Antevendo Mais Lusofonia e outras memórias lusófilas - Jorge ...
Memórias: cineclube e ditadura em Belém do Pará
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Memórias: cineclube e ditadura em Belém do Pará
Líria Natasha Sena do Vale ([email protected])
Universidade Federal do Pará (UFPa)
Marcelo da Costa Tavares ([email protected])
Universidade Federal do Pará (UFPa)
Resumo:
Este trabalho apresenta a trajetória da atividade
cineclubista em Belém do Pará durante o período da ditadura
militar no Brasil (1964 – 85). Dentro desse período a
Associação Paraense de Críticos Cinematográficos (APCC) criou
o seu próprio cineclube (1967) que foi, por muito tempo,
durante a ditadura o mais longevo espaço de exibição e debate
de filmes da capital do estado. Através do levantamento da
memória dos seus sócios e frequentadores, o estudo demonstra
o caráter de resistência intelectual e cultural desse
cineclube, que configurava um espaço de formação da visão
crítica dos envolvidos para além da realidade de opressão do
regime.
Palavras-chave: Memória. Ditadura. Resistência.
Abstract:
This paper presents the trajectory of the film club activity
in Belem during the military dictatorship in Brazil (1964-
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85). Within this period the Para Association of Film Critics
(APCC) has created its own film club (1967) which was, for a
long time, and throughout the dictatorship the longest-lived
place of exhibition and discussion of films from the state
capital. By surveying the memory of its members and goers,
the study shows the character of intellectual and cultural
resistance of this film club, which configured a place for
the formation of critical vision of those involved beyond the
oppression reality of the regime.
Key words: Memory. Dictatorship. Resistance.
Introdução
Nosso foco de estudo encontra paralelo no trabalho de
Rose Clair Matela que em seu livro Cineclubismo: Memórias dos
anos de chumbo, coleta memórias de integrantes de cineclubes
dos anos 1970, período no qual afirma haver emergido “junto
com outros movimentos de resistências – o movimento
cineclubista nas principais capitais brasileiras” (2008, p.
19). Tais movimentos segundo a autora emergiam da realidade,
questionando a política econômica do governo militar e foram
marcados por seu caráter de iniciativa popular (movimentos de
bairro, trabalhadores da construção civil, donas de casa,
moradores de favela e etc.), autonomia e até certa unidade
política (2008, p. 64).
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Essa capacidade do cineclube de mobilização para uma
“educação crítica do olhar” no Pará se evidenciou formalmente
em 1955 com o Cineclube “Os Espectadores”. Esse meio cinéfilo
congregou alguns dos maiores nomes das artes do estado tais
como Benedito Nunes, Maria Sylvia Nunes, Mário Faustino e Max
Martins, entre outros, buscando formar um público que
apreciasse o cinema como arte, e além, “posto que a
satisfação estética deveria juntar-se a ‘consciência do
público esclarecido’”, contudo, assim como muitos clubes de
cinema do período, os espectadores fracassaram na sua missão,
já que o público em geral não conseguia acompanhar o nível de
erudição dos debates (CARNEIRO, 2012).
Mesmo não tendo durado tanto tempo, o vanguardismo dos
Espectadores fez herdeiros. Uma nova geração de intelectuais,
literatos e músicos fizeram crescer e seguir para outros
rumos a crítica cinematográfica em Belém. Nomes como Pedro
Veriano, Luzia Miranda Álvares, Vicente Franz Cecim, João de
Jesus Paes Loureiro, Januário Guedes foram alguns destes
aficionados por cinema que mantiveram as atividades
cineclubistas na cidade justamente no tenebroso momento
político da ditadura militar e, podemos afirmar que o momento
mais rico para o cineclube no Pará se desenvolveu nesse
período.
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Levando em consideração o desejo de expor a história do
cineclubismo no Pará e mais especificamente, em Belém nos
tempos da ditadura militar (1964-1985), intentamos adentrar
neste meio fecundo de conhecimento que foi o cineclube da
APCC (1967-1985) a fim de explorar as experiências de seus
organizadores e frequentadores neste período tenebroso, porém
culturalmente rico da história do Brasil.
Ao buscarmos fontes impressas (certificados de censura
concedidos aos próprios exibidores do cineclube, listas de
associados, bilhetes de exibição, cartazes etc.) esbarramos
numa incrível ausência delas, como que por herança desta
tenebrosidade. Tínhamos, porém, à disposição da
historiografia que desejávamos construir, bom número dos
grandes nomes deste cineclube (tanto organizadores quanto
frequentadores), o que nos levou a consultar as
possibilidades do uso da memória como fonte para nossa
pesquisa.
Rose Clair Matela utilizou a memória como principal
fonte em sua pesquisa de doutorado e teorizou sobre sua
utilização ressaltando a descentralização de conhecimento
como uma das potencialidades da narrativa.“Proporciona ainda o surgimento de históriasinterditadas, de interpretações e leituras demundo diverso do instituído, que fraturaconhecimentos hegemônicos e ultrapassa o discursooficial, contribuindo para a ampliação do
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conceito de verdade científica.” (MATELA, 2008,p. 23).
Esse conhecimento jamais seria visitado fora do diminuto
círculo em que foi desenvolvido sem o uso do recurso da
memória, pois embora houvesse uma releitura dos documentos
oficiais a fim de criar a história do cineclube no período
ditatorial brasileiro, perderíamos a significação dada pelos
sujeitos dessa história. Estaríamos perdendo o benefício de
discutir história contemporânea, isto é, entrar em contato
com os processos interessantes para nós por meio de quem os
vivenciou.
A partir do uso da fonte oral, com entrevistas
temáticas, nossa metodologia foi, portanto qualitativa,
aquela que “situa-se no terreno da contrageneralização e
contribui para relativizar conceitos e pressupostos que
tendem a universalizar e a generalizar as experiências
humanas.” (DELGADO, 2010, p. 18).
Perfil dos entrevistados
Valorizar a experiência humana como fonte histórica é
percorrer um caminho polêmico, historiograficamente falando,
porém a fertilidade desses relatos pode ser recompensadora
quando ela nos revela visões diferenciadas sobre um dado
período. Como afirma Matela “O uso das narrativas possibilita
a valorização dos saberes oriundos da vida cotidiana dos
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diferentes sujeitos sociais” (2008, p. 23). Nesse sentido
buscamos coletar parte das experiências de vida desses
agentes e reconstruir a história sob nova perspectiva. Cabe
então, portanto, tratar da trajetória profissional e da
relação com o cinema que cada um dos entrevistados teve, além
da descrição de como as entrevistas ocorreram. Pedro
Veriano é médico por profissão, e um aficionado por cinema.
Exibia filmes na garagem de sua casa desde 1950 – era o
chamado Cine Bandeirante (VERIANO, 1999). A relevância das
experiências de Veriano está na sua relação íntima com o
cinema e com a atividade cineclubista em Belém. Sua história
de vida se confunde com parte da própria história do cinema
na capital Paraense.
Entrevistamos Veriano no seu apartamento após termos
marcado uma visita com sua esposa Prof.ª Luzia Miranda, com
quem já tínhamos contato na universidade. A conversa
aconteceu na manhã quente do dia 16 de julho de 2014. Na
ocasião fomos gentilmente recebidos por Luzia e Veriano, que
infelizmente, por conta da saúde frágil, não poderia ficar
horas a nos contar suas histórias sobre cinema.
Veriano tornou-se grande nome da crítica cinematográfica
em Belém. Foi colunista do jornal A Província do Pará e do O
Liberal, além do O Jornalista (jornal do Sindicato dos
Jornalistas profissionais do Pará). Foi também fundador do
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cineclube da APCC (espaço foco da nossa pesquisa, daí a
importância das memórias de Pedro Veriano) e da firma Cinema
de Arte do Pará Ltda. De 1951 a 1970 produziu alguns curtas-
metragens, além de ser autor de livros sobre cinema e
cineclube em Belém (VERIANO, 1983). Atualmente, a produção de
Veriano sobre o cinema no Pará é a principal referência sobre
o tema, sendo amplamente consultado para fins acadêmicos.
Nossa segunda entrevistada Prof.ª Luzia Miranda Álvares,
constitui parte importantíssima da história do movimento
cineclubista em Belém, pois sua formação como crítica de
cinema e cientista política lhe proporcionou uma mentalidade
crítica para além do regime político ditatorial. É professora
doutora aposentada da UFPA da Faculdade de Ciência Política,
feminista e coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Eneida
de Moraes (GEPEM-UFPA), que discute questões de gênero.
Assina a coluna Panorama, no Jornal O Liberal, há 41 anos.
Organizou mostras de cinema amador, que levaram alguns
cineastas de Belém ao profissionalismo. Foi Representante
Regional da EMBRAFILME (Empresa Brasileira de Filmes S A.) de
1977-81. Foi, por vezes, representante do cineclube da APCC
em reuniões nacionais (VERIANO, 1983).
Conversamos com a Prof.ª Luzia numa sala de aula no
IFCH-UFPA (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-UFPA) na
tarde do dia 20 de outubro de 2014, durante uma pausa de uma
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reunião no GEPEM – logo após a entrevista ela retomou seu
trabalho junto ao grupo. Registrar a memória da Prof.ª foi
parte relevante da pesquisa, pois além da sua experiência
profunda com o cinema e com a atividade cineclubista em
Belém, este artigo só foi possível através dos seus
encaminhamentos e orientações. Suas memórias confirmam o
valor educacional das experiências com os clubes de cinema e
com a formação de uma mentalidade crítica através da prática
cineclubista.
Vicente Franz Cecim – como prefere ser chamado – foi
nosso último entrevistado. Marcamos nossa conversa para
acontecer em 30 de novembro de 2014, no espaço turístico Ver-
o-rio, em Belém, ás 17hs. A entrevista ocorreu amigavelmente
até às 23hs, pois ele – com tantas experiências e reflexões
profundas – muito tem a nos falar sobre literatura, cinema e
o universo.
Vicente é escritor e recebeu o Prêmio Revelação de Autor
da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) pelo livro
Os animais da terra (ed. Semec, Belém, 1980). A noite do Curau,
versão resumida do terceiro livro de Andara, recebeu Menção
Especial no Prêmio Internacional Plural, no México, em 1981.
Em 1988, pelo conjunto da obra, recebeu o Grande Prêmio de
Crítica da APCA. Publicou em 2001, Ó Serdespanto (ed. Íman,
Lisboa), com dois novos livros, em Portugal, apontado pelo
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jornal O Público (Lisboa) como um dos melhores do ano. E
ainda Continua escrevendo, seu último livro foi publicado em
dezembro do ano passado.
Seu percurso cinéfilo/cineclubista justamente no recorte
de tempo que queremos destacar inclui a criação da Associação
de Críticos Amadores (ACA), na década de 1960, e também a
produção de uma série de cinco filmes em Super 8, de 1975 a
1979 (VERIANO, 1983). Foi, além disso, colunista de cinema do
jornal O Estado do Pará, em 1977.
Primeiras experiências com cinema
Na segunda década do século XX, Belém já contava com
doze cinemas espalhados pela cidade, incluindo o fino Olympia
(abril de 1912). No final da década de 1930 somente a mesma
empresa possuía, além do Olympia, mais sete cinemas. É fácil
presumir que o profundo contato de nossos entrevistados com o
cinema ocorreu por causa deste movimento intenso da sétima
arte registrado pela historiografia local. Luzia: “em Abaetetuba primeiro veio o Cine Natan,do Sr. Crispim Ferreira, e depois o CineImperador, do Sr. Abel Guimarães, eles exibiamfilmes do Carlitos, dos irmãos Marx (...) entãofoi assim que deu inicio esse meu gostar decinema. Também quando nós íamos, a famíliainteira ia. Então era uma atividade cultural dedivertimento, que integrava a família, era muitointeressante.” (informação verbal)1
1 Entrevista concedida por ÁLVARES, Luzia Miranda. Entrevista 1. [out.2014]. Entrevistadores: Líria Natasha Sena do Vale e Marcelo da CostaTavares. Belém, 2014;ANAIS IV SELCIR (ISSN – XXXX) Campus Guamá –Belém -PASeminário Nacional Literatura e Cinema de Resistência Universidade Federal do ParáDessilenciando os Golpes!!! 01 a 05 de dezembro de 2014
Luzia contou-nos que em Abaetetuba ia a sessões ver
comédias de Charles Chaplin e dos irmãos Marx2 além de
assistir filmes educativos no SESP3. Desde o início de seu
relato, sua trajetória a levava a ser quem é. Se esperamos da
narrativa pessoal (ou de qualquer narrativa considerada
humana) um caráter de relato imparcial do fato ocorrido não
devemos recorrer à história para legitimá-la como tal. “A
memória torna as experiências inteligíveis, conferindo-lhes
significado. Ao trazer o passado até o presente, recria o
passado, ao mesmo tempo em que o projeta no futuro.” (AMADO,
1995, p. 131-132). Como qualquer fonte histórica a memória
está presa às interpretações do presente sobre os
acontecimentos do passado (CARR, 1976).
No caso de Veriano temos bastante informação de sua
própria bibliografia. Sua obra Fazendo Fitas se propõe ser um
relato de suas memórias, e é lá que fica clara a sua
realidade: rapaz de classe média alta, morador da capital
paraense. “(...) ganhei minha primeira projetora ‘deverdade’. Uma Movie-Mite de 16mm. O primeiro
2 Os irmão Marx (Chico, Harpo, Groucho, Gummo e Zeppo) eram um grupo deirmãos comediantes no teatro desde os anos 1920, mas depois ingressaramno cinema e na TV americana. Participaram da passagem do cinema americanomudo para o falado.3 Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), posteriormente denominadoFSESP. Esse órgão prestou relevantes serviços à saúde pública do país.Criou diversos hospitais em cidades ribeirinhas da Amazônia, Vale do SãoFrancisco e Rio Doce. (disponível emhttp://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/a-historia-da-sesp);ANAIS IV SELCIR (ISSN – XXXX) Campus Guamá –Belém -PASeminário Nacional Literatura e Cinema de Resistência Universidade Federal do ParáDessilenciando os Golpes!!! 01 a 05 de dezembro de 2014
filme que exibi foi, por coincidência, o desenhopioneiro com Mickey Mouse, se não me engano,chamado ‘Steamboat Line’ (ele fazia um piloto debarco)” (VERIANO, 2006, p. 86)
Pedro Veriano chegou a afirmar que, em média assistia
mais de um filme por dia no auge de sua atuação no cineclube,
na crítica de cinema e na APCC. Tudo começou muito cedo.
Luzia Miranda contou que ele ajudava o professor de colegial
dela a fazer exibições nas aulas. Maneira essa que também
encontrou de vê-la mais vezes.
Vicente Cecim foi um frequentador inveterado de cinemas
e cineclubes de Belém. Foi através do Cine Bandeirantes, que
teve contato direto, segundo nos relatou na entrevista, com
muitos clássicos do cinema mundial. Suas primeiras
experiências com cinema envolvem a influência inspiradora de
Yara Cecim 4, sua mãe, e do apaixonado por cinema, seu pai,
Miguel Cecim. Vicente: “Eu comecei a me interessar por cinemaporque meu pai – ele adorava cinema – naqueletempo minha família sentava na porta de casa emcadeiras e ele contava os filmes (...) ele eminha mãe viviam no cinema. Ele dizia: vocêsquerem comédia; western; romance; drama? Contavaminuciosamente, imitando até a voz dospersonagens” (informação verbal)5
4 Escritora paraense, nascida no município de Santarém. Sua carreirapública como escritora começou aos sessenta anos a partir da qual seconsagrou como contadora de histórias amazônicas fantásticas. 5 Entrevista concedida por CECIM, Vicente Franz. Entrevista 3. [nov.2014]. Entrevistadores: Líria Natasha Sena do Vale e Marcelo da CostaTavares. Belém, 2014;ANAIS IV SELCIR (ISSN – XXXX) Campus Guamá –Belém -PASeminário Nacional Literatura e Cinema de Resistência Universidade Federal do ParáDessilenciando os Golpes!!! 01 a 05 de dezembro de 2014
Para ele mesmo a influência de seus pais o empurrou a
pensar como pensa: ouvia filmes de seu pai na porta de casa e
depois histórias fantásticas de sua mão na rede. Nas palavras
de Cecim, “O que eu vou falar pra vocês é a partir do que eu
sou, como eu sou e de como eu percebo aquele tempo, então não
sei até que ponto é real, até que ponto é sonho, até que
ponto é lúdico”6
Formação de um público especial
Os clubes de cinema possuem características especificas
que os tornam especialmente singulares. Destacamos a
experiência educativa e formadora do cineclube da APCC nesta
sessão, pois como ficará evidente, os debates cineclubistas
possuem imenso potencial transformador e comunicacional, já
que a interação inerente e intrincada num determinado
contexto sócio-histórico, segundo Veruska Silva, “desencadeia
processos de significação ao possibilitar aprendizados que
passam a orientar comportamentos, que por sua vez, encontram
permanências” (2009, pag. 146).
No vai e vem dos argumentos se exercita a capacidade de
defender, através da lógica, um pensamento ou ideia. Nas
trocas cineclubistas crescemos a partir do debate. É o que
destaca a Prof.ª Luzia Miranda, ao relatar como começou a
adentrar o universo dos clubes de cinema:
6 Idem.ANAIS IV SELCIR (ISSN – XXXX) Campus Guamá –Belém -PASeminário Nacional Literatura e Cinema de Resistência Universidade Federal do ParáDessilenciando os Golpes!!! 01 a 05 de dezembro de 2014
Luzia: “Quando nós casamos (Pedro Veriano), eletinha um cineminha, o Cine Bandeirantes (...)Então, eu fui criando uma visão crítica. Eu nãotinha nenhuma teoria, depois é que eu fui estudar(...) a discussão que nós fazíamos em casa, antesdos cineclubes, era uma discussão de altaqualidade. Nós frequentávamos o cineclube ‘OsEspectadores’, qualquer cineclube que fossecriado sempre fomos, não só pra valorizar, mastambém pra assistir.”
Essa construção que se dá no espaço do cineclube não
ocorre pela simples exposição de uma determinada obra
cinematográfica. As experiências se evidenciam nos discursos
e as trocas de opinião revelam, muitas vezes, aspectos da
obra que não seriam percebidos senão pelo processo de
compartilhamento de críticas. Diante dessas dinâmicas é
permitido aos agentes reagir, participar, simpatizar ou
antipatizar e esse movimento favorece a incorporação de
significados que nortearão a relação dos indivíduos, tanto
com o cinema, quanto entre si e com outros campos da
existência (SILVA, 2009).
Essa formação proporcionada pelo movimento cineclubista
encontra eco nas experiências dos nossos entrevistados, pois
todos tiveram profícuas carreiras na crítica cinematográfica
em Belém. Assim, o cineclube constitui um meio “pedagógico”
que influencia e constitui o individuo humanisticamente, como
nos mostra Milene Gusmão “a ação educativa desses clubes,
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associada a uma rede de socialização mais ampla, constitui um
cenário de aprendizado não-formal de cinema” (2008, pag. 13).
Vicente Cecim confirma esse aspecto dos clubes de
cinema, “o cineclube pra mim era onde eu tinha acesso ao
cinema de qualidade, assim como a biblioteca era onde eu
tinha acesso a literatura de qualidade”7, assim ocorre a
construção de um espaço de cinema alternativo e autônomo.Vicente: “Em Belém havia um predomínio muitogrande do cinema comercial, era difícil ver umacoisa rara, que tivesse contribuindo para alinguagem do cinema como Intolerância, doGriffith, ou o Encouraçado Potenkin (...) Compreio livro A História do Cinema do Georges Sadoul8
que me mostrou tudo isso (...) gostamos muitodaquilo e com um amigo criamos uma Associação deCríticos Amadores (ACA) escrevíamos e mandávamospros críticos profissionais. Rafael Costa, AcyrCastro (...) Descobrimos um dia que Pedro Verianofazia projeções na garagem da casa dele, e depoisdiscutíamos os filmes. O público era variável,tinha Francisco Paulo Mendes, Benedito Nunes(...) Ali assistimos filmes que não se viam noscinemas comerciais (...) Depois surgiu ocineclube da APCC, que praticamente nasceu dagaragem do Pedro.”
O cineclube da APCC foi extremamente fértil, nesse
sentido, ao longo da sua atuação na cidade, já que durante o
decorrer da ditadura militar brasileira as atividades de
cunho cultural tornaram-se mais escassas, e a censura
7 Entrevista cedida por CECIM, Vicente Franz. 8 Escritor francês, autor da História geral do Cinema, obra que possuiseis tomos cujo último foi publicado em 1954.ANAIS IV SELCIR (ISSN – XXXX) Campus Guamá –Belém -PASeminário Nacional Literatura e Cinema de Resistência Universidade Federal do ParáDessilenciando os Golpes!!! 01 a 05 de dezembro de 2014
“praticada no Brasil, de 1964 a 1988, não foi apenas
repressão localizada, mas mecanismo essencial para a
estruturação e a sustentação do regime militar” (PINTO, 2006,
pag. 3). Após os primeiros anos de regime, o aumento do rigor
na censura não impediu que muitas obras artísticas fossem
divulgadas. Era a fase em que as metáforas e as alegorias
tornaram-se ponto de resistência (PINTO, 2006). “Os anos do APCC formaram plateia na cidade.Muitos cursos foram administrados, muitas sessõesespeciais foram realizadas, muitos ciclos dediretores, gêneros e países produtores; umuniverso de cinema tratado de forma artesanal: eucomandando os projetores de 16 mm; Luzia, minhamulher, funcionando a bilheteria; e as nossascolunas nos jornais noticiando a programação.”(VERIANO, 2006, p. 76)
No período acima citado, o esquema cineclubista da APCC
não interrompeu suas atividades e formou um público fiel e
sempre presente nos debates.
Cineclube da APCC e a ditadura (1967-85)
A já citada estudiosa de cineclube, Rose Clair Matela,
ao tratar do florescimento do cineclube no contexto do regime
militar, “O cineclubismo foi configurando-se, a meu ver, numa
experiência que sutilmente colaborava para quebrar algumas
amarras e mordaças, concorrendo assim para o estremecimento
do contexto sócio-político que vivíamos” (MATELA, 2008, p.
20). Segundo os relatos de participantes de cineclubes
registrados por ela, essa prática atuou por vezes em conjunto
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com as necessidades de comunidades, atendendo anseios por
lazer, por exemplo, mas também usando filmes para
conscientizar e organizar tais grupos em torno de demandas
sociais referentes a eles mesmos (2008, p. 65).
Como já dissemos o cineclube da APCC nunca possuiu um
caráter de frontal combate ao regime ditatorial, mas quebrou
amarras exibindo muitos filmes proibidos ou com certificados
de censura vencidos, e mordaças sendo um espaço onde o limite
para o debate estético e político não era ditado pelos
militares. “O Cine Grajará”, conta Pedro empolgado, “que mais
vai interessar vocês: um cineclube na base naval em pleno
governo militar”9. Seu depoimento segue relatando a
necessidade que havia de se apresentar o programa do
cineclube toda semana à Polícia Federal, além de sempre ter
em mãos o certificado de censura atualizado de cada filme, o
qual continha a classificação indicativa e os devidos cortes
que a película deveria ter para ser exibida. Ocorre que não
havia embargo algum ao cineclube quando se exibia um filme
proibido pela censura: “Macuaníma, por exemplo, tinha mais de
treze cortes”, mas no Guajará “esse passava sem certificado”,
ou seja, completo.
Ele estava muito certo em pensar que a experiência no
Cine Guajará nos interessaria. Interessou-nos desde nossa9 Entrevista concedida por VERIANO, Pedro. Entrevista 1. [jul. 2014].Entrevistadores: Líria Natasha Sena do Vale e Marcelo da Costa Tavares.Belém, 2014;ANAIS IV SELCIR (ISSN – XXXX) Campus Guamá –Belém -PASeminário Nacional Literatura e Cinema de Resistência Universidade Federal do ParáDessilenciando os Golpes!!! 01 a 05 de dezembro de 2014
leitura de Cinema no Tucupi, quando ele diz, no capítulo
sobre cineclubes, ser aquele um cinema frequentado por
esquerdistas e onde a exibição era acima de tudo cinema de
arte (VERIANO, 1999, p. 44). “O comandante da base só dizia
pra mim o seguinte: 'passa tudo menos o Encouraçado
Potenkin’, e eu passei. Passei até um festival de filmes
soviéticos”10 relata, Veriano.
É manifesto a todos os conhecedores da crítica
cinematográfica paraense que Pedro Veriano e Luzia Álvares
nunca assumiram posicionamento ideológico a favor ou contra o
socialismo, entretanto na entrevista Luzia falou largamente,
quando nos explicava porque decidiu graduar-se em Ciências
Sociais, de seu contato e amizade com pessoas politicamente
assumidas de esquerda durante a ditadura.Luzia: “eu gostava muito das discussões em casaporque esse pessoal de esquerda eram muito nossosamigos. Isidoro (Alves), João de Jesus PaesLoureiro, além do Roberto Cortez e RonaldoBarata, (...) Todos eles tinham uma visãoextremamente crítica da sociedade”
Vicente Cecim relata também a liberdade dos debates e a
proximidade com os nomes da esquerda paraense. Após narrar
animadamente o filme “Invasores de Corpos” (Philip Kaufman,
1978), ele contou:Vicente: “Gostava demais desse filme. (…) umdebate começou e eu falei muito sobre o filme,
10 Idem.ANAIS IV SELCIR (ISSN – XXXX) Campus Guamá –Belém -PASeminário Nacional Literatura e Cinema de Resistência Universidade Federal do ParáDessilenciando os Golpes!!! 01 a 05 de dezembro de 2014
que denunciava a alienação, a opressão total. E oFrancisco Paulo Mendes (...) se levantou e disse:'Nada disso! É uma clara propaganda americanacontra os comunistas, com uma propostaideológica', depois se levantou e foi embora”
Depois disso, segundo ele, a discussão se prolongou
entre os que ficaram e mais tarde ele falou com Francisco
Mendes e explicou melhor seu posicionamento, “era comum a
gente se contrariar, porque o cineclube era sobretudo um
espaço de despertar, de tomada de consciência”.
Destacamos a experiência de Luzia Miranda, no entanto,
para reforçar o papel educacional e formador do cineclube,
dando frutos neste momento de liberdade cerceada que foi a
ditadura no Brasil.
A partir destes relatos escolhemos compreender o grupo
que se reunia no espaço do cineclube como pessoas que
compartilhavam experiências comuns e que apesar de terem se
posicionado de diferentes formas, não eram indivíduos
antagônicos entre si.“Outra característica da memória que a aproximamuito da história é sua capacidade de associarvivências individuais e grupais com vivências nãoexperimentadas diretamente pelos indivíduos (…):são vivências dos outros das quais nosapropriamos tornando-as nossas também (…). Nossasmemórias são formadas de episódios e sensaçõesque vivemos e que outros viveram.” (AMADO, 1995,p. 132)
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É claro que o regime restringiu mais a liberdade de
opinião e expressão do que a liberdade intelectual, mas
nenhum destes elementos costuma se afastar demais um do
outro. Não é atoa que foram os estudantes do ensino superior
os maiores envolvidos nas cidades com guerrilhas e movimentos
de combate direto à ditadura (D'ARAÚJO, 1994). Como disse
acima Janaína Amado, compartilhar confunde as experiências
dos indivíduos porque as memórias sempre são sociais (AMADO,
1995).
Em vários episódios relatados pelos entrevistados fica
clara a consciência dos militares sobre o grupo que
frequentava o cineclube e o teor de algumas discussões feitas
ali. Pedro Veriano contou em tom de galhofa que constrangeu
algumas vezes representantes da Polícia Federal e
supostamente infiltrados no meio da plateia. Vicente Cecim
também demonstrou subestimar os militares dizendo que “eles
nem sabiam nada sobre cinema”. Felizmente, nada de grave
ocorreu nesses episódios, ninguém foi preso ou foi obrigado a
deixar o país, contudo os relatos sobre a presença de agentes
da polícia confirmam a “ameaça” representada pelo cineclube
da APCC.Luzia: “Eles mandavam sempre alguém para assistiros filmes e a gente sabia, a gente não conheciaquem era (...) numa mostra nós descobrimos umapessoa, que era inclusive namorado de uma amigaminha. Um dia Pedro foi até a Polícia Federal e o
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encontrou lá (...) tínhamos uma suspeita de que onamoro foi um meio de se aproximar e observarmelhor.”.
A Prof.ª Luzia Miranda nos relatou um caso de
perseguição, que mostra claramente o posicionamento e atuação
do governo militar contra atividade cineclubista da APCC (que
envolvia também os trabalhos de crítica cinematográfica nos
jornais), quando da publicação de uma entrevista com o
presidente do sindicato dos jornalistas (SINJOR) à época,
sobre cinema político. Na ocasião, segundo Luzia, os
policiais montaram um esquema para que ela não pudesse estar
acompanhada sequer de um advogado durante seu depoimento.
Luzia: “em 1974 eu fiz uma entrevista sobrecinema político com o Presidente do sindicato dosJornalistas, João Batista Figueira Marques (eleera de extrema esquerda) e foi publicada. 15 diasdepois fui intimada a comparecer a PolíciaFederal para responder algumas perguntas. Ocoronel responsável disse que a entrevista estavaincurso nas leis de segurança nacional (...) euestava com medo, não me lembro das perguntas.(...) fiquei com medo pois sabia que váriosamigos haviam sido presos. Pensei em deixar ojornal pois passei vários dias sem conseguirescrever.”
Após esses acontecimentos, Luzia não desistiu de seus
trabalhos no cineclube, nem na crítica, completando este ano
42 anos de publicações sobre cinema nos jornais locais. Sua
atuação representa muito bem o caráter da resistência
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exercida pelos membros do cineclube da APCC. Um movimento com
características crítico-intelectuais que defendia a liberdade
de acesso a qualquer tipo de conhecimento, no caso aqui o
cinematográfico, e totalmente contra qualquer forma de
alienação do contexto sócio-político, como concluiu Vicente
Cecim durante sua entrevista.
Vicente: “O cineclube era um espaço de ver filme, dediscutir filme, sem interferência da ditadura (...)entre a ditadura e a indústria Hollywoodiana, qual apior? Resistíamos passando filmes que eram proibidos(...) exibir cinema de arte, que abre a consciência, aimaginação, a criatividade da pessoa, era umaresistência a alienação, por que houve uma baixa naprodução cultural do país (...) mantínhamos assim umacoisa viva, como se não tivesse uma ditadura.”
A construção dessa resistência se deu de uma maneira
sutil e contribuiu sobremaneira para que os entraves
político, culturais e sociais desse período, de alguma forma,
não se sobressaíssem à capacidade das pessoas de reagirem a
atitudes desumanas, como as praticadas pelos militares
durante a ditadura brasileira. Tudo através do espaço
cineclubista, que reforça a maior das qualidades do homem, a
razão.
Conclusão
Esta pesquisa constitui uma pequena contribuição a pouca
literatura produzida sobre a história do cinema no Pará, com
o objetivo de trazer à tona as histórias de vida desses
personagens importantes da nossa história, através de suasANAIS IV SELCIR (ISSN – XXXX) Campus Guamá –Belém -PASeminário Nacional Literatura e Cinema de Resistência Universidade Federal do ParáDessilenciando os Golpes!!! 01 a 05 de dezembro de 2014
memórias sobre o período. Esta fonte que é a memória deles
agora se abre a fim lançar luz sobre mais um ponto que o
regime militar obscureceu.
Não lançamos concepções novas sobre clubes de cinema. Só
deduzimos os frutos óbvios da reunião de um grupo interessado
por arte e cultura, que construiu seu nome em meio a um
período onde a cultura e a arte se viram profundamente
censuradas.
Tratamos então do cineclube como espaço de contínua
formação intelectual e social: a linguagem cinematográfica no
centro e a liberdade de debater todas as possíveis questões
levantadas pelo filme. Uma trajetória marcada por esta
experiência alavanca o indivíduo a um nível de crítica sobre
todos os aspectos do mundo ao redor, e mesmo na dimensão
íntima. Não imaginamos alguém que viveu tudo isso fazendo
colocações sem ter a capacidade de sustentá-las, e pensamos
assim após o contato com estes três personagens.
Também pensamos no cineclube como essa reunião com
grande potencial subversivo, e isso porque a própria
discussão sobre linguagem cinematográfica, indústria
cinematográfica, cinema comercial e de arte desperta uma
postura crítica. Depois as várias experiências que
encontramos enquanto pesquisávamos trabalhos acadêmicos sobre
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o tema demonstraram como a receita do cineclube não varia
muito de resultado.
Portanto, embora nossa pesquisa precedente sobre
cineclube e cineclube na ditadura já nos sugerisse que
encontraríamos em Belém esse perfil de reunião de cinéfilos,
brotaram dos relatos características peculiares de formação e
subversão. Em Belém o único ponto de conformidade do grupo
era o interesse por cinema, além disso, tudo era
heterogeneidade: Pedro Veriano não insiste em nenhum discurso
político, sempre se envolveu profundamente com o cinema;
enquanto Luzia Miranda de maneira acadêmica possui um
interessante histórico de ativismo feminista; já Vicente
Cecim nem gosta do acadêmico, possui uma sensibilidade
artística amplamente reconhecida.
Espera-se que este estudo contribua para o aumento de
pesquisas na área, e que a historiografia que desbrava os
caminhos menos percorridos ganhe destaque, para que não
cometamos o grave erro de esquecer grandes nomes da nossa
história.
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2014. Entrevistadores: Líria N. Sena do Vale e Marcelo daC. Tavares. Belém, 2014.
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