Nganos Contos Tradicionais Moçambicanos.
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Uma viagem por Moçambique através dos nganos – contostradicionais moçambicanos1
Valeska Garbinatto2
Resumo:O livro através do qual me aproximei de Moçambique foi
fruto de um concurso literário em 2006, seu título é bastanteatraente: Nganos: contos tradicionais moçambicanos. São históriascontadas por jovens da etnia ndau, uma das muitas que compõemo panorama cultural e lingüístico de Moçambique. Através desteconcurso, estes jovens escritores não só aperfeiçoaram osseus conhecimentos na língua oficial de seu país, comointentaram a recuperação de suas raízes culturais.
Este artigo é um esforço de compreensão da realidademoçambicana atual no que diz respeito a educação, ao domínioda língua portuguesa, da reconstrução nacional.
Palavras-Chave: Moçambicanidade; Tradição oral; TradiçãoEscrita; Identidade; Etnia
I. Introdução: Nunca fui a Moçambique...
Nunca fui a Moçambique. Na verdade nunca saí do Brasil.
Fui a Moçambique através da história, que como diz
François Hartog é um outro território. Mas na realidade pura e
crua da vida nunca fui Moçambique.
Nem sei de onde me veio esta vontade de ver este país tão
distante para mim. Não tenho amigos moçambicanos. Não conheço
1 O texto original foi uma artigo apresentado na disciplina de LiteraturasAfricanas de Língua Portuguesa, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Eliana IngePritsch (UNISINOS e FAPA). E apresentado no XII Encontro Estadual deHistória e no IV Encontro Estadual do GT Gênero de Santa Catarina em 05 a08 de setembro de 2010/Universidade Comunitária da Região de Chapecó –UNOCHAPECÓ.2 Licenciada e Bacharel em História pela UFRGS. Professora das escolas:C.E.E.F.M. Elpídio Ferreira Paes e E.E.E.F. Alceu Wamosy. Especialista emHistória Contemporânea e Supervisão Educacional, ambas FAPA. AlunaEspecialização em História Africana e Afro-Brasileira
nada além do que o próprio nome. E, no entanto me veio um
livro sobre esta terra.
Mas Moçambique veio a mim. Timidamente. Através das mãos
de uma amiga. Através de uma menina que nem sabia se
Moçambique e eu nos entenderíamos. Mas Moçambique se fez para
mim mais presente do que poderia imaginar.
A primeira notícia que tive de Moçambique foi num livro
que recebi das mãos de minha amiga. Notícias não é bem o
termo. Recebi histórias, pequenos relatos de uma vida que se
desfaz, que se desintegra. Lembranças de adolescentes, de uma
terra que tenho dúvidas de falar se existiu... Acho que eles
também têm esta dúvida caso contrário não teriam escrito o que
li... Li e reli aqueles textos, contos ou lembranças...
Invencionices de adolescentes? Não sei dizer. Mas de alguma
forma Moçambique entrou em minha vida e nem sei se quero que
saia.
Mas vamos a buscar Moçambique...
O livro através do qual me aproximei de Moçambique foi
fruto de um concurso literário em 2006, seu título é bastante
atraente, mas ainda não sei se é o mais correto Nganos: contos
tradicionais moçambicanos.
Já explico o meu ponto de vista. O livro e seu original
concurso são dois momentos de uma ação intencional de resgate
da cultura de uma etnia específica de Moçambique, a cultura
Ndau. Portanto os contos são as histórias que a tradição
familiar de jovens diferentes receberam sobre a sua etnia
dentro de um território, que hoje conhecemos por Moçambique.
São histórias que de alguma maneira são a visão destes jovens
sobre a sua percepção do mundo e, conseqüentemente, seu
Moçambique...
E no emaranhado de histórias, de relatos de outras pessoas
que jamais vi ou pude sequer sonhar que existissem, surge
também a minha percepção do Moçambique que não conheço...
II. Jovens demais para não saber...
Há vinte anos o nosso país era outro país... E talvez a
maioria de nossos adolescentes nem saibam muito, não por falta
de informação, mais por falta de experiência mesmo...
O que significam vinte anos numa vida? Por certo que
muito. Será? Entre idas e vindas das mudanças econômicas, nas
mudanças da moda, vinte anos foram um piscar de olhos para nós
que passamos uma relativa estabilidade política e social em
nosso Brasil.
O que não é o mesmo para os jovens que fizeram parte do
livro Nganos... Em sua maioria pertencente à etnia Ndau, vindos
das mais diferentes regiões de Moçambique3: Buzi, Mucheve,
Mutabira, Machanga, Inharinge-Machanga, Inhanguno-Machanga,
Djambe, Chibabava, Manbone, Beira, Muxungüe, Mutindire,
Divinhe, Riconde, Chiluane, Cherinda. Literalmente vêm das
mais diferentes áreas do país, de pontos tão distantes que
teríamos dificuldade para nos localizarmos4. De semelhante
possuem a mesma origem étnica, possuem famílias pobres, muitos3 No índice do livro há a foto de cada um dos jovens escritores, junto háinformações sobre sua data de nascimento, o local onde nasceu, a turma aqual pertence na escola e o fundamental seu maior sonho.4 Em mapas na web certas áreas nem aparecem, pois não prioridades ou por nãoconcentrarem população suficiente ou por não fazerem parte de zonaseconomicamente ativas para o país.
possuem apenas uma muda de roupa e um par de sapatos (quando
muito), dormem em esteiras de palha por eles mesmos
confeccionadas, estão internos numa missão católica na região
de Mangunde na província de Sofala, em área litorânea do país.
Para além da etnia há os sonhos que relatam. Sonhos
simples. Sonhos de trabalho, de realizar-se numa profissão:
professores de matemática, de português, pilotos de avião,
engenheiros, arquitetos, filósofos, historiadores,
contabilistas, advogados, juristas, padres... Sonhos de
reconstrução. Sonhos de escrever a História do seu Moçambique.
Em verdade parece que os países da África estão sempre a
se reconstruir... Tal o estado de coisas deixado pelas
potências européias na região. Com Moçambique não foi
diferente. Os jovens escritores ndau, que têm em média 20
anos, cresceram sob o impacto de uma guerra que dilacerou o
país. Primeiro seus pais virão o emergir de uma luta
anticolonial sob a liderança da FRELIMO, que desde 1962 vinha
se organizando, depois com o fim da ocupação portuguesa, era a
vez de saber-se quem comandaria o jovem país independente,
porém pobre e desestruturado pela saída de milhares de colonos
portugueses e companhias estrangeiras privadas.
Durante os anos que se seguem do final da guerra de
libertação (1975) até a estruturação de uma política de estado
única e a pacificação do país em 1992, o país empobreceu mais
ainda: áreas inteiras deixaram de ser cultivadas, a fome
tornou-se endêmica, os índices de alfabetização e de
saneamento para as camadas pobres e negras da população
praticamente não haviam sido alterados. Diante disso, não é
estranho que Moçambique, assim como outros países africanos
tenham sido alvo da piedade cristã das nações mais ricas e
mesmo de associações e organizações que visavam unicamente
auxiliar os povos massacrados pela guerra e pela miséria.
Estes jovens ndau que hoje lançam um livro são a minha
porta de entrada para um país que nunca conheci... E que eles
não conheceram também... São contos milenares, ancestrais,
passados de geração para geração, em momentos de pouca paz em
que os mais velhos contavam histórias de um tempo que se
perderam desde o momento que o primeiro português aportou em
Sofala.
Esses jovens que representam o futuro do país, não é mera
coincidência dizer esta frase, são educados em língua
portuguesa, numa missão católica, onde além da língua oficial
eles também aprendem o que oficialmente se deve esperar deste
mundo novo que surgira para África no contato com a Europa.
Segundo as estatísticas oficiais são ao todo 44 etnias
habitando em Moçambique, os ndau são apenas uma das mais
numerosas com uma população que pode ser colocada na casa de
1.900.000 espalhados por várias áreas do país5. Trata-se de uma
etnia ligada ao grupo de línguas Bantu6 que vai ser localizado
desde Angola, foz e bacia do rio Congo, Nigéria, sul da
África, Zâmbia, Zimbabué e em algumas áreas do Quênia e
Etiópia7. 5 Ver site: Ethnologue Languages -http://www.ethnologue.com/show_country.asp?name=MZ6 Adoto aqui a terminologia: Bantu (plural de muntu que significa “homem” ou“pessoa”). Esta terminologia foi aplicada por Bleek em 1862 e é citada porPOSNANSKY, M. Introdução ao fim da pré-história na África subsaariana. In: MOKHTAR, G.História Geral da África: II. África Antiga. São Paulo. Ática/Unesco. 1983. pág. 5517 OLDEROGGE, R. Migrações e diferenciações étnicas e lingüísticas. In: KI-ZERBO, J.História Geral da África: I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo. Ática/Unesco.
Que histórias são essas? São metáforas de um mundo em
transformação e em guerra.
III. Minha língua, minha Pátria... Será?
Os contos reunidos em Nganos são histórias coletadas das
experiências sociais e familiares de jovens ndau, estão
intimamente vinculados a oralidade e a uma lógica temporal e
espacial que foge a compreensão ocidental e européia. Nesse
sentido estes contos são pontos de resistência de uma cultura.
A forma de registro que o conto assume é a língua
portuguesa e não é sem motivo. O concurso que deu origem ao
livro pretendia que esses jovens pudessem desenvolver a
prática da escrita objetivando a construção da coerência e
lógica textual, bem como a desenvoltura e habilidade com
língua portuguesa, língua oficial de Moçambique, mas que se
encontra restrita a uma parcela de 40% da população do país,
utilizada em estabelecimentos oficiais como escolas,
repartições públicas, hospitais e em áreas urbanas
significativamente.
Moçambique se dá a conhecer a mim através da língua
portuguesa. A língua do dominador... Num país multicultural e
multilingüe a existência de uma língua oficial pode ser uma
dificuldade, afinal será esta um veículo muito forte com o
período colonial. Mas essa será uma percepção precipitada...
1982. pág. 304-5. POSNANSKY, M. Introdução ao fim da pré-história na África subsaariana.In: MOKHTAR, G. História Geral da África: II. África Antiga. São Paulo. Ática/Unesco.1983. pág. 551-2
Em conversas informais com os organizadores da coletânea
deixam clara a preocupação em buscar através da escrita a
identidade destes moçambicanos ndau: sua ancestralidade, sua
condição como homens e mulheres responsáveis por suas
comunidades, que foram buscar longe de casa os instrumentos
oficiais8 de reconstrução deste país africano, seus sonhos e
uma lição a ser apreendida de cada história.
Essa identidade “ndau moçambicana” ou “moçambicana ndau” é
uma questão que se encontra em aberto, de certa maneira, para
todas as etnias que povoam este país. E num sentido amplo não
se pode falar desta construção identitária sem penetrar nas
questões da apropriação e transformação da língua nacional e
da fixação de momentos específicos da história nacional.
Língua e História estão imbricadas num processo de
construção histórica e social de um determinado povo, no caso
de Moçambique, vários povos que sob o regime de ocupação e
colonização português impôs não só fronteiras territoriais
arbitrárias para estes povos (ou nações), como a
desestruturação de seus modos de vida (o que vale dizer
utilização de terras, cultivos de determinados produtos,
regras sociais).
Falar de domínio dos instrumentos oficiais e encarar o uso
da língua portuguesa como sendo um destes é entender que,
8 Por instrumentos oficiais: o domínio da língua portuguesa, já que a missãocatólica administrada pela associação civil Esmabama é um estabelecimentode ensino no qual estes jovens vão buscar um conhecimento que somente apoucos tem chegado; mas é também um espaço em que se toma contato com acultura ocidental mais ampla nas diferentes disciplinas ministradas, opróprio concurso literário é uma parceria entre as disciplinas de LínguaPortuguesa e Moral e Cívica o que nos mostra a intenção de formação de umaconsciência identitária que vai além dos laços tradicionais que os costumesndau prevêem.
ainda durante a luta de libertação de Moçambique, o português
foi reapropriado pelas lideranças da FRELIMO como um elemento
de unificação de um novo projeto nacional, agora não mais
luso, mas independente, autônomo, livre...
Como diz Mia Couto: “O idioma português não é a língua dos
moçambicanos. Mas, em contrapartida, ela é a língua da
moçambicanidade”9 O que antes fora um dos marcos da dominação
tornar-se-á um pilar de afirmação.
No entanto, este pilar de afirmação deve passar por um
grande processo de reconstrução nacional, o que incluiu
forçosamente o sistema de ensino pós 1975. Segundo os estudos
apresentados por Armando Jorge Lopes o português é uma das
línguas faladas em todo o país, que é apontado como sendo um
dos 15 países africanos com elevada diversidade lingüística10.
Parece então óbvio que o sistema de ensino deva se adaptar
a esta realidade e fornecer condições para que
lingüisticamente todos os moçambicanos tenham condições de
estabelecer novos elos de comunicação sem, no entanto, deixar
perderem-se os elos que já estavam presentes.
Em 1975, cerca de 80% dos moçambicanos não falavam o
idioma português. A popularização da língua é obra da
independência. Hoje 2008, e em 2006 quando os contos foram
escritos, tem-se pelos menos 40%, talvez com variações
mínimas, que dominam o idioma luso. O que, novamente vale
citar Lopes, significa dizer:
9 COUTO, Mia. A língua portuguesa em Moçambique. http://www.ciberduvidas.pt/articles 10 Lopes faz coro com Couto quando cita o congresso da FRELIMO em 1971 eDar-es-Salam (Tanzânia) e o debate surgido entre o uso do português comolíngua nacional em relação às demais línguas bantu que aparecem no país.
“Os falantes de português como língua materna representam 3% dapopulação local e constituem uma percentagem considerável (17,7%) donúmero de falantes na capital, a Cidade de Maputo. No país, mais de 90%de falantes do português como língua materna são urbanos, enquanto quea esmagadora maioria dos falantes de línguas bantu como línguasmaternas vive no campo. Quase metade da população situa-se na faixaetária dos cinco aos 19 anos, e 5,2% são do sexo feminino. Por fim, cercade 40% da população total do país fala, compreende e escreve português.Mas é claro que, seu no seio, uso efectivo e eficiente da língua portuguesa évariável”11.
O ensejo do concurso literário foi mais que oportuno se
pensarmos essa realidade cultural e sócio-política, como bem
podemos inferir pelas palavras de um de seus organizadores:
“Mangunde é o interior de Moçambique onde a eletricidade é por geradorisso só na Missão onde tem internato, pois quase toda gente usa phante,uma espécie de candeeiro com querosene ou ainda foto de tocos dearvores. A maioria da população quase toda é analfabeta e eles vivemainda sob moldes tradicionais, a língua portuguesa não é muito usadasenão mesmo salvo no hospital ou mesmo na escola. Então, a Missão servede foco de "civilização" na qual se poder usufruir os benefícios que amodernidade oferece: eletricidade, aquisição da língua portuguesa como asegunda língua, conhecimento científico, aprender a ler e escrever, uso decomputador, internet, para além de uma socialização maior entre osalunos oriundos de diversas parte do distrito, da província e até do paisque acorrem aquele estabelecimento devido a sua fama de qualidade deensino que presta”12.
Claro que poderíamos questionar, de maneira muito ampla,
se esta apropriação da língua nacional coloca em risco as mais
de 30 línguas dos diferentes grupos étnicos. Ou mesmo como
garantir um convívio sem hegemonia? E a resposta está no
desenvolvimento que o governo de Moçambique vem realizando no
sentido de várias experiências de ensino bilíngüe em todo o
território. Contudo, o destino das línguas é governado por
outras razões talvez mais profundas. E é claro, também que a
contar pelos índices fornecidos poderíamos questionar a
11 LOPES, Armando Jorge. Reflexões sobre a situação lingüística de Moçambique (pág. 35-46). In: CHAVES, Rita e MACEDO, Tânia. Marcas da diferença: as literaturas africanas delíngua portuguesa. São Paulo: Alameda. 2006. pág. 3712 Domingos Pedro Zina Faz-Ver. Conversa via e-mail durante o mês denovembro de 2008.
eficiência destas experiências, mas será que este é realmente
o nosso papel aqui? Penso que não, por ora...
Indo à contracorrente do que foi dito por Mia Couto sobre
os escritores moçambicanos que escrevem em português: “Fazem-
no porque sentem em português, vivem em português. Porém, é já
um português outro, uma língua afeiçoada à cor e à textura da
nação moçambicana”13. Estes jovens ndau escrevem em português
não tanto porque o sintam em português, mas que escolheram o
português e, porque não dizer, fazer parte de uma realidade
nacional que consiga dar conta das inúmeras faces que têm
Moçambique... Mas esta é uma primeira leitura...
IV. O sobrenatural, o sagrado: Os mortos visitam, os espíritos instruem, os
ancestrais se manifestam... Uma forma de resistir à missão?
É neste momento que podemos perceber a proximidade entre
os nganos, os missossos14, as lendas e todas as histórias que
vão compor o pantheon sagrado africano. È claro que não podemos
pretender visualizar uma uniformidade ou mesmo homogeneidade
entre as tradições religiosas presentes na África, seria uma
afirmação muito difícil de se sustentar, é só darmos uma
olhada na cultura religiosa de matriz africana que está
representada nos países da América como um todo: voduns,
orixás, batuque, Xangô, santerias... No entanto, há elementos
comuns e que de alguma forma se conectam com estes contos.
13 COUTO, Mia. A língua portuguesa em Moçambique. http://www.ciberduvidas.pt/articles14 PADILHA, Laura Cavalcante. Entre a voz e a letra: o lugar da ancestralidade na ficçãoangolana do século XX. Niterói: EdUFF/Pallas, 2007. pág. 45 a 75
Em O segredo15 um jovem caçador sai à caça com seu cão
Chang, consegue abater uma gazela e na tentativa de abater uma
segunda se fere gravemente. Sentado no meio da mata, sem poder
deslocar-se tendo com companhia seu fiel cão, desabafa para
aquele que não pode lhe responder ou apaziguar... Será? O cão
se manifesta em uma linguagem clara para o caçador e o ajuda
em troca ele, o caçador, ficará com o dom de entender a língua
de todos os animais, contudo há uma condição: não deverá
revelar esse segredo a ninguém, sob pena de morrer. Levado
pela pressão da cunhada em entender o que se passava com o
jovem caçador este revela o segredo e morre.
É incrível a semelhança entre a história narrada por
Chicopa João e a de “Nhanga Dia Ngenga e os seus cães”16, um
conto angolano. Não se pode esquecer que esta familiaridade
não é sem motivo, tanto Angola quanto Moçambique são países
cujas etnias que povoam têm como raiz lingüística comum as
línguas bantu, além disso desde antes da chegada dos
portugueses nestas terras africanas, os grupos humanos se
deslocam em rotas de comércio de longa distância, sendo mesmo
referido na literatura especializada a existência de portos
importantes tanto em Sofala, quanto em vários pontos dos rios
Zambeze e Limpopo17.
15 JOÃO, António Chicopa. O segredo. In: Nganos: contos tradicionais moçambicanos.pág. 15 e 1616 PADILHA, Laura Cavalcante. Entre a voz e a letra: o lugar da ancestralidade na ficçãoangolana do século XX. Niterói: EdUFF/Pallas, 2007. pág. 48 e 49. A autoraanalisa os Contos populares de Angola, 1964.17 FAGE, D. O Nordeste e a expansão Bantu na África. In:http://afrologia.blogspot.com.
No conto Os dois amigos18, o leitor vai se deparar com
Guidione, o corcunda e Makaro, o coxo. Ambos são companheiros
de longa data e de infortúnios, passam os dias buscando uma
solução para seus defeitos físicos, apelando para chás, rezas,
simpatias e feitiços. Numa noite, após beberem muito, voltam
caminhando até suas casas, no caminho Guidione cai em frente à
entrada do cemitério e lá fica desacordado enquanto que Makaro
segue trôpego. Um fantasma muito simpático tenta em vão puxar
assunto com o rapaz, vendo-o tão cansado suspeita que a
bagagem (corcunda) que este carrega é que deva ser o motivo
daquele sono todo. Simpaticamente a retira das costas de
Guidione que ao acordar percebe a transformação.
Não é preciso ir adiante para deduzir que Makaro resolve
também adormecer no cemitério para ver se consegue se livrar
de sua deficiência... Mas pobre Makaro, ele encontra o
simpático fantasma, que o confunde com Guidione e devolve sua
bagagem, achando que o jovem havia voltado para buscá-la! Ao
final do conto a conclusão de Guidione ao escutar o relato
entristecido do amigo: “Você precisava mais do que almejava,
esse é seu fruto”19.
Irônico? Cruel? Ou simplesmente uma interessante
interpretação dos desígnios divinos?
Em História de Inhangoma-Imwe20 o relato gira entorno desta
região de ilhas no litoral moçambicano. Na região ao amanhecer
e ao pôr-do-sol ouvia-se um misterioso som de batuque e via-se18 FRANCISCO, Gimo Cuarussua. Os dois amigos. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 25 e 2619 FRANCISCO, Gimo Cuarussua. Os dois amigos. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 26 20 DOCODO, Domingos Francisco de Assis. História de Inhangoma-Imwe. In: Nganos:contos tradicionais moçambicanos. pág. 31 e 32
uma grande quantidade de equipamentos tradicionais utilizados
em cerimônias de curandeirismo e de iniciação de novos
curandeiros. Os nativos acreditavam que tais cerimônias e os
sinais que viam eram de responsabilidade do deus dos oceanos,
responsável pelo batismo de novos curandeiros. Quando os
portugueses chegaram à região perceberam a sua riqueza, lá se
instalando. Mas aos fazerem isso desrespeitaram as tradições
locais. Em conseqüência disso a ira dos espíritos tradicionais
foi despertada e numa noite tudo foi destruído pelas águas.
A região é alvo da curiosidade e do temor das populações
próximas até os dias atuais, segundo o autor. Há redemoinhos
que impedem a pesca na região tirando muitas vidas incautas e
de quem não respeitam as tradições, obviamente, aquele que
deseja ser um curandeiro não deve ir ao mar na região antes de
prestar o mjunju21 devidamente, caso contrário perderá a sua
consciência normal.
A vida humana ou não só se estabelece a partir do
consentimento das divindades, mas influenciada e mantida sob
seus auspícios. O sobrenatural é uma dimensão tão concreta
quanto a dimensão da vida material cotidiana. Não há uma
dicotomia, tal como os ocidentais europeus constroem, na qual
religião e ciência separam-se para nunca mais se reunir22.
Já em Karingana wa karingana23 temos um conto sobre os
ordálios, os julgamentos rituais, em que a verdade vem à tona
num momento de crise e de prova de coragem. Um caçador de nome
21 Ritual de batismo dos curandeiros.22 SILVA, Fernando Correia da. Contos Africanos. São Paulo: Editora CultrixLtda, 198923 ZEFANIAS, Gabriel Chidequere. Karingana wa karingana. In: Nganos: contostradicionais moçambicanos. pág. 55 e 56
Gabriel tem duas esposas a mais velha Helena e a mais nova
Maria, com todas teve filhos. Depois de um dia de caça ele
traz para casa uma perdiz e uma galinha do mato. Em casa
deixou que as esposas escolhessem os animais, Maria escolheu a
galinha do mato por ser maior e Helena teve de contentar-se
com a perdiz. Porém, o prato de caril preparado por Helena foi
muito mais apreciado pelo esposo, que percebeu seu cuidado no
preparo para que o alimento ficasse saboroso e rendesse para
todos. Maria com inveja, num momento de ausência de Helena,
entra na sua casa e come todo o caril. Mas interrogada ela
nega. Gabriel leva a questão ao sacerdote da aldeia que propõe
um ordálio: caminharem por um fio, sendo que abaixo dele,
havia um poço fundo. Quem roubou cairia enquanto os inocentes
passariam incólumes. Cada membro da família que passava, o
fazia entoando uma cantilena no idioma ndau.
Neste conto também aparece a mescla entre a tradição ndau
e a cultura européia que se instala pela presença de nomes
europeizados nos protagonistas. Contudo, é a cultura e os
costumes da comunidade que prevalecem e que são referendados:
a poligamia, a consulta ao sacerdote, a prática dos ordálios24.
Os cultos africanos, como um todo, apresentam muitas
semelhanças nas suas estruturas, embora cada etnia tenha seu
conjunto de divindades, rituais religiosos e de iniciação
sexual, animais e plantas sagrados. No geral, os contos
tradicionais falam de migrações e do contato com etnias e
24 Deve ser ponderado que os ordálios já eram conhecidos das comunidadesgregas e romanas e praticados durante toda a Idade Média sob a égide daigreja católica.
culturas diferentes, da interação e do hibridismo resultante
disso.
Nas religiões africanas tradicionais a família é um dos
pilares de sustentação das comunidades, morrer sem deixar
filhos é visto como uma desgraça. Mas a noção de família, como
já foi dito, é ampla: inclui os vivos, os mortos, os agregados
(escravos, servos, empregados) e os ainda por nascer, ou seja,
os descendentes. Quando uma família se extingue o elo com os
ancestrais e a Terra (o planeta, mas a própria fertilidade) é
cortado, pois não existirá mais quem os cultue. Sendo assim,
se entende a importância da constituição de uma família e a
manutenção de várias famílias é a possibilidade de muitos
possíveis descendentes. Por isso a punição para uma mentira ou
para a inveja é a morte exemplar, já que é a instauração de
uma crise, de um desequilíbrio entre os entes de um mesmo
círculo25.
Por outro lado, a intervenção dos espíritos dos mortos na
vida material é algo entendido como comum e em certa medida
natural, para a maioria dos africanos, os mortos vivem na
outra vida do mesmo modo que aqui na Terra. Oferendas
coletivas ou isoladas são necessárias, sendo encaradas como
forma de homenagem26. Interessante é perceber que no contato
com as religiões islâmica e cristã as religiões africanas vão
buscar os exemplos de contato entre vivos e mortos: Lázaro
ressuscitado, a menina que Jesus cura do sono da morte, a
visitação dos anjos anunciadores...
25 GARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões.São Paulo: Companhia das Letras, 2005. pág. 97-10426 GARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões.São Paulo: Companhia das Letras, 2005. pág. 97-104
Quando nos contos aqui relatados percebemos a presença
destes elementos, o que é possível de ser pensado? Mais do que
resistência à ação evangélica católica, há a permanência ou
continuidade de práticas religiosas e culturais milenares que
a despeito da ação cristã, se mantém e se mesclam a ela,
buscando os elementos que as reforçam...
VII. Através da tradição oral a reconstrução... Ou a moral dos antepassados...
A tradição africana, como um todo, é pródiga em relatos
sobre a intervenção dos seres divinos, ou mesmo do
sobrenatural, para além de um registro escrito o que temos é
um registro memorial baseado na ação e na construção de uma
oralidade milenar, em que o jogo de palavras, a associação de
características entre os personagens das histórias, a
repetição de eventos e de narrativas vêm a contribuir para que
essa tradição seja mantida através dos séculos, apesar das
pessoas...
Este registro memorialístico, porque com base nas
lembranças e na tradição que é passada de pai para filho, tem
sua força na existência e no respeito a uma estrutura muito
maior, que é a instituição familiar, na qual os indivíduos
mais velhos são os detentores do conhecimento, dos costumes e
da história do próprio grupo. Os mais velhos são o elemento de
mantém os fundamentos da própria comunidade.
Ao longo da leitura do livro, Nganos: contos tradicionais
moçambicanos, é possível reconhecer a força destes velhos,
antepassados que espreitam a escrita realizada por estes
jovens ndau; eles estão lá, nas histórias como personagens, ou
como narradores que são incorporados pelos mais novos, nos
títulos.
Dos vinte contos apresentados pelos menos alguns trazem
literalmente a participação dos velhos das aldeias nas
histórias e é a estes que vamos passar agora.
Em Cinhamussonongora na Mbarapahuma27 nós temos como
personagens principais uma avó e seus dois netos: Manuel
(também chamado de Cinhamussonongora) e Amanuchel (conhecido
por Mbarapahuma), esses são os nomes de batismo dos garotos,
porém a avó os ensinara a atender quando chamados pelos nomes
em ndau. Acontece que estes nomes em ndau são também
expressões que significam respectivamente: tirar com um
pauzinho o resto da carne que fica entre os dentes e a cor
branca na face ou na testa, enquanto o resto do corpo do
animal predomina outra cor28.
Certo dia apareceu na frente da casa da pequena família
uma vaca que eles não sabiam de onde havia vindo, sem saber o
dono e sem inscrições no animal, resolveram matá-la e secar
sua carne no fogo a fim de terem provisões, afinal carne não é
coisa que se encontre fácil em determinadas regiões. Porém,
cinco dias após o ocorrido, o dono do animal aparecera
indagando se o haviam visto, a avó chamou seus netos pelos
nomes em ndau que, coincidentemente, correspondiam as
características da vaca: uma mancha branca na testa e a carne
que era tirada entre os dentes! O homem surpreendeu-se com tal
27 MANHANHE, Armando Manuel Machel. Cinhamussonongora na Mbarapahuma. In:Nganos: contos tradicionais moçambicanos. pág. 21 e 2228 MANHANHE, Armando Manuel Machel. Cinhamussonongora na Mbarapahuma. In:Nganos: contos tradicionais moçambicanos. pág. 21
situação e perguntou aos garotos se tinham visto a tal vaca,
eles responderam que não e o homem se foi. Ao final do relato
a avó parabeniza os jovens por sua prontidão em atendê-la
quando os chamou e reitera a necessidade de ser sempre
solícito sempre que um dos seus nomes é falado.
O segundo relato é intitulado Os três conselhos29, numa aldeia
viviam mãe e filha, a pobreza e as necessidades obrigaram a
jovem a ir para a cidade procurar emprego, tornando-se
empregada doméstica numa casa, todo final do mês ela mandava
para mãe comida, que passava os dias sozinha interrogando aos
deuses o porque de sua má sorte em ver a única filha tão
longe. A moça vivendo na cidade conhece um rapaz por quem se
apaixona e acaba por engravidar. Ele a abandona. Porém, ela
não se deixa abater continua sua vida até o dia do parto,
quando pede a sua patroa que a deixe ter o filho junto de sua
mãe, a patroa aceita.
Passados alguns dias a moça não retorna e a patroa vai até
aldeia procurá-la, chegando lá encontra a velha senhora com um
bebê muito lindo. A jovem falecera no parto. Compadecida da
situação a patroa propõe criar o menino, a avó aceita, mas
quer ensiná-lo sobre os costumes da aldeia e sobre sua mãe.
Passam-se alguns anos e a patroa volta para buscar o menino
que será seu filho adotivo; a avó dá três conselhos ao menino:
1) Ver, ouvir e calar; 2) Perto do mar não se dorme; 3) Comida
servida não se nega. O menino segue com sua mãe adotiva e
passa a viver na cidade.
29 ZIMBANDUE, Sónia Dungo de Castigo. Os três conselhos. In: Nganos: contostradicionais moçambicanos. pág. 33 a 35.
Até o dia em que os conselhos da avó começam a serem
postos em prática. O primeiro conselho o jovenzinho vê sua mãe
adotiva trair o marido. De sua boca nada sai, a mãe adotiva
aprende a confiar no garoto e a cuidá-lo ainda mais,
despertando o ciúme do pai adotivo que decide matá-lo. Na
primeira tentativa de morte resolve simular uma pescaria, mas
anoitece e os capangas decidem acabar com a vida do menino ao
amanhecer, é a vez do segundo conselho, o menino vai para
outra ponta da praia dormir e a maré sobe matando os capangas.
Na terceira tentativa, os novos capangas devem pegá-lo na
estrada em que ele voltava da escola, mas uma senhora no meio
do caminho oferece comida ao jovem e ele lembra-se do terceiro
conselho. Por coincidência quem volta pela estrada sozinho é o
filho legítimo de seus pais adotivos, que é morto em seu
lugar. O garoto vive bem sempre seguindo os sábios conselhos
de sua avó.
No terceiro e último conto sobre a participação dos velhos
na vida da comunidade temos como título: A vida dos antepassados30,
nele logo na abertura temos o seguinte parágrafo de abertura:“A vida dos antepassados era uma vida segura. Ela eraprotegida de modo a garantir a saúde e longevidade. Ascrianças aprendiam desde cedo a ganhar responsabilidade,respeito, moral e a viver em comunidade”31.
Neste relato um velho vê passar ao longe um jovem casal de
19 anos, recém-casados, e resolve chamar o marido para uma
conversa sobre o passado, embaixo de uma frondosa árvore. A
conversa na verdade é um monólogo em que o velho expõe as
diferenças entre a vida que hoje se leva na comunidade e a30 CHINHOCA, João Zacarias. A vida dos antepassados. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 45 e 4631 CHINHOCA, João Zacarias. A vida dos antepassados. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 45
vida que se vivia há séculos atrás, ou na sua época. Os ritos
de iniciação sexual dos rapazes são descritos, a necessidade
do casamento, a idade certa para que um homem e uma mulher se
unam.
Ao final do conto o jovem conclui “vi que tudo era ao
contrário daquilo que é feito hoje. A modernidade trouxe a
desgraça”32.
Tal qual nos missossos angolanos, os nganos moçambicanos
relatados aqui vão buscar nos velhos, em sua figura carregada
de dignidade, de sabedoria, de conhecimento do passado; os
elementos de suporte para a vida moderna que se inicia.
Novamente temos a impressão que a escrita não vem anular a
oralidade ou as tradições orais, é certo que na medida em que
as histórias que eram passadas de pai para filho e agora são
transpostas para o veículo ou o suporte da escrita há uma
cristalização da narrativa, dos personagens e até do enredo.
Contudo, não se pode evitar pensar que também se torna um
elemento de resistência desses jovens que através do recontar
destes nganos estão a reafirmar valores que transcenderam a
ótica colonial, a ótica portuguesa e que se mantiveram mais
firmes e fortes nas áreas rurais de seu país, áreas em que o
poder colonial sem forças e homens suficientes para se fazer
presente teve de aceitar a mediação doas homens fortes locais,
os régulos, os líderes das aldeias e até dos curandeiros e
sacerdotes ditos pagãos.
Entender que a modernidade trouxe a desgraça é assumir uma
fala que a priori não é sua como jovem de vinte e poucos anos,
32 CHINHOCA, João Zacarias. A vida dos antepassados. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 46
mas que pertence a um Outro que é revelado através de sua
escrita e de sua fala no ngano em que é publicado. É possível
perguntar de que modernidade está-se falado, de que desgraça
se está a reclamar. Ora, a guerra civil é a modernidade por
mais de 20 anos. A ocupação portuguesa é a desgraça por mais
de cem anos. Um sistema de ensino e de saúde que não atende a
toda a população e que não permite a emergência e a
continuidade dos sistemas de educação e de controle da saúde
por meio dos curandeiros e sacerdotes é uma desgraça que se
abate, pois em seu lugar o que é colocado?
Por outro lado, esses jovens acreditam que o domínio de
determinados instrumentos oficiais é a porta de entrada para
uma nova realidade em seu país, e seus pais também assim
acreditam caso contrário porque os teriam enviado para tão
longe do convívio familiar? O grande desafio moçambicano é
encontrar um caminho que vença o desequilíbrio introduzido nas
comunidades africanas pela ocupação colonial, seja portuguesa
ou qualquer outra, ao mesmo tempo em que realiza um projeto de
integração nacional, levando em conta a realidade fragmentada
política, social, étnica e economicamente.
VIII. Onde estará Moçambique?
O que foi feito neste trabalho é um esforço de compreensão
inicial de um material recentemente lançado, que se estrutura
na necessidade de sistematização e aplicação da língua
portuguesa como língua oficial de um país que há mais de 30
anos tornou-se uma nação independente da ação imperialista de
uma potência européia.
No entanto, este exercício de análise e compreensão não
foi realizado por um crítico literário e, penso eu, nem foi
esta a minha proposta, é um exercício de uma historiadora a se
debruçar sobre um conjunto de fontes escritas que têm sua
origem na tradição oral de uma etnia específica e como tal
deve ser entendido.
Quando um historiador se propõe a ler os documentos
originários nas tradições orais é necessário que pondere uma
série de aspectos da constituição e da preservação destes
documentos dentro de um contexto que extrapola a comunidade de
origem.
Num primeiro momento, deve-se levar em conta que uma
civilização oral, ou uma comunidade oral, apresenta uma
atitude para com a fala, com o discurso totalmente diferente
de uma civilização na qual a escrita é o seu elemento de
preservação e de registro das mensagens ou idéias. A Fala para
os grupos africanos que tem sua tradição na oralidade assume
um aspecto não só de preservação dos conhecimentos e da
sabedoria coletiva, mas é instância criadora do universo das
coisas. A oralidade é percebida como uma atitude diante da
realidade e não como uma ausência da habilidade escrita.
Numa visão mais antropológica, a tradição oral vai ser
compreendida como um testemunho transmitido oralmente de uma
geração para outra. Contudo, por sua complexidade, para nós
historiadores e antropólogos um documento oral assume
diferentes características, já que um indivíduo pode
interromper, transformar, alterar, excluir, incluir e mesclar,
corrigir e recomeçar seu testemunho diversas vezes. Mesmo
quando este testemunho é transposto para o veículo escrito ou
fonográfico33.
Quando me deparei pela primeira vez com os nganos pude
perceber que tratavam-se de documentos escritos que tinham a
função de um registro para aqueles jovens, são narrativas,
corretas do ponto de vista lingüístico, mas que ao mesmo tempo
servem de testemunho de um conjunto de saberes que formam uma
tradição oral. E a noção de testemunho é fundamental neste
caso. Na tradição cristã, evangélica e católica, dar o
testemunho é dar provas através da fala, da pessoa, do corpo
físico de sua crença, da intervenção divina na sua vida
material. Estes jovens deram o seu testemunho de quem são!
Não é possível na leitura destes nganos identificar a
origem da tradição oral ndau, isso porque uma tradição oral
pode ter por início um testemunho ocular, um boato ou mesmo
uma nova criação mítica ou lendária. A tradição oral de uma
civilização vai ser composta tanto de testemunhos oculares
como também de crônicas, genealogias, cronologias de reis,
depoimentos, rituais de nascimento e morte, lendas e histórias
sobre divindades, ou mesmo obras literárias como as epopéias e
os poemas (épicos ou não).
É claro que ao analisar uma tradição oral específica
estaremos lidando com uma gama infinita de possibilidades de
interpenetração entre tradições e culturas que habitam uma
33 VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: In: KI-ZERBO, J.História Geral da África: I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo. Ática/Unesco.1982. pág. 157-59
mesma região, por isso o estudo destas sempre será um estudo
transdisciplinar envolvendo a lingüística, a antropologia,
etnografia, a história e a arqueologia de uma dada região. No
caso específico dos nganos aqui apresentados a intenção foi
buscar uma compreensão que aliasse na medida do possível todas
estas informações.
É importante salientar o contexto social e cultural em que
estes nganos foram produzidos, por isso preciso se faz não
esquecer que tudo que uma sociedade considera como importante
para o seu funcionamento, para a preservação de seus grupos e
famílias vai ser transmitido por agentes especialmente
escolhidos para este fim34. Numa sociedade oral, ou que ainda
mantém este traço significativo de oralidade, isso se dará
pela transmissão da tradição; tradição esta transposta para a
escrita, portanto não são apenas histórias bonitas, comoventes
ou contos de fadas, são os elementos de manutenção de um ethos
social e cultural por parte de indivíduos que por sua inserção
numa nova ordem sócio-política se tornam os novos guardiões e
depositários de uma tradição que se transforma a passos
largos, como o próprio Moçambique se transforma de um país
agrário, eminentemente, para um país em que se vê um pólo
industrial a ser construído e equipado nas províncias
litorâneas, em que é necessário gerar empregos e renda para
uma população que sente a falta de recursos mínimos como água
encanada, eletricidade, sistema de ensino e de saúde,
saneamento básico...
34 VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: In: KI-ZERBO, J.História Geral da África: I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo. Ática/Unesco.1982. pág. 159
Onde está Moçambique? Está não só no passado desta
tradição oral registrada com cuidado e português perfeito, mas
nos sonhos destes jovens de escrever a história de seu país,
sem guerra fratricida, através de profissões como médico,
arquiteto, engenheiro, padre, missionário, economista, juiz ou
advogado para evitar que outras coisas continuem a serem
violadas35...
IX. Referências
Bibliografia :
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35 O sonho de Augusto Francisco Mapa autor de Coração de Ouro. Pág. 07
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Sites específicos:a) Jornais e Notícias:
Afrikara : http://www.afrikara.com/Afrologia: http://afrologia.blogspot.com.Canal de Moçambique: http://www.canalmoz.com/CiberDúvidas de Língua Portuguesa: http://www.ciberduvidas.pt/articlesEthnologue Languages -http://www.ethnologue.com/show_country.asp?name=MZJornal Zambézia Online:http://www.zambezia.co.mz/content/blogsectionMoçambique Online: http://www.mol.co.mz/Moçambique para todos – weblog :http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/letras_e_artes/
b) Institucionais:Associação Amigos de Moçambique – Esmabama:http://www.amicimozambico.org/esmabama.htmInstituto Nacional de Estatística de Moçambique:http://www.ine.gov.mz/