MARCUSE E FREUD: uma interpretação polêmica - um estudo de Eros e Civilização, 2003

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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS MARCUSE E FREUD: uma interpretação polêmica - um estudo de Eros e Civilização MARILIA MELLO PISANI ORIENTADOR: WOLFGANG LEO MAAR SÃO CARLOS SP 2003

Transcript of MARCUSE E FREUD: uma interpretação polêmica - um estudo de Eros e Civilização, 2003

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS

MARCUSE E FREUD: uma interpretação polêmica

- um estudo de Eros e Civilização

MARILIA MELLO PISANI

ORIENTADOR: WOLFGANG LEO MAAR

SÃO CARLOS SP 2003

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Sumário

Introdução ................................................................................................................................ 2

Capítulo I

A Teoria Crítica da sociedade desenvolvida pela Escola de Frankfurt ............... 8

Capítulo II

Marcuse e a Psicanálise .................................................................................... 24

1. Marxismo e Psicanálise na obra de Marcuse ......................................................... 24

2. A crítica de Paul Robinson .................................................................................... .27

2.a. A crítica ao Revisionismo Neo-Freudiano ................................................... .29

2.b. A Dessublimação Repressiva ................................................................... .33

2.c. A Crítica Imanente ........................................................................................ 45

2.d. Mais-Repressão e Princípio de Rendimento (ou A Crítica a Freud)...... 49

Capítulo III

A Hipótese da Transformação Não-Repressiva das Pulsões ........................... 60

1. Exposição da hipótese de Marcuse ........................................................................ 60

2. A crítica de Jean Laplanche ................................................................................... 77

3. A crítica de Bento Prado Jr. ................................................................................... 80

4. A particularidade da interpretação marcuseana ..................................................... 82

4.a. A crítica do Hedonismo e do Idealismo Filosófico ....................................... 84

4.b. O contexto da interpretação marcuseana (resposta às críticas) ..................... 91

Capítulo IV

A Crítica do Marxismo ................................................................................. 100

Conclusão ............................................................................................................................. 112

Bibliografia .......................................................................................................................... 121

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Introdução

O livro Eros e Civilização, escrito em 1955 e publicado pela primeira vez nos

Estados Unidos com o título Eros and Civilization. A Philosophical Inquiry into Freud,

surgiu a partir de uma série de conferências dadas por Marcuse na Washington School of

Psychiatry no período de 1950 a 1951 e só posteriormente foi publicado na Alemanha. Este

livro foi alvo de várias polêmicas, tanto por parte dos marxistas ortodoxos, quanto dos

psicanalistas. Nele está contida uma interpretação singular da teoria freudiana, que obedece,

por sua vez, ao contexto teórico formulado pela Escola de Frankfurt: a Teoria Crítica da

Sociedade.

A obra Eros e Civilização permite múltiplas abordagens. Entretanto, nós estamos

interessados apenas em uma determinada perspectiva. Por isso não nos atentaremos a todas

as questões que ela apresenta, mas apenas às que se mostram relevantes para a discussão.

Como explicitado já no próprio título desta dissertação, estamos interessados na

polêmica que a interpretação da obra de Freud realizada por Marcuse produz. Numa

primeira leitura desatenta a interpretação de Marcuse pode parecer uma grande fantasia,

romantismo, utopismo e otimismo ingênuo. Esta foi inclusive a perspectiva da qual partiu

este trabalho: no início estávamos interessados em criticar a interpretação excessivamente

otimista de Marcuse, na medida em que ela se revelava oposta ao pessimismo realista

freudiano, transfigurando completamente o que seria a contribuição de Freud. Afirmávamos

que ao introduzir concepções exteriores à psicanálise freudiana na tentativa de historicisá-

la, Marcuse ultrapassa o que constitui a base essencial da teoria de Freud: apreender o

homem em sua constituição psíquica universal . Na primeira versão deste projeto, escrita

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em 1999, criticávamos a transmutação de uma teoria essencialmente anti-utópica (tal como

o freudismo) em um utopismo ingênuo .

Mas a partir das leituras realizadas para esta dissertação, foi possível observar que a

coisa não era assim tão simples . A interpretação de Marcuse, longe de ser ingênua, era

extremamente realista e continha um conteúdo essencialmente político, ancorado em uma

teoria dialética que não podia ser simplesmente reduzida a uma leitura superficial.

Enquanto marxista não ortodoxo Marcuse viu na teoria freudiana a possibilidade de uma

reinterpretação do marxismo, sendo esta imposta pelas transformações históricas ocorridas

desde a época de sua formulação. Mostramos que, ao contrário de algumas críticas,

sobretudo a de P. Robinson, Marcuse não procurou unir Marx e Freud em Eros e

Civilização: sua obra deve ser analisada no contexto da crítica marxista, mas de um

marxismo combinado a uma preocupação com o indivíduo, possibilitada pela teoria

freudiana.

Este trabalho foi desenvolvido em quatro capítulos que correspondem

respectivamente a quatro questões principais. Estas questões, por sua vez, foram impostas

pelo objetivo estabelecido: a saber, analisar as diversas polêmicas que a obra Eros e

Civilização suscitou, tentando compreendê-la a partir de seu próprio fundamento teórico.

Convém sistematizar estas questões apenas para facilitar a compreensão deste trabalho. A

seguir, desenvolverei brevemente o conteúdo principal dos capítulos correspondentes a

elas.

1. O que faz da teoria freudiana uma teoria interessante para Marcuse e para a teoria

crítica?

2. Partindo das objeções de P. Robinson, será que na interpretação da teoria freudiana

Marcuse introduz de fora concepções históricas, políticas e sociológicas, tal como

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faz o revisionismo neo-freudiano? Se não, como se explicam os conceitos de mais-

repressão e princípio de rendimento ?

3. Na sua interpretação da teoria freudiana, sobretudo no que se refere à hipótese da

transformação não-repressiva das pulsões, Marcuse deforma as concepções gerais

daquela, tal como o acusam Jean Laplanche e Bento Prado?

4. Como se dá a relação entre a teoria freudiana e o marxismo na obra de Marcuse?

Com estas questões pudemos obter uma compreensão geral dos principais pontos da

obra de Marcuse, assim como da particularidade de sua interpretação filosófica do

pensamento de Freud .

No primeiro capítulo realizamos uma breve tentativa de localizar o contexto teórico

ao qual pertence Marcuse e destacar o interesse que a teoria freudiana desperta para os

teóricos deste grupo. A relação entre a teoria crítica e a teoria freudiana é analisada

sobretudo a partir de dois textos de M. Horkheimer: o texto pronunciado em 1931 no

discurso de posse do Instituto de Pesquisa Social, chamado A presente situação da filosofa

social e as tarefas de um Instituto de Pesquisa Social, e o texto Teoria Tradicional e

Teoria Crítica escrito em 1937, no qual ele delineia os contornos da assim chamada teoria

crítica da sociedade (uma teoria essencialmente dialética da sociedade). Na relação entre a

teoria crítica e a teoria tradicional podemos compreender o papel desempenhado pela teoria

freudiana nesses teóricos, na medida em que ela se revela um importante instrumento de

análise e crítica da sociedade.

No segundo capítulo, tentamos mostrar que a interpretação de Marcuse não pode ser

compreendida fora da relação estabelecida entre a psicanálise freudiana e o marxismo, uma

relação que não é nem de oposição, nem de síntese (união), mas dialética é neste contexto

que a teoria freudiana revela toda sua importância.

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Para compreendermos a relação entre Marcuse e Freud optamos por trabalhar com a

crítica de Paul Robinson, segundo a qual Marcuse teria tentado unir , em Eros e

Civilização, Marx e Freud. O trabalho baseado nesta crítica se mostrou muito frutífero, pois

permitiu estabelecer uma série de pontuações em relação à interpretação de Marcuse. A fim

de argumentarmos contra P. Robinson expusemos as devidas diferenças entre Marcuse e o

revisionismo. A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse não pode ser

compreendida fora do contexto da crítica ao revisionismo neo-freudiano

é aqui que ela

revela toda sua particularidade. Marcuse tenta salvar a teoria freudiana do psicologismo

americano dos anos 50 e 60, apresentando-a como uma teoria essencialmente crítica. A

teoria crítica se interessa sobretudo pela teoria freudiana da cultura (desenvolvida a partir

dos anos 20, quando Freud introduz o conceito de pulsão1 de morte ) pois ela revela, de

uma maneira muito mais crítica que o revisionismo, a profunda relação que une o

desenvolvimento social e a constituição psíquica dos indivíduos.

A fim de argumentarmos contra a crítica de Robinson retomamos, por um lado, os

conceitos de dessublimação repressiva , mais-repressão e princípio de rendimento ,

formulados por Marcuse em Eros e Civilização, assim como retomamos, por outro, o

contexto da crítica imanente na qual a interpretação marcuseana se insere e sem a qual

não pode ser compreendida.

1 Ao contrário da tradução inglesa da obra de Freud, optamos por utilizar o termo pulsão ao invés de instinto , pois estamos seguindo as indicações de Laplanche e Pontalis no livro Vocabulário de Psicanálise.

Segundo estes autores, quando Freud utiliza o termo instinto ele se refere a um comportamento animal fixado por hereditariedade. Este termo tem implicações essencialmente diferentes do termo pulsão , que significa, por sua vez, um impulso constituído por uma fonte , por uma meta e um objeto não fixo. Entretanto, mantivemos o termo instinto utilizado por Marcuse, pois esta será uma das críticas que Laplanche faz a sua interpretação da obra de Freud e que será apresentada no capítulo III.

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No segundo capítulo apresentamos, de modo não sistemático, as concepções

expostas por Marcuse na primeira parte de sua obra2 e que correspondem à apresentação

geral da teoria freudiana da cultura, da relação intrínseca (estabelecida por Freud) entre o

desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento social. Já no terceiro capítulo,

apresentamos a segunda parte da obra3, que corresponde à formulação da hipótese do

desenvolvimento não repressivo da civilização. Esta hipótese foi formulada tendo em vista

duas justificativas: o surgimento da sociedade de massas contemporânea ; e os próprios

conceitos freudianos permitem, segundo Marcuse, visualizar a possibilidade de uma

civilização não repressiva.

Neste terceiro capítulo também optamos por discutir baseado em críticas, na medida

em que estas revelaram a polêmica que a interpretação de Marcuse impôs a diversos

autores. Esta hipótese foi severamente criticada por Jean Laplanche e por Bento Prado Jr.,

que viram nela, além de um acento romântico, a imposição de sérias deformações ao

discurso freudiano.

Longe de negar a veracidade da tese desses autores de que a interpretação de

Marcuse impõe uma deformação a alguns dos conceitos fundamentais da teoria freudiana,

argumentamos que sua interpretação não deve ser analisada por esta óptica (a de uma

epistemologia da psicanálise) e sim no contexto teórico da crítica imanente . Aqui

retomamos o texto escrito por Marcuse em 1938, Para a crítica do hedonismo, que nos

permitiu esclarecer a perspectiva teórica da qual ele parte.

No último capítulo desenvolvemos, mais profundamente do que no capítulo dois, a

relação entre o marxismo e a psicanálise freudiana, pois nos pareceu que somente nesta

2 Chamada Sob o domínio do princípio de realidade . 3 Chamada Para além do princípio de realidade .

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relação é que podemos compreender o verdadeiro papel que desempenha a teoria freudiana

em Eros e Civilização. Para isto utilizamos o texto escrito nos anos 70, Sobre o conceito de

negação na dialética. Ao esclarecermos esta relação obtivemos uma visão geral do

contexto do pensamento de Marcuse.

Este trabalho de dissertação nos revelou a atualidade flagrante do pensamento de

Marcuse. A utopia marcuseana formulada em Eros e Civilização representa uma recusa

em curvar-se frente ao sistema de dominação sem precedentes na história. Sua insistência

em revelar as possibilidades de libertação inerentes ao sistema, as suas contradições, revela

um pensamento que tenta desmistificar a ideologia dominante e apontar para a necessidade

de uma transformação urgente da sociedade, uma transformação não nos termos de uma

tomada de poder pelo proletariado (tal como descrita no marxismo), mas enquanto uma

necessidade de emancipação surgida de um sistema no qual se torna insuportável viver,

tamanha a dominação e repressão em face da possibilidade de sua abolição.

Terminamos esta introdução com uma citação de Marcuse que revela a idéia geral

que se encontra por trás da utopia formulada em Eros e Civilização.

Por mais que seja irresponsável evocar a imagem de uma tal liberdade em face da miséria e

das dificuldades vigentes, seria igualmente irresponsável ocultar até que ponto a miséria e as

dificuldades existentes continuam a ser perpetuadas unicamente pelos interesses dominantes no

existente. (Marcuse: 1997: 44)

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Capítulo I - A Teoria Crítica da Sociedade desenvolvida pela Escola de Frankfurt

A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse em Eros e Civilização:

uma interpretação filosófica do pensamento de Freud só pode ser compreendida quando

analisada em relação ao contexto teórico no qual ela se insere, que remonta às origens da

chamada Escola de Frankfurt (ou Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt) e mais

especificamente ao contexto teórico que a orientava a partir do período em que Horkheimer

assume sua direção no ano de 1931. A partir deste momento Horkheimer estabelece uma

espécie de mudança de foco em relação à antiga direção do Instituto, que era então

dirigido por Carl Grünberg, e é nesta nova guinada teórica que são definidas as diretrizes

básicas que guiam os trabalhos de seus membros.

Esta abordagem teórica chamou-se num primeiro momento filosofia social , termo

utilizado na conferência de posse de Horkheimer na direção do Instituto, e mais tarde, no

texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica escrito em 1937, teoria crítica da sociedade . No

mesmo ano de 1937 foram escritos mais dois textos na tentativa de delimitar os contornos

da assim chamada teoria crítica : primeiramente um texto de Marcuse, no qual ele dialoga

com o ensaio de Horkheimer, e, posteriormente, um novo texto de Horkheimer - os dois

textos possuindo o título de Filosofia e Teoria Crítica. Tentaremos expor brevemente neste

capítulo as principais concepções desta corrente teórica, a fim de localizarmos a

importância que a obra freudiana possui para esta teoria, assim como a particularidade da

leitura que ela viabiliza. À luz desta contextualização teórica a obra de Marcuse (Eros e

Civilização) se tornará mais clara.

A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse suscitou algumas questões

que nos conduziram ao tema deste primeiro capítulo e que pretendemos responder com este

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trabalho: o que faz da teoria freudiana uma teoria interessante para Marcuse e para a teoria

crítica formulada pela Escola de Frankfurt e em que medida ela contribui para seu

objetivo?; quais os elementos críticos presentes nela, quais os elementos conservadores e

neste sentido, o que é dela aproveitado e o que é descartado?; que elementos permitem a

Marcuse escapar ao emaranhado anti-dialético do pessimismo freudiano?. Passaremos

agora a uma breve exposição da teoria crítica da sociedade .

Quando Horkheimer assume a direção do Instituto de Pesquisa Social nos anos 30,

ocorre uma mudança em relação à antiga orientação teórica, centrada na economia

política e dedicada à história do movimento operário: esta reorientação teórica foi

apresentada por Horkheimer em seu discurso de posse na direção do Instituto em 24 de

janeiro de 1931, chamado A presente situação da filosofia social e as tarefas de um

Instituto de Pesquisa Social. Neste texto Horkheimer apresenta as novas questões e

preocupações que guiariam a partir daí os trabalhos do Instituto. Ele não rompeu

definitivamente com a orientação teórica marxista vigente no primeiro período, mas passou

a priorizar a perspectiva interdisciplinar e a teorização, na medida em que as

transformações históricas impunham novas questões e orientações.

Neste texto Horkheimer chama de filosofia social a interpretação filosófica do

destino dos homens, enquanto não meros indivíduos, mas membros de uma comunidade e

que deve ocupar-se daqueles fenômenos que somente podem ser entendidos em conexão

com a vida social (Horkheimer: 1999: 121). Segundo o autor a filosofia social

desenvolvida na longa tradição do idealismo alemão - passando por Kant e Fichte -

encontrou seu resultado mais brilhante com Hegel. Enquanto aqueles se baseavam na

filosofia da personalidade singular , tomando o eu como ponto de partida para a auto-

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reflexão, Hegel remete a constituição desse eu à própria história, enquanto história do

espírito objetivo :

Hegel liberou essa auto-reflexão dos grilhões da introspecção, em cujas bases estava

arraigada, e remeteu à história a questão de nossa própria essência, o problema do sujeito autônomo

criador de cultura: é no trabalho da história que ele se dá uma forma objetiva (...) Com Hegel o

idealismo transformou-se numa filosofia social (Horkheimer: 1999: 122, grifo meu)

A filosofia social de Hegel recupera o particular que parece desaparecer no

idealismo, assim como faz da filosofia um instrumento racional para a transfiguração do

todo injusto, isto é, para a reconciliação entre os interesses particulares e o destino

universal: a filosofia mantém na idéia as diretrizes que devem conduzir a realidade de sua

forma injusta a uma forma mais racional e, portanto, mais justa. Devido a esse caráter

eminentemente crítico da filosofia hegeliana, em sua obra Razão e Revolução Marcuse

estabelece uma estreita relação entre o conceito hegeliano (crítico) de razão e a

necessidade da transfiguração da realidade, isto é, a revolução.

Uma vez apresentadas as concepções gerais da filosofia social hegeliana,

Horkheimer afirma que a filosofia social só pode apreender a totalidade se ela incorporar as

novas tendências descobertas pelas ciências modernas, superando a oposição entre ciências

particulares e filosofia. Impõe-se a necessidade de fundamentar um novo conceito de

filosofia que dê conta das transformações históricas ocorridas

esta nova concepção de

filosofia é a que guia a partir daí os trabalhos do Instituto.

Com o desenvolvimento moderno das técnicas e a respectiva especialização das

ciências, a filosofia se viu relegada a uma esfera específica, ocupando-se com pressupostos

metafísicos e com questões não verificáveis empiricamente. Enquanto isso, as ciências

particulares tratavam de problemas específicos a um determinado objeto, sem relacioná-lo

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com a totalidade das relações existentes. Segundo Horkheimer esta separação entre as duas

esferas do conhecimento deve ser eliminada através da formulação de um novo conceito de

filosofia que não se oponha às ciências particulares mas, ao contrário, que as incorpore em

sua estrutura - ele propõe uma perspectiva interdisciplinar . Vejamos a seguinte citação:

Essa concepção, segundo a qual o pesquisador deve considerar a filosofia talvez como um

belo exercício, mas cientificamente infrutífero, porque inverificável, enquanto o filósofo deve se

emancipar da pesquisa particular (...) está superada atualmente pela idéia de uma contínua

interpenetração e desenvolvimento dialéticos entre a teoria filosófica e a prática particular. (...) A

filosofia deve estar em condições de solicitar e animar as pesquisas particulares e, ao mesmo tempo,

ser suficientemente aberta para se deixar por sua vez influenciar e transformar pelo progresso dos

estudos concretos. (Horkheimer: 1999: 128)

Esta nova concepção implica no estabelecimento de uma estreita relação entre as

diversas áreas particulares das ciências humanas

filosofia, sociologia, economia, história

e psicologia (1999: 128). As questões filosóficas seriam influenciadas pelos métodos

científicos particulares e suas descobertas sobre o objeto de estudo, mas sem perder de vista

o universal (este objeto seria algum problema relacionado às questões filosóficas atuais).

Enquanto isso, as pesquisas particulares também seriam influenciadas pelos problemas

filosóficos mais gerais e orientadas para questões referentes à humanidade como um todo.

De modo geral, esta nova concepção de filosofia social formulada por Horkheimer

pretende superar a separação entre o universal e o particular, que se viu acentuada com o

desenvolvimento moderno das ciências, separação essa que relegou à filosofia o plano do

abstrato e inútil. Retomando a definição hegeliana de filosofia, enquanto instrumento de

possível intervenção na realidade, e unindo-a às várias descobertas das ciências específicas,

a nova filosofia social interdisciplinar poderia fornecer uma visão geral da realidade com

finalidade crítica, inter-relacionando projeto teórico e experiência individual , universal

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e particular

constrói-se assim uma teoria da sociedade em que a construção filosófica

não seja mais dissociada da pesquisa empírica (1999: 129).

Segundo Horkheimer, a velha questão da relação entre a existência particular

(vida) e a razão universal (espírito) adquire sua versão atual na questão da conexão que

subsiste entre a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento psíquico dos indivíduos e

as transformações que têm lugar nas esferas culturais (1999: 130). Para ele somente a

perspectiva da filosofia social interdisciplinar pode dar uma resposta adequada à questão,

opondo-se dessa forma à resposta metafísica (de Scheler) e às teses gerais dogmáticas,

como por exemplo a do marxismo abstrato e mal interpretado , que acredita na

determinação estritamente econômica para os fenômenos chamados superestruturais .

Essas teses dogmáticas impõem uma separação acrítica e absoluta entre espírito e realidade,

assim como negligenciam completamente o papel complicado da mediação dos

elementos psíquicos (1999: 131).

A questão que guia os trabalhos do Instituto e que somente a perspectiva

interdisciplinar pode responder é a seguinte:

(...) quais conexões é possível apurar

num determinado grupo social, num período

determinado, em determinados países

entre o papel desse grupo no processo econômico, a

transformação ocorrida na estrutura de seus membros singulares e os pensamentos e as

instituições que agem sobre esse mesmo grupo, como totalidade menor no todo da sociedade, e que

são por sua vez o seu produto? (Horkheimer: 1999: 131, grifo meu).

O modo como esta questão é formulada reflete a necessidade de compreender as

transformações históricas ocorridas, sobretudo no que se refere à transformação do

capitalismo liberal em monopolista. A dimensão interior dos indivíduos ganha um papel

importante para essa nova teoria da sociedade, uma vez que agora a dominação social não é

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mais somente externa, mas também interna: a reprodução social dá-se simultaneamente

nos dois planos (Maar: 1995: 77). Neste sentido a filosofia social frankfurteana, ou teoria

crítica, dá especial atenção para o aspecto subjetivo da dominação objetiva, material, na

medida em que ocorreu uma transformação dos próprios indivíduos, uma interferência

subjetiva, imposta pelo atual modo de produção. Analisando simultaneamente as duas

esferas, objetiva e subjetiva, é possível alcançar uma compreensão geral do atual contexto

histórico e de sua racionalidade de dominação.

É aqui que a teoria freudiana, enquanto uma teoria que se ocupa com a

subjetividade individual, adquire um papel importante para a teoria crítica. Mas para

compreendermos melhor esta questão retomaremos o texto Teoria Tradicional e Teoria

Crítica de Horkheimer, no qual ele estabelece a oposição entre teoria crítica e teoria

tradicional . Este texto nos permitirá entender um pouco mais o conteúdo da noção de

teoria crítica , para então apresentarmos a importância que a teoria freudiana adquire nesta

teoria. Tentaremos mostrar que podemos compreender a posição e a relevância da teoria

freudiana a partir da relação que ela estabelece com a teoria crítica e a teoria

tradicional .

A oposição entre teoria crítica e teoria tradicional se refere a duas abordagens

diferentes em relação à apreensão do objeto. A teoria crítica corresponde à concepção de

teoria em que se baseia a filosofia social exposta por Horkheimer no seu discurso de posse

em 1931. Como vimos, esta filosofia social pretende eliminar a oposição entre ciências

específicas e gerais (filosofia) na tentativa de abarcar a totalidade dos fenômenos do

conhecimento e, com isso, fazer a crítica da realidade injusta ( transfigurar a realidade).

Enquanto isso, a noção de teoria em sentido tradicional corresponde ao tipo de pensamento

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que surgiu no início da idade moderna e que Horkheimer atribui à filosofia moderna de

Descartes (conhecimento a partir do método dedutivo).

Apresentaremos brevemente o conteúdo da noção de teoria tradicional a partir de

duas concepções básicas, que correspondem simultaneamente à crítica do positivismo e da

metafísica: isto não quer dizer que estas sejam duas correntes de pensamento equivalentes,

mas sim que a concepção de teoria em sentido tradicional pode ser encontrada nas duas. O

positivismo corresponde às ciências particulares, enquanto a metafísica corresponde ao que

Horkheimer chama no texto Filosofia e Teoria Crítica de filosofia tradicional. É na crítica

ao positivismo e à metafísica, enquanto dois modos de pensamento baseados em uma

concepção de teoria tradicional, que podemos compreender a filosofia social frankfurteana

(ou teoria crítica). Para a teoria crítica o positivismo despreza as determinações universais,

ocupando-se isoladamente com o objeto, enquanto a metafísica despreza o particular na

busca pelas determinações universais do pensamento e da realidade. A meta da teoria

crítica é construir uma racionalidade que dê conta tanto do particular quanto do universal,

reconciliando idéia e empiria, filosofia e ciência particular, verdade e realidade (Maar:

1995: 78).

A teoria em sentido tradicional surge com o desenvolvimento moderno das técnicas

e com a respectiva especialização das ciências: o modo como as ciências naturais se

ocupam com os objetos é estendido às ciências humanas, que passam a analisar os

fenômenos sociais a partir do mesmo método científico empregado na análise dos

fenômenos naturais. A sociologia, a economia, a história, a psicologia, tornam-se matérias

ocupadas com problemas específicos, baseando-se na coleta de dados empíricos e na

descrição de problemas particulares. Horkheimer critica as escolas sociológicas que

estabelecem diferenciações entre, por exemplo, coletividade e sociedade (Tönnies),

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solidariedade mecânica e orgânica (Durkheim), cultura e civilização (A.Weber), na

medida em que este modo de interpretação hipostasia os fenômenos sociais como uma

realidade estática, sem relacioná-los com a totalidade e a práxis histórica. Os fenômenos

sociais são analisados como se fossem naturais.

Esta concepção de teoria, definida a partir de um conceito de ciência próprio às

ciências naturais, não leva em consideração a realidade histórica com a qual os fatos sociais

estão diretamente relacionados: esses fatos são analisados fora da conexão com o processo

de constituição da vida material, de suas relações e mediações

eles são fixados em

categorias. A teoria em sentido tradicional aparece desvinculada de todo solo histórico-

material, como sendo a-histórica, independente e pura , tendendo em direção a um

sistema de signos puramente matemáticos no qual os objetos da experiência aparecem

cada vez menos, sendo eles substituídos por símbolos matemáticos (Horkheimer: 1974:

18). Entretanto, esta concepção de teoria tradicional revela sua verdadeira função na

manutenção da realidade histórica e do modo de produção que a mantém.

Na medida em que a teoria despreza as determinações sociais, os valores

(subjetivos), e apresenta-se como uma instância absoluta , essa sua neutralidade favorece

a manutenção de um sistema em que a ciência e a técnica adquirem posição central

enquanto instrumentos de dominação. Essa concepção de teoria não deixa aparecer a

função real da ciência na sociedade capitalista - ela aparece como uma função entre outras

no processo de reprodução da sociedade, como autônoma, independente e livre de valores

(ela é neutra ). Uma vez que a ciência não reconhece seu papel no interior da realidade

histórica ela serve à reprodução desta:

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A teoria em sentido tradicional (...) organiza a experiência a partir da formulação de

questões que surgem em conexão com a reprodução da vida na sociedade atual. (...) A gênese social

dos problemas, as situações reais nas quais a ciência é empregada, os fins aos quais ela é aplicada se

situam fora dela mesma. (Horkheimer: 1974: 82).

Para esta concepção de teoria em sentido tradicional, os fatos sociais aparecem

como imutáveis e a realidade deve ser aceita como tal: a separação entre o indivíduo e a

sociedade é tida como definitiva. Ao indivíduo só resta aceitar o destino inevitável e as

imposições da sociedade, que lhe aparecem como uma força exterior e cega. A realidade é

concebida como estática (tal como nas categorias e estruturas conceituais que a definem).

Estas características definem a concepção de teoria tal como aparece no positivismo.

A outra perspectiva da concepção tradicional de teoria criticada por Horkheimer

refere-se à integração teórica dos fatos que se apresentam como contraditórios na realidade,

isto é, à tentativa de integrar teoricamente esses fatos, harmonizando-os. Esta identificação

transcendental dos fatos efetivamente contraditórios pode ser exemplificada através do

conceito de liberdade tal como ele aparece no idealismo: a liberdade aparece como um

elemento inerente ( interno ) ao ser humano, mesmo que ela não vigore na realidade

exterior. Nas palavras de Fichte: Eu estou completamente convencido de que a vontade

humana é livre, e que o objetivo de nossa existência não é sermos felizes, mas somente

dignos de alegrias (apud. Horkheimer: 1974: 67). A idéia de razão , tal como aparece na

filosofia hegeliana, também participa desta lógica, uma vez que identifica sua plena

realização com a realidade: em Hegel a universalidade já se desenvolveu adequadamente e

é idêntica à realidade

a razão se torna afirmativa : a filosofia escolheu por sua própria

conta fazer a paz com o mundo inumano (Horkheimer: 1974: 35).

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Segundo Horkheimer esta mentalidade idealista reflete uma resignação frente aos

fatos da realidade: na medida em que a metafísica possui uma pretensão de independência

e universalidade, ela despreza os fatos reais, consumando a separação entre fato e teoria.

Esta é apenas uma das críticas dirigidas à metafísica e é a que nos interessa por enquanto.

Tanto o positivismo quanto a metafísica aparecem como teorias especializadas e

isoladas de todo contexto histórico: esta separação representa a própria concepção de teoria

tradicional. Mesmo que estas correntes de pensamento não possuam um fim imediatamente

produtivo (como acontece muitas vezes em certos setores da atividade acadêmica e

universitária, mesmo no que se refere às ciências especializadas), elas acabam por se

integrar à ordem estabelecida, na medida em que não intervêm e não criticam as

contradições reais da sociedade

estas contradições permanecem apenas em sua estrutura

conceitual, sem atingirem a base infraestrutural da sociedade, suas relações econômicas.

Estas teorias permanecem afirmativas : elas mantêm e reproduzem a sociedade

contraditória.

A teoria crítica se opõe a essas duas tendências da teoria tradicional: de um lado, a

separação definitiva entre o indivíduo e a sociedade e, de outro, a harmonização teórica dos

elementos que são contraditórios na realidade.

Para a teoria crítica a realidade só pode ser corretamente apreendida quando

analisadas as mediações que se estabelecem entre as várias esferas que a compõem: ela não

toma a realidade como imutável nem estática, mas como um processo histórico e dinâmico,

no qual os sujeitos determinam a realidade assim como são determinados por ela. A

separação entre o indivíduo e a sociedade reflete uma realidade histórica na qual as forças

cegas da economia capitalista subjugam as necessidades e desejos individuais visando à

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manutenção e perpetuação deste mesmo sistema. Portanto, esta separação entre o indivíduo

e a sociedade é uma resultante histórica e não um destino inevitável.

As contradições reais da sociedade aparecem nos conceitos da teoria crítica, ao

confrontar, de um lado, a plena realização da idéia presente no conceito e, de outro, sua

não realização efetiva. Os conceitos de razão , liberdade e felicidade se encontram em

contradição com a realidade na medida em que esta nega a plena realização deles

são por

isso conceitos críticos, que permitem visualizar a injustiça de sua não realização. O

conceito de razão (tal como definido na filosofia idealista) corresponde à possibilidade de

uma organização social na qual os interesses individuais não estejam em contradição com

os da sociedade, onde a separação entre o indivíduo e a sociedade (a essência e a aparência,

o sujeito e o objeto, a razão e a sensibilidade) fosse eliminada: entretanto, esta idéia

presente no conceito entra em choque com a realidade de uma organização social irracional.

Os conceitos utilizados pela teoria crítica possuem um caráter dinâmico,

representando a recusa em aceitar a realidade tal como se apresenta. A teoria crítica

mantém a exigência em buscar a superação do atual estágio da sociedade rumo a um outro

estágio mais elevado (racional), já que esta possibilidade está dada efetivamente pelo atual

estágio alcançado pelo desenvolvimento técnico: é uma possibilidade real. Seus conceitos

são definidos enquanto conceitos críticos, negativos , quando comparados com sua não

realização frente à real possibilidade. A lógica que caracteriza a teoria crítica é a lógica da

não-identidade, que implica uma inadequação entre realidade e conceito (Maar: 1995:

63).

Apresentamos brevemente algumas das principais concepções que caracterizam a

teoria crítica da sociedade desenvolvida pela Escola de Frankfurt. Dissemos, em um

19

determinado momento, que a teoria freudiana pode ser compreendida na relação que se

estabelece entre a teoria crítica e a teoria tradicional, e foi por isso que fizemos esta

apresentação anterior. Passemos então à exposição dos argumentos que nos farão

compreender alguns dos principais aspectos que fazem da teoria freudiana uma teoria

importante para a teoria crítica.

A teoria crítica estabelece uma dupla relação com a teoria freudiana, que pode ser

apresentada como um momento de aceitação e outro de crítica de suas teses. De um lado

a teoria freudiana possui alguns elementos que fazem dela uma teoria crítica, enquanto, de

outro lado, ela possui elementos de uma teoria tradicional. Esta contradição é expressa pela

coexistência de elementos conservadores e progressistas na teoria freudiana.

O que diferencia a teoria freudiana da teoria tradicional e, portanto, faz dela uma

teoria crítica, é o fato de que ela não procura harmonizar elementos que se apresentam

contraditórios na realidade. Freud mantém o conflito como estrutura básica em suas

formulações conceituais e o próprio indivíduo se forma neste conflito. Mesmo quando

pensa a terapia psicanalítica, Freud não crê que ela possa curar o indivíduo da doença

psíquica e harmonizá-lo com o meio: ele a vê como uma adaptação , uma medida

paliativa , possibilitando ao sujeito viver em sociedade.

O fundamental em Freud é que ele reporta todo sofrimento e conflito à estrutura

mesma da sociedade. A neurose (assim como uma série de doenças psíquicas) surge do fato

de a vida exterior ser fonte de intensos desprazeres, não satisfazendo as necessidades e

desejos individuais. Os conflitos aos quais Freud se refere não surgem somente no

psiquismo do indivíduo; surgem na sua conexão com a civilização da qual ele faz parte e,

portanto, não podem ser eliminados apenas no individualismo do pensamento. A acusação

de que Freud despreza a história e a vida social e que suas formulações são mecanicistas e

20

ancoradas no biologismo do século XIX (acusação feita pelos revisionista neo-freudianos),

não corresponde à profundidade de suas descobertas. Seus conceitos possuem uma

historicidade interna que dispensa a introdução de conteúdos históricos ou a

sociologização de seus conceitos. Ele percebeu a dialética do progresso na qual a

cultura e o desenvolvimento técnico aparecem vinculados a um aumento de infelicidade e

sentimento de culpa (todas estas questões serão tratadas nos próximos capítulos).

Entretanto, Freud permaneceu preso ao pensamento burguês do século XIX: ele

apreendeu a realidade na qual vivia como uma essência imutável e é neste sentido que sua

teoria contém elementos tradicionais. A separação entre o indivíduo e a sociedade é tida

como definitiva - o princípio de realidade é hipostasiado como único modo de ser da

civilização:

Freud aceita a oposição entre o social e o [individual] sem exame, de maneira estática. Não

reconhece nela a obra da sociedade repressiva, assim como os mecanismos nefastos que ele mesmo

indicou (Adorno: 1993: 51).

Sua teoria é permeada pela tensão entre a acusação de uma realidade injusta e a

resignação frente ao destino considerado inevitável. Temos, de um lado, um Freud crítico,

que revoluciona, entre outros, a concepção de sexualidade até então estabelecida e, de outro

lado, um Freud conservador, pregando os valores superiores da cultura e a sublimação da

sexualidade.

[Freud] oscila entre (...) negar a renúncia às pulsões como um recalcamento contrário à

realidade, ou enaltecê-la como sublimação que fomenta a cultura. Nesta contradição existe

objetivamente algo do caráter bifronte da cultura. (...) O esclarecimento não-esclarecido de Freud

fez, sem se dar conta, o jogo da desilusão burguesa. (...) Na obra de Freud reproduz-se

involuntariamente a dupla hostilidade ao espírito e ao prazer. (Adorno: 1993: 51-2).

21

O que torna a psicanálise freudiana uma teoria interessante para a teoria crítica é que

ela possibilita desvendar as conseqüências, no nível individual, da má organização da

sociedade (desvenda o universal presente no particular), assim como permite desvendar a

dialética da dominação que determina o desenvolvimento da civilização, acusando

severamente o progresso técnico e científico que, ao invés de conduzir a humanidade em

direção a uma organização mais feliz para os indivíduos, contribui apenas para aumentar a

infelicidade e o sentimento de culpa4. Ao concluir pela hipostasiação da realidade,

considerando-a imutável, Freud apreendeu o real desenvolvimento da civilização até hoje,

essencialmente oposto aos desejos e necessidades individuais.

A principal diferença entre a teoria freudiana e a psicologia em geral é o fato de ela

inserir o ser humano na história real e contraditória da humanidade, o que dá origem a uma

concepção de indivíduo que corresponde à sua constituição atual, sem idealizações. A

perda de autonomia individual denunciada pela teoria freudiana revela uma dinâmica

social que os indivíduos não controlam: eles são meros apêndices de uma estrutura mais

ampla. Ao apresentar esta realidade contraditória na perspectiva individual a teoria

freudiana contribui para esclarecer o atual contexto histórico (como será possível

demonstrar nos próximos capítulos).

Em Eros e Civilização Marcuse procura levar adiante a crítica da civilização

realizada por Freud, ao mostrar a força negativa que ela contém e que conduz,

dialeticamente, a uma perspectiva de superação da atual organização social. Marcuse

introduz dialética nas formulações estáticas da teoria freudiana: o princípio de realidade

4 A relação entre progresso e sentimento de culpa aparece claramente nesta citação: Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de desgraças que só a morte é por nós concebida como uma libertação. (...) O progresso científico e técnico parece não ter aumentado a quantidade de satisfação prazerosa na vida e não nos tornou mais felizes (Freud: 1978:150).

22

que fora definido por Freud como um princípio necessário de toda organização social,

repressivo, oposto ao princípio de prazer e essencialmente estático, é relativizado por

Marcuse, que o vê como passível de uma outra definição, como dinâmico, uma vez que a

realidade é histórica e os elementos que determinam as normas, os valores e as instituições

de uma sociedade mudam com o desenvolvimento histórico.

Apesar desta apreensão estática da realidade presente na teoria freudiana, seus

conceitos são dinâmicos - eles não são definidos como essências imutáveis, o que permitiu

a Marcuse pensar na superação e na transformação da realidade. Freud advertiu diversas

vezes que suas formulações são passíveis de correções e ele não deixou de fazê-las até seus

últimos trabalhos - ele procurava dar conta dos fatos tais como os observava na clínica.

Não pretendemos antecipar as conclusões aqui neste primeiro capítulo, apenas

apontar em que direção a interpretação da obra de Freud realizada por Marcuse se

conduzirá. Vale lembrar que a teoria crítica não tem a pretensão de ser, nem uma teoria

mais verdadeira , nem a mais perfeita, fechando-se em princípios e dogmatismos . Ela

busca fornecer elementos para pensar e transformar a realidade (Pucci: 1995: 14). A

perspectiva interdisciplinar unida ao esforço teórico fornece os elementos para superar a

contradição entre o individual e o geral buscando a transfiguração desta oposição.

Segundo Horkheimer:

Se não perseguirmos o esforço de pensamento teórico que, no interesse de uma sociedade

futura organizada segundo a razão, se aplica a criticar a sociedade atual, a esclarecer completamente

sua estrutura estabelecendo um modelo com a ajuda das teorias tradicionais desenvolvidas nos

domínios especializados da ciência, a esperança de melhorar radicalmente a existência humana não

repousa mais em nada de sólido. (Horkheimer: 1974: 70)

23

Nos capítulos que se seguem tentaremos apresentar a maneira pela qual Marcuse

utiliza a psicanálise em Eros e Civilização a partir das diversas polêmicas que esta

interpretação das concepções freudianas suscitou entre seus vários críticos.

24

Capítulo II - Marcuse e a Psicanálise

Neste capítulo procuramos apresentar a obra de Marcuse Eros e Civilização de uma

maneira não sistemática: isto é, não fizemos um resumo das suas teses. Optamos por

apresentá-la a partir da polêmica que a interpretação marcuseana da obra de Freud levanta

e, dessa forma, pudemos apresentar suas concepções e idéias gerais.

1 - Marxismo e Psicanálise na obra de Marcuse

No decorrer deste estudo uma questão se mostrou fundamental para a compreensão

da obra de Marcuse: a da relação entre o marxismo e a psicanálise freudiana. A polêmica

que esta questão levanta refere-se ao estatuto da teoria freudiana e do marxismo na obra

Eros e Civilização, uma vez que se encontrou uma variedade de leituras divergentes entre

os autores que trataram da questão. Faremos aqui uma tentativa de esclarecê-la a partir de

uma determinada perspectiva que pareceu ser a mais plausível, mas sem a intenção de

esgotá-la por completo.

Esta problematização a respeito da relação do marxismo e da psicanálise poderia ser

estendida ao conjunto da teoria crítica, uma vez que todos os seus integrantes trataram da

questão em diversos textos; mas isto ultrapassaria os limites deste trabalho. Este

empreendimento foi realizado por Rouanet no seu excelente livro Teoria Crítica e

Psicanálise, que utilizaremos no decorrer da argumentação. Para efeito de nosso estudo,

não há diferenças significativas entre as análises dos integrantes da teoria crítica. A leitura

de alguns textos de Adorno, como A Revisão da Psicanálise por exemplo, ajudou na

compreensão do pensamento de Marcuse em relação à questão. Pode-se dizer que a

principal diferença entre, de um lado, Adorno e Horkheimer e, de outro, Marcuse, refere-se

25

à possibilidade de síntese que, segundo este último, é inerente à teoria freudiana.

Entretanto, não desenvolveremos aqui esta questão: a abordagem realizada terá como

objetivo a especificação da relação entre Marx e Freud e permitirá compreender a

particularidade da interpretação marcuseana da psicanálise.

A tese que se defende é a de que Marcuse não realiza uma síntese ou união de

Marx e de Freud em Eros e Civilização, tal como proposto por P. Robinson em A Esquerda

Freudiana, um livro que, para além de nossas divergências em relação a alguns pontos,

contém uma excelente apresentação do pensamento de Marcuse. Segundo Robinson,

Marcuse tentou sintetizar

as categorias freudianas e marxistas (1971: 161), ou então,

correlacionar

a teoria psicanalítica com os pressupostos do marxismo (1971: 157). Esta

afirmação é enganosa pois elimina toda a mediação e a dialética presentes no pensamento

de Marcuse, que constituem a especificidade de sua leitura. A idéia de síntese simplifica

o que é na verdade uma análise complexa e fundamentada, como será possível demonstrar

no decorrer da argumentação.

A interpretação da obra de Freud realizada por Marcuse deve ser entendida no

contexto da crítica marxista

mas de um marxismo não ortodoxo

ou seja, no contexto da

crítica da sociedade de massas contemporânea (capitalista). Com o desenvolvimento

histórico, Marcuse repensa e questiona os conceitos e concepções do marxismo e, neste

processo, a teoria freudiana adquire um papel importante. A relação entre o marxismo e a

teoria freudiana na obra de Marcuse deve, portanto, ser entendida como sendo dois

momentos que se completam

e se refutam.

Eles se completam na medida em que o

marxismo apresenta o processo objetivo de exploração e subjugação do indivíduo no modo

de produção capitalista, desmistificando esse processo social e econômico através da

crítica da economia política (crítica da razão capitalista): enquanto linguagem do todo ,

26

o marxismo representa o universal. Já a psicanálise representa este processo social na

perspectiva do indivíduo, de seu efeito subjetivo, que surge da interação com outros

indivíduos e com o meio: ela representa o particular, isto é, a dimensão subjetiva do longo

processo de dominação e exploração (dinâmica objetiva) denunciado por Marx .

O marxismo e a psicanálise freudiana expressam os dois lados de um mesmo fato ,

duas perspectivas de uma mesma realidade, a realidade do indivíduo cindido , explorado e

alienado. Neste sentido elas se completam. Enquanto o marxismo apresenta a base social

deste processo (a infraestrutura econômica), a psicanálise apresenta a base psíquica

correspondente a este processo, que é por ele produzida ao mesmo tempo em que o mantém

e o reproduz. Duas citações de Marcuse são interessantes por mostrarem a psicanálise como

uma linguagem do particular na qual o todo é passível de ser reconhecido:

As perturbações privadas refletem mais diretamente do que antes a desordem do todo e a

cura dessas perturbações depende mais diretamente que antes da cura da desordem geral. (Marcuse:

1963: 9)

A psicanálise não pode iluminar os fatos políticos, mas sim o que eles fazem aos que

sofrem esses fatos. (Marcuse: 1998: 105)

O marxismo e a psicanálise se refutam na medida em que não podem ser unidos

numa disciplina totalizante - eles são o limite negativo um do outro (Rouanet: 1989: 76):

são dois modos de explicar a realidade da sociedade alienada, dois instrumentos de análise

cujo uso é determinado pelas exigências do objeto (Rouanet: 1989: 76). A fusão do

marxismo e da psicanálise constituiria uma traição às intenções críticas dos seus

respectivos autores (Rouanet: 1989: 74). A linha que separa a psicanálise do marxismo só

poderia ser abolida através de uma transformação social efetiva, que eliminasse o

antagonismo entre o universal e o particular, entre as exigências da sociedade repressiva (de

27

sua manutenção e perpetuação) e as exigências e necessidades individuais

esta separação

testemunha um fato empírico, o da real separação entre o indivíduo e a sociedade. A

relação do marxismo e da psicanálise na teoria crítica deve ser compreendida na relação

dialética entre o universal (dimensão social) e o particular (dimensão psíquica), entre o

indivíduo e a sociedade.

A relação de Freud e Marx [na teoria crítica] é dialógica e não sistemática. No máximo são

duas falas, que se confirmam, se refutam, se cancelam: dois motivos em contraponto, no interior de

uma sinfonia, mais que duas teorias no interior de um sistema (...) sua essência está, justamente,

nessa relação dialógica entre Marx e Freud, em que as duas doutrinas funcionam como limites

negativos uma da outra, relativizando-se e relativizando qualquer pretensão totalizante (...).

(Rouanet: 1989: 76)

2 - A crítica de Paul Robinson

Passemos agora à análise da crítica de Paul Robinson a Marcuse, através da qual

poderemos especificar alguns pontos importantes no que se refere à apreensão da

psicanálise freudiana realizada por Marcuse. Vejamos a argumentação de Robinson em

relação a uma possível síntese de Marx e Freud presente na obra de Marcuse, através da

seguinte citação:

É minha convicção de que a tática subjacente de Eros e Civilização tinha por finalidade pôr

de acordo a teoria freudiana com as categorias do marxismo. (...) Quando se lê e relê Eros e

Civilização, fica-se inevitavelmente impressionado pelo modo sistemático como Marcuse

transladou as categorias não-históricas e psicológicas do pensamento de Freud para as categorias

eminentemente históricas e políticas do marxismo. É precisamente essa síntese de Freud e Marx que

pretendo realçar nas páginas seguintes. (Robinson: 1971: 157, grifo meu)

28

Esta frase contém os elementos a partir dos quais nossa crítica será dirigida. A

argumentação do autor que a segue mostra que ele de fato não percebeu a relação

dialética presente na mediação entre os conceitos na obra de Marcuse, como será possível

demonstrar no decorrer de nossa argumentação.

É importante destacar que desde o início de seu livro, logo na primeira frase do

prefácio, Marcuse diz que as categorias psicológicas do pensamento de Freud são em si

mesmas categorias políticas e históricas, o que torna a idéia exposta por Robinson do

translado das categorias no mínimo suspeita. Vejamos o que diz Marcuse:

Este ensaio emprega categorias psicológicas

porque elas se converteram em categorias

políticas. A fronteira tradicional entre a psicologia de um lado e a política e filosofia social de outro,

tornou-se obsoleta em virtude da condição do homem na era presente: os processo psíquicos

anteriormente autônomos e identificáveis estão sendo absorvidos pela (...) sua existência pública.

(Marcuse: 1999: 25, grifo meu)

Robinson argumenta ainda que a fim de transformar o que eram categorias

essencialmente não-históricas da teoria freudiana em categorias históricas, Marcuse

introduziu numerosas e importantes distinções históricas e sociológicas , o que o habilitou

a correlacionar a teoria psicanalítica com os pressupostos do marxismo (Robinson: 1971:

157). Ele refere-se aos conceitos de mais-repressão e princípio de rendimento : estes

conceitos estariam correlacionados às noções de mais-valia , alienação e reificação do

marxismo. Estes conceitos referem-se ao destino da repressão e ao conteúdo do

princípio de realidade (nos termos em que foram formulados por Freud) sob a vigência

do capitalismo monopolista. Robinson acusa Marcuse de cometer o mesmo erro que o

revisionismo neo-freudiano , por ele criticado no epílogo de Eros e Civilização,

sobretudo E. Fromm, K. Horney, H. S. Sullivan.

29

A questão que se impõe é: Marcuse introduz na teoria freudiana conteúdos

históricos e sociológicos exteriores a ela? Se este não for o caso, como se explicam os

conceitos de mais-repressão e princípio de desempenho ?

Para tentar esclarecer estas questões retomaremos a crítica de Marcuse ao

revisionismo neo-freudiano, através da qual poderemos comparar sua argumentação crítica

em relação ao revisionismo com o próprio desenvolvimento dos seus conceitos; em seguida

serão especificados os conceitos de mais-repressão e de princípio de rendimento .

2.a.

A crítica ao Revisionismo Neofreudiano

A fim de ilustrar sua crítica ao revisionismo, Marcuse retoma a oposição entre as

concepções de amor expostas por Fromm e por Freud. Dessa forma pretende mostrar que

a análise revisionista introduz de fora da própria psicanálise concepções que lhe são

estranhas, atenuando o conflito do indivíduo com a sociedade. Segundo Fromm:

O verdadeiro amor é enraizado na produtividade

e pode conseqüentemente ser chamado de

amor produtivo . Sua essência é a mesma, quer se trate do amor da mãe pelo filho, de nosso amor

pelos seres humanos ou do amor erótico entre dois indivíduos (...). Pode-se dizer que certos

elementos são característicos de todas as formas de amor produtivo. Estes são a solicitude, a

responsabilidade, o respeito e o conhecimento. (Fromm apud. Marcuse: 1963: 227, grifo meu)

Para Marcuse essa formulação ideológica do revisionismo opõe-se

substancialmente à análise crítica de Freud vejamos o que este diz:

Nós não podemos nos dissimular [do fato de que] o comportamento amoroso dos

homens,

no seio de nosso mundo civilizado atual, é inteiramente impregnado do caráter de

impotência

psíquica. As correntes de ternura e sensualidade se acham raramente confundidos nos seres

humanos cultivados; quase sempre, o homem vê sua atividade sexual atenuada pelo respeito da

30

mulher e só exerce toda sua potência quando ele se encontra frente a um objeto sexual de tipo

inferior. (Freud apud. Marcuse: 1963: 227, grifo meu)

Marcuse procura chamar a atenção para o fato de que o revisionismo aceita as

premissas fundamentais da sociedade alienada. Enquanto na teoria freudiana o amor

aparece como destrutivo, oposto ao trabalho e à produtividade e só sendo possível enquanto

amor inibido quanto ao seu alvo , ou seja, como essencialmente antagônico com a

sociedade (essa sociedade!), no revisionismo o amor não aparece em conflito com esta,

mas ao contrário, o amor se funde numa grande harmonia com a produtividade, a

felicidade, o respeito e a saúde psíquica. Para o revisionismo a felicidade produtiva , a

solicitude , a realização produtiva da personalidade , a criatividade, a

responsabilidade , o amor pelo próximo , a personalidade autônoma , são todas

premissas que podem se realizar no interior mesmo desta sociedade. Esta crítica de

Marcuse se estende também à maneira pela qual os revisionistas tratam da questão da teoria

e da terapia psicanalítica, uma vez que esta reflete uma posição conformista.

A contradição entre a teoria

e a terapia

diz respeito a uma contradição presente na

teoria freudiana no que se refere à finalidade da terapia quanto à possibilidade de cura do

paciente : enquanto a teoria acusa a sociedade de não permitir ao indivíduo nem a

satisfação de suas pulsões, nem a felicidade, a terapia propõe curar o indivíduo, adaptá-

lo, para que ele possa continuar vivendo nesta mesma realidade que o tornou doente.

Evitando os conceitos mais especulativos de Freud, aqueles que não são sujeitos à

verificação clínica (como a pulsão de morte , a hipótese da horda primitiva, o assassinato

do pai) e redefinindo aqueles que, segundo Marcuse, são os mais explosivos (o papel da

teoria da sexualidade, o papel do inconsciente, a importância da infância e do passado

filogenético no desenvolvimento do indivíduo, entre outros), os revisionistas eliminam o

31

conflito irreconciliável entre o indivíduo e a sociedade, o que garante o sucesso da terapia,

isto é, a adaptação bem sucedida e a resignação frente à realidade injusta. Segundo eles, o

objetivo mais elevado da terapia é o ótimo desenvolvimento das potencialidades da

pessoa, o que resulta na plena realização de sua individualidade. A terapia adapta o

indivíduo a uma realidade injusta de modo que ele consiga suportar a sua existência infeliz

e mesmo achar que é feliz sem sê-lo de fato: as escolas revisionistas assimilaram esta

contradição entre a teoria e a terapia (Marcuse: 1963: 214). Estas duas citações

exemplificam a posição de Marcuse:

Com a transformação do objeto da psicanálise [o indivíduo] aprofundou-se o abismo entre a

teoria e a terapia, e a terapia se vê numa situação em que parece ajudar mais a ordem estabelecida

do que o indivíduo. (Marcuse: 1998: 91)

A personalidade autônoma, vista sob o ângulo da originalidade criadora e do caráter

satisfeito de sua existência, sempre foi o privilégio de um número muito pequeno de pessoas.

(Marcuse: 1963: 218)

Os revisionistas definem as possibilidades de satisfação e desenvolvimento

individual a partir de promessas oferecidas no próprio interior da sociedade que as nega,

como se estas pudessem ser realizadas pelo poder do pensamento positivo, frente ao qual a

crítica revisionista sucumbe (Marcuse: 1963: 226). Segundo Marcuse, este é o grande

erro da psicanálise revisionista que motiva a oposição à sua interpretação: esta filosofia

dirige sua crítica aos fenômenos de superfície, enquanto aceita as premissas fundamentais

da sociedade criticada (Marcuse: 1963: 225) - ela elimina da teoria psicanalítica a teoria

das pulsões e, com isso, a oposição entre a necessidade de gratificação pulsional

(promessa de felicidade) e a realidade da repressão (sociedade alienada), entre o indivíduo e

32

a sociedade, assim como elimina do marxismo a luta de classes, privando tanto o

freudismo quanto o marxismo de seu conteúdo (Rouanet: 1989: 50).

A psicanálise elucida a experiência universal que sobrevive na experiência individual. Nesta

medida, e somente nesta medida, a psicanálise pode romper a reificação nas quais as relações

humanas estão petrificadas. (Marcuse: 1963: 220)

A oposição entre o indivíduo e a sociedade na teoria freudiana indica a existência de

uma relação antagônica entre as necessidades individuais e sociais (entre o universal e o

particular) que não pode ser abolida no plano do pensamento, num remanejamento da

própria teoria - tal como realizada pelo revisionismo neofreudiano - mas somente através

de uma transformação efetiva da sociedade: esta oposição é o reflexo de uma realidade

também contraditória (afinal o indivíduo representa o universal). A citação a seguir de

Adorno elucida a maneira como a teoria crítica compreende a singularidade das

contribuições da teoria freudiana:

A grandeza de Freud, como de todos os pensadores burgueses clássicos, consiste em deixar

não resolvidas as contradições e em recusar a harmonia sistemática, ali onde as coisas estão dividas:

ele descobriu o caráter antagônico da realidade social. (Adorno: La Revisión del Psicoanálisis: s/

referência)

No revisionismo a questão política referente à transformação da sociedade se

torna uma questão moral : confrontados com o dilema entre alterar o freudismo ou a

realidade, preferiram alterar o freudismo (Rouanet: 1989: 222). O pessimismo freudiano

implica uma recusa em compartilhar esta realidade opressiva e causadora de doenças

psíquicas (neuroses, perversões, etc.) e sofrimento humano (angústia, melancolia),

elementos tão presentes para Freud na terapia. Neste sentido

33

(...) a questão de Freud : os valores superiores da cultura não terão sido realizados a um

custo excessivo para os indivíduos?, deveria ser considerada mais seriamente para impedir os

filósofos psicanalistas de pregarem estes valores sem revelar seu conteúdo proibido, sem mostrar

que eles foram recusados ao indivíduo. (Marcuse: 1963: 226-7)

Segundo Marcuse, o problema não está nas premissas que o revisionismo

proclama, mas na realidade que é incompatível com a realização destas. Falta-lhes a

crítica dessa realidade, uma crítica que apreenda essa realidade mesma como falsa, como

ideológica. A principal diferença entre, de um lado, o período atual (sociedade de massas

contemporânea) e, de outro, o passado (período liberal) é que neste último a aceitação da

realidade repressiva (tal como se apresenta em Freud) era justificada pelo fato de esta ser

uma realidade de penúria , na qual a repressão das pulsões se fazia necessária para que o

trabalho fosse possível e, com ele, a satisfação das necessidades básicas. Enquanto isso, no

atual contexto histórico, frente à possibilidade real de eliminação de luta pela existência

propiciada pelo desenvolvimento técnico alcançado, existe a aceitação de uma realidade

que se apresenta como não repressiva apesar de constituída pela repressão. Isto é: ocorre a

obliteração do sofrimento, ou nos termos de Marcuse, a dessublimação repressiva dos

conteúdos denunciadores e opositores ( negativos ) da realidade. A seguir faremos uma

breve apresentação deste conceito tão importante no pensamento de Marcuse e, mais à

frente, continuaremos a discussão com Robinson.

2.b. - A Dessublimação Repressiva

O conceito de dessublimação repressiva permite compreender a dinâmica da

sociedade contemporânea que, por um lado, possibilita uma maior liberdade e satisfação

das necessidades, ao mesmo tempo em que, por outro lado, essa liberdade atua como um

34

poderoso instrumento de dominação, sendo absorvida pelo sistema, adquirindo a função de

manipulação e controle dos indivíduos, de suas consciências, de seus desejos e

necessidades.

Ao contrário da dessublimação , a sublimação , tal como Freud definiu,

corresponde ao processo psíquico pelo qual as pulsões sexuais ( parciais ) perdem sua

meta sexual imediata e se satisfazem em objetos não diretamente sexuais: é a capacidade de

trocar uma meta originariamente sexual por uma outra meta, não exatamente sexual mas

aparentada a ela (Laplanche e Pontalis: 2001: 495). Ela conduz a uma dessexualização . A

sublimação é uma das vicissitudes das pulsões e representa a restrição quanto à

possibilidade de satisfação pulsional imposta pelo choque com o mundo exterior. A vida

em sociedade só é possível a partir da sublimação , a partir do adiamento da satisfação

pulsional, sem o que não seriam possíveis as relações entre as pessoas como a família e a

amizade, pois estas dependem de inibição dos fins sexuais imediatos (apesar desta não ser

descrita por Freud como sublimação, mas como muito perto dela), nem haveria o trabalho

social, o progresso, a investigação intelectual e a criação artística.

Segundo Marcuse, essas grandes realizações da humanidade possibilitadas pela

sublimação , como a arte, a literatura, a religião, a ciência, a filosofia e a música,

representam uma recusa em aceitar a realidade injusta, o princípio de realidade que

impõe a modificação repressiva das pulsões. Na arte sobrevive a imagem de um mundo

diferente, sem sofrimento, assim como sua denúncia e a necessidade de libertação

ela

conserva a consciência infeliz

do mundo dividido, as possibilidades derrotadas, as

esperanças não concretizadas e as promessas traídas. (Marcuse: 1969: 73-4, grifo meu). A

sublimação cria imagens irreconciliáveis com o princípio de realidade repressivo, que

35

se expressa na arte enquanto um poder negativo , isto é, uma recusa em aceitar este

princípio de realidade .

O processo de sublimação das pulsões, necessário para que o sujeito se torne apto

a viver em sociedade, se desenvolve com a resolução do complexo de Édipo, através do

qual se impõe a adaptação do sujeito ao princípio de realidade assim como o abandono

do princípio de prazer e das possibilidades de satisfação pulsional. Neste processo há o

abandono da sexualidade polimórfica e o estabelecimento da sexualidade genital através da

sublimação das pulsões sexuais parciais , assim como a formação do superego e do

ideal de ego . Neste sentido o complexo de Édipo desempenha papel fundamental na

estrutura da personalidade e na orientação do desejo humano (Laplanche e Pontalis: 2001:

77). O superego surge com o estabelecimento do processo de sublimação e conduz à

internalização das imposições e restrições sociais e à introjeção das exigências do

princípio de realidade representadas pelos pais. No conflito entre as tendências de amor e

ódio para com o pai, enquanto representante da sociedade, formam-se a consciência, a

autonomia e a compreensão individuais, necessárias para a produção artística. Portanto, o

conflito é o elemento central para a formação da consciência e autonomia individual. Na

medida em que a sublimação se apresenta como uma imposição da sociedade, ela

preserva a consciência da repressão e, portanto, a revolta das pulsões contra o princípio

de realidade repressivo.

A dessublimação elimina toda consciência dos antagonismos e dos conflitos,

enfraquecendo a revolta das pulsões e a rebelião por um novo princípio de realidade :

nesta sociedade os conflitos insolúveis se tornam controláveis

o psiquiatra cuida dos

Dons Juans, Romeus, Hamlets, Faustos da mesma forma como cuida de Édipo

ele os

cura. (Marcuse: 1969: 98). O conflito entre o desejo de satisfação pulsional e a sua

36

realização, entre o indivíduo e a sociedade, é obscurecido a partir de uma dominação mais

intensa e repressiva, uma vez que a própria sociedade controla os desejos (as necessidades)

e o objeto desses desejos (as mercadorias).

No processo de dessublimação a satisfação mediata proporcionada pela

sublimação , a partir da qual se abria a possibilidade da tomada de consciência da

experiência da repressão, é substituída por satisfação imediata, que obscurece essa

consciência: esse imediatismo é incentivado por uma organização social que produz bens de

consumo em larga escala para satisfazer as necessidades desses bens que ela mesma

produziu (tanto as necessidades quanto os bens!). Na sociedade de consumo as

possibilidades de sublimação (adiamento da satisfação) são limitadas: há uma [redução]

da necessidade de sublimação (Marcuse: 1963: 87).

No mecanismo mental, a tensão entre o que é desejado e o que é permitido parece

consideravelmente reduzida; o princípio de realidade não parece mais exigir a transformação

[repressiva] e dolorosa das pulsões. O indivíduo deve adaptar-se a um mundo que parece não exigir

a negação de suas necessidades mais íntimas

um mundo que não é essencialmente hostil.

(Marcuse: 1963: 84)

Na sociedade industrial avançada é justamente a força subversiva presente na

sublimação que é eliminada pelo processo da racionalidade tecnológica : a

racionalidade do sistema - sua máxima eficiência, produtividade e eficácia - tornam todo

protesto insensato e irracional, uma vez que satisfaz efetivamente as necessidades materiais

dos indivíduos - esta é a base material da dominação ideológica . A dominação é

justificada por uma sociedade que satisfaz - assim seu desenvolvimento aparece como

racional . Há uma absorção da ideologia pela realidade, na qual os conteúdos ideais de

conceitos como felicidade e liberdade parecem poder se realizar efetivamente. Mais do

37

que isso, essa sociedade produz as próprias necessidades desses indivíduos, produzindo

satisfação real, embora no plano da fruição manipulada :

A criação de necessidades repressivas

tornou-se há muito parte do trabalho socialmente

necessário; necessário no sentido de que sem ele o modo de produção estabelecido não poderia ser

mantido. Não estão em jogo problemas de psicologia nem de estética, mas a base material da

dominação ideológica. (Marcuse apud. Maar: 1998: 69)

O processo de unificação dos conteúdos antagônicos atinge todas as esferas da

sociedade, que são transformadas em elementos de manutenção do sistema de dominação:

elas se tornam momentos do processo de produção na reprodução do sistema. A ética, o

trabalho, a sexualidade, a cultura e mesmo a esfera pulsional tornam-se elementos de

afirmação , elas perdem o conteúdo de oposição que caracterizou as fases anteriores do

desenvolvimento da sociedade, aquele conteúdo transcendente a partir do qual a sociedade

era negada, questionada e denunciada. Este sistema produz as [próprias] condições sociais

culturais-materiais

de reprodução do capital (Maar: 2000: 92). Nesta sociedade

(...) o controle se exerce além da dimensão estritamente econômica: agora o capital exerce

seu jugo no conjunto da sociedade capitalista. A obstrução da manifestação das contradições do

capitalismo se estabelece mediante uma política de controle estatal da economia e uma cultura de

massas nos termos das sociedades consumistas modernas. (Maar: 1998: 64)

A análise da transformação da cultura na sociedade capitalista totalitária realizada

pela teoria crítica resultou no conceito de indústria cultural em Adorno e Horkheimer e

no conceito de cultura afirmativa em Marcuse: este processo representa, entre outros, a

transformação dos objetos culturais em bens culturais (no sentido de bens de consumo).

Neste processo a cultura perde o conteúdo negativo que representava sua denúncia contra a

sociedade. A cultura (assim como todas as outras esferas que compõem a vida social)

38

passou por esse processo de aplanamento (unidimensionalização) dos seus conteúdos

antagônicos: ela adquiriu um caráter afirmativo , uma função social na reprodução do

modo de produção vigente.

O poder absorvente da sociedade esgota a dimensão [transcendente] pela assimilação de seu

conteúdo antagônico. No domínio da cultura, o novo totalitarismo se manifesta precisamente num

pluralismo harmonizador, no qual as obras e as verdades mais contraditórias coexistem

pacificamente sem indiferença. (Marcuse: 1969: 73, grifo meu)

A indústria cultural cumpre seu papel na socialização a-crítica dos indivíduos e na

manipulação de suas consciências; e uma vez que nesta sociedade a mecanização da

produção diminui relativamente o tempo necessário para o trabalho, a formação social se

dá (para além do próprio processo de trabalho) também nos momentos de lazer dos

indivíduos, controlando suas consciências até mesmo quando estes se encontram fora do

trabalho. A indústria cultural possui a função de formar indivíduos, mas conforme uma

formação defeituosa ( semiformação ), que mantêm a continuidade da sociedade

repressiva.

A dinâmica fundamental para a compreensão do atual contexto da dominação na

sociedade de massas contemporânea (que se apresenta obscurecida pela racionalidade do

sistema) refere-se à inversão entre valores de uso e valores de troca . O círculo de

coesão progressiva (Maar: 2000: 88) que prende os sujeitos na sociedade de consumo de

massas é determinado a partir de uma intervenção no plano das necessidades : nesta

sociedade há produção de necessidades assim como dos bens para satisfação destas

necessidades produzidas. A manipulação se dá através da produção incessante de

mercadorias que não possuem em si mesmas valor de uso efetivo, mas apenas um valor

de uso aparente, isto é, um valor de troca - ocorre a produção de valores de troca

39

como se fossem valores de uso : seu valor é um valor que se apresenta como de uso sem

sê-lo

e assim jamais é satisfeito. (Maar: 2000: 93, grifo meu). Esse valor de troca

tornado necessidade é o fetiche, em torno do qual a sociedade se constrói e se reproduz.

O elevado nível de vida no domínio do grande capital é restritivo no sentido sociológico do

termo: as mercadorias e os serviços que os indivíduos compram manipulam suas necessidades e

petrificam suas faculdades. Em troca dos bens de consumo que enriquecem suas vidas, os

indivíduos não vendem apenas seu trabalho mas também seu tempo livre. (Marcuse: 1963: 94)

A produção de necessidades e a manipulação da consciência, que lhe é

concomitante, ocorrem (como já dito) no próprio processo de trabalho, tal como ele se

encontra constituído

enquanto trabalho alienado, reprodutor do próprio processo de

trabalho e do modo de produzir. O processo de trabalho possui um papel formador e

reprodutor do sistema de dominação, sendo ele destinado à realização de valor de troca e

à produção de necessidade de valor de troca - fins exteriores à satisfação das verdadeiras

necessidades e à felicidade dos indivíduos. Há uma estreita ligação entre trabalho e

produção de necessidades (tal como nas formulações de Marx), na medida em que as

necessidades humanas são históricas e, por isso, determinadas de acordo com a forma que o

trabalho assume historicamente. Neste sentido abre-se a perspectiva para uma distinção

entre as verdadeiras e falsas necessidades, que revela a intervenção e manipulação da

sociedade nos próprios sujeitos.

A distinção entre verdadeiras e falsas necessidades (que se encontra tanto em

Marcuse quanto em Adorno) torna possível a crítica ao atual modo de produção, que

produz necessidades com o objetivo de manutenção do sistema de controle e dominação.

As falsas

necessidades referem-se àquelas que são geradas no curso do processo de

40

trabalho a fim de manter este mesmo processo. Duas citações são interessantes para

esclarecer esta questão das falsas necessidades:

Falsas são aquelas [necessidades] superimpostas ao indivíduo por interesses sociais

particulares (...) : as necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça.

(...) A maioria das necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-se e consumir de

acordo com os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de

falsas necessidades. (Marcuse: 1969: 26)

É preciso advertir que necessidades falsas não são falsas necessidades, mas verdadeiras

necessidades, embora falsas no sentido de serem imposições de um certo modo de produzir aos

homens que, eles próprios, produzem conforme este modo de produzir e produziram o próprio

modo de produzir o qual impõe suas necessidades a eles como se fossem deles. As necessidades são

produzidas no processo de reprodução social do modo de produção. (Maar: 1999: 66-7)

As verdadeiras necessidades são aquelas que, tendo sido saciadas as necessidades

básicas à sobrevivência do indivíduo (necessidade de comer, beber, vestir-se e abrigar-se),

desenvolvem-se livremente e têm como propósito a própria vida, ou seja, um fim não

exterior ao indivíduo. Na medida em que essas necessidades básicas não são satisfeitas

universalmente para todos os indivíduos, o atendimento às necessidades secundárias

( falsas ) apresenta-se como uma injustiça, uma denúncia à irracionalidade deste modo de

produção. A distinção entre verdadeiras e falsas necessidades só pode ser feita

historicamente, de acordo com as possibilidades objetivas, na medida em que a satisfação

universal das necessidades vitais e suavização progressiva da labuta e pobreza sejam

padrões universalmente válidos em um determinado momento histórico: a própria

sociedade deve oferecer os critérios para esta distinção (Marcuse: 1969: 26). A citação a

seguir de Adorno é significativa no que se refere a esta questão:

41

Não seria possível, por exemplo, decretar abstratamente que todos os homens precisam ter o

que comer enquanto as forças produtivas não fossem suficientes para a satisfação das necessidades

primitivas de todos. Contudo, quando numa sociedade (...) aqui e agora, em face da abundância de

bens existentes (...) da mesma maneira existe a fome, então isto exige a intervenção nas relações de

produção. Esta exigência brota da situação, de sua análise em todas as dimensões, sem que para isto

se precisasse da universalidade e da necessidade de uma representação de valor. (Adorno apud.

Maar: 2000: 104, grifo meu)

Nesta sociedade o reforço do controle sobre as consciências permite o relaxamento

nos tabus sexuais. A libertação da sexualidade permitida e incentivada atualmente não se

opõe à sociedade que estendeu seu controle sobre o indivíduo: ocorre a dessublimação da

sexualidade . A sexualidade, que até então ainda era mantida sob tabu, foi integrada ao

sistema de dominação e agora a sua libertação se tornou elemento de coesão social.

Entretanto há uma aparente libertação pois ela continua presa aos moldes da sociedade

repressiva - neste sentido ela sofre um processo de dessublimação repressiva. Apesar da

dessublimação corresponder a um processo de ressexualização , ela não produz um

aumento de satisfação e prazer pois não houve uma transformação nas relações de trabalho

e nem na estrutura de dominação e controle que mantém esta sociedade. Neste sentido, esta

libertação atua como uma força a mais na manutenção do sistema.

A liberação repressiva da sexualidade se dá numa forma que não se opõe ao

princípio de realidade vigente, mas o mantém: ao invés de haver um restabelecimento na

libido polimórfica e da energia erótica de Eros (características da sexualidade não

sublimada ) há uma intensificação da sexualidade genital repressiva. A sexualidade, tal

como se encontra determinada atualmente, difere essencialmente da força explosiva

característica da sexualidade descrita por Freud. Nesse processo de liberação ela foi

42

integrada ao processo de trabalho, à propaganda e aos meios de comunicação de massas,

apresentando-se como mais uma mercadoria

com valor de troca e não de uso:

Sem deixar de ser um instrumento de trabalho o corpo tem permissão para exibir suas

características sexuais no mundo do trabalho (...). Esta é uma das realizações originais da sociedade

industrial

tornada possível com a redução da sujeira e do trabalho pesado; pela disponibilidade de

roupas baratas e atraentes, cultivo da beleza e higiene física, (...) etc. As escriturárias e balconistas

sensuais, o chefe de seção e as superintendentes atraentes e viris são mercadorias altamente

comercializáveis (...). (Marcuse: 1969: 84)

Numa realidade como esta o trabalho da teoria crítica é desfazer a falsa

consciência (a consciência feliz ), desmistificando essa realidade que oblitera a

repressão. Os conceitos que a teoria freudiana utiliza refletem as contradições da realidade

e são uma violenta acusação contra esta. A sexualidade, tal como definida por Freud,

exige uma satisfação que vai muito além da que é permitida efetivamente e neste sentido

ela implica a negação do atual princípio de realidade . As reivindicações de gratificação

da sexualidade (que segundo Marcuse é um conceito central para a crítica da sociedade

atual) estão em clara oposição com sua realização efetiva (as tendências sado-

masoquistas , a neurose e a perversão entre outras, são definidas por Freud como uma

recusa da sexualidade em aceitar as imposições do princípio de realidade repressivo).

A oposição entre sexualidade

e trabalho

revela o papel crítico da teoria freudiana

assim como o abismo entre a realidade da repressão e a possibilidade de satisfação na

sociedade repressiva atual. Enquanto isso, a possibilidade de um amor produtivo proposta

pelo revisionismo elimina esta oposição estabelecida por Freud, como se no atual

princípio de realidade a realização individual e a felicidade fossem possíveis sem uma

alteração em sua estrutura, nas relações de produção. Segundo Marcuse, quando definidas

43

no interior de um todo repressivo, a satisfação e a felicidade só são possíveis se

interiorizadas e espiritualizadas, ao contrário da definição de Freud, que une a felicidade

com a real satisfação pulsional (conduzindo à idéia de uma felicidade material). A

redução do papel da sexualidade pelo revisionismo5 elimina a função social da

sexualidade , o conflito entre o indivíduo e a sociedade, assim como a própria crítica desta

sociedade.

Em uma sociedade repressiva, a felicidade individual e o autodesenvolvimento produtivo

estão em contradição com a sociedade: se eles são definidos como valores a se realizar no interior

desta sociedade, tornam-se eles mesmos repressivos. (Marcuse: 1963: 212)

De maneira oposta aos revisionistas, que propõem a cura individual sem uma

intervenção mais profunda no âmbito do modo de produção, na teoria crítica o trabalho

aparece como uma categoria central: toda mudança no sentido da emancipação, para se

realizar efetivamente, deve resultar na transformação das relações de trabalho. A

possibilidade da transformação social deve conduzir à transformação das condições de

trabalho, das relações de produção, enquanto uma condição necessária: somente assim esta

transformação terá como fim a emancipação humana, possibilitando aos indivíduos se

libertarem das condições opressivas de dominação e do círculo de coesão progressiva que

opera através da manipulação das necessidades.

As necessidades humanas, enquanto necessidades históricas, seriam transformadas

em conseqüência de uma transformação no processo de trabalho e assim se tornariam

necessidades verdadeiramente humanas , cujo fim não seria exterior aos indivíduos (a

5 Podemos ver a redução do papel da sexualidade pelos revisionistas nessa citação de K. Horney: Os problemas sexuais, ainda que eles possam prevalecer às vezes no quadro dos sintomas, não são mais considerados como o centro dinâmico das neuroses. As perturbações sexuais são antes o efeito do que a causa da estrutura de caráter neurótica. De outro lado, os problemas morais ganham em importância. (Horney

44

manutenção de um modo de produzir) mas seriam eles próprios. O livro Eros e Civilização

só pode ser compreendido a partir deste contexto: a idéia de uma sublimação não-

repressiva (que será apresentada no próximo capítulo) parece ingênua quando

desvinculada do surgimento de uma sociedade em que as relações de trabalho tenham sido

transformadas. Segundo Maar, para Marcuse

(...) é inútil intervir somente no plano cultural dos alvos, das idéias, da educação, sem fazer

simultaneamente a sua crítica, apresentando os mesmos como sendo resultantes do processo de

consagração do domínio de um modo de produção. O projeto emancipatório de Marcuse é um

exemplo acabado de visão materialista e histórica. É preciso ir mais a fundo por intermédio da

mudança das relações de trabalho, da alteração do modo de produção que instituiu a ditadura do

valor, de uma formação historicamente condicionada à valorização capitalista. (Maar: 1998: 70,

grifo meu)

Esta perspectiva está ausente da crítica revisionista, uma vez que ela deixa

intactas as bases em que o sistema se funda, limitando-se à crítica dos fenômenos de

superfície. A particularidade da apreensão da teoria freudiana pela teoria crítica deve ser

vista a partir do contexto da análise e crítica da sociedade industrial avançada. É neste

contexto que a teoria freudiana revela a sua força . Na medida em que ela apresenta o

conteúdo da satisfação negada aos indivíduos e a impossibilidade de sua realização na

sociedade (esta sociedade, tal como se apresenta organizada) ela conduz à imagem de um

outro princípio de realidade , assim como à denúncia da aparente satisfação e conciliação

permitidas nesta sociedade repressiva. Portanto, ela é de grande interesse para a teoria

crítica.

apud. Marcuse, 1963, p. 231)

45

2.c. - A Crítica Imanente

Voltemos agora à questão que suscitou este debate: saber se Marcuse introduz

concepções exteriores à psicanálise a fim de historicisá-la, tal como afirma P. Robinson.

Nós nos propusemos a explicar esta questão a partir da crítica de Marcuse à escola

revisionista, segundo a qual estes psicanalistas revisionistas teriam introduzido concepções

sociológicas e históricas exteriores à psicanálise. Retomemos uma citação de Marcuse a

respeito do assunto:

As conseqüências [da interpretação revisionista] da teoria freudiana são muito graves. O

aperfeiçoamento revisionista da teoria freudiana, e sobretudo a adição de fatores culturais e sociais,

consagra uma pintura falsa da civilização, e particularmente da sociedade atual. Ao reduzirem a

extensão e a profundidade do conflito, os revisionistas proclamam uma solução falsa, mas fácil.

(Marcuse: 1963: 217)

Diferentemente da leitura revisionista da teoria freudiana, a interpretação de

Marcuse não pretende introduzir fatores exteriores à psicanálise: ele analisa como as

transformações históricas afetam a psicanálise imanentemente , sem recorrer a

pressupostos exteriores. A partir desta análise imanente ele faz a crítica da realidade através

da psicanálise, assim como a crítica da própria psicanálise ao apresentar seu limite

histórico , tal como demonstraremos no tópico a seguir.

O tipo de interpretação que recorre a pressupostos exteriores ao objeto

(interpretação revisionista6) implica a crença em um curso emancipatório para a

civilização a ser apreendido por trás da sociedade em sua forma vigente (Maar: 2002: 4),

como se houvesse uma essência própria à sociedade que a conduz rumo a um futuro

6 A leitura habermasiana também poderia ser incluída nesta categoria (ver Maar, 1998 e 2002).

46

promissor e da qual ela teria apenas se desviado, sendo que a correção desta realidade se

daria a partir de uma ação exterior ao modo de produção, uma ação com implicação moral

e intenção libertária

trata-se de um esquema idealista de interpretação. A citação que

segue mostra que no revisionismo o desenvolvimento das potencialidades humanas poderia

ser atingido através de uma ação exterior aos próprios fatos que bloqueiam o

desenvolvimento destas (com a ajuda da terapia psicanalítica revisionista), como se essas

potencialidades pudessem ser desenvolvidas apenas por um esforço individual.

A finalidade da escola cultural excede a mera habilidade do homem a submeter-se às

restrições da sua sociedade; na medida em que é possível, procura libertá-lo de suas exigências

irracionais e torná-lo mais capacitado para desenvolver suas potencialidades

(...). (Thompson apud.

Marcuse: 1963: 225, grifo meu)

Entretanto, o esquema revisionista é ao mesmo tempo positivista , na medida em

que toma a realidade dada como ponto de partida, sem questioná-la em seus fundamentos.

Ele aceita as premissas desta sociedade sem mostrar que esta impede, pela sua estrutura em

termos de modo de produção, a realização de suas premissas. Vejamos esta citação de

Fromm:

[A pessoa que atingiu uma] robustez e integridade interiores (...) terá segurança,

discernimento e objetividade que a tornarão menos vulnerável às variações de fortuna e opiniões de

outros e, em muitas áreas, fomentará sua capacidade para o trabalho construtivo. (Fromm apud.

Marcuse: 1963: 226, grifo meu)

Nesta citação aparece claramente esta aceitação da realidade como ponto de

partida da análise: a idéia de um trabalho construtivo denuncia o conformismo

revisionista e uma cegueira frente a uma realidade em que o trabalho é trabalho

determinado , alienado : ele é ao mesmo tempo produtor de riqueza e reprodutor de

47

miséria

esta relação é obliterada e só prevalece a primeira. A interpretação revisionista

sugere a possibilidade de uma nova sociedade sem a necessidade de uma alteração no modo

de produção e, portanto, na própria configuração do trabalho. Eles continuam pregando as

premissas em que esta sociedade alienada se sustenta: trabalho e produtividade. A direção

destrutiva da nossa sociedade é definida em termos de produtividade destrutiva , que se

desviou da produtividade construtiva para a qual a sociedade deve se dirigir (Thompson

apud. Marcuse: 1963: 216). A noção de produtividade e suas implicações no interior da

sociedade alienada não são questionadas. O revisionismo subestima a influência do meio

sobre a formação do indivíduo e sua consciência. Pode-se dizer que pertence a um modo de

interpretação idealista-positivo (Maar: 2002: 8).

[Fromm] fala da realização produtiva da personalidade, da solicitude, da responsabilidade e

do respeito ao próximo

como se o homem pudesse realmente praticar tudo isso e ficar são e cheio

de bem-estar em uma sociedade que o próprio Fromm descreveu como de uma total alienação.

(Marcuse: 1963: 223)

Já a interpretação de Marcuse é crítica imanente : o ponto de partida para se

apreender as contradições é o efetivo processo de reprodução da realidade material vigente

(Maar: 2002: 4). Os referenciais normativos referentes ao objeto analisado emergem da

própria realidade, a partir de suas mediações, tendo em vista a produção social em sua

forma alienada: eles se referem à contradição entre, de um lado, a produtividade

anunciada

(possibilidade) e, de outro, a efetivamente realizada (realidade socialmente

imposta) (Maar: 2002: 7). Isto implica a negação daqueles elementos que sustentam o

sistema alienante e suas premissas:

Ou se define a personalidade e a individualidade em termos de suas possibilidades no

interior da civilização existente, e neste caso sua realização equivale para a grande maioria a uma

48

adaptação bem sucedida [tal como faz o revisionismo], ou então se define nos termos de um

conteúdo que exceda os limites [estabelecidos] e que compreenda as potencialidades socialmente

negadas à personalidade, e neste caso sua realização implicaria a transgressão da civilização

estabelecida e modos radicalmente novos de personalidade incompatíveis com os modos

existentes. (Marcuse: 1963: 223, grifo meu)

Marcuse propõe um total rompimento com a forma alienada de sociedade e suas

premissas: nestes termos a teoria freudiana fornece elementos para a crítica desta

sociedade, uma vez que seus conceitos revelam as contradições reais da sociedade alienada.

O estabelecimento da oposição entre o indivíduo e a sociedade, entre a necessidade de

gratificação pulsional e as necessidades da sociedade repressiva, desmistifica uma realidade

que se mantém pela aparência de uma harmonia. Enquanto o revisionismo introduz

conceitos exteriores à psicanálise, conceitos representativos da ideologia da sociedade

alienada, a fim de buscar uma saída para o impasse da infelicidade na civilização, Marcuse

reafirma a importância desta relação estabelecida por Freud (infelicidade e civilização),

uma vez que ela ainda se mantém, apesar de obscurecida pela realidade ideológica: ele

desenvolve os conceitos críticos da própria teoria freudiana para além do limite histórico do

período em que foram formulados.

A diferença entre as posições freudianas e revisionistas aparece bem marcada nesta

citação de Marcuse (os termos em aspas correspondem a frases de K. Horney):

Os conceitos biológicos de Freud vão muito além da ideologia e seus reflexos: sua recusa

de tratar uma sociedade reificada como uma rede crescente de experiências inter-pessoais e um

indivíduo alienado como uma personalidade total corresponde à realidade e contém o verdadeiro

conceito desta realidade. Se [Freud] se impede de considerar esta existência inumana como um

aspecto negativo passageiro de uma humanidade que caminha para a frente, ele é mais humano que

os críticos tolerantes que estigmatizam sua inumana frieza. Freud não crê facilmente que a direção

básica do organismo seja para a frente . (Marcuse: 1963: 220)

49

Em Freud o destino trágico da civilização, seu pessimismo , reflete a sociedade tal

como ele a vê, em sua negatividade, e não uma realidade idealizada. Seu realismo

representa um modo de crítica imanente ao apresentar esta sociedade como realidade

danificada (alienada), contraditória aos interesses do indivíduo: essas contradições reais

da sociedade aparecem em sua análise do indivíduo. Freud não parte de uma realidade

pressuposta idealmente; ele parte da realidade tal como ela se apresenta. A análise do

indivíduo em Freud não pressupõe referenciais normativos, mas surge da própria mediação

social.

2.d. - Mais-Repressão e Princípio de Rendimento (ou A Crítica a Freud)

Para P. Robinson os conceitos mais-repressão e princípio de rendimento

representariam a tentativa de Marcuse de identificar e correlacionar a psicanálise freudiana

com o marxismo. Estes dois conceitos teriam sido desenvolvidos com o objetivo de

introduzir concepções históricas e sociológicas nas concepções a-históricas da psicanálise

freudiana e assim adequá-las ao historicismo marxista (Robinson: 1971: 157).

De fato, esses conceitos formulados por Marcuse pretendem dar conta das

transformações históricas ocorridas no princípio de realidade , mas isto não implica que

ele esteja introduzindo de fora da teoria freudiana as concepções históricas e sociológicas.

Marcuse atualiza as concepções freudianas de repressão e princípio de realidade

tendo em vista as transformações que estas sofreram neste novo contexto que é o

capitalismo organizado (monopolista). Sua análise parte do indivíduo em condições

historicamente diferentes daquelas analisadas por Freud: a interpretação da teoria freudiana

realizada por Marcuse não pretende corrigi-la (pois isto só seria possível em uma

50

realidade corrigida , transformada) e sim mostrar a atualidade da crítica freudiana. Como

será possível demonstrar no decorrer da argumentação, apesar das transformações

históricas que afetaram o objeto da psicanálise

o indivíduo

os conceitos freudianos

ainda se mantêm relevantes na compreensão da realidade, uma vez que sua acusação à

civilização não foi ultrapassada por um novo estágio de organização social: os processos e

conflitos psíquicos que a teoria freudiana descreve não desapareceram

eles continuam

existindo, mas agora eles se dão de forma diferente e devem ser analisados tendo em vista

esse fato.

(...) segundo Freud, os processos e conflitos psíquicos fundamentais não são históricos ,

limitados a um período ou a uma estrutura social precisos

eles são universais, eternos , fatais.

Portanto, esses processos não podem desaparecer e esses conflitos não podem ser resolvidos

eles

devem continuar dominando sob outras formas, que correspondem a outros conteúdos e os

exprimem. (Marcuse: 1998 (a): 95)

A análise da sociedade contemporânea através do instrumento da teoria freudiana

implica a crítica deste instrumento (Rouanet: 1989: 76-7). Não somente a teoria freudiana,

mas também o marxismo, participa desta lógica, como mostraremos mais adiante (dois

textos são exemplares deste processo de crítica imanente 7 ao marxismo: Sobre o Conceito

de Negação da Dialética - que será retomado no decorrer do estudo - assim como o livro

Marxismo Soviético). A teoria freudiana possui um limite histórico enquanto instrumento

de análise e crítica da sociedade, de que os conceitos formulados por Marcuse pretendem

dar conta a fim de melhor compreender e criticar o novo contexto histórico e as

transformações da sociedade.

Este limite refere-se à ambigüidade presente na psicanálise freudiana entre, de um

7 Estamos nos referindo aqui à crítica imanente no próprio conceito, e não no processo histórico.

51

lado, a crítica avassaladora da civilização (cujas imposições são fonte de sofrimento

humano) e, de outro lado, a conclusão de que este sofrimento é inevitável: a psicanálise

dobra-se diante do princípio de realidade , sendo ao mesmo tempo crítica da ilusão e

perpetuadora da falsa consciência : Ao mesmo tempo em que mostra que a infelicidade

é produto da cultura, Freud postula a infelicidade como condição inerente à vida social

(Rouanet: 1989: 94). Esta ambigüidade está expressa claramente na contradição entre a

teoria e a terapia psicanalítica, como já foi demonstrado anteriormente. Neste sentido, a

crítica da psicanálise freudiana realizada por Marcuse dirige-se àqueles elementos presentes

nela que refletem a aceitação da realidade como única possível

este é o elemento estático

desta teoria. Esta extrapolação da teoria freudiana realizada por Marcuse não contradiz

os pressupostos desta, uma vez que seus conceitos permitem uma abordagem histórica.

Marcuse realiza uma crítica imanente aos próprios conceitos freudianos, como aparece

claramente nesta citação a seguir:

O caráter não-histórico dos conceitos freudianos contém assim os elementos de seu

contrário: devemos encontrar sua substância histórica, não juntando alguns fatores sociológicos

(como o fazem as escolas neo-freudianas culturalistas ) mas explicitando seu próprio conteúdo.

Neste sentido, a discussão que segue é uma extrapolação que deriva das noções teóricas

freudianas e de proposições que estão contidas numa forma reificada, na qual os processos

históricos aparecem como naturais (biológicos). (Marcuse: 1963: 42, grifo meu)

Para compreendermos a crítica de Marcuse à teoria freudiana devemos retomar a

polêmica referente ao estatuto do conceito de princípio de realidade nos dois autores: este

conceito se apresenta de modo diferente em Freud e em Marcuse. Segundo Marcuse, o

mundo exterior é, em todas suas etapas, uma organização socio-histórica da realidade que

52

influi sobre as estruturas mentais por intermédio de agentes e agências sociais ,

modificando-as (1963: 41). O princípio de realidade em Marcuse é histórico e dialético.

Cada forma do princípio de realidade se concretiza num sistema de instituições e de

relações sociais, de leis e de valores que transmitem e impõem as modificações necessárias [às

pulsões]. Este aparelho do princípio de realidade é diferente nas diversas etapas da civilização.

(Marcuse: 1963: 44)

Esta perspectiva está ausente da teoria freudiana, pois ela toma a realidade como

estática. Freud hipostasiou a realidade histórica, o que o levou a concluir por uma

imutabilidade da organização social e pelo conflito eterno entre o indivíduo e a sociedade: a

infelicidade torna-se um mal necessário, uma vez que não haveria possibilidade de uma

transformação da sociedade - falta-lhe a perspectiva que apreenda a própria sociedade

também como mediação (Maar: 2002: 11). O princípio de realidade é apreendido por

Freud como imutável, como único modo de ser da civilização. Como já foi dito no capítulo

I deste trabalho, este é o elemento de teoria tradicional presente na psicanálise freudiana.

Para Marcuse esse elemento estático da teoria freudiana representa a realidade

reificada, a realidade da opressão e da dominação. E uma vez que o mundo sempre esteve

organizado como dominação, este fato histórico toma a especificidade de um fato

biológico universal .

O conceito freudiano de princípio de realidade suprime o fato [de que o mundo exterior é

um mundo histórico] transformando contingências históricas em necessidades biológicas: sua

análise da transformação repressiva das [pulsões] sob a influência do princípio de realidade

generalizado partiria de uma forma histórica da realidade, para chegar à realidade pura e simples.

(Marcuse: 1963: 41)

53

Marcuse afirma que a diferenciação entre vicissitudes biológicas e vicissitudes

sócio-históricas está ausente em Freud e podemos dizer que os conceitos de mais

repressão e princípio de rendimento pretendem dar conta desta última. Mas isto não

significa que a história esteja ausente das formulações de Freud: o fato de ele hipostasiar

as vicissitudes históricas em fatos biológicos, em tomar por único o princípio de

realidade , significa que ele apreendeu o real desenvolvimento da civilização até hoje,

essencialmente oposto ao princípio de prazer e às demandas de gratificação pulsional

nesse sentido sua teoria diz muito mais a respeito da realidade do que o historicismo

presente no revisionismo neo-freudiano.

O conflito irreconciliável estabelecido por Freud entre a sexualidade e a

civilização revela a profundidade da incompatibilidade entre os desejos de satisfação

pulsional e a realidade repressiva; mais do que isso: neste conflito reside a feroz acusação

de Freud contra a civilização, uma vez que revela a dominação subjacente ao

desenvolvimento da civilização.

O conflito entre sexualidade e civilização se desenvolve ao mesmo tempo em que a

dominação. Sob o reino do princípio de rendimento, o corpo e o espírito são transformados em

instrumento de trabalho alienado. (Marcuse: 1963: 51)

De acordo com a teoria freudiana este conflito entre a necessidade de satisfação

pulsional e a realidade se deve ao fato de a luta pela existência se situar num mundo muito

pobre para que estas necessidades pulsionais sejam satisfeitas: elas são abandonadas em

troca de segurança e garantia de sobrevivência. A organização repressiva das pulsões se

impõe como fundamental para a sobrevivência do indivíduo, uma vez que a energia

necessária para o trabalho socialmente útil (trabalho penoso e doloroso) provém das pulsões

54

mais especificamente das pulsões de vida , pois o corpo polimórficamente sexual se

nega à sua utilização como instrumento de trabalho árduo, na sua busca pelo prazer. As

vicissitudes das pulsões (descritas por Freud em Pulsões e Destino das Pulsões) revelam

a organização repressiva das pulsões de vida na civilização: a sexualidade deixa de ser

polimórfica e passa a se centralizar em um único órgão (sexualidade genital); o objeto

sexual limita-se a um único parceiro do sexo oposto; o prazer sexual restringe-se à

procriação. As pulsões de morte também fornecem energia para o trabalho, mas estas são

menos sublimadas e, portanto, mais satisfeitas na sociedade do que Eros. A destruição

tecnológica construtiva e a violação construtiva da natureza são meios de satisfação

destas pulsões, que buscam a aniquilação da vida e o repouso integral, a ausência de tensão.

Neste processo o indivíduo está pronto para atuar como um instrumento de trabalho

(alienado) a partir da dessexualização quase total do corpo: a organização repressiva das

pulsões aparece como uma imposição da sociedade e uma necessidade para o progresso na

civilização. Freud argumentou que o indivíduo não teria por si só abandonado as

possibilidades de satisfação e optado pelo trabalho penoso. O estabelecimento da oposição

entre sexualidade e civilização (trabalho) revela que o progresso foi repressão , pois ele

impõe cada vez mais a restrição do prazer tendo em vista a manutenção do trabalho social.

A hipótese freudiana do desenvolvimento da civilização a partir da horda

primitiva , apesar de não ser demonstrável antropologicamente, vale pelo valor simbólico

que representa, uma vez que ela desvenda a dominação do homem pelo homem e o

sofrimento que esse desenvolvimento implicou até hoje - a civilização se desenvolveu

enquanto dominação organizada . O pai primitivo (símbolo maior de todos os pais

menores que se encontram hoje na civilização) é o representante paradigmático da

imposição de restrições à vida pulsional (do princípio de realidade ), uma vez que impediu

55

seus filhos do acesso ao prazer

tomando as mulheres do grupo para si e impondo o tabu

do incesto. Assim os filhos estariam livres para atuarem como instrumento de trabalho,

garantindo a sobrevivência da espécie. Temos aqui o símbolo da primeira dominação

imposta à satisfação pulsional pelo interesse do progresso na civilização, que se revela ao

mesmo tempo como um progresso na dominação.

Entretanto, houve uma mudança decisiva na sociedade contemporânea que torna

falso o argumento freudiano da inevitabilidade do conflito entre princípio de prazer e

princípio de realidade , entre sexualidade e civilização . Esta hipótese, que é analisada

por Marcuse na segunda parte de seu livro, será retomada no capítulo três e por enquanto

nos restringiremos ao interesse desta questão no que se refere à crítica de P. Robinson e à

definição do conteúdo dos conceitos de mais-repressão

e princípio de rendimento .

Esta mudança decisiva refere-se ao surgimento de uma sociedade em que a

possibilidade de eliminação da luta pela existência (trabalho) está dada pelo atual estágio de

desenvolvimento técnico atingido pela civilização: nunca antes na história esta

possibilidade esteve tão presente. A mecanização da produção possibilitaria uma

diminuição significativa na necessidade de trabalhar e, no entanto, as pessoas trabalham

mais do que nunca. Parece que quanto mais a sociedade se aproxima da possibilidade de

eliminar, ou pelo menos diminuir significativamente a necessidade de restrição à satisfação

pulsional (devido à energia desviada para o trabalho social), mais esta é aumentada e

reforçada

o trabalho não aparece mais como uma necessidade na manutenção da

sociedade, mas como uma imposição na manutenção da dominação. Todas as forças são

utilizadas para que as pessoas não percebam que trabalham sem a necessidade de fazê-lo,

que sua vida sexual é significativamente debilitada neste processo, que sua liberdade se

restringe à escolha de opções predeterminadas, que suas atitudes, necessidades e desejos

56

são produzidas por um aparato que se movimente em função de sua própria reprodução e

não percebem a dominação presente na aparente libertação.

O recalque suplementar relativo ao interesse de dominação é o que Marcuse

chama de mais-repressão e o princípio de realidade correspondente à sociedade que

impõe a mais-repressão , a fim de manter a dominação frente à real possibilidade de

eliminação do trabalho árduo (alienado), chama-se princípio de rendimento . Esses

conceitos pretendem elucidar a extensão e os limites da repressão dominante na

civilização contemporânea que deve ser descrita com a ajuda do princípio de realidade

específico que rege o desenvolvimento desta civilização (1963: 49-50).

Através de toda a história da civilização, a coação [pulsional] imposta pela penúria foi

aumentada por coações impostas pela repartição hierarquizada da penúria e do trabalho: os

interesses de dominação acrescentam um recalque suplementar à organização das [pulsões]

sob o

reino do princípio de realidade . O princípio de prazer não foi destronado unicamente porque ele

trabalhava contra o progresso, mas também porque ele trabalhava contra uma civilização na qual o

progresso assegura a sobrevivência da dominação e do trabalho. (Marcuse: 1963: 46, grifo meu)

Os conceitos formulados por Marcuse só alcançam sua plena significação quando

colocados em termos de critérios objetivos : a possibilidade de medida do nível de

repressão e, portanto, de diferenciação entre repressão e mais-repressão numa

determinada etapa da civilização, só pode ser feita quando tomada em relação às

possibilidades de libertação presentes nela. A mais-repressão representa uma realidade

na qual o elevado grau de repressão se estabelece em uma etapa da civilização na qual

(...) a necessidade de renúncia e de trabalho é consideravelmente reduzida pelo progresso

material e intelectual, na qual a civilização poderia realmente oferecer uma liberação considerável

da energia [pulsional] consagrada à dominação e ao trabalho. A extensão e a profundidade da

57

repressão [pulsional] só alcançam sua plena significação quando comparadas com a extensão de

liberdade possível em um determinado momento histórico. (Marcuse: 1963,: 85, grifo meu)

A desculpa da penúria que justificou a repressão, a dominação e o trabalho árduo

durante tanto tempo, não valem mais numa sociedade em que a pobreza e a miséria

resultam da sua distribuição hierárquica. Esta é a irracionalidade subjacente à racionalidade

em torno da qual esta sociedade se organiza, que só pode ser demonstrada quando se

compara a possibilidade de libertação com a realidade da repressão inerente a esta

sociedade. Sua irracionalidade apresenta-se tanto numa perspectiva sociológica (a partir a

obsolescência da atual organização das relações de trabalho, devido à possibilidade de uma

diminuição significativa no tempo desperdiçado no trabalho penoso, propiciado pela

mecanização das forças produtivas), quanto numa perspectiva pulsional (a diminuição na

jornada de trabalho permitiria uma nova organização

não repressiva

da sexualidade),

sendo estas intimamente relacionadas. Nesta sociedade haveria a possibilidade de liberar o

indivíduo dos encargos do trabalho árduo, o que contestaria o fatalismo da oposição entre

sexualidade e civilização, felicidade e civilização, princípio de prazer e princípio de

realidade . O argumento de Freud se torna inválido em uma sociedade na qual a satisfação

material é em grande parte saciada através da produção incessante de bens de consumo.

A pobreza que reina em vastas zonas do mundo não tem mais como causa principal a

pobreza dos recursos humanos e naturais, mas a maneira como são distribuídas e utilizadas. Esta

diferença é talvez sem importância para a política e os políticos, mas é de uma importância capital

para uma teoria da civilização que faz derivar a necessidade de repressão da desproporção natural

e perpétua entre os desejos humanos e o meio no qual eles devem ser satisfeitos. (Marcuse: 1963:

88)

58

Mas este argumento de Freud é inválido ao mesmo tempo em que revela a

profundidade de suas acusações . É inválido na medida em que a necessidade do conflito

entre princípio de prazer e princípio de realidade é agora questionável, tendo em vista

que a possibilidade de eliminação do trabalho poderia resultar numa libertação das

pulsões da necessidade de sua limitação repressiva (no sentido da mais-repressão

imposta pelo interesse da dominação). De outro lado, ele continua a revelar a dominação e

o controle social e político subjacente ao desenvolvimento da sociedade.

Na sociedade atual a luta pela existência é mantida - apesar de todas as condições

objetivas para a sua eliminação (ou pelo menos diminuição significativa) - através da

constante dominação e manipulação dos indivíduos, para que eles não percebam a

irracionalidade presente nesta organização social - ocorre a racionalização da dominação .

Os métodos de dominação se transformaram: eles se tornaram cada vez mais tecnológicos,

produtivos, e mesmo aproveitáveis para os objetos de dominação; portanto, nos setores mais

avançados da sociedade industrial, as pessoas foram presas ao sistema de dominação e se

reconciliaram com ele num grau sem precedentes. (Marcuse: 1963: 10)

A obsolescência dos conceitos freudianos refere-se apenas aos mecanismos pelos

quais os processos e conflitos psíquicos se dão no indivíduo na sociedade atual. A teoria

freudiana, que desvendou a dominação inerente ao desenvolvimento e ao progresso da

civilização, continua valendo apesar das transformações históricas ocorridas: este

desenvolvimento não eliminou as relações de dominação e as imposições e renúncias por

parte da sociedade.

Ao denunciar sem concessões que o homem sofre numa sociedade repressiva, ao predizer

que com o progresso da civilização aumenta a culpa, que a morte e a destruição ameaçarão sempre

mais eficazmente as pulsões de vida, Freud lançou uma acusação que foi corroborada desde então

59

pelas câmaras de gás e campos de concentração, pelos métodos de tortura praticados nas guerras

coloniais e nas operações policiais, pela habilidade com que os homens se preparam para uma

vida subterrânea. Não é culpa da psicanálise que ela seja impotente para combater esse

desenvolvimento (...). A verdade da psicanálise consiste em manter fidelidade às suas hipóteses

mais provocadoras. (Marcuse: 1998 (a): 109-10)

Os conceitos de mais repressão e princípio de rendimento formulados por

Marcuse possuem o objetivo crítico de denunciar esta contradição inerente ao

desenvolvimento da sociedade contemporânea. A objeção de P. Robinson, de que Marcuse

teria introduzido concepções históricas exteriores à psicanálise, revelou-se suspeita a partir

dos argumentos expostos no decorrer da argumentação. Não creio que tenhamos esgotado

por completo a questão aqui e nem mesmo que ela não seja passível de objeções. Esta

leitura foi a que pareceu mais plausível e mais fiel às contribuições de Marcuse .

Passaremos agora à análise da hipótese da transformação não-repressiva das

pulsões, apresentada por Marcuse na segunda parte do seu livro. Assim como fizemos neste

capítulo, investigaremos esta hipótese a partir de duas críticas dirigidas a ela, que nos

permitirão compreender os vários lados desta formulação.

60

Capítulo III

A Hipótese da Transformação Não-Repressiva das Pulsões

1. Exposição da hipótese de Marcuse

A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse tem como proposta a

ortodoxia em relação às suas categorias e conceitos: isto significa que ele não pretende

acrescentar concepções exteriores à teoria freudiana, mas se manter fiel às suas categorias,

observando a possibilidade de um desenvolvimento não-repressivo das pulsões a partir dos

seus próprios conceitos.

Para Marcuse a teoria freudiana da cultura contém uma severa crítica ao princípio

de realidade repressivo e nesta crítica ela conduz a uma imagem de libertação : o

pessimismo freudiano quanto à possibilidade de felicidade e liberdade individuais implica

na negação e na recusa dessa sociedade repressiva. Neste sentido, a possibilidade de uma

transformação não-repressiva do princípio de realidade deve ser imanente às próprias

concepções freudianas, deve estar contida em seus próprios conceitos. O caráter

conservador das pulsões e a oposição destas à civilização devem desaparecer sob as

condições de uma sociedade não-repressiva. É esta possibilidade vislumbrada por Marcuse

que tentaremos apresentar neste capítulo.

Se, de modo geral, na primeira parte de Eros e Civilização Marcuse apresenta as

concepções principais da teoria freudiana que segundo ele são importantes (que foram

apresentadas de modo não sistemático no capítulo anterior), na segunda parte do livro ele se

dedica à demonstração da possibilidade das pulsões percorrerem um caminho diferente sob

a condição de uma realidade transformada, ou seja, de um princípio de realidade não-

repressivo . Segundo Marcuse são duas as justificativas dessa possibilidade: a primeira

equivale ao surgimento da sociedade industrial avançada e sua crescente produtividade; a

61

Segunda, pertence ao próprio contexto da teoria freudiana na medida em que suas

categorias e seus conceitos conduzem à idéia de um novo princípio de realidade .

Esta segunda possibilidade referente à imagem de uma realidade não-repressiva

presente nas próprias concepções freudianas também pertence ao contexto mais geral da

filosofia ocidental: neste ponto a metapsicologia freudiana encontra uma das principais

correntes da filosofia ocidental (1963: 102). No Intermezzo Filosófico (capítulo 5 de Eros

e Civilização) Marcuse insere Freud na história da filosofia ocidental num duplo

movimento: por um lado, reconhecimento da dominação instrumental (tanto do mundo

interno quanto externo), que implica no estabelecimento da oposição entre a razão e a

sensibilidade ; por outro, a denúncia da realidade repressiva através de uma imagem de

reconciliação .

A oposição entre razão e sensibilidade explicita o controle do homem sobre a

natureza, que garante a realização das potencialidades humanas e que foi estabelecido

mediante o Logos de dominação (faculdades superiores) e a repressão das faculdades

sensíveis e naturais. Na teoria freudiana o trabalho socialmente útil , que garante a

sobrevivência do ser humano num mundo externo agressivo, só pode se estabelecer a partir

da repressão e sublimação das pulsões (sobretudo das pulsões de vida ), isto é,

debilitando e limitando as possibilidades de obtenção de prazer pela satisfação sexual. A

repressão e sublimação das pulsões são condições necessárias ao progresso da

civilização, como Freud mostra em seu texto de 1908, Moral Sexual Cultural e

Nervosidade Moderna: nossa cultura descansa totalmente na coerção das pulsões . Freud

apresenta o contexto da civilização a partir da subjugação das faculdades sensíveis do ser

humano, imposta pelo progresso.

62

Neste sentido as concepções freudianas se assemelham às presentes em Aristóteles e

Hegel. As implicações da concepção do Logos como essência do ser, presentes na lógica

aristotélica, são sentidas ao longo da história da filosofia, se confundindo com uma razão

que ordena, classifica e dirige e impõe a luta contra as faculdades receptivas e contra o

princípio de prazer. Também Hegel demonstrou que a civilização só se estabelece a partir

de uma lógica da dominação da qual depende toda liberdade e satisfação humanas: a

consciência-de-si aparece como negação do outro e como desejo de supressão desta

separação a partir da aniquilação do outro

consciência-de-si como desejo . Com Hegel o

círculo se fecha : ele reconheceu a história da humanidade enquanto dominação e triunfo

da razão, mas ao mesmo tempo apresentou esta história como terminada

a dialética de

Hegel se mantém no interior dos quadros postos pelo princípio de realidade (1963: 108).

Se, de um lado, estas filosofias apresentam a realidade como realidade da

dominação e da repressão, de outro elas representam a necessidade de sua superação desta

realidade: a lógica da dominação não triunfa sem combate (1963: 104). Marcuse vai

mostrar que nestas teorias sobrevive a imagem de um Logos de satisfação e de uma

realidade de prazer, de um mundo no qual todas as potencialidades sejam realizadas. O

conteúdo dos conceitos de liberdade e razão , por exemplo, estão em evidente

contradição com a realidade: este abismo entre a imagem da satisfação e a realidade da

não realização atua como uma crítica do princípio de realidade repressivo por trazer à

consciência essas contradições efetivas. No entanto, a crítica se paralisa na medida em que

a superação da realidade repressiva sobrevive apenas como imagem e não como

possibilidade de realização efetiva.

Pois é justamente a realização desta realidade de satisfação que se tornou possível

com o surgimento da sociedade tecnológica. Marcuse tenta mostrar que, no novo contexto

63

histórico, esses conceitos críticos, que vislumbram um novo princípio de realidade ,

poderiam se realizar efetivamente: o livre desenvolvimento das potencialidades humanas

não implica mais necessariamente na repressão e inibição das faculdades inferiores, que foi

fundamental para a dominação da natureza a partir do Logos de dominação

não há mais

necessidade de manter a separação entre a razão e a sensibilidade , uma vez que as

realizações técnicas da sociedade industrial avançada permitiriam a satisfação das

necessidades básicas sem muito esforço.

Marcuse tenta uma interpretação da teoria freudiana tendo em vista a possibilidade

de uma sociedade na qual as pulsões de vida possam se realizar e em que o trabalho não

seja oposto a essa satisfação. Mas para isso ele precisa demonstrar que as pulsões de

morte não destruiriam esta civilização, já que Freud vê em sua atividade o maior

empecilho para um princípio de realidade não repressivo. Segundo Marcuse as próprias

concepções freudianas não negam a possibilidade da transformação não-repressiva das

pulsões, tornada possível com o desenvolvimento da civilização; ele pretende desenvolver

esta possibilidade a partir dos próprios conceitos pertencentes à teoria freudiana, sem

introdução de concepções exteriores. Vejamos como ele dribla a concepção da natureza

conservadora das pulsões .

Marcuse busca na teoria freudiana conceitos e noções que coloquem em questão o

princípio de realidade repressivo, que sejam sua negação e acusação. Ele destaca como

um dos principais o conceito de imaginário . Este princípio mental possui um papel muito

importante na estrutura mental, na medida em que ele liga as camadas mais profundas do

inconsciente à consciência: ele guarda os arquétipos da espécie, as imagens eternas

recalcadas da memória individual e coletiva, as imagens tabus de liberdade (1963: 128).

64

Este modo de pensamento se acha livre do princípio de realidade e está em relação direta

com o princípio de prazer . É na arte que ele expressa sua forma e sua reivindicação de

liberdade e satisfação, contra a realidade repressiva. Suas reivindicações de satisfação são

também vistas nas perversões , uma vez que expressam o elo entre a imaginação e

sexualidade - as perversões são o resultado da luta da sexualidade reprimida pela obtenção

de prazer:

Graças à revolta contra o princípio de rendimento em nome do princípio de prazer, as

perversões mostram uma afinidade profunda com a imaginação. (...) Contra uma sociedade que

utiliza a sexualidade como um meio para realizar um fim socialmente útil, as perversões mantêm a

sexualidade como um fim em si: elas se colocam fora do reino do princípio de rendimento e

colocam sua base em questão. (Marcuse: 1963: 54).

Neste sentido a imaginação adquire um papel central nas formulações de

Marcuse. Sua função crítica deriva do fato de ela evocar uma imagem de liberdade e

felicidade que se opõe à realidade repressiva e que recusa a imposição de limitações. É na

arte que ela encontra sua linguagem e os surrealistas reconheceram as implicações

revolucionárias das descobertas de Freud 8 (1963: 135).

Essa função crítica está ausente da teoria freudiana, uma vez que para ela a imagem

evocada pela imaginação reflete apenas um passado sub-histórico, sem volta. Na medida

em que a civilização depende da inibição da satisfação e das possibilidades de prazer para

a manutenção da vida através do trabalho, a idéia de um princípio de realidade não

repressivo implicaria num retour en arrière no desenvolvimento da civilização

a

história é hipostasiada numa forma única da civilização.

8 Reduzir a imaginação à escravidão, mesmo que estivesse em jogo aquilo a que grosseiramente se chama felicidade, é privarmo-nos de tudo o que encontramos, no nosso íntimo mais profundo, de justiça suprema. Somente a imaginação me diz o que pode ser. (Breton apud. Marcuse: 1999: 138)

65

Entretanto, Marcuse pensa que a realização das reivindicações da imaginação em

tornar a liberdade e o prazer realidades não levaria a civilização de volta a fases primitivas,

pois a civilização não-repressiva depende não do estancamento do progresso 9 mas de sua

liberação, isto é, o apaziguamento da luta pela existência tornado possível com o

progresso . Esta diferença em relação aos estados anteriores da civilização é que faz

possível pensar na realização da utopia . Mas a questão que Marcuse se coloca é:

A única questão pertinente é saber se podemos razoavelmente considerar um estado da

civilização no qual as necessidades humanas sejam satisfeitas de uma maneira tal e na medida em

que a mais-repressão possa ser suprimida. (Marcuse 1963: 137)

Ele quer saber se a eliminação da mais-repressão não eliminaria também o

trabalho e, portanto, a própria civilização, tal como imagina Freud. A possibilidade de

eliminar apenas a repressão imposta pelo interesse exclusivo de dominação ( mais-

repressão ), deve permitir a formação de relações de trabalho novas e duráveis e não a

eliminação do trabalho e da civilização. A realização da utopia depende de uma análise

dos caminhos que tomariam as pulsões sob a vigência de um princípio de realidade não-

repressivo.

9 A noção de progresso na teoria crítica adquire um conteúdo específico; a crítica do progresso difere de uma recusa ingênua das novas técnicas, isto é, ela não tem como proposta uma volta às fases anteriores de desenvolvimento, numa espécie de nostalgia do passado. Nas palavras de M. Löwy: [ela] implica uma atitude com relação ao passado que se distingue profundamente dos restauracionistas românticos: o objetivo não é a conservação do passado, mas a realização das esperanças passadas (Löwy: 1992: 205). Marcuse apresenta esta crítica do progresso no seu texto A Noção de Progresso à Luz da Psicanálise; neste ele faz uma distinção entre progresso quantitativo , que é chamado de progresso técnico (que corresponde à forma atual em que ele se dá), e progresso qualitativo , que é chamado de progresso humanitário (que corresponde à forma em que ele deveria se dar). A questão a ser respondida com esta distinção entre as duas formas de progresso é se esse progresso contribui realmente para o aperfeiçoamento humano, para uma existência mais livre e feliz (Marcuse: 2001: 112-3). Daí a distinção entre técnica e tecnologia: a tecnologia é entendida por Marcuse como um processo social no qual a técnica não passa de um fator parcial (ver Marcuse: 1998 (b)). A técnica por si só poderia permitir uma nova organização social, diferente a estabelecida.

66

A primeira das pulsões que Marcuse analisa são as pulsões de vida , que segundo

ele, são as mais desordenadas .

Uma ordem não-repressiva só é possível se os instintos sexuais podem, pela própria

dinâmica e em condições sociais e existenciais transformadas, fundar relações eróticas duráveis

entre os indivíduos. Devemos nos perguntar se os instintos sexuais, depois da eliminação da mais-

repressão, podem desenvolver uma racionalidade libidinal que seja não somente compatível com o

progresso, mas que o conduza a formas superiores de liberdade civilizada. (Marcuse: 1963: 174)

De acordo com a leitura de Marcuse, na teoria freudiana os obstáculos sociais

impostos às pulsões sexuais se devem à necessidade do trabalho na civilização e da

formação de relações duráveis entre as pessoas: o corpo dessexualizado permite sua

utilização enquanto instrumento de trabalho alienado (através da canalização da energia

libidinal que lhe é necessária), assim como a convivência em comunidade. Toda diminuição

destes obstáculos sociais conduziria a sociedade a fases pré-civilizadas.

No entanto, Marcuse argumenta que se o tempo e a energia empregados no trabalho

fossem reduzidos, sem uma manipulação do tempo livre , as bases destes obstáculos

sociais à satisfação pulsional seriam também reduzidas: o corpo se ressexualizaria e não

seria mais utilizado como instrumento de trabalho. Isto implicaria numa reativação das

zonas eróticas , no renascimento da sexualidade polimórfica e no declínio da

supremacia genital . Esta possibilidade de liberação da sexualidade parece, à primeira vista,

conduzir à imagem de uma sociedade de maníacos ou mesmo à sua destruição - se for

concebida apenas enquanto um fato isolado dentro de uma sociedade repressiva.

O fator central para a compreensão da possibilidade de realização desta utopia

vislumbrada por Marcuse é que este processo não implica só a liberação da sexualidade

67

mas também uma transformação da libido como resultado de uma transformação

social .

O livre desenvolvimento da libido transformada, além das instituições do princípio de

rendimento, difere essencialmente da liberação da sexualidade regida no interior do domínio dessas

instituições. (Marcuse: 1963: 177)

A liberação da sexualidade no interior do princípio de rendimento foi apresentada

no capítulo anterior pela noção de dessublimação repressiva da sexualidade . Já a

transformação da sexualidade através de sua liberação no contexto de uma realidade

transformada, não-repressiva, é chamada de auto-sublimação da sexualidade .

A auto-sublimação da sexualidade implica na transformação da sexualidade em

Eros. Nas condições específicas da realidade transformada a sexualidade tenderia a dar

origem a relações humanas altamente civilizadas : o fim do primado da genitalidade e

da dessexualização do corpo não levaria à destruição das relações sociais. A sexualidade

transformada em Eros implica na sua ampliação qualitativa e quantitativa , no sentido em

que a pulsão tomaria por domínio e objeto a própria vida (e neste sentido ela a protegeria)

ou seja, as pulsões de vida levariam adiante seu objetivo de constituir unidades cada vez

maiores e de conservar e ampliar a vida. Para Marcuse a sexualidade organizada

repressivamente corresponde à repressão de Eros: a auto-sublimação da sexualidade

significa o restabelecimento da sua função primeira

o impulso biológico torna-se um

impulso cultural (1963: 184).

Neste contexto a função das perversões também seria modificada: suas

manifestações diferem essencialmente quando produzidas numa civilização não-repressiva

ou repressiva. Numa civilização não-repressiva as formas assumidas pelas perversões (entre

68

elas o homossexualismo , tal como definido por Freud) teriam uma função muito diferente

das formas inumanas, coercitivas e destrutivas que a perversão apresenta na civilização

repressiva: estas últimas estariam ligadas à perversão geral da existência numa civilização

repressiva (1963: 177-8).

Também a sublimação adquire um novo caráter nesta sociedade transformada: ela

se apresenta como sublimação não-repressiva . A sublimação , tal como definida por

Freud, é chamada por Marcuse de sublimação repressiva , pois ela implica na

dessexualização da pulsão, na inibição de sua meta sexual e no redirecionamento de sua

meta para um fim não sexual. Para ele a sublimação (repressiva) da sexualidade difere da

sublimação de Eros na medida em que a primeira se estabelece no contexto de uma

sociedade repressiva e a segunda numa sociedade transformada. A sublimação de Eros

nesta nova sociedade é sublimação não-repressiva e ela representa a possibilidade de

uma sublimação sem dessexualização.

É evidente que sob o domínio do princípio de realidade atual, uma sublimação não-

repressiva só pode aparecer pelos seus aspectos marginais incompletos: sua forma plenamente

desenvolvida seria a sublimação sem dessexualização. O instinto não é desviado de seu objetivo.

Ele é satisfeito em atividades e relações que não são sexuais no sentido da sexualidade genital

organizada mas que são entretanto libidinais e eróticas. (Marcuse: 1963: 182)

A sexualidade liberada de sua limitação espacial não seria desviada nem impedida

de se realizar mas, enquanto um impulso coletivo, que procura a manutenção da vida e da

sociedade (enquanto pulsão de vida , Eros), ela transcenderia seu objeto e satisfação

imediatos em favor da coletividade. Esta nova modalidade de sublimação não implica na

extinção da cultura, uma vez que continua havendo sublimação, como nos mostram estas

duas citações presentes em Eros e Civilização:

69

[A sublimação não-repressiva] deve ser um processo supra-individual (...). Enquanto

fenômeno individual isolado, a reativação da libido não leva à civilização superior mas, à neurose.

(Marcuse: 1963: 183)

A diferença entre uma neurose e uma sublimação reside evidentemente no aspecto social do

fenômeno. Uma neurose isola, uma sublimação une. Pela sublimação, alguma coisa nova se cria:

uma casa, uma comunidade, um instrumento

e se cria no grupo para ser utilizado pelo grupo.

(Rohein apud. Marcuse: 1963: 183)

A possibilidade da sublimação não-repressiva implica que esta possa agir sobre

um sistema de relações libidinais crescentes e duráveis: as relações de trabalho.

Esta possibilidade do trabalho prazeroso é a base para a nova sociedade. Apesar

de Freud não diferenciar entre trabalho alienado e não alienado, a possibilidade do trabalho

proporcionar prazer não lhe é estranha. Marcuse apresenta uma citação de Psicologia de

Massas em que Freud parece reconhecer a possibilidade da libido se ligar à satisfação das

grandes necessidades vitais : há na teoria freudiana uma contradição no que se refere à

questão da luta pela existência ser libidinal ou antilibidinal. Mas, para Marcuse, o próprio

fato de Freud estabelecer uma ligação entre trabalho e sexualidade, entre a atividade

humana e a organização das pulsões , já abre a perspectiva para imaginar a possibilidade

do trabalho não ser simplesmente fonte de desprazer, mas de poder ser investido

libidinalmente numa sociedade não-repressiva.

A possibilidade de uma tendência erótica no trabalho é dada pelo atual nível de

desenvolvimento das forças produtivas. De acordo com a leitura de Marcuse da teoria

freudiana, a modificação repressiva das pulsões se impõe como necessária para possibilitar

a luta pela existência e a manutenção da vida. Neste sentido, a impossibilidade da libertação

do princípio de prazer implica na suposição de que a penúria é permanente . Mas se

70

nesta nova etapa da civilização a luta pela existência pode ser apaziguada, em conseqüência

da vitória sobre a escassez, então não há porque negar a possibilidade do trabalho investido

libidinalmente. A mecanização da produção permitiria uma diminuição no tempo

desperdiçado na manutenção da sobrevivência, que libertaria a energia sexual de sua

limitação espacial necessária para o trabalho. E uma vez que a sexualidade transformada

em Eros toma como objeto de satisfação a própria vida, e sendo o trabalho parte integral na

sua constituição e na sua auto-preservação, então ela também tomará o trabalho como fonte

de satisfação. As condições sociais alteradas criariam uma base pulsional para a

transformação do trabalho em atividade lúdica . Nestas novas condições o trabalho não

teria mas um fim exterior, isto é, a manutenção do sistema de dominação: ele seria

transformado em jogo , proporcionando satisfação em si mesmo.

Uma modificação na estrutura instintual (...) conduz a uma alteração no valor instintual da

atividade humana, qualquer que seja seu conteúdo (...) Se o trabalho fosse acompanhado de uma

reativação do erotismo pré-genital polimórfico, ele tenderia a tornar-se satisfação em si sem perder

seu conteúdo de trabalho. É exatamente esta reativação do erotismo polimórfico que apareceu como

conseqüência da vitória sobre a penúria e a alienação. (Marcuse: 1963: 187)

Esta questão do trabalho apresenta sua plena significação quando colocada em

relação à crítica do revisionismo neofreudiano. Marcuse critica a formulação de Ives

Hendrick que atribui ao ser humano um instinto de habilidade específico: segundo

Hendrick as energias necessárias para o trabalho provêm deste instinto, cujo objetivo é

modificar e controlar o meio. A satisfação deste instinto estaria garantida pela possibilidade

de satisfação através do trabalho (o trabalho produziria prazer na satisfação deste instinto).

Para Marcuse, se o trabalho em si propicia prazer, então a relação estabelecida por Freud

entre sexualidade e trabalho (entre prazer libidinal e trabalho árduo) perde sua significação.

71

Numa realidade governada pelo princípio de rendimento a possibilidade de obtenção de

prazer pelo trabalho torna-se repressiva

e a afirmação desta possibilidade torna-se

ideológica . Os revisionistas aceitam o trabalho tal como estabelecido (trabalho alienado)

e, mais do que isso, o trabalho aparece como fonte de prazer e gratificação. Para Marcuse o

trabalho alienado não satisfaz as necessidades dos indivíduos, suas próprias pulsões e

faculdades, mas cumpre uma função pré-estabelecida

é preciso fazer a crítica desta

forma de trabalho:

Associar o desempenho em linhas de montagem, em escritórios e lojas, com necessidades

pulsionais, é glorificar a desumanização como prazer. (Marcuse: 1963: 191-2)

Outro fator importante na constituição de uma civilização não-repressiva é a

dessublimação da razão . Ela implica na possibilidade de que a razão se torne também

objeto direto de investimento libidinal, o que daria origem a uma nova idéia de razão .

Se a sublimação (repressiva) da razão implica em sua dessexualização, ou seja, sua

separação dos conteúdos sensíveis, na oposição entre faculdades superiores e inferiores,

razão e sensibilidade, então a dessublimação da razão implica na ressexualização dessa

razão e no surgimento de uma razão sensível . Na condição da civilização não-repressiva,

em que as relações de trabalho tenham sido transformadas, a tendência peculiar a Eros em

buscar prazer se estende até a esfera espiritual: nada na natureza de Eros justifica a noção

segundo a qual o instinto é limitado ao domínio corporal (1963: 183).

Portanto, Marcuse justifica a possibilidade da modificação não-repressiva das

pulsões na civilização não-repressiva pelos processos de auto-sublimação da sexualidade

e da dessublimação da razão , enquanto processos resultantes da conquista sobre a

escassez. A transformação da estrutura pulsional, das relações de trabalho, da razão e da

72

sublimação (a eliminação de seus conteúdos repressivos) modificaria a atitude do ser

humano em relação à natureza e aos outros seres humanos, de modo que seria

completamente oposta à atitude que caracteriza a civilização ocidental. A transformação da

sexualidade em Eros e a sua extensão às relações de trabalho pressupõem para Marcuse

uma reorganização racional de um aparelho industrial enorme , uma divisão de trabalho

altamente especializada , a utilização construtiva da energia destrutiva e a cooperação

de vastas massas . Marcuse justifica a possibilidade deste tipo de relação do ser humano

com o meio, que não se baseia na dominação e exploração, através da antropologia,

apresentando o exemplo da sociedade Arapesh descrita pela antropóloga M. Mead, que tem

como traço particular a ausência de conflito com a natureza e entre seus membros.

Mas, já que Marcuse se propôs a aceitar todos os conceitos da teoria freudiana, a

possibilidade de estabelecer uma civilização não-repressiva precisa ser analisada frente ao

maior dos empecilhos para sua formulação, as pulsões de morte .

Para Freud o maior obstáculo que enfrenta a civilização é o controle da tendência

inata ao ser humano que o conduz à agressão e às manifestações desta tendência que se

acham ligadas às manifestações de Eros (é por isso que a sexualidade também não pode ser

liberada, pois liberaria as tendências agressivas que são unidas a ela).

Marcuse afirma que a hipótese de Freud, de que a agressão é inata ao ser humano e

que é um empecilho na constituição de uma sociedade livre, é de grande serventia para a

manutenção do princípio de rendimento , pois torna todo protesto insensato e inútil

este

é um dos argumentos dos revisionistas contra a idéia da existência desta pulsão. No texto de

1977, Ecologia e Crítica da Sociedade Moderna, Marcuse afirma que a negação da

possibilidade da transformação das pulsões testemunha o grau ao qual esta objeção

sucumbiu a uma ideologia conformista (1999: 154)

esta objeção apresenta a dominação

73

e a agressão como leis da natureza . Entretanto, contra a tendência inata à agressão

atribuída por Freud, Marcuse argumenta:

Contra esta ideologia, insisto que não há algo como uma natureza humana imutável. Além e

acima do mundo animal, os seres humanos são seres maleáveis, corpo e mente, até mesmo em sua

estrutura pulsional. (Marcuse: 1999: 154)

Na teoria freudiana as pulsões de morte constituem uma tendência do organismo

a buscar o estado de ausência de tensão: segundo a hipótese, na medida em que a matéria

viva se originou da matéria inorgânica ela tende a retornar a esse estado. Essas pulsões se

dirigem no sentido da autodestruição e destruição do meio, como um caminho mais rápido

para a morte, que é o estado de ausência total de tensão e desprazer.

Segundo a hipótese de uma civilização não-repressiva desenvolvida por Marcuse,

numa sociedade em que a luta pela existência tenha sido praticamente eliminada (devido às

conquistas técnicas) e cuja organização tenha se tornado racional , a busca das pulsões

pela ausência de tensão e de sofrimento deve estancar, já que essa tensão e esse sofrimento

seriam eliminados. A vida estaria organizada de tal forma que as pulsões perderiam seu

caráter regressivo

o princípio de Nirvana convergiria com o princípio de realidade

não-repressivo.

Se o fundamental da [pulsão] não é a cessação da vida, mas da dor, ausência de tensão,

paradoxalmente, o conflito entre a morte e a vida é reduzido quanto mais a vida se aproxima do

estado de satisfação. O princípio de prazer e o princípio de Nirvana convergiriam. (Marcuse: 1963:

203)

A possibilidade de uma transformação na organização pulsional desenvolvida por

Marcuse apóia-se na hipótese de Fenichel segundo a qual, se as pulsões possuem uma

natureza comum , tal como afirma Freud em Além do Princípio de Prazer, então há uma

74

energia deslocável, neutra, ora podendo se aliar à tendência erótica, ora à tendência

destrutiva: esta posição permite que, no curso de seu desenvolvimento, as pulsões possam

ser diferenciadas por influências externas (1963: 37).

Na medida em que Eros se livra da mais-repressão imposta pela dominação, que

exige a transformação repressiva da sexualidade, e que as pulsões de morte não são mais

impelidas a escapar do estado de sofrimento e tensão impostos pela realidade, estas pulsões

perderiam em grande parte a necessidade de regressão : a natureza conservadora das

pulsões desapareceria num presente apaziguado .

Marcuse impõe uma condição necessária para a possibilidade da transformação do

princípio de realidade repressivo: a liberação do conteúdo recalcado da memória,

enquanto veículo da libertação . A civilização repressiva impõe constantemente a

resignação e o esquecimento (recalque da memória) como condições de sua

sobrevivência, já que a civilização não se redimiu das injustiças e dos sofrimentos

passados: assim ela pode continuar se reproduzindo, assim como reproduzindo a injustiça e

escravidão.10 Esta faculdade do esquecimento está ligada à submissão e à resignação, que

são constantemente incentivadas pela moral civilizada .

Esquecer é também esquecer o que não podia ser esquecido para que a justiça e a liberdade

triunfem. Esta faculdade reproduz as condições que reproduzem a ordem e a escravidão: esquecer

os sofrimentos passados, é esquecer as forças que os causaram, e esquecer sem vencê-las.As feridas

que se curam com o tempo são também aquelas que contêm o veneno. (Marcuse: 1963: 201)

A liberação desse conteúdo recalcado da memória é a condição da sublimação não-

repressiva na medida em que ela se traduza em ação histórica .

10 Aqui reside uma das grandes contribuições de Freud para o pensamento social, já que a história da humanidade como dominação e sofrimento não é esquecida e apagada, como acontece no revisionismo.

75

(...) a lembrança não constitui uma arma real, a menos que se traduza em ação histórica: a

luta contra o tempo passa a ser um momento decisivo na luta contra a dominação. (Marcuse: 1963:

202)

A aliança entre o tempo e a repressão garante a manutenção da realidade

repressiva, pois faz com que os indivíduos esqueçam os sofrimentos passados, assim como

as satisfações. A força crítica de Eros reside na sua oposição ao prazer temporário e

limitado, na tentativa de vencer o tempo e restabelecer a satisfação integral: o prazer e a

satisfação são intemporais e não admitem limitação e controle.

O tempo só perde seu poder repressivo quando a memória do passado é resgatada.

Para F. Jameson, a obra de Marcuse lança os fundamentos para a possibilidade do

pensamento utópico através da valorização da memória: segundo ele, a memória da

satisfação está na origem de todo pensamento, e o impulso para recuperar a satisfação

passada é a força oculta por detrás do processo de pensamento. É somente através dessa

restauração do conteúdo recalcado da memória que a lembrança pode se traduzir em ação

histórica a memória teria, neste sentido, um papel político.

A energia primária da atividade revolucionária deriva dessa memória de uma felicidade pré-

histórica. A perda ou repressão do sentido de conceitos como felicidade e desejo toma a forma de

uma espécie de amnésia ou embotamento desmemorisado, que a atividade hermenêutica, a

estimulação da memória como negação do presente, como projeção de utopia, tem como função

dissipar, restaurando nossos impulsos e desejos vitais. (Jameson: 1985: 92)

A utopia formulada por Marcuse (a possibilidade de um desenvolvimento não-

repressivo das pulsões) é fundamentada na transformação social. Entretanto, não basta

apenas a preocupação com a base infraestrutural desta transformação sócio-econômica. A

76

novidade no seu pensamento social é que ele rompe com um determinado marxismo

ortodoxo ao introduzir a preocupação com a base humana do desenvolvimento do

capitalismo para o comunismo. Sem esta transformação subjetiva, na cultura, nos padrões

de comportamento, na relação entre os indivíduos e entre estes e seu meio, a sociedade

comunista é impensável. Esta preocupação é expressa na sua crítica à racionalidade

predominante na sociedade ocidental, que ele chama de racionalidade tecnológica que

deve converter-se em racionalidade sensível (como foi exposto acima).

Ao propor a crítica à racionalidade dominante, à razão enquanto Logos de

dominação, Marcuse propõe a refundação e a reformulação da idéia de razão e não sua

eliminação: é uma determinada organização política e econômica que impede o

desenvolvimento da razão em todas as suas potencialidades e não a razão per se. A razão

aberta à sensibilidade e a sensibilidade aberta à razão implicariam num novo estágio da

civilização essencialmente oposto ao atual, no qual as pulsões poderiam seguir um curso

não-repressivo e nesse processo sustentariam a vida ao invés de destruí-la.

Parece interessante estendermos um pouco mais a discussão a fim de especificarmos

o conteúdo da crítica marcuseana no contexto da possibilidade da transformação não-

repressiva das pulsões. Para isso retomaremos duas críticas da interpretação da teoria

freudiana realizada por Marcuse em Eros e Civilização. Será apresentada primeiramente a

crítica de Jean Laplanche no texto Notes sur Marcuse et la Psychanalyse (1969) e depois a

critica de Bento Prado Jr. no texto Entre o Alvo e o Objeto de Desejo: Marcuse crítico de

Freud (1990).

Através dessas críticas será possível: (1) observarmos as transformações que,

segundo estes autores, a teoria freudiana sofre nessa interpretação; (2) especificarmos o

77

conteúdo da crítica marcuseana; (3) analisarmos em que medida a interpretação marcuseana

(através da crítica imanente) justifica as alterações que impõe ao discurso psicanalítico.

2. A crítica de J. Laplanche

Dentre os vários conceitos que, segundo Laplanche, são deformados e mal

compreendidos por Marcuse, tomaremos apenas os três mais importantes e cuja crítica

permite compreender o argumento central de Laplanche contra a interpretação marcuseana:

o par Eros/sexualidade, o princípio de realidade e o conceito de repressão.

As acusações de Laplanche são graves, na medida em que desfazem toda

possibilidade vislumbrada por Marcuse de uma modificação não-repressiva das pulsões a

partir dos conceitos da teoria freudiana. Primeiramente, ele afirma que o que Marcuse

entende por Eros, enquanto o que é oprimido pela civilização e que deve ser liberado da

civilização repressiva, é na verdade a libido já sublimada, uma força essencialmente

antisexual . A questão é que Marcuse inverte os termos , embaralha o jogo , uma vez

que ele toma a última teoria das pulsões como a definitiva, sem analisar a história e a

evolução do conceito de sexualidade na teoria freudiana, conceito este que só pode ser

compreendido no contexto de sua vinculação com as leis do inconsciente e dos processos

primários.

Laplanche critica o conceito de princípio de rendimento formulado por Marcuse,

que é o princípio de realidade próprio ao atual contexto histórico do capitalismo

monopolista. Para ele não pode haver uma articulação imediata entre o princípio de

rendimento e o conflito psíquico. O conflito psíquico estaria ligado ao recalcamento,

enquanto o princípio de realidade à repressão (esta é uma explicação um tanto quanto

grosseira, mas ela serve para o objetivo que temos). A falta de uma diferenciação entre os

78

conceitos de repressão e de recalque, é apontada por Laplanche como um sério defeito na

obra de Marcuse, assim como a diferenciação entre instinto e pulsão, id e inconsciente.

Marcuse teria optado apenas pelos primeiros destes termos (repressão, id e instinto).

Sem entrar a fundo na análise dos conceitos, o ponto central e comum desta crítica

de Laplanche reside no fato de Marcuse omitir toda referência à prática e à clínica

psicanalítica: a ausência desta referência não permitiria compreender a originalidade das

descobertas freudianas nem mesmo o significado da metapsicologia - a ausência de

qualquer referência [à clínica] e de uma tal reflexão é provavelmente o defeito principal do

pensamento de Marcuse (1992: 63). Marcuse reduz a questão do conflito psíquico a um

conflito entre natureza e sociedade - a repressão é imposta por uma sociedade que impede

a satisfação das pulsões (natureza). Neste processo o papel do recalque , conceito

essencialmente clínico, é completamente anulado. Para Laplanche o problema é que

Marcuse só se reporta à última teoria das pulsões, àquela das pulsões de vida e de morte,

pois ele toma como referência as obra de Freud a partir de Além do Princípio de Prazer,

sobretudo as concepções formuladas na obra O Mal-Estar na Cultura.

Laplanche levanta uma outra questão problemática presente na obra de Marcuse que

vale a pena ser retomada. Em dois momentos ela se apresenta: primeiramente quando ele se

refere à diferença entre a penúria , como um fato puramente biológico, e a organização

da penúria , como um fenômeno social. Ele se pergunta se essa distinção não hipostasia um

estado de natureza puramente abstrato, a luta do homem com a natureza, na medida em que,

de acordo com a filosofia da história, na qual se inspira Marcuse , a história da penúria no

homem coincide com a organização da penúria. Vejamos duas citações suas:

79

Querer distinguir a penúria da organização da penúria não é hipostasiar um estado de

natureza puramente abstrato? (Laplanche: 1992: 73)

Não é mais conforme a filosofia da História, na qual se inspira Marcue, afirmar que a noção

de penúria absoluta é apenas uma abstração e que a história da penúria no homem coincide

absolutamente com a organização da penúria? (Laplanche: 1992: 72-3)

No segundo momento ele se refere à distinção entre repressão e mais-repressão :

a repressão seria biologicamente necessária à manutenção da vida em sociedade, enquanto

a mais-repressão seria a repressão imposta por condições sociais e históricas específicas.

Aqui haveria de novo uma formulação incompatível com o materialismo histórico, na

medida em que ele afirma a necessidade de um fato puro , a repressão básica.

Resumindo as objeções de Laplanche: é como se houvesse uma contradição entre a

afirmação de uma essência inata ao ser humano (ontologia) e uma historicidade a partir da

qual as tendências humanas seriam modificáveis e dadas historicamente.

Retomaremos estas objeções mais adiante.

80

3. A crítica de Bento Prado Jr.

Não pretendemos reproduzir aqui fielmente toda a argumentação deste autor na sua

crítica a Marcuse; nos limitaremos a especificar o seu conteúdo central. Neste texto o autor

rastreia as metamorfoses que sofre a idéia de desejo, na passagem do campo freudiano

para o campo da dialética em que Marcuse procura reinterpretá-la (Prado: 1990: 269). Em

sua análise crítica ele utiliza dois textos de Marcuse: o Intermezzo Filosófico, que é o

capítulo cinco de Eros e Civilização, e o texto de 1938 Para a Crítica do Hedonismo. Estes

textos relacionam-se como o rosto com a imagem no espelho : cada qual desenvolve de

uma perspectiva a história da metafísica ocidental.

De modo geral, em Para a Crítica do Hedonismo Marcuse faz a crítica à filosofia

hedonista, na medida em que nesta o interesse de felicidade individual é afirmado contra

toda a universalidade - ela reconcilia a felicidade individual à infelicidade geral . Aqui a

história da filosofia é contada a partir da análise das diferentes filosofias nas quais o prazer

(individual e subjetivo) se sobrepõe à razão (universal). Já no Intermezzo a história é

contada a partir da repressão de Eros por uma razão dominadora (característica da filosofia

da razão) e Marcuse tenta resgatar as filosofias que definem o ser como Eros, como desejo

e vontade: aqui Freud é posto ao lado de uma tradição que, depois de Hegel e do fim da

metafísica, se opõe ao predomínio da razão dominadora, que impõe a desqualificação das

faculdades apetitivas e inferiores entre eles estão Schopenhauer e Nietzsche.

Enquanto no primeiro texto Marcuse faz a crítica do imperialismo do desejo do

ponto de vista da razão, no segundo texto ele faz a crítica da razão do ponto de vista do

desejo (Prado: 1990: 276). A partir da crítica destas duas vertentes da filosofia, assim como

da incorporação da imagem de satisfação, de felicidade e de liberdade presentes nelas,

81

Marcuse estabelece o conteúdo de uma nova razão (a razão sensível 11), que poderia

predominar nas sociedades cujas forças produtivas se encontram desenvolvidas.

Segundo Bento Prado o pensamento de Marcuse é guiado, assim com em Platão,

pela idéia de que o desejo, o verdadeiro objeto de desejo dos indivíduos, é a constituição

da humanidade universal e solidária , da ordem social justa

esta é a ontologia erótica

de Marcuse, a partir da qual ele estabelece uma distinção entre verdadeiros e falsos

interesses e necessidades. Os verdadeiros interesses são aqueles que ao satisfazerem-se

individualmente mantêm o interesse da coletividade e por isso estão em oposição aos

interesses particulares.

Decididamente a ontologia de Marcuse é platônica: o objeto de desejo nada mais é (...) que

o ser ou a verdade. A natureza intencional do desejo acaba sendo arrastada pela mais funda

teleologia da prática histórica e deságua nessa nova forma de Nous Theos, que poderíamos

descrever como a apropriação erótica do mundo, com-os-outros-em-relação-aos-fins-da-Razão.

(Prado: 1990: 278)

A interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse, sobretudo a hipótese da

transformação não-repressiva das pulsões na qual elas tomariam a própria vida como objeto

de satisfação universal, é contestada por Bento Prado, para o qual nada é mais avesso ao

discurso freudiano do que a fixação de um objeto de desejo

objeto universal e

verdadeiro . Em Pulsões e Destinos das Pulsões Freud desenha o horizonte do conceito de

pulsão (em oposição ao de instinto): na obscura interface do biológico e do psíquico, a

noção de pulsão é circunscrita através da fixação de 4 pontos: pressão, fonte, alvo e objeto .

Segundo Bento Prado é a oposição entre alvo (meta) e objeto que está ausente na

reconstrução dialética da Metapsicologia empreendida por Marcuse.

11 Este termo ainda não aparece neste ensaio de 1938.

82

De acordo com Freud a idéia de objeto está longe de desempenhar um papel

constitutivo: o objeto é construído retrospectivamente, pela dinâmica da pulsão, cuja

constituição é determinada pelo alvo, que não pode ser confundido com objeto da pulsão .

Cito Freud:

O Alvo

de uma pulsão é sempre a satisfação, que só pode ser atingida pela supressão do

estado de estimulação na fonte da pulsão. Muito embora o alvo último de uma pulsão, [a

satisfação], seja invariável, podem haver muitos caminhos que a ela conduzem. (...) O Objeto

de

uma pulsão é a coisa na qual, ou por meio da qual a pulsão pode alcançar satisfação. É o mais

variável da pulsão, [...] não é necessariamente algo exterior ao indivíduo, pode ser qualquer parte de

seu corpo, e pode ser substituído indefinidamente por outros no curso do destino da vida da pulsão.

(Freud apud. Prado: 1990: 280)

A partir desta exposição sucinta podemos observar que existe para o autor um

problema na apreensão do conceito de pulsão em Marcuse. Segundo Bento Prado

Marcuse sobrepõe as noções de alvo e desejo , o que torna incompreensíveis as figuras

básicas da psicanálise, como o sadismo, o masoquismo, a sublimação, etc.

A reconstrução marcuseana é mais que um remanejamento local da teoria freudiana. (...)É o

próprio coração dinâmico da psicanálise que é comprometido com essa reforma. (...) E, neste caso,

Marcuse pudesse ser objeto da mesma crítica que endereça, com tanta argúcia e felicidade, aos

diversos reformismos pós-freudianos. Numa palavra, entre um falso e um verdadeiro gozo, quem,

senão Deus (Nous Theos) veria diferença? (Prado: 1990: 281, grifo meu)

4. A Particularidade da Interpretação de Marcuse

Tentaremos agora argumentar a respeito das críticas dirigidas a Marcuse. Não temos

a intenção de negar a relevância e a verdade dessas críticas, uma vez que vimos que elas de

fato demonstram uma certa incompatibilidade existente entre as categorias freudianas e sua

respectiva análise realizada por Marcuse. No entanto não achamos que a crítica destes

83

autores desqualifica a interpretação marcuseana, pois elas não abordam o núcleo central em

que esta se fundamenta e que pretendemos apresentar aqui.

Como pudemos ver na última citação de Bento Prado, ele, assim como P. Robinson,

acusam Marcuse se cometer o mesmo erro do revisionismo neo-freudiano. Teremos,

portanto, a possibilidade de articular melhor a argumentação exposta no capítulo dois. As

duas críticas diferem em termos de conteúdo: enquanto em P. Robinson a acusação era a de

que Marcuse introduzia concepções exteriores à psicanálise (tal como os revisionistas), em

Bento Prado a questão gira em torno da distinção entre verdadeiras e falsas necessidades

e prazeres, na medida em que esta distinção impõe uma transformação decisiva no discurso

freudiano, tal como ocorre na interpretação revisionista (a pretendida ortodoxia de

Marcuse em relação à teoria freudiana se torna suspeita). Nossa argumentação também

iluminará a crítica de Laplanche e tentaremos abordá-la a partir da questão da terapia

psicanalítica, cuja ausência de uma reflexão a respeito é considerada o maior defeito da

leitura da teoria freudiana realizada por Marcuse.

A fim de argumentarmos em relação às acusações de Bento Prado retomaremos o

texto Para a Crítica do Hedonismo, utilizado por ele. Faremos uma breve apresentação

deste texto e das críticas de Marcuse às várias correntes da filosofia hedonista e do

idealismo filosófico para então chegarmos à questão que nos interessa, a da distinção entre

as verdadeiras e falsas necessidades individuais. Estas permitirão que situemos a crítica

marcuseana no contexto da crítica imanente (exposta também no capítulo 2), pois somente

tendo-a como referência podemos compreender a especificidade de sua crítica.

84

a. A crítica do Hedonismo e do Idealismo Filosófico:

Neste texto Marcuse estabelece uma relação entre a filosofia da razão e a filosofia

hedonista: esta relação revela a oposição entre razão e sensibilidade estabelecida na

história da filosofia e que tem seu reflexo nas relações reais em que se organiza a

sociedade.

O conceito de razão representa as leis universais que regem a vida em sociedade. A

partir do momento em que os seres humanos passam a viver em comunidade há

necessidade do estabelecimento de certas máximas do agir : as leis da razão criam

finalmente entre os homens uma comunidade (Marcuse: 1997: 161). O estabelecimento

dessas leis se impõe contra toda individualidade e interesses particulares, contra a

felicidade: só assim a vida em comunidade torna-se possível

a idéia de razão continha o

sacrifício do indivíduo (1997:161). No desenvolvimento da sociedade as faculdades

inferiores, a sensibilidade e, portanto, a felicidade, são rejeitadas e introjetadas: perdem seu

direito de realização em face de uma sociedade na qual o interesse particular é eliminado.

A diferença entre a filosofia da razão e a filosofia hedonista corresponde à oposição

entre a reivindicação dos interesses gerais (as leis da razão que organizam a sociedade e

que se opõem aos interesses antagônicos dos indivíduos) e dos interesses individuais (que

buscam, contra toda universalidade, a felicidade, a satisfação das necessidades e prazeres

particulares). Neste sentido, as duas correntes filosóficas contêm uma reivindicação

incompatível com as exigências da sociedade antagônica e que representa a possibilidade

de uma organização social superior: a filosofia da razão conservou em seus fundamentos o

desenvolvimento das forças produtivas, a livre configuração racional das condições vitais, a

dominação da natureza e a autonomia crítica dos indivíduos socializados, isto é, as

exigências de uma sociedade organizada racionalmente; enquanto isso, o hedonismo

85

conservou o desenvolvimento completo e satisfação das necessidades individuais, a

emancipação de um processo de trabalho desumano e a entrega do mundo à fruição, isto é,

as exigências de felicidade e liberdade individuais (1997: 168).

As duas filosofias são negadas na realidade social: suas exigências são

incompatíveis com a estrutura da sociedade antagônica e não podem ser resolvidas num

outro princípio filosófico superior, mas somente através da transformação efetiva desta

sociedade. A forma histórica assumida pela razão nesta sociedade é uma forma atrofiada :

Se essa forma é tal que as forças produtivas estão dispostas no interesse dos menores

grupos sociais, que nela a maior parte dos homens está separada dos meios de produção e o trabalho

não se realiza de acordo com as capacidades e necessidades dos indivíduos, mas segundo as

exigências do processo de valorização do capital, nessa forma histórica da razão a felicidade não

pode ser universal. À felicidade resta apenas a esfera do consumo. (Marcuse: 1997: 172)

A preocupação com a felicidade está presente nos vários hedonismos: entre eles

estão o hedonismo cirenaico e o hedonismo epicurista. A diferença entre eles é que no

primeiro a felicidade corresponde à satisfação pelo prazer (quanto mais prazer mais

felicidade): ao exigir a satisfação do prazer individual ele se opõe à universalidade

independente que nega esse prazer individual. Segundo Marcuse o problema deste

hedonismo é que ele aceita as necessidades e interesses dos indivíduos como algo

simplesmente dado e valioso em si (1997: 169)

ele não aplica o critério de verdade ou

falsidade às necessidades e interesses (à felicidade). Para ele nas necessidades que o

hedonismo reivindica a satisfação se esconde já a mutilação, a repressão e a inverdade

com que os homens crescem na sociedade de classes (1997: 169). Retomaremos adiante

esta questão.

86

Neste sentido, o hedonismo epicurista opõe-se ao cirenaico por buscar uma

diferenciação imanente entre as necessidades: ele opõe um determinado tipo de prazer,

como verdadeiro , aos outros. O verdadeiro prazer estaria ligado à razão na medida em

que avalia se o prazer momentâneo, mesmo quando proporciona satisfação imediata, pode

trazer um desprazer maior depois: este seria um hedonismo negativo , pois seu princípio

consiste antes em evitar desprazer que em desejar prazer (1997: 170)

neste sentido, a

razão se converte em prazer e o prazer se torna racional. Esta avaliação do prazer se

estabelece tendo em vista a maior segurança e durabilidade possível do prazer .

Entretanto, para Marcuse este hedonismo acaba por adaptar as exigências de prazer à

realidade antagônica e este se torna um prazer mutilado : nessa situação não pode se

chamar de felicidade este prazer moderado, que não se entrega ao deleite .

De modo geral, ao ligar a sensibilidade à felicidade o hedonismo se opõe à forma

adquirida historicamente pela razão: esta razão domina por trás das costas dos indivíduos

na reprodução do todo , sendo essencialmente oposta à felicidade individual. No entanto a

ética idealista rejeita o hedonismo precisamente por conta da particularidade e

subjetividade essenciais de seus princípios, já que somente a eliminação do isolamento

individual permitiria a verdadeira felicidade (universalização da felicidade). Numa

sociedade em que a felicidade se limita à esfera de consumo e é um aspecto absolutamente

contingente num processo de produção que atua independente das necessidades e

capacidades individuais, a particularidade e subjetividade da felicidade são reforçadas, pois

o isolamento, a reificação e a contingência constituem precisamente a dimensão da

felicidade na sociedade atual (1997: 173) - a crítica idealista se vê então justificada.

Tanto o hedonismo quanto a filosofia da razão constituem tentativas de salvar a

objetividade da felicidade e concebê-la sob as categorias de verdade e universalidade .

87

Temos, de um lado, a filosofia da razão com sua pretensão de universalização da

felicidade : aqui os interesses da sociedade autonomizada se sobrepõem aos interesses

individuais e neste caso a possibilidade de felicidade é eliminada. De outro lado, temos o

hedonismo com sua exigência de uma felicidade particular e subjetiva : aqui as

necessidades dos indivíduos afirmam-se sobre as da sociedade e estas necessidades não são

questionadas mas aceitas enquanto tais.

No entanto, Marcuse argumenta que a verdade da felicidade não deve ser buscada

num ou noutro princípio filosófico, mas em uma nova organização social, na qual a

felicidade, enquanto felicidade objetiva e ligada à sensibilidade e às satisfações materiais,

possa se tornar universal.

Quando a pergunta acerca da possível felicidade não é levada ao plano da estrutura da

organização social da humanidade, sua resposta está condenada ao fracasso devido às próprias

contradições sociais. (Marcuse: 1997: 174)

A crítica platônica do hedonismo representa a tentativa de estabelecer a verdade

da felicidade, de salvar sua objetividade (universalidade), aplicando as categorias de

verdade e falsidade ao prazer e às necessidades. Uma necessidade verdadeira é aquela

que mantém a ordem justa da comunidade e, portanto, o fundamento desta distinção não

reside no prazer individual mas no interesse geral. Em oposição ao protesto hedonista da

felicidade particular e subjetiva na ética platônica a questão da felicidade não passa pelo

indivíduo, mas é antes subordinada ao interesse universal.

A ética platônica põe em questão os sujeitos do prazer e não apenas os objetos: a

crítica de Platão ao hedonismo retorna, da simples existência das necessidades e do prazer,

aos sujeitos que os possuem (1997: 175-6). Nesse sentido a distinção platônica transforma

88

o prazer num problema moral , na qual a bondade do homem se liga à verdade do

prazer . Mas é justamente aqui que ela revela seu momento de falsidade, pois se a há

necessidade de se estabelecer um código ético objetivo (universal), oposto às necessidades

individuais, esta imposição vai contra a felicidade

a moral é expressão do antagonismo

entre interesse particular e geral . Apesar da crítica platônica tentar manter os momentos do

social e do pessoal unidos na determinação das potencialidades humanas, através de

uma organização social que decida acerca da realização destas, a ordem social na qual elas

se desenvolvem não é questionada: as possibilidades humanas devem adaptar-se a uma

realidade antagônica. Na medida em que essa realidade autônoma se desenvolve sem levar

em conta as necessidades individuais, mas somente a reprodução do modo de produção, a

felicidade aparece como uma contingência e a liberdade, como não vigora nas relações

exteriores, é interiorizada ( o protesto hedonista do indivíduo isolado é imoral ).

Após apresentar estas tentativas presentes na história da filosofia de salvar a

objetividade da felicidade , Marcuse se questiona: como julgar a realidade da felicidade,

se os indivíduos podem se sentir felizes sem serem felizes de fato? (1997: 181). Para ele a

teoria crítica pode estabelecer a verdade e a universalidade da felicidade na medida em que

apresenta o conteúdo dos conceitos que ultrapassam a forma social antagônica que

prevalece na sociedade em direção à sua forma racional.

Todas as tentativas de estabelecer o conteúdo e a possibilidade de realização da

felicidade são falseadas, negadas, por uma realidade que impede sua realização. A questão

da felicidade deve ser reposta no novo contexto histórico que é a sociedade industrial

avançada, na qual as possibilidades de liberdade e felicidade encontram-se presentes

89

materialmente devido ao desenvolvimento das forças produtivas. Até então ela se chocava

com um mundo que não permitia a liberdade e, portanto, a felicidade.

Só hoje, no último estágio do desenvolvimento do existente, quando amadureceram as

forças objetivas que impulsionam para uma ordem superior da humanidade, e só em conexão com a

teoria e a práxis históricas vinculadas a essa transformação, pode a felicidade, junto com a

totalidade do existente, tornar-se também objeto de crítica. (Marcuse: 1997: 190)

Somente neste contexto histórico faz sentido julgar como verdadeiras ou falsas

as necessidades e interesses individuais. Os falsos interesses são aqueles que se vinculam

à manutenção e progresso do sistema repressivo - repressivo no sentido de que, frente às

reais possibilidades de libertação e desenvolvimento das potencialidades humanas, estas

continuam limitadas. Os verdadeiros interesses são aqueles que se opõem ao progresso

irracional desse sistema e cuja satisfação está ligada à sua transformação (eles vinculam-se

à universalidade e representam mais que um interesse particular). As duas citações

seguintes exemplificam a posição de Marcuse no que se refere à questão:

A determinação da felicidade como estado de satisfação completa das necessidades do

indivíduo á abstrata e incorreta, na medida em que aceita como dado último as necessidades na sua

forma presente. Enquanto estado de coisas histórico, estão sujeitas à pergunta sobre seu direito: são

elas do tipo que sua satisfação pode realizar as possibilidades objetivas e subjetivas dos indivíduos?

(Marcuse: 1997: 188)

Só frente à possibilidade histórica da liberdade universal tem sentido qualificar como falsa a

felicidade factual, realmente sentida até hoje nas condições de existência. (Marcuse: 1997: 189)

Nesta sociedade as necessidades são falsificadas para que os indivíduos não

percebam a possibilidade de libertação inerente à organização social atual e aceitem o

sistema que os oprime. Suas falsas necessidades correspondem às possibilidades de

90

satisfação oferecidas por este mesmo sistema que as produz

tanto as necessidades quanto

os objetos de satisfação (as mercadorias).

Certos impulsos e necessidades só se tornam falsos e destrutivos em virtude das formas

falsas para as quais sua satisfação é canalizada, ao passo que o estágio atual alcançado pelo

desenvolvimento objetivo permitiria sua verdadeira satisfação. (Marcuse: 1997: 187)

A manipulação das massas constitui parte fundamental na reprodução desta

sociedade através de uma indústria de divertimento, que possui um papel importante na

adaptação e manipulação de suas consciências e necessidades, assim como através do

processo de trabalho, que possui uma posição central na falsificação das necessidades.

A função do trabalho no interior desta sociedade limita o desenvolvimento da

capacidade de fruição e da sensibilidade , na medida em que estas lhe são essencialmente

opostas

esse trabalho não propicia prazer. O resultado do atual processo de trabalho é a

mutilação e embrutecimento dos órgãos do trabalhador , fundamental para que estes não

percebam as possibilidades de fruição e prazer que são negadas: estas se chocariam com a

desumanidade do processo de trabalho.

Nessa sociedade antagônica a limitação da fruição atinge todas as esferas das

relações sociais e não só as massas trabalhadoras: na medida em que a fruição é uma

atitude para com as coisas e com os homens ela se vê limitada por uma sociedade que

oferece como objetos de fruição as mercadorias produzidas por ela (e cujo valor é

atribuído pelo tempo de trabalho abstrato) e na qual as relações entre as pessoas se

estabelecem enquanto pessoas como possuidoras de mercadorias .

Numa organização social que opõe os indivíduos em classes uns contra os outros e

abandona sua liberdade particular ao mecanismo de um sistema econômico incontrolado, a não-

liberdade atua já nas necessidades e ainda mais na fruição. (Marcuse: 1997: 182)

91

O vínculo entre desvalorização da fruição e justificação social pelo trabalho

aparece de maneira flagrante na maneira como a sociedade lida com a questão do prazer

sexual . Ele é racionalizado e constitui um meio para atingir um fim determinado

socialmente:

A entrega não racionalizada, não sublimada às relações sexuais constituiria a mais poderosa

entrega à fruição enquanto tal e a total desvalorização do trabalho pelo trabalho. Nenhum ser

humano poderia suportar internamente a tensão entre o valor do próprio trabalho e a liberdade da

fruição: a desolação e a injustiça das relações de trabalho penetrariam vivamente na consciência dos

indivíduos e tornariam impossível sua integração pacífica ao sistema social do mundo burguês.

(1997: 186)

b. O contexto da interpretação marcuseana (uma resposta às críticas)

A argumentação de Marcuse deve ser compreendida em relação às possibilidades de

libertação dadas historicamente. A exigência de felicidade presente nos vários hedonismos

só pode adquirir um significado decididamente real no atual estágio alcançado pela

sociedade, pois nela as possibilidades materiais para a realização da felicidade e da

liberdade estão presentes. Mas a questão fundamental é que a possibilidade da

universalidade da felicidade choca-se na sociedade atual com a questão da manipulação das

necessidades e interesses dos indivíduos, que faz com que estes aceitem uma realidade

opressiva.

Fica claro que os indivíduos, educados para serem integrados ao processo de trabalho

antagônico, não podem ser juízes de sua felicidade. Eles estão impedidos de conhecer seus

verdadeiros interesses. Assim, pode suceder que qualifiquem como felizes a sua situação e que, sem

coerção exterior, aceitem o sistema que os oprime. Os resultados das votações populares modernas

92

demonstram que os homens, separados da verdade possível, podem ser levados a votar contra si

mesmos. (Marcuse: 1997: 190)

O ponto de partida da análise de Marcuse é o indivíduo prejudicado , alienado e a

realidade da sociedade alienada. A frase de Brecht, citada por Maar, exemplifica seu modo

de análise: É inútil começar com as coisas boas de sempre. É melhor iniciar pelas coisas

novas e ruins (Brecht apud Maar: 1999: 62). Os fatos devem ser analisados a partir da

conexão que estabelecem na perpetuação da sociedade opressiva capitalista, uma sociedade

que se reproduz pela sujeição dos indivíduos ao modo de produção: neste processo de

reprodução social os indivíduos são transformados pelo círculo de coesão progressiva

que opera através da produção de necessidades e de mercadorias.

As objeções de Laplanche e Bento Prado colocadas à interpretação da teoria

freudiana realizada por Marcuse não levam em conta esse contexto geral em que ela é

formulada e é por isso que tentaremos localizar a importância da referência a esse contexto,

sem o qual é impossível compreender a interpretação de Marcuse e a função que a teoria

freudiana possui em seu pensamento. Vejamos a seguinte frase de Bento Prado:

Marcuse alinha a Teoria Crítica numa tradição essencialmente essencialista. Mais que isso,

faz sua a teoria platônica da intencionalidade do prazer (ou do desejo), dentro do horizonte da Polis,

isto é, do universal da sociedade política. E é justamente aqui que podemos localizar o destino que o

estilo dialético do pensamento de Marcuse atribui à idéia de desejo. Parece que tal destino é

definido entre a intenção que liga o sujeito desejante ao objeto desejado e a intenção social, como

teleologia que conduz à constituição da bela humanidade universal. Meu desejo será tanto mais

verdadeiro quanto mais ele, por seu próprio movimento, colaborar para a cristalização de uma

comunidade solidária. Numa palavra, o verdadeiro objeto de desejo é a humanidade universal, o

Telos da história. (Prado: 1990: 278, grifo meu)

93

Para comprovar sua tese quanto ao destino da idéia de desejo na obra de Marcuse,

Bento Prado cita uma passagem de Para a Crítica do Hedonismo, na qual para ele está

claramente exposta a intenção em relacionar o verdadeiro objeto de desejo à

constituição da bela humanidade universal . Vejamos a citação de Marcuse:

Do abismo existente entre o que é objeto de gozo e a maneira pela qual tais objetos são

concebidos, apreendidos e consumidos, surge a questão do grau de verdade da relação de

felicidade nessa sociedade: os atos realizados com vistas a esse gozo não chegam sequer à

realização dessa intenção; e mesmo quando se realizam não são verdadeiros. (Marcuse apud. Prado:

1990: 278, grifo meus)

Esta frase aparece completamente desvinculada do contexto no qual Marcuse a

formulou, a saber, que na sociedade capitalista (ou industrial avançada) a possibilidade de

fruição é reprimida por interesses sociais específicos de manipulação dos indivíduos a fim

de adequá-los ao processo de produção. Vejamos no texto de Marcuse a frase que é anterior

àquela citada por Bento Prado:

(...) perante as possibilidades dadas de fruição encontram-se homens completamente

incapazes de fruir, tanto objetivamente, em virtude de seu status econômico, quanto subjetivamente,

em virtude de sua educação e disciplinamento. (Marcuse: 1977: 182)

A distinção entre verdadeiras e falsas necessidades em Marcuse, que segundo

Bento Prado implica que as verdadeiras necessidade seriam aquelas ligadas à constituição

da bela humanidade (o verdadeiro objeto de desejo), devem se entendidas em função do

(...) contexto da sujeição mediante uma realidade social que impõe a adaptação dos seres

humanos. (...) Ela resulta de uma reflexão crítica de uma situação de adequação subjetiva, de

sujeição do sujeito à ordem social vigente em seu processo de reprodução material. (Maar: 2002:

10).

94

Neste contexto de adaptação subjetiva , as falsas necessidades são aquelas

produzidas pela sociedade, a partir dos vários mecanismos de que dispõe ( indústria

cultural , fetichismo da mercadoria e sobretudo o próprio processo de trabalho), no único

interesse de sua perpetuação: elas são falsas por que não representam os interesses

individuais e sim aqueles impostos por um certo modo de produzir (pela sociedade

autonomizada). Sem a produção destas necessidades falsas a sociedade não poderia se

reproduzir, uma vez que haveria o risco da tomada de consciência da presença da base

material para a possível libertação da necessidade do trabalho. Se, nesta sociedade em que

o desenvolvimento das forças produtivas permitiria eliminar o trabalho e, no entanto, ele se

mantém, é devido à constante intervenção no âmbito subjetivo para que os indivíduos não

vejam a imposição da dominação. Esta questão também foi exposta por Adorno no texto

Estática e Dinâmica das Categorias Sociológicas:

O desenvolvimento imanente das forças produtivas que torna o trabalho humano até certo

ponto dispensável, encerra o potencial de transformação: a redução do trabalho, que do ponto de

vista técnico poderia ser hoje mínimo, abre uma nova qualidade social não restrita ao progresso

unilateral se, entrementes, as ameaças às relações de produção daí derivadas não conduzissem o

sistema como um todo a se aquartelar tenazmente em sua própria tendência. (Adorno apud. Maar:

2002: 9)

Retomemos muito brevemente um outro texto de Adorno, apenas para

esclarecermos um pouco mais a questão da produção das necessidades. No texto

Capitalismo Tardio ou Sociedade Industrial (de 1968) ele argumenta que a utilização de

um ou outro termo só é relevante na medida em que apresenta uma contradição efetiva na

sociedade. A sociedade é industrial de acordo com o atual estágio das suas forças

produtivas, pois o trabalho industrial ainda é o modelo de uma exigência econômica e se

95

estende para além da produção, na distribuição, administração e mesmo na cultura. Ao

mesmo tempo esta sociedade ainda é capitalista em suas relações de produção, pois os

indivíduos continuam sendo apêndices da maquinaria , não só enquanto trabalhadores mas

até suas mais íntimas emoções

em suas necessidades . A respeito disto vejamos a

seguinte citação:

Para além de tudo que à época de Marx era previsível, as necessidades, (...) acabaram se

transformando completamente em funções do aparelho de produção, e não vice-versa. São

totalmente dirigidas. Nessa metamorfose as necessidades, fixadas e adequadas aos interesses do

aparelho, convertem-se naquilo que o aparelho sempre pode invocar com alarde. Mas o lado do

valor de uso das mercadorias perdeu a última evidência natural . Não só as necessidades são

atendidas apenas indiretamente, através do valor de troca, mas, em setores economicamente

relevantes, são primeiro geradas pelo próprio interesse no lucro, e isso às custas de necessidades

objetivas de consumidores. (Adorno: 1985: 68)

O círculo de coesão progressiva é reforçado por uma sociedade que faz com que

seus indivíduos participem efetivamente dos benefícios materiais que ela produz, as

mercadorias, que passam a ser uma necessidade para estes: uma necessidade não de fato,

pois estas não possuem valor de uso real, apenas aparente ( valor de troca )

são

fetiches12. Há uma atribuição de valor às mercadorias, como se o valor fosse algo

inerente a elas, mas que na verdade é atribuído a elas por meio de uma relação entre as

pessoas que é essencialmente relação de dominação (Maar: 1999: 66).

Marcuse apresenta a dimensão das relações humanas como uma dimensão marcada por

relações que buscam a satisfação de necessidades coisificadas, suprimento de mercadoria. Este

suprimento da sociedade afluente se sobrepõe nas pessoas às suas necessidades sociais, o seu

próprio ser social. Isto acontece porque as mercadorias agem no plano material dos sentidos,

satisfazendo verdadeiramente desejos , necessidades, ainda que necessidades falsas ,

12 Esta dinâmica da transformação de valor de uso em valor de troca foi apresentada no capítulo anterior.

96

desenvolvidas no curso de um modo de produção em sua própria perpetuação. As pessoas se

satisfazem com mercadorias no plano material e sensorial, do que resulta uma perturbação na

materialidade , dos sentidos . (Maar: 1999: 69)

O desejo verdadeiro é aquele que não está manipulado por um aparato produtivo

em seu próprio interesse de perpetuação. Marcuse não estabelece uma distinção ontológica

entre verdadeiros e falsos interesses, desejos e necessidades, tal como afirma Bento

Prado, mas uma distinção histórica que tem a ver com o estágio alcançado pela sociedade

na qual esta distinção toma um significado especial distinção que só tem sentido no atual

estágio da civilização. Pois enquanto a pergunta acerca da felicidade era posta em uma

sociedade na qual não havia recursos materiais para a diminuição significativa da

necessidade de trabalho e para a satisfação universal das necessidades materiais, o

problema era insolúvel : enquanto uma sociedade não-livre decidia sobre a verdade, esta

só podia consistir no interesse particular do indivíduo ou nas necessidades da

universalidade autonomizada (Marcuse: 1997: 192).

Numa sociedade em que a produção de riqueza não diminui a miséria, mas está

essencialmente vinculada a sua perpetuação, esta distinção adquire um significado

estratégico na tentativa de desmistificar a consciência reificada , que aceita e reproduz o

existente.

Que o braço estendido da humanidade alcance planetas distantes e vazios, mas que ela, em

seu próprio planeta, não seja capaz de fundar uma paz duradoura, manifesta o absurdo na direção a

qual se movimenta a dialética social. (Adorno: 1985: 70)

Aqui também as acusações de Laplanche em relação à interpretação marcuseana

podem ser questionadas. Se Marcuse não menciona as questões referentes à clínica

97

psicanalítica é porque para ele a possibilidade de cura do indivíduo, posta pela terapia,

não é possível fora do contexto de uma transformação decisiva na sociedade antagônica:

não é que ele simplesmente omita qualquer referência à clínica , mas a partir do momento

em que para ele o indivíduo na sociedade atual já é mutilado , danificado pelos

interesses de dominação, a única função que resta à terapia é a adaptação.

Retomemos a segunda objeção: a de uma incompatibilidade entre um historicismo

de inspiração marxista e a afirmação de uma ontologia necessária à tese da subversão do

princípio de realidade

esta é uma questão de fato espinhosa no pensamento de

Marcuse. Segundo G. Raulet, no seu livro Marcuse. Philosophie de l Emancipation, o

pensamento de Marcuse é marcado por esta tensão. Ele argumenta que em Eros e

Civilização Marcuse busca a possibilidade da revolução, que se mostra insustentável na

realidade, numa ontologia fundada em Eros: ele busca o fundamento da historicidade na

Vida

pulsões de vida

fundamento que permite escapar à inautenticidade dos impasses

ônticos (Raulet: 1992: 166). Este impasse se refere à dialética da civilização imposta

pela razão dominadora e repressiva que domina na sociedade ocidental e que no

Intermezzo Filosófico (capítulo 5) Marcuse situa no contexto da história da filosofia. Mas é

com Freud e Nietzsche que se abre a perspectiva de uma ruptura com esta definição de

razão e o surgimento de uma nova perspectiva para sua fundamentação, na medida em que

definem o ser como Eros e não mais como Logos

uma mudança de fundamento

ontológico, que possibilita Marcuse refundar a idéia de uma razão a partir da concepção

de uma razão libidinal (ou razão sensível), que não seja uma razão de dominação, e que

inverta a dialética fatal para a qual caminha a civilização, modificando a relação dos

indivíduos com a natureza e entre si.

98

Esta tensão presente no pensamento de Marcuse exprime a necessidade de se

dissolver a aparente harmonia presente na sociedade unidimensional . A idéia de uma

natureza pura , da repressão básica ou da penúria enquanto um fato natural , revela a

diferença que existe entre uma organização social que intervém subjetivamente nos

próprios indivíduos para manter a dominação e uma sociedade na qual a dominação não é

internalizada, exercendo-se pela violência (entre uma sociedade totalitária e seu passado

liberal): esta é a peculiaridade do capitalismo monopolista, no qual a dominação foi

racionalizada e internalizada. Vejamos a citação a seguir, tirada do prefácio do livro

Cultura e Sociedade, no qual Marcuse faz um balanço das transformações históricas

decorridas desde o período em que os textos foram escritos (anos 30 e 40):

Na cultura tradicional, o espírito, a razão, a consciência, o pensamento puro deveriam

constituir a liberdade essencial do homem: aqui se localizava a esfera da negação, da contradição

em relação ao existente, da recusa, da dissociação, da crítica. (...) [Nesta fase da organização social]

as forças produtivas ainda não haviam atingido aquele estágio do desenvolvimento em que a venda

do produto do trabalho social demandava a organização sistemática das necessidades, inclusive as

intelectuais (...) Num nível menos desenvolvido das forças produtivas a sociedade burguesa ainda

não dispunha dos meios de administração da alma e do espírito sem desacreditar essa administração

mediante a violência terrorista. (Marcuse: 1997: 38-9)

A necessidade de um fundamento ontológico para a possibilidade da revolução

revela a medida em que o progresso foi repressão: a irracionalidade deste sistema se revela

na contradição entre a elevada produtividade e a miséria crescente, a possibilidade real de

libertação da luta pela existência e a realidade da exploração cada vez maior. Frente a essa

realidade a teoria demanda conceitos que revelem sua irracionalidade

os conceitos de

mais-repressão e princípio de rendimento possuem esta função crítica, pois

desmascaram a dominação subjacente à possibilidade de sua relativa diminuição.

99

Neste contexto a teoria freudiana também possui uma função crítica, que não está

na terapia (e por isso Marcuse a rejeita), mas sim na sua teoria da cultura

é somente esta

que interessa a Marcuse. Na medida em que ela denuncia o vínculo indissolúvel entre

progresso e repressão, progresso e aumento da infelicidade e, mais do que isso, ao

hipostasiar um princípio de realidade repressivo, ela revela a verdadeira face da

sociedade antagônica e seu domínio sobre o indivíduo e não uma realidade imaginada,

idealizada e pressuposta.

Se Marcuse impõe uma deformação aos conceitos freudianos, como foi de fato

possível verificar através das críticas apresentadas, isto não significa que sua interpretação

deva ser desqualificada: ela tem seu valor dentro do contexto teórico a que se filia. O

próprio Laplanche afirma no final de seu texto: Marcuse, reconheçamos, nos propõe suas

visões mais como panfletos de provocação, que como programa (1992: 87). A hipótese da

transformação não-repressiva das pulsões deve ser vista antes como a tentativa de, por um

lado, denunciar a irracionalidade do desenvolvimento da civilização (que pode levar à sua

dialética fatal ) e, por outro, de romper com a consciência reificada :

Romper a consciência administrada constitui hoje mais do que nunca uma precondição para

a libertação. Porém o pensar no plano da contradição precisa ser capaz de compreender e expressar

as novas possibilidades da diferença qualitativa: ser capaz de alcançar a violência da repressão

tecnológica assimilando na formação conceitual os elementos da satisfação que nela se encontram

invertidos e oprimidos. Dito de outro modo: o pensamento deve tornar-se mais negativo e mais

utópico frente ao existente. (Marcuse: 1997: 45, grifo meu)

Capítulo IV

A Crítica do Marxismo

Retomemos a discussão acerca da relação entre o marxismo e a psicanálise na obra

de Marcuse. Dissemos que sua obra pode ser compreendida mais profundamente no

100

contexto desta relação, uma vez que estas duas teorias representam dois instrumentos de

sua análise e crítica da sociedade industrial avançada. Esta análise e crítica da sociedade

são feitas a partir da crítica desses mesmos instrumentos que permitem essa crítica: as

transformações históricas ocorridas desde o surgimento dessas teorias afetaram algumas de

suas concepções fundamentais, mas isto não invalidou a perspectiva crítica que é inerente a

elas. A obsolescência dos seus conceitos revela que a sociedade caminhou no sentido de um

incremento nas formas de dominação. Neste sentido, seus conceitos ainda guardam as

imagens incompatíveis com a realidade da dominação e são úteis para a teoria crítica.

Retomaremos esta questão ao longo da discussão.

Já apresentamos brevemente a crítica da teoria freudiana e agora tentaremos retomar

também brevemente os argumentos da crítica do marxismo a partir de um texto dos anos 70

chamado Sobre o Conceito de Negação na Dialética: assim poderemos situar melhor o

contexto em que se estrutura seu pensamento.

Para Marcuse o grande dilema na compreensão do novo panorama histórico que é o

capitalismo avançado refere-se ao fato de que nesta sociedade a dominação e a repressão se

estabelecem e se justificam pela elevada produtividade que lhe é característica e que

permite aos indivíduos desfrutarem das vantagens que este sistema lhes oferece. As forças

que antes se opunham e negavam a dominação e a exploração (a revolta contra o sistema)

perderam seu conteúdo negativo, crítico, e passaram a funcionar como elementos de

integração e reprodução do sistema de dominação: elas foram absorvidas (como é o caso

da classe trabalhadora, dos sindicatos, da cultura, obras de arte, da sexualidade, ou seja,

todas as esferas sociais).

101

Quando, nas sociedades mais ou menos afluentes, a produtividade atingiu um nível em que

as massas participam de seus benefícios, e em que a oposição é democraticamente contida , então

o conflito entre senhores e escravos é eficientemente contido. (Marcuse: 1999 (a): 16)

As contradições são absorvidas e os indivíduos sofrem um processo de adaptação e

manipulação de suas consciências que os impede de ver a alienação. A principal

característica desta sociedade, que a diferencia de todas até então, é que a liberdade também

atua como elemento de integração e dominação: o povo eficientemente manipulado e

organizado, é livre; a ignorância e a impotência, a heteronomia introjetada, é o preço de sua

liberdade (1999 (a): 14). A respeito deste tema vejamos a seguinte citação:

O decisivo para determinar o grau de liberdade do indivíduo é o que pode ser e o que é

escolhido por ele. A eleição livre dos senhores não abole os senhores e os escravos. A livre escolha

entre ampla variedade de mercadorias e serviços não significa liberdade se esses serviços e

mercadorias sustêm os controles sociais sobre uma vida de labuta e temor

se sustêm a alienação.

(Marcuse: 1969: 28)

Portanto, o que temos nesta nova forma do capitalismo é um sistema de alienação

total , que se estabelece justamente na fase de desenvolvimento das forças produtivas em

que a necessidade de trabalho árduo se vê significativamente diminuída: a dominação e a

repressão foram aumentadas para que os indivíduos não vejam as possibilidades reais de

libertação. Este novo contexto foi descrito por Marcuse pelo conceito de princípio de

rendimento e a repressão que se impõe para que os indivíduos não percebam a dominação

foi chamada de mais-repressão .

A partir deste panorama histórico Marcuse contestou a tese freudiana da

inevitabilidade do conflito entre o indivíduo e a sociedade. Pois se esse conflito

fundamenta-se na necessidade de trabalho na civilização, imposta pela escassez de bens que

garantam a sobrevivência (este tema já foi insistentemente apontado nas partes anteriores),

102

então ela não pode ser concebida como uma oposição inevitável, visto o atual nível de

desenvolvimento das forças produtivas. A partir deste novo contexto Marcuse também

critica o materialismo marxista.

Marcuse descreve o período totalitário atual com a idéia de uma imobilização da

dialética da negatividade (Marcuse: 1972: 160) e esta traz um novo problema para o

conceito de dialética presente no materialismo marxista. Contestando a tese de Althusser

segundo a qual o marxismo teria rompido com a dialética hegeliana, Marcuse afirma que o

marxismo permanece no terreno da razão idealista, na medida em que não destrua a

concepção do progresso, segundo a qual o futuro já está sempre enraizado no presente

(Marcuse: 1972: 161, grifo meu). Vejamos esta citação na qual Marcuse se questiona:

(...) se e em que medida a etapa tardia da sociedade industrial ocidental, pelo menos no que

se refere à base técnica do desenvolvimento das forças produtivas, pode servir como modelo para a

construção de uma nova sociedade. (Marcuse: 1972: 162)13

Para Marcuse o problema reside no conceito de negação como superação presente

tanto em Marx como em Hegel. Segundo estes autores, uma organização social poderia

atingir um estágio superior de desenvolvimento social pelo desdobramento de uma essência

que lhe é inerente: a negação do sistema surgiria no seu interior, já que nele estariam

contidas as bases técnicas do desenvolvimento futuro (esta tese é exposta por Marx no que

se refere, por exemplo, à transição do capitalismo para o socialismo). Adorno também

expôs este caráter idealista presente no materialismo marxista no texto Capitalismo

Tardio ou Sociedade Industrial?. Vejamos sua citação:

13 Esta questão dos problemas da continuação da base técnica do capitalismo no socialismo foi estudada por Marcuse em Marxismo Soviético, e em A Ideologia da Sociedade Industrial ele repensa os problemas relativos à técnica como instrumento de dominação: não poderemos abordar estas questões pois, apesar de muito interessantes, ultrapassariam os limites propostos para este trabalho (isto demanda um trabalho futuro).

103

Demasiada otimista era a expectativa de Marx de que seria historicamente certo o primado

das forças produtivas, que necessariamente romperiam as relações de produção. Nesta medida,

Marx este inimigo juramentado do idealismo alemão permaneceu fiel à construção afirmativa da

história. (Adorno: 1985: 69-70)

Esta é a perspectiva idealista que a dialética materialista deve romper: é

necessária a elaboração de um novo conceito de dialética que dê conta das transformações

históricas. No novo contexto histórico ocorreu a repressão da necessidade de emancipação

através da constante intervenção no âmbito subjetivo: as forças de integração e

manipulação impedem a consciência da alienação e, portanto, a negação. Os indivíduos

não percebem mais subjetivamente as contradições objetivas, que são ocultas pela

aparência de uma harmonia: as contradições se ocultam na adequação ao processo social

(Maar: 2002: 4). O sujeito histórico da revolução não representa mais a força de oposição,

pois foi integrado confortavelmente ao sistema de interesses dessa sociedade, assim como

todas as esferas da sociedade. Marcuse se pergunta:

Não será que o materialismo dialético reduz sua própria base material na medida em que

não penetra em grau suficientemente profundo na ação das instituições sociais sobre o ser e a

consciência dos indivíduos (...); na medida em que subestima o papel da ciência e da técnica ligadas

à violência na formação e determinação das necessidades e da satisfação dessas necessidades? Isto

é: não será que o materialismo marxista subestima as forças de integração e coesão que atuam na

fase madura do capitalismo? (Marcuse: 1972: 162-3, grifo meu).

Parece que o problema do materialismo marxista neste novo contexto é que ele não

imaginou o poder que a sociedade tem em influenciar e manipular a consciência dos

indivíduos. Neste sentido, a teoria freudiana foi mais a fundo, denunciando a perda da

autonomia individual decorrente do progresso na civilização (sua análise da formação das

massas é representativa deste fato). Freud denunciou o progresso da civilização a partir

104

da perspectiva do sofrimento e do aumento do sentimento de culpa que ele causa nos seres

humanos, rompendo com a ideologia progressista à qual o materialismo marxista sucumbe.

As hipóteses do complexo de Édipo e da horda primitiva , apresentadas pela teoria

freudiana, revelam a importância da história ontogenética (individual) e filogenética

(social) na formação e desenvolvimento da personalidade individual

revelam a influência

do meio sobre o indivíduo. Aqui ela fornece a chave para compreender um fato histórico

que inquietava Marcuse: saber por que todas as revoluções foram revoluções traídas e

porque os indivíduos aceitam um sistema que os oprime, que é oposto à felicidade e à

liberdade

ele chama este fato de servidão voluntária . A teoria freudiana permite

explica-lo, revelando a introjeção e internalização das condições e normas sociais exteriores

no indivíduo, que o marxismo não alcançava.

Para Marcuse o marxismo (enquanto uma teoria dialética) não pode ser

imobilizado como um dogma : seus conceitos devem ser desenvolvidos conforme as

mudanças históricas, pois só assim ele pode ser capaz de captar a estrutura modificada do

capitalismo (Marcuse apud Loureiro (org.): 1999(a): 109). Vejamos a citação seguinte,

tirada de uma entrevista de Marcuse, na qual ele apresenta de maneira clara as

contribuições que a teoria freudiana traz para a teoria marxista, quando lhe perguntam

acerca da possibilidade da abordagem de Freud entrar nessa teoria :

(...) a abordagem freudiana pode e deve entrar nesta teoria, pois abriu uma dimensão no que

se refere à determinação social do ser humano que, em grande parte, havia ficado à margem da

teoria marxista. Freud mostrou quão profundamente as relações sociais são reproduzidas nos

próprios indivíduos e através dos indivíduos, quer dizer, a própria sociedade co-determina em alto

grau a estrutura pulsional dos indivíduos. (Marcuse apud Loureiro: 1998: 110)

105

Mas a teoria freudiana, por sua vez, também sucumbe ao desenvolvimento histórico:

na medida em que concebe o desenvolvimento histórico como a reprodução de uma mesma

essência, de um ponto de vista estático, ela torna-se ideológica, pois nega a possibilidade de

mudança e aceita o destino inevitável dos fatos ela curva-se frente à ideologia dominante.

Neste novo contexto histórico a teoria freudiana também é posta em questão, uma vez que o

desenvolvimento das forças produtivas invalida a inevitabilidade do conflito entre o

indivíduo e a sociedade estabelecida por Freud (seu elemento estático).

Tanto o marxismo quanto a teoria freudiana são postos em questão com o

desenvolvimento histórico que conduziu a uma nova fase do capitalismo: a obsolescência

dessas teorias revela o poder repressivo da sociedade unidimensional , sua capacidade em

integrar as forças antagônicas e eliminar toda negação. Neste sentido, o marxismo e a teoria

freudiana ainda guardam aquela imagem do negativo, da oposição entre o indivíduo e a

sociedade, que parece eliminada e obscurecida na realidade social.

O conceito marxista de negação como superação não vale mais em uma sociedade

que elimina a negação e que faz dos agentes históricos da revolução (a classe trabalhadora,

que conduziria a sociedade a um estágio mais elevado de organização social - o socialismo)

parte da engrenagem que reproduz o sistema, através da manipulação de suas necessidades

e interesses. O conceito de negação que se desenvolve no interior do todo antagônico

existente como superação se vê contestado.

A eliminação da negação também afeta as instâncias que definem o psiquismo na

teoria freudiana, pois estas não explicam mais seu funcionamento, nem a relação entre o

indivíduo e a sociedade. Primeiro porque nesta sociedade a família perde em importância

na socialização do indivíduo, o que invalida o esquema do complexo de Édipo a partir do

qual o indivíduo se formava

estamos diante de uma sociedade sem pai , na qual os

106

meios de socialização são exteriores à família (escola, televisão, colegas e círculos de

amigos, etc). O superego torna-se uma instância bastante fraca para se opor ao princípio

de realidade , o que reduz o poder de autonomia individual assim como a consciência, que

se forma a partir da instauração do superego .

Segundo porque o conflito entre o indivíduo e a sociedade, a partir do qual os

sujeitos se formavam, foi atenuado: as pulsões podem se satisfazer consideravelmente, ao

mesmo tempo em que esta liberação funciona como um poderoso instrumento de coesão.

Marcuse contesta a hipótese de Freud de que a libertação das pulsões de vida conduziria

à libertação das pulsões de morte

esta tese teria implicações fatais para a civilização,

pois levaria em direção à sua própria destruição. Ele argumenta que na sociedade

contemporânea a libertação das pulsões de morte tornou-se parte integrante de seu

desenvolvimento e manutenção, sendo um poderoso elemento na conquista da natureza e

dos homens:

Parece que a crescente capacidade da sociedade manipular o progresso técnico também

aumenta sua capacidade de manipular e controlar [esta pulsão], isto é, para satisfazê-la

produtivamente (...); a coesão social é fortalecida nas mais profundas raízes pulsionais (...). Assim

como esta sociedade tende a reduzir e até absorver a oposição no âmbito da política e da cultura

superior, também tende a fazê-lo na esfera [pulsional]. (...) O resultado é a atrofia dos órgãos

mentais, impedindo-os de perceber as contradições e as alternativas e, na única dimensão restante

da racionalidade tecnológica, prevalece a Consciência Feliz. (Marcuse: 1969: 88)

No texto Ecologia e Crítica da Sociedade Moderna Marcuse define a sociedade

atual no contexto da destrutibilidade institucionalizada , que conduz a estruturas de

caráter destrutivas entre seus membros e fornece o contexto para a reprodução individual

da destrutibilidade na sociedade. Esta característica é flagrante nas mais diversas

situações, sobretudo na aliança entre produção e destruição . Retomemos alguns dos

107

exemplos característicos desta destrutibilidade institucionalizada fornecidos por Marcuse:

o constante aumento no orçamento militar às custas do bem estar social , proliferação de

usinas nucleares , envenenamento e poluição geral do meio ambiente , gritante

subordinação dos direitos humanos às exigências da estratégia global e a ameaça de

guerra no caso de contestação dessa estratégia (1999: 145). Este texto-conferência é de

1977[!].

Na medida em que o poder de negação é eliminado na sociedade

unidimensional ele adquire uma posição central na obra de Marcuse (sobretudo nas suas

últimas obras), cujo objetivo é desmistificar a ilusória harmonia presente na sociedade

atual, assim como mostrar que esta sociedade só se mantém pela constante intervenção no

âmbito subjetivo para que os indivíduos não vejam a alienação e a dominação.

Ainda no texto Sobre o Conceito de Negação na Dialética Marcuse propõe a

possibilidade de que o sistema possa ser negado por forças desenvolvidas no exterior do

sistema de interesses que o mantém: ele se refere a uma diferença qualitativa na qual o

externo se reporta para além das contradições existentes (das necessidades produzidas e

manipuladas) no interior do sistema antagônico. Na medida em que as forças negativas se

transformaram em forças positivas , reproduzindo o existente ao invés de transformá-lo ,

Marcuse sustenta a possibilidade de um rompimento total com as premissas e instituições

deste sistema alienante e que este possa ser negado de fora: este fora refere-se ao sistema

de interesses que mantém a sociedade, mas que surge internamente à mesma

somente

um poder que se encontra fora do sistema de interesses, do sistema das necessidades da

sociedade civil pode representar as necessidades e interesses universais (1972: 163-4, grifo

meu).

108

A diferença entre a atual organização repressiva da sociedade e a futura estaria no

surgimento de necessidades emancipatórias, essencialmente opostas às que mantêm

atualmente o sistema: estas não são necessidades novas, pois elas permeiam a vida dos

indivíduos no contexto desta sociedade, sendo, entretanto, reprimidas. Marcuse cita, por

exemplo, a necessidade de um trabalho criativo , de tempo livre (autônomo), necessidade

de silêncio, receptividade, tranqüilidade e alegria (Marcuse: 1999: 150).

A possibilidade do poder de negação surgir fora da totalidade repressiva implica a

existência de forças e movimentos que não estejam manietados pela produtividade

agressiva e repressiva . Entretanto esses movimentos não representam mais a luta de

classes no sentido tradicionalmente formulado no marxismo: não que a luta de classes tenha

desaparecido, mas ela assume novas feições uma vez que o processo de trabalho também

foi alterado. Esses novos movimentos sociais representam a revolta das pulsões de vida

contra a realidade repressiva: esses movimentos radicais são revoltas existenciais contra

um princípio de realidade obsoleto (1999: 153). Marcuse encontra esta revolta das

pulsões de vida no movimento estudantil, movimento feminista e ecológico, entre outros.

Na medida em que a sociedade antagônica se transformou em uma totalidade repressiva

terrível, (...) se desloca o lugar social da negação. O poder do negativo surge fora desta totalidade

repressiva, a partir de forças e movimentos que ainda não estão manietados pela produtividade

agressiva e repressiva da chamada sociedade da abundância , ou que já se libertaram deste

desenvolvimento e, portanto, tem a possibilidade histórica de percorrer um caminho de

industrialização e modernização realmente distinto, um caminho humano de progresso. (Marcuse:

1972: 165)

Se o marxismo e a teoria freudiana não podem mais explicar a partir de suas

próprias categorias a realidade do novo contexto social, a crítica imanente pode explicitar

o conteúdo dessas categorias tornadas obsoletas e, ao fazê-lo, criticar esta mesma

109

sociedade. Reportando a análise aos fatos históricos concretos e mostrando como as

transformações históricas afetaram internamente essas teorias, ela pode desmistificar e

denunciar a ideologia progressista que reproduz a sociedade, justamente porque essas

categorias e processos tornados obsoletos revelam a realidade da repressão e da dominação

que ainda não eram obscurecidas e das contradições não imobilizadas: elas guardam a

verdade do desenvolvimento social. A noção de conflito é central nas duas teorias: ela

expressa uma realidade de contradição que se tornou harmônica no atual contexto

histórico.

Marcuse afirma que é preciso romper com as premissas em que esta sociedade se

baseia, mostrando a contradição entre as possibilidades anunciadas e a realidade de sua

não realização. Neste sentido é necessária uma crítica que apreenda os fatos em sua

posição dentro do processo de manutenção do sistema de dominação, pois só assim eles

revelam sua verdadeira função. Sua verdade

deriva da confrontação daquilo que uma

sociedade se apresenta e aquilo que ela é (Adorno apud. Maar: 2002: 7)

esta é a crítica

imanente .

A crítica imanente

demonstra a contradição entre a produtividade anunciada do trabalho e a

efetivamente realizada socialmente; entre a possibilidade e a realidade socialmente imposta. (Maar:

2002: 7, grifo meu)

A idéia da recusa ocupa uma posição central na obra de Marcuse: enquanto uma

noção crítica ela implica a negação do atual sistema de dominação e de suas premissas, a

possibilidade de escapar ao círculo de coesão progressiva , uma ruptura na continuidade

como mercadoria , a rejeição do consumismo enquanto parcela do circuito de reprodução

do capital (Maar: 1999: 71)

é a revolta das pulsões de vida . Somente assim a

110

possibilidade de rompimento desta racionalidade destrutiva pode ser, pelo menos

imaginável .

Para F. Jameson, em Marcuse a idéia de utopia

mantém viva a possibilidade de um

mundo qualitativamente melhor, tomando a forma de uma negação inflexível de tudo que

existe. (Jameson: 1985: 90, grifo meu). E é a partir deste pano de fundo que a obra Eros e

Civilização deve ser abordada: muitos a acusaram de ser uma obra ingenuamente utópica, e

numa primeira leitura desatenta pode até parecer. É preciso ter em mente o contexto e o

significado da utopia para Marcuse; longe de ser algo irrealizável, ela é o único meio de

resgatar as possibilidades de superação, que estão em aberto mas obstruídas pela

racionalidade da sociedade tecnológica: ele busca uma saída para o impasse da sociedade

sem oposição (Loureiro: 1998: 114).

Marcuse retoma o termo utopia concreta de Ernst Bloch: [...] utopia

porque tal

sociedade não existe em lugar algum; mas concreta

porque tal sociedade é uma

possibilidade histórica real (Marcuse apud. Loureiro (org.): 1999(a): 148). Essas

possibilidades se encontram presentes na sociedade atual e poderiam conduzir a um outro

princípio de realidade , além da forma estabelecida.

Na última página do texto A Noção de Progresso à Luz da Psicanálise Marcuse

expõe de forma marcante o sentido que a dimensão utópica assume em seu pensamento:

Gostaria de defender-me da censura que, espero, vocês devem ter me dirigido (...) que é ir

longe demais e ser irresponsável, numa situação na qual a realidade onde vivemos não só nada tem

a ver com as hipóteses aqui levantadas, mas que sob todos os aspectos é exatamente o contrário

disso e assim promete permanecer, [e de] expor uma utopia em que se afirma que a sociedade

industrial moderna poderia muito em breve atingir um estado em que o princípio de repressão (...)

se revelará obsoleto. É certo que não se pode imaginar maior contraste entre essa utopia e a

realidade (...) existente atualmente. Quanto menos a renúncia e as restrições são biológica e

111

socialmente necessárias, tanto mais os homens precisam ser transformados em instrumentos de uma

política repressiva. (...) Talvez seja hoje menos irresponsável pintar uma utopia fundamentada que

difamar como utopia condições e possibilidades que já há muito se tornaram realizáveis. (Marcuse:

2001: 138).

É neste contexto que a interpretação polêmica da teoria freudiana se situa na obra

de Marcuse, segundo o que foi possível averiguar. Não creio que possamos dar por

encerrada a polêmica que sua interpretação suscita mas, de acordo com a perspectiva que

elaboramos, pudemos pelo menos chegar a uma melhor compreensão de sua obra e

desmistificar a aparente utopia ingênua que muitos atribuem a ela. Mais do que isso, este

estudo revelou a grande atualidade da leitura de Marcuse que permite aprofundarmos a

compreensão do atual contexto histórico. Foi esta atualidade que levou Giles Chatelêt a

escrever um artigo instigante para um jornal francês, cujo título é Reler Marcuse para não

viver como porcos. Com a citação de uma passagem deste artigo encerramos aqui este

último capítulo:

Pensar a mobilidade é, segundo Marcuse, captar toda a paciência e mordacidade do

pensamento negativo que se poderia crer em vias de desaparecimento. É recusar-se a abdicar

perante as imposturas que se apresentam como absolutas e se põem como filosofia positiva ,

legitimadoras de uma sábia resignação diante de leis sociais vistas como tão naturais como as leis

de Newton. (...) Eis porque é preciso ler e reler Marcuse, o homem para quem conformar-se é (...)

adaptar-se, é ficar impedido de realizar esta união de paciência e teimosia que constrói o esplendor

da individuação humana. (Chatelêt: 1998: 22-23)

112

Conclusão

Tentaremos fazer agora um apanhado das colocações expostas até aqui, a fim de

termos uma visão mais geral de nossas posições e ver até onde elas nos conduziram.

A obra de Marcuse Eros e Civilização não pode ser compreendida fora do contexto

teórico ao qual ela pertence. As tentativas de interpretação da obra de Marcuse analisadas

aqui neste trabalho se mostraram problemáticas justamente por omitir esta referência.

É por isso que, no capítulo um, fizemos um esforço em apresentar a teoria crítica

e mostrar a relação que ela possui com a teoria freudiana, antes mesmo de abordarmos a

obra analisada. Esta retomada do contexto teórico de Marcuse, a teoria crítica, permitiu

compreendermos que a teoria freudiana é abordada a partir de uma perspectiva muito

singular, como tentaremos mostrar no decorrer desta conclusão.

Podemos perceber que, em resposta às polêmicas suscitadas pelas críticas de P.

Robinson, de J. Laplanche e de B. Prado, utilizamos praticamente os mesmos argumentos,

apesar dos diferentes enfoques. Retomaremos de modo mais sistemático estes argumentos,

o que permitirá que tenhamos uma visão mais acabada e delimitada de nossas posições. A

questão que nos guiará neste trabalho de conclusão será a seguinte: o que há de comum nos

argumentos utilizados em resposta às críticas de Laplanche, B. Prado Jr. e Robinson?

Podemos dizer que, apesar da particularidade específica de cada uma das críticas

dirigidas a Marcuse, as três possuem em comum a idéia de que a interpretação marcuseana

da obra de Freud resulta em deformações no seu conteúdo. P. Robinson diz que, ao tentar

unir Marx e Freud, Marcuse introduz concepções históricas que são exteriores à teoria

freudiana, deformando as concepções de repressão e princípio de realidade , entre

outras; para Laplanche, ao omitir toda referência à clínica, Marcuse também deforma as

113

concepções fundamentais da psicanálise; e B. Prado afirma que, na tentativa de

fundamentar o verdadeiro objeto de desejo como sendo a constituição da comunidade

humana e solidária , Marcuse deforma as concepções de alvo e objeto freudianos, o

que torna incompreensíveis as figuras básicas da psicanálise.

Estes três autores não levam em conta o contexto em que se dá a interpretação de

Marcuse da obra freudiana. Marcuse tem um objetivo específico que somente em referência

ao contexto geral de seu pensamento é possível esclarecer. O pensamento de Marcuse

(assim como da teoria crítica de modo geral), possui uma preocupação central que o liga a

toda a tradição da história da filosofia: a preocupação com a felicidade humana. No

entanto, a noção de felicidade é redefinida, tendo em vista o novo contexto histórico

surgido com o desenvolvimento capitalista.

A questão da felicidade deve ser analisada tendo em vista a existência da

possibilidade real de libertação da luta pela existência, proporcionada pelo nível elevado de

desenvolvimento atingido pelas forças produtivas. É aqui que a teoria freudiana se vê

questionada, na medida em que ela afirma a impossibilidade da felicidade na civilização. A

noção de felicidade em Marcuse se refere a uma felicidade material, objetiva e universal :

somente estando livre da luta pela existência e que as necessidades básicas de

sobrevivência tenham sido saciadas, pode o indivíduo ser feliz; mais do que isso, somente

quando esta possibilidade é dada universalmente, para todos os indivíduos, ela é de fato

uma felicidade verdadeira .

Para Marcuse, a questão da felicidade só pode ser posta no atual estágio de

desenvolvimento técnico atingido pela sociedade. Por isso ele retoma a teoria freudiana e

põe em questão a relação estabelecida por Freud entre infelicidade e civilização. No

capítulo três apresentamos a crítica de Marcuse ao hedonismo, uma crítica que, como

114

pudemos observar, caminha na mesma direção. As distinções estabelecidas por Marcuse

entre verdadeiras e falsas necessidades e interesses, verdadeira e falsa felicidade,

mais-repressão e repressão , representam uma tentativa em tornar visível a contradição,

presente na sociedade contemporânea, entre a possibilidade anunciada de felicidade e a

realidade de sua não realização. Marcuse apreende os fatos da realidade em sua posição

dentro do processo de manutenção do sistema opressivo; isto é, em sua posição na

perpetuação desta contradição.

Com o conceito de dessublimação repressiva Marcuse caracteriza a sociedade de

massas contemporânea. Este conceito representa a dinâmica da sociedade que, por um lado,

possibilita maior liberdade e satisfação das necessidades e, por outro, esta liberdade atua

como dominação, pois impede que os indivíduos vejam seu mecanismo real. Nesta

sociedade, também chamada de sociedade de consumo de massas , a produção incessante

de mercadorias está aliada à produção de necessidades (que são, portanto, falsas

necessidades, pois não pertencem ao próprio indivíduo, mas à manutenção de um

determinado modo de produção): assim, estabelece-se um círculo de coesão progressiva ,

através da produção de mercadorias que não possuem em si mesmas um valor de uso real,

mas ilusório, pois não correspondem às necessidades efetivas dos indivíduos (e sim às

necessidades produzidas).

É neste contexto que a obra de Marcuse adquire seu significado singular. Podemos

perceber essa particularidade através da sua crítica ao revisionismo neofreudiano: é aqui

que Marcuse marca sua posição em relação às várias interpretações já realizadas do

pensamento de Freud, assim como tenta resgatar a função crítica da teoria freudiana.

Para Marcuse, a interpretação da teoria freudiana realizada pelo revisionismo omite

a contribuição fundamental de Freud para a teoria social contemporânea: a sua função

115

crítica . Na tentativa de resolver a oposição estabelecida por Freud entre felicidade e

civilização (entre indivíduo e sociedade) os revisionistas propõem uma solução individual

( uma solução falsa, mas fácil ); ou seja, para eles o indivíduo pode desenvolver suas

potencialidades e ser feliz na sociedade tal como está

eles eliminam toda oposição entre

indivíduo e sociedade. A idéia de um trabalho construtivo (desenvolvida no capítulo dois

deste trabalho), implica na possibilidade do trabalho, tal como ele se encontra, proporcionar

prazer: esta posição reflete um conformismo, pois omite o fato de que nesta sociedade o

trabalho é determinado, é trabalho alienado e que possui uma posição central no processo

de manutenção do sistema de dominação.

O problema da interpretação revisionista é a ausência de crítica da realidade. Seu

modo de interpretação é idealista-positivo : é idealista porque supõe que a sociedade

caminha para frente , rumo ao seu curso emancipatório; e é positivista porque não

questiona os fundamentos desta sociedade, tomando a realidade como ponto de partida para

sua interpretação

eles aceitam as premissas em que esta sociedade se baseia, sem mostrar

que a própria sociedade impede a realização destas.

Já Marcuse apresenta a realidade a partir de suas contradições: da confrontação

entre a possibilidade de realização das premissas enunciadas e a não realização dessas

premissas

esta é a crítica imanente . Ele propõe um rompimento com as premissas em

que esta sociedade se sustenta (por exemplo, trabalho , produtividade ,

responsabilidade , felicidade , liberdade , entre outras), fazendo sua crítica e mostrando

a posição dessas premissas na manutenção e perpetuação da dominação. É preciso apontar

para o fato de que a realização destas premissas é determinada por um modo de produzir

que impõe aos indivíduos a forma e o conteúdo de seus desejos e necessidades. Para ele é

preciso desmistificar a falsa consciência , a consciência reificada . que aceita

116

acriticamente o destino que lhe é determinado. A teoria precisa de conceitos críticos, que

apresentem as possibilidades que são negadas aos indivíduos e que desfaçam a aceitação da

má realidade . Os indivíduos precisam ver as contradições que foram obscurecidas na

aparente harmonia da sociedade unidimensional .

É aqui que a teoria freudiana revela toda sua força : ela fornece elementos para

romper com a aceitação desta forma alienada de sociedade, ao colocar em questão os

fundamentos da mesma.

A teoria freudiana se refere a uma concepção de indivíduo e de civilização que

possibilita sua utilização enquanto um instrumento de análise e de crítica da sociedade. O

pessimismo freudiano reflete uma postura essencialmente crítica de Freud para com o

processo civilizatório. Partindo da perspectiva individual, analisando o sofrimento, a

angústia, a infelicidade e as várias doenças psíquicas, Freud chega à conclusão de que esse

sofrimento é causado por uma civilização que nega, pela sua própria estrutura e

organização, a satisfação e a felicidade aos indivíduos. Ele descobriu na análise da doença

individual a doença geral da civilização. Ele preserva em suas concepções e conceitos a

realidade tal como ela se apresenta e não uma realidade idealizada. O indivíduo em Freud é

infeliz, reprimido, não possui autonomia, sendo determinado tanto num nível filogenético

(história da espécie), quanto ontogenético (história individual).

Este realismo pessimista (ou mesmo pessimismo crítico ) de Freud permite

romper com a cegueira frente a uma realidade opressiva, que se apresenta como

harmônica. Ao afirmar a oposição entre a satisfação das necessidades e desejos individuais

e as exigências da sociedade, Freud apresenta a realidade tal como ele a vê: em sua forma

alienada.

117

Entretanto, Freud aceita o destino inevitável da oposição entre felicidade e

civilização

e aqui a teoria freudiana se vê questionada com as transformações da

sociedade industrial. A interpretação de Marcuse da teoria freudiana implica na crítica

desse conteúdo estático presente em seus fundamentos. Esta crítica permite que Marcuse

apresente as contradições dessa nova forma assumida pela sociedade capitalista; ele aponta

para as possibilidades de libertação que lhe são intrínsecas e que são reais. Essa crítica

constitui uma démarche fundamental na obra Eros e Civilização.

Marcuse afirma que as categorias freudianas que definem o psiquismo e a

sociedade, assim como a relação entre ambos, não se sustenta mais na nova configuração da

sociedade. A noção de conflito é central em Freud, tanto no que se refere à formação

psíquica individual, quanto na relação entre as exigências de satisfação pulsional e a

sociedade. Este conflito foi contido pela sociedade unidimensional , pela sua capacidade

de integrar as forças antagônicas e a negação. As categorias freudianas tornaram-se

obsoletas na realidade atual. Entretanto, esta obsolescência das categorias freudianas

revela uma maior repressão e não maior liberdade. Se a teoria freudiana não pode mais

explicar, a partir de seus próprios conceitos, como se dá a relação entre o indivíduo e a

sociedade, é porque essa sociedade se transformou.

A crítica de Marcuse à teoria freudiana não pretende corrigi-la , mas mostrar que a

obsolescência de suas concepções reflete um movimento real da sociedade. O que

significa que as categorias freudianas se tornaram obsoletas ? Significa que elas foram

ultrapassadas e que não conseguem mais esclarecer os fatos psíquicos tais como eles se dão

na atual organização social. Entretanto, isto não significa que os processos descritos por

Freud tenham desaparecido: ele criou uma teoria da constituição psíquica universal. Se os

processos não se dão mais da mesma forma descrita por ele, no entanto, eles não

118

desapareceram: continuam existindo, mas sob outras formas e conteúdos, pois a sociedade

não eliminou a oposição entre o indivíduo e a civilização.

Ocorreu uma obsolescência empírica dos conceitos freudianos: eles não

possibilitam mais compreender a realidade social, pois esta foi transformada. Todavia, eles

guardam a verdadeira imagem do processo civilizatório, essencialmente oposto à

felicidade e às necessidades individuais.

Assim como a teoria freudiana, o materialismo marxista (ortodoxo) também se

tornou obsoleto na realidade atual. A idéia de que uma sociedade pode atingir um nível

mais elevado de desenvolvimento a partir da negação que se desenvolve no seu interior

como superação, é contestada por uma sociedade que absorve a negação. Esta teoria

subestimou as forças de integração e coesão que atuam na fase madura do capitalismo. A

obsolescência empírica do marxismo reflete um processo social (assim como a da teoria

freudiana), o que não implica que a teoria materialista deva ser substituída por uma nova

teoria, mas sim que ela não deve se manter estática frente às transformações da sociedade.

Neste estudo insistimos diversas vezes sobre a importância da relação entre o

marxismo e a teoria freudiana para a compreensão do pensamento de Marcuse. Negamos a

crítica de P. Robinson, segundo o qual Marcuse tentara unir Marx e Freud em Eros e

Civilização. Retomaremos aqui nossos argumentos.

Marcuse não tenta unir Marx e Freud em Eros e Civilização. Primeiramente porque

ele não busca formular uma teoria totalizadora: não basta corrigir estas teorias tornadas

obsoletas para que elas apreendam a realidade transformada. Esta correção só seria

possível se a realidade mesma fosse transformada. O marxismo e a teoria freudiana

funcionam como dois instrumentos de análise e crítica da sociedade contemporânea, pois

cada qual apresenta o processo de exploração e alienação de uma perspectiva: o marxismo,

119

a partir da perspectiva universal e, a psicanálise, a partir da perspectiva particular. Não há

como eliminar esta oposição entre o particular e o universal através de uma teoria

melhor , pois esta oposição reflete uma realidade contraditória, na qual a oposição entre

indivíduo e sociedade é mantida: ela não foi eliminada, mas apenas obscurecida.

Neste sentido, dizer que Marcuse tenta unir Marx e Freud é um grande erro, pois

elimina a relação de oposição entre indivíduo e sociedade que é insistentemente afirmada

por ele, tendo em vista que ele pretende criticar a sociedade unidimensional , uma

sociedade que absorve os antagonismos e contradições. É por isso que ele retoma a teoria

freudiana - nela esta oposição é mantida.

Entretanto, seria um engano afirmar que as duas teorias possuem o mesmo estatuto

no pensamento de Marcuse. Ele é um pensador marxista (não ortodoxo), que viu na teoria

freudiana a possibilidade de repensar o próprio marxismo (ortodoxo), introduzindo neste

uma preocupação com o indivíduo: aqui a teoria freudiana lhe fornece o suporte teórico.

Mas para se tornar uma teoria crítica a teoria freudiana precisa ser questionada e este

processo se dá através da crítica imanente aos seus conceitos, tendo em vista as

transformações históricas ocorridas

esta crítica elucida o movimento desses conceitos.

A teoria freudiana possibilita o objetivo de crítica somente decifrando a dialética

histórica de seus conceitos: assim ela pode dar origem a algo de novo e sua crítica à

civilização pode se tornar construtiva

ao contrário da interpretação revisionista, que

imobiliza a sua função crítica . Essa função crítica da teoria freudiana está na denúncia

do elo entre infelicidade e civilização: na medida em que os revisionistas afirmam a

possibilidade da felicidade na civilização (nesta civilização) e não questionam os seus

fundamentos, eles tornam-se ideológicos.

120

Em Eros e Civilização Marcuse procura mostrar que, apesar da aparente harmonia

presente na sociedade de massas contemporânea, esta sociedade é essencialmente

antagônica, na medida em que a produção de riqueza está essencialmente vinculada à

produção e expansão da miséria. Numa sociedade como esta, irracional, afirmar a

possibilidade da felicidade, do desenvolvimento livre das potencialidades individuais e da

personalidade (tal como afirmam os revisionistas) é uma injustiça tremenda, é tomar

partido para que a exploração e a pobreza continuem vigorando. É preciso fazer a crítica

desta sociedade, apresentando esta contradição imanente ao seu desenvolvimento. A

riqueza que esta sociedade possui permitiria eliminar a luta pela existência, a fome e a

miséria universalmente: entretanto, a não realização desta possibilidade revela a dominação

e a exploração sobre a qual esta sociedade se sustenta a harmonia é só aparente

Neste sentido Freud foi um crítico feroz da civilização, pois ele tinha consciência

do vínculo que une progresso e infelicidade. Se ele afirma a infelicidade como uma

condição necessária da civilização, é porque ele é muito mais humano do que aqueles que

crêem na possibilidade da felicidade se realizar nesta sociedade. Se a felicidade for

concebida apenas individualmente, ela é falsa. A felicidade, para Marcuse, é uma condição

que só pode ser concebida quando todos os indivíduos tiverem acesso às riquezas

produzidas pela sociedade da abundância e não apenas um grupo restrito de pessoas, e,

sobretudo, quando a produção desta riqueza não estiver mais vinculada ao aumento da

exploração e da miséria, à destruição do meio e dos seres humanos.

A utopia marcuseana formulada em Eros e Civilização pretende afirmar as

possibilidades de liberdade e felicidade existentes na civilização, que se encontram

obstruídas pelo sistema de dominação: ele quer que os indivíduos vejam a irracionalidade

do desenvolvimento da civilização, escondida na aparente racionalidade.

121

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