pelo qual, acrescentava-se, “todos nós, católicos

portugueses, teremos um dia de prestar contas”. Se Cerejeira não desautorizou

publicamente o documento, assumiria contudo essa tarefa um contramanifesto subscrito

por centenas de católicos salazaristas, que apodava os signatários do manifesto dos 101

de “trânsfugas”, “traidores” e “católicos progressistas acorrentados a Moscovo”16

.

14

“A posição de alguns católicos”, publicado pela imprensa vespertina de Lisboa a 25 de Outubro de

1965, reprod. em J. Felicidade Alves, Católicos e Política, cit., pp. 175-207.

15

João Bénard da Costa, Nós, os Vencidos…, cit., pp. 71-75, onde se pode ler a história da redacção e

divulgação do documento, bem como das reacções que suscitou, por um dos seus redactores.

16

“Desafronta: protesto de um grupo de católicos” (Outubro de 1965), reprod. em J. Felicidade Alves,

Católicos e Política, cit., pp. 209-219.

7

Meses antes fora divulgado um outro manifesto ao país, da autoria de um

efémero Movimento Cristão de Acção Democrática17

. Caracterizando o Estado Novo

como “totalitário de índole conservadora” e “anticristão”, os autores do documento

colocavam-se sob a bandeira doutrinária de João XXIII. Condenavam simultaneamente

o capitalismo e o marxismo, afirmavam não querer substituir pela religião os poderes do

Estado e declinavam definir “o conteúdo duma política” para o país, reclamando apenas

a sua essência, isto é, “uma filosofia do Estado e do poder que não ofenda a moral nem

viole os direitos fundamentais da pessoa”. Contendo várias alusões ao

comprometimento da hierarquia da Igreja com o regime, este manifesto procurava, sem

embargo do nome dado ao movimento, situar as suas críticas num plano espiritual e

filosófico, exterior e superior à política, pretendendo assim devolver a voz a um

cristianismo que, na sua opinião, se encontrava silenciado.

A consciência ou convicção de uma certa supremacia do espírito (cristão) em

relação à política laica e partidária moldou a elite contestatária católica, e continuou, de

certo modo, a marcá-la, mesmo quando uma parte dela, a partir de 1968, se radicalizou

politicamente e derrubou o tabu que repelia a acção dos militantes cristãos no “domínio

temporal”. Por outro lado, a antipatia não só da maioria dos bispos, mas também de

muitos católicos críticos do regime, incluindo os da esquerda radical, pelas fórmulas da

democracia liberal dominantes na Europa, tanto democrata-cristã como social-

democrata, fez igualmente com que a oposição católica ao Estado Novo, mesmo quando

nos anos 60 apoiou ou se misturou às campanhas eleitorais da oposição laica (1961,

1965 e 1969), mantivesse uma distância à política organizada e excluísse a ideia de um

partido confessional.

Se nenhum movimento político democrata-cristão ou social-cristão se organizou

em Portugal nos anos 60, não foi só por recusa de Salazar e dos bispos ou por falta de

apoio do Vaticano e da democracia cristã europeia, mas igualmente por desinteresse e

desapoio da maior parte dos católicos opositores do regime ‒ com a destacada excepção

de António Alçada Baptista, director da editora Moraes e de O Tempo e o Modo, quase

solitário propugnador do projecto democrata-cristão no período em questão, juntamente

com Francisco de Sousa Tavares e José Pedro Pinto Leite. Esse desapoio teve que ver

não só com a recusa de um “clericalismo de oposição” (como lhe chamava Cerejeira),

mas também com o fenómeno de crescente pluralização do campo católico

contestatário. Para além da comum referência ao cristianismo e da comum oposição ao

salazarismo, a coesão política e ideológica desse campo, que sempre fora frágil, no final

dos anos 60 começou a revelar-se uma miragem.

Ainda sob Salazar, o encerramento (1967) pela polícia política da cooperativa de

difusão cultural Pragma, impulsionada desde 1964 por militantes católicos de diversas

correntes políticas, teria coincidido, segundo Mário Murteira, que foi um dos seus

dirigentes, com a fase final duma “importante corrente crítica da sociedade portuguesa,

que se pretendia ainda inspirada na ortodoxia cristã”. Ter-se-ia desvanecido a partir daí

a coesão do grupo social que lhe servia de suporte, o “estrato mais dinâmico do

catolicismo português”, a atravessar “profunda crise espiritual e moral”18

. Bénard da

Costa dá também conta da tentativa “unitária” de lançamento de um movimento

clandestino denominado Resistência Cristã, criado em 1966 por católicos de linhas

17

“Cristianismo e política nacional: manifesto ao país” (Maio de 1965), em J. Felicidade Alves,

Católicos e Política, cit., pp. 137-159.

18

Mário Murteira, op. cit., pp. 56-57.

8

políticas muito diferentes, tentativa porém abortada logo em 196719

. Paralelamente,

revelou-se nesses mesmos anos uma importante clivagem na militância católica no

mundo laboral e sindical, entre uma linha reformista ligada ao sindicalismo cristão

europeu e uma linha cristã “obreirista”, em ruptura com a hierarquia da Igreja e voltada

para uma acção unitária com as correntes laicas da oposição20

.

Segundo Mário Murteira, entrou então gradualmente em cena o radicalismo de

grupos de inspiração cristã animados por leigos e padres “marginalizados da própria

Igreja”21

‒ e, de facto, por ela expressamente acusados de marginais22

. Entre estes

avultava, em rebeldia aberta contra a hierarquia e o poder político, a figura inspiradora e

tutelar do padre Felicidade Alves, ex-dilecto colaborador do patriarca. Em Abril de

1968, perante o seu conselho paroquial de Belém, o padre Felicidade denunciou a

guerra colonial e o regime autoritário, pedindo ao mesmo tempo para o país

“revolução”, “socialização” e “desclericalização” ‒ e acusando de caminho o cardeal

Cerejeira de métodos “estalinistas”23

. Felicidade Alves, que visava antes de tudo uma

renovação radical da Igreja, acabará destituído e colocado à margem desta, mas

prosseguindo, “por vezes contra ela”, uma luta tenaz, de que constituirá dramático

episódio a sua excomunhão, em 1970.

3. A renovação do catolicismo e o imobilismo do Estado Novo

O Concílio do Vaticano II (1962-65), que teve um notável impacto sobre a Igreja

e a sociedade também em Portugal, conjugou aqui os seus efeitos com o processo já em

marcha de contestação católica do Estado Novo e de pluralização política dos católicos,

legitimando-o, acelerando-o e abrindo-lhe novos horizontes. Os documentos conciliares

iniciaram uma sensível viragem do catolicismo à escala mundial, com a nova tónica

posta no papel eclesial dos leigos e num conceito da Igreja como “povo de Deus” (em

oposição à ancestral concepção fundada somente na hierarquia), com a inovação

litúrgica, com a instituição dos princípios da co-responsabilização dos bispos com o

papa e da colegialidade aos vários níveis da instituição eclesiástica, com a declaração do

direito imprescritível do homem à liberdade religiosa, com a substituição da anterior

condenação das religiões alheias por valores de tolerância e fraternidade, etc.

Para além do Concílio, os pontificados de João XXIII (1959-1963) e Paulo VI

(1963-1978) foram, de um modo geral, marcados por notável evolução doutrinária no

domínio social e político (encíclicas papais) e por aberturas políticas e diplomáticas

(apoio à descolonização, lançamento da “Ostpolitik” ‒ abertura a Leste) que em tudo

19

Nós os Vencidos…, cit., pp. 80, 83-86, 98.

20

José Barreto, “Comunistas, católicos e os sindicatos sob Salazar”, Análise Social, nº 125-126, (1994).

21

Mário Murteira, op. cit., p. 56.

22

É esse o termo utilizado por Cerejeira em 1969 para designar as actividades de uma parte do clero

diocesano que fugiam ao seu controlo e autoridade: reuniões de padres contestatários em Portugal e no

estrangeiro, promoção pelos mesmos de “eclésias domésticas”, tomadas de posições “irresponsáveis”

contra a indissolubilidade do casamento canónico (Obras Pastorais, vol. VII, cit., pp. 287-293).

23

Abílio Tavares Cardoso e João Salvado Ribeiro (org.), Testemunho Aberto. O caso do padre

Felicidade, Multinova, Lisboa, 1999.

9

contrastavam com o imobilismo dos governantes portugueses e do episcopado

maioritariamente seu aliado. A encíclica Pacem in Terris, de 11 de Abril de 1963,

“testamento pastoral” de João XXIII e nova magna carta católica sobre os direitos do

homem e dos povos, continha nas suas entrelinhas, para quem quisesse ver, uma

condenação da situação dos direitos do homem e das liberdades públicas sob o regime

português, na Metrópole como no Ultramar. Dez dias depois, falando em Lisboa perante

cinquenta mil jovens (Encontro Nacional da Juventude), o cardeal Cerejeira referiu-se à

encíclica apenas de raspão, protocolarmente, tal como já fizera em 1961 com a encíclica

Mater et Magistra sobre a questão social, contornando assim mais uma ocasião de expor

os inovadores ensinamentos pontifícios, como se eles não contivessem novidade, não

dissessem respeito a Portugal ou encerrassem doutrina irritante para a ordem social e

política vigente24

.

Salvo raras excepções, os bispos portugueses foram apanhados em

contracorrente pela viragem ou actualização do catolicismo nos anos 60, essencialmente

empenhados que continuavam na prossecução das suas estratégias “constantinianas” e

orientações pastorais tradicionalistas, bem como da secular campanha visando a

“recristianização” das instituições, das leis e dos costumes. O reforço do papel da Igreja

na sociedade e na vida pública por outorga do poder temporal seu aliado era a única

direcção em que o episcopado desejava ver alteradas as relações vigentes entre o Estado

Novo e a Igreja. Os bispos ansiavam, além disso, pôr um termo ao “Estado ateu” (sic),

entendendo por aí as reminiscências do Estado laico republicano. Antes do período

conciliar, nos anos 50, a hierarquia da Igreja tinha encetado duas iniciativas políticas de

pressão sobre o poder. Os bispos desejavam, por um lado, que o ensino particular da

Igreja fosse oficializado e subsidiado pelo Estado, considerando que essa promessa,

nunca cumprida por Salazar, ficara exarada na Constituição de 1933. Por outro lado,

reclamavam que o nome de Deus fosse introduzido no texto da Constituição vigente ‒

cientes ou não de como esta sua pretensão “cristianizadora”, afinal frustrada pela

revisão constitucional de 1959, poderia ser encarada como uma sacralização do regime

iniciado em 1933. Os contestatários católicos, em geral, mantiveram-se indiferentes a

estas campanhas do episcopado que taxavam de “clericalização”, embora os bispos

inconformistas do Porto e da Beira tivessem assumido pública e energicamente a luta

pelo ensino particular católico, denunciando a situação vigente de monopólio do ensino

oficial pelo Estado e defendendo o princípio da supletividade do ensino estatal.

No respeitante às colónias, as posições do episcopado português começaram nos

anos 60 a revelar-se particularmente distantes das de Roma. Em Janeiro de 1961, nas

vésperas do começo da guerra em Angola, num momento em que o colonialismo

português fora alvo das primeiras condenações quase unânimes na Assembleia Geral da

ONU, os bispos da Metrópole emitiam uma “Nota pastoral sobre o Ultramar português”

de total solidariedade com o governo. Escrita num tom dramático, a nota do episcopado

lamentava que o Ocidente parecesse ter perdido “consciência de si próprio” e afirmava

que a conservação da herança colonial fora confiada a Portugal pela providência divina.

Durante os treze anos de guerra seguintes, os bispos da Metrópole mantiveram

colectivamente um pesado silêncio sobre os problemas das colónias e da guerra. Só

alguns bispos portugueses do Ultramar, particularmente em Moçambique, foram

discreta excepção à regra de apoio firme, ainda que muitas vezes só tácito, à política e à

guerra coloniais.

24

Facto que sustenta esta última hipótese foi a inclusão na edição portuguesa da Mater et Magistra duma

longa nota a “esclarecer” o rebarbativo conceito de socialização reabilitado por João XXIII.

10

Sem embargo do patente enquistamento doutrinário e político do episcopado, o

Concílio e as encíclicas tornaram, de facto, o terreno propício à expansão em Portugal

daquilo que os governantes indistintamente chamavam progressismo católico e cuja

infiltração a vários níveis da sociedade civil, do Estado e até do próprio governo25

começou, em meados dos anos 60, a ser sentida por Salazar como uma ameaça

permanente. Ameaça, segundo alguns, potencialmente tão ou mais perigosa para a

ordem estabelecida do que a oposição laica tradicional, inclusive a marxista, porque os

católicos ditos progressistas acediam mais facilmente a duas áreas fulcrais do sistema: a

administração pública e as universidades26

, para não falar dos seminários.

Na década de 60, como foi já referido, começou também inevitavelmente a

esfriar, lenta mas sensivelmente, o relacionamento de Roma com o regime

antidemocrático de Salazar, que mantinha em África guerras de defesa das colónias ao

arrepio das posições dos papas conciliares sobre a autodeterminação e acedência à

soberania dos povos colonizados ‒ posições, aliás, coevas da política africana de

Kennedy e de importantes resoluções da ONU sobre o Ultramar português. Os

anteriores atritos, públicos ou de bastidores, entre a diplomacia vaticana e o governo

português, relacionados com questões coloniais e missionárias (como a do Padroado

português do Oriente) ou surgidos durante a negociação da “modelar” Concordata de

1940, nunca tinham perturbado decisivamente a dominante excelência, fundada na

grande comunidade de interesses, das relações entre a Santa Sé e a “nação

fidelíssima”27

. Na década de 60, porém, esses atritos começaram a ceder o lugar,

sobretudo sob Paulo VI (“um papa que tanto agravou o meu país”, dirá Salazar em 1968

ao seu ministro Franco Nogueira), a conflitos mais fundos e mais abertos, que chegaram

a ameaçar com uma ruptura entre Roma e Lisboa, algo impensável sob os anteriores

pontificados de Pio XI e Pio XII.

A visão que Salazar tinha de Paulo VI e do seu pontificado resultava largamente

da perspectiva nacionalista e imobilista do ditador frente a uma Igreja universalista e em

renovação, num mundo a atravessar um período de intensa mutação. Se Paulo VI foi,

em 1965, discursar na Assembleia Geral da ONU e levar a “solene ratificação moral” da

Igreja àquela “alta instituição”28

detestada por Salazar, não o fez, obviamente, com a

intenção de fragilizar a posição portuguesa no plano internacional ou de questionar a

chamada missão civilizadora de Portugal, mas foi vizinha dessa a percepção que o

ditador teve do facto, que em privado qualificou globalmente de “horroroso”29

. Na

verdade, o papa nunca procurou hostilizar frontalmente o regime de Salazar e, mesmo

em relação com o problema colonial, a política romana jamais foi de apoio aos

movimentos de libertação, mas sim, quando muito, a de prudente não oposição às

tendências independentistas. O que Paulo VI pregou a esse respeito está muito

claramente expresso num discurso de 1969, no Uganda: o abandono de toda a violência,

25

Franco Nogueira, Um político confessa-se, Civilização, Porto, 1986, p. 268.

26

Mário Murteira, O problema do desenvolvimento português, Moraes, Lisboa, 1974 (Abril), p. 56.

27

Bruno Cardoso Reis, em “Portugal a Santa Sé no sistema internacional (1910-1970)”, Análise Social,

n.º 161, 2002, situa após 1970 o período mais crítico nas relações do Estado Novo com a Santa Sé.

28

“Discurso do papa Paulo VI diante da Assembleia Geral da ONU pelo 20.º aniversário da organização”,

4 de Outubro de 1965. A ONU, que o regime de Salazar figurava diariamente como o areópago

internacional dos “inimigos de Portugal”, representava para Paulo VI “o caminho obrigatório da

civilização moderna e da paz mundial” (idem).

29

Franco Nogueira, Salazar, vol.VI, Civilização, Porto, 1985, p. 83.

11

a “colaboração” durante um “período de coexistência entre as populações indígena e

estrangeira” e a “lenta, mas segura preparação dos homens e das instituições” para o

acesso a uma “autonomia real e vigorosa” e a uma “soberania verdadeira”30

.

Que Salazar e mesmo Caetano considerassem esse prudente e moderado

programa do papa como inaceitável para Portugal, não prova que Paulo VI apoiasse os

movimentos e as guerras de libertação ou, sequer, pretendesse contribuir para

desestabilizar a política interna portuguesa ‒ algo de que a Santa Sé sempre se absteve

cuidadosamente, temendo gravosas consequências para a Igreja nacional. Já com a

sucessão de Salazar consumada, em 1969, Paulo VI faria chegar sucessivas mensagens

tranquilizadoras e de encorajamento a Marcelo Caetano, que na opinião do papa

precisaria “que o deixassem tranquilo para a continuação da sua obra”, acrescentando

que “era preciso poupar Portugal a tudo o que provocasse qualquer movimento de

protesto ou de perturbação”31

. Sabendo-se ou suspeitando-se em Lisboa que um sector

da Cúria romana “hostilizava” o governo português, era precisamente na disposição

favorável de Paulo VI para com Portugal que a diplomacia lusa confiava, no início do

consulado de Marcelo Caetano, para neutralizar a alegada hostilidade da secretaria de

Estado da Santa Sé32

. A audiência privada de Paulo VI aos dirigentes dos movimentos

de libertação das colónias africanas portuguesas, em Julho de 1970, também não prova

que o papa, de um ano para o outro, tenha mudado de ideias relativamente a Portugal e

ao governo de Caetano.

Os principais factores directos do arrefecimento das relações de Roma com o

governo de Salazar ‒ que não impediram, ainda assim, a visita a Fátima de Paulo VI em

1967, a instâncias do governo e pressões do episcopado nacionais ‒ foram: o citado caso

do bispo do Porto e suas sequelas; as prisões e deportações para Portugal, desde 1960,

de destacados sacerdotes angolanos conotados com os movimentos nacionalistas,

incluindo o vigário geral da arquidiocese de Luanda, monsenhor Mendes das Neves, que

morreu no exílio; o grave conflito diplomático criado por Lisboa em torno da visita de

Paulo VI ao Congresso Eucarístico Internacional de Bombaim, em 1964, denunciada

pelo governo como um reconhecimento pela Santa Sé da anexação de Goa 33

; os

sucessivos conflitos do bispo “amordaçado” da Beira, D. Sebastião Soares de Resende,

com as autoridades de Moçambique e da Metrópole (episódios com início nos anos 50 e

que atingem o seu ponto mais agudo em 1965-1967, anos finais da vida do bispo); a

repetida indisponibilidade do governo de Salazar para aceitar a nomeação de bispos

negros para as colónias34

; os conflitos das autoridades portuguesas com missionários

30

Veja-se o discurso de Paulo VI na primeira viagem de um papa a África (Kampala, Julho de 1969),

num simpósio dos episcopados africanos, citado em Emmanuelle Besson, op. cit., p. 77. Todos

convergiram em ver neste trecho do discurso do papa uma clara alusão às colónias portuguesas.

31

Cartas do embaixador no Vaticano, Eduardo Brasão a Marcelo Caetano, a 30 de Abril e 6 de Junho de

1969, em J. Freire Antunes, op. cit., 1.º vol., p. 242 e 243.

32

Idem, ibidem

33

Sobre as ameaças, pressões e negociações para que o papa não fosse também a Goa, ver Manuel Braga

da Cruz, O Estado Novo e a Igreja Católica, Bizâncio, Lisboa, 1998, p. 172.

34

O governo português fez saber em 1964 à Santa Sé que, por motivos políticos, só aceitava a nomeação

de um bispo negro para uma diocese… da Metrópole. O episcopado metropolitano, por seu turno,

rejeitava essa hipótese, enquanto que a maioria do episcopado ultramarino ainda alinhava em 1967 com o

governo na recusa de bispos africanos nas colónias (Franco Nogueira, Um político confessa-se, cit., pp.

96-97 e 219.

12

nas colónias; as crescentes pressões exercidas sobre Roma pelos bispos e conferências

episcopais de África e por diversos movimentos católicos e “redes cristãs”

internacionais. Pode constatar-se a absoluta predominância que neste arrefecimento

diplomático assumiram as questões relacionadas com as colónias.

4. A intrincada sucessão de Cerejeira

Nos três anos finais da sua governação, Salazar, profundamente desgostado com

a orientação do pontificado de Paulo VI e com a alegada permissividade da Igreja

católica perante o avanço, a todos os níveis das suas estruturas, do “liberalismo”, do

“progressismo” e do “pacifismo” 35

, manteve um crescente braço de ferro com a Santa

Sé em torno da nomeação dos novos bispos. Na “lista negra” de Salazar avultavam os

nomes de D. Sebastião Soares de Resende, vetado em 1965 pelo ditador para arcebispo

de Braga, alegadamente por ter apoiado o bispo do Porto36

; D. António Ribeiro, vetado

para bispo da Beira em 1967, acusado de “não saber que Beira, Moçambique, é

Portugal”37

; e D. Manuel Falcão, bispo auxiliar de Lisboa, que em 1968 Salazar

declarou a priori rejeitado para cardeal patriarca ou mesmo para bispo titular de

qualquer diocese, fosse ele embora, no dizer do ditador, o “menino bonito de

Cerejeira”38

.

A sucessão de Cerejeira, que em 1968 atingia a idade de 80 anos, constituía um

ponto primordial deste braço de ferro com Roma. Em 1967, perante rumores de que

Cerejeira apresentara o seu pedido de resignação ao papa (realmente apresentado em

1966, não sendo então aceite pelo pontífice39

), um grupo de 106 padres do clero

diocesano tinha redigido um documento endereçado ao Núncio sugerindo o nome de D.

Manuel Falcão para o lugar de Cerejeira40

. A sucessão deste último por D. António

Ribeiro ‒ bispo auxiliar de Braga (1967) e de Lisboa (1969) e nomeado patriarca (1971)

sem passar por titular de uma diocese ‒ foi uma decisão de Paulo VI que viria a ter

importantes consequências para a Igreja portuguesa, mas que já só teve lugar a meio do

consulado de Marcelo Caetano.

35

José Barreto, “Oposição e resistência de católicos ao Estado Novo”, op. cit., pp. 123-125.

36

D. António Ferreira Gomes, Carta ao Arcebispo de Conakry Monsenhor Raymond-Marie Tchidimbo

(inédito cit.), 26 de Dezembro de 1967, p. 4.

37

D. António Ferreira Gomes, Carta ao Arcebispo de Conakry…, cit.. Ver também J. A. Santos e R.

Saavedra, António Ribeiro - Patriarca de Lisboa, Ed. Notícias, Lisboa. 1996.

38

Franco Nogueira, Um político confessa-se, cit., p. 308. É a D. Manuel Falcão, bispo de Telepte e

auxiliar de Lisboa, que esta confidência do ditador a Franco de Nogueira se refere, e não a D. António

Ribeiro, como pretendeu Manuel Braga da Cruz (op. cit., p. 173, nota 3). D. António Ribeiro, era então

bispo de Tigilava e auxiliar de Braga, e só em 1969, depois do afastamento de Salazar, se tornaria bispo

auxiliar de Lisboa.

39

Moreira das Neves, Cardeal Cerejeira – O Homem e a Obra, Rei dos Livros, Lisboa, 1988, p. 175.

40

António Marujo, “O 25 de Abril dos Padres”, Público, 18 de Abril de 1999.

13

Os pormenores do processo de indigitação, negociação e nomeação não são,

naturalmente, conhecidos, mas a Santa Sé deixou a imagem de ter tido de esperar pelo

afastamento do “ditador católico” e de, seguidamente, se ter obrigado a um compasso de

espera de três anos até finalmente nomear o sucessor de Cerejeira. Durante esse lapso de

tempo correram persistentes rumores, depois não confirmados pelos factos, sobre a

escolha do conservador D. Manuel de Almeida Trindade, bispo de Aveiro. Sabe-se que

na Cúria de Roma se encarava então a hipótese de um bispo português do Ultramar ‒

plausivelmente D. Eurico Dias Nogueira, bispo de Vila Cabral desde 1964, que

confidenciou ao autor deste texto ter sido então sondado sobre a sua disponibilidade

para o cargo por D. Manuel Trindade. Considerava o Vaticano que isso poderia trazer

ao episcopado da Metrópole “um sentimento e uma visão ultramarinos, que só poderiam

ser úteis”41

. Sem que se saiba qual o papel de Caetano no processo, a escolha viria a

recair em D. António Ribeiro, o mais jovem dos quatro purpuráveis, incluindo D.

Manuel Falcão. Sobre D. Eurico Nogueira, transferido em 1972 para a diocese angolana

de Sá da Bandeira (e feito arcebispo de Braga em 1977), sabe-se hoje que tinha um

volumoso processo na PIDE/DGS, aberto já em 1958 em relação com o caso do bispo

do Porto. A polícia política de Salazar e Caetano manteve D. Eurico Nogueira sob

apertada vigilância em Moçambique, inclusivamente violando e confiscando a

correspondência do prelado, em virtude das suas posições críticas e atitudes

consideradas transigentes com o inimigo42

. Por sua vez, D. Manuel Trindade seria em

1972 nomeado presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, em substituição de

Cerejeira, que se mantivera no cargo desde a sua resignação em 1971. Este último veria,

pois, as suas anteriores funções divididas por duas personalidades de linhas eclesiais e

políticas diferentes: uma de renovação, no patriarcado de Lisboa, outra de continuidade,

a presidir ao órgão do colectivo do episcopado. Assim ficou fielmente reflectido na

configuração da alta hierarquia da Igreja o espírito da política marcelista.

5. Caetano e a Igreja: progressivo desentendimento

Em Setembro de 1968, devido à intransigência recíproca do velho ditador e da

diplomacia romana, o caso do bispo do Porto expulso do país continuava sem solução.

Foi esse um dos primeiros dossiers “católicos” que Marcelo Caetano teve entre mãos ao

tomar conta da governação, juntamente com o processo do pároco “subversivo” de

Belém, Felicidade Alves, iniciado ainda sob o governo de Salazar, e o caso do cónego

Joaquim Pinto de Andrade (que continuava desterrado em Portugal, depois de declarado

“presidente honorário do MPLA” pelos independentistas) e dos outros padres angolanos

deportados para Portugal desde 1960-196143

.

Marcelo Caetano apostou num relacionamento harmonioso e tanto quanto

possível livre de conflitos com a hierarquia da Igreja católica, interna e externamente.

41

Carta do embaixador Eduardo Brasão a Marcelo Caetano, de 6 de Junho de 1969, cit., p. 244, nota de

rodapé.

42

José Pedro Castanheira, “D. Eurico, um bispo vigiado pela PIDE”, Expresso-Revista, 26 de Agosto e 2

de Setembro de 2000.

43

Emmanuelle Besson, Autour du procès de Joaquim Pinto de Andrade. L’Église catholique et l’Angola

colonial, 1960-1975, Le Fait Missionnaire, cahier nº 12, Lausanne, 2002 e Mário Brochado Coelho, Em

Defesa de Joaquim Pinto de Andrade, Afrontamento, Porto, 1972.

14

Cedeu, na revisão constitucional de 1971, a uma velha reivindicação do episcopado, a

menção do nome de Deus no texto da lei fundamental. No plano da política de ensino

que a Igreja havia décadas reclamava, o governo oficializou em 1971 as primeiras

faculdades da Universidade Católica Portuguesa, criada por decreto de Paulo VI em

1967. O chefe do governo resistiu, por outro lado, a um vasto sector de católicos,

excedendo muito o campo dos “contestatários”, que exigiam a revisão da Concordata na

cláusula que impedia a dissolução do casamento canónico. Na Assembleia Nacional,

seria o católico Francisco Sá Carneiro a defender a revisão da Concordata. Sacerdotes

católicos apoiavam a revisão. Caetano dizia todavia recear que isso pudesse desencadear

uma “questão religiosa” ‒ atitude bem contrastante com a do seu antecessor, que não se

coibiu de ameaçar Roma com a denúncia da Concordata em 1958 e 1964. Revelando

alguma duplicidade, Caetano declarou em 1969 colocar o assunto da revisão

concordatária ao critério da Igreja, o que equivalia a abdicar dela44

. Em fins de 1972,

Caetano ainda tentou negociar secretamente com a Santa Sé uma solução habilidosa

que, sem exigir a revisão da Concordata, possibilitaria a dissolução dos casamentos

canónicos celebrados entre 1940 e 31 de Dezembro de 1972. O Vaticano, porém, não

deu mostras de consentir no entorse45

. A revisão far-se-ia sem incidentes depois do 25

de Abril, em 1975. Outra realização de um insistente desejo do Vaticano foi a nomeação

(Maio de 1970) para bispo auxiliar de Luanda de um africano, D. André Muaca, natural

de Cabinda, que seria enfim nomeado bispo titular de Malanje em 1973. O primeiro

prelado negro das colónias portuguesas em quatro séculos seria, após a independência,

arcebispo de Luanda.

A resolução, após meticulosa preparação, do caso do bispo do Porto também é

vista como um gesto de apaziguamento de Caetano, não só para com os numerosos

católicos (membros do clero e leigos) apoiantes do regresso do prelado, como para com

o Vaticano. Na verdade, Caetano não tinha condições para frustrar as expectativas

criadas, sobretudo as dos católicos que ele desejava captar para o seu projecto político.

Dá uma medida dessas expectativas o facto de, nos meses seguintes à chegada de

Caetano ao poder, perante rumores sobre o regresso iminente do bispo a Portugal, a

PIDE ter repetidamente alertado as fronteiras no sentido de impedir a sua entrada no

país46

. Em meados de Dezembro de 1968, grupos de leigos portuenses encabeçados por

Jorge Jardim Gonçalves, presidente do conselho diocesano da Acção Católica, e

Francisco Sá Carneiro, José da Silva e Joaquim Pinto Machado (três futuros deputados

da “ala liberal”) dirigiram exposições ao núncio expressando o desejo de regresso do

bispo. O mesmo fez um grupo de padres em Janeiro de 1969, que recolheu 400

assinaturas entre o clero da diocese, endereçando também uma carta a Marcelo

Caetano47

. Seguiu-se um período de obscuras negociações do chefe do governo com a

Igreja e o núncio, aparentemente sem resultado ‒ sendo certo, porém, que a maioria do

44

“Se a Igreja estiver disposta a rever nesse ponto ou noutros a Concordata, o governo de bom grado o

fará” (entrevista do chefe do governo a João Coito em Outubro de 1969, reproduzida em Marcelo

Caetano, Mandato Indeclinável, Verbo, Lisboa, 1971, pp. 44-46.)

45

António Leite, “A Concordata e o casamento”, em A Concordata de 1940, Didaskalia, Lisboa, 1993,

pp. 295-296.

46 Torre do Tombo, Arquivo da PIDE/DGS, processo de D. António Ferreira Gomes. Há ordens nesse

sentido em 4 de Novembro e 20 de Dezembro de 1968 e 19 de Janeiro de 1969.

47

Carlos A. Moreira Azevedo, “Prefácio”, em D. António Ferreira Gomes. Nos 40 Anos da Carta do

Bispo do Porto a Salazar, Multinova, Lisboa, 1998.

15

episcopado português estava contra o regresso do bispo, receando “perturbações”48

. O

bispo do Porto foi, entretanto, recebido por Paulo VI em Roma a 20 de Fevereiro de

1969, que lhe deu luz verde para o regresso, ou melhor, para fazer o que entendesse:

“Vous êtes libre!”. D. António tomou então o caminho da fronteira portuguesa, dando

de Espanha a conhecer ao chefe do governo a sua intenção de regressar49

. Caetano pediu

um compasso de espera ao bispo, que este aceitou, permitindo ao chefe do governo

preparar-se. Em 21 de Maio (cinco dias depois de novas ordens da PIDE a todos os

postos fronteiriços para não permitir a entrada do bispo50

), Caetano visitou a cidade do

Porto, fazendo-se aclamar nas ruas em banho de multidão. Com o território assim

marcado, parece terem ficado criadas condições para o regresso do bispo, o qual foi

pessoalmente informado por Caetano, a 18 de Junho, de que poderia voltar. O bispo

regressou ao país no dia imediato, sendo recebido em Fátima pelo episcopado ali

reunido, vindo a tomar posse da diocese só no princípio de Julho. O Vaticano não

arriscou afastar o administrador apostólico da diocese do Porto sem previamente se

certificar, pelos factos, de que em Portugal estavam reunidas as condições para o bispo

titular se reintegrar no episcopado e se reinstalar na sua diocese.

Mau grado os gestos e as boas intenções, as relações entre Lisboa e o Vaticano

continuavam a reflectir as divergências fundamentais sobre a questão colonial. Desde,

pelo menos, o pontificado de João XXIII, as pressões do Vaticano sobre o governo no

sentido de uma evolução negociada em África, da concessão de uma progressiva

autonomia e da preparação das populações autóctones para uma maior participação na

administração das colónias e na vida política, tinham chocado sempre com a

intransigência e o imobilismo de Lisboa. As promessas de renovação da “primavera

marcelista” surgiram a Roma como a oportunidade para intensificar essas pressões, a

avaliar nomeadamente pelo relato que o deposto chefe do governo fará, em 1974, do seu

enervado relacionamento com o núncio Sensi51

. A “deplorável tendência” do núncio

para “se imiscuir na política interna portuguesa” dera origem, segundo Caetano, a um

penoso incidente entre os dois em 1970, durante o processo de revisão constitucional. O

chefe do governo terá então declarado ao enviado do papa que Portugal “deixara há

séculos de ser feudatário da Santa Sé”, pelo que não admitia a um estrangeiro que se

pronunciasse sobre “actos do foro da soberania nacional”. Este episódio dera-se meses

depois da audiência do papa aos dirigentes independentistas africanos, o que ajuda a

entender o azedume das palavras do chefe do governo.

O acto simbólico de Paulo VI, em 1 de Julho de 1970, recebendo numa breve

audiência os dirigentes independentistas de Angola, Moçambique e Guiné, foi noticiado

e comentado nas primeiras páginas da imprensa mundial. Para o governo de Lisboa, foi

certamente o mais duro golpe nas relações com Roma em muitas décadas. A reacção do

governo português foi muito viva, exigindo da Santa Sé explicações sobre o encontro do

papa com os “cabecilhas terroristas” e chamando o embaixador a Lisboa, pelo que

chegaram a correr rumores dum corte de relações com o Vaticano. Paulo VI ‒

preocupado até aí, como vimos, em não hostilizar o governo e em não perturbar a acção

reformadora de Caetano ‒ poderá não ter avaliado perfeitamente o presumível impacto

público da audiência, sendo certo que o papa foi muito instado a concedê-la por vários 48

Carta do embaixador Eduardo Brasão a Marcelo Caetano em 6 de Junho de 1969, cit.

49

D. António Ferreira Gomes, Cartas ao Papa, Figueirinhas, Porto, 1986, pp. 213-214.

50

Torre do Tombo, Arquivo da PIDE/DGS, processo cit.

51

Marcelo Caetano, Depoimento, Record, Rio de Janeiro, 1974, p. 182.

16

meios da Igreja e da democracia cristã italiana52

. Uma das pressões tinha partido do

arcebispo de Conakry, monsenhor Tchidimbo53

, a quem o bispo do Porto escrevera em

1968, ainda no exílio, uma longa carta solidária e amistosa, aqui já citada. A secretaria

de Estado do Vaticano, tentando a todo o custo minimizar o significado do acontecido,

transmitiu ao governo português uma versão que hoje se sabe ter pecado por omissões e

infidelidade aos factos. Dando a aparência de se satisfazer com essas explicações e de

desistir de medidas mais drásticas, Caetano arquivou então publicamente o acontecido

como o resultado de um “ardil” perpetrado pelos “terroristas” e, depois, indevidamente

explorado para fins publicitários pelos “inimigos de Portugal”54

. A exploração

“indevida” do facto fez contudo carreira a nível mundial, inclusive em Portugal e nas

colónias, onde os católicos contestatários se sentiram encorajados, passando a exigir dos

bispos um eco público do gesto de Paulo VI, que tinham por deliberado e inequívoco.

Como antecedente próximo da audiência do papa há também a registar a prisão, em

Abril de 1970, do padre Joaquim Pinto de Andrade (a sua sexta detenção no exílio em

Portugal). Paulo VI terá então promovido uma discreta intervenção do Vaticano junto

das autoridades portuguesas a favor do padre angolano, não conseguindo contudo evitar

a sua condenação, já em 1971, a três anos de prisão 55

.

Em Moçambique, durante os anos seguintes à audiência do papa, uma série de

incidentes se produziu que levaria a uma situação de pré-ruptura das autoridades com

parte da Igreja local. Várias congregações missionárias abandonaram o território ou

foram expulsas em 1971 e 1972. Os padres da paróquia de Macuti foram presos e

condenados por terem denunciado, em 1972, um massacre de civis pelos militares

portugueses. Diversas entidades católicas denunciariam novos massacres da população

cometidos no mesmo ano na província do Tete (Wiryamu, Chawola e outros), chegando

disso eco à imprensa internacional quando Caetano visitava oficialmente Londres. A

“campanha dos massacres” ‒ como lhe chamou Marcelo Caetano, que a achava

orquestrada por missionários estrangeiros ‒ também era confirmada, porém, por

informações de bispos portugueses chegadas a Roma, como o núncio Sensi revelou ao

chefe do governo em Abril de 197356

. Um desses bispos, D. Manuel Vieira Pinto, será

expulso de Moçambique em Fevereiro de 1974, após ter advogado junto da Conferência

Episcopal da colónia ‒ que se mostrara céptica em relação aos massacres de civis ‒ o

direito do povo moçambicano à autodeterminação. Mais tarde, no seu Depoimento,

Caetano culpará também os comandos militares por não terem actuado com rigor contra

os que “mancharam o nome português”, proporcionando assim as alegadas

generalizações da “campanha internacional” contra a guerra colonial.

52

José Pedro Castanheira, “Segredos de uma audiência”, Expresso, 15 de Julho de 1995.

53

Monsenhor Tchidimbo, o bispo africano mais empenhado na luta contra o colonialismo português,

seria, por paradoxo, detido ainda em 1970 por ordem do ditador guineense Sékou Touré, sob acusação de

implicação na tentativa de golpe de Estado simultânea do ataque português a Conakry (22 de Novembro),

e internado num campo de concentração, de onde só sairia em 1979.

54

“Ardil desmascarado”, palestra na rádio e televisão em 7 de Julho de 1970, reprod. em Marcelo

Caetano, Mandato Indeclinável, cit., p. 207.

55

Emmanuelle Besson, op. cit., pp. 84-86.

56

Marcelo Caetano, Depoimento, cit., p. 182.

17

6. Radicalização, pluralização e desilusão dos católicos

A contestação do poder político e também da hierarquia da Igreja por leigos e

padres católicos beneficiaria, sob Marcelo Caetano, do clima de liberalização

condicionada que se instalou no país a partir de finais de 1968. A atenuação da

censura prévia e da repressão policial encorajou a acção política desses católicos, mas

a própria hierarquia ficaria menos protegida contra o debate de ideias no interior da

Igreja. Duma maneira geral, a imprensa católica tornou-se então menos monolítica.

No Porto, o bispo regressado do exílio extinguiu o antigo órgão da diocese, A Voz do

Pastor, próximo dos meios católicos mais conservadores, substituindo-o pelo

semanário Voz Portucalense, adaptado às concepções do Concílio. Passando a prestar

atenção aos problemas da sociedade, da emigração e da guerra colonial, abrindo-se

também aos debates sobre a vida interna da Igreja, o semanário portuense tornou-se

num órgão católico de referência à escala nacional.

A radicalização dos católicos contestatários, em curso desde os anos finais de

60, expressou-se em vários planos. Significou, por um lado, um gradual rompimento

com a autoridade dos prelados e uma contestação generalizada das políticas pastorais

e das concepções teológicas e eclesiológicas dominantes. O citado caso do seminário

dos Olivais e a destituição canónica do pároco de Belém, Felicidade Alves

(consumada em Novembro de 1968 a instâncias de Marcelo Caetano), desencadearam

movimentações várias no seio do clero e do laicado com objectivos de debate e

informação mútua, mas gerando um clima de quebra da disciplina hierárquica, que se

estendia também à Acção Católica. Em 1969, o padre Felicidade Alves e outros

sacerdotes e leigos, entre os quais o cónego Abílio Tavares Cardoso, ex-reitor dos

Olivais, lançaram os Cadernos GEDOC, com o propósito de lutar no interior da

Igreja, numa linha de “vanguarda cristã”. Prontamente condenada pelo patriarca

Cerejeira, a publicação seria depois proibida pela censura.

Já no Outono de 1968, começou a reunir-se mensalmente um grupo de

sacerdotes de Lisboa que queriam “reflectir sobre a sua missão numa sociedade em

mudança”, achando que “era impossível aos padres continuarem a colaborar com a

hierarquia [católica] ligada ao sistema”57

. O grupo, que ficaria conhecido por

“Tribuna Livre”, era vigiado de perto pela PIDE, que interrompeu várias das suas

reuniões e lhes confiscou documentação. A rede alargou-se, no entanto, a dezenas de

sacerdotes de várias dioceses. Quando, em 1969, perto de setenta padres de cinco

dioceses pretenderam reunir-se em Fátima, o patriarca Cerejeira e o bispo de Leiria

providenciaram que o local do encontro lhes fosse interditado. Outros grupos e redes

de padres e leigos se formaram nesses anos, sempre sob a vigilância da polícia política

‒ entrada em cena como que para compensar o colapso da autoridade hierárquica da

Igreja. As reuniões chamadas dos “Terceiros sábados”, em que participava o

dominicano Bento Domingues, tiveram de ser canceladas porque a polícia impôs a

interdição dos locais de encontro, que eram casas de ordens religiosas58

. O CIDAC

57

António Marujo, op. cit.

58

Idem, ibidem.

18

(Comunidade Inter-Diocesana para o Diálogo e Acção do Clero), por seu turno,

constituiu-se para organizar a participação de portugueses em reuniões europeias de

clero como, por exemplo, a assembleia dos “padres solidários” ou “contestatários” em

Roma em 1969, prontamente condenada pelo cardeal Cerejeira. Toda esta acção, que

o patriarca descrevia como um fenómeno de desintegração da Igreja, colocava uma

constante pressão sobre a hierarquia.

Num plano propriamente político, a radicalização dos contestatários católicos

acentuou-se particularmente no plano da luta contra a guerra colonial, mas

desenvolvendo também um claro sentido anticapitalista. Muitos militantes e ex-

militantes católicos integraram ou apoiaram, nas primeiras eleições da era Caetano, em

1969, as listas oposicionistas da CDE (a prazo, alguns iriam aderir ao MDP e ao MES).

Activistas sindicais católicos participaram desde 1968 na organização de eleições

sindicais, greves e lutas reivindicativas, bem como, a partir de Outubro de 1970, no

lançamento das “reuniões intersindicais”, embrião da futura Intersindical, ao lado de

elementos comunistas ou esquerdistas 59

. Alguns padres, assistentes eclesiásticos de

organizações de trabalhadores da Acção Católica, deram o seu contributo para este

processo unitário.

O campo dos católicos críticos do salazarismo passou, na primeira fase do

marcelismo, por um período de bipolarização política. A talvez maioria dos católicos

contestatários surgiu, nas eleições de 1969, na oposição a Marcelo Caetano. Francisco

Pereira de Moura, João Bénard da Costa, Vítor Wengorovius, José Galvão Teles,

Domingos Megre, António Arnaut, Gonçalo Ribeiro Teles, Rui Belo, Francisco Lino

Neto, Mário Pina Correia, José Carlos Megre, Francisco de Sousa Tavares, António

Alçada Baptista, Henrique Barrilaro Ruas, Fernando Honrado, todos candidatos de listas

de oposição (CDE, CEUD e CEM) nas primeiras eleições do marcelismo, tinham sido

subscritores de documentos e manifestos de católicos contra o regime de Salazar a partir

de 1958. Muitos outros católicos contestatários, com destaque para Felicidade Alves,

apoiaram também os programas e as listas da oposição.

Outra parte dos católicos críticos do salazarismo, todavia, identificou-se com a

perspectiva liberalizante anunciada por Caetano ou concedeu-lhe um crédito de

confiança. Vários desses católicos foram convidados para responsabilidades políticas e

governamentais, que alguns recusaram (como Mário Pinto), mas muitos outros não:

Rogério Martins, João Salgueiro e Xavier Pintado foram ocupar lugares do governo;

José Pedro Pinto Leite (que fora um dos redactores do “manifesto dos 101”, em 1965),

Francisco Sá Carneiro (que recusara assinar o dito), José da Silva, Joaquim Pinto

Machado, Joaquim Magalhães Mota e João Pedro Miller Guerra foram para a

Assembleia Nacional onde, com outros deputados não especificamente “católicos” da

União Nacional, formaram a chamada ala liberal; Adérito Sedas Nunes e Maria de

Lourdes Pintasilgo foram para a Câmara Corporativa.

Vários destes católicos reformistas, de tendência liberal ou socializante,

participaram também no lançamento e nas actividades da associação SEDES, idealizada

pelo chefe do governo como “segunda força” numa utópica perspectiva de pluralização

do regime autoritário. Porém, “infiltrada” por oposicionistas, a SEDES rapidamente se

tornou, segundo Caetano, em órgão de “doutrinação socialista”. A desilusão da maioria

dos católicos liberais e reformistas com o marcelismo reflectir-se-ia também nas

renúncias de deputados ou no abandono de lugares do governo. Após o 25 de Abril

muitos deles voltarão a estar activos, vindo a assumir responsabilidades políticas e a

59

José Barreto, “Os primórdios da Intersindical sob Marcelo Caetano”, Análise Social, nº 105-106 (1990),

pp. 57-117.

19

ocupar cargos de primeira linha durante o período de transição, de par com católicos de

esquerda.

O próprio bispo do Porto seria objecto, no seu regresso negociado do exílio, de

uma cuidadosa aproximação por parte de Marcelo Caetano, que dirá mais tarde nunca

ter duvidado das boas intenções do prelado, embora se viesse a queixar amargamente da

sua alegada “imprudência”. O bispo, ligado por amizade a vários elementos católicos da

“ala liberal”, também acreditou inicialmente nalgumas virtualidades do novo curso

político, manifestando mesmo uma vez, pessoalmente, “adesão, entusiasmo e

esperança” a actos do chefe do governo em Moçambique60

, mas não procurou evitar o

choque, por vezes frontal, com as alas mais conservadoras do regime (caso da sua

intervenção em tribunal a favor do padre Mário de Oliveira, ex-capelão militar na

Guiné, perseguido pela polícia política por opiniões pacifistas) e da Igreja (polémica,

em Janeiro de 1972, com o bispo de Madarsuma D. António dos Reis Rodrigues,

vigário castrense, tendo como pano de fundo a questão do comprometimento da Igreja

com a guerra colonial). Em 28 de Maio de 1971, na sequência de um jantar de “ultra-

direitistas” no Palácio de Cristal do Porto, em que a própria política de Marcelo Caetano

foi atacada, um grupo de participantes deslocou-se ao paço episcopal, diante do qual

gritaram slogans contra o bispo, em nome da defesa do Ultramar. Um conflito

protocolar do bispo do Porto com o presidente Américo Tomás, durante uma cerimónia,

em 1972, colocaria definitivamente D. António Ferreira Gomes na lista negra do

regime.

7. A luta pela paz e a nova orientação do patriarcado

As celebrações e vigílias do dia mundial da paz (1 de Janeiro), data instituída

por Paulo VI em 1967, foram em Portugal, sob Marcelo Caetano, uma oportunidade

escolhida pelos contestatários católicos para acções de questionamento da guerra

colonial, beneficiando teoricamente do guarda-chuva da Igreja. As primeiras acções

realizaram-se na noite de passagem de ano de 1968 para 1969. Na igreja de S.

Domingos, em Lisboa, após missa celebrada pelo cardeal Cerejeira, e depois de retirado

este, realizou-se uma vigília pela paz constante de “cânticos, leituras e comentários”,

reunindo centena e meia de leigos e padres. Num texto distribuído aos presentes para

debate, e que fora previamente lido ao patriarca, eram expressas críticas a uma nota

pastoral do episcopado que, a propósito do dia mundial da paz, falava dos “povos

ultramarinos que integram a nação portuguesa”. O patriarcado emitiria dias depois uma

nota considerando que a vigília de S. Domingos tinha evoluído num sentido

“tendencioso”, demarcando-se dela e condenando-a. No Porto, no dia 1 de Janeiro, tinha

também sido distribuído à porta das igrejas um documento de reflexão sobre a guerra e

a paz, inspirado nas palavras de João XXIII e Paulo VI. O fim principal de ambas as

acções foi o de declarar o direito e o dever de a “consciência cristã” abordar, numa

perspectiva não nacionalista, os problemas da guerra e da paz em África. Pouco depois

destes acontecimentos, católicos contestatários começariam a publicar clandestinamente

o Boletim Anti-Colonial, dirigido pelo arquitecto Nuno Teotónio Pereira e pelo padre

Luís Moita, regressado em 1967 de estudos em Roma.

60

Carta de D. António Ferreira Gomes a Marcelo Caetano, 2 de Abril de 1969, em J. Freire Antunes,

Cartas Particulares a Marcelo Caetano, 1.º vol., cit., p. 132.

20

Após a audiência do papa aos chefes independentistas, a contestação católica à

guerra subiu de tom. No final de Dezembro de 1972, nova vigília foi organizada em

Lisboa, na capela do Rato (capela da Juventude Escolar Católica), sob o lema “A paz

é possível”, pouco antes proclamado por Paulo VI. Cerca de 80 pessoas, na sua grande

maioria católicos, ocuparam a igreja no dia 30 e decidiram permanecer ali reunidos

pelo espaço de 48 horas, em jejum, para reflectir principalmente sobre a guerra

colonial. O evento, que, se tivesse ficado confinado à capela, não teria tido especial

impacto público, foi divulgado por uma organização revolucionária (o PRP), com

lançamento de panfletos por petardos em vários pontos de Lisboa e arredores,

informando sobre uma “greve de fome contra a guerra colonial” que estaria a decorrer

na capela do Rato. Ao princípio da noite de 31 de Dezembro, a polícia de choque e a

PIDE/DGS fizeram evacuar o local de culto, procedendo a dezenas de detenções.

Treze “resistentes” ficariam presos durante duas semanas e doze deles seriam

posteriormente demitidos dos seus empregos públicos, entre os quais o economista

Francisco Pereira de Moura.

O episódio, largamente noticiado na imprensa portuguesa e estrangeira, daria

azo em Janeiro de 1973, na Assembleia Nacional, a um pedido de esclarecimento ao

governo pelo deputado Francisco Sá Carneiro, bem como a um célebre debate

protagonizado por Miller Guerra e pelos deputados ultraconservadores Casal Ribeiro,

Henrique Tenreiro e outros. No centro das atenções iria estar a posição do patriarca de

Lisboa sobre o acontecido, como adiante se verá.

Marcelo Caetano, no seu Depoimento pós-revolução, acusaria as autoridades

eclesiásticas (isto é, o patriarca de Lisboa) de nada terem feito para pôr termo ao

“escândalo” da capela do Rato, que descreveu como “missas e rezas entremeadas de

discursos e objurgatórias contra a defesa do Ultramar”61

. De facto, o novo patriarca

António Ribeiro, posto ao corrente da vigília da capela do Rato logo no dia 30 de

Dezembro, decidira não intervir, desde que ficassem asseguradas as condições para a

celebração habitual do culto. Após o incidente com a polícia, o patriarca resolveu

contrariar as ordens policiais para se suspender o culto na capela do Rato, o que

conduziu à detenção dos dois sacerdotes que a 1 de Janeiro celebraram missa.

Enfrentando a situação com uma determinação rara num alto responsável da Igreja

sob o Estado Novo, D. António Ribeiro exigiu a libertação dos padres, deslocando-se

depois pessoalmente à sede da polícia política, de onde só se retirou quando foi

satisfeita a sua exigência62

.

Uma nota do patriarcado sobre o caso seria difundida pelos jornais a 11 de

Janeiro de 1973, dando o tom da nova atitude da Igreja em matéria política e de

relacionamento com as autoridades do Estado. O acento era aí claramente posto na

“isenção que a Igreja deve e quer manter relativamente às legítimas opções de católicos

e não católicos”, sem deixar de se reprovar os “comportamentos abusivos” tanto do

grupo que permaneceu na capela (não se fazia referência a ocupantes) como das forças

policiais que intervieram num “lugar sagrado”. Declarando desejar evitar, nas

circunstâncias da guerra que se processava no Ultramar, situações melindrosas como a

acontecida, a nota do patriarcado declarava todavia ‒ e aqui constatava-se uma viragem

notória no discurso da hierarquia da Igreja ‒ não pretender desencorajar “a procura, por

61

Marcelo Caetano, Depoimento, cit., p. 84.

62

Peter Stilwell (coorden.), Padre Alberto - Testemunhos de uma voz incómoda. Capela do Rato (68-73),

Texto Editora, Lisboa 1989.

21

parte dos católicos e dos homens de boa vontade, das soluções concretas que levam à

paz”. Rematava apelando a “um esforço de objectividade e lucidez, de respeito pelas

pessoas e seus direitos, de diálogo e colaboração, de empenhamento e

responsabilidade”63

.

Os meios mais conservadores do regime não conseguiram calar a surpresa e a

consternação despertadas pela nota do patriarcado, registando-se reacções contra ela na

imprensa e na Assembleia Nacional64

. Nesta última, a 23 de Janeiro, o já citado Miller

Guerra defendeu, perante os ataques dos deputados ultras, o teor da nota do patriarcado,

que na sua opinião reflectia “a perplexidade dos católicos quando procuram traduzir

praticamente as directrizes doutrinais do Pontífice [Paulo VI] e as verdades

evangélicas”65

. No dia seguinte, a divulgação pelos jornais da intervenção de Miller

Guerra seria proibida pela censura. A 25 de Janeiro, Francisco Sá Carneiro ‒ que na

legislatura 1969-1973 vira já cerca de uma dezena de projectos de lei seus retirados da

discussão e votação ‒ renunciaria ao seu mandato, inaugurando as defecções da “ala

liberal” da Assembleia Nacional, sendo seguido por Miller Guerra dias depois.

Da patente mudança de rumo na orientação do patriarcado, ilustrada pelo

episódio da capela do Rato, testemunhariam outros factos muito significativos, como o

encontro em Roma, em 1973, do cardeal António Ribeiro com Mário Soares, então

exilado em França ‒ a primeira vez que um patriarca de Lisboa recebeu, ainda que fora

do território nacional, um dos líderes da oposição ao Estado Novo. Em Maio de 1973,

dois meses depois de ser elevado ao cardinalato, D. António Ribeiro fez também

história, ao redigir o projecto da “Carta pastoral no décimo aniversário da Pacem in

Terris”, publicada pela Conferência Episcopal Portuguesa a pretexto, também, do 25.º

aniversário da adopção pela ONU da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Esta carta pastoral do episcopado, a última sob o Estado Novo, vinha de certo

modo emendar o tratamento protocolar que o cardeal Cerejeira concedera dez anos antes

à encíclica de João XXIII. Propunha fazer uma “leitura cuidadosa” de alguns temas

enunciados no documento pontifício, tomando em consideração o caso português:

missão da Igreja na transformação do mundo, direitos fundamentais do homem,

liberdade de participação política e pluralismo. Ainda que no documento final aprovado

pelos bispos tais temas fossem só muito brandamente reportados à concreta situação

nacional e se omitisse nele, paradoxalmente, o problema da paz (e da guerra) na África

portuguesa, o episcopado dava mostras públicas, pela primeira vez em quase meio

século, de se interessar pelas liberdades e direitos políticos dos portugueses, tomando

claramente posição a favor do “pluralismo de opções políticas”, do “sufrágio livre” e da

“liberdade de expressão de opiniões legítimas de indivíduos e grupos”. A menos de um

ano do 25 de Abril de 1974, os bispos selavam assim um oportuno, se bem que tardio,

distanciamento oficial da Igreja hierárquica em relação à velha frente nacional que

sustentou o Estado Novo durante mais de quarenta anos.

Não prova esse documento, porém, que a maioria dos membros da Conferência

Episcopal estivesse sintonizada com os princípios liberais e democráticos que o novo

patriarca nele inscreveu ‒ com uma autoridade que lhe vinha menos do colectivo do que

63

“Nota do Patriarcado acerca do caso da capela do Rato”, Diário de Lisboa, 11 de Janeiro de 1973.

64

Veja-se o artigo não assinado “Reflexões sobre o Cavalo de Tróia”, saído no Diário Popular de 13 de

Janeiro de 1973 e vivamente aplaudido depois, na Assembleia Nacional, pelo deputado Casal Ribeiro (o

“cavalo de Tróia” era uma referência ao “progressismo católico”, com o qual era conotada a nota do

patriarcado).

65

Diário das Sessões, X Legislatura, 4ª. Sessão Legislativa, nº 214, 24 de Janeiro de 1973.

22

de Roma. Ainda menos provará que a colaboração da hierarquia da Igreja com o regime

de Salazar e Caetano se tivesse já “desagregado” e passado abertamente a uma

“oposição expressa”, como Manuel Braga da Cruz defende.66

Este autor exime-se, aliás,

a delimitar e a caracterizar quantitativamente aquilo a que chama um “sector

significativo e cada vez mais vasto” da “própria hierarquia” que, na sua opinião, teria

passado a uma oposição expressa ao Estado Novo e entrado em “ruptura” com ele. Isso

permite-lhe depois concluir que não seria possível explicar o colapso do regime em

1974 sem se tomar na devida conta o papel para esse desfecho desempenhado por uma

“Igreja católica” abstracta, tomada globalmente, ou por um igualmente genérico e

ambíguo “dilaceramento da consciência católica”67

.

Nós sublinharíamos, contrariamente, o papel que sectores minoritários do

laicado, do clero e do episcopado portugueses desempenharam na divisão da Igreja, isto

é, no dilaceramento progressivo da unidade política dos católicos e do monolitismo

doutrinário impostos hierarquicamente. Ou o papel inspirador que a renovação do

catolicismo universal desempenhou, sob os papas conciliares, na formação desses

sectores católicos minoritários em Portugal. Ou, ainda, a influência directa que a Igreja

de Roma teve, nacional e internacionalmente, no desapoio ao colonialismo português e

às guerras de África sob os mesmos pontificados. Não foi a Igreja em geral, foram

aquelas “minorias activas” ‒ como Caetano lhes chamava ‒ de leigos críticos,

sacerdotes contestatários, teólogos marginais, capelães e missionários pacifistas, bem

como, no total, três ou quatro bispos inconformistas que permitiram que a Igreja

portuguesa despisse um pouco a imagem nacional-católica de aliada do Estado Novo,

criando com isso condições para uma transição democrática sem eclosão de “questão

religiosa” e sem as há muito temidas e agitadas retaliações ou violências anti-clericais.

Não foi o episcopado nacional, foram os papas João XXIII e Paulo VI, apoiados em

fortes correntes internacionais de renovação da Igreja e de defesa dos direitos humanos,

que contribuíram para deslegitimar o papel que o Portugal de Salazar e Caetano se

arrogava de portador da “civilização cristã” em África.

66

Manuel Braga da Cruz, O Estado Novo e a Igreja Católica, cit., pp. 15 e 191.

67

Ver as nossas críticas à obra de Braga da Cruz em “Oposição e resistência de católicos ao Estado

Novo”, cit., nomeadamente pp. 159-160.