Nganos Contos Tradicionais Moçambicanos.

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Uma viagem por Moçambique através dos nganos – contos tradicionais moçambicanos 1 Valeska Garbinatto 2 Resumo: O livro através do qual me aproximei de Moçambique foi fruto de um concurso literário em 2006, seu título é bastante atraente: Nganos: contos tradicionais moçambicanos. São histórias contadas por jovens da etnia ndau, uma das muitas que compõem o panorama cultural e lingüístico de Moçambique. Através deste concurso, estes jovens escritores não só aperfeiçoaram os seus conhecimentos na língua oficial de seu país, como intentaram a recuperação de suas raízes culturais. Este artigo é um esforço de compreensão da realidade moçambicana atual no que diz respeito a educação, ao domínio da língua portuguesa, da reconstrução nacional. Palavras-Chave: Moçambicanidade; Tradição oral; Tradição Escrita; Identidade; Etnia I. Introdução: Nunca fui a Moçambique... Nunca fui a Moçambique. Na verdade nunca saí do Brasil. Fui a Moçambique através da história, que como diz François Hartog é um outro território. Mas na realidade pura e crua da vida nunca fui Moçambique. Nem sei de onde me veio esta vontade de ver este país tão distante para mim. Não tenho amigos moçambicanos. Não conheço 1 O texto original foi uma artigo apresentado na disciplina de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Eliana Inge Pritsch (UNISINOS e FAPA). E apresentado no XII Encontro Estadual de História e no IV Encontro Estadual do GT Gênero de Santa Catarina em 05 a 08 de setembro de 2010/Universidade Comunitária da Região de Chapecó – UNOCHAPECÓ. 2 Licenciada e Bacharel em História pela UFRGS. Professora das escolas: C.E.E.F.M. Elpídio Ferreira Paes e E.E.E.F. Alceu Wamosy. Especialista em História Contemporânea e Supervisão Educacional, ambas FAPA. Aluna Especialização em História Africana e Afro-Brasileira

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Uma viagem por Moçambique através dos nganos – contostradicionais moçambicanos1

Valeska Garbinatto2

Resumo:O livro através do qual me aproximei de Moçambique foi

fruto de um concurso literário em 2006, seu título é bastanteatraente: Nganos: contos tradicionais moçambicanos. São históriascontadas por jovens da etnia ndau, uma das muitas que compõemo panorama cultural e lingüístico de Moçambique. Através desteconcurso, estes jovens escritores não só aperfeiçoaram osseus conhecimentos na língua oficial de seu país, comointentaram a recuperação de suas raízes culturais.

Este artigo é um esforço de compreensão da realidademoçambicana atual no que diz respeito a educação, ao domínioda língua portuguesa, da reconstrução nacional.

Palavras-Chave: Moçambicanidade; Tradição oral; TradiçãoEscrita; Identidade; Etnia

I. Introdução: Nunca fui a Moçambique...

Nunca fui a Moçambique. Na verdade nunca saí do Brasil.

Fui a Moçambique através da história, que como diz

François Hartog é um outro território. Mas na realidade pura e

crua da vida nunca fui Moçambique.

Nem sei de onde me veio esta vontade de ver este país tão

distante para mim. Não tenho amigos moçambicanos. Não conheço

1 O texto original foi uma artigo apresentado na disciplina de LiteraturasAfricanas de Língua Portuguesa, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Eliana IngePritsch (UNISINOS e FAPA). E apresentado no XII Encontro Estadual deHistória e no IV Encontro Estadual do GT Gênero de Santa Catarina em 05 a08 de setembro de 2010/Universidade Comunitária da Região de Chapecó –UNOCHAPECÓ.2 Licenciada e Bacharel em História pela UFRGS. Professora das escolas:C.E.E.F.M. Elpídio Ferreira Paes e E.E.E.F. Alceu Wamosy. Especialista emHistória Contemporânea e Supervisão Educacional, ambas FAPA. AlunaEspecialização em História Africana e Afro-Brasileira

nada além do que o próprio nome. E, no entanto me veio um

livro sobre esta terra.

Mas Moçambique veio a mim. Timidamente. Através das mãos

de uma amiga. Através de uma menina que nem sabia se

Moçambique e eu nos entenderíamos. Mas Moçambique se fez para

mim mais presente do que poderia imaginar.

A primeira notícia que tive de Moçambique foi num livro

que recebi das mãos de minha amiga. Notícias não é bem o

termo. Recebi histórias, pequenos relatos de uma vida que se

desfaz, que se desintegra. Lembranças de adolescentes, de uma

terra que tenho dúvidas de falar se existiu... Acho que eles

também têm esta dúvida caso contrário não teriam escrito o que

li... Li e reli aqueles textos, contos ou lembranças...

Invencionices de adolescentes? Não sei dizer. Mas de alguma

forma Moçambique entrou em minha vida e nem sei se quero que

saia.

Mas vamos a buscar Moçambique...

O livro através do qual me aproximei de Moçambique foi

fruto de um concurso literário em 2006, seu título é bastante

atraente, mas ainda não sei se é o mais correto Nganos: contos

tradicionais moçambicanos.

Já explico o meu ponto de vista. O livro e seu original

concurso são dois momentos de uma ação intencional de resgate

da cultura de uma etnia específica de Moçambique, a cultura

Ndau. Portanto os contos são as histórias que a tradição

familiar de jovens diferentes receberam sobre a sua etnia

dentro de um território, que hoje conhecemos por Moçambique.

São histórias que de alguma maneira são a visão destes jovens

sobre a sua percepção do mundo e, conseqüentemente, seu

Moçambique...

E no emaranhado de histórias, de relatos de outras pessoas

que jamais vi ou pude sequer sonhar que existissem, surge

também a minha percepção do Moçambique que não conheço...

II. Jovens demais para não saber...

Há vinte anos o nosso país era outro país... E talvez a

maioria de nossos adolescentes nem saibam muito, não por falta

de informação, mais por falta de experiência mesmo...

O que significam vinte anos numa vida? Por certo que

muito. Será? Entre idas e vindas das mudanças econômicas, nas

mudanças da moda, vinte anos foram um piscar de olhos para nós

que passamos uma relativa estabilidade política e social em

nosso Brasil.

O que não é o mesmo para os jovens que fizeram parte do

livro Nganos... Em sua maioria pertencente à etnia Ndau, vindos

das mais diferentes regiões de Moçambique3: Buzi, Mucheve,

Mutabira, Machanga, Inharinge-Machanga, Inhanguno-Machanga,

Djambe, Chibabava, Manbone, Beira, Muxungüe, Mutindire,

Divinhe, Riconde, Chiluane, Cherinda. Literalmente vêm das

mais diferentes áreas do país, de pontos tão distantes que

teríamos dificuldade para nos localizarmos4. De semelhante

possuem a mesma origem étnica, possuem famílias pobres, muitos3 No índice do livro há a foto de cada um dos jovens escritores, junto háinformações sobre sua data de nascimento, o local onde nasceu, a turma aqual pertence na escola e o fundamental seu maior sonho.4 Em mapas na web certas áreas nem aparecem, pois não prioridades ou por nãoconcentrarem população suficiente ou por não fazerem parte de zonaseconomicamente ativas para o país.

possuem apenas uma muda de roupa e um par de sapatos (quando

muito), dormem em esteiras de palha por eles mesmos

confeccionadas, estão internos numa missão católica na região

de Mangunde na província de Sofala, em área litorânea do país.

Para além da etnia há os sonhos que relatam. Sonhos

simples. Sonhos de trabalho, de realizar-se numa profissão:

professores de matemática, de português, pilotos de avião,

engenheiros, arquitetos, filósofos, historiadores,

contabilistas, advogados, juristas, padres... Sonhos de

reconstrução. Sonhos de escrever a História do seu Moçambique.

Em verdade parece que os países da África estão sempre a

se reconstruir... Tal o estado de coisas deixado pelas

potências européias na região. Com Moçambique não foi

diferente. Os jovens escritores ndau, que têm em média 20

anos, cresceram sob o impacto de uma guerra que dilacerou o

país. Primeiro seus pais virão o emergir de uma luta

anticolonial sob a liderança da FRELIMO, que desde 1962 vinha

se organizando, depois com o fim da ocupação portuguesa, era a

vez de saber-se quem comandaria o jovem país independente,

porém pobre e desestruturado pela saída de milhares de colonos

portugueses e companhias estrangeiras privadas.

Durante os anos que se seguem do final da guerra de

libertação (1975) até a estruturação de uma política de estado

única e a pacificação do país em 1992, o país empobreceu mais

ainda: áreas inteiras deixaram de ser cultivadas, a fome

tornou-se endêmica, os índices de alfabetização e de

saneamento para as camadas pobres e negras da população

praticamente não haviam sido alterados. Diante disso, não é

estranho que Moçambique, assim como outros países africanos

tenham sido alvo da piedade cristã das nações mais ricas e

mesmo de associações e organizações que visavam unicamente

auxiliar os povos massacrados pela guerra e pela miséria.

Estes jovens ndau que hoje lançam um livro são a minha

porta de entrada para um país que nunca conheci... E que eles

não conheceram também... São contos milenares, ancestrais,

passados de geração para geração, em momentos de pouca paz em

que os mais velhos contavam histórias de um tempo que se

perderam desde o momento que o primeiro português aportou em

Sofala.

Esses jovens que representam o futuro do país, não é mera

coincidência dizer esta frase, são educados em língua

portuguesa, numa missão católica, onde além da língua oficial

eles também aprendem o que oficialmente se deve esperar deste

mundo novo que surgira para África no contato com a Europa.

Segundo as estatísticas oficiais são ao todo 44 etnias

habitando em Moçambique, os ndau são apenas uma das mais

numerosas com uma população que pode ser colocada na casa de

1.900.000 espalhados por várias áreas do país5. Trata-se de uma

etnia ligada ao grupo de línguas Bantu6 que vai ser localizado

desde Angola, foz e bacia do rio Congo, Nigéria, sul da

África, Zâmbia, Zimbabué e em algumas áreas do Quênia e

Etiópia7. 5 Ver site: Ethnologue Languages -http://www.ethnologue.com/show_country.asp?name=MZ6 Adoto aqui a terminologia: Bantu (plural de muntu que significa “homem” ou“pessoa”). Esta terminologia foi aplicada por Bleek em 1862 e é citada porPOSNANSKY, M. Introdução ao fim da pré-história na África subsaariana. In: MOKHTAR, G.História Geral da África: II. África Antiga. São Paulo. Ática/Unesco. 1983. pág. 5517 OLDEROGGE, R. Migrações e diferenciações étnicas e lingüísticas. In: KI-ZERBO, J.História Geral da África: I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo. Ática/Unesco.

Que histórias são essas? São metáforas de um mundo em

transformação e em guerra.

III. Minha língua, minha Pátria... Será?

Os contos reunidos em Nganos são histórias coletadas das

experiências sociais e familiares de jovens ndau, estão

intimamente vinculados a oralidade e a uma lógica temporal e

espacial que foge a compreensão ocidental e européia. Nesse

sentido estes contos são pontos de resistência de uma cultura.

A forma de registro que o conto assume é a língua

portuguesa e não é sem motivo. O concurso que deu origem ao

livro pretendia que esses jovens pudessem desenvolver a

prática da escrita objetivando a construção da coerência e

lógica textual, bem como a desenvoltura e habilidade com

língua portuguesa, língua oficial de Moçambique, mas que se

encontra restrita a uma parcela de 40% da população do país,

utilizada em estabelecimentos oficiais como escolas,

repartições públicas, hospitais e em áreas urbanas

significativamente.

Moçambique se dá a conhecer a mim através da língua

portuguesa. A língua do dominador... Num país multicultural e

multilingüe a existência de uma língua oficial pode ser uma

dificuldade, afinal será esta um veículo muito forte com o

período colonial. Mas essa será uma percepção precipitada...

1982. pág. 304-5. POSNANSKY, M. Introdução ao fim da pré-história na África subsaariana.In: MOKHTAR, G. História Geral da África: II. África Antiga. São Paulo. Ática/Unesco.1983. pág. 551-2

Em conversas informais com os organizadores da coletânea

deixam clara a preocupação em buscar através da escrita a

identidade destes moçambicanos ndau: sua ancestralidade, sua

condição como homens e mulheres responsáveis por suas

comunidades, que foram buscar longe de casa os instrumentos

oficiais8 de reconstrução deste país africano, seus sonhos e

uma lição a ser apreendida de cada história.

Essa identidade “ndau moçambicana” ou “moçambicana ndau” é

uma questão que se encontra em aberto, de certa maneira, para

todas as etnias que povoam este país. E num sentido amplo não

se pode falar desta construção identitária sem penetrar nas

questões da apropriação e transformação da língua nacional e

da fixação de momentos específicos da história nacional.

Língua e História estão imbricadas num processo de

construção histórica e social de um determinado povo, no caso

de Moçambique, vários povos que sob o regime de ocupação e

colonização português impôs não só fronteiras territoriais

arbitrárias para estes povos (ou nações), como a

desestruturação de seus modos de vida (o que vale dizer

utilização de terras, cultivos de determinados produtos,

regras sociais).

Falar de domínio dos instrumentos oficiais e encarar o uso

da língua portuguesa como sendo um destes é entender que,

8 Por instrumentos oficiais: o domínio da língua portuguesa, já que a missãocatólica administrada pela associação civil Esmabama é um estabelecimentode ensino no qual estes jovens vão buscar um conhecimento que somente apoucos tem chegado; mas é também um espaço em que se toma contato com acultura ocidental mais ampla nas diferentes disciplinas ministradas, opróprio concurso literário é uma parceria entre as disciplinas de LínguaPortuguesa e Moral e Cívica o que nos mostra a intenção de formação de umaconsciência identitária que vai além dos laços tradicionais que os costumesndau prevêem.

ainda durante a luta de libertação de Moçambique, o português

foi reapropriado pelas lideranças da FRELIMO como um elemento

de unificação de um novo projeto nacional, agora não mais

luso, mas independente, autônomo, livre...

Como diz Mia Couto: “O idioma português não é a língua dos

moçambicanos. Mas, em contrapartida, ela é a língua da

moçambicanidade”9 O que antes fora um dos marcos da dominação

tornar-se-á um pilar de afirmação.

No entanto, este pilar de afirmação deve passar por um

grande processo de reconstrução nacional, o que incluiu

forçosamente o sistema de ensino pós 1975. Segundo os estudos

apresentados por Armando Jorge Lopes o português é uma das

línguas faladas em todo o país, que é apontado como sendo um

dos 15 países africanos com elevada diversidade lingüística10.

Parece então óbvio que o sistema de ensino deva se adaptar

a esta realidade e fornecer condições para que

lingüisticamente todos os moçambicanos tenham condições de

estabelecer novos elos de comunicação sem, no entanto, deixar

perderem-se os elos que já estavam presentes.

Em 1975, cerca de 80% dos moçambicanos não falavam o

idioma português. A popularização da língua é obra da

independência. Hoje 2008, e em 2006 quando os contos foram

escritos, tem-se pelos menos 40%, talvez com variações

mínimas, que dominam o idioma luso. O que, novamente vale

citar Lopes, significa dizer:

9 COUTO, Mia. A língua portuguesa em Moçambique. http://www.ciberduvidas.pt/articles 10 Lopes faz coro com Couto quando cita o congresso da FRELIMO em 1971 eDar-es-Salam (Tanzânia) e o debate surgido entre o uso do português comolíngua nacional em relação às demais línguas bantu que aparecem no país.

“Os falantes de português como língua materna representam 3% dapopulação local e constituem uma percentagem considerável (17,7%) donúmero de falantes na capital, a Cidade de Maputo. No país, mais de 90%de falantes do português como língua materna são urbanos, enquanto quea esmagadora maioria dos falantes de línguas bantu como línguasmaternas vive no campo. Quase metade da população situa-se na faixaetária dos cinco aos 19 anos, e 5,2% são do sexo feminino. Por fim, cercade 40% da população total do país fala, compreende e escreve português.Mas é claro que, seu no seio, uso efectivo e eficiente da língua portuguesa évariável”11.

O ensejo do concurso literário foi mais que oportuno se

pensarmos essa realidade cultural e sócio-política, como bem

podemos inferir pelas palavras de um de seus organizadores:

“Mangunde é o interior de Moçambique onde a eletricidade é por geradorisso só na Missão onde tem internato, pois quase toda gente usa phante,uma espécie de candeeiro com querosene ou ainda foto de tocos dearvores. A maioria da população quase toda é analfabeta e eles vivemainda sob moldes tradicionais, a língua portuguesa não é muito usadasenão mesmo salvo no hospital ou mesmo na escola. Então, a Missão servede foco de "civilização" na qual se poder usufruir os benefícios que amodernidade oferece: eletricidade, aquisição da língua portuguesa como asegunda língua, conhecimento científico, aprender a ler e escrever, uso decomputador, internet, para além de uma socialização maior entre osalunos oriundos de diversas parte do distrito, da província e até do paisque acorrem aquele estabelecimento devido a sua fama de qualidade deensino que presta”12.

Claro que poderíamos questionar, de maneira muito ampla,

se esta apropriação da língua nacional coloca em risco as mais

de 30 línguas dos diferentes grupos étnicos. Ou mesmo como

garantir um convívio sem hegemonia? E a resposta está no

desenvolvimento que o governo de Moçambique vem realizando no

sentido de várias experiências de ensino bilíngüe em todo o

território. Contudo, o destino das línguas é governado por

outras razões talvez mais profundas. E é claro, também que a

contar pelos índices fornecidos poderíamos questionar a

11 LOPES, Armando Jorge. Reflexões sobre a situação lingüística de Moçambique (pág. 35-46). In: CHAVES, Rita e MACEDO, Tânia. Marcas da diferença: as literaturas africanas delíngua portuguesa. São Paulo: Alameda. 2006. pág. 3712 Domingos Pedro Zina Faz-Ver. Conversa via e-mail durante o mês denovembro de 2008.

eficiência destas experiências, mas será que este é realmente

o nosso papel aqui? Penso que não, por ora...

Indo à contracorrente do que foi dito por Mia Couto sobre

os escritores moçambicanos que escrevem em português: “Fazem-

no porque sentem em português, vivem em português. Porém, é já

um português outro, uma língua afeiçoada à cor e à textura da

nação moçambicana”13. Estes jovens ndau escrevem em português

não tanto porque o sintam em português, mas que escolheram o

português e, porque não dizer, fazer parte de uma realidade

nacional que consiga dar conta das inúmeras faces que têm

Moçambique... Mas esta é uma primeira leitura...

IV. O sobrenatural, o sagrado: Os mortos visitam, os espíritos instruem, os

ancestrais se manifestam... Uma forma de resistir à missão?

É neste momento que podemos perceber a proximidade entre

os nganos, os missossos14, as lendas e todas as histórias que

vão compor o pantheon sagrado africano. È claro que não podemos

pretender visualizar uma uniformidade ou mesmo homogeneidade

entre as tradições religiosas presentes na África, seria uma

afirmação muito difícil de se sustentar, é só darmos uma

olhada na cultura religiosa de matriz africana que está

representada nos países da América como um todo: voduns,

orixás, batuque, Xangô, santerias... No entanto, há elementos

comuns e que de alguma forma se conectam com estes contos.

13 COUTO, Mia. A língua portuguesa em Moçambique. http://www.ciberduvidas.pt/articles14 PADILHA, Laura Cavalcante. Entre a voz e a letra: o lugar da ancestralidade na ficçãoangolana do século XX. Niterói: EdUFF/Pallas, 2007. pág. 45 a 75

Em O segredo15 um jovem caçador sai à caça com seu cão

Chang, consegue abater uma gazela e na tentativa de abater uma

segunda se fere gravemente. Sentado no meio da mata, sem poder

deslocar-se tendo com companhia seu fiel cão, desabafa para

aquele que não pode lhe responder ou apaziguar... Será? O cão

se manifesta em uma linguagem clara para o caçador e o ajuda

em troca ele, o caçador, ficará com o dom de entender a língua

de todos os animais, contudo há uma condição: não deverá

revelar esse segredo a ninguém, sob pena de morrer. Levado

pela pressão da cunhada em entender o que se passava com o

jovem caçador este revela o segredo e morre.

É incrível a semelhança entre a história narrada por

Chicopa João e a de “Nhanga Dia Ngenga e os seus cães”16, um

conto angolano. Não se pode esquecer que esta familiaridade

não é sem motivo, tanto Angola quanto Moçambique são países

cujas etnias que povoam têm como raiz lingüística comum as

línguas bantu, além disso desde antes da chegada dos

portugueses nestas terras africanas, os grupos humanos se

deslocam em rotas de comércio de longa distância, sendo mesmo

referido na literatura especializada a existência de portos

importantes tanto em Sofala, quanto em vários pontos dos rios

Zambeze e Limpopo17.

15 JOÃO, António Chicopa. O segredo. In: Nganos: contos tradicionais moçambicanos.pág. 15 e 1616 PADILHA, Laura Cavalcante. Entre a voz e a letra: o lugar da ancestralidade na ficçãoangolana do século XX. Niterói: EdUFF/Pallas, 2007. pág. 48 e 49. A autoraanalisa os Contos populares de Angola, 1964.17 FAGE, D. O Nordeste e a expansão Bantu na África. In:http://afrologia.blogspot.com.

No conto Os dois amigos18, o leitor vai se deparar com

Guidione, o corcunda e Makaro, o coxo. Ambos são companheiros

de longa data e de infortúnios, passam os dias buscando uma

solução para seus defeitos físicos, apelando para chás, rezas,

simpatias e feitiços. Numa noite, após beberem muito, voltam

caminhando até suas casas, no caminho Guidione cai em frente à

entrada do cemitério e lá fica desacordado enquanto que Makaro

segue trôpego. Um fantasma muito simpático tenta em vão puxar

assunto com o rapaz, vendo-o tão cansado suspeita que a

bagagem (corcunda) que este carrega é que deva ser o motivo

daquele sono todo. Simpaticamente a retira das costas de

Guidione que ao acordar percebe a transformação.

Não é preciso ir adiante para deduzir que Makaro resolve

também adormecer no cemitério para ver se consegue se livrar

de sua deficiência... Mas pobre Makaro, ele encontra o

simpático fantasma, que o confunde com Guidione e devolve sua

bagagem, achando que o jovem havia voltado para buscá-la! Ao

final do conto a conclusão de Guidione ao escutar o relato

entristecido do amigo: “Você precisava mais do que almejava,

esse é seu fruto”19.

Irônico? Cruel? Ou simplesmente uma interessante

interpretação dos desígnios divinos?

Em História de Inhangoma-Imwe20 o relato gira entorno desta

região de ilhas no litoral moçambicano. Na região ao amanhecer

e ao pôr-do-sol ouvia-se um misterioso som de batuque e via-se18 FRANCISCO, Gimo Cuarussua. Os dois amigos. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 25 e 2619 FRANCISCO, Gimo Cuarussua. Os dois amigos. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 26 20 DOCODO, Domingos Francisco de Assis. História de Inhangoma-Imwe. In: Nganos:contos tradicionais moçambicanos. pág. 31 e 32

uma grande quantidade de equipamentos tradicionais utilizados

em cerimônias de curandeirismo e de iniciação de novos

curandeiros. Os nativos acreditavam que tais cerimônias e os

sinais que viam eram de responsabilidade do deus dos oceanos,

responsável pelo batismo de novos curandeiros. Quando os

portugueses chegaram à região perceberam a sua riqueza, lá se

instalando. Mas aos fazerem isso desrespeitaram as tradições

locais. Em conseqüência disso a ira dos espíritos tradicionais

foi despertada e numa noite tudo foi destruído pelas águas.

A região é alvo da curiosidade e do temor das populações

próximas até os dias atuais, segundo o autor. Há redemoinhos

que impedem a pesca na região tirando muitas vidas incautas e

de quem não respeitam as tradições, obviamente, aquele que

deseja ser um curandeiro não deve ir ao mar na região antes de

prestar o mjunju21 devidamente, caso contrário perderá a sua

consciência normal.

A vida humana ou não só se estabelece a partir do

consentimento das divindades, mas influenciada e mantida sob

seus auspícios. O sobrenatural é uma dimensão tão concreta

quanto a dimensão da vida material cotidiana. Não há uma

dicotomia, tal como os ocidentais europeus constroem, na qual

religião e ciência separam-se para nunca mais se reunir22.

Já em Karingana wa karingana23 temos um conto sobre os

ordálios, os julgamentos rituais, em que a verdade vem à tona

num momento de crise e de prova de coragem. Um caçador de nome

21 Ritual de batismo dos curandeiros.22 SILVA, Fernando Correia da. Contos Africanos. São Paulo: Editora CultrixLtda, 198923 ZEFANIAS, Gabriel Chidequere. Karingana wa karingana. In: Nganos: contostradicionais moçambicanos. pág. 55 e 56

Gabriel tem duas esposas a mais velha Helena e a mais nova

Maria, com todas teve filhos. Depois de um dia de caça ele

traz para casa uma perdiz e uma galinha do mato. Em casa

deixou que as esposas escolhessem os animais, Maria escolheu a

galinha do mato por ser maior e Helena teve de contentar-se

com a perdiz. Porém, o prato de caril preparado por Helena foi

muito mais apreciado pelo esposo, que percebeu seu cuidado no

preparo para que o alimento ficasse saboroso e rendesse para

todos. Maria com inveja, num momento de ausência de Helena,

entra na sua casa e come todo o caril. Mas interrogada ela

nega. Gabriel leva a questão ao sacerdote da aldeia que propõe

um ordálio: caminharem por um fio, sendo que abaixo dele,

havia um poço fundo. Quem roubou cairia enquanto os inocentes

passariam incólumes. Cada membro da família que passava, o

fazia entoando uma cantilena no idioma ndau.

Neste conto também aparece a mescla entre a tradição ndau

e a cultura européia que se instala pela presença de nomes

europeizados nos protagonistas. Contudo, é a cultura e os

costumes da comunidade que prevalecem e que são referendados:

a poligamia, a consulta ao sacerdote, a prática dos ordálios24.

Os cultos africanos, como um todo, apresentam muitas

semelhanças nas suas estruturas, embora cada etnia tenha seu

conjunto de divindades, rituais religiosos e de iniciação

sexual, animais e plantas sagrados. No geral, os contos

tradicionais falam de migrações e do contato com etnias e

24 Deve ser ponderado que os ordálios já eram conhecidos das comunidadesgregas e romanas e praticados durante toda a Idade Média sob a égide daigreja católica.

culturas diferentes, da interação e do hibridismo resultante

disso.

Nas religiões africanas tradicionais a família é um dos

pilares de sustentação das comunidades, morrer sem deixar

filhos é visto como uma desgraça. Mas a noção de família, como

já foi dito, é ampla: inclui os vivos, os mortos, os agregados

(escravos, servos, empregados) e os ainda por nascer, ou seja,

os descendentes. Quando uma família se extingue o elo com os

ancestrais e a Terra (o planeta, mas a própria fertilidade) é

cortado, pois não existirá mais quem os cultue. Sendo assim,

se entende a importância da constituição de uma família e a

manutenção de várias famílias é a possibilidade de muitos

possíveis descendentes. Por isso a punição para uma mentira ou

para a inveja é a morte exemplar, já que é a instauração de

uma crise, de um desequilíbrio entre os entes de um mesmo

círculo25.

Por outro lado, a intervenção dos espíritos dos mortos na

vida material é algo entendido como comum e em certa medida

natural, para a maioria dos africanos, os mortos vivem na

outra vida do mesmo modo que aqui na Terra. Oferendas

coletivas ou isoladas são necessárias, sendo encaradas como

forma de homenagem26. Interessante é perceber que no contato

com as religiões islâmica e cristã as religiões africanas vão

buscar os exemplos de contato entre vivos e mortos: Lázaro

ressuscitado, a menina que Jesus cura do sono da morte, a

visitação dos anjos anunciadores...

25 GARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões.São Paulo: Companhia das Letras, 2005. pág. 97-10426 GARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões.São Paulo: Companhia das Letras, 2005. pág. 97-104

Quando nos contos aqui relatados percebemos a presença

destes elementos, o que é possível de ser pensado? Mais do que

resistência à ação evangélica católica, há a permanência ou

continuidade de práticas religiosas e culturais milenares que

a despeito da ação cristã, se mantém e se mesclam a ela,

buscando os elementos que as reforçam...

VII. Através da tradição oral a reconstrução... Ou a moral dos antepassados...

A tradição africana, como um todo, é pródiga em relatos

sobre a intervenção dos seres divinos, ou mesmo do

sobrenatural, para além de um registro escrito o que temos é

um registro memorial baseado na ação e na construção de uma

oralidade milenar, em que o jogo de palavras, a associação de

características entre os personagens das histórias, a

repetição de eventos e de narrativas vêm a contribuir para que

essa tradição seja mantida através dos séculos, apesar das

pessoas...

Este registro memorialístico, porque com base nas

lembranças e na tradição que é passada de pai para filho, tem

sua força na existência e no respeito a uma estrutura muito

maior, que é a instituição familiar, na qual os indivíduos

mais velhos são os detentores do conhecimento, dos costumes e

da história do próprio grupo. Os mais velhos são o elemento de

mantém os fundamentos da própria comunidade.

Ao longo da leitura do livro, Nganos: contos tradicionais

moçambicanos, é possível reconhecer a força destes velhos,

antepassados que espreitam a escrita realizada por estes

jovens ndau; eles estão lá, nas histórias como personagens, ou

como narradores que são incorporados pelos mais novos, nos

títulos.

Dos vinte contos apresentados pelos menos alguns trazem

literalmente a participação dos velhos das aldeias nas

histórias e é a estes que vamos passar agora.

Em Cinhamussonongora na Mbarapahuma27 nós temos como

personagens principais uma avó e seus dois netos: Manuel

(também chamado de Cinhamussonongora) e Amanuchel (conhecido

por Mbarapahuma), esses são os nomes de batismo dos garotos,

porém a avó os ensinara a atender quando chamados pelos nomes

em ndau. Acontece que estes nomes em ndau são também

expressões que significam respectivamente: tirar com um

pauzinho o resto da carne que fica entre os dentes e a cor

branca na face ou na testa, enquanto o resto do corpo do

animal predomina outra cor28.

Certo dia apareceu na frente da casa da pequena família

uma vaca que eles não sabiam de onde havia vindo, sem saber o

dono e sem inscrições no animal, resolveram matá-la e secar

sua carne no fogo a fim de terem provisões, afinal carne não é

coisa que se encontre fácil em determinadas regiões. Porém,

cinco dias após o ocorrido, o dono do animal aparecera

indagando se o haviam visto, a avó chamou seus netos pelos

nomes em ndau que, coincidentemente, correspondiam as

características da vaca: uma mancha branca na testa e a carne

que era tirada entre os dentes! O homem surpreendeu-se com tal

27 MANHANHE, Armando Manuel Machel. Cinhamussonongora na Mbarapahuma. In:Nganos: contos tradicionais moçambicanos. pág. 21 e 2228 MANHANHE, Armando Manuel Machel. Cinhamussonongora na Mbarapahuma. In:Nganos: contos tradicionais moçambicanos. pág. 21

situação e perguntou aos garotos se tinham visto a tal vaca,

eles responderam que não e o homem se foi. Ao final do relato

a avó parabeniza os jovens por sua prontidão em atendê-la

quando os chamou e reitera a necessidade de ser sempre

solícito sempre que um dos seus nomes é falado.

O segundo relato é intitulado Os três conselhos29, numa aldeia

viviam mãe e filha, a pobreza e as necessidades obrigaram a

jovem a ir para a cidade procurar emprego, tornando-se

empregada doméstica numa casa, todo final do mês ela mandava

para mãe comida, que passava os dias sozinha interrogando aos

deuses o porque de sua má sorte em ver a única filha tão

longe. A moça vivendo na cidade conhece um rapaz por quem se

apaixona e acaba por engravidar. Ele a abandona. Porém, ela

não se deixa abater continua sua vida até o dia do parto,

quando pede a sua patroa que a deixe ter o filho junto de sua

mãe, a patroa aceita.

Passados alguns dias a moça não retorna e a patroa vai até

aldeia procurá-la, chegando lá encontra a velha senhora com um

bebê muito lindo. A jovem falecera no parto. Compadecida da

situação a patroa propõe criar o menino, a avó aceita, mas

quer ensiná-lo sobre os costumes da aldeia e sobre sua mãe.

Passam-se alguns anos e a patroa volta para buscar o menino

que será seu filho adotivo; a avó dá três conselhos ao menino:

1) Ver, ouvir e calar; 2) Perto do mar não se dorme; 3) Comida

servida não se nega. O menino segue com sua mãe adotiva e

passa a viver na cidade.

29 ZIMBANDUE, Sónia Dungo de Castigo. Os três conselhos. In: Nganos: contostradicionais moçambicanos. pág. 33 a 35.

Até o dia em que os conselhos da avó começam a serem

postos em prática. O primeiro conselho o jovenzinho vê sua mãe

adotiva trair o marido. De sua boca nada sai, a mãe adotiva

aprende a confiar no garoto e a cuidá-lo ainda mais,

despertando o ciúme do pai adotivo que decide matá-lo. Na

primeira tentativa de morte resolve simular uma pescaria, mas

anoitece e os capangas decidem acabar com a vida do menino ao

amanhecer, é a vez do segundo conselho, o menino vai para

outra ponta da praia dormir e a maré sobe matando os capangas.

Na terceira tentativa, os novos capangas devem pegá-lo na

estrada em que ele voltava da escola, mas uma senhora no meio

do caminho oferece comida ao jovem e ele lembra-se do terceiro

conselho. Por coincidência quem volta pela estrada sozinho é o

filho legítimo de seus pais adotivos, que é morto em seu

lugar. O garoto vive bem sempre seguindo os sábios conselhos

de sua avó.

No terceiro e último conto sobre a participação dos velhos

na vida da comunidade temos como título: A vida dos antepassados30,

nele logo na abertura temos o seguinte parágrafo de abertura:“A vida dos antepassados era uma vida segura. Ela eraprotegida de modo a garantir a saúde e longevidade. Ascrianças aprendiam desde cedo a ganhar responsabilidade,respeito, moral e a viver em comunidade”31.

Neste relato um velho vê passar ao longe um jovem casal de

19 anos, recém-casados, e resolve chamar o marido para uma

conversa sobre o passado, embaixo de uma frondosa árvore. A

conversa na verdade é um monólogo em que o velho expõe as

diferenças entre a vida que hoje se leva na comunidade e a30 CHINHOCA, João Zacarias. A vida dos antepassados. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 45 e 4631 CHINHOCA, João Zacarias. A vida dos antepassados. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 45

vida que se vivia há séculos atrás, ou na sua época. Os ritos

de iniciação sexual dos rapazes são descritos, a necessidade

do casamento, a idade certa para que um homem e uma mulher se

unam.

Ao final do conto o jovem conclui “vi que tudo era ao

contrário daquilo que é feito hoje. A modernidade trouxe a

desgraça”32.

Tal qual nos missossos angolanos, os nganos moçambicanos

relatados aqui vão buscar nos velhos, em sua figura carregada

de dignidade, de sabedoria, de conhecimento do passado; os

elementos de suporte para a vida moderna que se inicia.

Novamente temos a impressão que a escrita não vem anular a

oralidade ou as tradições orais, é certo que na medida em que

as histórias que eram passadas de pai para filho e agora são

transpostas para o veículo ou o suporte da escrita há uma

cristalização da narrativa, dos personagens e até do enredo.

Contudo, não se pode evitar pensar que também se torna um

elemento de resistência desses jovens que através do recontar

destes nganos estão a reafirmar valores que transcenderam a

ótica colonial, a ótica portuguesa e que se mantiveram mais

firmes e fortes nas áreas rurais de seu país, áreas em que o

poder colonial sem forças e homens suficientes para se fazer

presente teve de aceitar a mediação doas homens fortes locais,

os régulos, os líderes das aldeias e até dos curandeiros e

sacerdotes ditos pagãos.

Entender que a modernidade trouxe a desgraça é assumir uma

fala que a priori não é sua como jovem de vinte e poucos anos,

32 CHINHOCA, João Zacarias. A vida dos antepassados. In: Nganos: contos tradicionaismoçambicanos. pág. 46

mas que pertence a um Outro que é revelado através de sua

escrita e de sua fala no ngano em que é publicado. É possível

perguntar de que modernidade está-se falado, de que desgraça

se está a reclamar. Ora, a guerra civil é a modernidade por

mais de 20 anos. A ocupação portuguesa é a desgraça por mais

de cem anos. Um sistema de ensino e de saúde que não atende a

toda a população e que não permite a emergência e a

continuidade dos sistemas de educação e de controle da saúde

por meio dos curandeiros e sacerdotes é uma desgraça que se

abate, pois em seu lugar o que é colocado?

Por outro lado, esses jovens acreditam que o domínio de

determinados instrumentos oficiais é a porta de entrada para

uma nova realidade em seu país, e seus pais também assim

acreditam caso contrário porque os teriam enviado para tão

longe do convívio familiar? O grande desafio moçambicano é

encontrar um caminho que vença o desequilíbrio introduzido nas

comunidades africanas pela ocupação colonial, seja portuguesa

ou qualquer outra, ao mesmo tempo em que realiza um projeto de

integração nacional, levando em conta a realidade fragmentada

política, social, étnica e economicamente.

VIII. Onde estará Moçambique?

O que foi feito neste trabalho é um esforço de compreensão

inicial de um material recentemente lançado, que se estrutura

na necessidade de sistematização e aplicação da língua

portuguesa como língua oficial de um país que há mais de 30

anos tornou-se uma nação independente da ação imperialista de

uma potência européia.

No entanto, este exercício de análise e compreensão não

foi realizado por um crítico literário e, penso eu, nem foi

esta a minha proposta, é um exercício de uma historiadora a se

debruçar sobre um conjunto de fontes escritas que têm sua

origem na tradição oral de uma etnia específica e como tal

deve ser entendido.

Quando um historiador se propõe a ler os documentos

originários nas tradições orais é necessário que pondere uma

série de aspectos da constituição e da preservação destes

documentos dentro de um contexto que extrapola a comunidade de

origem.

Num primeiro momento, deve-se levar em conta que uma

civilização oral, ou uma comunidade oral, apresenta uma

atitude para com a fala, com o discurso totalmente diferente

de uma civilização na qual a escrita é o seu elemento de

preservação e de registro das mensagens ou idéias. A Fala para

os grupos africanos que tem sua tradição na oralidade assume

um aspecto não só de preservação dos conhecimentos e da

sabedoria coletiva, mas é instância criadora do universo das

coisas. A oralidade é percebida como uma atitude diante da

realidade e não como uma ausência da habilidade escrita.

Numa visão mais antropológica, a tradição oral vai ser

compreendida como um testemunho transmitido oralmente de uma

geração para outra. Contudo, por sua complexidade, para nós

historiadores e antropólogos um documento oral assume

diferentes características, já que um indivíduo pode

interromper, transformar, alterar, excluir, incluir e mesclar,

corrigir e recomeçar seu testemunho diversas vezes. Mesmo

quando este testemunho é transposto para o veículo escrito ou

fonográfico33.

Quando me deparei pela primeira vez com os nganos pude

perceber que tratavam-se de documentos escritos que tinham a

função de um registro para aqueles jovens, são narrativas,

corretas do ponto de vista lingüístico, mas que ao mesmo tempo

servem de testemunho de um conjunto de saberes que formam uma

tradição oral. E a noção de testemunho é fundamental neste

caso. Na tradição cristã, evangélica e católica, dar o

testemunho é dar provas através da fala, da pessoa, do corpo

físico de sua crença, da intervenção divina na sua vida

material. Estes jovens deram o seu testemunho de quem são!

Não é possível na leitura destes nganos identificar a

origem da tradição oral ndau, isso porque uma tradição oral

pode ter por início um testemunho ocular, um boato ou mesmo

uma nova criação mítica ou lendária. A tradição oral de uma

civilização vai ser composta tanto de testemunhos oculares

como também de crônicas, genealogias, cronologias de reis,

depoimentos, rituais de nascimento e morte, lendas e histórias

sobre divindades, ou mesmo obras literárias como as epopéias e

os poemas (épicos ou não).

É claro que ao analisar uma tradição oral específica

estaremos lidando com uma gama infinita de possibilidades de

interpenetração entre tradições e culturas que habitam uma

33 VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: In: KI-ZERBO, J.História Geral da África: I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo. Ática/Unesco.1982. pág. 157-59

mesma região, por isso o estudo destas sempre será um estudo

transdisciplinar envolvendo a lingüística, a antropologia,

etnografia, a história e a arqueologia de uma dada região. No

caso específico dos nganos aqui apresentados a intenção foi

buscar uma compreensão que aliasse na medida do possível todas

estas informações.

É importante salientar o contexto social e cultural em que

estes nganos foram produzidos, por isso preciso se faz não

esquecer que tudo que uma sociedade considera como importante

para o seu funcionamento, para a preservação de seus grupos e

famílias vai ser transmitido por agentes especialmente

escolhidos para este fim34. Numa sociedade oral, ou que ainda

mantém este traço significativo de oralidade, isso se dará

pela transmissão da tradição; tradição esta transposta para a

escrita, portanto não são apenas histórias bonitas, comoventes

ou contos de fadas, são os elementos de manutenção de um ethos

social e cultural por parte de indivíduos que por sua inserção

numa nova ordem sócio-política se tornam os novos guardiões e

depositários de uma tradição que se transforma a passos

largos, como o próprio Moçambique se transforma de um país

agrário, eminentemente, para um país em que se vê um pólo

industrial a ser construído e equipado nas províncias

litorâneas, em que é necessário gerar empregos e renda para

uma população que sente a falta de recursos mínimos como água

encanada, eletricidade, sistema de ensino e de saúde,

saneamento básico...

34 VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: In: KI-ZERBO, J.História Geral da África: I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo. Ática/Unesco.1982. pág. 159

Onde está Moçambique? Está não só no passado desta

tradição oral registrada com cuidado e português perfeito, mas

nos sonhos destes jovens de escrever a história de seu país,

sem guerra fratricida, através de profissões como médico,

arquiteto, engenheiro, padre, missionário, economista, juiz ou

advogado para evitar que outras coisas continuem a serem

violadas35...

IX. Referências

Bibliografia :

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Sites específicos:a) Jornais e Notícias:

Afrikara : http://www.afrikara.com/Afrologia: http://afrologia.blogspot.com.Canal de Moçambique: http://www.canalmoz.com/CiberDúvidas de Língua Portuguesa: http://www.ciberduvidas.pt/articlesEthnologue Languages -http://www.ethnologue.com/show_country.asp?name=MZJornal Zambézia Online:http://www.zambezia.co.mz/content/blogsectionMoçambique Online: http://www.mol.co.mz/Moçambique para todos – weblog :http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/letras_e_artes/

b) Institucionais:Associação Amigos de Moçambique – Esmabama:http://www.amicimozambico.org/esmabama.htmInstituto Nacional de Estatística de Moçambique:http://www.ine.gov.mz/

Ministério da Educação e Cultura de Moçambique:http://www.mec.gov.mz/