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Cadernos de Estudos Sefarditas, vol. 14, 2014, pp. 1-44. Mulher, judia, feiticeira: cristãs-novas e práticas mágico-religiosas na documentação do Santo Ofício português Angelo Adriano Faria de Assis Universidade Federal de Viçosa; Cátedra de Estudos sefarditas “alberto Benveniste” da Universidade de Lisboa Marcus Vinícius Reis Universidade Federal de Minas Gerais Vocês, não eu, têm necessidade dos dados de fato, dos documen- tos, para afirmar ou negar. Eu não saberia o que fazer com isso porque, para mim, a realidade não consiste nisso. LUiGi PiRadELLo, Assim é (se lhe parece) Criado em 1536, durante o reinado de dom João iii, o tribunal do santo ofício da inquisição português funcionou durante quase três séculos, sendo aniquilado apenas em 1821, quando o vento li- beral que varria a Europa chegou, embora com certa tardança, ainda com evidenciada força a Portugal. ao longo dos duzentos e oitenta e cinco anos em que funcionou em terras lusas, foi a inqui- sição um importante instrumento de disciplinamento de costumes e perseguição a tudo e a todos que fugissem ao que era entendido como boa norma católica. Enfrentou detratores, sofreu críticas 1 e en carou discordâncias com a Coroa e mesmo com setores da pró- pria igreja, aí incluído o próprio Papado, mas foi, sem dúvida, o 1 Mattos, Yllan de, A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605- -1681), Rio de Janeiro, Mauad / F aPERJ, 2014. Angelo Assis_Marcus Vinicius Reis:Pagina 1-28.qxd 12-05-2015 01:43 Page 1

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Cadernos de Estudos Sefarditas, vol. 14, 2014, pp. 1-44.

Mulher, judia, feiticeira:

cristãs-novas e práticas mágico-religiosas

na documentação do Santo Ofício português

Angelo Adriano Faria de Assis

Universidade Federal de Viçosa; Cátedra de Estudos sefarditas “alberto Benveniste” da Universidade de Lisboa

Marcus Vinícius Reis

Universidade Federal de Minas Gerais

Vocês, não eu, têm necessidade dos dados de fato, dos documen-

tos, para afirmar ou negar. Eu não saberia o que fazer com isso

porque, para mim, a realidade não consiste nisso.

LUiGi PiRadELLo, Assim é (se lhe parece)

Criado em 1536, durante o reinado de dom João iii, o tribunaldo santo ofício da inquisição português funcionou durante quasetrês séculos, sendo aniquilado apenas em 1821, quando o vento li -beral que varria a Europa chegou, embora com certa tardança,ainda com evidenciada força a Portugal. ao longo dos duzentos eoitenta e cinco anos em que funcionou em terras lusas, foi a inqui-sição um importante instrumento de disciplinamento de costumes eperseguição a tudo e a todos que fugissem ao que era entendidocomo boa norma católica. Enfrentou detratores, sofreu críticas 1 een carou discordâncias com a Coroa e mesmo com setores da pró-pria igreja, aí incluído o próprio Papado, mas foi, sem dúvida, o

1 Mattos, Yllan de, A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-

-1681), Rio de Janeiro, Mauad / FaPERJ, 2014.

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apoio que recebeu de considerável parcela da sociedade que ajuda aexplicar sua existência e o poder que exerceu na longa duração.

dentre os principais motivos que justificariam a implementaçãodo tribunal estaria o problema cristão-novo, ou seja, dos antigosjudeus batizados à força ao cristianismo, bem como seus descen-dentes, geração após geração, suspeitos de permanecerem na crençajudaica e de repassá-la aos filhos, ferindo a pureza e os interesses ca -tólicos, ameaçando o monopólio da fé implementado em fins doQua trocentos, em tempos do Rei Venturoso, dom Manuel (1495--1521) 2. de fato, a comunidade neoconversa representava númerossignificativos, estimando-se em cerca de cem a cento e cinquentamil almas do total de um milhão de habitantes da Lusitânia noinício do Quinhentos, totalizando de dez a quinze por cento da po -pu lação. Por si só, estes números ajudam a compreender a contri-buição judaica para a cultura portuguesa, tanto na metrópolequanto em seus domínios – e o Brasil, que recebeu extensa leva decristãos-novos, é um destes exemplos –, seja na língua, na alimenta-ção, na escrita, nas artes e ciências, nos costumes, em geral.

Embora fossem os mais denunciados, não foram os cristãos--novos de origem judaica, como era óbvio, os únicos a sofreremcom a perseguição do santo ofício: vários tipos de heresias e culpaspo deriam ser motivo para cair nas garras inquisitoriais: práticassexuais condenadas pela igreja; crenças em outras religiões; des-respeitos, ofensas ou desconhecimento das normas, liturgias e símbolos cristãos; acusações de feitiçarias e pactos demoníacos;solicitações... Enfim, todo um extenso rol de atitudes, ideias e com-portamentos tidos como desviantes ou equivocados foram vas-culhados, analisados, questionados, perseguidos e punidos, com

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2 sobre o impacto dos neoconversos para a criação da inquisição protuguesa ver,dentre outros: saRaiVa, antónio José, Inquisição e Cristãos Novos, 6.ª ed., Lisboa, Estampa,1994; NoViNskY, anita W., Cristãos Novos na Bahia: 1624-1654, são Paulo, Perspectiva/Ed.da Universidade de são Paulo, 1972; assis, angelo adriano Faria de, Macabeias da Colônia

Criptojudaísmo feminino na Bahia, são Paulo, alameda Editorial, 2012.

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maior ou menor gravidade e constância, pelos representantes daMisericórdia e Justiça.

os códices processuais depositados no arquivo Nacional datorre do tombo, que reúne vastíssima coleção dos documentosproduzidos pelo santo ofício em sua incessante luta pela pureza dafé, dão mostra da riqueza e variedade das práticas religiosas e com-portamentais vivenciadas em Portugal e seus domínios de aquém ealém-mar: acusações, confissões, processos, listas de autos da fé,correspondência interna ou externa do tribunal, regimentos – tudoa dar conta da minúcia persecutória, da insistência em procurar cul-pados, do esforço pelo triunfo da “verdade” católica...

Em geral, os cristãos-novos denunciados perante o tribunaleram vítimas da desconfiança de que mantinham o judaísmo resis-tente, a correr pelas veias e a repetir-se no dia–a–dia, praticado naintimidade, de forma discreta e dissimulada, o que lhes deu a pechade judeus ocultos ou criptojudeus. se, de fato, é possível perceber,nas entrelinhas dos processos do santo ofício indícios desta conti-nuidade judaica, é também perceptível o rigor exagerado de denun-ciantes e inquisidores no julgamento de quaisquer indícios não cris-tãos como evidência inquestionável de prática judaica. Necessidadeirrefutável, assim, do cuidado do historiador em filtrar as informa-ções não raro tendenciosas existentes nos documentos inquisitoriais.

Mas, se alguns neoconversos foram condenados por um ju daís -mo que, nem sempre seguiam conscientemente, o fato é que, poroutro lado, não foram poucos os neoconversos que perseveraramna antiga fé. Quanto mais próximos do momento inicial de conver-são forçada, maiores as probabilidades de encontrarmos antigosjudeus batizados ao catolicismo que insistiam em celebrar a Moisése renegar a Cristo. Com o passar do tempo e o distanciamento doperíodo de judaísmo livre, mais crescia o desconhecimento do signi-ficado de muitas das práticas judaicas, tornando os cristãos-novosdesconhecedores, em boa parte, da religião que lhes fora proibida.No limite, é possível afirmar que, nenhum neoconverso, judaizante

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ou não, era igual a outro. Entre aqueles que aceitavam por completoo catolicismo imposto e abandonavam a herança mosaica e, de umoutro lado, os que insistiam em se manter judeus nos mínimos deta-lhes, negando-se a integrar o rebanho do Nazareno, há uma infini-dade de possibilidades de crença e de comportamentos, impossíveisde serem compreendidas e desveladas pelo santo ofício: cristãos--novos que aceitavam, em parte ou no todo, o catolicismo; judaizan-tes; laicos; que adotavam costumes e práticas religiosas dos locaisem que viviam... Crédulos ou incrédulos do que eram por origem edo que se tornaram por força de lei. Enfim, uma disparidade decrenças e formas de se relacionarem com a fé. Neste labirinto dene gativas (e por que não dizer, de possibilidades) com relação aoque eram, como eram vistos e o que queriam ou podiam ser, varia-ram as estratégias de adaptação à nova realidade, criando crençasparticulares que misturavam, para além de elementos que intera-giam entre o judaísmo e o catolicismo, outras crenças...

Nesse sentido, focamos nosso interesse nas práticas religiosasde neoconversos que, de algum modo, mantiveram contatos com as(ou foram acusados de) práticas mágico–religiosas – estas, tambémfortemente perseguidas pela inquisição. ancorando-se na relaçãoentre a existência do delito da feitiçaria e a presença de cristãs-novasno cerne dessas práticas, foi possível identificar, no contexto deatuação do tribunal do santo ofício lisboeta e com base nos estu-dos de Francisco Bethencourt 3, a existência de dois processos cons-truídos com base nas acusações voltadas ao delito da feitiçaria: sãoos casos de Brites Borges 4 e Clara de oliveira 5, ambos no séculoXVi. avançando para o século seguinte, apoiando-se nos trabalhos

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3 destacamos, em especial, sua principal obra referente à temática das práticas mágico-

-religiosas no Portugal Quinhentista: BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticei-

ras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004.4 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 2902. Processo

de Beatriz Borges. 1541.5 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 12607. Pro-

cesso de Clara de oliveira. 1578.

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de José Pedro Paiva 6, somente o processo de antónia Fonseca 7

emerge, datado de 1671. Por fim, em relação ao século XViii, olevantamento do historiador português indicou a existência dosprocessos de sebastiana Maria de Jesus 8, Leonor Francisca 9 e MariaLourenço 10.

Em contrapartida, os tribunais de Coimbra e Évora não revela-ram nenhum indício de que processos foram promovidos no séculoXVi a partir da relação destacada. Quanto aos séculos seguintes,Paiva, em obra já citada, identificou no âmbito da inquisição deCoimbra, os processos de isabel Rodrigues 11, teresa dias 12, Clarade almeida 13, isabel henriques 14 e ana soares 15. Em Évora, porsua vez, a inquisição se debruçou nos processos de Maria dias 16 eMargarida Barreta 17, sem, contudo, aprofundarmo-nos no levanta-

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6 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774,

Lisboa, Editorial Notícias, 1997.7 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 8861. Processo

de antonia Fonseca. 1671.8 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 11488. Pro-

cesso de sebastiana Maria de Jesus. 1710.9 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 9535. Processo

de Leonor Francisca. 1727.10 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 2238. Pro-

cesso de Maria Lourenço. 1759.11 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processos 689 e 689-1.

Processo de isabel Rodrigues. 1694 e 1701.12 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processo 3371. Pro-

cesso de teresa dias. 1737.13 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processo 4222. Pro-

cesso de Clara de almeida. 1664.14 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processo 4686. Pro-

cesso de isabel henriques. 1660.15 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processo 5934. Pro-

cesso de ana soares. 1655.16 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Évora, Processo 502. Processo

de Maria dias. 1750.17 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 1131. Pro-

cesso de Margarida Barreta. 1628

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mento por conta da limitação existente nas fichas catalográficasexistentes na homepage no arquivo Nacional da torre do tombo àépoca da pesquisa que deu origem à produção deste artigo, em quediversos processos não acompanham a informação referente aoestatuto social dos réus – é o caso, à guisa de exemplo, de uma certainês Vizoa, processada por feitiçaria, mas sem apresentar o estatutona ficha relacionada ao seu processo 18.

Ressaltamos, enfim, que os objetivos aqui mencionados aproxi-mam-se mais da seara dos estudos de caso do que de objetivos to-talizantes, visto que possuem limitações tanto pela ausência delevantamentos sistemáticos mais atualizados quanto de análises por -menorizadas voltadas exclusivamente para a presença da figura dac ristã-nova enquanto agente ativa ou mesmo indireta na interaçãocom as práticas mágico-religiosas. Limitações que nos levaram a sele-cionar algumas dessas trajetórias de modo a não perdermos a espe-cificidade dos processos, sem, contudo, impedir-nos de construiralgumas considerações, mesmo que breves, a respeito desses relatosinseridos em um contexto de dominação patriarcal, ao mesmo tem -po em que espaços de negociação e autonomia eram construídospor essas mulheres. além disso, buscaremos, também, apresentarum breve painel voltado para a relação da figura da cristã-nova paracom a religiosidade que a cercava, prevalecendo a deturpação e aressignificação de símbolos nem sempre católicos, resultando, porsua vez, nas mais diversas interações com o sobrenatural.

Visamos, assim, atrelar o interesse pelos estudos voltados à reli-giosidade em torno do que se considerava por feitiçaria aos olhos dainquisição portuguesa, juntamente com o esforço em pensar comoesse campo simbólico se articulou diretamente com os espaços emque nos situaremos. Focando no século XVi, propomos um olhartanto para Portugal quanto para a américa portuguesa, diluindo

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18 disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2371099. acesso em: 11 deabril de 2015.

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fronteiras quando do interesse em desenvolver uma análise compa-rativa das trajetórias de mulheres que se enredaram nas malhas in -quisitoriais. o delito já fora mencionado, feitiçaria, tornando-seponto de partida para problematizarmos as atitudes de cristãs--velhas e cristãs-novas frente ao sobrenatural, assim como o posi-cionamento das autoridades em relação a essa interação diante doestabelecimento de processos. Nos debruçaremos, portanto, nãosomente nas trajetórias das já mencionadas Beatriz Borges e Clarade oliveira, mas igualmente nos processos de Maria Gonçalves 19 eFelícia tourinho 20, cristãs-velhas sentenciadas durante a PrimeiraVisitação do santo ofício à américa portuguesa (1591-1595) porconta do delito em questão, a fim de dar continuidade ao estudocomparativo.

* * *

a diversidade de debates voltados para o campo da interaçãoentre indivíduos e o que é dado por sobrenatural, espaço povoadopor entidades, espíritos ou divindades, conforme a crença religiosa,nos leva obrigatoriamente a recortar o próprio eixo de discussãoteórica em torno dessa problemática, bem como em delimitar osconceitos que aqui serão trabalhados objetivando uma melhor com-preensão do debate.

Não se trata, é bom frisar, de reduzir nosso trabalho a uma pos-sível história dos Conceitos, propondo uma limitação do campo deanálise para com o social a partir da construção de esquemas rígi-dos de interpretação. trata-se, na verdade, de pensar os conceitoscomo ferramentas de análise crítica das fontes, capazes de promo-ver uma “perspectiva sincrônica de análise”, capaz de conjugar

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19 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Pro-cesso de Maria Gonçalves. 1591-1593.

20 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 01268. Pro-cesso de Felícia tourinho. 1593-1595.

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tempo e espaço 21. Procuramos, assim, vislumbrar as diversas mani-festações voltadas para as relações diretas ou indiretas com o sobre-natural para além do isolamento das mesmas, o que nos possibili-tará percebê-las em um movimento maior de interação com opróprio trânsito de práticas e crenças presentes no contexto em queo debate se situa e que, por vezes, são comuns a diversos espaços etemporalidades. sendo assim, três conceitos serão aqui utilizados:práticas mágico-religiosas – com a variante ritual mágico-religioso –; bru-

xaria e feitiçaria.

ancorando-se nas proposições de Marcel Mauss, o uso do con-ceito de magia religiosa deriva diretamente da noção de “rito mágico”delimitada pelo autor. Em outras palavras, essa noção é entendidapor se tratar de “atos de tradição”, ou seja, aponta para a repetiçãoem diversas culturas, mesmo se focarmos em tempos e espaçosdistin tos. destaque, também, para o fato de evidenciar, de acordocom Mauss, a crença na eficácia da magia por parte de dada socie-dade, além de revelar um contrato que se estabelece entre o indivi-duo que pratica e o interessado no rito. deste modo, a presença deum “rito mágico” evidencia “todo rito que não faz parte de um culto orga-

nizado, rito privado, secreto, misterioso, e que tende no limite ao ritoproibido” 22.

No contexto português da circulação de práticas e crenças vol-tadas a esse âmbito “mágico”, Francisco Bethencourt também sede bruçou nos estudos de Marcel Mauss, contribuindo, assim, paraaprofundarmos o debate em torno do conceito que apresentamos:

os atos de magia implicam, como vimos, um conjunto de gestos e de pala-vras não casual, regulado de uma forma sistemática e transmitido por tradi-ção, de cuja repetição estrita, ritual, depende sua eficácia. daí podemos falar

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21 kosELLECk, Reinhart, Futuro/Passado. Contribuições à semântica dos tempos históricos, Riode Janeiro, Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006, pp. 103-104.

22 MaUss, Marcel, Sociologia e Antropologia, trad. de Paulo Neves, são Paulo, Cosac &Naify, 1950, pp. 55-57 e 61.

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de ritos mágicos, que revelam uma grande capacidade de abstração, patentena atribuição de propriedades especificas aos materiais utilizados 23.

Essa diversificação gestual, abstrata, que acompanha as atitudesdos indivíduos frente ao sobrenatural nos impede, enfim, de cair-mos na armadilha de simplesmente homogeneizar todo o rol decrenças de uma dada cultura, mesmo se esta se apresentar fragmen-tada – tal iniciativa coube, conforme salientou Carlo Ginzburg, aosestratos “eruditos” diante da noção de pacto demoníaco ou, emalguns casos, do sabá 24. desse modo, a utilização da noção de práti-cas mágico-religiosas é adequada ao presente ensaio por abarcar todauma religiosidade que se encontrava impregnada de estereótipos in -quisitoriais, sem desconsiderar a possibilidade de sua diversificaçãono que diz respeito à manipulação e deturpação de uma dada reli-gião – catolicismo ou mesmo judaísmo –, revelando toda uma sofis-ticação resultante de uma gama de gestuais e simbolismos religiososque foram apropriados ao bel prazer dos indivíduos, longe da coe-rência pensada pelas autoridades.

Com relação à definição de bruxaria e feitiçaria, nossas análises sebasearão nas discussões desenvolvidas por Julio Caro Baroja, defi-nindo a primeira enquanto fenômeno de caráter essencialmentemaléfico, relacionado à intervenção diabólica, assumindo, contudo,um caráter coletivo, cerimonial, que sustentaria todo o discurso dasautoridades a respeito da realidade do sabá. Embora também assu -ma uma intervenção do diabo, a feitiçaria não é, por sua vez, condi-cionada ao caráter coletivo, nem sempre voltada para o interessemaléfico, interessada, também, no alcance de determinados objeti-vos predominantemente individuais 25.

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23 BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em

Por tugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 131.24 GiNzBURG, Carlo, História Noturna: decifrando o Sabá, 2.ª ed., são Paulo, Companhia

das Letras, 2001.25 BaRoJa, Julio Caro, As bruxas e seu mundo, tradução de Joaquim silva Pereira, Lisboa,

Editora Vega, 1978, pp. 108-109; 118.

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Vale complementar, enfim, que entre os letrados e autoridadespor tuguesas, o delito da feitiçaria, além de apresentar um históricovoltado para o foro misto – já que não somente o âmbito religiosose debruçou sobre a temática, mas, também, o civil – aos poucos seconsolidou sobre duas formas de pacto diabólico, aspecto essencialpara sua existência: segundo José Pedro Paiva, predominou a noçãode “pacto expresso”, em que se entendia a existência de um con-trato entre indivíduo e diabo a fim de determinado objetivo, desdeque algo fosse oferecido à criatura; e o “pacto tácito”, prevalecendoo interesse em alcançar algum objetivo, como, por exemplo, o des-tino de outrem ou mesmo o paradeiro de alguém, tendo a interme-diação dos diabos para a concretização do objetivo, sem a presençade um caráter contratual 26.

* * *

o século XVi traz poucas informações a respeito do objeto deanálise no qual este trabalho se situa. situar as possíveis motivaçõespara essa timidez quanto à presença de processos entre cristãs--novas é necessário ainda mais se levarmos em consideração que ovolume de mulheres processadas pelo delito da feitiçaria foi maiorentre as identificadas pelo estatuto social de “cristãs-velhas” 27. ashipóteses que serão aqui debatidas juntamente com os processosque mencionamos tentarão lançar, portanto, algumas questões ini-ciais a respeito dessa discussão.

Não podemos negligenciar, assim, a problemática em torno das

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26 PaiVa, José Pedro, Práticas e crenças mágicas: o medo e a necessidade dos mágicos na diocese de

Coimbra (1650-1740), Coimbra, Minerva-história. 1992, pp. 39-40.27 Com relação ao século XVi, por exemplo, Francisco Bethencourt identificou so -

mente duas cristãs-novas processadas pelo delito em questão contra 67 processos de cris-tãs-velhas envolvidas com acusações de feitiçaria. Cf. BEthENCoURt, Francisco, O imaginá-

rio da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhiadas Letras, 2004, pp. 364-368.

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conversões envolvendo os cristãos-novos, questionando em quemedida o catolicismo, que se tornou religião oficial entre esses indi-víduos, foi verdadeiramente aceito pelos neoconversos. ainda maisno que diz respeito ao século XVi, momento em que o processo deconversão forçada era ainda episódio recente. o que nos interessa,em especial, é perceber se, de fato, o catolicismo imposto se tornouminimamente sólido entre essa população. a historiografia sobre otema já deu mostras de que a sinceridade da conversão não atingiua todos os neoconversos, e mesmo dentre os que aceitaram a fécristã, o fizeram de formas e intensidades variadas. Posteriormente,buscaremos problematizar a que ponto os delitos da bruxaria e feiti-çaria, aos moldes do que foram delimitados pelo catolicismo, alcan-çaram essa população no espaço e tempo citados.

avançando nas hipóteses, talvez uma das explicações que tam -bém nos sejam mais coerentes esteja relacionada à trajetória que afeitiçaria, bem como a demonologia na Época Moderna, em espe-cial, no ocidente, adquiriram ao se consolidarem como fenômenosintimamente relacionados ao próprio desenvolvimento do catoli-cismo nesse contexto.

a emergência da figura do diabo no Novo testamento acom-panhou a própria atmosfera de ruptura presente em uma Europa jános finais do medievo. Crises não apenas econômicas, mas tambémpo líticas e religiosas compuseram esse quadro, discutido, por exem-plo, nas análises de Robert Muchemblend. segundo o autor, o nas-cimento dessa figura aos moldes católicos, e dos que eram conside-rados seus agentes, se atrelou diretamente ao processo de reforçoda autoridade da monarquia perante os seus súditos e, claro, daigreja frente aos seus fiéis 28.

Partindo para o campo teológico, Carlos Roberto Nogueiraapontou para a relação entre a emergência do diabo com a própria

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28 MUChEMBLENd, Robert, Uma história do Diabo, Rio de Janeiro, Bom texto, 2001, p. 116.

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sofisticação da doutrina cristã existente a partir do século i d.C., oque teria contribuído para aprimorar a noção da queda de um “anjoRebelde” bem como do homem a partir do pecado original. oautor ainda afirma que já havia no âmbito “erudito” um processode institucionalização e da construção de uma hierarquia presenteno inferno, sem desconsiderar a contribuição decisiva que a Baixaidade Média trouxe para esse processo ao uniformizar dogmatica-mente esse personagem, listando e classificando diversos “subde-mônios” que passaram a integrar a doutrina católica e a literaturademonológica 29.

Com o avançar dos séculos, este processo ganhou mais nitidez,não somente pelo aumento progressivo de relatos que registravamas possíveis ameaças demoníacas nas regiões de Mainz, salzburg eBremen, e daqueles interessados em contar com tais heterodoxias,mas, também, por conta de iniciativas das autoridades religiosasinteressadas em ampliar a atmosfera de temor entre os cristãos. apu blicação da bula papal Summis desiderantes affectibus, em 1484,durante o pontificado de inocêncio Viii, é exemplo desse interesseda igreja em exortar toda a cristandade de então a combater quais-quer indícios da presença do diabo. o que também nos chamou a atenção em torno da bula diz respeito à própria preocupação das autoridades com relação aos desvios existentes entre os fiéisinstigados ao combate. Em outras palavras, a ameaça também eraendógena.

ainda no meio letrado, não devemos desvincular a ascensãodesse personagem ao advento da imprensa e, por conseguinte, àproliferação de inúmeros tratados que se voltaram a delimitá-lo,bem como àqueles que eram nomeados seus agentes. Um dos pio-neiros, neste sentido, foi o texto publicado em 1376 sob autoria deNicolau Eymerich, o Directorium inquisitorum. trata-se de importante

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29 NoGUEiRa, Carlos Roberto, O Diabo no imaginário cristão, 2.ª ed., Bauru, EdUsC,2008, pp. 29, 51.

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exemplo da construção de um discurso voltado para a afirmação darealidade do fenômeno da bruxaria e da feitiçaria 30. Para Julio CaroBaroja, o ponto máximo da interação entre clérigos, juristas e inqui-sidores se deu com as publicações do Malleus Maleficarum, de heirn-rich kramer e James sprenger, e do Formicarius, de Johanes Nider,ambos publicados no século XV. a segunda obra, por exemplo,apresenta importantes indícios da crença na existência de seitas deindivíduos que se relacionavam coletivamente com os diabos,aspecto essencial para a crença no sabá 31.

Logicamente, mesmo com os diversos movimentos em tornoda maior consolidação da figura do diabo, não significa afirmar queesse processo se deu sob a mesma ótica, pelo contrário, o posicio-namento não somente das autoridades, mas, também, da populaçãocomum em relação a esse personagem, pode ser considerado comoaspecto importante para se pensar a heterogeneidade em torno dademonologia enquanto ferramenta para se pensar a história da per-seguição à feitiçaria 32.

Nesse caso, embora também tenha vivenciado um contexto deprodução em torno dos fenômenos aqui citados, como, por exem-plo, a publicação de domingos Barros Pereira, Arte de conhecer e con-

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30 dELUMEaU, Jean, História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, são Paulo,Companhia das Letras, 1996, p. 352.

31 BaRoJa, Julio Caro, As bruxas e seu mundo, tradução de Joaquim silva Pereira, Lisboa,Editora Vega, 1978, pp. 128;131. segundo Carlo Ginzburg, nas páginas de Nider “se dese-nha também a imagem ainda desconhecida de uma seita de bruxas e feiticeiros, bem dis-tinta das figuras isoladas dos invocadores de malefícios ou dos encantadores registradasna literatura penitencial ou homilética medieval. É uma imagem ainda em vias de elabora-ção”. Cf. GiNzBURG, Carlo, História Noturna: decifrando o Sabá, 2.ª ed., são Paulo, Compa-nhia das Letras, 2001, p. 76.

32 trata-se de um recorte, posto que a demonologia abarca discussões que não se res-tringem apenas ao delito apontado, conforme destaca stuart Clark ao listar os debates emtorno da magia, das superstições como alvos também dos estudiosos. Cf. CLaRk, stuart,Pensando com Demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna, trad. de CelsoMauro Paciornik, são Paulo, EdUsP, 2006, p. 15.

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fessar feiticeiras 33, já no tardio século XViii, pode ser consideradacomo exceção, visto que, conforme destaca, José Pedro Paiva, a lite-ratura religiosa portuguesa que prevaleceu, principalmente nosséculos XVi e XVii, se restringiu aos manuais de confessores, cate-cismos e tratados de teologia moral 34.

Com relação aos Quinhentos, o autor aponta para a inexistên-cia de produções, em especial, tratados, voltados para a questão dafeit içaria. Faz, todavia, uma ressalva, sobre a suposta existência deum manuscrito intitulado Tractatus de superstitionibus, escrito nomesmo século por Frei Bartolomeu dos Mártires, então arcebispode Braga. a centúria seguinte apresenta um cenário de mudança,porém tímida, pois somente duas obras foram listadas pelo autor:“o volumoso De incantationibus seu ensalmis, aparecido em Évora, noano de 1620, pela pena de Manuel Vale de Moura e o Memorial e anti-doto contra os pos venenosos que o Demonio inventou (...), escrito porManuel Lacerda, no ano de 1613” 35.

além disso, é importante frisar que a presença da literatura reli-giosa encontrou nas teologias de santo agostinho e são tomás deaquino as principais referências para os estudiosos lusitanos, con-tribuindo decisivamente para que as epidemias de perseguição quemarcaram França e alemanha, por exemplo, não tenham encontra -do ressonância também em Portugal. Não se tratava de negar queentre as autoridades religiosas havia o entendimento de que era ne -cessário combater as ameaças do diabo. o que diferenciava emsuas atitudes residia no olhar desses indivíduos em relação aos po -deres dessas criaturas e de seus agentes, considerados limitados, oque tornava inviável acreditar fidedignamente na existência dealguns elementos clássicos ao sabá – voo noturno, metamorfoses etc.

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33 PEREiRa, domingos Barroso, Arte de conhecer e confessar feiticeiras, Évora, BibliotecaPública de Évora, Códice CXXiii/2-8.

34 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774,

Lisboa, Editorial Notícias, 1997, pp. 81-82.35 Idem, p. 19.

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dessa forma, mesmo com a tendência pelo ceticismo, havia emPortugal um corpo civil, representando por leis, regulamentos e or -denações, que já possuía uma importante circulação no âmbito dademonologia, além de posicionamentos a respeito da definição dosdelitos relacionados à interação com o diabo, bem como das sen-tenças que deveriam ser efetivadas. destaque, ainda, para a circula-ção de uma literatura interessada em discutir esse fenômeno, em -bora não tivesse tamanho peso como em outros espaços europeus,mas que se inclinava a discutir as noções de pacto “tácito” e “ex -presso” em detrimento da crença na realidade dos sabás.

avançando para a legislação civil, ainda em Portugal, é possívelperceber com maior nitidez que a preocupação para com indivíduosque atuavam ilicitamente no sobrenatural percorria os círculos letra-dos antes mesmo do estabelecimento do santo ofício em 1536. Nocaso das Chancelarias 36, é possível identificar como a preocupaçãopara com a presença ilícita de indivíduos no sobrenatural integravao cotidiano das autoridades civis. inúmeras cartas de perdão foramassinadas pelo monarca d. Manuel tendo por endereço diversosindivíduos acusados de feitiçaria, em especial as mulheres, interessa-das na absolvição, a fim de evitar até mesmo prisões motivadas poresse crime. além disso, Pedro d’azevedo demonstra como a circu-lação de cartas de permissão concedidas pelo Rei também erampre sentes de modo que alguns indivíduos adquirissem autorizaçãooficial para algumas práticas curativas, destacando uma verdadeira“classe de peritos” no entender do autor 37.

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36 as Chancelarias “tiveram sempre, pois, a primordial função de garantir a vida polí-tico-administrativa, em primeiro lugar do condado, e depois da cúria régia, das dioceses,das câmaras, dos tribunais, das casas particulares, nobres ou não”, ou seja, tratava-se deuma função que exigia “além das indispensáveis condições materiais de escrita (V. sCRiP-toRia), uma mão-de-obra especializada”. Cf. azEVEdo, Carlos Moreira (dir), “Chance-laria”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2000,p. 331.

37 d’azEVEdo, Pedro a, Benzedores e Feiticeiros do tempo d´El Rei D. Manuel (séculos XV-

-XVI), Revista Lusitana, Porto, volume iii, 1894-1895, p. 1.

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as Ordenações Manuelinas, por sua vez, trazem consigo o avançodas preocupações civis frente aos crimes de feitiçaria, revelando umcaráter mais sistemático das práticas que deveriam ser censuradasem Portugal. dessa forma, em seu Livro V, o título XXXiii, intitu-lado, Dos feiticeiros, e das vigílias que se fazem nas Igrejas, apresenta todoum rol de heterodoxias passíveis de punição aos olhos da Monar-quia. Elementos, enfim, que nos levam a também acreditar na exis-tência de todo um aparato erudito português que se encontravaciente da existência do diabo e que contribuía para que circulasseem Portugal, mesmo sem tamanha efervescência, a atmosfera depreocupação para com a bruxaria e feitiçaria 38.

afinal, como bem questiona Robert Mandrou, como uma auto-ridade poderia negligenciar denúncias e confissões envolvendo possíveis pactos demoníacos diante de uma igreja que conferia e le -gitimava a existência dessas práticas, de um corpo jurídico queaden sava a perseguição, e da própria população que compartilhavade inúmeras crenças para com o delito de feitiçaria 39? Não se trata dedesconsiderar, por sua vez, os diferentes movimentos em torno dade limitação desse processo, vide os exemplos de Portugal e doespaço que atualmente conhecemos por alemanha. ainda, assim,sua afirmação, embora generalizante, nos é válida a partir do mo -mento em que a figura do católico, ou do que viria a ser chamadode “cristão-velho”, esteve tradicionalmente envolvida em um de ba -te demonológico de viés erudito, mas que encontrava eco entre essapopulação. diferente, por exemplo, da própria tradição judaica emtorno do diabo que não possuiu tamanho alcance se comparado àprodução católica e que pode ter contribuído para a pouca presençade cristãos-novos em processos envolvendo a participação dessepersonagem.

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38 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774,

Lisboa, Editorial Notícias, 1997, pp. 19-20.39 MaNdRoU, Robert, Magistrados e feiticeiros na França do século XVII, são Paulo, Pers-

pectiva, 1979, pp. 73-74; 76-77.

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além disso, diferente do peso assumido pela participação dascristãs velhas no contexto mágico-religioso português, no âmbito doscristãos-novos acusados pelo delito da feitiçaria, há um certo equilí-brio nos números de homens e mulheres processados 40. a nossover, esse equilíbrio se justifica, entre outros fatores, não apenas nofato de que qualquer prática dos descendentes de judeus que fugisseda norma católica fosse vista como suspeita de continuidade naantiga fé e de maior predisposição neoconversa a assumir compor-tamentos nocivos ao cristianismo, mas ainda pela possibilidadedessas mulheres não terem se apropriado de forma considerável dodiscurso misógino 41 que esteve atrelado diretamente à delimitação dademonologia, não se restringindo somente ao âmbito letrado, per-correndo, assim, todo o cotidiano das populações, principalmentecatólicas.

as expressões citadas por Jean delumeau, “medos espontâ-neos” ou “refletidos”, foram por ele utilizadas a fim de identificar eproblematizar a abrangência dos temores individuais e coletivosinseridos nos quinhentos anos de recorte temporal presentes emsua obra. a encarnação desses temores abrangeria tanto a maior de -l imitação da figura do diabo quanto a presença das mulheres, enca-radas como principais agentes, sendo nomeadas de “feiticeiras”.Em linhas gerais, toda a sua discussão associou diretamente o“medo” da mulher às repressões promovidas pelas instâncias civis ereligiosas na Modernidade, ou seja, constituindo todo o fenômenoem torno da “caça às feiticeiras” e, também, de um intrincado con-texto misógino que o sustentaria no âmbito do discurso 42.

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40 Francisco Bethencourt identificou três processos de cristãos-novos acusados pelocrime de feitiçaria. Cf. BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e

curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, pp. 364-368.41 a abordagem do termo em itálico evidencia, assim, o interesse em trata-lo en -

quanto conceito que será debatido adiante.42 dELUMEaU, Jean, História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, trad. de

Maria Lúcia Machado, são Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 523.

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a ampliação deste encontraria ressonância privilegiada nos de -bates que circulavam no âmbito das ciências médicas, principalmen -te àquelas voltadas à anatomia dos corpos e às teorias construídasem torno desse estrato. Uma relação em que também prevaleceu aposição hegemônica masculina a respeito de quais funções sociaisca beriam especificamente a homens e mulheres, respaldada por es -tudiosos que até o século XVii sustentaram a teoria do sexo único,ba seada, de acordo com thomas Laqueur, em categorias sociológi-cas, sem tamanha necessidade de refletir a respeito do própriocorpo. sua obra parte, em síntese, da noção de que houve um dis-curso mais bem organizado entre a figura masculina na Moderni-dade por dispor de vários mecanismos que possibilitaram a difusãoda ideia de que o homem deveria ser um padrão a ser seguido emtodos os setores da sociedade. a submissão feminina era justificada,portanto, pela própria anatomia entendida na época:

a história da representação das diferenças anatômicas entre o homem e amulher é extraordinariamente independente das estruturas desses órgãos, oudo que se conhecia sobre elas. a ideologia, não a exatidão da observação,determinava como eles eram vistos e quais eram as diferenças importantes 43.

aproximando-se do contexto português, o desenvolvimento detodo um código moralista fundamentado por argumentos religiosose jurídicos também adquiriu ressonância entre as autoridades. Freiheitor Pinto nos fornece em sua Imagem da vida cristã 44 importantesin dícios de como predominava a visão de que o papel das mulheresestava relacionado diretamente à sua participação na vida matrimo-nial, ou, em outras palavras, em manter a condição de “submissãosocial” ao homem:

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43 LaQUEUR, thomas, Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, trad. de VeraWhately, Rio de Janeiro, Relume dumará, 2001, p. 111.

44 PiNto, Frei heitor, Imagem da vida cristã (1563-1572), 2.ª ed., Lisboa, Livraria sá daCosta, 1958.

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verdade é que, ainda que a mulher quanto ao matrimónio seja igual ao ma -rido, contudo, no que toca à disposição e governação da casa e fazenda, omarido é a cabeça da mulher, como o diz s. Paulo na Primeira aos Coríntios. [...]a mulher não há-de dominar sobre marido: por isso não foi formada da ca -beça de adão: nem deve ser desprezada dele como escrava: por isso não foiformada dos pés: mas há-de ser companheira do marido: por isso foi for-mada da costa, que está no meio do corpo 45.

Buscava-se, assim, nas palavras do Frei, resguardar as garantiaspara que o papel do homem na sociedade, nomeado provedor dafa mília e como àquele em que a mulher devia respeito e lealdade,fossem mantidas, já que as próprias escrituras bíblicas corrobora-vam essa condição. Vale destacar, por sinal, que o desenvolvimentode todo esse contexto ao longo da Modernidade alcançou maiorprofundidade teórica muito por conta da apropriação de um dis-curso religioso que corroborava tanto no interesse em reafirmar acondição inferior das mulheres ou mesmo a predisposição da figurafeminina a se relacionarem com o diabo. Exemplo que pode serretirado do próprio trecho acima, em que Paulo, o apóstolo, é evo-cado a fim de corroborar para a natural submissão das mulheres aoshomens. Conforme salientou Jean delumeau, o olhar do apóstolofoi categórico, por exemplo, para consolidar a exclusão das mulhe-res na vida clerical, justificando que a sexualidade feminina estavaim pregnada do pecado original 46. stuart Clark, por sua vez, aindaafir ma que a “bruxaria” só conseguiu ser alçada à condição de cri -me, e não mais como um vício comum, por conta da doutrina pau-lina, responsável, também, por justificar as ações dos magistradosfrente à perseguição a este tipo de delito 47.

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45 Idem, p. 38.46 dELUMEaU, Jean, História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, trad. de

Maria Lúcia Machado, trad. de notas de heloísa Jahn, são Paulo, Companhia das Letras,2009, p. 470.

47 CLaRk, stuart, Pensando com Demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa

Moderna, trad. de Celso Mauro Paciornik, são Paulo, Editora da Universidade de são Paulo,2006, p. 699.

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o teor moralista a nível civil também encontrou, por sua fez,forte ressonância entre os juristas. Conforme aponta adelinaarrión, as questões envolvendo a linha sucessória das famílias bemcomo a transmissão do patrimônio estavam diretamente relaciona-das ao papel das mulheres na sociedade portuguesa; relações depoder pautadas na imposição de um domínio para com a figura fe -minina 48. o que se viu, portanto, foi o prevalecimento de toda umalegislação endereçada aos assuntos domésticos, incluindo-se o casa-mento nestas preocupações, além de abarcar assuntos como aviuvez, o adultério, a bigamia, bem como a política de patrimôniosmencionada pela autora. a delimitação do papel social da mulher,em específico para o contexto português, se conjugava diretamentecom as ações da igreja e do Estado.

as Ordenações Afonsinas são, por exemplo, importante conjuntodocumental que retrata a necessidade das autoridades lusitanas emaprimorar e moldar os limites referentes ao papel da mulher na vidaconjugal. Caberia aos pais, assim, a decisão sobre o futuro de suasfilhas nos casamentos 49. Já nas Ordenações Manuelinas, é notável a au -sência do direito feminino em participar ativamente de todo o pro-cesso envolvendo a herança patrimonial, salvo a existência dealguma doação especial ou, em último caso, uma mercê conferidapelo Rei 50. além disso, ambos os conjuntos legislativos revelam, noentender de Raquel Patriarca, o gritante lado desigual das relaçõesmasculinas e femininas como nos casos envolvendo o adultério,visto que, quando a mulher era alvo das acusações por este delito,

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48 saRRióN, adelina, Beatas y Endemoniadas. Mujeres heterodoxas ante la Inquisicion. Siglos

XVI a XIX, Madri, alianza Editorial, 2003, p. 29.49 PatRiaRCa, Raquel, “a presença das mulheres nas ordenações afonsinas, Manue-

linas e Filipinas: uma visão evolutiva”, in ViLas Boas E aLViM, Maria helena; CoVa, anne;MEa, Elvira Cunha de azevedo, Em torno da história das mulheres, Lisboa, Universidadeaberta, 2002, p. 127.

50 Idem, p. 35.

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sua morte pelo cônjuge era interpretada como questão de direito aser praticado pelo mesmo 51.

tamanha tradição misógina que se articulou entre Estado e igrejano âmbito lusitano pode nos levar a pensar na viabilidade de consi-derar que o discurso em questão esteve mais próximo do cotidianoda população cristã-velha do que entre os que ainda vivenciavamprecocemente uma religião que nem sempre lhes era tão familiar,prin cipalmente se levarmos em conta o passar das décadas após aconversão forçada dos judeus em Portugal. Essa proximidade sus-tentou com maior peso as atitudes das cristãs velhas em se apropriardesse discurso e, assim, contar com o sobrenatural a seu bel prazer,bem como das autoridades, que se voltaram em maior nú me ro paraessas mulheres quando da necessidade de estabelecer processosinquisitoriais. talvez a assertiva se torne mais evidente ao trazermosà tona as trajetórias de Maria Gonçalves e Felícia tourinho 52.

Com a chegada da Visitação inquisitorial na américa portu-guesa no último decênio do Quinhentos, fato até então inédito na -quele espaço, as ações das autoridades, encabeçadas pela presençado visitador heitor Furtado de Mendonça, também percorreram oâmbito da feitiçaria na medida em que a população local se dispôs ade nunciar esse delito, previsto no Monitório do Inquisidor Geral de1536. sua função, por sinal, procurava abarcar um extenso rol decrimes para os quais a inquisição portuguesa deveria se atentar. Énesse contexto que os processos de Maria Gonçalves e Felícia tou-rinho se inserem na medida em que revelam o funcionamento daen grenagem inquisitorial, dependente direta dos que compareciam

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51 Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manoel, livro V, título XVi, Coimbra, Real imprensa daUniversidade, 1797, p. 60.

52 Para uma análise mais pormenorizada destes casos, bem como das práticas mágico-religiosas e a perseguição inquisitorial no mundo luso-brasílico, ver: REis, Marcus Vinícius,“descendentes de Eva: religiosidade colonial e condição feminina na Primeira Visitaçãodo santo ofício à américa portuguesa (1591-1595)”, dissertação de Mestrado em histó-ria. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2014.

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à mesa da Visitação a fim de concretizar o ato da denúncia oumesmo da confissão e, por se voltarem ao crime da feitiçaria, são im -portantes por nos indicar como homens e mulheres se inseriram nocontexto misógino da época.

Podemos analisar as atuações de heitor Furtado de Mendonçaem dois principais momentos: sua visita à Capitania da Bahia e aposterior chegada à Capitania de Pernambuco 53. Entre os anos de1591 a 1593, durante o estabelecimento da comitiva em salvador,sua presença como representante oficial do santo ofício portuguêsnaquele espaço acarretou em um diversificado número de denún-cias e confissões que, embora tenham se voltado largamente para aameaça judaizante 54, também abarcaram outros delitos, como o dafeitiçaria, muito por conta da fama que uma certa cristã-velha, denome Maria Gonçalves, adquirira entre a população local.

todo o rol de denúncias praticado contra a acusada se concen-trou no mês de agosto, ainda em 1591: Margarida Carneira, isabelan tunes, isabel Monteira sardinha, Catherina Fernandes, CatherinaQuaresma, Maria da Costa, teresa Rodrigues e Violante Carneira;mulheres que durante esse período se interessaram em compareceràs autoridades inquisitoriais a fim de afirmar que Maria Gonçalvesera responsável por se relacionar com o diabo.

Quanto ao conteúdo dos relatos, foi possível identificar como a

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53 Conforme apontou Ronaldo Vainfas, suas atribuições também estavam previstaspara se estender para as regiões de são Vicente e Rio de Janeiro, na luso-américa, alémdas ilhas de Cabo Verde e são tomé. Entretanto, como bem aponta o autor, ao se apro-priar do “vício das autoridades coloniais”, o Visitador atuou na américa a seu bel prazer,abandonando as ordens do Conselho Geral, no qual promoveu até mesmo processos eprocissões de autos-de-fé, o que teria motivado seu retorno ao Reino após a passagem dacomitiva inquisitorial por Pernambuco. “introdução”, in Santo Ofício da Inquisição de Lisboa:

Confissões da Bahia (organização Ronaldo VaiNFas), são Paulo, Companhia das Letras, 1997,pp. 5-36.

54 Luiz Mott afirma que, das mais de trezentas pessoas denunciadas na Bahia durantea Visitação, a maioria esmagadora era de cristãos-novos acusados de judaizarem. Cf.Mott, Luiz, Bahia. Inquisição e Sociedade, salvador, EdUFBa, 2010, pp. 23-24.

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proximidade dessas mulheres, não somente da suposta feiticeira, paracom o personagem em questão revela uma consonância próxima àprópria construção delimitada pelo catolicismo a respeito do diabo.Violante Carneira, ao delatar Maria Gonçalves – mencionando-acomo “mulher vagabunda” – afirmando que a acusada tinha o cos-tume de manter relações com o diabo, principalmente mediante aoferta de parte de seu corpo como forma de sacrifício, bem comode obtenção de quaisquer pedidos feitos ao mesmo. Na denúncia deisabel antónia, por exemplo, temos a afirmação de que Maria Gon-çalves ia a um local descampado, utilizando-se de um signo de salo-mão e colocando azeite na boca, a fim de se comunicar com odiabo, fazendo arribar até mesmo um navio saído de salvador paraPortugal. isabel ainda relatou que, certa vez, teria encontrado ummóvel de sua casa com os pés para cima, além de candeias sob osmesmos, o que a teria assustado, creditando à Maria Gonçalves aresponsabilidade por esse feito 55.

o tal signo de salomão a que faz referência isabel antónia,deve tratar-se do escudo ou estrela de david – maguen David, em he -braico –, estrela de seis pontas, ou hexagrama, composta por doistriângulos entrelaçados. Embora seja bastante conhecido atualmen -te, não parece ter desempenhado papel tão fulcral no judaísmo deoutrora. Por não ser tão difundido na Modernidade, quiçá pudesse,em determinados casos, servir como elemento de identificaçãojudaica entre os criptojudeus, visto que não despertava maiores des-confianças na população em geral, que o desconhecia. de todomodo, durante a idade Média, o símbolo aparece em peças orna-mentais, amuletos cabalísticos e outros padrões de desenhos mági-cos judaicos 56. talvez, por isso, se levarmos em conta a possibili-

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55 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Pro-cesso de Maria Gonçalves. 1591-1593, fl. 13 e 14.

56 UNtERMaN, alan, Dicionário judaico de lendas e tradições, Rio de Janeiro, Jorge zaharEd., 1992, p. 161.

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dade da denunciante ter, de fato, visto o signo de salomão em posseda feiticeira, Maria Gonçalves utilizasse o símbolo por seus supos-tos poderes mágicos em suas práticas.

Entretanto, mesmo apontada de forma torpe nos relatos ante-riores, sendo mencionada, também, como “feiticeira diabólica” emambas as denúncias, é importante mencionar, por sua vez, comosua fama de mediadora entre o mundo dos homens e o sobrenatu-ral se tornou notável naquele espaço. Na exposição de CatherinaFer nandes, a acusada é vista como uma mulher que possuía relaçõesde proximidade com os mais diversos estratos daquela sociedade.se gundo a denunciante, Maria Gonçalves teria lhe dito que perdera“uns papéis que iam embrulhados uns pós”, no qual pudesse estarem posse de um francês chamado João Rolim 57. seriam nove papeisconfeccionados pela própria acusada e que teriam sido vistos peladenunciante também nas mãos de salvador da Maia, cristão-novo,de um homem conhecido por “Granada”, além de Gonçalo Fer-nandes. Foram também citados os nomes de Pero Godinho, Cris-tóvão de Barros, um ouvidor Geral além do bispo dom antônioBarreiros, que supostamente teriam utilizado os mesmos papeis.

denunciada por domyngas Jorge durante a visitação à Capita-nia de Pernambuco, a filha do clérigo João tourinho, conhecida porFelícia tourinho, esteve no alvo do Visitador supostamente por terse envolvido com práticas mágico-religiosas de caráter adivinhatório.Estas teriam sido por ela praticadas durante o período em que esti-vera presa na cadeia pública de olinda, por conta de uma agressão.Estando juntamente com a denunciante nesse local, Felícia touri-nho teria utilizado um chapim 58 e uma tesoura, segurando-o com a

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57 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Pro-cesso de Maria Gonçalves. 1591-1593, fl. 05.

58 No dicionário de Rafael Bluteau, o significado de chapim se refere a uma espécie decal çado composto de quatro ou cinco solas, o que, atualmente, pode ser consideradocomo um salto. Cf. BLUtEaU, Raphael, Vocabulario Portuguez e Latino (1713), Rio de Janeiro,UERJ, s.d [Cd-RoM], p. 276.

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mesma, levantando-o para, em seguida, completar o ritual: “eu tees conjuro por sam Pedro e por sam Paulo e pelo diabo felpudo egue delhudo que tu me digas a verdade que te quero perguntar [...][e] respondeu-lhe ela então que se o que perguntava era verdadehavia de se andar à roda a tesoura e se era mentira, não se havia demover [...]” 59.

Em um primeiro momento, voltado às análises dos respectivosprocessos, interessa-nos destrinchar o código simbólico, percorren -do o rol de crenças e práticas que se atrelaram tanto à fama de feiti-ceira de Maria Gonçalves como à suposta capacidade de adivinhaçãoapontada à Felícia tourinho.

todo o aparato mágico-religioso relacionado a Maria Gonçalves –baseando-nos nos relatos aqui apresentados – partiu de uma cons-trução inicial voltada para a necessidade da existência de uma fonteexterna que conferisse sentido aos demais ingredientes utilizadosnas práticas: através da conjuração ou da comunicação direta, essafonte se encarnava na figura do demônio, configurando-se, assim,o “pacto expresso” e o consequente estabelecimento de um con-trato. sua invocação possibilitava, assim, a presença de toda umaplu ralidade de instrumentais bem como a constituição de uma va -rie dade de combinações que compunham os rituais supostamenterelacionados à acusada e que se delimitaram em torno da sua fama.

Referente a essa variedade, o uso do azeite, por exemplo, nas su -postas comunicações praticadas pela acusada, pode ser encaradonão somente pela significação de “luz e pureza ao mesmo que deprosperidade” 60, mas por sua condição de sacralidade presente natra dição hebraica e que fora repassada ao cristianismo. Essa diversi-

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59 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo no 01268.Processo de Felícia tourinho. 1593-1595, fl. 06.

60 ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt, alain, “azeite”, in ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt,alain, Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números, trad.Vera da Costa e silva, Raul de sá Barbosa, angela Melim e Lúcia Melim, 26.ª ed., Rio deJaneiro, José olympio, 2012, p. 106.

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ficação ainda é maior quando nos debruçamos sobre as arguições,no qual a acusada justificou a utilização de ingredientes tanto paraum viés amoroso como para pessoas interessadas em “matar a seuma rido e a outros para ganharem jogando”, reafirmando que distri-buíra diversos papeis entre mercadores e outras pessoas interessadas 61.ainda afirmou que fizera uso de um “solimão” 62 como ingredienteprincipal para o preparo de perfumes que algumas mulheres lhepediam.

destaque, também, para o uso de animais em algumas de suaspráticas, ao menos segundo o que relatou, afirmando que, quandonão eram os fígados de galinha utilizados nos rituais, dispunha tantode sapos ou ratos que serviam para a confecção dos tais pós citadosnas denúncias, dizendo às pessoas que a procuravam que consegui-riam a afeição de alguém se os lançassem no chão por onde essapessoa caminhasse 63. Nota-se, portanto, o forte simbolismo que ouso de animais em práticas mágico-religiosas possuiu naquele período,muito por conta da aproximação com a complexa religiosidade dematriz africana, como o uso da galinha e do sapo que, segundo JeanChevalier e alain Gheerbrant, estão presentes também em ritos so -brenaturais provenientes de diversas tribos na áfrica 64. Essa intera-ção esteve presente, por sua vez, também em Portugal, revelando aprofundidade na circulação simbólica dessas práticas, conformeapontou daniela Calainho, citando o caso de Maria ortega, que

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61 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Pro-cesso de Maria Gonçalves. 1591-1593, fl. 21 e 24.

62 segundo Raphael Bluteau, “solimão” seria algo próximo ao sal amoníaco ou salitre,de origem arábica, e que, de acordo com seu manuseio, poderia variar entre o veneno oumesmo atrativo ao paladar. BLUtEaU, Raphael, Vocabulario Portuguez e Latino (1713), Rio deJaneiro, UERJ, s.d [Cd-RoM], p. 707.

63 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Pro-cesso de Maria Gonçalves. 1591-1593, fl. 27-28.

64 ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt, alain, Galinha; Sapo. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,

costumes, gestos, formas, figuras, cores, números, trad. Vera da Costa e silva, Raul de sá Barbosa,angela Melim e Lúcia Melim, 26.ª ed., Rio de Janeiro, José olympio, 1995, pp. 457 e 803.

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ensinava diversos ritos para “unir homens e mulheres” a partir douso de um coração de frango ainda vivo, fervendo-o com vinagre.Já uma certa Catarina Maria, que era escrava e moradora de Évora,teria utilizado um sapo assado, dizendo “assaste sapo, e pingastepão para cegar os olhos deste cabrão”, com o objetivo de que seucônjuge não descobrisse suas traições 65.

Quanto ao processo de Felícia tourinho, o primeiro ponto a serlevado em consideração diz respeito à invocação dos santos católi-cos Pedro e Paulo, como componentes da referida prática de adivi-nhação e que nos levam a afirmar que sua trajetória integrava umcontexto luso-brasileiro no qual a familiaridade com os santos foibastante recorrente, fazendo parte da vivência cotidiana 66.

No mundo português, duas características principais são apon-tadas por Francisco Bethencourt a respeito das práticas mágico-reli-giosas que tinham, como um dos elementos principais, o uso dossantos pertencentes ao catolicismo: “se, em alguns casos, é visívelcerta ‘flexibilidade’ nas referências, surgindo narrativas hagiográfi-cas confundidas e misturadas, em outros torna-se surpreendente origor de identificação entre a lenda do santo evocado, as caracterís-ticas do rito no qual é inserido e os objetivos que se têm em vista” 67.

Já em relação ao cotidiano dos indivíduos na américa portu-guesa, a prática religiosa vivenciada pela população foi analisada porLuiz Mott, apontando também para esse aspecto de intimidade comos santos católicos. Citou, por exemplo, a presença do oratóriocomo espaço privilegiado de construção por parte das famílias de

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65 CaLaiNho, daniela, Metrópole das mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no

Antigo Regime, Rio de Janeiro, Garamond, 2008, p. 103.66 Com relação à religiosidade vivenciada na américa portuguesa, ver os estudos clás-

sicos de Ronaldo Vainfas e Laura de Mello e souza. VaiNFas, Ronaldo, Trópico dos Pecados:

moral, sexualidade e Inquisição no Brasil, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997; soUza,Laura de Mello e, O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil

Colonial, são Paulo, Companhia das Letras, 1986.67 BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em

Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 144.

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um ambiente sacralizado na vida privada, servindo, inclusive, comorelicário, reunindo, assim, as mais diversas relíquias de santos, desdefragmentos de ossos, resquícios do lenho da cruz em que Jesus foicrucificado e até mesmo o leite em pó com o qual foi amamentadopor Nossa senhora 68.

a irreverência ou vulgarização do diabo, denominando-o de“felpudo”, “orelhudo” e “guedelhudo” 69, também vale menção pornos indicar a quase infinidade de representações que a “culturapopular” promoveu durante a Época Moderna diante desse perso-nagem. tais atitudes que essas mulheres construíram frente ao con-siderado grande inimigo da cristandade merece destaque por evi-denciar como esta intimidade se delimitou diante do própriodis curso católico vigente, endereçado a seus fieis. dessa forma, astentativas de se destrinchar todo o código simbólico que se arquite-tou nas trajetórias de Maria Gonçalves e Felícia tourinho se dispu -se ram, portanto, a corroborar com uma das hipóteses que aquiapresentamos, em que a figura do diabo se tornou tão cotidianaentre a população, tanto cristã velha quanto neoconversa, mesmona américa portuguesa – distante de maiores debates relacionadosa essa figura – a ponto do discurso demonizador ter se azeitadoentre aqueles interessados em contar com outra forma de interven-ção no sobrenatural para além do rol de potências legitimadas pelaigreja.

Complementando com as demais hipóteses que foram aquiapon tadas, o objetivo da discussão acima residiu em trazer à tonaalguns apontamentos iniciais relacionados à presença das cristãsvelhas e cristãs-novas frente às práticas mágico-religiosas, mas que

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68 Mott, Luiz, “Cotidiano a vivência religiosa: entre a capela e o calundu”, in soUza,Laura de Mello e (org), História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América por-

tuguesa, são Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 167.69 de acordo com o dicionário houaiss, o termo “guedelhudo” significa: “que tem

guedelhas; cabeludo, gadelhado, gadelhudo”. Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa, 1.ªreimpressão, Rio de Janeiro, objetiva, 2004, p. 1495.

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merecem maiores problematizações a partir de uma ótica compara-tiva. as trajetórias das cristãs-novas Beatriz Borges e Clara de oli-veira buscam ampliar esse debate.

ainda na segunda década de atuação efetiva da inquisição por-tuguesa, Beatriz Borges, então moradora, com seu marido henriqueGomes, da Ribeira de Peniche, pertencente à diocese de Lisboa, foicitada em um despacho da mesa inquisitorial 70 por dois eventosocorridos em meados de 1541.

de acordo com o que fora citado, a acusada compartilhou entresuas vizinhas uma visão peculiar a respeito de como a alma de umin divíduo saía de seu corpo no momento da morte do mesmo. Esseentendimento ficou claro na descrição a respeito da morte deFernão Gomes Monteiro, em que, ao visitarem o mesmo, as mulhe-res presenciaram a afirmação de Beatriz Borges de que a alma doen fermo não conseguia sair de seu corpo por conta de uma cruzpre gada no teto do quarto em que estava. diante do problema le -van tado, os parentes do enfermo optaram em transferi-lo paraoutro cômodo de sua casa, resultando, enfim, na partida de suaalma, conforme declarou a acusada.

Foi também afirmado que, estando na casa de Leonor Fernan-des, cristã-velha, juntamente com outras mulheres, a acusada teriasido instigada pelas demais a contar sobre uma “feitiçaria ou ceri-mônia de judeus” – atenção, aqui, para a identificação de práticas defeitiçaria com cerimônias judaicas! – 71 que estaria relacionada direta-mente à quem estivesse grávida, ou, conforme consta na documen-tação, “que andava de parto”, como estava a própria dona da casa.

ainda no âmbito da inquisição lisboeta, apareceu espontanea-

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70 Nesse caso, a própria indexação do documento na homepage da torre do tomboacompanha a observação de que não se tratou necessariamente de um processo, mas deum “auto de Beatriz Borges mulher de henrique Gomes de Peniche”. disponível em:http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2302834. acesso em: 12/01/2015.

71 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 2902. Pro-cesso de Beatriz Borges. 1541, fl. 03.

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mente Clara de oliveira, interessada em se confessar ao inquisidordiogo de souza um episódio que presenciara ainda no tempo emque era moça, antes de se casar com Baltazar de oliveira, que seencontrava falecido. a respeito do relato, este descreveu o diálogoocorrido na casa de dom afonso de Mafra entre a confessante eum físico, em que teria lhe ensinado algumas práticas para “se en -tender da mão e das estrelas” 72. Em pouco tempo, de acordo com oinformado, algumas pessoas cientes desse diálogo começaram aprocurar Clara de oliveira de modo que a própria lhes respondessese “teriam algum perigo de fogo ou agua, ou lhe perguntavam al -guma mulher se havia de casar ou não”, enfim, toda uma série deques tionamentos voltados para a adivinhação do futuro. o ritualutilizado por Clara no intuito de suprir a demanda que lhe era diri-gida, consistia em olhar para o rosto do indivíduo que, em seguida,teria a resposta:

e que agora, depois que foi o sucesso da guerra da áfrica, lhe vieram algumassenhoras desta cidade, honradas e conhecidas, perguntar se sabia que seusmaridos ou filhos eram vivos ou mortos, e ela confidente, se lhe pergunta-vam por marido, olhava para o rosto da mulher, e se por filho, olhava para orosto da mãe, e segundo o que entendia, lhes respondia se eram vivos oumortos 73.

Confessou, igualmente, que, mesmo na dúvida se o que prati-cava era de fato lícito às normas da igreja e aos olhos da inquisição,al gumas mulheres continuaram a procurá-la diante da fama queadquirira. Citou, assim, a procura de dona antônia, interessada no paradeiro de seu cônjuge, dom Rodrigo de Mello, e de donaMaria, mulher de dom Francisco de Moura, no qual a confessante“pelo que entendeu de sua estrela e de seu signo [disse para que]

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72 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 12607. Pro-cesso de Clara de oliveira. 1578, fl. 1a.

73 Idem, fl. 1a.

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confiassem em deus que lhes veria bom mandado dos ditos seusmaridos” 74.

a associação entre os praticantes do judaísmo e a presença derituais maléficos não surgiu no Portugal Moderno tampouco se res-tringiu ao século XVi. Com o Concílio Lateranense iV, ocorridoem 1215, quando inocêncio iii ocupava o Papado, era determinadoaos judeus a obrigação de andarem com roupas capazes de identi-ficá-los juntos aos demais; prescrição também endereçada aos le -prosos, tornando-os dois grupos deslocados para a margem dassociedades 75. Mas é no século XiV que a problemática em tornodos judeus alcançaria maior substância, catalisada pelo avanço daspestilências em diversas regiões europeias, sendo apontados nestasáreas como os grandes responsáveis pelas inúmeras mortes prova-das pelo bacilo da peste. No entender de Carlo Ginzburg, esseavanço correspondia a um movimento maior, tornando-se um dosalicerces que sustentariam todo o complô no mundo europeu emrelação à necessidade de se perseguir indivíduos acusados de darvida às cerimônias do sabá 76. a presença do termo “feitiçaria”quando do despacho de Beatriz Borges é forte indício de comotambém é possível enxergar em Portugal rastros desse complô aoassociar determinado rito judaico à presença do delito da feitiçaria.

Entre a população judia, Rafael Martín soto nos fornece impor-tantes argumentos em torno da interação desta com o campo simbó-lico, citando, por exemplo, algumas anedotas e discursos provenientesdo Talmud fazendo referência às ações de “demônios ma lignos mas-culinos (scedim) ou femininos (lilith)” ou até mesmo provocadas por“palavras mágicas [...] pelo olhar de uma terceira pessoa” 77. afirma,

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74 Idem, fl. 2.75 GiNzBURG, Carlo, História Noturna: decifrando o Sabá, 2.ª ed., são Paulo, Companhia

das Letras, 2001, p. 57.76 Idem, p. 103-104.77 soto, Rafael Martín, Magia e Inquisición en el Antiguo Reino de Granada. Séculos XVI-

-XVIII, Málaga, arguval, 2000, p. 297.

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ainda, a importância que a “simbologia mágica do mundo ociden-tal” deve ao judaísmo, já que muitos símbolos caros a essa culturaforam apropriados por diversos indivíduos para além da religiãojudaica no intuito de invocar espíritos ou mesmo de utilizá-los como significado da proteção, como foi possível observar no processode Maria Gonçalves 78.

ao se debruçar na documentação do santo ofício de Granada,por sua vez, o autor transitou por diversos relatos, segundo ele, decaráter “supersticioso”, delatados às autoridades por indivíduos queconviviam com judeus. havia, por exemplo, a crença na relaçãoentre a ingestão de determinados tipos de carne e seus efeitos nojuízo de algumas pessoas, além de todo um instrumental voltadopara o período de menstruação das mulheres – proibição de faze-rem orações apontando para o céu, de dormir com seus maridos etc.– bem como de episódios de caráter messiânico que também circu-laram entre os judeus espanhóis 79. Já em 1606, as autoridades inqui-sitoriais da região se depararam com uma série de acusações contraindivíduos, conversos, reconhecidos na região de Ronda, por prati-carem rituais mágico-religiosos voltados ao interesse em se descobrirtesouros: utilizavam-se geralmente de um cordeiro que era imoladoem um altar similar ao das igrejas, incluindo a imagem de Jesus e ouso de hóstias; o instrumental se completava com uma oração invo-cando não somente a deus, mas, também, a “moura zabaibel” 80.

Retornando à documentação de Beatriz Borges e Clara de oli-veira, a simbologia de ambos os processos não foge muito aos casosapresentados por Rafael soto, apontando para a necessidade deobservamos esses fenômenos mágico-religiosos para além do catoli-cismo como única matriz, até para nos resguardarmos de um olhar

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78 Idem, p. 299.79 Idem, p. 303-304.80 soto, Rafael Martín, Magia e Inquisición en el Antiguo Reino de Granada. séculos XVi-

-XViii, Málaga, arguval, 2000, p. 308.

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enviesado. o que não significa, contudo, cair na armadilha de nosafastarmos tanto dessa religião como influência nas práticas aquicitadas a ponto de isolá-las em outra referência, como o judaísmo.

ao presenciarem Beatriz Borges compartilhar uma crença emtorno de como a alma se comportava quando da morte de determi-nado indivíduos, essas mulheres acabaram por se integrar em umcontexto em que “cultura erudita” e “cultura popular” interagiamtambém no âmbito da discussão endereçada à presença dos espíritos.

o debate católico que se construiu em relação ao mundo sobre -na tural, principalmente no que toca aos espíritos ou mesmo comose comportavam as almas nos indivíduos, teve grande importâncianos escritos de agostinho, em especial nas suas discussões sobre astentações da carne e de como a vida sexual – ou a “concupiscênciada carne” – alterou drasticamente a harmonia entre corpo e alma,ten do na experiência de adão e Eva o palco inicial dessa dicotomia 81.Para Jean delumeau, duas noções a respeito do corpo e da almacoexistiram ao longo da Época Moderna, resultante de posiçõesnem sempre fixas provenientes dos estratos populares e de longosde bates entre os letrados: a primeira posição compartilhava dacrença de que ambos retornavam ao seu lugar de origem terrenaquando da morte do indivíduo, enquanto a segunda noção, teoló-gica, principalmente, partia do entendimento de que havia um jogode forças espirituais, no qual os espíritos somente apareciam emdeterminados contextos 82.

No contexto português, a produção teórica foi tímida no quetan ge ao tema em questão, como afirma Francisco Bethencourt,que identificou, na obra de Frei Manuel de azevedo, Correcção deabusos introduzidos contra o verdadeiro methodo de medicina, publicada em1680, um dos poucos escritos que mencionam a relação entre corpo

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81 VEYNE, Paulo, História da Vida Privada. Do Império Romano ao ano Mil, trad. de hilder-gard Feist, são Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 278.

82 dELUMEaU, Jean, El Miedo en Occidente, Madri, taurus, 1978, pp. 247-248.

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e alma. ao discorrer a respeito do “mau-olhado”, o tratadista afir-mou que sua causa deveria ser explicada por uma ordem natural,posto que o espírito maligno saía da boca e olhos de quem provo-cava esse malefício, sendo caracterizado por um “vapor delgado esutil que resulta da perturbação e levantamento, pela inveja, dos hu -mores podres, corruptos e malignos existentes no corpo do fasci-nador” 83. os espíritos poderiam assumir, assim, uma condiçãomaterial que acabaria por influenciar nos humores dos indivíduos.

talvez seja viável afirmar que a riqueza maior a respeito dasrelações entre corpo e alma tenha alcançado maior notoriedade noâmbito da religiosidade presente na população comum, revelando,tam bém, como essa discussão não se restringiu somente às influên-cias do catolicismo, na medida em que a própria escravidão contri-buiu nesse processo. Vide o exemplo dos calundus, analisados porLaura de Mello e souza, e que circularam com relativa amplitude naamérica portuguesa, principalmente em Minas Gerais. de acordocom a autora, embora os diversos relatos em torno dessas práticasapontem para uma complicada fragmentação dos aspectos culturaisa elas relacionados, é possível identificar uma unidade capaz de ca -racterizar o que eram esses calundus: “a possessão ritual – os ventosde adivinhar –, a evocação de espíritos (em geral de defuntos), asoferendas feitas a eles, os trajes de inspiração africana, a adivinha-ção, às vezes o curandeirismo, a música cantada e marcada pelosins trumentos de percussão, o caráter coletivo” 84.

atravessando o atlântico, a diversidade de crenças sobre a fun -ção dos espíritos no plano terreno também se refletiu na documen-tação inquisitorial referente ao espaço lusitano. Essa fluidez entre omundo dos vivos e a seara dos mortos não circulava, portanto, so -mente no ambiente letrado, já que inúmeros relatos frente às auto-

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83 BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em

Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 162.84 soUza, Laura de Mello e, O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popu-

lar no Brasil colonial, são Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 268.

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ridades do santo ofício apontam para a variedade de olhares dapopulação, das mais variadas posições sociais, classes e origens paracom o sobrenatural. José Pedro Paiva menciona, por exemplo, a res-posta de Maria Fernandes, moradora de Braga, às autoridadesaquando perguntada do que seria a doença denominada “ar”, afir-mando que se tratava de defuntos que circulavam pelo ar e que per-turbavam as pessoas 85; relato próximo ao que mencionamos a res-peito de Frei Manuel de azevedo e que revela os complexos laçosculturais relacionados às práticas mágico-religiosas.

Essa breve digressão teve por objetivo levantar a hipótese deque, no âmbito das simbologias que compuseram a trajetória deBeatriz Borges, é problemático afirmar não somente que o catoli-cismo e sua ideia de diabo foram a matriz primordial das crenças epráticas, mas, ainda, que o judaísmo tenha sido a essência do que foirelacionado à cristã-nova. Embora as menções a cerimônias judai-cas, endereçadas à gravidez, demonstrem sua proximidade para comalguns laços culturais pertencentes à tradição judaica, suas supostasvisões a respeito da interação entre corpo e alma também revelamsua inserção em um contexto de forte circulação de símbolos per-tencentes às mais variadas tradições, mesclando crenças e tradiçõesre ligiosas as mais diversas. Reafirmam, assim, o que apontamos noinício deste ensaio: cada neoconverso, judaizante ou não, vivenciasuas crenças e práticas de maneira singular, ao seu modo, de acordocom a realidade e espaço que em que está inserido, com suas devo-ções de fé, com as possibilidades que encontrava e com o que acre -di tava. Era, na essência, como muito bem caracterizou anitaNovinsky, um “homem dividido” 86.

Quanto ao que fora relatado em relação à Clara de oliveira, a in -vocação das estrelas e o uso de um signo que, juntamente com a

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85 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774,

Lisboa, Editorial Notícias, 1997, p. 138.86 NoViNskY, anita W., Cristãos Novos na Bahia: 1624-1654, são Paulo, Perspectiva/Ed.

da Universidade de são Paulo, 1972.

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menção a deus, compunham parte do instrumental referente àsadivinhações, nos levam a apostar na hipótese da intrínseca relaçãoque esses símbolos mencionados possuem com a importância que oantigo testamento, em sua influência no judaísmo, confere a essesastros. Em um dos tópicos voltados ao item “Estrela/astro”, JeanChevalier e alain Gheebrant apontam para a importância que algu-mas passagens do antigo testamento bem como o judaísmo confe-rem às estrelas, não sendo “criaturas inanimadas”, mas dependen-tes da vontade de deus, sendo veladas por anjos 87. No apocalipse,por exemplo, é retratada a existência de estrelas caídas do céu talqual a presença dos anjos caídos. Já no livro de daniel, as estrelassão encaradas como símbolos da justiça, da eternidade: “os que sãoes clarecidos resplandecerão, como o resplendor do firmamento; eos que ensinam a muitos a justiça hão de ser como as estrelas, portoda a eternidade” 88.

Em contrapartida, o mesmo relato envolvendo Clara de oliveiraé capaz de apontar para a possibilidade de uma circulação de crençase práticas naquele período que não assumiu, por sua vez, uma cone-xão tão somente com o judaísmo, mas uma interação visível comtradições astrológicas já presentes em épocas anteriores; tanto é queo suposto ritual de adivinhação praticado por Clara de oliveira teriasido ensinado por um físico. Conforme apontou José Pedro Paiva, oâmbito das práticas de adivinhação no contexto português não serestringiu apenas às camadas iletradas da população, tam pouco aoambiente rural, apresentando uma diversidade de si tua ções em que ointeresse em ajustar o futuro conforme os anseios dos indivíduos secombinava com a intervenção ilícita no sobrenatural 89.

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87 ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt, alain, Diccionario de los Simbolos, Barcelona, Editorialherder, 1986, p. 484.

88 dn 12,3. A Bíblia de Jerusalém, são Paulo, Edições Paulinas, 1985, p. 1709.89 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774,

Lisboa, Editorial Notícias, 1997, p. 119. o autor ainda nos apresenta (p. 120-121) algunsexemplos das principais práticas utilizadas no contexto português referentes à adivinhação

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ampliando o olhar para além da realidade vivenciada no mundoportuguês, stuart Clark afirma que mesmo nos escritos de Calvino,a preocupação com a presença de “bruxas e bruxaria” também erarecorrente, incluindo aí a menção às práticas divinatórias em algunsde seus sermões, mencionando principalmente o Livro do deutero -nômio. Já no Von hexen und Unholden, de heinrich Bullinger, omesmo interesse em discutir fenômenos maléficos emerge, anali-sando “o uso de bênçãos, conjurações e exorcismos [além das] pro-fissões astrológicas [...] e as artes da necromancia e adivinhação” 90.Enfim, um debate em torno da manipulação dos destinos que nãose restringia somente ao ambiente de uma única religião. Mesmo nocontexto lusitano, os debates voltados para a astrologia percorriamos espaços letrados, segundo o que apontou Francisco Bethencourt,ao citar a trajetória do famoso médico português ambrósio Nunes,defensor da noção de que os astros eram os maiores responsáveispelas influências no mundo interior 91. seria, quem sabe, ambrósioNunes, como tantos físicos, cirurgiões, boticários e estudiosos daépoca, ele próprio cristão-novo, influenciado pela tradição judaicaem sua visão de mundo?

No campo da religiosidade para além do âmbito letrado, a diver -si ficação desses rituais divinatórios, inserindo-se aí, da mesmaforma, a manipulação de signos caros à astrologia, também são ca -pa zes de complementar nossa afirmação a respeito do painel diver-sificado em torno dessas práticas. Retornando ao contexto portu-guês, o interesse no paradeiro não somente de objetos, mas, ainda,

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como, por exemplo, a crença na relação entre a fisionomia das mãos e do rosto para coma possibilidade de se adivinhar a vida de alguém, tal qual é presente nos relatos de Clara deoliveira.

90 CLaRk, stuart, Pensando com Demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa

Moderna, trad. de Celso Mauro Paciornik, são Paulo, Editora da Universidade de são Paulo,2006, p. 583.

91 BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em

Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 142.

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de familiares, esteve por diversos momentos relacionado, comofator intrínseco, ao próprio período de expansão ultramarina quePortugal vivenciava. Nesse sentido, duas vertentes principais emer-giram nas práticas mágico-religiosas voltadas para a manipulação dosastros: a primeira delas dizia respeito à importância conferida aosciclos tanto solar quanto lunar e a suposta influência desses quantoà eficácia dos rituais praticados pelas “feiticeiras” – o pôr-do-sol,por exemplo, era, de acordo com Francisco Bethencourt, o clicoideal para muitas praticantes, por se tratar de um “período delicadode passagem entre o dia e a noite, a luz e as trevas”; a segunda ver-tente, voltada, de fato, à manipulação astrológica, apresenta, no en -tender do autor, uma influência sensível desse debate erudito, apon-tando para o clima, a natureza e o homem como elementos quedependem do “jogo dos corpos celestes”92.

somado à importância do olhar para a concretização da práticadivinatória – lembrando que esse ato emerge como “símbolo e ins-trumento de uma revelação” 93 em diversas culturas –, a prática su -pos tamente relacionada à acusada se completaria, assim, enquantore sultado de um amálgama de simbologias coerentes ao contexto emque se inseria, principalmente diante da clientela que a procurava.

dessa forma, os elementos associados aos relatos anteriores – apresença de deus e da estrela como responsáveis pelo resultado doque poderia ser adivinhado, ou mesmo a relação do parto com ceri-mônias de caráter judaico, embora não tenham sido detalhadas –podem evidenciar, de certo modo, alguma proximidade com essadoutrina, mesmo se considerarmos de forma tímida, na tentativa dese manipular destinos a partir das práticas mágico-religiosas. são sim-bologias que revelam a possibilidade de pensar que o diálogo doscristãos-novos para com o sobrenatural não esteve totalmente

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92 Idem, p. 134 e 143.93 ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt, alain, Olhar. Diccionario de los Simbolos, Barcelona,

Editorial herder, 1986, p. 714.

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intrincado ao catolicismo, corroborando com a assertiva de que amaior proximidade com o judaísmo tenha contribuído não somentepara a pouca intimidade ou interesse no diabo aos moldes católi-cos, mas, também, para a pouca presença desses indivíduos no seiodas práticas mágico-religiosas. Em outras palavras, podemos sugerirque o cristão-novo estava mais próximo de – em variados graus deintensidade e sentido – resgatar ou manter – conscientementee ounão – algumas tradições de seus antepassados, e estas não tinhamta manha força em relação à presença do diabo, do que necessaria-mente se interessar ativamente pelo sobrenatural através do eraconhecido por feitiçaria, seja por seu pacto “tácito” ou “expresso”.

Consoante ao que já fora debatido, a visão da presença do Malna sociedade se encarnou de forma mais expressiva no catolicismodo que na doutrina judaica, incluindo toda uma hierarquia doinferno e de seus habitantes, bem como dos responsáveis por inte-ragir com esses no mundo terreno. se retomarmos os processos deMaria Gonçalves e Felícia tourinho e os signos que se relacionaramà trajetória das acusadas, é possível perceber como os esquemas cul-turais em torno do pacto diabólico, da concretização deste por meiode práticas de feitiçaria, parecem consolidados de forma mais nítidaentre as cristãs-velhas, seja no momento da acusação ou até mesmoantes da heresia se constituir, como forma de interação com o so -brenatural e de alcance a determinados fins. os componentes quesustentaram as acusações bem como inquirições por parte das auto-ridades apontam para a íntima relação que todo o rol de simbolo-gias e atitudes voltadas para as práticas mágico-religiosas possuiu emtorno da tradição católica voltada para a delimitação e definiçãodessas a partir das noções de feitiçaria e bruxaria. Mesmo em umcontexto no qual esse processo não foi tão marcante, conformedes tacado anteriormente, ainda, assim, os diálogos relacionados aosobrenatural, principalmente aos delitos citados, também percorreu,embora com contornos nem sempre fieis ao “erudito”, o cotidianoda população comum, em especial, entre as mulheres cristãs-velhas.

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todavia, se a pouca intimidade com o rol de simbologias católi-cas, em especial, a presença do diabo, talvez possa servir como umada chaves de explicação tanto para a raridade de processos relacio-nados ao gênero em questão como para a possibilidade de pensar-mos que nem sempre a intervenção no sobrenatural se apropriavaso mente dessa religião, não significa afirmar, por conseguinte, queas práticas mágico-religiosas presentes nas trajetórias dessas cristãs-novas tiveram como matriz fundamental o judaísmo. as simbolo-gias que foram possíveis de decodificar a partir da documentaçãoaqui utilizada nos levam a tomar uma posição mais inclinada a en -xergar um amálgama de crenças e práticas que adquiriu novos con-tornos para além da presença do diabo como maior alicerce daspráticas entre essas cristãs-novas, revelando outros fragmentos deuma “cultura popular” interessada em uma visão mágica do mundoque não se sustentava somente no binarismo deus/diabo oumesmo em alguma religião específica.

* * *

Mesmo apontando para as diferentes interpretações dessasmulheres em relação à religiosidade, em que nem sempre o predo-mínio do catolicismo se dava, muito por conta da proximidade comreferenciais caros ao judaísmo ou pela ampliação no uso de símbo-los que circulavam no período, também é importante salientar as si -milaridades existentes entre suas histórias, complementando oquadro comparativo ao qual nos propusemos a construir. a cons-trução dos espaços de autonomia por elas criados a partir do diá-logo com o sobrenatural e que, a nosso ver, integram um movimen -to maior em torno da história das mulheres para além da simplessubmissão feminina ao patriarcalismo vigente, é um primeiro itemque merece relevância.

Para além de todo o quadro moralista que permeou as relaçõesde gênero em Portugal, é importante considerar como a consolidação

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de um universo sobrenatural acessível à população acabou por setornar, também, ferramenta importante entre as mulheres, fossemcristãs novas ou velhas, na tentativa de se estabelecer relativa auto-nomia frente a essa normatização vigente. Vale lembrar o complexopainel apontado por Mary del Priore no contexto da américa por-tuguesa e que combinou vários ritos católicos juntamente a umdiversificado conjunto de simbologias religiosas entre as vivênciasfemininas 94.

Entre o cotidiano dessas mulheres, como o apresentado nos re -latos a respeito de Beatriz Borges, mesmo circunscrito a um espaçoreduzido de sociabilidades, é possível observar como o universomágico compunha suas vivências, no qual muitas vezes uma mulheradquiria protagonismo entre as demais por ser encarada comomediadora frente a esse âmbito. seja compartilhando interpretaçõesvoltadas ao campo simbólico ou mesmo ensinando as chamadas“feitiçarias ou cerimônias de judeus”, é lícito apontar para existênciade esferas em que as mulheres possuíam relativa liberdade em res-significar visões de mundo ou mesmo intervir em um campo queoficialmente deveria ser acessado somente pelo clero católico.

a complexidade dessas relações, leva-nos a considerar a possi-blidade de espaços de autonomia feminina, embora circunscritos eobvia mente limitados, espécie de ilhas de resistência ao sistemaopressor em que estavam inseridas. impede-nos, em consequência,de cairmos na armadilha de definir as interações entre homens emu lheres no período em que esse trabalho se insere como reflexosimplório de um “patriarcado universal”, conforme apontou JudithButler 95.

além dessa autonomia pretendida, independentemente da traje-tória que seja aqui evocada, tanto no contexto da américa portu-

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94 PRioRE, Mary del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil

Colônia, 2.ª ed., são Paulo, Editora UNEsP, 2009, p. 95.95 BUtLER, Judith, Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato

aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, pp. 20-21.

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guesa ou mesmo no Portugal Quinhentista, percebemos como aprópria (má) fama dessas mulheres – enquanto mediadoras dosobrenatural – por vezes não dependia somente das agentes ativasdesse processo, como destacou Marcel Mauss 96. Não podemos des-considerar que a imagem daquele que é encarado como mediadorentre mundos poderia se produzir fora do próprio indivíduo, resul-tante principalmente das crenças que a sociedade direciona a ele. asfontes inquisitoriais estão recheadas de exemplos desta lógica. Umprocesso que é nítido na medida em que aumentava progressiva -men te o número de mulheres interessadas em saber das cerimôniasjud aicas relacionadas ao parto ou mesmo em conhecer o paradeirode seus filhos ou maridos; aspecto também evidente no diversifi-cado círculo de indivíduos que procuravam Maria Gonçalves pararesolver seus problemas pessoais ou conseguir benefícios através docontato que acreditavam que esta mediava com o mundo dosmortos.

Entretanto, esse mesmo reconhecimento alcançado por meiodas práticas mágico-religiosas não anula a possibilidade de pensarmosna existência de todo um jogo de ambiguidades relacionado à traje-tória dessas mulheres, em que todas são apontadas como capazesde sanar os mais diversos problemas, mas, também, acusadas derelacionarem-se ilicitamente com o sobrenatural, seja mencionandoa participação do diabo ou até mesmo nomeando-as “feiticeiras”;uma condição ambígua capaz de revelar as diferentes formas comque a misoginia foi apropriada por essas mulheres.

Conforme ressaltou Ronaldo Vainfas, é importante lembrar quehavia um limite nessas solidariedades femininas, impossibilitandoconsiderarmos a existência de toda uma consciência grupal 97; le -vando-nos a crer, igualmente, que esse discurso foi apropriado, em

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96 MaUss, Marcel, Sociologia e Antropologia, trad. de Paulo Neves, são Paulo, Cosac &Naify, 1950, p. 70.

97 VaiNFas, Ronaldo, Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil, Rio deJaneiro, Nova Fronteira, 1997. p. 182.

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grande parte, em seu caráter negativo, da demonização das mulhe-res não somente entre os homens.

as relações de gênero não devem ser utilizadas, assim, como fer-ramentas para o isolamento das mulheres nas análises do pesquisa-dor ou simples reflexo de uma necessidade de dominação por partedos homens, mas como conceito capaz de possibilitar-nos enxergaras legitimações e construções sociais entre sociedade e essas rela-ções, bem como as diferentes formas e níveis de inserção de ho -mens e mulheres ocorrem nesses espaços de poder 98. destarte, nãoé equivocado afirmar que o modo como esse discurso circulouentre a “cultura popular” não atingiu um eixo apenas de apropria-ção, já que a visão a respeito da predisposição feminina ao sobrena-tural fora encarado entre essas mulheres tanto pela possibilidade dese intervir nos destinos para além da religião oficial como ferra-menta de acusação ante o santo ofício. Neoconversas? Judaizantes?Cristãs devotas? Feiticeiras? Praticantes de pactos demoníacos?impossível de reduzir a uma possibilidade única. talvez o todo; defidúcia (caso a caso), a parte... se não há respostas efetivas para tudoisto, serve ao menos a certeza de que, ao seu modo, mostraram queera possível resistir e construir espaços numa sociedade dominadapelos homens.

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98 sCott, Joan Wallach, Gênero: uma categoria útil de análise histórica, Educação & Reali-dade, Porto alegre, vol. 20, n.º 2, jul./dez, pp. 71-99, 1995. p. 89.

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