Materialismo Histórico e Determinismo - revisitando uma polêmica
MARCUSE E FREUD: uma interpretação polêmica - um estudo de Eros e Civilização, 2003
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS
MARCUSE E FREUD: uma interpretação polêmica
- um estudo de Eros e Civilização
MARILIA MELLO PISANI
ORIENTADOR: WOLFGANG LEO MAAR
SÃO CARLOS SP 2003
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Sumário
Introdução ................................................................................................................................ 2
Capítulo I
A Teoria Crítica da sociedade desenvolvida pela Escola de Frankfurt ............... 8
Capítulo II
Marcuse e a Psicanálise .................................................................................... 24
1. Marxismo e Psicanálise na obra de Marcuse ......................................................... 24
2. A crítica de Paul Robinson .................................................................................... .27
2.a. A crítica ao Revisionismo Neo-Freudiano ................................................... .29
2.b. A Dessublimação Repressiva ................................................................... .33
2.c. A Crítica Imanente ........................................................................................ 45
2.d. Mais-Repressão e Princípio de Rendimento (ou A Crítica a Freud)...... 49
Capítulo III
A Hipótese da Transformação Não-Repressiva das Pulsões ........................... 60
1. Exposição da hipótese de Marcuse ........................................................................ 60
2. A crítica de Jean Laplanche ................................................................................... 77
3. A crítica de Bento Prado Jr. ................................................................................... 80
4. A particularidade da interpretação marcuseana ..................................................... 82
4.a. A crítica do Hedonismo e do Idealismo Filosófico ....................................... 84
4.b. O contexto da interpretação marcuseana (resposta às críticas) ..................... 91
Capítulo IV
A Crítica do Marxismo ................................................................................. 100
Conclusão ............................................................................................................................. 112
Bibliografia .......................................................................................................................... 121
2
Introdução
O livro Eros e Civilização, escrito em 1955 e publicado pela primeira vez nos
Estados Unidos com o título Eros and Civilization. A Philosophical Inquiry into Freud,
surgiu a partir de uma série de conferências dadas por Marcuse na Washington School of
Psychiatry no período de 1950 a 1951 e só posteriormente foi publicado na Alemanha. Este
livro foi alvo de várias polêmicas, tanto por parte dos marxistas ortodoxos, quanto dos
psicanalistas. Nele está contida uma interpretação singular da teoria freudiana, que obedece,
por sua vez, ao contexto teórico formulado pela Escola de Frankfurt: a Teoria Crítica da
Sociedade.
A obra Eros e Civilização permite múltiplas abordagens. Entretanto, nós estamos
interessados apenas em uma determinada perspectiva. Por isso não nos atentaremos a todas
as questões que ela apresenta, mas apenas às que se mostram relevantes para a discussão.
Como explicitado já no próprio título desta dissertação, estamos interessados na
polêmica que a interpretação da obra de Freud realizada por Marcuse produz. Numa
primeira leitura desatenta a interpretação de Marcuse pode parecer uma grande fantasia,
romantismo, utopismo e otimismo ingênuo. Esta foi inclusive a perspectiva da qual partiu
este trabalho: no início estávamos interessados em criticar a interpretação excessivamente
otimista de Marcuse, na medida em que ela se revelava oposta ao pessimismo realista
freudiano, transfigurando completamente o que seria a contribuição de Freud. Afirmávamos
que ao introduzir concepções exteriores à psicanálise freudiana na tentativa de historicisá-
la, Marcuse ultrapassa o que constitui a base essencial da teoria de Freud: apreender o
homem em sua constituição psíquica universal . Na primeira versão deste projeto, escrita
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em 1999, criticávamos a transmutação de uma teoria essencialmente anti-utópica (tal como
o freudismo) em um utopismo ingênuo .
Mas a partir das leituras realizadas para esta dissertação, foi possível observar que a
coisa não era assim tão simples . A interpretação de Marcuse, longe de ser ingênua, era
extremamente realista e continha um conteúdo essencialmente político, ancorado em uma
teoria dialética que não podia ser simplesmente reduzida a uma leitura superficial.
Enquanto marxista não ortodoxo Marcuse viu na teoria freudiana a possibilidade de uma
reinterpretação do marxismo, sendo esta imposta pelas transformações históricas ocorridas
desde a época de sua formulação. Mostramos que, ao contrário de algumas críticas,
sobretudo a de P. Robinson, Marcuse não procurou unir Marx e Freud em Eros e
Civilização: sua obra deve ser analisada no contexto da crítica marxista, mas de um
marxismo combinado a uma preocupação com o indivíduo, possibilitada pela teoria
freudiana.
Este trabalho foi desenvolvido em quatro capítulos que correspondem
respectivamente a quatro questões principais. Estas questões, por sua vez, foram impostas
pelo objetivo estabelecido: a saber, analisar as diversas polêmicas que a obra Eros e
Civilização suscitou, tentando compreendê-la a partir de seu próprio fundamento teórico.
Convém sistematizar estas questões apenas para facilitar a compreensão deste trabalho. A
seguir, desenvolverei brevemente o conteúdo principal dos capítulos correspondentes a
elas.
1. O que faz da teoria freudiana uma teoria interessante para Marcuse e para a teoria
crítica?
2. Partindo das objeções de P. Robinson, será que na interpretação da teoria freudiana
Marcuse introduz de fora concepções históricas, políticas e sociológicas, tal como
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faz o revisionismo neo-freudiano? Se não, como se explicam os conceitos de mais-
repressão e princípio de rendimento ?
3. Na sua interpretação da teoria freudiana, sobretudo no que se refere à hipótese da
transformação não-repressiva das pulsões, Marcuse deforma as concepções gerais
daquela, tal como o acusam Jean Laplanche e Bento Prado?
4. Como se dá a relação entre a teoria freudiana e o marxismo na obra de Marcuse?
Com estas questões pudemos obter uma compreensão geral dos principais pontos da
obra de Marcuse, assim como da particularidade de sua interpretação filosófica do
pensamento de Freud .
No primeiro capítulo realizamos uma breve tentativa de localizar o contexto teórico
ao qual pertence Marcuse e destacar o interesse que a teoria freudiana desperta para os
teóricos deste grupo. A relação entre a teoria crítica e a teoria freudiana é analisada
sobretudo a partir de dois textos de M. Horkheimer: o texto pronunciado em 1931 no
discurso de posse do Instituto de Pesquisa Social, chamado A presente situação da filosofa
social e as tarefas de um Instituto de Pesquisa Social, e o texto Teoria Tradicional e
Teoria Crítica escrito em 1937, no qual ele delineia os contornos da assim chamada teoria
crítica da sociedade (uma teoria essencialmente dialética da sociedade). Na relação entre a
teoria crítica e a teoria tradicional podemos compreender o papel desempenhado pela teoria
freudiana nesses teóricos, na medida em que ela se revela um importante instrumento de
análise e crítica da sociedade.
No segundo capítulo, tentamos mostrar que a interpretação de Marcuse não pode ser
compreendida fora da relação estabelecida entre a psicanálise freudiana e o marxismo, uma
relação que não é nem de oposição, nem de síntese (união), mas dialética é neste contexto
que a teoria freudiana revela toda sua importância.
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Para compreendermos a relação entre Marcuse e Freud optamos por trabalhar com a
crítica de Paul Robinson, segundo a qual Marcuse teria tentado unir , em Eros e
Civilização, Marx e Freud. O trabalho baseado nesta crítica se mostrou muito frutífero, pois
permitiu estabelecer uma série de pontuações em relação à interpretação de Marcuse. A fim
de argumentarmos contra P. Robinson expusemos as devidas diferenças entre Marcuse e o
revisionismo. A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse não pode ser
compreendida fora do contexto da crítica ao revisionismo neo-freudiano
é aqui que ela
revela toda sua particularidade. Marcuse tenta salvar a teoria freudiana do psicologismo
americano dos anos 50 e 60, apresentando-a como uma teoria essencialmente crítica. A
teoria crítica se interessa sobretudo pela teoria freudiana da cultura (desenvolvida a partir
dos anos 20, quando Freud introduz o conceito de pulsão1 de morte ) pois ela revela, de
uma maneira muito mais crítica que o revisionismo, a profunda relação que une o
desenvolvimento social e a constituição psíquica dos indivíduos.
A fim de argumentarmos contra a crítica de Robinson retomamos, por um lado, os
conceitos de dessublimação repressiva , mais-repressão e princípio de rendimento ,
formulados por Marcuse em Eros e Civilização, assim como retomamos, por outro, o
contexto da crítica imanente na qual a interpretação marcuseana se insere e sem a qual
não pode ser compreendida.
1 Ao contrário da tradução inglesa da obra de Freud, optamos por utilizar o termo pulsão ao invés de instinto , pois estamos seguindo as indicações de Laplanche e Pontalis no livro Vocabulário de Psicanálise.
Segundo estes autores, quando Freud utiliza o termo instinto ele se refere a um comportamento animal fixado por hereditariedade. Este termo tem implicações essencialmente diferentes do termo pulsão , que significa, por sua vez, um impulso constituído por uma fonte , por uma meta e um objeto não fixo. Entretanto, mantivemos o termo instinto utilizado por Marcuse, pois esta será uma das críticas que Laplanche faz a sua interpretação da obra de Freud e que será apresentada no capítulo III.
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No segundo capítulo apresentamos, de modo não sistemático, as concepções
expostas por Marcuse na primeira parte de sua obra2 e que correspondem à apresentação
geral da teoria freudiana da cultura, da relação intrínseca (estabelecida por Freud) entre o
desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento social. Já no terceiro capítulo,
apresentamos a segunda parte da obra3, que corresponde à formulação da hipótese do
desenvolvimento não repressivo da civilização. Esta hipótese foi formulada tendo em vista
duas justificativas: o surgimento da sociedade de massas contemporânea ; e os próprios
conceitos freudianos permitem, segundo Marcuse, visualizar a possibilidade de uma
civilização não repressiva.
Neste terceiro capítulo também optamos por discutir baseado em críticas, na medida
em que estas revelaram a polêmica que a interpretação de Marcuse impôs a diversos
autores. Esta hipótese foi severamente criticada por Jean Laplanche e por Bento Prado Jr.,
que viram nela, além de um acento romântico, a imposição de sérias deformações ao
discurso freudiano.
Longe de negar a veracidade da tese desses autores de que a interpretação de
Marcuse impõe uma deformação a alguns dos conceitos fundamentais da teoria freudiana,
argumentamos que sua interpretação não deve ser analisada por esta óptica (a de uma
epistemologia da psicanálise) e sim no contexto teórico da crítica imanente . Aqui
retomamos o texto escrito por Marcuse em 1938, Para a crítica do hedonismo, que nos
permitiu esclarecer a perspectiva teórica da qual ele parte.
No último capítulo desenvolvemos, mais profundamente do que no capítulo dois, a
relação entre o marxismo e a psicanálise freudiana, pois nos pareceu que somente nesta
2 Chamada Sob o domínio do princípio de realidade . 3 Chamada Para além do princípio de realidade .
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relação é que podemos compreender o verdadeiro papel que desempenha a teoria freudiana
em Eros e Civilização. Para isto utilizamos o texto escrito nos anos 70, Sobre o conceito de
negação na dialética. Ao esclarecermos esta relação obtivemos uma visão geral do
contexto do pensamento de Marcuse.
Este trabalho de dissertação nos revelou a atualidade flagrante do pensamento de
Marcuse. A utopia marcuseana formulada em Eros e Civilização representa uma recusa
em curvar-se frente ao sistema de dominação sem precedentes na história. Sua insistência
em revelar as possibilidades de libertação inerentes ao sistema, as suas contradições, revela
um pensamento que tenta desmistificar a ideologia dominante e apontar para a necessidade
de uma transformação urgente da sociedade, uma transformação não nos termos de uma
tomada de poder pelo proletariado (tal como descrita no marxismo), mas enquanto uma
necessidade de emancipação surgida de um sistema no qual se torna insuportável viver,
tamanha a dominação e repressão em face da possibilidade de sua abolição.
Terminamos esta introdução com uma citação de Marcuse que revela a idéia geral
que se encontra por trás da utopia formulada em Eros e Civilização.
Por mais que seja irresponsável evocar a imagem de uma tal liberdade em face da miséria e
das dificuldades vigentes, seria igualmente irresponsável ocultar até que ponto a miséria e as
dificuldades existentes continuam a ser perpetuadas unicamente pelos interesses dominantes no
existente. (Marcuse: 1997: 44)
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Capítulo I - A Teoria Crítica da Sociedade desenvolvida pela Escola de Frankfurt
A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse em Eros e Civilização:
uma interpretação filosófica do pensamento de Freud só pode ser compreendida quando
analisada em relação ao contexto teórico no qual ela se insere, que remonta às origens da
chamada Escola de Frankfurt (ou Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt) e mais
especificamente ao contexto teórico que a orientava a partir do período em que Horkheimer
assume sua direção no ano de 1931. A partir deste momento Horkheimer estabelece uma
espécie de mudança de foco em relação à antiga direção do Instituto, que era então
dirigido por Carl Grünberg, e é nesta nova guinada teórica que são definidas as diretrizes
básicas que guiam os trabalhos de seus membros.
Esta abordagem teórica chamou-se num primeiro momento filosofia social , termo
utilizado na conferência de posse de Horkheimer na direção do Instituto, e mais tarde, no
texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica escrito em 1937, teoria crítica da sociedade . No
mesmo ano de 1937 foram escritos mais dois textos na tentativa de delimitar os contornos
da assim chamada teoria crítica : primeiramente um texto de Marcuse, no qual ele dialoga
com o ensaio de Horkheimer, e, posteriormente, um novo texto de Horkheimer - os dois
textos possuindo o título de Filosofia e Teoria Crítica. Tentaremos expor brevemente neste
capítulo as principais concepções desta corrente teórica, a fim de localizarmos a
importância que a obra freudiana possui para esta teoria, assim como a particularidade da
leitura que ela viabiliza. À luz desta contextualização teórica a obra de Marcuse (Eros e
Civilização) se tornará mais clara.
A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse suscitou algumas questões
que nos conduziram ao tema deste primeiro capítulo e que pretendemos responder com este
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trabalho: o que faz da teoria freudiana uma teoria interessante para Marcuse e para a teoria
crítica formulada pela Escola de Frankfurt e em que medida ela contribui para seu
objetivo?; quais os elementos críticos presentes nela, quais os elementos conservadores e
neste sentido, o que é dela aproveitado e o que é descartado?; que elementos permitem a
Marcuse escapar ao emaranhado anti-dialético do pessimismo freudiano?. Passaremos
agora a uma breve exposição da teoria crítica da sociedade .
Quando Horkheimer assume a direção do Instituto de Pesquisa Social nos anos 30,
ocorre uma mudança em relação à antiga orientação teórica, centrada na economia
política e dedicada à história do movimento operário: esta reorientação teórica foi
apresentada por Horkheimer em seu discurso de posse na direção do Instituto em 24 de
janeiro de 1931, chamado A presente situação da filosofia social e as tarefas de um
Instituto de Pesquisa Social. Neste texto Horkheimer apresenta as novas questões e
preocupações que guiariam a partir daí os trabalhos do Instituto. Ele não rompeu
definitivamente com a orientação teórica marxista vigente no primeiro período, mas passou
a priorizar a perspectiva interdisciplinar e a teorização, na medida em que as
transformações históricas impunham novas questões e orientações.
Neste texto Horkheimer chama de filosofia social a interpretação filosófica do
destino dos homens, enquanto não meros indivíduos, mas membros de uma comunidade e
que deve ocupar-se daqueles fenômenos que somente podem ser entendidos em conexão
com a vida social (Horkheimer: 1999: 121). Segundo o autor a filosofia social
desenvolvida na longa tradição do idealismo alemão - passando por Kant e Fichte -
encontrou seu resultado mais brilhante com Hegel. Enquanto aqueles se baseavam na
filosofia da personalidade singular , tomando o eu como ponto de partida para a auto-
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reflexão, Hegel remete a constituição desse eu à própria história, enquanto história do
espírito objetivo :
Hegel liberou essa auto-reflexão dos grilhões da introspecção, em cujas bases estava
arraigada, e remeteu à história a questão de nossa própria essência, o problema do sujeito autônomo
criador de cultura: é no trabalho da história que ele se dá uma forma objetiva (...) Com Hegel o
idealismo transformou-se numa filosofia social (Horkheimer: 1999: 122, grifo meu)
A filosofia social de Hegel recupera o particular que parece desaparecer no
idealismo, assim como faz da filosofia um instrumento racional para a transfiguração do
todo injusto, isto é, para a reconciliação entre os interesses particulares e o destino
universal: a filosofia mantém na idéia as diretrizes que devem conduzir a realidade de sua
forma injusta a uma forma mais racional e, portanto, mais justa. Devido a esse caráter
eminentemente crítico da filosofia hegeliana, em sua obra Razão e Revolução Marcuse
estabelece uma estreita relação entre o conceito hegeliano (crítico) de razão e a
necessidade da transfiguração da realidade, isto é, a revolução.
Uma vez apresentadas as concepções gerais da filosofia social hegeliana,
Horkheimer afirma que a filosofia social só pode apreender a totalidade se ela incorporar as
novas tendências descobertas pelas ciências modernas, superando a oposição entre ciências
particulares e filosofia. Impõe-se a necessidade de fundamentar um novo conceito de
filosofia que dê conta das transformações históricas ocorridas
esta nova concepção de
filosofia é a que guia a partir daí os trabalhos do Instituto.
Com o desenvolvimento moderno das técnicas e a respectiva especialização das
ciências, a filosofia se viu relegada a uma esfera específica, ocupando-se com pressupostos
metafísicos e com questões não verificáveis empiricamente. Enquanto isso, as ciências
particulares tratavam de problemas específicos a um determinado objeto, sem relacioná-lo
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com a totalidade das relações existentes. Segundo Horkheimer esta separação entre as duas
esferas do conhecimento deve ser eliminada através da formulação de um novo conceito de
filosofia que não se oponha às ciências particulares mas, ao contrário, que as incorpore em
sua estrutura - ele propõe uma perspectiva interdisciplinar . Vejamos a seguinte citação:
Essa concepção, segundo a qual o pesquisador deve considerar a filosofia talvez como um
belo exercício, mas cientificamente infrutífero, porque inverificável, enquanto o filósofo deve se
emancipar da pesquisa particular (...) está superada atualmente pela idéia de uma contínua
interpenetração e desenvolvimento dialéticos entre a teoria filosófica e a prática particular. (...) A
filosofia deve estar em condições de solicitar e animar as pesquisas particulares e, ao mesmo tempo,
ser suficientemente aberta para se deixar por sua vez influenciar e transformar pelo progresso dos
estudos concretos. (Horkheimer: 1999: 128)
Esta nova concepção implica no estabelecimento de uma estreita relação entre as
diversas áreas particulares das ciências humanas
filosofia, sociologia, economia, história
e psicologia (1999: 128). As questões filosóficas seriam influenciadas pelos métodos
científicos particulares e suas descobertas sobre o objeto de estudo, mas sem perder de vista
o universal (este objeto seria algum problema relacionado às questões filosóficas atuais).
Enquanto isso, as pesquisas particulares também seriam influenciadas pelos problemas
filosóficos mais gerais e orientadas para questões referentes à humanidade como um todo.
De modo geral, esta nova concepção de filosofia social formulada por Horkheimer
pretende superar a separação entre o universal e o particular, que se viu acentuada com o
desenvolvimento moderno das ciências, separação essa que relegou à filosofia o plano do
abstrato e inútil. Retomando a definição hegeliana de filosofia, enquanto instrumento de
possível intervenção na realidade, e unindo-a às várias descobertas das ciências específicas,
a nova filosofia social interdisciplinar poderia fornecer uma visão geral da realidade com
finalidade crítica, inter-relacionando projeto teórico e experiência individual , universal
12
e particular
constrói-se assim uma teoria da sociedade em que a construção filosófica
não seja mais dissociada da pesquisa empírica (1999: 129).
Segundo Horkheimer, a velha questão da relação entre a existência particular
(vida) e a razão universal (espírito) adquire sua versão atual na questão da conexão que
subsiste entre a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento psíquico dos indivíduos e
as transformações que têm lugar nas esferas culturais (1999: 130). Para ele somente a
perspectiva da filosofia social interdisciplinar pode dar uma resposta adequada à questão,
opondo-se dessa forma à resposta metafísica (de Scheler) e às teses gerais dogmáticas,
como por exemplo a do marxismo abstrato e mal interpretado , que acredita na
determinação estritamente econômica para os fenômenos chamados superestruturais .
Essas teses dogmáticas impõem uma separação acrítica e absoluta entre espírito e realidade,
assim como negligenciam completamente o papel complicado da mediação dos
elementos psíquicos (1999: 131).
A questão que guia os trabalhos do Instituto e que somente a perspectiva
interdisciplinar pode responder é a seguinte:
(...) quais conexões é possível apurar
num determinado grupo social, num período
determinado, em determinados países
entre o papel desse grupo no processo econômico, a
transformação ocorrida na estrutura de seus membros singulares e os pensamentos e as
instituições que agem sobre esse mesmo grupo, como totalidade menor no todo da sociedade, e que
são por sua vez o seu produto? (Horkheimer: 1999: 131, grifo meu).
O modo como esta questão é formulada reflete a necessidade de compreender as
transformações históricas ocorridas, sobretudo no que se refere à transformação do
capitalismo liberal em monopolista. A dimensão interior dos indivíduos ganha um papel
importante para essa nova teoria da sociedade, uma vez que agora a dominação social não é
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mais somente externa, mas também interna: a reprodução social dá-se simultaneamente
nos dois planos (Maar: 1995: 77). Neste sentido a filosofia social frankfurteana, ou teoria
crítica, dá especial atenção para o aspecto subjetivo da dominação objetiva, material, na
medida em que ocorreu uma transformação dos próprios indivíduos, uma interferência
subjetiva, imposta pelo atual modo de produção. Analisando simultaneamente as duas
esferas, objetiva e subjetiva, é possível alcançar uma compreensão geral do atual contexto
histórico e de sua racionalidade de dominação.
É aqui que a teoria freudiana, enquanto uma teoria que se ocupa com a
subjetividade individual, adquire um papel importante para a teoria crítica. Mas para
compreendermos melhor esta questão retomaremos o texto Teoria Tradicional e Teoria
Crítica de Horkheimer, no qual ele estabelece a oposição entre teoria crítica e teoria
tradicional . Este texto nos permitirá entender um pouco mais o conteúdo da noção de
teoria crítica , para então apresentarmos a importância que a teoria freudiana adquire nesta
teoria. Tentaremos mostrar que podemos compreender a posição e a relevância da teoria
freudiana a partir da relação que ela estabelece com a teoria crítica e a teoria
tradicional .
A oposição entre teoria crítica e teoria tradicional se refere a duas abordagens
diferentes em relação à apreensão do objeto. A teoria crítica corresponde à concepção de
teoria em que se baseia a filosofia social exposta por Horkheimer no seu discurso de posse
em 1931. Como vimos, esta filosofia social pretende eliminar a oposição entre ciências
específicas e gerais (filosofia) na tentativa de abarcar a totalidade dos fenômenos do
conhecimento e, com isso, fazer a crítica da realidade injusta ( transfigurar a realidade).
Enquanto isso, a noção de teoria em sentido tradicional corresponde ao tipo de pensamento
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que surgiu no início da idade moderna e que Horkheimer atribui à filosofia moderna de
Descartes (conhecimento a partir do método dedutivo).
Apresentaremos brevemente o conteúdo da noção de teoria tradicional a partir de
duas concepções básicas, que correspondem simultaneamente à crítica do positivismo e da
metafísica: isto não quer dizer que estas sejam duas correntes de pensamento equivalentes,
mas sim que a concepção de teoria em sentido tradicional pode ser encontrada nas duas. O
positivismo corresponde às ciências particulares, enquanto a metafísica corresponde ao que
Horkheimer chama no texto Filosofia e Teoria Crítica de filosofia tradicional. É na crítica
ao positivismo e à metafísica, enquanto dois modos de pensamento baseados em uma
concepção de teoria tradicional, que podemos compreender a filosofia social frankfurteana
(ou teoria crítica). Para a teoria crítica o positivismo despreza as determinações universais,
ocupando-se isoladamente com o objeto, enquanto a metafísica despreza o particular na
busca pelas determinações universais do pensamento e da realidade. A meta da teoria
crítica é construir uma racionalidade que dê conta tanto do particular quanto do universal,
reconciliando idéia e empiria, filosofia e ciência particular, verdade e realidade (Maar:
1995: 78).
A teoria em sentido tradicional surge com o desenvolvimento moderno das técnicas
e com a respectiva especialização das ciências: o modo como as ciências naturais se
ocupam com os objetos é estendido às ciências humanas, que passam a analisar os
fenômenos sociais a partir do mesmo método científico empregado na análise dos
fenômenos naturais. A sociologia, a economia, a história, a psicologia, tornam-se matérias
ocupadas com problemas específicos, baseando-se na coleta de dados empíricos e na
descrição de problemas particulares. Horkheimer critica as escolas sociológicas que
estabelecem diferenciações entre, por exemplo, coletividade e sociedade (Tönnies),
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solidariedade mecânica e orgânica (Durkheim), cultura e civilização (A.Weber), na
medida em que este modo de interpretação hipostasia os fenômenos sociais como uma
realidade estática, sem relacioná-los com a totalidade e a práxis histórica. Os fenômenos
sociais são analisados como se fossem naturais.
Esta concepção de teoria, definida a partir de um conceito de ciência próprio às
ciências naturais, não leva em consideração a realidade histórica com a qual os fatos sociais
estão diretamente relacionados: esses fatos são analisados fora da conexão com o processo
de constituição da vida material, de suas relações e mediações
eles são fixados em
categorias. A teoria em sentido tradicional aparece desvinculada de todo solo histórico-
material, como sendo a-histórica, independente e pura , tendendo em direção a um
sistema de signos puramente matemáticos no qual os objetos da experiência aparecem
cada vez menos, sendo eles substituídos por símbolos matemáticos (Horkheimer: 1974:
18). Entretanto, esta concepção de teoria tradicional revela sua verdadeira função na
manutenção da realidade histórica e do modo de produção que a mantém.
Na medida em que a teoria despreza as determinações sociais, os valores
(subjetivos), e apresenta-se como uma instância absoluta , essa sua neutralidade favorece
a manutenção de um sistema em que a ciência e a técnica adquirem posição central
enquanto instrumentos de dominação. Essa concepção de teoria não deixa aparecer a
função real da ciência na sociedade capitalista - ela aparece como uma função entre outras
no processo de reprodução da sociedade, como autônoma, independente e livre de valores
(ela é neutra ). Uma vez que a ciência não reconhece seu papel no interior da realidade
histórica ela serve à reprodução desta:
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A teoria em sentido tradicional (...) organiza a experiência a partir da formulação de
questões que surgem em conexão com a reprodução da vida na sociedade atual. (...) A gênese social
dos problemas, as situações reais nas quais a ciência é empregada, os fins aos quais ela é aplicada se
situam fora dela mesma. (Horkheimer: 1974: 82).
Para esta concepção de teoria em sentido tradicional, os fatos sociais aparecem
como imutáveis e a realidade deve ser aceita como tal: a separação entre o indivíduo e a
sociedade é tida como definitiva. Ao indivíduo só resta aceitar o destino inevitável e as
imposições da sociedade, que lhe aparecem como uma força exterior e cega. A realidade é
concebida como estática (tal como nas categorias e estruturas conceituais que a definem).
Estas características definem a concepção de teoria tal como aparece no positivismo.
A outra perspectiva da concepção tradicional de teoria criticada por Horkheimer
refere-se à integração teórica dos fatos que se apresentam como contraditórios na realidade,
isto é, à tentativa de integrar teoricamente esses fatos, harmonizando-os. Esta identificação
transcendental dos fatos efetivamente contraditórios pode ser exemplificada através do
conceito de liberdade tal como ele aparece no idealismo: a liberdade aparece como um
elemento inerente ( interno ) ao ser humano, mesmo que ela não vigore na realidade
exterior. Nas palavras de Fichte: Eu estou completamente convencido de que a vontade
humana é livre, e que o objetivo de nossa existência não é sermos felizes, mas somente
dignos de alegrias (apud. Horkheimer: 1974: 67). A idéia de razão , tal como aparece na
filosofia hegeliana, também participa desta lógica, uma vez que identifica sua plena
realização com a realidade: em Hegel a universalidade já se desenvolveu adequadamente e
é idêntica à realidade
a razão se torna afirmativa : a filosofia escolheu por sua própria
conta fazer a paz com o mundo inumano (Horkheimer: 1974: 35).
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Segundo Horkheimer esta mentalidade idealista reflete uma resignação frente aos
fatos da realidade: na medida em que a metafísica possui uma pretensão de independência
e universalidade, ela despreza os fatos reais, consumando a separação entre fato e teoria.
Esta é apenas uma das críticas dirigidas à metafísica e é a que nos interessa por enquanto.
Tanto o positivismo quanto a metafísica aparecem como teorias especializadas e
isoladas de todo contexto histórico: esta separação representa a própria concepção de teoria
tradicional. Mesmo que estas correntes de pensamento não possuam um fim imediatamente
produtivo (como acontece muitas vezes em certos setores da atividade acadêmica e
universitária, mesmo no que se refere às ciências especializadas), elas acabam por se
integrar à ordem estabelecida, na medida em que não intervêm e não criticam as
contradições reais da sociedade
estas contradições permanecem apenas em sua estrutura
conceitual, sem atingirem a base infraestrutural da sociedade, suas relações econômicas.
Estas teorias permanecem afirmativas : elas mantêm e reproduzem a sociedade
contraditória.
A teoria crítica se opõe a essas duas tendências da teoria tradicional: de um lado, a
separação definitiva entre o indivíduo e a sociedade e, de outro, a harmonização teórica dos
elementos que são contraditórios na realidade.
Para a teoria crítica a realidade só pode ser corretamente apreendida quando
analisadas as mediações que se estabelecem entre as várias esferas que a compõem: ela não
toma a realidade como imutável nem estática, mas como um processo histórico e dinâmico,
no qual os sujeitos determinam a realidade assim como são determinados por ela. A
separação entre o indivíduo e a sociedade reflete uma realidade histórica na qual as forças
cegas da economia capitalista subjugam as necessidades e desejos individuais visando à
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manutenção e perpetuação deste mesmo sistema. Portanto, esta separação entre o indivíduo
e a sociedade é uma resultante histórica e não um destino inevitável.
As contradições reais da sociedade aparecem nos conceitos da teoria crítica, ao
confrontar, de um lado, a plena realização da idéia presente no conceito e, de outro, sua
não realização efetiva. Os conceitos de razão , liberdade e felicidade se encontram em
contradição com a realidade na medida em que esta nega a plena realização deles
são por
isso conceitos críticos, que permitem visualizar a injustiça de sua não realização. O
conceito de razão (tal como definido na filosofia idealista) corresponde à possibilidade de
uma organização social na qual os interesses individuais não estejam em contradição com
os da sociedade, onde a separação entre o indivíduo e a sociedade (a essência e a aparência,
o sujeito e o objeto, a razão e a sensibilidade) fosse eliminada: entretanto, esta idéia
presente no conceito entra em choque com a realidade de uma organização social irracional.
Os conceitos utilizados pela teoria crítica possuem um caráter dinâmico,
representando a recusa em aceitar a realidade tal como se apresenta. A teoria crítica
mantém a exigência em buscar a superação do atual estágio da sociedade rumo a um outro
estágio mais elevado (racional), já que esta possibilidade está dada efetivamente pelo atual
estágio alcançado pelo desenvolvimento técnico: é uma possibilidade real. Seus conceitos
são definidos enquanto conceitos críticos, negativos , quando comparados com sua não
realização frente à real possibilidade. A lógica que caracteriza a teoria crítica é a lógica da
não-identidade, que implica uma inadequação entre realidade e conceito (Maar: 1995:
63).
Apresentamos brevemente algumas das principais concepções que caracterizam a
teoria crítica da sociedade desenvolvida pela Escola de Frankfurt. Dissemos, em um
19
determinado momento, que a teoria freudiana pode ser compreendida na relação que se
estabelece entre a teoria crítica e a teoria tradicional, e foi por isso que fizemos esta
apresentação anterior. Passemos então à exposição dos argumentos que nos farão
compreender alguns dos principais aspectos que fazem da teoria freudiana uma teoria
importante para a teoria crítica.
A teoria crítica estabelece uma dupla relação com a teoria freudiana, que pode ser
apresentada como um momento de aceitação e outro de crítica de suas teses. De um lado
a teoria freudiana possui alguns elementos que fazem dela uma teoria crítica, enquanto, de
outro lado, ela possui elementos de uma teoria tradicional. Esta contradição é expressa pela
coexistência de elementos conservadores e progressistas na teoria freudiana.
O que diferencia a teoria freudiana da teoria tradicional e, portanto, faz dela uma
teoria crítica, é o fato de que ela não procura harmonizar elementos que se apresentam
contraditórios na realidade. Freud mantém o conflito como estrutura básica em suas
formulações conceituais e o próprio indivíduo se forma neste conflito. Mesmo quando
pensa a terapia psicanalítica, Freud não crê que ela possa curar o indivíduo da doença
psíquica e harmonizá-lo com o meio: ele a vê como uma adaptação , uma medida
paliativa , possibilitando ao sujeito viver em sociedade.
O fundamental em Freud é que ele reporta todo sofrimento e conflito à estrutura
mesma da sociedade. A neurose (assim como uma série de doenças psíquicas) surge do fato
de a vida exterior ser fonte de intensos desprazeres, não satisfazendo as necessidades e
desejos individuais. Os conflitos aos quais Freud se refere não surgem somente no
psiquismo do indivíduo; surgem na sua conexão com a civilização da qual ele faz parte e,
portanto, não podem ser eliminados apenas no individualismo do pensamento. A acusação
de que Freud despreza a história e a vida social e que suas formulações são mecanicistas e
20
ancoradas no biologismo do século XIX (acusação feita pelos revisionista neo-freudianos),
não corresponde à profundidade de suas descobertas. Seus conceitos possuem uma
historicidade interna que dispensa a introdução de conteúdos históricos ou a
sociologização de seus conceitos. Ele percebeu a dialética do progresso na qual a
cultura e o desenvolvimento técnico aparecem vinculados a um aumento de infelicidade e
sentimento de culpa (todas estas questões serão tratadas nos próximos capítulos).
Entretanto, Freud permaneceu preso ao pensamento burguês do século XIX: ele
apreendeu a realidade na qual vivia como uma essência imutável e é neste sentido que sua
teoria contém elementos tradicionais. A separação entre o indivíduo e a sociedade é tida
como definitiva - o princípio de realidade é hipostasiado como único modo de ser da
civilização:
Freud aceita a oposição entre o social e o [individual] sem exame, de maneira estática. Não
reconhece nela a obra da sociedade repressiva, assim como os mecanismos nefastos que ele mesmo
indicou (Adorno: 1993: 51).
Sua teoria é permeada pela tensão entre a acusação de uma realidade injusta e a
resignação frente ao destino considerado inevitável. Temos, de um lado, um Freud crítico,
que revoluciona, entre outros, a concepção de sexualidade até então estabelecida e, de outro
lado, um Freud conservador, pregando os valores superiores da cultura e a sublimação da
sexualidade.
[Freud] oscila entre (...) negar a renúncia às pulsões como um recalcamento contrário à
realidade, ou enaltecê-la como sublimação que fomenta a cultura. Nesta contradição existe
objetivamente algo do caráter bifronte da cultura. (...) O esclarecimento não-esclarecido de Freud
fez, sem se dar conta, o jogo da desilusão burguesa. (...) Na obra de Freud reproduz-se
involuntariamente a dupla hostilidade ao espírito e ao prazer. (Adorno: 1993: 51-2).
21
O que torna a psicanálise freudiana uma teoria interessante para a teoria crítica é que
ela possibilita desvendar as conseqüências, no nível individual, da má organização da
sociedade (desvenda o universal presente no particular), assim como permite desvendar a
dialética da dominação que determina o desenvolvimento da civilização, acusando
severamente o progresso técnico e científico que, ao invés de conduzir a humanidade em
direção a uma organização mais feliz para os indivíduos, contribui apenas para aumentar a
infelicidade e o sentimento de culpa4. Ao concluir pela hipostasiação da realidade,
considerando-a imutável, Freud apreendeu o real desenvolvimento da civilização até hoje,
essencialmente oposto aos desejos e necessidades individuais.
A principal diferença entre a teoria freudiana e a psicologia em geral é o fato de ela
inserir o ser humano na história real e contraditória da humanidade, o que dá origem a uma
concepção de indivíduo que corresponde à sua constituição atual, sem idealizações. A
perda de autonomia individual denunciada pela teoria freudiana revela uma dinâmica
social que os indivíduos não controlam: eles são meros apêndices de uma estrutura mais
ampla. Ao apresentar esta realidade contraditória na perspectiva individual a teoria
freudiana contribui para esclarecer o atual contexto histórico (como será possível
demonstrar nos próximos capítulos).
Em Eros e Civilização Marcuse procura levar adiante a crítica da civilização
realizada por Freud, ao mostrar a força negativa que ela contém e que conduz,
dialeticamente, a uma perspectiva de superação da atual organização social. Marcuse
introduz dialética nas formulações estáticas da teoria freudiana: o princípio de realidade
4 A relação entre progresso e sentimento de culpa aparece claramente nesta citação: Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de desgraças que só a morte é por nós concebida como uma libertação. (...) O progresso científico e técnico parece não ter aumentado a quantidade de satisfação prazerosa na vida e não nos tornou mais felizes (Freud: 1978:150).
22
que fora definido por Freud como um princípio necessário de toda organização social,
repressivo, oposto ao princípio de prazer e essencialmente estático, é relativizado por
Marcuse, que o vê como passível de uma outra definição, como dinâmico, uma vez que a
realidade é histórica e os elementos que determinam as normas, os valores e as instituições
de uma sociedade mudam com o desenvolvimento histórico.
Apesar desta apreensão estática da realidade presente na teoria freudiana, seus
conceitos são dinâmicos - eles não são definidos como essências imutáveis, o que permitiu
a Marcuse pensar na superação e na transformação da realidade. Freud advertiu diversas
vezes que suas formulações são passíveis de correções e ele não deixou de fazê-las até seus
últimos trabalhos - ele procurava dar conta dos fatos tais como os observava na clínica.
Não pretendemos antecipar as conclusões aqui neste primeiro capítulo, apenas
apontar em que direção a interpretação da obra de Freud realizada por Marcuse se
conduzirá. Vale lembrar que a teoria crítica não tem a pretensão de ser, nem uma teoria
mais verdadeira , nem a mais perfeita, fechando-se em princípios e dogmatismos . Ela
busca fornecer elementos para pensar e transformar a realidade (Pucci: 1995: 14). A
perspectiva interdisciplinar unida ao esforço teórico fornece os elementos para superar a
contradição entre o individual e o geral buscando a transfiguração desta oposição.
Segundo Horkheimer:
Se não perseguirmos o esforço de pensamento teórico que, no interesse de uma sociedade
futura organizada segundo a razão, se aplica a criticar a sociedade atual, a esclarecer completamente
sua estrutura estabelecendo um modelo com a ajuda das teorias tradicionais desenvolvidas nos
domínios especializados da ciência, a esperança de melhorar radicalmente a existência humana não
repousa mais em nada de sólido. (Horkheimer: 1974: 70)
23
Nos capítulos que se seguem tentaremos apresentar a maneira pela qual Marcuse
utiliza a psicanálise em Eros e Civilização a partir das diversas polêmicas que esta
interpretação das concepções freudianas suscitou entre seus vários críticos.
24
Capítulo II - Marcuse e a Psicanálise
Neste capítulo procuramos apresentar a obra de Marcuse Eros e Civilização de uma
maneira não sistemática: isto é, não fizemos um resumo das suas teses. Optamos por
apresentá-la a partir da polêmica que a interpretação marcuseana da obra de Freud levanta
e, dessa forma, pudemos apresentar suas concepções e idéias gerais.
1 - Marxismo e Psicanálise na obra de Marcuse
No decorrer deste estudo uma questão se mostrou fundamental para a compreensão
da obra de Marcuse: a da relação entre o marxismo e a psicanálise freudiana. A polêmica
que esta questão levanta refere-se ao estatuto da teoria freudiana e do marxismo na obra
Eros e Civilização, uma vez que se encontrou uma variedade de leituras divergentes entre
os autores que trataram da questão. Faremos aqui uma tentativa de esclarecê-la a partir de
uma determinada perspectiva que pareceu ser a mais plausível, mas sem a intenção de
esgotá-la por completo.
Esta problematização a respeito da relação do marxismo e da psicanálise poderia ser
estendida ao conjunto da teoria crítica, uma vez que todos os seus integrantes trataram da
questão em diversos textos; mas isto ultrapassaria os limites deste trabalho. Este
empreendimento foi realizado por Rouanet no seu excelente livro Teoria Crítica e
Psicanálise, que utilizaremos no decorrer da argumentação. Para efeito de nosso estudo,
não há diferenças significativas entre as análises dos integrantes da teoria crítica. A leitura
de alguns textos de Adorno, como A Revisão da Psicanálise por exemplo, ajudou na
compreensão do pensamento de Marcuse em relação à questão. Pode-se dizer que a
principal diferença entre, de um lado, Adorno e Horkheimer e, de outro, Marcuse, refere-se
25
à possibilidade de síntese que, segundo este último, é inerente à teoria freudiana.
Entretanto, não desenvolveremos aqui esta questão: a abordagem realizada terá como
objetivo a especificação da relação entre Marx e Freud e permitirá compreender a
particularidade da interpretação marcuseana da psicanálise.
A tese que se defende é a de que Marcuse não realiza uma síntese ou união de
Marx e de Freud em Eros e Civilização, tal como proposto por P. Robinson em A Esquerda
Freudiana, um livro que, para além de nossas divergências em relação a alguns pontos,
contém uma excelente apresentação do pensamento de Marcuse. Segundo Robinson,
Marcuse tentou sintetizar
as categorias freudianas e marxistas (1971: 161), ou então,
correlacionar
a teoria psicanalítica com os pressupostos do marxismo (1971: 157). Esta
afirmação é enganosa pois elimina toda a mediação e a dialética presentes no pensamento
de Marcuse, que constituem a especificidade de sua leitura. A idéia de síntese simplifica
o que é na verdade uma análise complexa e fundamentada, como será possível demonstrar
no decorrer da argumentação.
A interpretação da obra de Freud realizada por Marcuse deve ser entendida no
contexto da crítica marxista
mas de um marxismo não ortodoxo
ou seja, no contexto da
crítica da sociedade de massas contemporânea (capitalista). Com o desenvolvimento
histórico, Marcuse repensa e questiona os conceitos e concepções do marxismo e, neste
processo, a teoria freudiana adquire um papel importante. A relação entre o marxismo e a
teoria freudiana na obra de Marcuse deve, portanto, ser entendida como sendo dois
momentos que se completam
e se refutam.
Eles se completam na medida em que o
marxismo apresenta o processo objetivo de exploração e subjugação do indivíduo no modo
de produção capitalista, desmistificando esse processo social e econômico através da
crítica da economia política (crítica da razão capitalista): enquanto linguagem do todo ,
26
o marxismo representa o universal. Já a psicanálise representa este processo social na
perspectiva do indivíduo, de seu efeito subjetivo, que surge da interação com outros
indivíduos e com o meio: ela representa o particular, isto é, a dimensão subjetiva do longo
processo de dominação e exploração (dinâmica objetiva) denunciado por Marx .
O marxismo e a psicanálise freudiana expressam os dois lados de um mesmo fato ,
duas perspectivas de uma mesma realidade, a realidade do indivíduo cindido , explorado e
alienado. Neste sentido elas se completam. Enquanto o marxismo apresenta a base social
deste processo (a infraestrutura econômica), a psicanálise apresenta a base psíquica
correspondente a este processo, que é por ele produzida ao mesmo tempo em que o mantém
e o reproduz. Duas citações de Marcuse são interessantes por mostrarem a psicanálise como
uma linguagem do particular na qual o todo é passível de ser reconhecido:
As perturbações privadas refletem mais diretamente do que antes a desordem do todo e a
cura dessas perturbações depende mais diretamente que antes da cura da desordem geral. (Marcuse:
1963: 9)
A psicanálise não pode iluminar os fatos políticos, mas sim o que eles fazem aos que
sofrem esses fatos. (Marcuse: 1998: 105)
O marxismo e a psicanálise se refutam na medida em que não podem ser unidos
numa disciplina totalizante - eles são o limite negativo um do outro (Rouanet: 1989: 76):
são dois modos de explicar a realidade da sociedade alienada, dois instrumentos de análise
cujo uso é determinado pelas exigências do objeto (Rouanet: 1989: 76). A fusão do
marxismo e da psicanálise constituiria uma traição às intenções críticas dos seus
respectivos autores (Rouanet: 1989: 74). A linha que separa a psicanálise do marxismo só
poderia ser abolida através de uma transformação social efetiva, que eliminasse o
antagonismo entre o universal e o particular, entre as exigências da sociedade repressiva (de
27
sua manutenção e perpetuação) e as exigências e necessidades individuais
esta separação
testemunha um fato empírico, o da real separação entre o indivíduo e a sociedade. A
relação do marxismo e da psicanálise na teoria crítica deve ser compreendida na relação
dialética entre o universal (dimensão social) e o particular (dimensão psíquica), entre o
indivíduo e a sociedade.
A relação de Freud e Marx [na teoria crítica] é dialógica e não sistemática. No máximo são
duas falas, que se confirmam, se refutam, se cancelam: dois motivos em contraponto, no interior de
uma sinfonia, mais que duas teorias no interior de um sistema (...) sua essência está, justamente,
nessa relação dialógica entre Marx e Freud, em que as duas doutrinas funcionam como limites
negativos uma da outra, relativizando-se e relativizando qualquer pretensão totalizante (...).
(Rouanet: 1989: 76)
2 - A crítica de Paul Robinson
Passemos agora à análise da crítica de Paul Robinson a Marcuse, através da qual
poderemos especificar alguns pontos importantes no que se refere à apreensão da
psicanálise freudiana realizada por Marcuse. Vejamos a argumentação de Robinson em
relação a uma possível síntese de Marx e Freud presente na obra de Marcuse, através da
seguinte citação:
É minha convicção de que a tática subjacente de Eros e Civilização tinha por finalidade pôr
de acordo a teoria freudiana com as categorias do marxismo. (...) Quando se lê e relê Eros e
Civilização, fica-se inevitavelmente impressionado pelo modo sistemático como Marcuse
transladou as categorias não-históricas e psicológicas do pensamento de Freud para as categorias
eminentemente históricas e políticas do marxismo. É precisamente essa síntese de Freud e Marx que
pretendo realçar nas páginas seguintes. (Robinson: 1971: 157, grifo meu)
28
Esta frase contém os elementos a partir dos quais nossa crítica será dirigida. A
argumentação do autor que a segue mostra que ele de fato não percebeu a relação
dialética presente na mediação entre os conceitos na obra de Marcuse, como será possível
demonstrar no decorrer de nossa argumentação.
É importante destacar que desde o início de seu livro, logo na primeira frase do
prefácio, Marcuse diz que as categorias psicológicas do pensamento de Freud são em si
mesmas categorias políticas e históricas, o que torna a idéia exposta por Robinson do
translado das categorias no mínimo suspeita. Vejamos o que diz Marcuse:
Este ensaio emprega categorias psicológicas
porque elas se converteram em categorias
políticas. A fronteira tradicional entre a psicologia de um lado e a política e filosofia social de outro,
tornou-se obsoleta em virtude da condição do homem na era presente: os processo psíquicos
anteriormente autônomos e identificáveis estão sendo absorvidos pela (...) sua existência pública.
(Marcuse: 1999: 25, grifo meu)
Robinson argumenta ainda que a fim de transformar o que eram categorias
essencialmente não-históricas da teoria freudiana em categorias históricas, Marcuse
introduziu numerosas e importantes distinções históricas e sociológicas , o que o habilitou
a correlacionar a teoria psicanalítica com os pressupostos do marxismo (Robinson: 1971:
157). Ele refere-se aos conceitos de mais-repressão e princípio de rendimento : estes
conceitos estariam correlacionados às noções de mais-valia , alienação e reificação do
marxismo. Estes conceitos referem-se ao destino da repressão e ao conteúdo do
princípio de realidade (nos termos em que foram formulados por Freud) sob a vigência
do capitalismo monopolista. Robinson acusa Marcuse de cometer o mesmo erro que o
revisionismo neo-freudiano , por ele criticado no epílogo de Eros e Civilização,
sobretudo E. Fromm, K. Horney, H. S. Sullivan.
29
A questão que se impõe é: Marcuse introduz na teoria freudiana conteúdos
históricos e sociológicos exteriores a ela? Se este não for o caso, como se explicam os
conceitos de mais-repressão e princípio de desempenho ?
Para tentar esclarecer estas questões retomaremos a crítica de Marcuse ao
revisionismo neo-freudiano, através da qual poderemos comparar sua argumentação crítica
em relação ao revisionismo com o próprio desenvolvimento dos seus conceitos; em seguida
serão especificados os conceitos de mais-repressão e de princípio de rendimento .
2.a.
A crítica ao Revisionismo Neofreudiano
A fim de ilustrar sua crítica ao revisionismo, Marcuse retoma a oposição entre as
concepções de amor expostas por Fromm e por Freud. Dessa forma pretende mostrar que
a análise revisionista introduz de fora da própria psicanálise concepções que lhe são
estranhas, atenuando o conflito do indivíduo com a sociedade. Segundo Fromm:
O verdadeiro amor é enraizado na produtividade
e pode conseqüentemente ser chamado de
amor produtivo . Sua essência é a mesma, quer se trate do amor da mãe pelo filho, de nosso amor
pelos seres humanos ou do amor erótico entre dois indivíduos (...). Pode-se dizer que certos
elementos são característicos de todas as formas de amor produtivo. Estes são a solicitude, a
responsabilidade, o respeito e o conhecimento. (Fromm apud. Marcuse: 1963: 227, grifo meu)
Para Marcuse essa formulação ideológica do revisionismo opõe-se
substancialmente à análise crítica de Freud vejamos o que este diz:
Nós não podemos nos dissimular [do fato de que] o comportamento amoroso dos
homens,
no seio de nosso mundo civilizado atual, é inteiramente impregnado do caráter de
impotência
psíquica. As correntes de ternura e sensualidade se acham raramente confundidos nos seres
humanos cultivados; quase sempre, o homem vê sua atividade sexual atenuada pelo respeito da
30
mulher e só exerce toda sua potência quando ele se encontra frente a um objeto sexual de tipo
inferior. (Freud apud. Marcuse: 1963: 227, grifo meu)
Marcuse procura chamar a atenção para o fato de que o revisionismo aceita as
premissas fundamentais da sociedade alienada. Enquanto na teoria freudiana o amor
aparece como destrutivo, oposto ao trabalho e à produtividade e só sendo possível enquanto
amor inibido quanto ao seu alvo , ou seja, como essencialmente antagônico com a
sociedade (essa sociedade!), no revisionismo o amor não aparece em conflito com esta,
mas ao contrário, o amor se funde numa grande harmonia com a produtividade, a
felicidade, o respeito e a saúde psíquica. Para o revisionismo a felicidade produtiva , a
solicitude , a realização produtiva da personalidade , a criatividade, a
responsabilidade , o amor pelo próximo , a personalidade autônoma , são todas
premissas que podem se realizar no interior mesmo desta sociedade. Esta crítica de
Marcuse se estende também à maneira pela qual os revisionistas tratam da questão da teoria
e da terapia psicanalítica, uma vez que esta reflete uma posição conformista.
A contradição entre a teoria
e a terapia
diz respeito a uma contradição presente na
teoria freudiana no que se refere à finalidade da terapia quanto à possibilidade de cura do
paciente : enquanto a teoria acusa a sociedade de não permitir ao indivíduo nem a
satisfação de suas pulsões, nem a felicidade, a terapia propõe curar o indivíduo, adaptá-
lo, para que ele possa continuar vivendo nesta mesma realidade que o tornou doente.
Evitando os conceitos mais especulativos de Freud, aqueles que não são sujeitos à
verificação clínica (como a pulsão de morte , a hipótese da horda primitiva, o assassinato
do pai) e redefinindo aqueles que, segundo Marcuse, são os mais explosivos (o papel da
teoria da sexualidade, o papel do inconsciente, a importância da infância e do passado
filogenético no desenvolvimento do indivíduo, entre outros), os revisionistas eliminam o
31
conflito irreconciliável entre o indivíduo e a sociedade, o que garante o sucesso da terapia,
isto é, a adaptação bem sucedida e a resignação frente à realidade injusta. Segundo eles, o
objetivo mais elevado da terapia é o ótimo desenvolvimento das potencialidades da
pessoa, o que resulta na plena realização de sua individualidade. A terapia adapta o
indivíduo a uma realidade injusta de modo que ele consiga suportar a sua existência infeliz
e mesmo achar que é feliz sem sê-lo de fato: as escolas revisionistas assimilaram esta
contradição entre a teoria e a terapia (Marcuse: 1963: 214). Estas duas citações
exemplificam a posição de Marcuse:
Com a transformação do objeto da psicanálise [o indivíduo] aprofundou-se o abismo entre a
teoria e a terapia, e a terapia se vê numa situação em que parece ajudar mais a ordem estabelecida
do que o indivíduo. (Marcuse: 1998: 91)
A personalidade autônoma, vista sob o ângulo da originalidade criadora e do caráter
satisfeito de sua existência, sempre foi o privilégio de um número muito pequeno de pessoas.
(Marcuse: 1963: 218)
Os revisionistas definem as possibilidades de satisfação e desenvolvimento
individual a partir de promessas oferecidas no próprio interior da sociedade que as nega,
como se estas pudessem ser realizadas pelo poder do pensamento positivo, frente ao qual a
crítica revisionista sucumbe (Marcuse: 1963: 226). Segundo Marcuse, este é o grande
erro da psicanálise revisionista que motiva a oposição à sua interpretação: esta filosofia
dirige sua crítica aos fenômenos de superfície, enquanto aceita as premissas fundamentais
da sociedade criticada (Marcuse: 1963: 225) - ela elimina da teoria psicanalítica a teoria
das pulsões e, com isso, a oposição entre a necessidade de gratificação pulsional
(promessa de felicidade) e a realidade da repressão (sociedade alienada), entre o indivíduo e
32
a sociedade, assim como elimina do marxismo a luta de classes, privando tanto o
freudismo quanto o marxismo de seu conteúdo (Rouanet: 1989: 50).
A psicanálise elucida a experiência universal que sobrevive na experiência individual. Nesta
medida, e somente nesta medida, a psicanálise pode romper a reificação nas quais as relações
humanas estão petrificadas. (Marcuse: 1963: 220)
A oposição entre o indivíduo e a sociedade na teoria freudiana indica a existência de
uma relação antagônica entre as necessidades individuais e sociais (entre o universal e o
particular) que não pode ser abolida no plano do pensamento, num remanejamento da
própria teoria - tal como realizada pelo revisionismo neofreudiano - mas somente através
de uma transformação efetiva da sociedade: esta oposição é o reflexo de uma realidade
também contraditória (afinal o indivíduo representa o universal). A citação a seguir de
Adorno elucida a maneira como a teoria crítica compreende a singularidade das
contribuições da teoria freudiana:
A grandeza de Freud, como de todos os pensadores burgueses clássicos, consiste em deixar
não resolvidas as contradições e em recusar a harmonia sistemática, ali onde as coisas estão dividas:
ele descobriu o caráter antagônico da realidade social. (Adorno: La Revisión del Psicoanálisis: s/
referência)
No revisionismo a questão política referente à transformação da sociedade se
torna uma questão moral : confrontados com o dilema entre alterar o freudismo ou a
realidade, preferiram alterar o freudismo (Rouanet: 1989: 222). O pessimismo freudiano
implica uma recusa em compartilhar esta realidade opressiva e causadora de doenças
psíquicas (neuroses, perversões, etc.) e sofrimento humano (angústia, melancolia),
elementos tão presentes para Freud na terapia. Neste sentido
33
(...) a questão de Freud : os valores superiores da cultura não terão sido realizados a um
custo excessivo para os indivíduos?, deveria ser considerada mais seriamente para impedir os
filósofos psicanalistas de pregarem estes valores sem revelar seu conteúdo proibido, sem mostrar
que eles foram recusados ao indivíduo. (Marcuse: 1963: 226-7)
Segundo Marcuse, o problema não está nas premissas que o revisionismo
proclama, mas na realidade que é incompatível com a realização destas. Falta-lhes a
crítica dessa realidade, uma crítica que apreenda essa realidade mesma como falsa, como
ideológica. A principal diferença entre, de um lado, o período atual (sociedade de massas
contemporânea) e, de outro, o passado (período liberal) é que neste último a aceitação da
realidade repressiva (tal como se apresenta em Freud) era justificada pelo fato de esta ser
uma realidade de penúria , na qual a repressão das pulsões se fazia necessária para que o
trabalho fosse possível e, com ele, a satisfação das necessidades básicas. Enquanto isso, no
atual contexto histórico, frente à possibilidade real de eliminação de luta pela existência
propiciada pelo desenvolvimento técnico alcançado, existe a aceitação de uma realidade
que se apresenta como não repressiva apesar de constituída pela repressão. Isto é: ocorre a
obliteração do sofrimento, ou nos termos de Marcuse, a dessublimação repressiva dos
conteúdos denunciadores e opositores ( negativos ) da realidade. A seguir faremos uma
breve apresentação deste conceito tão importante no pensamento de Marcuse e, mais à
frente, continuaremos a discussão com Robinson.
2.b. - A Dessublimação Repressiva
O conceito de dessublimação repressiva permite compreender a dinâmica da
sociedade contemporânea que, por um lado, possibilita uma maior liberdade e satisfação
das necessidades, ao mesmo tempo em que, por outro lado, essa liberdade atua como um
34
poderoso instrumento de dominação, sendo absorvida pelo sistema, adquirindo a função de
manipulação e controle dos indivíduos, de suas consciências, de seus desejos e
necessidades.
Ao contrário da dessublimação , a sublimação , tal como Freud definiu,
corresponde ao processo psíquico pelo qual as pulsões sexuais ( parciais ) perdem sua
meta sexual imediata e se satisfazem em objetos não diretamente sexuais: é a capacidade de
trocar uma meta originariamente sexual por uma outra meta, não exatamente sexual mas
aparentada a ela (Laplanche e Pontalis: 2001: 495). Ela conduz a uma dessexualização . A
sublimação é uma das vicissitudes das pulsões e representa a restrição quanto à
possibilidade de satisfação pulsional imposta pelo choque com o mundo exterior. A vida
em sociedade só é possível a partir da sublimação , a partir do adiamento da satisfação
pulsional, sem o que não seriam possíveis as relações entre as pessoas como a família e a
amizade, pois estas dependem de inibição dos fins sexuais imediatos (apesar desta não ser
descrita por Freud como sublimação, mas como muito perto dela), nem haveria o trabalho
social, o progresso, a investigação intelectual e a criação artística.
Segundo Marcuse, essas grandes realizações da humanidade possibilitadas pela
sublimação , como a arte, a literatura, a religião, a ciência, a filosofia e a música,
representam uma recusa em aceitar a realidade injusta, o princípio de realidade que
impõe a modificação repressiva das pulsões. Na arte sobrevive a imagem de um mundo
diferente, sem sofrimento, assim como sua denúncia e a necessidade de libertação
ela
conserva a consciência infeliz
do mundo dividido, as possibilidades derrotadas, as
esperanças não concretizadas e as promessas traídas. (Marcuse: 1969: 73-4, grifo meu). A
sublimação cria imagens irreconciliáveis com o princípio de realidade repressivo, que
35
se expressa na arte enquanto um poder negativo , isto é, uma recusa em aceitar este
princípio de realidade .
O processo de sublimação das pulsões, necessário para que o sujeito se torne apto
a viver em sociedade, se desenvolve com a resolução do complexo de Édipo, através do
qual se impõe a adaptação do sujeito ao princípio de realidade assim como o abandono
do princípio de prazer e das possibilidades de satisfação pulsional. Neste processo há o
abandono da sexualidade polimórfica e o estabelecimento da sexualidade genital através da
sublimação das pulsões sexuais parciais , assim como a formação do superego e do
ideal de ego . Neste sentido o complexo de Édipo desempenha papel fundamental na
estrutura da personalidade e na orientação do desejo humano (Laplanche e Pontalis: 2001:
77). O superego surge com o estabelecimento do processo de sublimação e conduz à
internalização das imposições e restrições sociais e à introjeção das exigências do
princípio de realidade representadas pelos pais. No conflito entre as tendências de amor e
ódio para com o pai, enquanto representante da sociedade, formam-se a consciência, a
autonomia e a compreensão individuais, necessárias para a produção artística. Portanto, o
conflito é o elemento central para a formação da consciência e autonomia individual. Na
medida em que a sublimação se apresenta como uma imposição da sociedade, ela
preserva a consciência da repressão e, portanto, a revolta das pulsões contra o princípio
de realidade repressivo.
A dessublimação elimina toda consciência dos antagonismos e dos conflitos,
enfraquecendo a revolta das pulsões e a rebelião por um novo princípio de realidade :
nesta sociedade os conflitos insolúveis se tornam controláveis
o psiquiatra cuida dos
Dons Juans, Romeus, Hamlets, Faustos da mesma forma como cuida de Édipo
ele os
cura. (Marcuse: 1969: 98). O conflito entre o desejo de satisfação pulsional e a sua
36
realização, entre o indivíduo e a sociedade, é obscurecido a partir de uma dominação mais
intensa e repressiva, uma vez que a própria sociedade controla os desejos (as necessidades)
e o objeto desses desejos (as mercadorias).
No processo de dessublimação a satisfação mediata proporcionada pela
sublimação , a partir da qual se abria a possibilidade da tomada de consciência da
experiência da repressão, é substituída por satisfação imediata, que obscurece essa
consciência: esse imediatismo é incentivado por uma organização social que produz bens de
consumo em larga escala para satisfazer as necessidades desses bens que ela mesma
produziu (tanto as necessidades quanto os bens!). Na sociedade de consumo as
possibilidades de sublimação (adiamento da satisfação) são limitadas: há uma [redução]
da necessidade de sublimação (Marcuse: 1963: 87).
No mecanismo mental, a tensão entre o que é desejado e o que é permitido parece
consideravelmente reduzida; o princípio de realidade não parece mais exigir a transformação
[repressiva] e dolorosa das pulsões. O indivíduo deve adaptar-se a um mundo que parece não exigir
a negação de suas necessidades mais íntimas
um mundo que não é essencialmente hostil.
(Marcuse: 1963: 84)
Na sociedade industrial avançada é justamente a força subversiva presente na
sublimação que é eliminada pelo processo da racionalidade tecnológica : a
racionalidade do sistema - sua máxima eficiência, produtividade e eficácia - tornam todo
protesto insensato e irracional, uma vez que satisfaz efetivamente as necessidades materiais
dos indivíduos - esta é a base material da dominação ideológica . A dominação é
justificada por uma sociedade que satisfaz - assim seu desenvolvimento aparece como
racional . Há uma absorção da ideologia pela realidade, na qual os conteúdos ideais de
conceitos como felicidade e liberdade parecem poder se realizar efetivamente. Mais do
37
que isso, essa sociedade produz as próprias necessidades desses indivíduos, produzindo
satisfação real, embora no plano da fruição manipulada :
A criação de necessidades repressivas
tornou-se há muito parte do trabalho socialmente
necessário; necessário no sentido de que sem ele o modo de produção estabelecido não poderia ser
mantido. Não estão em jogo problemas de psicologia nem de estética, mas a base material da
dominação ideológica. (Marcuse apud. Maar: 1998: 69)
O processo de unificação dos conteúdos antagônicos atinge todas as esferas da
sociedade, que são transformadas em elementos de manutenção do sistema de dominação:
elas se tornam momentos do processo de produção na reprodução do sistema. A ética, o
trabalho, a sexualidade, a cultura e mesmo a esfera pulsional tornam-se elementos de
afirmação , elas perdem o conteúdo de oposição que caracterizou as fases anteriores do
desenvolvimento da sociedade, aquele conteúdo transcendente a partir do qual a sociedade
era negada, questionada e denunciada. Este sistema produz as [próprias] condições sociais
culturais-materiais
de reprodução do capital (Maar: 2000: 92). Nesta sociedade
(...) o controle se exerce além da dimensão estritamente econômica: agora o capital exerce
seu jugo no conjunto da sociedade capitalista. A obstrução da manifestação das contradições do
capitalismo se estabelece mediante uma política de controle estatal da economia e uma cultura de
massas nos termos das sociedades consumistas modernas. (Maar: 1998: 64)
A análise da transformação da cultura na sociedade capitalista totalitária realizada
pela teoria crítica resultou no conceito de indústria cultural em Adorno e Horkheimer e
no conceito de cultura afirmativa em Marcuse: este processo representa, entre outros, a
transformação dos objetos culturais em bens culturais (no sentido de bens de consumo).
Neste processo a cultura perde o conteúdo negativo que representava sua denúncia contra a
sociedade. A cultura (assim como todas as outras esferas que compõem a vida social)
38
passou por esse processo de aplanamento (unidimensionalização) dos seus conteúdos
antagônicos: ela adquiriu um caráter afirmativo , uma função social na reprodução do
modo de produção vigente.
O poder absorvente da sociedade esgota a dimensão [transcendente] pela assimilação de seu
conteúdo antagônico. No domínio da cultura, o novo totalitarismo se manifesta precisamente num
pluralismo harmonizador, no qual as obras e as verdades mais contraditórias coexistem
pacificamente sem indiferença. (Marcuse: 1969: 73, grifo meu)
A indústria cultural cumpre seu papel na socialização a-crítica dos indivíduos e na
manipulação de suas consciências; e uma vez que nesta sociedade a mecanização da
produção diminui relativamente o tempo necessário para o trabalho, a formação social se
dá (para além do próprio processo de trabalho) também nos momentos de lazer dos
indivíduos, controlando suas consciências até mesmo quando estes se encontram fora do
trabalho. A indústria cultural possui a função de formar indivíduos, mas conforme uma
formação defeituosa ( semiformação ), que mantêm a continuidade da sociedade
repressiva.
A dinâmica fundamental para a compreensão do atual contexto da dominação na
sociedade de massas contemporânea (que se apresenta obscurecida pela racionalidade do
sistema) refere-se à inversão entre valores de uso e valores de troca . O círculo de
coesão progressiva (Maar: 2000: 88) que prende os sujeitos na sociedade de consumo de
massas é determinado a partir de uma intervenção no plano das necessidades : nesta
sociedade há produção de necessidades assim como dos bens para satisfação destas
necessidades produzidas. A manipulação se dá através da produção incessante de
mercadorias que não possuem em si mesmas valor de uso efetivo, mas apenas um valor
de uso aparente, isto é, um valor de troca - ocorre a produção de valores de troca
39
como se fossem valores de uso : seu valor é um valor que se apresenta como de uso sem
sê-lo
e assim jamais é satisfeito. (Maar: 2000: 93, grifo meu). Esse valor de troca
tornado necessidade é o fetiche, em torno do qual a sociedade se constrói e se reproduz.
O elevado nível de vida no domínio do grande capital é restritivo no sentido sociológico do
termo: as mercadorias e os serviços que os indivíduos compram manipulam suas necessidades e
petrificam suas faculdades. Em troca dos bens de consumo que enriquecem suas vidas, os
indivíduos não vendem apenas seu trabalho mas também seu tempo livre. (Marcuse: 1963: 94)
A produção de necessidades e a manipulação da consciência, que lhe é
concomitante, ocorrem (como já dito) no próprio processo de trabalho, tal como ele se
encontra constituído
enquanto trabalho alienado, reprodutor do próprio processo de
trabalho e do modo de produzir. O processo de trabalho possui um papel formador e
reprodutor do sistema de dominação, sendo ele destinado à realização de valor de troca e
à produção de necessidade de valor de troca - fins exteriores à satisfação das verdadeiras
necessidades e à felicidade dos indivíduos. Há uma estreita ligação entre trabalho e
produção de necessidades (tal como nas formulações de Marx), na medida em que as
necessidades humanas são históricas e, por isso, determinadas de acordo com a forma que o
trabalho assume historicamente. Neste sentido abre-se a perspectiva para uma distinção
entre as verdadeiras e falsas necessidades, que revela a intervenção e manipulação da
sociedade nos próprios sujeitos.
A distinção entre verdadeiras e falsas necessidades (que se encontra tanto em
Marcuse quanto em Adorno) torna possível a crítica ao atual modo de produção, que
produz necessidades com o objetivo de manutenção do sistema de controle e dominação.
As falsas
necessidades referem-se àquelas que são geradas no curso do processo de
40
trabalho a fim de manter este mesmo processo. Duas citações são interessantes para
esclarecer esta questão das falsas necessidades:
Falsas são aquelas [necessidades] superimpostas ao indivíduo por interesses sociais
particulares (...) : as necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça.
(...) A maioria das necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-se e consumir de
acordo com os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de
falsas necessidades. (Marcuse: 1969: 26)
É preciso advertir que necessidades falsas não são falsas necessidades, mas verdadeiras
necessidades, embora falsas no sentido de serem imposições de um certo modo de produzir aos
homens que, eles próprios, produzem conforme este modo de produzir e produziram o próprio
modo de produzir o qual impõe suas necessidades a eles como se fossem deles. As necessidades são
produzidas no processo de reprodução social do modo de produção. (Maar: 1999: 66-7)
As verdadeiras necessidades são aquelas que, tendo sido saciadas as necessidades
básicas à sobrevivência do indivíduo (necessidade de comer, beber, vestir-se e abrigar-se),
desenvolvem-se livremente e têm como propósito a própria vida, ou seja, um fim não
exterior ao indivíduo. Na medida em que essas necessidades básicas não são satisfeitas
universalmente para todos os indivíduos, o atendimento às necessidades secundárias
( falsas ) apresenta-se como uma injustiça, uma denúncia à irracionalidade deste modo de
produção. A distinção entre verdadeiras e falsas necessidades só pode ser feita
historicamente, de acordo com as possibilidades objetivas, na medida em que a satisfação
universal das necessidades vitais e suavização progressiva da labuta e pobreza sejam
padrões universalmente válidos em um determinado momento histórico: a própria
sociedade deve oferecer os critérios para esta distinção (Marcuse: 1969: 26). A citação a
seguir de Adorno é significativa no que se refere a esta questão:
41
Não seria possível, por exemplo, decretar abstratamente que todos os homens precisam ter o
que comer enquanto as forças produtivas não fossem suficientes para a satisfação das necessidades
primitivas de todos. Contudo, quando numa sociedade (...) aqui e agora, em face da abundância de
bens existentes (...) da mesma maneira existe a fome, então isto exige a intervenção nas relações de
produção. Esta exigência brota da situação, de sua análise em todas as dimensões, sem que para isto
se precisasse da universalidade e da necessidade de uma representação de valor. (Adorno apud.
Maar: 2000: 104, grifo meu)
Nesta sociedade o reforço do controle sobre as consciências permite o relaxamento
nos tabus sexuais. A libertação da sexualidade permitida e incentivada atualmente não se
opõe à sociedade que estendeu seu controle sobre o indivíduo: ocorre a dessublimação da
sexualidade . A sexualidade, que até então ainda era mantida sob tabu, foi integrada ao
sistema de dominação e agora a sua libertação se tornou elemento de coesão social.
Entretanto há uma aparente libertação pois ela continua presa aos moldes da sociedade
repressiva - neste sentido ela sofre um processo de dessublimação repressiva. Apesar da
dessublimação corresponder a um processo de ressexualização , ela não produz um
aumento de satisfação e prazer pois não houve uma transformação nas relações de trabalho
e nem na estrutura de dominação e controle que mantém esta sociedade. Neste sentido, esta
libertação atua como uma força a mais na manutenção do sistema.
A liberação repressiva da sexualidade se dá numa forma que não se opõe ao
princípio de realidade vigente, mas o mantém: ao invés de haver um restabelecimento na
libido polimórfica e da energia erótica de Eros (características da sexualidade não
sublimada ) há uma intensificação da sexualidade genital repressiva. A sexualidade, tal
como se encontra determinada atualmente, difere essencialmente da força explosiva
característica da sexualidade descrita por Freud. Nesse processo de liberação ela foi
42
integrada ao processo de trabalho, à propaganda e aos meios de comunicação de massas,
apresentando-se como mais uma mercadoria
com valor de troca e não de uso:
Sem deixar de ser um instrumento de trabalho o corpo tem permissão para exibir suas
características sexuais no mundo do trabalho (...). Esta é uma das realizações originais da sociedade
industrial
tornada possível com a redução da sujeira e do trabalho pesado; pela disponibilidade de
roupas baratas e atraentes, cultivo da beleza e higiene física, (...) etc. As escriturárias e balconistas
sensuais, o chefe de seção e as superintendentes atraentes e viris são mercadorias altamente
comercializáveis (...). (Marcuse: 1969: 84)
Numa realidade como esta o trabalho da teoria crítica é desfazer a falsa
consciência (a consciência feliz ), desmistificando essa realidade que oblitera a
repressão. Os conceitos que a teoria freudiana utiliza refletem as contradições da realidade
e são uma violenta acusação contra esta. A sexualidade, tal como definida por Freud,
exige uma satisfação que vai muito além da que é permitida efetivamente e neste sentido
ela implica a negação do atual princípio de realidade . As reivindicações de gratificação
da sexualidade (que segundo Marcuse é um conceito central para a crítica da sociedade
atual) estão em clara oposição com sua realização efetiva (as tendências sado-
masoquistas , a neurose e a perversão entre outras, são definidas por Freud como uma
recusa da sexualidade em aceitar as imposições do princípio de realidade repressivo).
A oposição entre sexualidade
e trabalho
revela o papel crítico da teoria freudiana
assim como o abismo entre a realidade da repressão e a possibilidade de satisfação na
sociedade repressiva atual. Enquanto isso, a possibilidade de um amor produtivo proposta
pelo revisionismo elimina esta oposição estabelecida por Freud, como se no atual
princípio de realidade a realização individual e a felicidade fossem possíveis sem uma
alteração em sua estrutura, nas relações de produção. Segundo Marcuse, quando definidas
43
no interior de um todo repressivo, a satisfação e a felicidade só são possíveis se
interiorizadas e espiritualizadas, ao contrário da definição de Freud, que une a felicidade
com a real satisfação pulsional (conduzindo à idéia de uma felicidade material). A
redução do papel da sexualidade pelo revisionismo5 elimina a função social da
sexualidade , o conflito entre o indivíduo e a sociedade, assim como a própria crítica desta
sociedade.
Em uma sociedade repressiva, a felicidade individual e o autodesenvolvimento produtivo
estão em contradição com a sociedade: se eles são definidos como valores a se realizar no interior
desta sociedade, tornam-se eles mesmos repressivos. (Marcuse: 1963: 212)
De maneira oposta aos revisionistas, que propõem a cura individual sem uma
intervenção mais profunda no âmbito do modo de produção, na teoria crítica o trabalho
aparece como uma categoria central: toda mudança no sentido da emancipação, para se
realizar efetivamente, deve resultar na transformação das relações de trabalho. A
possibilidade da transformação social deve conduzir à transformação das condições de
trabalho, das relações de produção, enquanto uma condição necessária: somente assim esta
transformação terá como fim a emancipação humana, possibilitando aos indivíduos se
libertarem das condições opressivas de dominação e do círculo de coesão progressiva que
opera através da manipulação das necessidades.
As necessidades humanas, enquanto necessidades históricas, seriam transformadas
em conseqüência de uma transformação no processo de trabalho e assim se tornariam
necessidades verdadeiramente humanas , cujo fim não seria exterior aos indivíduos (a
5 Podemos ver a redução do papel da sexualidade pelos revisionistas nessa citação de K. Horney: Os problemas sexuais, ainda que eles possam prevalecer às vezes no quadro dos sintomas, não são mais considerados como o centro dinâmico das neuroses. As perturbações sexuais são antes o efeito do que a causa da estrutura de caráter neurótica. De outro lado, os problemas morais ganham em importância. (Horney
44
manutenção de um modo de produzir) mas seriam eles próprios. O livro Eros e Civilização
só pode ser compreendido a partir deste contexto: a idéia de uma sublimação não-
repressiva (que será apresentada no próximo capítulo) parece ingênua quando
desvinculada do surgimento de uma sociedade em que as relações de trabalho tenham sido
transformadas. Segundo Maar, para Marcuse
(...) é inútil intervir somente no plano cultural dos alvos, das idéias, da educação, sem fazer
simultaneamente a sua crítica, apresentando os mesmos como sendo resultantes do processo de
consagração do domínio de um modo de produção. O projeto emancipatório de Marcuse é um
exemplo acabado de visão materialista e histórica. É preciso ir mais a fundo por intermédio da
mudança das relações de trabalho, da alteração do modo de produção que instituiu a ditadura do
valor, de uma formação historicamente condicionada à valorização capitalista. (Maar: 1998: 70,
grifo meu)
Esta perspectiva está ausente da crítica revisionista, uma vez que ela deixa
intactas as bases em que o sistema se funda, limitando-se à crítica dos fenômenos de
superfície. A particularidade da apreensão da teoria freudiana pela teoria crítica deve ser
vista a partir do contexto da análise e crítica da sociedade industrial avançada. É neste
contexto que a teoria freudiana revela a sua força . Na medida em que ela apresenta o
conteúdo da satisfação negada aos indivíduos e a impossibilidade de sua realização na
sociedade (esta sociedade, tal como se apresenta organizada) ela conduz à imagem de um
outro princípio de realidade , assim como à denúncia da aparente satisfação e conciliação
permitidas nesta sociedade repressiva. Portanto, ela é de grande interesse para a teoria
crítica.
apud. Marcuse, 1963, p. 231)
45
2.c. - A Crítica Imanente
Voltemos agora à questão que suscitou este debate: saber se Marcuse introduz
concepções exteriores à psicanálise a fim de historicisá-la, tal como afirma P. Robinson.
Nós nos propusemos a explicar esta questão a partir da crítica de Marcuse à escola
revisionista, segundo a qual estes psicanalistas revisionistas teriam introduzido concepções
sociológicas e históricas exteriores à psicanálise. Retomemos uma citação de Marcuse a
respeito do assunto:
As conseqüências [da interpretação revisionista] da teoria freudiana são muito graves. O
aperfeiçoamento revisionista da teoria freudiana, e sobretudo a adição de fatores culturais e sociais,
consagra uma pintura falsa da civilização, e particularmente da sociedade atual. Ao reduzirem a
extensão e a profundidade do conflito, os revisionistas proclamam uma solução falsa, mas fácil.
(Marcuse: 1963: 217)
Diferentemente da leitura revisionista da teoria freudiana, a interpretação de
Marcuse não pretende introduzir fatores exteriores à psicanálise: ele analisa como as
transformações históricas afetam a psicanálise imanentemente , sem recorrer a
pressupostos exteriores. A partir desta análise imanente ele faz a crítica da realidade através
da psicanálise, assim como a crítica da própria psicanálise ao apresentar seu limite
histórico , tal como demonstraremos no tópico a seguir.
O tipo de interpretação que recorre a pressupostos exteriores ao objeto
(interpretação revisionista6) implica a crença em um curso emancipatório para a
civilização a ser apreendido por trás da sociedade em sua forma vigente (Maar: 2002: 4),
como se houvesse uma essência própria à sociedade que a conduz rumo a um futuro
6 A leitura habermasiana também poderia ser incluída nesta categoria (ver Maar, 1998 e 2002).
46
promissor e da qual ela teria apenas se desviado, sendo que a correção desta realidade se
daria a partir de uma ação exterior ao modo de produção, uma ação com implicação moral
e intenção libertária
trata-se de um esquema idealista de interpretação. A citação que
segue mostra que no revisionismo o desenvolvimento das potencialidades humanas poderia
ser atingido através de uma ação exterior aos próprios fatos que bloqueiam o
desenvolvimento destas (com a ajuda da terapia psicanalítica revisionista), como se essas
potencialidades pudessem ser desenvolvidas apenas por um esforço individual.
A finalidade da escola cultural excede a mera habilidade do homem a submeter-se às
restrições da sua sociedade; na medida em que é possível, procura libertá-lo de suas exigências
irracionais e torná-lo mais capacitado para desenvolver suas potencialidades
(...). (Thompson apud.
Marcuse: 1963: 225, grifo meu)
Entretanto, o esquema revisionista é ao mesmo tempo positivista , na medida em
que toma a realidade dada como ponto de partida, sem questioná-la em seus fundamentos.
Ele aceita as premissas desta sociedade sem mostrar que esta impede, pela sua estrutura em
termos de modo de produção, a realização de suas premissas. Vejamos esta citação de
Fromm:
[A pessoa que atingiu uma] robustez e integridade interiores (...) terá segurança,
discernimento e objetividade que a tornarão menos vulnerável às variações de fortuna e opiniões de
outros e, em muitas áreas, fomentará sua capacidade para o trabalho construtivo. (Fromm apud.
Marcuse: 1963: 226, grifo meu)
Nesta citação aparece claramente esta aceitação da realidade como ponto de
partida da análise: a idéia de um trabalho construtivo denuncia o conformismo
revisionista e uma cegueira frente a uma realidade em que o trabalho é trabalho
determinado , alienado : ele é ao mesmo tempo produtor de riqueza e reprodutor de
47
miséria
esta relação é obliterada e só prevalece a primeira. A interpretação revisionista
sugere a possibilidade de uma nova sociedade sem a necessidade de uma alteração no modo
de produção e, portanto, na própria configuração do trabalho. Eles continuam pregando as
premissas em que esta sociedade alienada se sustenta: trabalho e produtividade. A direção
destrutiva da nossa sociedade é definida em termos de produtividade destrutiva , que se
desviou da produtividade construtiva para a qual a sociedade deve se dirigir (Thompson
apud. Marcuse: 1963: 216). A noção de produtividade e suas implicações no interior da
sociedade alienada não são questionadas. O revisionismo subestima a influência do meio
sobre a formação do indivíduo e sua consciência. Pode-se dizer que pertence a um modo de
interpretação idealista-positivo (Maar: 2002: 8).
[Fromm] fala da realização produtiva da personalidade, da solicitude, da responsabilidade e
do respeito ao próximo
como se o homem pudesse realmente praticar tudo isso e ficar são e cheio
de bem-estar em uma sociedade que o próprio Fromm descreveu como de uma total alienação.
(Marcuse: 1963: 223)
Já a interpretação de Marcuse é crítica imanente : o ponto de partida para se
apreender as contradições é o efetivo processo de reprodução da realidade material vigente
(Maar: 2002: 4). Os referenciais normativos referentes ao objeto analisado emergem da
própria realidade, a partir de suas mediações, tendo em vista a produção social em sua
forma alienada: eles se referem à contradição entre, de um lado, a produtividade
anunciada
(possibilidade) e, de outro, a efetivamente realizada (realidade socialmente
imposta) (Maar: 2002: 7). Isto implica a negação daqueles elementos que sustentam o
sistema alienante e suas premissas:
Ou se define a personalidade e a individualidade em termos de suas possibilidades no
interior da civilização existente, e neste caso sua realização equivale para a grande maioria a uma
48
adaptação bem sucedida [tal como faz o revisionismo], ou então se define nos termos de um
conteúdo que exceda os limites [estabelecidos] e que compreenda as potencialidades socialmente
negadas à personalidade, e neste caso sua realização implicaria a transgressão da civilização
estabelecida e modos radicalmente novos de personalidade incompatíveis com os modos
existentes. (Marcuse: 1963: 223, grifo meu)
Marcuse propõe um total rompimento com a forma alienada de sociedade e suas
premissas: nestes termos a teoria freudiana fornece elementos para a crítica desta
sociedade, uma vez que seus conceitos revelam as contradições reais da sociedade alienada.
O estabelecimento da oposição entre o indivíduo e a sociedade, entre a necessidade de
gratificação pulsional e as necessidades da sociedade repressiva, desmistifica uma realidade
que se mantém pela aparência de uma harmonia. Enquanto o revisionismo introduz
conceitos exteriores à psicanálise, conceitos representativos da ideologia da sociedade
alienada, a fim de buscar uma saída para o impasse da infelicidade na civilização, Marcuse
reafirma a importância desta relação estabelecida por Freud (infelicidade e civilização),
uma vez que ela ainda se mantém, apesar de obscurecida pela realidade ideológica: ele
desenvolve os conceitos críticos da própria teoria freudiana para além do limite histórico do
período em que foram formulados.
A diferença entre as posições freudianas e revisionistas aparece bem marcada nesta
citação de Marcuse (os termos em aspas correspondem a frases de K. Horney):
Os conceitos biológicos de Freud vão muito além da ideologia e seus reflexos: sua recusa
de tratar uma sociedade reificada como uma rede crescente de experiências inter-pessoais e um
indivíduo alienado como uma personalidade total corresponde à realidade e contém o verdadeiro
conceito desta realidade. Se [Freud] se impede de considerar esta existência inumana como um
aspecto negativo passageiro de uma humanidade que caminha para a frente, ele é mais humano que
os críticos tolerantes que estigmatizam sua inumana frieza. Freud não crê facilmente que a direção
básica do organismo seja para a frente . (Marcuse: 1963: 220)
49
Em Freud o destino trágico da civilização, seu pessimismo , reflete a sociedade tal
como ele a vê, em sua negatividade, e não uma realidade idealizada. Seu realismo
representa um modo de crítica imanente ao apresentar esta sociedade como realidade
danificada (alienada), contraditória aos interesses do indivíduo: essas contradições reais
da sociedade aparecem em sua análise do indivíduo. Freud não parte de uma realidade
pressuposta idealmente; ele parte da realidade tal como ela se apresenta. A análise do
indivíduo em Freud não pressupõe referenciais normativos, mas surge da própria mediação
social.
2.d. - Mais-Repressão e Princípio de Rendimento (ou A Crítica a Freud)
Para P. Robinson os conceitos mais-repressão e princípio de rendimento
representariam a tentativa de Marcuse de identificar e correlacionar a psicanálise freudiana
com o marxismo. Estes dois conceitos teriam sido desenvolvidos com o objetivo de
introduzir concepções históricas e sociológicas nas concepções a-históricas da psicanálise
freudiana e assim adequá-las ao historicismo marxista (Robinson: 1971: 157).
De fato, esses conceitos formulados por Marcuse pretendem dar conta das
transformações históricas ocorridas no princípio de realidade , mas isto não implica que
ele esteja introduzindo de fora da teoria freudiana as concepções históricas e sociológicas.
Marcuse atualiza as concepções freudianas de repressão e princípio de realidade
tendo em vista as transformações que estas sofreram neste novo contexto que é o
capitalismo organizado (monopolista). Sua análise parte do indivíduo em condições
historicamente diferentes daquelas analisadas por Freud: a interpretação da teoria freudiana
realizada por Marcuse não pretende corrigi-la (pois isto só seria possível em uma
50
realidade corrigida , transformada) e sim mostrar a atualidade da crítica freudiana. Como
será possível demonstrar no decorrer da argumentação, apesar das transformações
históricas que afetaram o objeto da psicanálise
o indivíduo
os conceitos freudianos
ainda se mantêm relevantes na compreensão da realidade, uma vez que sua acusação à
civilização não foi ultrapassada por um novo estágio de organização social: os processos e
conflitos psíquicos que a teoria freudiana descreve não desapareceram
eles continuam
existindo, mas agora eles se dão de forma diferente e devem ser analisados tendo em vista
esse fato.
(...) segundo Freud, os processos e conflitos psíquicos fundamentais não são históricos ,
limitados a um período ou a uma estrutura social precisos
eles são universais, eternos , fatais.
Portanto, esses processos não podem desaparecer e esses conflitos não podem ser resolvidos
eles
devem continuar dominando sob outras formas, que correspondem a outros conteúdos e os
exprimem. (Marcuse: 1998 (a): 95)
A análise da sociedade contemporânea através do instrumento da teoria freudiana
implica a crítica deste instrumento (Rouanet: 1989: 76-7). Não somente a teoria freudiana,
mas também o marxismo, participa desta lógica, como mostraremos mais adiante (dois
textos são exemplares deste processo de crítica imanente 7 ao marxismo: Sobre o Conceito
de Negação da Dialética - que será retomado no decorrer do estudo - assim como o livro
Marxismo Soviético). A teoria freudiana possui um limite histórico enquanto instrumento
de análise e crítica da sociedade, de que os conceitos formulados por Marcuse pretendem
dar conta a fim de melhor compreender e criticar o novo contexto histórico e as
transformações da sociedade.
Este limite refere-se à ambigüidade presente na psicanálise freudiana entre, de um
7 Estamos nos referindo aqui à crítica imanente no próprio conceito, e não no processo histórico.
51
lado, a crítica avassaladora da civilização (cujas imposições são fonte de sofrimento
humano) e, de outro lado, a conclusão de que este sofrimento é inevitável: a psicanálise
dobra-se diante do princípio de realidade , sendo ao mesmo tempo crítica da ilusão e
perpetuadora da falsa consciência : Ao mesmo tempo em que mostra que a infelicidade
é produto da cultura, Freud postula a infelicidade como condição inerente à vida social
(Rouanet: 1989: 94). Esta ambigüidade está expressa claramente na contradição entre a
teoria e a terapia psicanalítica, como já foi demonstrado anteriormente. Neste sentido, a
crítica da psicanálise freudiana realizada por Marcuse dirige-se àqueles elementos presentes
nela que refletem a aceitação da realidade como única possível
este é o elemento estático
desta teoria. Esta extrapolação da teoria freudiana realizada por Marcuse não contradiz
os pressupostos desta, uma vez que seus conceitos permitem uma abordagem histórica.
Marcuse realiza uma crítica imanente aos próprios conceitos freudianos, como aparece
claramente nesta citação a seguir:
O caráter não-histórico dos conceitos freudianos contém assim os elementos de seu
contrário: devemos encontrar sua substância histórica, não juntando alguns fatores sociológicos
(como o fazem as escolas neo-freudianas culturalistas ) mas explicitando seu próprio conteúdo.
Neste sentido, a discussão que segue é uma extrapolação que deriva das noções teóricas
freudianas e de proposições que estão contidas numa forma reificada, na qual os processos
históricos aparecem como naturais (biológicos). (Marcuse: 1963: 42, grifo meu)
Para compreendermos a crítica de Marcuse à teoria freudiana devemos retomar a
polêmica referente ao estatuto do conceito de princípio de realidade nos dois autores: este
conceito se apresenta de modo diferente em Freud e em Marcuse. Segundo Marcuse, o
mundo exterior é, em todas suas etapas, uma organização socio-histórica da realidade que
52
influi sobre as estruturas mentais por intermédio de agentes e agências sociais ,
modificando-as (1963: 41). O princípio de realidade em Marcuse é histórico e dialético.
Cada forma do princípio de realidade se concretiza num sistema de instituições e de
relações sociais, de leis e de valores que transmitem e impõem as modificações necessárias [às
pulsões]. Este aparelho do princípio de realidade é diferente nas diversas etapas da civilização.
(Marcuse: 1963: 44)
Esta perspectiva está ausente da teoria freudiana, pois ela toma a realidade como
estática. Freud hipostasiou a realidade histórica, o que o levou a concluir por uma
imutabilidade da organização social e pelo conflito eterno entre o indivíduo e a sociedade: a
infelicidade torna-se um mal necessário, uma vez que não haveria possibilidade de uma
transformação da sociedade - falta-lhe a perspectiva que apreenda a própria sociedade
também como mediação (Maar: 2002: 11). O princípio de realidade é apreendido por
Freud como imutável, como único modo de ser da civilização. Como já foi dito no capítulo
I deste trabalho, este é o elemento de teoria tradicional presente na psicanálise freudiana.
Para Marcuse esse elemento estático da teoria freudiana representa a realidade
reificada, a realidade da opressão e da dominação. E uma vez que o mundo sempre esteve
organizado como dominação, este fato histórico toma a especificidade de um fato
biológico universal .
O conceito freudiano de princípio de realidade suprime o fato [de que o mundo exterior é
um mundo histórico] transformando contingências históricas em necessidades biológicas: sua
análise da transformação repressiva das [pulsões] sob a influência do princípio de realidade
generalizado partiria de uma forma histórica da realidade, para chegar à realidade pura e simples.
(Marcuse: 1963: 41)
53
Marcuse afirma que a diferenciação entre vicissitudes biológicas e vicissitudes
sócio-históricas está ausente em Freud e podemos dizer que os conceitos de mais
repressão e princípio de rendimento pretendem dar conta desta última. Mas isto não
significa que a história esteja ausente das formulações de Freud: o fato de ele hipostasiar
as vicissitudes históricas em fatos biológicos, em tomar por único o princípio de
realidade , significa que ele apreendeu o real desenvolvimento da civilização até hoje,
essencialmente oposto ao princípio de prazer e às demandas de gratificação pulsional
nesse sentido sua teoria diz muito mais a respeito da realidade do que o historicismo
presente no revisionismo neo-freudiano.
O conflito irreconciliável estabelecido por Freud entre a sexualidade e a
civilização revela a profundidade da incompatibilidade entre os desejos de satisfação
pulsional e a realidade repressiva; mais do que isso: neste conflito reside a feroz acusação
de Freud contra a civilização, uma vez que revela a dominação subjacente ao
desenvolvimento da civilização.
O conflito entre sexualidade e civilização se desenvolve ao mesmo tempo em que a
dominação. Sob o reino do princípio de rendimento, o corpo e o espírito são transformados em
instrumento de trabalho alienado. (Marcuse: 1963: 51)
De acordo com a teoria freudiana este conflito entre a necessidade de satisfação
pulsional e a realidade se deve ao fato de a luta pela existência se situar num mundo muito
pobre para que estas necessidades pulsionais sejam satisfeitas: elas são abandonadas em
troca de segurança e garantia de sobrevivência. A organização repressiva das pulsões se
impõe como fundamental para a sobrevivência do indivíduo, uma vez que a energia
necessária para o trabalho socialmente útil (trabalho penoso e doloroso) provém das pulsões
54
mais especificamente das pulsões de vida , pois o corpo polimórficamente sexual se
nega à sua utilização como instrumento de trabalho árduo, na sua busca pelo prazer. As
vicissitudes das pulsões (descritas por Freud em Pulsões e Destino das Pulsões) revelam
a organização repressiva das pulsões de vida na civilização: a sexualidade deixa de ser
polimórfica e passa a se centralizar em um único órgão (sexualidade genital); o objeto
sexual limita-se a um único parceiro do sexo oposto; o prazer sexual restringe-se à
procriação. As pulsões de morte também fornecem energia para o trabalho, mas estas são
menos sublimadas e, portanto, mais satisfeitas na sociedade do que Eros. A destruição
tecnológica construtiva e a violação construtiva da natureza são meios de satisfação
destas pulsões, que buscam a aniquilação da vida e o repouso integral, a ausência de tensão.
Neste processo o indivíduo está pronto para atuar como um instrumento de trabalho
(alienado) a partir da dessexualização quase total do corpo: a organização repressiva das
pulsões aparece como uma imposição da sociedade e uma necessidade para o progresso na
civilização. Freud argumentou que o indivíduo não teria por si só abandonado as
possibilidades de satisfação e optado pelo trabalho penoso. O estabelecimento da oposição
entre sexualidade e civilização (trabalho) revela que o progresso foi repressão , pois ele
impõe cada vez mais a restrição do prazer tendo em vista a manutenção do trabalho social.
A hipótese freudiana do desenvolvimento da civilização a partir da horda
primitiva , apesar de não ser demonstrável antropologicamente, vale pelo valor simbólico
que representa, uma vez que ela desvenda a dominação do homem pelo homem e o
sofrimento que esse desenvolvimento implicou até hoje - a civilização se desenvolveu
enquanto dominação organizada . O pai primitivo (símbolo maior de todos os pais
menores que se encontram hoje na civilização) é o representante paradigmático da
imposição de restrições à vida pulsional (do princípio de realidade ), uma vez que impediu
55
seus filhos do acesso ao prazer
tomando as mulheres do grupo para si e impondo o tabu
do incesto. Assim os filhos estariam livres para atuarem como instrumento de trabalho,
garantindo a sobrevivência da espécie. Temos aqui o símbolo da primeira dominação
imposta à satisfação pulsional pelo interesse do progresso na civilização, que se revela ao
mesmo tempo como um progresso na dominação.
Entretanto, houve uma mudança decisiva na sociedade contemporânea que torna
falso o argumento freudiano da inevitabilidade do conflito entre princípio de prazer e
princípio de realidade , entre sexualidade e civilização . Esta hipótese, que é analisada
por Marcuse na segunda parte de seu livro, será retomada no capítulo três e por enquanto
nos restringiremos ao interesse desta questão no que se refere à crítica de P. Robinson e à
definição do conteúdo dos conceitos de mais-repressão
e princípio de rendimento .
Esta mudança decisiva refere-se ao surgimento de uma sociedade em que a
possibilidade de eliminação da luta pela existência (trabalho) está dada pelo atual estágio de
desenvolvimento técnico atingido pela civilização: nunca antes na história esta
possibilidade esteve tão presente. A mecanização da produção possibilitaria uma
diminuição significativa na necessidade de trabalhar e, no entanto, as pessoas trabalham
mais do que nunca. Parece que quanto mais a sociedade se aproxima da possibilidade de
eliminar, ou pelo menos diminuir significativamente a necessidade de restrição à satisfação
pulsional (devido à energia desviada para o trabalho social), mais esta é aumentada e
reforçada
o trabalho não aparece mais como uma necessidade na manutenção da
sociedade, mas como uma imposição na manutenção da dominação. Todas as forças são
utilizadas para que as pessoas não percebam que trabalham sem a necessidade de fazê-lo,
que sua vida sexual é significativamente debilitada neste processo, que sua liberdade se
restringe à escolha de opções predeterminadas, que suas atitudes, necessidades e desejos
56
são produzidas por um aparato que se movimente em função de sua própria reprodução e
não percebem a dominação presente na aparente libertação.
O recalque suplementar relativo ao interesse de dominação é o que Marcuse
chama de mais-repressão e o princípio de realidade correspondente à sociedade que
impõe a mais-repressão , a fim de manter a dominação frente à real possibilidade de
eliminação do trabalho árduo (alienado), chama-se princípio de rendimento . Esses
conceitos pretendem elucidar a extensão e os limites da repressão dominante na
civilização contemporânea que deve ser descrita com a ajuda do princípio de realidade
específico que rege o desenvolvimento desta civilização (1963: 49-50).
Através de toda a história da civilização, a coação [pulsional] imposta pela penúria foi
aumentada por coações impostas pela repartição hierarquizada da penúria e do trabalho: os
interesses de dominação acrescentam um recalque suplementar à organização das [pulsões]
sob o
reino do princípio de realidade . O princípio de prazer não foi destronado unicamente porque ele
trabalhava contra o progresso, mas também porque ele trabalhava contra uma civilização na qual o
progresso assegura a sobrevivência da dominação e do trabalho. (Marcuse: 1963: 46, grifo meu)
Os conceitos formulados por Marcuse só alcançam sua plena significação quando
colocados em termos de critérios objetivos : a possibilidade de medida do nível de
repressão e, portanto, de diferenciação entre repressão e mais-repressão numa
determinada etapa da civilização, só pode ser feita quando tomada em relação às
possibilidades de libertação presentes nela. A mais-repressão representa uma realidade
na qual o elevado grau de repressão se estabelece em uma etapa da civilização na qual
(...) a necessidade de renúncia e de trabalho é consideravelmente reduzida pelo progresso
material e intelectual, na qual a civilização poderia realmente oferecer uma liberação considerável
da energia [pulsional] consagrada à dominação e ao trabalho. A extensão e a profundidade da
57
repressão [pulsional] só alcançam sua plena significação quando comparadas com a extensão de
liberdade possível em um determinado momento histórico. (Marcuse: 1963,: 85, grifo meu)
A desculpa da penúria que justificou a repressão, a dominação e o trabalho árduo
durante tanto tempo, não valem mais numa sociedade em que a pobreza e a miséria
resultam da sua distribuição hierárquica. Esta é a irracionalidade subjacente à racionalidade
em torno da qual esta sociedade se organiza, que só pode ser demonstrada quando se
compara a possibilidade de libertação com a realidade da repressão inerente a esta
sociedade. Sua irracionalidade apresenta-se tanto numa perspectiva sociológica (a partir a
obsolescência da atual organização das relações de trabalho, devido à possibilidade de uma
diminuição significativa no tempo desperdiçado no trabalho penoso, propiciado pela
mecanização das forças produtivas), quanto numa perspectiva pulsional (a diminuição na
jornada de trabalho permitiria uma nova organização
não repressiva
da sexualidade),
sendo estas intimamente relacionadas. Nesta sociedade haveria a possibilidade de liberar o
indivíduo dos encargos do trabalho árduo, o que contestaria o fatalismo da oposição entre
sexualidade e civilização, felicidade e civilização, princípio de prazer e princípio de
realidade . O argumento de Freud se torna inválido em uma sociedade na qual a satisfação
material é em grande parte saciada através da produção incessante de bens de consumo.
A pobreza que reina em vastas zonas do mundo não tem mais como causa principal a
pobreza dos recursos humanos e naturais, mas a maneira como são distribuídas e utilizadas. Esta
diferença é talvez sem importância para a política e os políticos, mas é de uma importância capital
para uma teoria da civilização que faz derivar a necessidade de repressão da desproporção natural
e perpétua entre os desejos humanos e o meio no qual eles devem ser satisfeitos. (Marcuse: 1963:
88)
58
Mas este argumento de Freud é inválido ao mesmo tempo em que revela a
profundidade de suas acusações . É inválido na medida em que a necessidade do conflito
entre princípio de prazer e princípio de realidade é agora questionável, tendo em vista
que a possibilidade de eliminação do trabalho poderia resultar numa libertação das
pulsões da necessidade de sua limitação repressiva (no sentido da mais-repressão
imposta pelo interesse da dominação). De outro lado, ele continua a revelar a dominação e
o controle social e político subjacente ao desenvolvimento da sociedade.
Na sociedade atual a luta pela existência é mantida - apesar de todas as condições
objetivas para a sua eliminação (ou pelo menos diminuição significativa) - através da
constante dominação e manipulação dos indivíduos, para que eles não percebam a
irracionalidade presente nesta organização social - ocorre a racionalização da dominação .
Os métodos de dominação se transformaram: eles se tornaram cada vez mais tecnológicos,
produtivos, e mesmo aproveitáveis para os objetos de dominação; portanto, nos setores mais
avançados da sociedade industrial, as pessoas foram presas ao sistema de dominação e se
reconciliaram com ele num grau sem precedentes. (Marcuse: 1963: 10)
A obsolescência dos conceitos freudianos refere-se apenas aos mecanismos pelos
quais os processos e conflitos psíquicos se dão no indivíduo na sociedade atual. A teoria
freudiana, que desvendou a dominação inerente ao desenvolvimento e ao progresso da
civilização, continua valendo apesar das transformações históricas ocorridas: este
desenvolvimento não eliminou as relações de dominação e as imposições e renúncias por
parte da sociedade.
Ao denunciar sem concessões que o homem sofre numa sociedade repressiva, ao predizer
que com o progresso da civilização aumenta a culpa, que a morte e a destruição ameaçarão sempre
mais eficazmente as pulsões de vida, Freud lançou uma acusação que foi corroborada desde então
59
pelas câmaras de gás e campos de concentração, pelos métodos de tortura praticados nas guerras
coloniais e nas operações policiais, pela habilidade com que os homens se preparam para uma
vida subterrânea. Não é culpa da psicanálise que ela seja impotente para combater esse
desenvolvimento (...). A verdade da psicanálise consiste em manter fidelidade às suas hipóteses
mais provocadoras. (Marcuse: 1998 (a): 109-10)
Os conceitos de mais repressão e princípio de rendimento formulados por
Marcuse possuem o objetivo crítico de denunciar esta contradição inerente ao
desenvolvimento da sociedade contemporânea. A objeção de P. Robinson, de que Marcuse
teria introduzido concepções históricas exteriores à psicanálise, revelou-se suspeita a partir
dos argumentos expostos no decorrer da argumentação. Não creio que tenhamos esgotado
por completo a questão aqui e nem mesmo que ela não seja passível de objeções. Esta
leitura foi a que pareceu mais plausível e mais fiel às contribuições de Marcuse .
Passaremos agora à análise da hipótese da transformação não-repressiva das
pulsões, apresentada por Marcuse na segunda parte do seu livro. Assim como fizemos neste
capítulo, investigaremos esta hipótese a partir de duas críticas dirigidas a ela, que nos
permitirão compreender os vários lados desta formulação.
60
Capítulo III
A Hipótese da Transformação Não-Repressiva das Pulsões
1. Exposição da hipótese de Marcuse
A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse tem como proposta a
ortodoxia em relação às suas categorias e conceitos: isto significa que ele não pretende
acrescentar concepções exteriores à teoria freudiana, mas se manter fiel às suas categorias,
observando a possibilidade de um desenvolvimento não-repressivo das pulsões a partir dos
seus próprios conceitos.
Para Marcuse a teoria freudiana da cultura contém uma severa crítica ao princípio
de realidade repressivo e nesta crítica ela conduz a uma imagem de libertação : o
pessimismo freudiano quanto à possibilidade de felicidade e liberdade individuais implica
na negação e na recusa dessa sociedade repressiva. Neste sentido, a possibilidade de uma
transformação não-repressiva do princípio de realidade deve ser imanente às próprias
concepções freudianas, deve estar contida em seus próprios conceitos. O caráter
conservador das pulsões e a oposição destas à civilização devem desaparecer sob as
condições de uma sociedade não-repressiva. É esta possibilidade vislumbrada por Marcuse
que tentaremos apresentar neste capítulo.
Se, de modo geral, na primeira parte de Eros e Civilização Marcuse apresenta as
concepções principais da teoria freudiana que segundo ele são importantes (que foram
apresentadas de modo não sistemático no capítulo anterior), na segunda parte do livro ele se
dedica à demonstração da possibilidade das pulsões percorrerem um caminho diferente sob
a condição de uma realidade transformada, ou seja, de um princípio de realidade não-
repressivo . Segundo Marcuse são duas as justificativas dessa possibilidade: a primeira
equivale ao surgimento da sociedade industrial avançada e sua crescente produtividade; a
61
Segunda, pertence ao próprio contexto da teoria freudiana na medida em que suas
categorias e seus conceitos conduzem à idéia de um novo princípio de realidade .
Esta segunda possibilidade referente à imagem de uma realidade não-repressiva
presente nas próprias concepções freudianas também pertence ao contexto mais geral da
filosofia ocidental: neste ponto a metapsicologia freudiana encontra uma das principais
correntes da filosofia ocidental (1963: 102). No Intermezzo Filosófico (capítulo 5 de Eros
e Civilização) Marcuse insere Freud na história da filosofia ocidental num duplo
movimento: por um lado, reconhecimento da dominação instrumental (tanto do mundo
interno quanto externo), que implica no estabelecimento da oposição entre a razão e a
sensibilidade ; por outro, a denúncia da realidade repressiva através de uma imagem de
reconciliação .
A oposição entre razão e sensibilidade explicita o controle do homem sobre a
natureza, que garante a realização das potencialidades humanas e que foi estabelecido
mediante o Logos de dominação (faculdades superiores) e a repressão das faculdades
sensíveis e naturais. Na teoria freudiana o trabalho socialmente útil , que garante a
sobrevivência do ser humano num mundo externo agressivo, só pode se estabelecer a partir
da repressão e sublimação das pulsões (sobretudo das pulsões de vida ), isto é,
debilitando e limitando as possibilidades de obtenção de prazer pela satisfação sexual. A
repressão e sublimação das pulsões são condições necessárias ao progresso da
civilização, como Freud mostra em seu texto de 1908, Moral Sexual Cultural e
Nervosidade Moderna: nossa cultura descansa totalmente na coerção das pulsões . Freud
apresenta o contexto da civilização a partir da subjugação das faculdades sensíveis do ser
humano, imposta pelo progresso.
62
Neste sentido as concepções freudianas se assemelham às presentes em Aristóteles e
Hegel. As implicações da concepção do Logos como essência do ser, presentes na lógica
aristotélica, são sentidas ao longo da história da filosofia, se confundindo com uma razão
que ordena, classifica e dirige e impõe a luta contra as faculdades receptivas e contra o
princípio de prazer. Também Hegel demonstrou que a civilização só se estabelece a partir
de uma lógica da dominação da qual depende toda liberdade e satisfação humanas: a
consciência-de-si aparece como negação do outro e como desejo de supressão desta
separação a partir da aniquilação do outro
consciência-de-si como desejo . Com Hegel o
círculo se fecha : ele reconheceu a história da humanidade enquanto dominação e triunfo
da razão, mas ao mesmo tempo apresentou esta história como terminada
a dialética de
Hegel se mantém no interior dos quadros postos pelo princípio de realidade (1963: 108).
Se, de um lado, estas filosofias apresentam a realidade como realidade da
dominação e da repressão, de outro elas representam a necessidade de sua superação desta
realidade: a lógica da dominação não triunfa sem combate (1963: 104). Marcuse vai
mostrar que nestas teorias sobrevive a imagem de um Logos de satisfação e de uma
realidade de prazer, de um mundo no qual todas as potencialidades sejam realizadas. O
conteúdo dos conceitos de liberdade e razão , por exemplo, estão em evidente
contradição com a realidade: este abismo entre a imagem da satisfação e a realidade da
não realização atua como uma crítica do princípio de realidade repressivo por trazer à
consciência essas contradições efetivas. No entanto, a crítica se paralisa na medida em que
a superação da realidade repressiva sobrevive apenas como imagem e não como
possibilidade de realização efetiva.
Pois é justamente a realização desta realidade de satisfação que se tornou possível
com o surgimento da sociedade tecnológica. Marcuse tenta mostrar que, no novo contexto
63
histórico, esses conceitos críticos, que vislumbram um novo princípio de realidade ,
poderiam se realizar efetivamente: o livre desenvolvimento das potencialidades humanas
não implica mais necessariamente na repressão e inibição das faculdades inferiores, que foi
fundamental para a dominação da natureza a partir do Logos de dominação
não há mais
necessidade de manter a separação entre a razão e a sensibilidade , uma vez que as
realizações técnicas da sociedade industrial avançada permitiriam a satisfação das
necessidades básicas sem muito esforço.
Marcuse tenta uma interpretação da teoria freudiana tendo em vista a possibilidade
de uma sociedade na qual as pulsões de vida possam se realizar e em que o trabalho não
seja oposto a essa satisfação. Mas para isso ele precisa demonstrar que as pulsões de
morte não destruiriam esta civilização, já que Freud vê em sua atividade o maior
empecilho para um princípio de realidade não repressivo. Segundo Marcuse as próprias
concepções freudianas não negam a possibilidade da transformação não-repressiva das
pulsões, tornada possível com o desenvolvimento da civilização; ele pretende desenvolver
esta possibilidade a partir dos próprios conceitos pertencentes à teoria freudiana, sem
introdução de concepções exteriores. Vejamos como ele dribla a concepção da natureza
conservadora das pulsões .
Marcuse busca na teoria freudiana conceitos e noções que coloquem em questão o
princípio de realidade repressivo, que sejam sua negação e acusação. Ele destaca como
um dos principais o conceito de imaginário . Este princípio mental possui um papel muito
importante na estrutura mental, na medida em que ele liga as camadas mais profundas do
inconsciente à consciência: ele guarda os arquétipos da espécie, as imagens eternas
recalcadas da memória individual e coletiva, as imagens tabus de liberdade (1963: 128).
64
Este modo de pensamento se acha livre do princípio de realidade e está em relação direta
com o princípio de prazer . É na arte que ele expressa sua forma e sua reivindicação de
liberdade e satisfação, contra a realidade repressiva. Suas reivindicações de satisfação são
também vistas nas perversões , uma vez que expressam o elo entre a imaginação e
sexualidade - as perversões são o resultado da luta da sexualidade reprimida pela obtenção
de prazer:
Graças à revolta contra o princípio de rendimento em nome do princípio de prazer, as
perversões mostram uma afinidade profunda com a imaginação. (...) Contra uma sociedade que
utiliza a sexualidade como um meio para realizar um fim socialmente útil, as perversões mantêm a
sexualidade como um fim em si: elas se colocam fora do reino do princípio de rendimento e
colocam sua base em questão. (Marcuse: 1963: 54).
Neste sentido a imaginação adquire um papel central nas formulações de
Marcuse. Sua função crítica deriva do fato de ela evocar uma imagem de liberdade e
felicidade que se opõe à realidade repressiva e que recusa a imposição de limitações. É na
arte que ela encontra sua linguagem e os surrealistas reconheceram as implicações
revolucionárias das descobertas de Freud 8 (1963: 135).
Essa função crítica está ausente da teoria freudiana, uma vez que para ela a imagem
evocada pela imaginação reflete apenas um passado sub-histórico, sem volta. Na medida
em que a civilização depende da inibição da satisfação e das possibilidades de prazer para
a manutenção da vida através do trabalho, a idéia de um princípio de realidade não
repressivo implicaria num retour en arrière no desenvolvimento da civilização
a
história é hipostasiada numa forma única da civilização.
8 Reduzir a imaginação à escravidão, mesmo que estivesse em jogo aquilo a que grosseiramente se chama felicidade, é privarmo-nos de tudo o que encontramos, no nosso íntimo mais profundo, de justiça suprema. Somente a imaginação me diz o que pode ser. (Breton apud. Marcuse: 1999: 138)
65
Entretanto, Marcuse pensa que a realização das reivindicações da imaginação em
tornar a liberdade e o prazer realidades não levaria a civilização de volta a fases primitivas,
pois a civilização não-repressiva depende não do estancamento do progresso 9 mas de sua
liberação, isto é, o apaziguamento da luta pela existência tornado possível com o
progresso . Esta diferença em relação aos estados anteriores da civilização é que faz
possível pensar na realização da utopia . Mas a questão que Marcuse se coloca é:
A única questão pertinente é saber se podemos razoavelmente considerar um estado da
civilização no qual as necessidades humanas sejam satisfeitas de uma maneira tal e na medida em
que a mais-repressão possa ser suprimida. (Marcuse 1963: 137)
Ele quer saber se a eliminação da mais-repressão não eliminaria também o
trabalho e, portanto, a própria civilização, tal como imagina Freud. A possibilidade de
eliminar apenas a repressão imposta pelo interesse exclusivo de dominação ( mais-
repressão ), deve permitir a formação de relações de trabalho novas e duráveis e não a
eliminação do trabalho e da civilização. A realização da utopia depende de uma análise
dos caminhos que tomariam as pulsões sob a vigência de um princípio de realidade não-
repressivo.
9 A noção de progresso na teoria crítica adquire um conteúdo específico; a crítica do progresso difere de uma recusa ingênua das novas técnicas, isto é, ela não tem como proposta uma volta às fases anteriores de desenvolvimento, numa espécie de nostalgia do passado. Nas palavras de M. Löwy: [ela] implica uma atitude com relação ao passado que se distingue profundamente dos restauracionistas românticos: o objetivo não é a conservação do passado, mas a realização das esperanças passadas (Löwy: 1992: 205). Marcuse apresenta esta crítica do progresso no seu texto A Noção de Progresso à Luz da Psicanálise; neste ele faz uma distinção entre progresso quantitativo , que é chamado de progresso técnico (que corresponde à forma atual em que ele se dá), e progresso qualitativo , que é chamado de progresso humanitário (que corresponde à forma em que ele deveria se dar). A questão a ser respondida com esta distinção entre as duas formas de progresso é se esse progresso contribui realmente para o aperfeiçoamento humano, para uma existência mais livre e feliz (Marcuse: 2001: 112-3). Daí a distinção entre técnica e tecnologia: a tecnologia é entendida por Marcuse como um processo social no qual a técnica não passa de um fator parcial (ver Marcuse: 1998 (b)). A técnica por si só poderia permitir uma nova organização social, diferente a estabelecida.
66
A primeira das pulsões que Marcuse analisa são as pulsões de vida , que segundo
ele, são as mais desordenadas .
Uma ordem não-repressiva só é possível se os instintos sexuais podem, pela própria
dinâmica e em condições sociais e existenciais transformadas, fundar relações eróticas duráveis
entre os indivíduos. Devemos nos perguntar se os instintos sexuais, depois da eliminação da mais-
repressão, podem desenvolver uma racionalidade libidinal que seja não somente compatível com o
progresso, mas que o conduza a formas superiores de liberdade civilizada. (Marcuse: 1963: 174)
De acordo com a leitura de Marcuse, na teoria freudiana os obstáculos sociais
impostos às pulsões sexuais se devem à necessidade do trabalho na civilização e da
formação de relações duráveis entre as pessoas: o corpo dessexualizado permite sua
utilização enquanto instrumento de trabalho alienado (através da canalização da energia
libidinal que lhe é necessária), assim como a convivência em comunidade. Toda diminuição
destes obstáculos sociais conduziria a sociedade a fases pré-civilizadas.
No entanto, Marcuse argumenta que se o tempo e a energia empregados no trabalho
fossem reduzidos, sem uma manipulação do tempo livre , as bases destes obstáculos
sociais à satisfação pulsional seriam também reduzidas: o corpo se ressexualizaria e não
seria mais utilizado como instrumento de trabalho. Isto implicaria numa reativação das
zonas eróticas , no renascimento da sexualidade polimórfica e no declínio da
supremacia genital . Esta possibilidade de liberação da sexualidade parece, à primeira vista,
conduzir à imagem de uma sociedade de maníacos ou mesmo à sua destruição - se for
concebida apenas enquanto um fato isolado dentro de uma sociedade repressiva.
O fator central para a compreensão da possibilidade de realização desta utopia
vislumbrada por Marcuse é que este processo não implica só a liberação da sexualidade
67
mas também uma transformação da libido como resultado de uma transformação
social .
O livre desenvolvimento da libido transformada, além das instituições do princípio de
rendimento, difere essencialmente da liberação da sexualidade regida no interior do domínio dessas
instituições. (Marcuse: 1963: 177)
A liberação da sexualidade no interior do princípio de rendimento foi apresentada
no capítulo anterior pela noção de dessublimação repressiva da sexualidade . Já a
transformação da sexualidade através de sua liberação no contexto de uma realidade
transformada, não-repressiva, é chamada de auto-sublimação da sexualidade .
A auto-sublimação da sexualidade implica na transformação da sexualidade em
Eros. Nas condições específicas da realidade transformada a sexualidade tenderia a dar
origem a relações humanas altamente civilizadas : o fim do primado da genitalidade e
da dessexualização do corpo não levaria à destruição das relações sociais. A sexualidade
transformada em Eros implica na sua ampliação qualitativa e quantitativa , no sentido em
que a pulsão tomaria por domínio e objeto a própria vida (e neste sentido ela a protegeria)
ou seja, as pulsões de vida levariam adiante seu objetivo de constituir unidades cada vez
maiores e de conservar e ampliar a vida. Para Marcuse a sexualidade organizada
repressivamente corresponde à repressão de Eros: a auto-sublimação da sexualidade
significa o restabelecimento da sua função primeira
o impulso biológico torna-se um
impulso cultural (1963: 184).
Neste contexto a função das perversões também seria modificada: suas
manifestações diferem essencialmente quando produzidas numa civilização não-repressiva
ou repressiva. Numa civilização não-repressiva as formas assumidas pelas perversões (entre
68
elas o homossexualismo , tal como definido por Freud) teriam uma função muito diferente
das formas inumanas, coercitivas e destrutivas que a perversão apresenta na civilização
repressiva: estas últimas estariam ligadas à perversão geral da existência numa civilização
repressiva (1963: 177-8).
Também a sublimação adquire um novo caráter nesta sociedade transformada: ela
se apresenta como sublimação não-repressiva . A sublimação , tal como definida por
Freud, é chamada por Marcuse de sublimação repressiva , pois ela implica na
dessexualização da pulsão, na inibição de sua meta sexual e no redirecionamento de sua
meta para um fim não sexual. Para ele a sublimação (repressiva) da sexualidade difere da
sublimação de Eros na medida em que a primeira se estabelece no contexto de uma
sociedade repressiva e a segunda numa sociedade transformada. A sublimação de Eros
nesta nova sociedade é sublimação não-repressiva e ela representa a possibilidade de
uma sublimação sem dessexualização.
É evidente que sob o domínio do princípio de realidade atual, uma sublimação não-
repressiva só pode aparecer pelos seus aspectos marginais incompletos: sua forma plenamente
desenvolvida seria a sublimação sem dessexualização. O instinto não é desviado de seu objetivo.
Ele é satisfeito em atividades e relações que não são sexuais no sentido da sexualidade genital
organizada mas que são entretanto libidinais e eróticas. (Marcuse: 1963: 182)
A sexualidade liberada de sua limitação espacial não seria desviada nem impedida
de se realizar mas, enquanto um impulso coletivo, que procura a manutenção da vida e da
sociedade (enquanto pulsão de vida , Eros), ela transcenderia seu objeto e satisfação
imediatos em favor da coletividade. Esta nova modalidade de sublimação não implica na
extinção da cultura, uma vez que continua havendo sublimação, como nos mostram estas
duas citações presentes em Eros e Civilização:
69
[A sublimação não-repressiva] deve ser um processo supra-individual (...). Enquanto
fenômeno individual isolado, a reativação da libido não leva à civilização superior mas, à neurose.
(Marcuse: 1963: 183)
A diferença entre uma neurose e uma sublimação reside evidentemente no aspecto social do
fenômeno. Uma neurose isola, uma sublimação une. Pela sublimação, alguma coisa nova se cria:
uma casa, uma comunidade, um instrumento
e se cria no grupo para ser utilizado pelo grupo.
(Rohein apud. Marcuse: 1963: 183)
A possibilidade da sublimação não-repressiva implica que esta possa agir sobre
um sistema de relações libidinais crescentes e duráveis: as relações de trabalho.
Esta possibilidade do trabalho prazeroso é a base para a nova sociedade. Apesar
de Freud não diferenciar entre trabalho alienado e não alienado, a possibilidade do trabalho
proporcionar prazer não lhe é estranha. Marcuse apresenta uma citação de Psicologia de
Massas em que Freud parece reconhecer a possibilidade da libido se ligar à satisfação das
grandes necessidades vitais : há na teoria freudiana uma contradição no que se refere à
questão da luta pela existência ser libidinal ou antilibidinal. Mas, para Marcuse, o próprio
fato de Freud estabelecer uma ligação entre trabalho e sexualidade, entre a atividade
humana e a organização das pulsões , já abre a perspectiva para imaginar a possibilidade
do trabalho não ser simplesmente fonte de desprazer, mas de poder ser investido
libidinalmente numa sociedade não-repressiva.
A possibilidade de uma tendência erótica no trabalho é dada pelo atual nível de
desenvolvimento das forças produtivas. De acordo com a leitura de Marcuse da teoria
freudiana, a modificação repressiva das pulsões se impõe como necessária para possibilitar
a luta pela existência e a manutenção da vida. Neste sentido, a impossibilidade da libertação
do princípio de prazer implica na suposição de que a penúria é permanente . Mas se
70
nesta nova etapa da civilização a luta pela existência pode ser apaziguada, em conseqüência
da vitória sobre a escassez, então não há porque negar a possibilidade do trabalho investido
libidinalmente. A mecanização da produção permitiria uma diminuição no tempo
desperdiçado na manutenção da sobrevivência, que libertaria a energia sexual de sua
limitação espacial necessária para o trabalho. E uma vez que a sexualidade transformada
em Eros toma como objeto de satisfação a própria vida, e sendo o trabalho parte integral na
sua constituição e na sua auto-preservação, então ela também tomará o trabalho como fonte
de satisfação. As condições sociais alteradas criariam uma base pulsional para a
transformação do trabalho em atividade lúdica . Nestas novas condições o trabalho não
teria mas um fim exterior, isto é, a manutenção do sistema de dominação: ele seria
transformado em jogo , proporcionando satisfação em si mesmo.
Uma modificação na estrutura instintual (...) conduz a uma alteração no valor instintual da
atividade humana, qualquer que seja seu conteúdo (...) Se o trabalho fosse acompanhado de uma
reativação do erotismo pré-genital polimórfico, ele tenderia a tornar-se satisfação em si sem perder
seu conteúdo de trabalho. É exatamente esta reativação do erotismo polimórfico que apareceu como
conseqüência da vitória sobre a penúria e a alienação. (Marcuse: 1963: 187)
Esta questão do trabalho apresenta sua plena significação quando colocada em
relação à crítica do revisionismo neofreudiano. Marcuse critica a formulação de Ives
Hendrick que atribui ao ser humano um instinto de habilidade específico: segundo
Hendrick as energias necessárias para o trabalho provêm deste instinto, cujo objetivo é
modificar e controlar o meio. A satisfação deste instinto estaria garantida pela possibilidade
de satisfação através do trabalho (o trabalho produziria prazer na satisfação deste instinto).
Para Marcuse, se o trabalho em si propicia prazer, então a relação estabelecida por Freud
entre sexualidade e trabalho (entre prazer libidinal e trabalho árduo) perde sua significação.
71
Numa realidade governada pelo princípio de rendimento a possibilidade de obtenção de
prazer pelo trabalho torna-se repressiva
e a afirmação desta possibilidade torna-se
ideológica . Os revisionistas aceitam o trabalho tal como estabelecido (trabalho alienado)
e, mais do que isso, o trabalho aparece como fonte de prazer e gratificação. Para Marcuse o
trabalho alienado não satisfaz as necessidades dos indivíduos, suas próprias pulsões e
faculdades, mas cumpre uma função pré-estabelecida
é preciso fazer a crítica desta
forma de trabalho:
Associar o desempenho em linhas de montagem, em escritórios e lojas, com necessidades
pulsionais, é glorificar a desumanização como prazer. (Marcuse: 1963: 191-2)
Outro fator importante na constituição de uma civilização não-repressiva é a
dessublimação da razão . Ela implica na possibilidade de que a razão se torne também
objeto direto de investimento libidinal, o que daria origem a uma nova idéia de razão .
Se a sublimação (repressiva) da razão implica em sua dessexualização, ou seja, sua
separação dos conteúdos sensíveis, na oposição entre faculdades superiores e inferiores,
razão e sensibilidade, então a dessublimação da razão implica na ressexualização dessa
razão e no surgimento de uma razão sensível . Na condição da civilização não-repressiva,
em que as relações de trabalho tenham sido transformadas, a tendência peculiar a Eros em
buscar prazer se estende até a esfera espiritual: nada na natureza de Eros justifica a noção
segundo a qual o instinto é limitado ao domínio corporal (1963: 183).
Portanto, Marcuse justifica a possibilidade da modificação não-repressiva das
pulsões na civilização não-repressiva pelos processos de auto-sublimação da sexualidade
e da dessublimação da razão , enquanto processos resultantes da conquista sobre a
escassez. A transformação da estrutura pulsional, das relações de trabalho, da razão e da
72
sublimação (a eliminação de seus conteúdos repressivos) modificaria a atitude do ser
humano em relação à natureza e aos outros seres humanos, de modo que seria
completamente oposta à atitude que caracteriza a civilização ocidental. A transformação da
sexualidade em Eros e a sua extensão às relações de trabalho pressupõem para Marcuse
uma reorganização racional de um aparelho industrial enorme , uma divisão de trabalho
altamente especializada , a utilização construtiva da energia destrutiva e a cooperação
de vastas massas . Marcuse justifica a possibilidade deste tipo de relação do ser humano
com o meio, que não se baseia na dominação e exploração, através da antropologia,
apresentando o exemplo da sociedade Arapesh descrita pela antropóloga M. Mead, que tem
como traço particular a ausência de conflito com a natureza e entre seus membros.
Mas, já que Marcuse se propôs a aceitar todos os conceitos da teoria freudiana, a
possibilidade de estabelecer uma civilização não-repressiva precisa ser analisada frente ao
maior dos empecilhos para sua formulação, as pulsões de morte .
Para Freud o maior obstáculo que enfrenta a civilização é o controle da tendência
inata ao ser humano que o conduz à agressão e às manifestações desta tendência que se
acham ligadas às manifestações de Eros (é por isso que a sexualidade também não pode ser
liberada, pois liberaria as tendências agressivas que são unidas a ela).
Marcuse afirma que a hipótese de Freud, de que a agressão é inata ao ser humano e
que é um empecilho na constituição de uma sociedade livre, é de grande serventia para a
manutenção do princípio de rendimento , pois torna todo protesto insensato e inútil
este
é um dos argumentos dos revisionistas contra a idéia da existência desta pulsão. No texto de
1977, Ecologia e Crítica da Sociedade Moderna, Marcuse afirma que a negação da
possibilidade da transformação das pulsões testemunha o grau ao qual esta objeção
sucumbiu a uma ideologia conformista (1999: 154)
esta objeção apresenta a dominação
73
e a agressão como leis da natureza . Entretanto, contra a tendência inata à agressão
atribuída por Freud, Marcuse argumenta:
Contra esta ideologia, insisto que não há algo como uma natureza humana imutável. Além e
acima do mundo animal, os seres humanos são seres maleáveis, corpo e mente, até mesmo em sua
estrutura pulsional. (Marcuse: 1999: 154)
Na teoria freudiana as pulsões de morte constituem uma tendência do organismo
a buscar o estado de ausência de tensão: segundo a hipótese, na medida em que a matéria
viva se originou da matéria inorgânica ela tende a retornar a esse estado. Essas pulsões se
dirigem no sentido da autodestruição e destruição do meio, como um caminho mais rápido
para a morte, que é o estado de ausência total de tensão e desprazer.
Segundo a hipótese de uma civilização não-repressiva desenvolvida por Marcuse,
numa sociedade em que a luta pela existência tenha sido praticamente eliminada (devido às
conquistas técnicas) e cuja organização tenha se tornado racional , a busca das pulsões
pela ausência de tensão e de sofrimento deve estancar, já que essa tensão e esse sofrimento
seriam eliminados. A vida estaria organizada de tal forma que as pulsões perderiam seu
caráter regressivo
o princípio de Nirvana convergiria com o princípio de realidade
não-repressivo.
Se o fundamental da [pulsão] não é a cessação da vida, mas da dor, ausência de tensão,
paradoxalmente, o conflito entre a morte e a vida é reduzido quanto mais a vida se aproxima do
estado de satisfação. O princípio de prazer e o princípio de Nirvana convergiriam. (Marcuse: 1963:
203)
A possibilidade de uma transformação na organização pulsional desenvolvida por
Marcuse apóia-se na hipótese de Fenichel segundo a qual, se as pulsões possuem uma
natureza comum , tal como afirma Freud em Além do Princípio de Prazer, então há uma
74
energia deslocável, neutra, ora podendo se aliar à tendência erótica, ora à tendência
destrutiva: esta posição permite que, no curso de seu desenvolvimento, as pulsões possam
ser diferenciadas por influências externas (1963: 37).
Na medida em que Eros se livra da mais-repressão imposta pela dominação, que
exige a transformação repressiva da sexualidade, e que as pulsões de morte não são mais
impelidas a escapar do estado de sofrimento e tensão impostos pela realidade, estas pulsões
perderiam em grande parte a necessidade de regressão : a natureza conservadora das
pulsões desapareceria num presente apaziguado .
Marcuse impõe uma condição necessária para a possibilidade da transformação do
princípio de realidade repressivo: a liberação do conteúdo recalcado da memória,
enquanto veículo da libertação . A civilização repressiva impõe constantemente a
resignação e o esquecimento (recalque da memória) como condições de sua
sobrevivência, já que a civilização não se redimiu das injustiças e dos sofrimentos
passados: assim ela pode continuar se reproduzindo, assim como reproduzindo a injustiça e
escravidão.10 Esta faculdade do esquecimento está ligada à submissão e à resignação, que
são constantemente incentivadas pela moral civilizada .
Esquecer é também esquecer o que não podia ser esquecido para que a justiça e a liberdade
triunfem. Esta faculdade reproduz as condições que reproduzem a ordem e a escravidão: esquecer
os sofrimentos passados, é esquecer as forças que os causaram, e esquecer sem vencê-las.As feridas
que se curam com o tempo são também aquelas que contêm o veneno. (Marcuse: 1963: 201)
A liberação desse conteúdo recalcado da memória é a condição da sublimação não-
repressiva na medida em que ela se traduza em ação histórica .
10 Aqui reside uma das grandes contribuições de Freud para o pensamento social, já que a história da humanidade como dominação e sofrimento não é esquecida e apagada, como acontece no revisionismo.
75
(...) a lembrança não constitui uma arma real, a menos que se traduza em ação histórica: a
luta contra o tempo passa a ser um momento decisivo na luta contra a dominação. (Marcuse: 1963:
202)
A aliança entre o tempo e a repressão garante a manutenção da realidade
repressiva, pois faz com que os indivíduos esqueçam os sofrimentos passados, assim como
as satisfações. A força crítica de Eros reside na sua oposição ao prazer temporário e
limitado, na tentativa de vencer o tempo e restabelecer a satisfação integral: o prazer e a
satisfação são intemporais e não admitem limitação e controle.
O tempo só perde seu poder repressivo quando a memória do passado é resgatada.
Para F. Jameson, a obra de Marcuse lança os fundamentos para a possibilidade do
pensamento utópico através da valorização da memória: segundo ele, a memória da
satisfação está na origem de todo pensamento, e o impulso para recuperar a satisfação
passada é a força oculta por detrás do processo de pensamento. É somente através dessa
restauração do conteúdo recalcado da memória que a lembrança pode se traduzir em ação
histórica a memória teria, neste sentido, um papel político.
A energia primária da atividade revolucionária deriva dessa memória de uma felicidade pré-
histórica. A perda ou repressão do sentido de conceitos como felicidade e desejo toma a forma de
uma espécie de amnésia ou embotamento desmemorisado, que a atividade hermenêutica, a
estimulação da memória como negação do presente, como projeção de utopia, tem como função
dissipar, restaurando nossos impulsos e desejos vitais. (Jameson: 1985: 92)
A utopia formulada por Marcuse (a possibilidade de um desenvolvimento não-
repressivo das pulsões) é fundamentada na transformação social. Entretanto, não basta
apenas a preocupação com a base infraestrutural desta transformação sócio-econômica. A
76
novidade no seu pensamento social é que ele rompe com um determinado marxismo
ortodoxo ao introduzir a preocupação com a base humana do desenvolvimento do
capitalismo para o comunismo. Sem esta transformação subjetiva, na cultura, nos padrões
de comportamento, na relação entre os indivíduos e entre estes e seu meio, a sociedade
comunista é impensável. Esta preocupação é expressa na sua crítica à racionalidade
predominante na sociedade ocidental, que ele chama de racionalidade tecnológica que
deve converter-se em racionalidade sensível (como foi exposto acima).
Ao propor a crítica à racionalidade dominante, à razão enquanto Logos de
dominação, Marcuse propõe a refundação e a reformulação da idéia de razão e não sua
eliminação: é uma determinada organização política e econômica que impede o
desenvolvimento da razão em todas as suas potencialidades e não a razão per se. A razão
aberta à sensibilidade e a sensibilidade aberta à razão implicariam num novo estágio da
civilização essencialmente oposto ao atual, no qual as pulsões poderiam seguir um curso
não-repressivo e nesse processo sustentariam a vida ao invés de destruí-la.
Parece interessante estendermos um pouco mais a discussão a fim de especificarmos
o conteúdo da crítica marcuseana no contexto da possibilidade da transformação não-
repressiva das pulsões. Para isso retomaremos duas críticas da interpretação da teoria
freudiana realizada por Marcuse em Eros e Civilização. Será apresentada primeiramente a
crítica de Jean Laplanche no texto Notes sur Marcuse et la Psychanalyse (1969) e depois a
critica de Bento Prado Jr. no texto Entre o Alvo e o Objeto de Desejo: Marcuse crítico de
Freud (1990).
Através dessas críticas será possível: (1) observarmos as transformações que,
segundo estes autores, a teoria freudiana sofre nessa interpretação; (2) especificarmos o
77
conteúdo da crítica marcuseana; (3) analisarmos em que medida a interpretação marcuseana
(através da crítica imanente) justifica as alterações que impõe ao discurso psicanalítico.
2. A crítica de J. Laplanche
Dentre os vários conceitos que, segundo Laplanche, são deformados e mal
compreendidos por Marcuse, tomaremos apenas os três mais importantes e cuja crítica
permite compreender o argumento central de Laplanche contra a interpretação marcuseana:
o par Eros/sexualidade, o princípio de realidade e o conceito de repressão.
As acusações de Laplanche são graves, na medida em que desfazem toda
possibilidade vislumbrada por Marcuse de uma modificação não-repressiva das pulsões a
partir dos conceitos da teoria freudiana. Primeiramente, ele afirma que o que Marcuse
entende por Eros, enquanto o que é oprimido pela civilização e que deve ser liberado da
civilização repressiva, é na verdade a libido já sublimada, uma força essencialmente
antisexual . A questão é que Marcuse inverte os termos , embaralha o jogo , uma vez
que ele toma a última teoria das pulsões como a definitiva, sem analisar a história e a
evolução do conceito de sexualidade na teoria freudiana, conceito este que só pode ser
compreendido no contexto de sua vinculação com as leis do inconsciente e dos processos
primários.
Laplanche critica o conceito de princípio de rendimento formulado por Marcuse,
que é o princípio de realidade próprio ao atual contexto histórico do capitalismo
monopolista. Para ele não pode haver uma articulação imediata entre o princípio de
rendimento e o conflito psíquico. O conflito psíquico estaria ligado ao recalcamento,
enquanto o princípio de realidade à repressão (esta é uma explicação um tanto quanto
grosseira, mas ela serve para o objetivo que temos). A falta de uma diferenciação entre os
78
conceitos de repressão e de recalque, é apontada por Laplanche como um sério defeito na
obra de Marcuse, assim como a diferenciação entre instinto e pulsão, id e inconsciente.
Marcuse teria optado apenas pelos primeiros destes termos (repressão, id e instinto).
Sem entrar a fundo na análise dos conceitos, o ponto central e comum desta crítica
de Laplanche reside no fato de Marcuse omitir toda referência à prática e à clínica
psicanalítica: a ausência desta referência não permitiria compreender a originalidade das
descobertas freudianas nem mesmo o significado da metapsicologia - a ausência de
qualquer referência [à clínica] e de uma tal reflexão é provavelmente o defeito principal do
pensamento de Marcuse (1992: 63). Marcuse reduz a questão do conflito psíquico a um
conflito entre natureza e sociedade - a repressão é imposta por uma sociedade que impede
a satisfação das pulsões (natureza). Neste processo o papel do recalque , conceito
essencialmente clínico, é completamente anulado. Para Laplanche o problema é que
Marcuse só se reporta à última teoria das pulsões, àquela das pulsões de vida e de morte,
pois ele toma como referência as obra de Freud a partir de Além do Princípio de Prazer,
sobretudo as concepções formuladas na obra O Mal-Estar na Cultura.
Laplanche levanta uma outra questão problemática presente na obra de Marcuse que
vale a pena ser retomada. Em dois momentos ela se apresenta: primeiramente quando ele se
refere à diferença entre a penúria , como um fato puramente biológico, e a organização
da penúria , como um fenômeno social. Ele se pergunta se essa distinção não hipostasia um
estado de natureza puramente abstrato, a luta do homem com a natureza, na medida em que,
de acordo com a filosofia da história, na qual se inspira Marcuse , a história da penúria no
homem coincide com a organização da penúria. Vejamos duas citações suas:
79
Querer distinguir a penúria da organização da penúria não é hipostasiar um estado de
natureza puramente abstrato? (Laplanche: 1992: 73)
Não é mais conforme a filosofia da História, na qual se inspira Marcue, afirmar que a noção
de penúria absoluta é apenas uma abstração e que a história da penúria no homem coincide
absolutamente com a organização da penúria? (Laplanche: 1992: 72-3)
No segundo momento ele se refere à distinção entre repressão e mais-repressão :
a repressão seria biologicamente necessária à manutenção da vida em sociedade, enquanto
a mais-repressão seria a repressão imposta por condições sociais e históricas específicas.
Aqui haveria de novo uma formulação incompatível com o materialismo histórico, na
medida em que ele afirma a necessidade de um fato puro , a repressão básica.
Resumindo as objeções de Laplanche: é como se houvesse uma contradição entre a
afirmação de uma essência inata ao ser humano (ontologia) e uma historicidade a partir da
qual as tendências humanas seriam modificáveis e dadas historicamente.
Retomaremos estas objeções mais adiante.
80
3. A crítica de Bento Prado Jr.
Não pretendemos reproduzir aqui fielmente toda a argumentação deste autor na sua
crítica a Marcuse; nos limitaremos a especificar o seu conteúdo central. Neste texto o autor
rastreia as metamorfoses que sofre a idéia de desejo, na passagem do campo freudiano
para o campo da dialética em que Marcuse procura reinterpretá-la (Prado: 1990: 269). Em
sua análise crítica ele utiliza dois textos de Marcuse: o Intermezzo Filosófico, que é o
capítulo cinco de Eros e Civilização, e o texto de 1938 Para a Crítica do Hedonismo. Estes
textos relacionam-se como o rosto com a imagem no espelho : cada qual desenvolve de
uma perspectiva a história da metafísica ocidental.
De modo geral, em Para a Crítica do Hedonismo Marcuse faz a crítica à filosofia
hedonista, na medida em que nesta o interesse de felicidade individual é afirmado contra
toda a universalidade - ela reconcilia a felicidade individual à infelicidade geral . Aqui a
história da filosofia é contada a partir da análise das diferentes filosofias nas quais o prazer
(individual e subjetivo) se sobrepõe à razão (universal). Já no Intermezzo a história é
contada a partir da repressão de Eros por uma razão dominadora (característica da filosofia
da razão) e Marcuse tenta resgatar as filosofias que definem o ser como Eros, como desejo
e vontade: aqui Freud é posto ao lado de uma tradição que, depois de Hegel e do fim da
metafísica, se opõe ao predomínio da razão dominadora, que impõe a desqualificação das
faculdades apetitivas e inferiores entre eles estão Schopenhauer e Nietzsche.
Enquanto no primeiro texto Marcuse faz a crítica do imperialismo do desejo do
ponto de vista da razão, no segundo texto ele faz a crítica da razão do ponto de vista do
desejo (Prado: 1990: 276). A partir da crítica destas duas vertentes da filosofia, assim como
da incorporação da imagem de satisfação, de felicidade e de liberdade presentes nelas,
81
Marcuse estabelece o conteúdo de uma nova razão (a razão sensível 11), que poderia
predominar nas sociedades cujas forças produtivas se encontram desenvolvidas.
Segundo Bento Prado o pensamento de Marcuse é guiado, assim com em Platão,
pela idéia de que o desejo, o verdadeiro objeto de desejo dos indivíduos, é a constituição
da humanidade universal e solidária , da ordem social justa
esta é a ontologia erótica
de Marcuse, a partir da qual ele estabelece uma distinção entre verdadeiros e falsos
interesses e necessidades. Os verdadeiros interesses são aqueles que ao satisfazerem-se
individualmente mantêm o interesse da coletividade e por isso estão em oposição aos
interesses particulares.
Decididamente a ontologia de Marcuse é platônica: o objeto de desejo nada mais é (...) que
o ser ou a verdade. A natureza intencional do desejo acaba sendo arrastada pela mais funda
teleologia da prática histórica e deságua nessa nova forma de Nous Theos, que poderíamos
descrever como a apropriação erótica do mundo, com-os-outros-em-relação-aos-fins-da-Razão.
(Prado: 1990: 278)
A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse, sobretudo a hipótese da
transformação não-repressiva das pulsões na qual elas tomariam a própria vida como objeto
de satisfação universal, é contestada por Bento Prado, para o qual nada é mais avesso ao
discurso freudiano do que a fixação de um objeto de desejo
objeto universal e
verdadeiro . Em Pulsões e Destinos das Pulsões Freud desenha o horizonte do conceito de
pulsão (em oposição ao de instinto): na obscura interface do biológico e do psíquico, a
noção de pulsão é circunscrita através da fixação de 4 pontos: pressão, fonte, alvo e objeto .
Segundo Bento Prado é a oposição entre alvo (meta) e objeto que está ausente na
reconstrução dialética da Metapsicologia empreendida por Marcuse.
11 Este termo ainda não aparece neste ensaio de 1938.
82
De acordo com Freud a idéia de objeto está longe de desempenhar um papel
constitutivo: o objeto é construído retrospectivamente, pela dinâmica da pulsão, cuja
constituição é determinada pelo alvo, que não pode ser confundido com objeto da pulsão .
Cito Freud:
O Alvo
de uma pulsão é sempre a satisfação, que só pode ser atingida pela supressão do
estado de estimulação na fonte da pulsão. Muito embora o alvo último de uma pulsão, [a
satisfação], seja invariável, podem haver muitos caminhos que a ela conduzem. (...) O Objeto
de
uma pulsão é a coisa na qual, ou por meio da qual a pulsão pode alcançar satisfação. É o mais
variável da pulsão, [...] não é necessariamente algo exterior ao indivíduo, pode ser qualquer parte de
seu corpo, e pode ser substituído indefinidamente por outros no curso do destino da vida da pulsão.
(Freud apud. Prado: 1990: 280)
A partir desta exposição sucinta podemos observar que existe para o autor um
problema na apreensão do conceito de pulsão em Marcuse. Segundo Bento Prado
Marcuse sobrepõe as noções de alvo e desejo , o que torna incompreensíveis as figuras
básicas da psicanálise, como o sadismo, o masoquismo, a sublimação, etc.
A reconstrução marcuseana é mais que um remanejamento local da teoria freudiana. (...)É o
próprio coração dinâmico da psicanálise que é comprometido com essa reforma. (...) E, neste caso,
Marcuse pudesse ser objeto da mesma crítica que endereça, com tanta argúcia e felicidade, aos
diversos reformismos pós-freudianos. Numa palavra, entre um falso e um verdadeiro gozo, quem,
senão Deus (Nous Theos) veria diferença? (Prado: 1990: 281, grifo meu)
4. A Particularidade da Interpretação de Marcuse
Tentaremos agora argumentar a respeito das críticas dirigidas a Marcuse. Não temos
a intenção de negar a relevância e a verdade dessas críticas, uma vez que vimos que elas de
fato demonstram uma certa incompatibilidade existente entre as categorias freudianas e sua
respectiva análise realizada por Marcuse. No entanto não achamos que a crítica destes
83
autores desqualifica a interpretação marcuseana, pois elas não abordam o núcleo central em
que esta se fundamenta e que pretendemos apresentar aqui.
Como pudemos ver na última citação de Bento Prado, ele, assim como P. Robinson,
acusam Marcuse se cometer o mesmo erro do revisionismo neo-freudiano. Teremos,
portanto, a possibilidade de articular melhor a argumentação exposta no capítulo dois. As
duas críticas diferem em termos de conteúdo: enquanto em P. Robinson a acusação era a de
que Marcuse introduzia concepções exteriores à psicanálise (tal como os revisionistas), em
Bento Prado a questão gira em torno da distinção entre verdadeiras e falsas necessidades
e prazeres, na medida em que esta distinção impõe uma transformação decisiva no discurso
freudiano, tal como ocorre na interpretação revisionista (a pretendida ortodoxia de
Marcuse em relação à teoria freudiana se torna suspeita). Nossa argumentação também
iluminará a crítica de Laplanche e tentaremos abordá-la a partir da questão da terapia
psicanalítica, cuja ausência de uma reflexão a respeito é considerada o maior defeito da
leitura da teoria freudiana realizada por Marcuse.
A fim de argumentarmos em relação às acusações de Bento Prado retomaremos o
texto Para a Crítica do Hedonismo, utilizado por ele. Faremos uma breve apresentação
deste texto e das críticas de Marcuse às várias correntes da filosofia hedonista e do
idealismo filosófico para então chegarmos à questão que nos interessa, a da distinção entre
as verdadeiras e falsas necessidades individuais. Estas permitirão que situemos a crítica
marcuseana no contexto da crítica imanente (exposta também no capítulo 2), pois somente
tendo-a como referência podemos compreender a especificidade de sua crítica.
84
a. A crítica do Hedonismo e do Idealismo Filosófico:
Neste texto Marcuse estabelece uma relação entre a filosofia da razão e a filosofia
hedonista: esta relação revela a oposição entre razão e sensibilidade estabelecida na
história da filosofia e que tem seu reflexo nas relações reais em que se organiza a
sociedade.
O conceito de razão representa as leis universais que regem a vida em sociedade. A
partir do momento em que os seres humanos passam a viver em comunidade há
necessidade do estabelecimento de certas máximas do agir : as leis da razão criam
finalmente entre os homens uma comunidade (Marcuse: 1997: 161). O estabelecimento
dessas leis se impõe contra toda individualidade e interesses particulares, contra a
felicidade: só assim a vida em comunidade torna-se possível
a idéia de razão continha o
sacrifício do indivíduo (1997:161). No desenvolvimento da sociedade as faculdades
inferiores, a sensibilidade e, portanto, a felicidade, são rejeitadas e introjetadas: perdem seu
direito de realização em face de uma sociedade na qual o interesse particular é eliminado.
A diferença entre a filosofia da razão e a filosofia hedonista corresponde à oposição
entre a reivindicação dos interesses gerais (as leis da razão que organizam a sociedade e
que se opõem aos interesses antagônicos dos indivíduos) e dos interesses individuais (que
buscam, contra toda universalidade, a felicidade, a satisfação das necessidades e prazeres
particulares). Neste sentido, as duas correntes filosóficas contêm uma reivindicação
incompatível com as exigências da sociedade antagônica e que representa a possibilidade
de uma organização social superior: a filosofia da razão conservou em seus fundamentos o
desenvolvimento das forças produtivas, a livre configuração racional das condições vitais, a
dominação da natureza e a autonomia crítica dos indivíduos socializados, isto é, as
exigências de uma sociedade organizada racionalmente; enquanto isso, o hedonismo
85
conservou o desenvolvimento completo e satisfação das necessidades individuais, a
emancipação de um processo de trabalho desumano e a entrega do mundo à fruição, isto é,
as exigências de felicidade e liberdade individuais (1997: 168).
As duas filosofias são negadas na realidade social: suas exigências são
incompatíveis com a estrutura da sociedade antagônica e não podem ser resolvidas num
outro princípio filosófico superior, mas somente através da transformação efetiva desta
sociedade. A forma histórica assumida pela razão nesta sociedade é uma forma atrofiada :
Se essa forma é tal que as forças produtivas estão dispostas no interesse dos menores
grupos sociais, que nela a maior parte dos homens está separada dos meios de produção e o trabalho
não se realiza de acordo com as capacidades e necessidades dos indivíduos, mas segundo as
exigências do processo de valorização do capital, nessa forma histórica da razão a felicidade não
pode ser universal. À felicidade resta apenas a esfera do consumo. (Marcuse: 1997: 172)
A preocupação com a felicidade está presente nos vários hedonismos: entre eles
estão o hedonismo cirenaico e o hedonismo epicurista. A diferença entre eles é que no
primeiro a felicidade corresponde à satisfação pelo prazer (quanto mais prazer mais
felicidade): ao exigir a satisfação do prazer individual ele se opõe à universalidade
independente que nega esse prazer individual. Segundo Marcuse o problema deste
hedonismo é que ele aceita as necessidades e interesses dos indivíduos como algo
simplesmente dado e valioso em si (1997: 169)
ele não aplica o critério de verdade ou
falsidade às necessidades e interesses (à felicidade). Para ele nas necessidades que o
hedonismo reivindica a satisfação se esconde já a mutilação, a repressão e a inverdade
com que os homens crescem na sociedade de classes (1997: 169). Retomaremos adiante
esta questão.
86
Neste sentido, o hedonismo epicurista opõe-se ao cirenaico por buscar uma
diferenciação imanente entre as necessidades: ele opõe um determinado tipo de prazer,
como verdadeiro , aos outros. O verdadeiro prazer estaria ligado à razão na medida em
que avalia se o prazer momentâneo, mesmo quando proporciona satisfação imediata, pode
trazer um desprazer maior depois: este seria um hedonismo negativo , pois seu princípio
consiste antes em evitar desprazer que em desejar prazer (1997: 170)
neste sentido, a
razão se converte em prazer e o prazer se torna racional. Esta avaliação do prazer se
estabelece tendo em vista a maior segurança e durabilidade possível do prazer .
Entretanto, para Marcuse este hedonismo acaba por adaptar as exigências de prazer à
realidade antagônica e este se torna um prazer mutilado : nessa situação não pode se
chamar de felicidade este prazer moderado, que não se entrega ao deleite .
De modo geral, ao ligar a sensibilidade à felicidade o hedonismo se opõe à forma
adquirida historicamente pela razão: esta razão domina por trás das costas dos indivíduos
na reprodução do todo , sendo essencialmente oposta à felicidade individual. No entanto a
ética idealista rejeita o hedonismo precisamente por conta da particularidade e
subjetividade essenciais de seus princípios, já que somente a eliminação do isolamento
individual permitiria a verdadeira felicidade (universalização da felicidade). Numa
sociedade em que a felicidade se limita à esfera de consumo e é um aspecto absolutamente
contingente num processo de produção que atua independente das necessidades e
capacidades individuais, a particularidade e subjetividade da felicidade são reforçadas, pois
o isolamento, a reificação e a contingência constituem precisamente a dimensão da
felicidade na sociedade atual (1997: 173) - a crítica idealista se vê então justificada.
Tanto o hedonismo quanto a filosofia da razão constituem tentativas de salvar a
objetividade da felicidade e concebê-la sob as categorias de verdade e universalidade .
87
Temos, de um lado, a filosofia da razão com sua pretensão de universalização da
felicidade : aqui os interesses da sociedade autonomizada se sobrepõem aos interesses
individuais e neste caso a possibilidade de felicidade é eliminada. De outro lado, temos o
hedonismo com sua exigência de uma felicidade particular e subjetiva : aqui as
necessidades dos indivíduos afirmam-se sobre as da sociedade e estas necessidades não são
questionadas mas aceitas enquanto tais.
No entanto, Marcuse argumenta que a verdade da felicidade não deve ser buscada
num ou noutro princípio filosófico, mas em uma nova organização social, na qual a
felicidade, enquanto felicidade objetiva e ligada à sensibilidade e às satisfações materiais,
possa se tornar universal.
Quando a pergunta acerca da possível felicidade não é levada ao plano da estrutura da
organização social da humanidade, sua resposta está condenada ao fracasso devido às próprias
contradições sociais. (Marcuse: 1997: 174)
A crítica platônica do hedonismo representa a tentativa de estabelecer a verdade
da felicidade, de salvar sua objetividade (universalidade), aplicando as categorias de
verdade e falsidade ao prazer e às necessidades. Uma necessidade verdadeira é aquela
que mantém a ordem justa da comunidade e, portanto, o fundamento desta distinção não
reside no prazer individual mas no interesse geral. Em oposição ao protesto hedonista da
felicidade particular e subjetiva na ética platônica a questão da felicidade não passa pelo
indivíduo, mas é antes subordinada ao interesse universal.
A ética platônica põe em questão os sujeitos do prazer e não apenas os objetos: a
crítica de Platão ao hedonismo retorna, da simples existência das necessidades e do prazer,
aos sujeitos que os possuem (1997: 175-6). Nesse sentido a distinção platônica transforma
88
o prazer num problema moral , na qual a bondade do homem se liga à verdade do
prazer . Mas é justamente aqui que ela revela seu momento de falsidade, pois se a há
necessidade de se estabelecer um código ético objetivo (universal), oposto às necessidades
individuais, esta imposição vai contra a felicidade
a moral é expressão do antagonismo
entre interesse particular e geral . Apesar da crítica platônica tentar manter os momentos do
social e do pessoal unidos na determinação das potencialidades humanas, através de
uma organização social que decida acerca da realização destas, a ordem social na qual elas
se desenvolvem não é questionada: as possibilidades humanas devem adaptar-se a uma
realidade antagônica. Na medida em que essa realidade autônoma se desenvolve sem levar
em conta as necessidades individuais, mas somente a reprodução do modo de produção, a
felicidade aparece como uma contingência e a liberdade, como não vigora nas relações
exteriores, é interiorizada ( o protesto hedonista do indivíduo isolado é imoral ).
Após apresentar estas tentativas presentes na história da filosofia de salvar a
objetividade da felicidade , Marcuse se questiona: como julgar a realidade da felicidade,
se os indivíduos podem se sentir felizes sem serem felizes de fato? (1997: 181). Para ele a
teoria crítica pode estabelecer a verdade e a universalidade da felicidade na medida em que
apresenta o conteúdo dos conceitos que ultrapassam a forma social antagônica que
prevalece na sociedade em direção à sua forma racional.
Todas as tentativas de estabelecer o conteúdo e a possibilidade de realização da
felicidade são falseadas, negadas, por uma realidade que impede sua realização. A questão
da felicidade deve ser reposta no novo contexto histórico que é a sociedade industrial
avançada, na qual as possibilidades de liberdade e felicidade encontram-se presentes
89
materialmente devido ao desenvolvimento das forças produtivas. Até então ela se chocava
com um mundo que não permitia a liberdade e, portanto, a felicidade.
Só hoje, no último estágio do desenvolvimento do existente, quando amadureceram as
forças objetivas que impulsionam para uma ordem superior da humanidade, e só em conexão com a
teoria e a práxis históricas vinculadas a essa transformação, pode a felicidade, junto com a
totalidade do existente, tornar-se também objeto de crítica. (Marcuse: 1997: 190)
Somente neste contexto histórico faz sentido julgar como verdadeiras ou falsas
as necessidades e interesses individuais. Os falsos interesses são aqueles que se vinculam
à manutenção e progresso do sistema repressivo - repressivo no sentido de que, frente às
reais possibilidades de libertação e desenvolvimento das potencialidades humanas, estas
continuam limitadas. Os verdadeiros interesses são aqueles que se opõem ao progresso
irracional desse sistema e cuja satisfação está ligada à sua transformação (eles vinculam-se
à universalidade e representam mais que um interesse particular). As duas citações
seguintes exemplificam a posição de Marcuse no que se refere à questão:
A determinação da felicidade como estado de satisfação completa das necessidades do
indivíduo á abstrata e incorreta, na medida em que aceita como dado último as necessidades na sua
forma presente. Enquanto estado de coisas histórico, estão sujeitas à pergunta sobre seu direito: são
elas do tipo que sua satisfação pode realizar as possibilidades objetivas e subjetivas dos indivíduos?
(Marcuse: 1997: 188)
Só frente à possibilidade histórica da liberdade universal tem sentido qualificar como falsa a
felicidade factual, realmente sentida até hoje nas condições de existência. (Marcuse: 1997: 189)
Nesta sociedade as necessidades são falsificadas para que os indivíduos não
percebam a possibilidade de libertação inerente à organização social atual e aceitem o
sistema que os oprime. Suas falsas necessidades correspondem às possibilidades de
90
satisfação oferecidas por este mesmo sistema que as produz
tanto as necessidades quanto
os objetos de satisfação (as mercadorias).
Certos impulsos e necessidades só se tornam falsos e destrutivos em virtude das formas
falsas para as quais sua satisfação é canalizada, ao passo que o estágio atual alcançado pelo
desenvolvimento objetivo permitiria sua verdadeira satisfação. (Marcuse: 1997: 187)
A manipulação das massas constitui parte fundamental na reprodução desta
sociedade através de uma indústria de divertimento, que possui um papel importante na
adaptação e manipulação de suas consciências e necessidades, assim como através do
processo de trabalho, que possui uma posição central na falsificação das necessidades.
A função do trabalho no interior desta sociedade limita o desenvolvimento da
capacidade de fruição e da sensibilidade , na medida em que estas lhe são essencialmente
opostas
esse trabalho não propicia prazer. O resultado do atual processo de trabalho é a
mutilação e embrutecimento dos órgãos do trabalhador , fundamental para que estes não
percebam as possibilidades de fruição e prazer que são negadas: estas se chocariam com a
desumanidade do processo de trabalho.
Nessa sociedade antagônica a limitação da fruição atinge todas as esferas das
relações sociais e não só as massas trabalhadoras: na medida em que a fruição é uma
atitude para com as coisas e com os homens ela se vê limitada por uma sociedade que
oferece como objetos de fruição as mercadorias produzidas por ela (e cujo valor é
atribuído pelo tempo de trabalho abstrato) e na qual as relações entre as pessoas se
estabelecem enquanto pessoas como possuidoras de mercadorias .
Numa organização social que opõe os indivíduos em classes uns contra os outros e
abandona sua liberdade particular ao mecanismo de um sistema econômico incontrolado, a não-
liberdade atua já nas necessidades e ainda mais na fruição. (Marcuse: 1997: 182)
91
O vínculo entre desvalorização da fruição e justificação social pelo trabalho
aparece de maneira flagrante na maneira como a sociedade lida com a questão do prazer
sexual . Ele é racionalizado e constitui um meio para atingir um fim determinado
socialmente:
A entrega não racionalizada, não sublimada às relações sexuais constituiria a mais poderosa
entrega à fruição enquanto tal e a total desvalorização do trabalho pelo trabalho. Nenhum ser
humano poderia suportar internamente a tensão entre o valor do próprio trabalho e a liberdade da
fruição: a desolação e a injustiça das relações de trabalho penetrariam vivamente na consciência dos
indivíduos e tornariam impossível sua integração pacífica ao sistema social do mundo burguês.
(1997: 186)
b. O contexto da interpretação marcuseana (uma resposta às críticas)
A argumentação de Marcuse deve ser compreendida em relação às possibilidades de
libertação dadas historicamente. A exigência de felicidade presente nos vários hedonismos
só pode adquirir um significado decididamente real no atual estágio alcançado pela
sociedade, pois nela as possibilidades materiais para a realização da felicidade e da
liberdade estão presentes. Mas a questão fundamental é que a possibilidade da
universalidade da felicidade choca-se na sociedade atual com a questão da manipulação das
necessidades e interesses dos indivíduos, que faz com que estes aceitem uma realidade
opressiva.
Fica claro que os indivíduos, educados para serem integrados ao processo de trabalho
antagônico, não podem ser juízes de sua felicidade. Eles estão impedidos de conhecer seus
verdadeiros interesses. Assim, pode suceder que qualifiquem como felizes a sua situação e que, sem
coerção exterior, aceitem o sistema que os oprime. Os resultados das votações populares modernas
92
demonstram que os homens, separados da verdade possível, podem ser levados a votar contra si
mesmos. (Marcuse: 1997: 190)
O ponto de partida da análise de Marcuse é o indivíduo prejudicado , alienado e a
realidade da sociedade alienada. A frase de Brecht, citada por Maar, exemplifica seu modo
de análise: É inútil começar com as coisas boas de sempre. É melhor iniciar pelas coisas
novas e ruins (Brecht apud Maar: 1999: 62). Os fatos devem ser analisados a partir da
conexão que estabelecem na perpetuação da sociedade opressiva capitalista, uma sociedade
que se reproduz pela sujeição dos indivíduos ao modo de produção: neste processo de
reprodução social os indivíduos são transformados pelo círculo de coesão progressiva
que opera através da produção de necessidades e de mercadorias.
As objeções de Laplanche e Bento Prado colocadas à interpretação da teoria
freudiana realizada por Marcuse não levam em conta esse contexto geral em que ela é
formulada e é por isso que tentaremos localizar a importância da referência a esse contexto,
sem o qual é impossível compreender a interpretação de Marcuse e a função que a teoria
freudiana possui em seu pensamento. Vejamos a seguinte frase de Bento Prado:
Marcuse alinha a Teoria Crítica numa tradição essencialmente essencialista. Mais que isso,
faz sua a teoria platônica da intencionalidade do prazer (ou do desejo), dentro do horizonte da Polis,
isto é, do universal da sociedade política. E é justamente aqui que podemos localizar o destino que o
estilo dialético do pensamento de Marcuse atribui à idéia de desejo. Parece que tal destino é
definido entre a intenção que liga o sujeito desejante ao objeto desejado e a intenção social, como
teleologia que conduz à constituição da bela humanidade universal. Meu desejo será tanto mais
verdadeiro quanto mais ele, por seu próprio movimento, colaborar para a cristalização de uma
comunidade solidária. Numa palavra, o verdadeiro objeto de desejo é a humanidade universal, o
Telos da história. (Prado: 1990: 278, grifo meu)
93
Para comprovar sua tese quanto ao destino da idéia de desejo na obra de Marcuse,
Bento Prado cita uma passagem de Para a Crítica do Hedonismo, na qual para ele está
claramente exposta a intenção em relacionar o verdadeiro objeto de desejo à
constituição da bela humanidade universal . Vejamos a citação de Marcuse:
Do abismo existente entre o que é objeto de gozo e a maneira pela qual tais objetos são
concebidos, apreendidos e consumidos, surge a questão do grau de verdade da relação de
felicidade nessa sociedade: os atos realizados com vistas a esse gozo não chegam sequer à
realização dessa intenção; e mesmo quando se realizam não são verdadeiros. (Marcuse apud. Prado:
1990: 278, grifo meus)
Esta frase aparece completamente desvinculada do contexto no qual Marcuse a
formulou, a saber, que na sociedade capitalista (ou industrial avançada) a possibilidade de
fruição é reprimida por interesses sociais específicos de manipulação dos indivíduos a fim
de adequá-los ao processo de produção. Vejamos no texto de Marcuse a frase que é anterior
àquela citada por Bento Prado:
(...) perante as possibilidades dadas de fruição encontram-se homens completamente
incapazes de fruir, tanto objetivamente, em virtude de seu status econômico, quanto subjetivamente,
em virtude de sua educação e disciplinamento. (Marcuse: 1977: 182)
A distinção entre verdadeiras e falsas necessidades em Marcuse, que segundo
Bento Prado implica que as verdadeiras necessidade seriam aquelas ligadas à constituição
da bela humanidade (o verdadeiro objeto de desejo), devem se entendidas em função do
(...) contexto da sujeição mediante uma realidade social que impõe a adaptação dos seres
humanos. (...) Ela resulta de uma reflexão crítica de uma situação de adequação subjetiva, de
sujeição do sujeito à ordem social vigente em seu processo de reprodução material. (Maar: 2002:
10).
94
Neste contexto de adaptação subjetiva , as falsas necessidades são aquelas
produzidas pela sociedade, a partir dos vários mecanismos de que dispõe ( indústria
cultural , fetichismo da mercadoria e sobretudo o próprio processo de trabalho), no único
interesse de sua perpetuação: elas são falsas por que não representam os interesses
individuais e sim aqueles impostos por um certo modo de produzir (pela sociedade
autonomizada). Sem a produção destas necessidades falsas a sociedade não poderia se
reproduzir, uma vez que haveria o risco da tomada de consciência da presença da base
material para a possível libertação da necessidade do trabalho. Se, nesta sociedade em que
o desenvolvimento das forças produtivas permitiria eliminar o trabalho e, no entanto, ele se
mantém, é devido à constante intervenção no âmbito subjetivo para que os indivíduos não
vejam a imposição da dominação. Esta questão também foi exposta por Adorno no texto
Estática e Dinâmica das Categorias Sociológicas:
O desenvolvimento imanente das forças produtivas que torna o trabalho humano até certo
ponto dispensável, encerra o potencial de transformação: a redução do trabalho, que do ponto de
vista técnico poderia ser hoje mínimo, abre uma nova qualidade social não restrita ao progresso
unilateral se, entrementes, as ameaças às relações de produção daí derivadas não conduzissem o
sistema como um todo a se aquartelar tenazmente em sua própria tendência. (Adorno apud. Maar:
2002: 9)
Retomemos muito brevemente um outro texto de Adorno, apenas para
esclarecermos um pouco mais a questão da produção das necessidades. No texto
Capitalismo Tardio ou Sociedade Industrial (de 1968) ele argumenta que a utilização de
um ou outro termo só é relevante na medida em que apresenta uma contradição efetiva na
sociedade. A sociedade é industrial de acordo com o atual estágio das suas forças
produtivas, pois o trabalho industrial ainda é o modelo de uma exigência econômica e se
95
estende para além da produção, na distribuição, administração e mesmo na cultura. Ao
mesmo tempo esta sociedade ainda é capitalista em suas relações de produção, pois os
indivíduos continuam sendo apêndices da maquinaria , não só enquanto trabalhadores mas
até suas mais íntimas emoções
em suas necessidades . A respeito disto vejamos a
seguinte citação:
Para além de tudo que à época de Marx era previsível, as necessidades, (...) acabaram se
transformando completamente em funções do aparelho de produção, e não vice-versa. São
totalmente dirigidas. Nessa metamorfose as necessidades, fixadas e adequadas aos interesses do
aparelho, convertem-se naquilo que o aparelho sempre pode invocar com alarde. Mas o lado do
valor de uso das mercadorias perdeu a última evidência natural . Não só as necessidades são
atendidas apenas indiretamente, através do valor de troca, mas, em setores economicamente
relevantes, são primeiro geradas pelo próprio interesse no lucro, e isso às custas de necessidades
objetivas de consumidores. (Adorno: 1985: 68)
O círculo de coesão progressiva é reforçado por uma sociedade que faz com que
seus indivíduos participem efetivamente dos benefícios materiais que ela produz, as
mercadorias, que passam a ser uma necessidade para estes: uma necessidade não de fato,
pois estas não possuem valor de uso real, apenas aparente ( valor de troca )
são
fetiches12. Há uma atribuição de valor às mercadorias, como se o valor fosse algo
inerente a elas, mas que na verdade é atribuído a elas por meio de uma relação entre as
pessoas que é essencialmente relação de dominação (Maar: 1999: 66).
Marcuse apresenta a dimensão das relações humanas como uma dimensão marcada por
relações que buscam a satisfação de necessidades coisificadas, suprimento de mercadoria. Este
suprimento da sociedade afluente se sobrepõe nas pessoas às suas necessidades sociais, o seu
próprio ser social. Isto acontece porque as mercadorias agem no plano material dos sentidos,
satisfazendo verdadeiramente desejos , necessidades, ainda que necessidades falsas ,
12 Esta dinâmica da transformação de valor de uso em valor de troca foi apresentada no capítulo anterior.
96
desenvolvidas no curso de um modo de produção em sua própria perpetuação. As pessoas se
satisfazem com mercadorias no plano material e sensorial, do que resulta uma perturbação na
materialidade , dos sentidos . (Maar: 1999: 69)
O desejo verdadeiro é aquele que não está manipulado por um aparato produtivo
em seu próprio interesse de perpetuação. Marcuse não estabelece uma distinção ontológica
entre verdadeiros e falsos interesses, desejos e necessidades, tal como afirma Bento
Prado, mas uma distinção histórica que tem a ver com o estágio alcançado pela sociedade
na qual esta distinção toma um significado especial distinção que só tem sentido no atual
estágio da civilização. Pois enquanto a pergunta acerca da felicidade era posta em uma
sociedade na qual não havia recursos materiais para a diminuição significativa da
necessidade de trabalho e para a satisfação universal das necessidades materiais, o
problema era insolúvel : enquanto uma sociedade não-livre decidia sobre a verdade, esta
só podia consistir no interesse particular do indivíduo ou nas necessidades da
universalidade autonomizada (Marcuse: 1997: 192).
Numa sociedade em que a produção de riqueza não diminui a miséria, mas está
essencialmente vinculada a sua perpetuação, esta distinção adquire um significado
estratégico na tentativa de desmistificar a consciência reificada , que aceita e reproduz o
existente.
Que o braço estendido da humanidade alcance planetas distantes e vazios, mas que ela, em
seu próprio planeta, não seja capaz de fundar uma paz duradoura, manifesta o absurdo na direção a
qual se movimenta a dialética social. (Adorno: 1985: 70)
Aqui também as acusações de Laplanche em relação à interpretação marcuseana
podem ser questionadas. Se Marcuse não menciona as questões referentes à clínica
97
psicanalítica é porque para ele a possibilidade de cura do indivíduo, posta pela terapia,
não é possível fora do contexto de uma transformação decisiva na sociedade antagônica:
não é que ele simplesmente omita qualquer referência à clínica , mas a partir do momento
em que para ele o indivíduo na sociedade atual já é mutilado , danificado pelos
interesses de dominação, a única função que resta à terapia é a adaptação.
Retomemos a segunda objeção: a de uma incompatibilidade entre um historicismo
de inspiração marxista e a afirmação de uma ontologia necessária à tese da subversão do
princípio de realidade
esta é uma questão de fato espinhosa no pensamento de
Marcuse. Segundo G. Raulet, no seu livro Marcuse. Philosophie de l Emancipation, o
pensamento de Marcuse é marcado por esta tensão. Ele argumenta que em Eros e
Civilização Marcuse busca a possibilidade da revolução, que se mostra insustentável na
realidade, numa ontologia fundada em Eros: ele busca o fundamento da historicidade na
Vida
pulsões de vida
fundamento que permite escapar à inautenticidade dos impasses
ônticos (Raulet: 1992: 166). Este impasse se refere à dialética da civilização imposta
pela razão dominadora e repressiva que domina na sociedade ocidental e que no
Intermezzo Filosófico (capítulo 5) Marcuse situa no contexto da história da filosofia. Mas é
com Freud e Nietzsche que se abre a perspectiva de uma ruptura com esta definição de
razão e o surgimento de uma nova perspectiva para sua fundamentação, na medida em que
definem o ser como Eros e não mais como Logos
uma mudança de fundamento
ontológico, que possibilita Marcuse refundar a idéia de uma razão a partir da concepção
de uma razão libidinal (ou razão sensível), que não seja uma razão de dominação, e que
inverta a dialética fatal para a qual caminha a civilização, modificando a relação dos
indivíduos com a natureza e entre si.
98
Esta tensão presente no pensamento de Marcuse exprime a necessidade de se
dissolver a aparente harmonia presente na sociedade unidimensional . A idéia de uma
natureza pura , da repressão básica ou da penúria enquanto um fato natural , revela a
diferença que existe entre uma organização social que intervém subjetivamente nos
próprios indivíduos para manter a dominação e uma sociedade na qual a dominação não é
internalizada, exercendo-se pela violência (entre uma sociedade totalitária e seu passado
liberal): esta é a peculiaridade do capitalismo monopolista, no qual a dominação foi
racionalizada e internalizada. Vejamos a citação a seguir, tirada do prefácio do livro
Cultura e Sociedade, no qual Marcuse faz um balanço das transformações históricas
decorridas desde o período em que os textos foram escritos (anos 30 e 40):
Na cultura tradicional, o espírito, a razão, a consciência, o pensamento puro deveriam
constituir a liberdade essencial do homem: aqui se localizava a esfera da negação, da contradição
em relação ao existente, da recusa, da dissociação, da crítica. (...) [Nesta fase da organização social]
as forças produtivas ainda não haviam atingido aquele estágio do desenvolvimento em que a venda
do produto do trabalho social demandava a organização sistemática das necessidades, inclusive as
intelectuais (...) Num nível menos desenvolvido das forças produtivas a sociedade burguesa ainda
não dispunha dos meios de administração da alma e do espírito sem desacreditar essa administração
mediante a violência terrorista. (Marcuse: 1997: 38-9)
A necessidade de um fundamento ontológico para a possibilidade da revolução
revela a medida em que o progresso foi repressão: a irracionalidade deste sistema se revela
na contradição entre a elevada produtividade e a miséria crescente, a possibilidade real de
libertação da luta pela existência e a realidade da exploração cada vez maior. Frente a essa
realidade a teoria demanda conceitos que revelem sua irracionalidade
os conceitos de
mais-repressão e princípio de rendimento possuem esta função crítica, pois
desmascaram a dominação subjacente à possibilidade de sua relativa diminuição.
99
Neste contexto a teoria freudiana também possui uma função crítica, que não está
na terapia (e por isso Marcuse a rejeita), mas sim na sua teoria da cultura
é somente esta
que interessa a Marcuse. Na medida em que ela denuncia o vínculo indissolúvel entre
progresso e repressão, progresso e aumento da infelicidade e, mais do que isso, ao
hipostasiar um princípio de realidade repressivo, ela revela a verdadeira face da
sociedade antagônica e seu domínio sobre o indivíduo e não uma realidade imaginada,
idealizada e pressuposta.
Se Marcuse impõe uma deformação aos conceitos freudianos, como foi de fato
possível verificar através das críticas apresentadas, isto não significa que sua interpretação
deva ser desqualificada: ela tem seu valor dentro do contexto teórico a que se filia. O
próprio Laplanche afirma no final de seu texto: Marcuse, reconheçamos, nos propõe suas
visões mais como panfletos de provocação, que como programa (1992: 87). A hipótese da
transformação não-repressiva das pulsões deve ser vista antes como a tentativa de, por um
lado, denunciar a irracionalidade do desenvolvimento da civilização (que pode levar à sua
dialética fatal ) e, por outro, de romper com a consciência reificada :
Romper a consciência administrada constitui hoje mais do que nunca uma precondição para
a libertação. Porém o pensar no plano da contradição precisa ser capaz de compreender e expressar
as novas possibilidades da diferença qualitativa: ser capaz de alcançar a violência da repressão
tecnológica assimilando na formação conceitual os elementos da satisfação que nela se encontram
invertidos e oprimidos. Dito de outro modo: o pensamento deve tornar-se mais negativo e mais
utópico frente ao existente. (Marcuse: 1997: 45, grifo meu)
Capítulo IV
A Crítica do Marxismo
Retomemos a discussão acerca da relação entre o marxismo e a psicanálise na obra
de Marcuse. Dissemos que sua obra pode ser compreendida mais profundamente no
100
contexto desta relação, uma vez que estas duas teorias representam dois instrumentos de
sua análise e crítica da sociedade industrial avançada. Esta análise e crítica da sociedade
são feitas a partir da crítica desses mesmos instrumentos que permitem essa crítica: as
transformações históricas ocorridas desde o surgimento dessas teorias afetaram algumas de
suas concepções fundamentais, mas isto não invalidou a perspectiva crítica que é inerente a
elas. A obsolescência dos seus conceitos revela que a sociedade caminhou no sentido de um
incremento nas formas de dominação. Neste sentido, seus conceitos ainda guardam as
imagens incompatíveis com a realidade da dominação e são úteis para a teoria crítica.
Retomaremos esta questão ao longo da discussão.
Já apresentamos brevemente a crítica da teoria freudiana e agora tentaremos retomar
também brevemente os argumentos da crítica do marxismo a partir de um texto dos anos 70
chamado Sobre o Conceito de Negação na Dialética: assim poderemos situar melhor o
contexto em que se estrutura seu pensamento.
Para Marcuse o grande dilema na compreensão do novo panorama histórico que é o
capitalismo avançado refere-se ao fato de que nesta sociedade a dominação e a repressão se
estabelecem e se justificam pela elevada produtividade que lhe é característica e que
permite aos indivíduos desfrutarem das vantagens que este sistema lhes oferece. As forças
que antes se opunham e negavam a dominação e a exploração (a revolta contra o sistema)
perderam seu conteúdo negativo, crítico, e passaram a funcionar como elementos de
integração e reprodução do sistema de dominação: elas foram absorvidas (como é o caso
da classe trabalhadora, dos sindicatos, da cultura, obras de arte, da sexualidade, ou seja,
todas as esferas sociais).
101
Quando, nas sociedades mais ou menos afluentes, a produtividade atingiu um nível em que
as massas participam de seus benefícios, e em que a oposição é democraticamente contida , então
o conflito entre senhores e escravos é eficientemente contido. (Marcuse: 1999 (a): 16)
As contradições são absorvidas e os indivíduos sofrem um processo de adaptação e
manipulação de suas consciências que os impede de ver a alienação. A principal
característica desta sociedade, que a diferencia de todas até então, é que a liberdade também
atua como elemento de integração e dominação: o povo eficientemente manipulado e
organizado, é livre; a ignorância e a impotência, a heteronomia introjetada, é o preço de sua
liberdade (1999 (a): 14). A respeito deste tema vejamos a seguinte citação:
O decisivo para determinar o grau de liberdade do indivíduo é o que pode ser e o que é
escolhido por ele. A eleição livre dos senhores não abole os senhores e os escravos. A livre escolha
entre ampla variedade de mercadorias e serviços não significa liberdade se esses serviços e
mercadorias sustêm os controles sociais sobre uma vida de labuta e temor
se sustêm a alienação.
(Marcuse: 1969: 28)
Portanto, o que temos nesta nova forma do capitalismo é um sistema de alienação
total , que se estabelece justamente na fase de desenvolvimento das forças produtivas em
que a necessidade de trabalho árduo se vê significativamente diminuída: a dominação e a
repressão foram aumentadas para que os indivíduos não vejam as possibilidades reais de
libertação. Este novo contexto foi descrito por Marcuse pelo conceito de princípio de
rendimento e a repressão que se impõe para que os indivíduos não percebam a dominação
foi chamada de mais-repressão .
A partir deste panorama histórico Marcuse contestou a tese freudiana da
inevitabilidade do conflito entre o indivíduo e a sociedade. Pois se esse conflito
fundamenta-se na necessidade de trabalho na civilização, imposta pela escassez de bens que
garantam a sobrevivência (este tema já foi insistentemente apontado nas partes anteriores),
102
então ela não pode ser concebida como uma oposição inevitável, visto o atual nível de
desenvolvimento das forças produtivas. A partir deste novo contexto Marcuse também
critica o materialismo marxista.
Marcuse descreve o período totalitário atual com a idéia de uma imobilização da
dialética da negatividade (Marcuse: 1972: 160) e esta traz um novo problema para o
conceito de dialética presente no materialismo marxista. Contestando a tese de Althusser
segundo a qual o marxismo teria rompido com a dialética hegeliana, Marcuse afirma que o
marxismo permanece no terreno da razão idealista, na medida em que não destrua a
concepção do progresso, segundo a qual o futuro já está sempre enraizado no presente
(Marcuse: 1972: 161, grifo meu). Vejamos esta citação na qual Marcuse se questiona:
(...) se e em que medida a etapa tardia da sociedade industrial ocidental, pelo menos no que
se refere à base técnica do desenvolvimento das forças produtivas, pode servir como modelo para a
construção de uma nova sociedade. (Marcuse: 1972: 162)13
Para Marcuse o problema reside no conceito de negação como superação presente
tanto em Marx como em Hegel. Segundo estes autores, uma organização social poderia
atingir um estágio superior de desenvolvimento social pelo desdobramento de uma essência
que lhe é inerente: a negação do sistema surgiria no seu interior, já que nele estariam
contidas as bases técnicas do desenvolvimento futuro (esta tese é exposta por Marx no que
se refere, por exemplo, à transição do capitalismo para o socialismo). Adorno também
expôs este caráter idealista presente no materialismo marxista no texto Capitalismo
Tardio ou Sociedade Industrial?. Vejamos sua citação:
13 Esta questão dos problemas da continuação da base técnica do capitalismo no socialismo foi estudada por Marcuse em Marxismo Soviético, e em A Ideologia da Sociedade Industrial ele repensa os problemas relativos à técnica como instrumento de dominação: não poderemos abordar estas questões pois, apesar de muito interessantes, ultrapassariam os limites propostos para este trabalho (isto demanda um trabalho futuro).
103
Demasiada otimista era a expectativa de Marx de que seria historicamente certo o primado
das forças produtivas, que necessariamente romperiam as relações de produção. Nesta medida,
Marx este inimigo juramentado do idealismo alemão permaneceu fiel à construção afirmativa da
história. (Adorno: 1985: 69-70)
Esta é a perspectiva idealista que a dialética materialista deve romper: é
necessária a elaboração de um novo conceito de dialética que dê conta das transformações
históricas. No novo contexto histórico ocorreu a repressão da necessidade de emancipação
através da constante intervenção no âmbito subjetivo: as forças de integração e
manipulação impedem a consciência da alienação e, portanto, a negação. Os indivíduos
não percebem mais subjetivamente as contradições objetivas, que são ocultas pela
aparência de uma harmonia: as contradições se ocultam na adequação ao processo social
(Maar: 2002: 4). O sujeito histórico da revolução não representa mais a força de oposição,
pois foi integrado confortavelmente ao sistema de interesses dessa sociedade, assim como
todas as esferas da sociedade. Marcuse se pergunta:
Não será que o materialismo dialético reduz sua própria base material na medida em que
não penetra em grau suficientemente profundo na ação das instituições sociais sobre o ser e a
consciência dos indivíduos (...); na medida em que subestima o papel da ciência e da técnica ligadas
à violência na formação e determinação das necessidades e da satisfação dessas necessidades? Isto
é: não será que o materialismo marxista subestima as forças de integração e coesão que atuam na
fase madura do capitalismo? (Marcuse: 1972: 162-3, grifo meu).
Parece que o problema do materialismo marxista neste novo contexto é que ele não
imaginou o poder que a sociedade tem em influenciar e manipular a consciência dos
indivíduos. Neste sentido, a teoria freudiana foi mais a fundo, denunciando a perda da
autonomia individual decorrente do progresso na civilização (sua análise da formação das
massas é representativa deste fato). Freud denunciou o progresso da civilização a partir
104
da perspectiva do sofrimento e do aumento do sentimento de culpa que ele causa nos seres
humanos, rompendo com a ideologia progressista à qual o materialismo marxista sucumbe.
As hipóteses do complexo de Édipo e da horda primitiva , apresentadas pela teoria
freudiana, revelam a importância da história ontogenética (individual) e filogenética
(social) na formação e desenvolvimento da personalidade individual
revelam a influência
do meio sobre o indivíduo. Aqui ela fornece a chave para compreender um fato histórico
que inquietava Marcuse: saber por que todas as revoluções foram revoluções traídas e
porque os indivíduos aceitam um sistema que os oprime, que é oposto à felicidade e à
liberdade
ele chama este fato de servidão voluntária . A teoria freudiana permite
explica-lo, revelando a introjeção e internalização das condições e normas sociais exteriores
no indivíduo, que o marxismo não alcançava.
Para Marcuse o marxismo (enquanto uma teoria dialética) não pode ser
imobilizado como um dogma : seus conceitos devem ser desenvolvidos conforme as
mudanças históricas, pois só assim ele pode ser capaz de captar a estrutura modificada do
capitalismo (Marcuse apud Loureiro (org.): 1999(a): 109). Vejamos a citação seguinte,
tirada de uma entrevista de Marcuse, na qual ele apresenta de maneira clara as
contribuições que a teoria freudiana traz para a teoria marxista, quando lhe perguntam
acerca da possibilidade da abordagem de Freud entrar nessa teoria :
(...) a abordagem freudiana pode e deve entrar nesta teoria, pois abriu uma dimensão no que
se refere à determinação social do ser humano que, em grande parte, havia ficado à margem da
teoria marxista. Freud mostrou quão profundamente as relações sociais são reproduzidas nos
próprios indivíduos e através dos indivíduos, quer dizer, a própria sociedade co-determina em alto
grau a estrutura pulsional dos indivíduos. (Marcuse apud Loureiro: 1998: 110)
105
Mas a teoria freudiana, por sua vez, também sucumbe ao desenvolvimento histórico:
na medida em que concebe o desenvolvimento histórico como a reprodução de uma mesma
essência, de um ponto de vista estático, ela torna-se ideológica, pois nega a possibilidade de
mudança e aceita o destino inevitável dos fatos ela curva-se frente à ideologia dominante.
Neste novo contexto histórico a teoria freudiana também é posta em questão, uma vez que o
desenvolvimento das forças produtivas invalida a inevitabilidade do conflito entre o
indivíduo e a sociedade estabelecida por Freud (seu elemento estático).
Tanto o marxismo quanto a teoria freudiana são postos em questão com o
desenvolvimento histórico que conduziu a uma nova fase do capitalismo: a obsolescência
dessas teorias revela o poder repressivo da sociedade unidimensional , sua capacidade em
integrar as forças antagônicas e eliminar toda negação. Neste sentido, o marxismo e a teoria
freudiana ainda guardam aquela imagem do negativo, da oposição entre o indivíduo e a
sociedade, que parece eliminada e obscurecida na realidade social.
O conceito marxista de negação como superação não vale mais em uma sociedade
que elimina a negação e que faz dos agentes históricos da revolução (a classe trabalhadora,
que conduziria a sociedade a um estágio mais elevado de organização social - o socialismo)
parte da engrenagem que reproduz o sistema, através da manipulação de suas necessidades
e interesses. O conceito de negação que se desenvolve no interior do todo antagônico
existente como superação se vê contestado.
A eliminação da negação também afeta as instâncias que definem o psiquismo na
teoria freudiana, pois estas não explicam mais seu funcionamento, nem a relação entre o
indivíduo e a sociedade. Primeiro porque nesta sociedade a família perde em importância
na socialização do indivíduo, o que invalida o esquema do complexo de Édipo a partir do
qual o indivíduo se formava
estamos diante de uma sociedade sem pai , na qual os
106
meios de socialização são exteriores à família (escola, televisão, colegas e círculos de
amigos, etc). O superego torna-se uma instância bastante fraca para se opor ao princípio
de realidade , o que reduz o poder de autonomia individual assim como a consciência, que
se forma a partir da instauração do superego .
Segundo porque o conflito entre o indivíduo e a sociedade, a partir do qual os
sujeitos se formavam, foi atenuado: as pulsões podem se satisfazer consideravelmente, ao
mesmo tempo em que esta liberação funciona como um poderoso instrumento de coesão.
Marcuse contesta a hipótese de Freud de que a libertação das pulsões de vida conduziria
à libertação das pulsões de morte
esta tese teria implicações fatais para a civilização,
pois levaria em direção à sua própria destruição. Ele argumenta que na sociedade
contemporânea a libertação das pulsões de morte tornou-se parte integrante de seu
desenvolvimento e manutenção, sendo um poderoso elemento na conquista da natureza e
dos homens:
Parece que a crescente capacidade da sociedade manipular o progresso técnico também
aumenta sua capacidade de manipular e controlar [esta pulsão], isto é, para satisfazê-la
produtivamente (...); a coesão social é fortalecida nas mais profundas raízes pulsionais (...). Assim
como esta sociedade tende a reduzir e até absorver a oposição no âmbito da política e da cultura
superior, também tende a fazê-lo na esfera [pulsional]. (...) O resultado é a atrofia dos órgãos
mentais, impedindo-os de perceber as contradições e as alternativas e, na única dimensão restante
da racionalidade tecnológica, prevalece a Consciência Feliz. (Marcuse: 1969: 88)
No texto Ecologia e Crítica da Sociedade Moderna Marcuse define a sociedade
atual no contexto da destrutibilidade institucionalizada , que conduz a estruturas de
caráter destrutivas entre seus membros e fornece o contexto para a reprodução individual
da destrutibilidade na sociedade. Esta característica é flagrante nas mais diversas
situações, sobretudo na aliança entre produção e destruição . Retomemos alguns dos
107
exemplos característicos desta destrutibilidade institucionalizada fornecidos por Marcuse:
o constante aumento no orçamento militar às custas do bem estar social , proliferação de
usinas nucleares , envenenamento e poluição geral do meio ambiente , gritante
subordinação dos direitos humanos às exigências da estratégia global e a ameaça de
guerra no caso de contestação dessa estratégia (1999: 145). Este texto-conferência é de
1977[!].
Na medida em que o poder de negação é eliminado na sociedade
unidimensional ele adquire uma posição central na obra de Marcuse (sobretudo nas suas
últimas obras), cujo objetivo é desmistificar a ilusória harmonia presente na sociedade
atual, assim como mostrar que esta sociedade só se mantém pela constante intervenção no
âmbito subjetivo para que os indivíduos não vejam a alienação e a dominação.
Ainda no texto Sobre o Conceito de Negação na Dialética Marcuse propõe a
possibilidade de que o sistema possa ser negado por forças desenvolvidas no exterior do
sistema de interesses que o mantém: ele se refere a uma diferença qualitativa na qual o
externo se reporta para além das contradições existentes (das necessidades produzidas e
manipuladas) no interior do sistema antagônico. Na medida em que as forças negativas se
transformaram em forças positivas , reproduzindo o existente ao invés de transformá-lo ,
Marcuse sustenta a possibilidade de um rompimento total com as premissas e instituições
deste sistema alienante e que este possa ser negado de fora: este fora refere-se ao sistema
de interesses que mantém a sociedade, mas que surge internamente à mesma
somente
um poder que se encontra fora do sistema de interesses, do sistema das necessidades da
sociedade civil pode representar as necessidades e interesses universais (1972: 163-4, grifo
meu).
108
A diferença entre a atual organização repressiva da sociedade e a futura estaria no
surgimento de necessidades emancipatórias, essencialmente opostas às que mantêm
atualmente o sistema: estas não são necessidades novas, pois elas permeiam a vida dos
indivíduos no contexto desta sociedade, sendo, entretanto, reprimidas. Marcuse cita, por
exemplo, a necessidade de um trabalho criativo , de tempo livre (autônomo), necessidade
de silêncio, receptividade, tranqüilidade e alegria (Marcuse: 1999: 150).
A possibilidade do poder de negação surgir fora da totalidade repressiva implica a
existência de forças e movimentos que não estejam manietados pela produtividade
agressiva e repressiva . Entretanto esses movimentos não representam mais a luta de
classes no sentido tradicionalmente formulado no marxismo: não que a luta de classes tenha
desaparecido, mas ela assume novas feições uma vez que o processo de trabalho também
foi alterado. Esses novos movimentos sociais representam a revolta das pulsões de vida
contra a realidade repressiva: esses movimentos radicais são revoltas existenciais contra
um princípio de realidade obsoleto (1999: 153). Marcuse encontra esta revolta das
pulsões de vida no movimento estudantil, movimento feminista e ecológico, entre outros.
Na medida em que a sociedade antagônica se transformou em uma totalidade repressiva
terrível, (...) se desloca o lugar social da negação. O poder do negativo surge fora desta totalidade
repressiva, a partir de forças e movimentos que ainda não estão manietados pela produtividade
agressiva e repressiva da chamada sociedade da abundância , ou que já se libertaram deste
desenvolvimento e, portanto, tem a possibilidade histórica de percorrer um caminho de
industrialização e modernização realmente distinto, um caminho humano de progresso. (Marcuse:
1972: 165)
Se o marxismo e a teoria freudiana não podem mais explicar a partir de suas
próprias categorias a realidade do novo contexto social, a crítica imanente pode explicitar
o conteúdo dessas categorias tornadas obsoletas e, ao fazê-lo, criticar esta mesma
109
sociedade. Reportando a análise aos fatos históricos concretos e mostrando como as
transformações históricas afetaram internamente essas teorias, ela pode desmistificar e
denunciar a ideologia progressista que reproduz a sociedade, justamente porque essas
categorias e processos tornados obsoletos revelam a realidade da repressão e da dominação
que ainda não eram obscurecidas e das contradições não imobilizadas: elas guardam a
verdade do desenvolvimento social. A noção de conflito é central nas duas teorias: ela
expressa uma realidade de contradição que se tornou harmônica no atual contexto
histórico.
Marcuse afirma que é preciso romper com as premissas em que esta sociedade se
baseia, mostrando a contradição entre as possibilidades anunciadas e a realidade de sua
não realização. Neste sentido é necessária uma crítica que apreenda os fatos em sua
posição dentro do processo de manutenção do sistema de dominação, pois só assim eles
revelam sua verdadeira função. Sua verdade
deriva da confrontação daquilo que uma
sociedade se apresenta e aquilo que ela é (Adorno apud. Maar: 2002: 7)
esta é a crítica
imanente .
A crítica imanente
demonstra a contradição entre a produtividade anunciada do trabalho e a
efetivamente realizada socialmente; entre a possibilidade e a realidade socialmente imposta. (Maar:
2002: 7, grifo meu)
A idéia da recusa ocupa uma posição central na obra de Marcuse: enquanto uma
noção crítica ela implica a negação do atual sistema de dominação e de suas premissas, a
possibilidade de escapar ao círculo de coesão progressiva , uma ruptura na continuidade
como mercadoria , a rejeição do consumismo enquanto parcela do circuito de reprodução
do capital (Maar: 1999: 71)
é a revolta das pulsões de vida . Somente assim a
110
possibilidade de rompimento desta racionalidade destrutiva pode ser, pelo menos
imaginável .
Para F. Jameson, em Marcuse a idéia de utopia
mantém viva a possibilidade de um
mundo qualitativamente melhor, tomando a forma de uma negação inflexível de tudo que
existe. (Jameson: 1985: 90, grifo meu). E é a partir deste pano de fundo que a obra Eros e
Civilização deve ser abordada: muitos a acusaram de ser uma obra ingenuamente utópica, e
numa primeira leitura desatenta pode até parecer. É preciso ter em mente o contexto e o
significado da utopia para Marcuse; longe de ser algo irrealizável, ela é o único meio de
resgatar as possibilidades de superação, que estão em aberto mas obstruídas pela
racionalidade da sociedade tecnológica: ele busca uma saída para o impasse da sociedade
sem oposição (Loureiro: 1998: 114).
Marcuse retoma o termo utopia concreta de Ernst Bloch: [...] utopia
porque tal
sociedade não existe em lugar algum; mas concreta
porque tal sociedade é uma
possibilidade histórica real (Marcuse apud. Loureiro (org.): 1999(a): 148). Essas
possibilidades se encontram presentes na sociedade atual e poderiam conduzir a um outro
princípio de realidade , além da forma estabelecida.
Na última página do texto A Noção de Progresso à Luz da Psicanálise Marcuse
expõe de forma marcante o sentido que a dimensão utópica assume em seu pensamento:
Gostaria de defender-me da censura que, espero, vocês devem ter me dirigido (...) que é ir
longe demais e ser irresponsável, numa situação na qual a realidade onde vivemos não só nada tem
a ver com as hipóteses aqui levantadas, mas que sob todos os aspectos é exatamente o contrário
disso e assim promete permanecer, [e de] expor uma utopia em que se afirma que a sociedade
industrial moderna poderia muito em breve atingir um estado em que o princípio de repressão (...)
se revelará obsoleto. É certo que não se pode imaginar maior contraste entre essa utopia e a
realidade (...) existente atualmente. Quanto menos a renúncia e as restrições são biológica e
111
socialmente necessárias, tanto mais os homens precisam ser transformados em instrumentos de uma
política repressiva. (...) Talvez seja hoje menos irresponsável pintar uma utopia fundamentada que
difamar como utopia condições e possibilidades que já há muito se tornaram realizáveis. (Marcuse:
2001: 138).
É neste contexto que a interpretação polêmica da teoria freudiana se situa na obra
de Marcuse, segundo o que foi possível averiguar. Não creio que possamos dar por
encerrada a polêmica que sua interpretação suscita mas, de acordo com a perspectiva que
elaboramos, pudemos pelo menos chegar a uma melhor compreensão de sua obra e
desmistificar a aparente utopia ingênua que muitos atribuem a ela. Mais do que isso, este
estudo revelou a grande atualidade da leitura de Marcuse que permite aprofundarmos a
compreensão do atual contexto histórico. Foi esta atualidade que levou Giles Chatelêt a
escrever um artigo instigante para um jornal francês, cujo título é Reler Marcuse para não
viver como porcos. Com a citação de uma passagem deste artigo encerramos aqui este
último capítulo:
Pensar a mobilidade é, segundo Marcuse, captar toda a paciência e mordacidade do
pensamento negativo que se poderia crer em vias de desaparecimento. É recusar-se a abdicar
perante as imposturas que se apresentam como absolutas e se põem como filosofia positiva ,
legitimadoras de uma sábia resignação diante de leis sociais vistas como tão naturais como as leis
de Newton. (...) Eis porque é preciso ler e reler Marcuse, o homem para quem conformar-se é (...)
adaptar-se, é ficar impedido de realizar esta união de paciência e teimosia que constrói o esplendor
da individuação humana. (Chatelêt: 1998: 22-23)
112
Conclusão
Tentaremos fazer agora um apanhado das colocações expostas até aqui, a fim de
termos uma visão mais geral de nossas posições e ver até onde elas nos conduziram.
A obra de Marcuse Eros e Civilização não pode ser compreendida fora do contexto
teórico ao qual ela pertence. As tentativas de interpretação da obra de Marcuse analisadas
aqui neste trabalho se mostraram problemáticas justamente por omitir esta referência.
É por isso que, no capítulo um, fizemos um esforço em apresentar a teoria crítica
e mostrar a relação que ela possui com a teoria freudiana, antes mesmo de abordarmos a
obra analisada. Esta retomada do contexto teórico de Marcuse, a teoria crítica, permitiu
compreendermos que a teoria freudiana é abordada a partir de uma perspectiva muito
singular, como tentaremos mostrar no decorrer desta conclusão.
Podemos perceber que, em resposta às polêmicas suscitadas pelas críticas de P.
Robinson, de J. Laplanche e de B. Prado, utilizamos praticamente os mesmos argumentos,
apesar dos diferentes enfoques. Retomaremos de modo mais sistemático estes argumentos,
o que permitirá que tenhamos uma visão mais acabada e delimitada de nossas posições. A
questão que nos guiará neste trabalho de conclusão será a seguinte: o que há de comum nos
argumentos utilizados em resposta às críticas de Laplanche, B. Prado Jr. e Robinson?
Podemos dizer que, apesar da particularidade específica de cada uma das críticas
dirigidas a Marcuse, as três possuem em comum a idéia de que a interpretação marcuseana
da obra de Freud resulta em deformações no seu conteúdo. P. Robinson diz que, ao tentar
unir Marx e Freud, Marcuse introduz concepções históricas que são exteriores à teoria
freudiana, deformando as concepções de repressão e princípio de realidade , entre
outras; para Laplanche, ao omitir toda referência à clínica, Marcuse também deforma as
113
concepções fundamentais da psicanálise; e B. Prado afirma que, na tentativa de
fundamentar o verdadeiro objeto de desejo como sendo a constituição da comunidade
humana e solidária , Marcuse deforma as concepções de alvo e objeto freudianos, o
que torna incompreensíveis as figuras básicas da psicanálise.
Estes três autores não levam em conta o contexto em que se dá a interpretação de
Marcuse da obra freudiana. Marcuse tem um objetivo específico que somente em referência
ao contexto geral de seu pensamento é possível esclarecer. O pensamento de Marcuse
(assim como da teoria crítica de modo geral), possui uma preocupação central que o liga a
toda a tradição da história da filosofia: a preocupação com a felicidade humana. No
entanto, a noção de felicidade é redefinida, tendo em vista o novo contexto histórico
surgido com o desenvolvimento capitalista.
A questão da felicidade deve ser analisada tendo em vista a existência da
possibilidade real de libertação da luta pela existência, proporcionada pelo nível elevado de
desenvolvimento atingido pelas forças produtivas. É aqui que a teoria freudiana se vê
questionada, na medida em que ela afirma a impossibilidade da felicidade na civilização. A
noção de felicidade em Marcuse se refere a uma felicidade material, objetiva e universal :
somente estando livre da luta pela existência e que as necessidades básicas de
sobrevivência tenham sido saciadas, pode o indivíduo ser feliz; mais do que isso, somente
quando esta possibilidade é dada universalmente, para todos os indivíduos, ela é de fato
uma felicidade verdadeira .
Para Marcuse, a questão da felicidade só pode ser posta no atual estágio de
desenvolvimento técnico atingido pela sociedade. Por isso ele retoma a teoria freudiana e
põe em questão a relação estabelecida por Freud entre infelicidade e civilização. No
capítulo três apresentamos a crítica de Marcuse ao hedonismo, uma crítica que, como
114
pudemos observar, caminha na mesma direção. As distinções estabelecidas por Marcuse
entre verdadeiras e falsas necessidades e interesses, verdadeira e falsa felicidade,
mais-repressão e repressão , representam uma tentativa em tornar visível a contradição,
presente na sociedade contemporânea, entre a possibilidade anunciada de felicidade e a
realidade de sua não realização. Marcuse apreende os fatos da realidade em sua posição
dentro do processo de manutenção do sistema opressivo; isto é, em sua posição na
perpetuação desta contradição.
Com o conceito de dessublimação repressiva Marcuse caracteriza a sociedade de
massas contemporânea. Este conceito representa a dinâmica da sociedade que, por um lado,
possibilita maior liberdade e satisfação das necessidades e, por outro, esta liberdade atua
como dominação, pois impede que os indivíduos vejam seu mecanismo real. Nesta
sociedade, também chamada de sociedade de consumo de massas , a produção incessante
de mercadorias está aliada à produção de necessidades (que são, portanto, falsas
necessidades, pois não pertencem ao próprio indivíduo, mas à manutenção de um
determinado modo de produção): assim, estabelece-se um círculo de coesão progressiva ,
através da produção de mercadorias que não possuem em si mesmas um valor de uso real,
mas ilusório, pois não correspondem às necessidades efetivas dos indivíduos (e sim às
necessidades produzidas).
É neste contexto que a obra de Marcuse adquire seu significado singular. Podemos
perceber essa particularidade através da sua crítica ao revisionismo neofreudiano: é aqui
que Marcuse marca sua posição em relação às várias interpretações já realizadas do
pensamento de Freud, assim como tenta resgatar a função crítica da teoria freudiana.
Para Marcuse, a interpretação da teoria freudiana realizada pelo revisionismo omite
a contribuição fundamental de Freud para a teoria social contemporânea: a sua função
115
crítica . Na tentativa de resolver a oposição estabelecida por Freud entre felicidade e
civilização (entre indivíduo e sociedade) os revisionistas propõem uma solução individual
( uma solução falsa, mas fácil ); ou seja, para eles o indivíduo pode desenvolver suas
potencialidades e ser feliz na sociedade tal como está
eles eliminam toda oposição entre
indivíduo e sociedade. A idéia de um trabalho construtivo (desenvolvida no capítulo dois
deste trabalho), implica na possibilidade do trabalho, tal como ele se encontra, proporcionar
prazer: esta posição reflete um conformismo, pois omite o fato de que nesta sociedade o
trabalho é determinado, é trabalho alienado e que possui uma posição central no processo
de manutenção do sistema de dominação.
O problema da interpretação revisionista é a ausência de crítica da realidade. Seu
modo de interpretação é idealista-positivo : é idealista porque supõe que a sociedade
caminha para frente , rumo ao seu curso emancipatório; e é positivista porque não
questiona os fundamentos desta sociedade, tomando a realidade como ponto de partida para
sua interpretação
eles aceitam as premissas em que esta sociedade se baseia, sem mostrar
que a própria sociedade impede a realização destas.
Já Marcuse apresenta a realidade a partir de suas contradições: da confrontação
entre a possibilidade de realização das premissas enunciadas e a não realização dessas
premissas
esta é a crítica imanente . Ele propõe um rompimento com as premissas em
que esta sociedade se sustenta (por exemplo, trabalho , produtividade ,
responsabilidade , felicidade , liberdade , entre outras), fazendo sua crítica e mostrando
a posição dessas premissas na manutenção e perpetuação da dominação. É preciso apontar
para o fato de que a realização destas premissas é determinada por um modo de produzir
que impõe aos indivíduos a forma e o conteúdo de seus desejos e necessidades. Para ele é
preciso desmistificar a falsa consciência , a consciência reificada . que aceita
116
acriticamente o destino que lhe é determinado. A teoria precisa de conceitos críticos, que
apresentem as possibilidades que são negadas aos indivíduos e que desfaçam a aceitação da
má realidade . Os indivíduos precisam ver as contradições que foram obscurecidas na
aparente harmonia da sociedade unidimensional .
É aqui que a teoria freudiana revela toda sua força : ela fornece elementos para
romper com a aceitação desta forma alienada de sociedade, ao colocar em questão os
fundamentos da mesma.
A teoria freudiana se refere a uma concepção de indivíduo e de civilização que
possibilita sua utilização enquanto um instrumento de análise e de crítica da sociedade. O
pessimismo freudiano reflete uma postura essencialmente crítica de Freud para com o
processo civilizatório. Partindo da perspectiva individual, analisando o sofrimento, a
angústia, a infelicidade e as várias doenças psíquicas, Freud chega à conclusão de que esse
sofrimento é causado por uma civilização que nega, pela sua própria estrutura e
organização, a satisfação e a felicidade aos indivíduos. Ele descobriu na análise da doença
individual a doença geral da civilização. Ele preserva em suas concepções e conceitos a
realidade tal como ela se apresenta e não uma realidade idealizada. O indivíduo em Freud é
infeliz, reprimido, não possui autonomia, sendo determinado tanto num nível filogenético
(história da espécie), quanto ontogenético (história individual).
Este realismo pessimista (ou mesmo pessimismo crítico ) de Freud permite
romper com a cegueira frente a uma realidade opressiva, que se apresenta como
harmônica. Ao afirmar a oposição entre a satisfação das necessidades e desejos individuais
e as exigências da sociedade, Freud apresenta a realidade tal como ele a vê: em sua forma
alienada.
117
Entretanto, Freud aceita o destino inevitável da oposição entre felicidade e
civilização
e aqui a teoria freudiana se vê questionada com as transformações da
sociedade industrial. A interpretação de Marcuse da teoria freudiana implica na crítica
desse conteúdo estático presente em seus fundamentos. Esta crítica permite que Marcuse
apresente as contradições dessa nova forma assumida pela sociedade capitalista; ele aponta
para as possibilidades de libertação que lhe são intrínsecas e que são reais. Essa crítica
constitui uma démarche fundamental na obra Eros e Civilização.
Marcuse afirma que as categorias freudianas que definem o psiquismo e a
sociedade, assim como a relação entre ambos, não se sustenta mais na nova configuração da
sociedade. A noção de conflito é central em Freud, tanto no que se refere à formação
psíquica individual, quanto na relação entre as exigências de satisfação pulsional e a
sociedade. Este conflito foi contido pela sociedade unidimensional , pela sua capacidade
de integrar as forças antagônicas e a negação. As categorias freudianas tornaram-se
obsoletas na realidade atual. Entretanto, esta obsolescência das categorias freudianas
revela uma maior repressão e não maior liberdade. Se a teoria freudiana não pode mais
explicar, a partir de seus próprios conceitos, como se dá a relação entre o indivíduo e a
sociedade, é porque essa sociedade se transformou.
A crítica de Marcuse à teoria freudiana não pretende corrigi-la , mas mostrar que a
obsolescência de suas concepções reflete um movimento real da sociedade. O que
significa que as categorias freudianas se tornaram obsoletas ? Significa que elas foram
ultrapassadas e que não conseguem mais esclarecer os fatos psíquicos tais como eles se dão
na atual organização social. Entretanto, isto não significa que os processos descritos por
Freud tenham desaparecido: ele criou uma teoria da constituição psíquica universal. Se os
processos não se dão mais da mesma forma descrita por ele, no entanto, eles não
118
desapareceram: continuam existindo, mas sob outras formas e conteúdos, pois a sociedade
não eliminou a oposição entre o indivíduo e a civilização.
Ocorreu uma obsolescência empírica dos conceitos freudianos: eles não
possibilitam mais compreender a realidade social, pois esta foi transformada. Todavia, eles
guardam a verdadeira imagem do processo civilizatório, essencialmente oposto à
felicidade e às necessidades individuais.
Assim como a teoria freudiana, o materialismo marxista (ortodoxo) também se
tornou obsoleto na realidade atual. A idéia de que uma sociedade pode atingir um nível
mais elevado de desenvolvimento a partir da negação que se desenvolve no seu interior
como superação, é contestada por uma sociedade que absorve a negação. Esta teoria
subestimou as forças de integração e coesão que atuam na fase madura do capitalismo. A
obsolescência empírica do marxismo reflete um processo social (assim como a da teoria
freudiana), o que não implica que a teoria materialista deva ser substituída por uma nova
teoria, mas sim que ela não deve se manter estática frente às transformações da sociedade.
Neste estudo insistimos diversas vezes sobre a importância da relação entre o
marxismo e a teoria freudiana para a compreensão do pensamento de Marcuse. Negamos a
crítica de P. Robinson, segundo o qual Marcuse tentara unir Marx e Freud em Eros e
Civilização. Retomaremos aqui nossos argumentos.
Marcuse não tenta unir Marx e Freud em Eros e Civilização. Primeiramente porque
ele não busca formular uma teoria totalizadora: não basta corrigir estas teorias tornadas
obsoletas para que elas apreendam a realidade transformada. Esta correção só seria
possível se a realidade mesma fosse transformada. O marxismo e a teoria freudiana
funcionam como dois instrumentos de análise e crítica da sociedade contemporânea, pois
cada qual apresenta o processo de exploração e alienação de uma perspectiva: o marxismo,
119
a partir da perspectiva universal e, a psicanálise, a partir da perspectiva particular. Não há
como eliminar esta oposição entre o particular e o universal através de uma teoria
melhor , pois esta oposição reflete uma realidade contraditória, na qual a oposição entre
indivíduo e sociedade é mantida: ela não foi eliminada, mas apenas obscurecida.
Neste sentido, dizer que Marcuse tenta unir Marx e Freud é um grande erro, pois
elimina a relação de oposição entre indivíduo e sociedade que é insistentemente afirmada
por ele, tendo em vista que ele pretende criticar a sociedade unidimensional , uma
sociedade que absorve os antagonismos e contradições. É por isso que ele retoma a teoria
freudiana - nela esta oposição é mantida.
Entretanto, seria um engano afirmar que as duas teorias possuem o mesmo estatuto
no pensamento de Marcuse. Ele é um pensador marxista (não ortodoxo), que viu na teoria
freudiana a possibilidade de repensar o próprio marxismo (ortodoxo), introduzindo neste
uma preocupação com o indivíduo: aqui a teoria freudiana lhe fornece o suporte teórico.
Mas para se tornar uma teoria crítica a teoria freudiana precisa ser questionada e este
processo se dá através da crítica imanente aos seus conceitos, tendo em vista as
transformações históricas ocorridas
esta crítica elucida o movimento desses conceitos.
A teoria freudiana possibilita o objetivo de crítica somente decifrando a dialética
histórica de seus conceitos: assim ela pode dar origem a algo de novo e sua crítica à
civilização pode se tornar construtiva
ao contrário da interpretação revisionista, que
imobiliza a sua função crítica . Essa função crítica da teoria freudiana está na denúncia
do elo entre infelicidade e civilização: na medida em que os revisionistas afirmam a
possibilidade da felicidade na civilização (nesta civilização) e não questionam os seus
fundamentos, eles tornam-se ideológicos.
120
Em Eros e Civilização Marcuse procura mostrar que, apesar da aparente harmonia
presente na sociedade de massas contemporânea, esta sociedade é essencialmente
antagônica, na medida em que a produção de riqueza está essencialmente vinculada à
produção e expansão da miséria. Numa sociedade como esta, irracional, afirmar a
possibilidade da felicidade, do desenvolvimento livre das potencialidades individuais e da
personalidade (tal como afirmam os revisionistas) é uma injustiça tremenda, é tomar
partido para que a exploração e a pobreza continuem vigorando. É preciso fazer a crítica
desta sociedade, apresentando esta contradição imanente ao seu desenvolvimento. A
riqueza que esta sociedade possui permitiria eliminar a luta pela existência, a fome e a
miséria universalmente: entretanto, a não realização desta possibilidade revela a dominação
e a exploração sobre a qual esta sociedade se sustenta a harmonia é só aparente
Neste sentido Freud foi um crítico feroz da civilização, pois ele tinha consciência
do vínculo que une progresso e infelicidade. Se ele afirma a infelicidade como uma
condição necessária da civilização, é porque ele é muito mais humano do que aqueles que
crêem na possibilidade da felicidade se realizar nesta sociedade. Se a felicidade for
concebida apenas individualmente, ela é falsa. A felicidade, para Marcuse, é uma condição
que só pode ser concebida quando todos os indivíduos tiverem acesso às riquezas
produzidas pela sociedade da abundância e não apenas um grupo restrito de pessoas, e,
sobretudo, quando a produção desta riqueza não estiver mais vinculada ao aumento da
exploração e da miséria, à destruição do meio e dos seres humanos.
A utopia marcuseana formulada em Eros e Civilização pretende afirmar as
possibilidades de liberdade e felicidade existentes na civilização, que se encontram
obstruídas pelo sistema de dominação: ele quer que os indivíduos vejam a irracionalidade
do desenvolvimento da civilização, escondida na aparente racionalidade.
121
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