hamlet e a cartomante - Proceedings.science
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II Congresso Internacional de Estudos em Linguagem
UEPG – Ponta Grossa – PR 24 a 26 de Outubro de 2017
HAMLET E A CARTOMANTE: ANÁLISE INTERTEXTUAL COM FOCO
NA VINGANÇA E NAS CRENÇAS POPULARES
Ana Claudia de Campos (mestranda)- UNIANDRADE
Anna Stegh Camati (doutora, UNIANDRADE)
Resumo: A literatura, ao longo dos séculos, nos presenteia com obras atemporais e
marcantes, sendo que muitas delas não apenas são lidas, relidas e aclamadas, mas
também se tornam textos universais que inspiram outros escritores e ganham adaptações
nas mais diversas mídias. Para elaboração do presente artigo escolhemos uma das peças
mais conhecidas da literatura universal: Hamlet, príncipe da Dinamarca (1601),
tragédia escrita por William Shakespeare, e suas relações intertextuais com o conto “A
cartomante” (1884), de Machado de Assis, com o objetivo de analisar os temas da
vingança e crenças populares, aspectos presentes nas obras. Diferentemente de
Shakespeare, que utilizou diversos textos-fonte para criar sua obra prima, Machado de
Assis insere em seu conto apenas algumas referências que dialogam com o universo de
Hamlet. A intertextualidade temática e alusiva entre as duas obras será embasada com
as considerações teóricas de Gérard Genette, Linda Hutcheon, Robert Stam e outras.
Outrossim, as questões referentes à vingança e às crenças populares serão iluminadas
por preceitos filosóficos de Friedrich Wilhelm Nietzsche, Jean-Paul Sartre e Theo
Machado Fellows.
Palavras-chave: Intertextualidade, Vingança, Crenças populares.
Abstract: Throughout the centuries, literature presents us with timeless and outstanding
works, which are not only read, reread and acclaimed, but also become universal texts
that inspire other writers and gain adaptations in the most diverse media. For the
elaboration of the present article we have chosen one of the best known pieces of
universal literature: Hamlet, prince of Denmark (1601), a tragedy written by William
Shakespeare, and its intertextual relations with the tale “A Cartomante” (1884), by
Machado de Assis, aiming at analyzing the themes of vengeance and popular beliefs,
aspects present in both works. Unlike Shakespeare, who used several source texts to
create his masterpiece, Machado de Assis inserts in his tale only a few references that
dialogue with the universe of Hamlet. The thematic and allusive intertextuality between
the two works will be based on the theoretical considerations of Gérard Genette, Linda
Hutcheon, Robert Stam, among others. Furthermore, questions regarding vengeance and
popular beliefs will be illuminated by philosophical precepts by Friedrich Wilhelm
Nietzsche, Jean Paul Sartre, and Theo Machado Fellows.
Key-words: Intertextuality, Vengeance, Popular beliefs.
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Introdução: diálogos entre textos
A literatura, ao longo dos séculos, nos presenteia com obras atemporais e
marcantes, sendo que muitas delas não apenas são lidas, relidas e aclamadas, mas
também se tornam textos universais que inspiram outros escritores e ganham adaptações
nas mais diversas mídias. Desta forma, torna-se praticamente impossível afirmarmos
que um texto é totalmente original, visto que ele é constituído por outros textos
anteriores; sempre há uma espécie de diálogo entre os textos. Assim,
[...] o texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Somente neste
ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o posterior como o
anterior, juntando dado texto a um diálogo. Enfatizamos que esse contato é um contato
dialógico entre textos... por trás desse contato está um contato de personalidades e não
de coisas. (BAKHTIN citado em KOCH et al, 2008, p. 9)
Quando iniciamos a leitura do conto “A Cartomante”, de Machado de Assis,
imediatamente percebemos a presença da intertextualidade. O referido conto inicia
citando a conhecida frase da tragédia shakespeareana Hamlet, príncipe da Dinamarca,
quando o narrador, em terceira pessoa, expõe que “Hamlet observa a Horácio que há
mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia” (ASSIS, 2009, p. 31).
Verifica-se, portanto, já no início do conto, a intenção do renomado escritor brasileiro
de trazer ao seu leitor uma obra bastante conhecida. A peça Hamlet foi referenciada em
inúmeros textos, representada em teatros incontáveis vezes e adaptada para o cinema em
muitas oportunidades. Talvez a frase mais conhecida da literatura seja justamente uma
das falas de Hamlet: “to be or not to be, that is the question” (SHAKESPEARE, 2013,
p. 812). Para muitos teóricos que abordam o assunto, como Linda Hutcheon (2011), a
homenagem à obra e/ou ao autor ou seu questionamento são possibilidades de intenções
presentes nas adaptações e nos intertextos. No trecho citado abaixo, Robert Stam
esclarece que o termo intertextualidade foi utilizado de maneira mais estrita por
Genette:
Tomando como ponto de partida as obras de Bakhtin e Kristeva, Gérard Genette, em
Palimpsestes (1982), propôs o termo mais inclusivo “transtextualidade, para referir-se a
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“tudo aquilo que coloca um texto em relação, manifesta ou secreta, com outros textos”.
Genette postula cinco tipos de relações transtextuais. Define intertextualidade, de
maneira mais estrita do que Kristeva, como a “co-presença efetiva de dois textos, na
forma de citação, plágio ou alusão. (STAM, 2012, p. 231, negrito nosso)
Ao abordar a intertextualidade de co-presença, Koch, Bentes e Cavalcante
salientam que “a menção direta aos personagens constitui um caso de intertextualidade
explícita por referência, ao passo que a remissão indireta à obra a que as entidades
pertencem é um caso de intertextualidade explícita por alusão” (2008, p. 125).
A citação explícita presente no conto machadiano menciona o nome de dois
personagens da peça de Shakespeare: Hamlet e Horácio. Além disso, o nome de um dos
personagens citados, Hamlet, ainda está presente no título da obra, sendo possível,
portanto, verificarmos a “intertextualidade explícita por referência”. Também
encontramos a “intertextualidade explícita por alusão” na narrativa machadiana. Na
peça, o Rei Hamlet, em conversa com o filho, informa que não foi morto pela picada de
uma serpente, mas envenenado pelo irmão Claudius, que pingou veneno em seu ouvido
enquanto ele dormia no jardim. No conto, o narrador faz menção à serpente e ao
veneno: “Rita, como uma serpente, (...) envolveu-o todo, (...) e pingou-lhe o veneno na
boca” (ASSIS, 1996, p. 35).
Feitas essas considerações iniciais demonstrando alguns aspectos da
intertextualidade, passaremos à análise das referidas obras com enfoque na vingança e
nas crenças populares presentes em ambas.
1 Vingança e crenças populares
A peça trágica Hamlet, príncipe da Dinamarca, foi escrita por William
Shakespeare provavelmente entre 1599 e 1601. Traduzida para inúmeros idiomas, é
uma história conhecida por muitas pessoas, inclusive por quem sequer chegou a ler a
peça, devido à força impactante de seu enredo e desenlace e também aos inúmeros
textos posteriores que adaptaram a obra, independente da mídia adotada. Fellows expõe
que “Shakespeare representa a liberdade do gênio em oposição à fórmula
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preestabelecida para a composição de boas tragédias, supostamente deixada por
Aristóteles para a posteridade em sua Poética”(FELLOWS, 2001, p.7).
O personagem Hamlet, príncipe da Dinamarca, simulou a própria loucura na
tentativa de desvendar a morte do pai, o Rei Hamlet, cujo espectro apareceu para ele
anunciando que foi envenenado por Claudius, tio do protagonista, que, após se casar
com Gertrude, mãe de Hamlet, assumiu o trono no lugar do irmão.
Os fatos relatados pelo falecido pai geraram em Hamlet uma espécie de obsessão,
não apenas de desejo de vingança como também de necessidade de comprovação dos
fatos, visto que a dúvida o consumia. Agregado à arquitetura da vingança, temos todo
um drama psicológico do personagem, encerrando-se a obra com um trágico desfecho,
uma vez que Gertrude, Laertes (filho de Polonius), Claudius e Hamlet morrem no final,
isso depois de já terem morrido Polonius e sua filha Ophelia no desenrolar da peça.
A inteligência e a meticulosidade com que Hamlet iniciou seu plano de vingança
atingiram seu ponto alto no momento em que fez uso do teatro dentro da própria peça
(representação, pelos atores que chegaram ao castelo, a pedido do príncipe Hamlet, da
cena do assassinato, agora modificada – ao invés do fratricídio, é o sobrinho que mata o
tio), sendo de excepcional sutileza e maestria. Ocorre, entretanto, que Hamlet perdeu o
controle da situação no decorrer da história, devido às adversidades e a uma infinidade
de aspectos psicológicos que norteiam o homem e que o absorveram, sendo que acabou
envolvendo inocentes em seu plano, acarretando na morte não apenas do assassino de
seu pai como também de pessoas que ele amava e dele próprio. O plano de vingança
preponderou e tomou conta da mente do príncipe, que passou a vivê-lo intensamente e,
apesar do aparente controle do herói sobre os fatos, ele sofreu com a imprevisão de
acontecimentos alheios à sua vontade, como a morte de Ophelia e de Polonius,
perfazendo-se a máxima de que o ser humano é frágil e, por mais inteligência, ousadia e
manipulação aparente que possa dispensar sobre as situações, não é capaz de prever e
controlar tudo ao seu redor, já que suas atitudes geram consequências e afetam outras
pessoas envolvidas.
May (s/d), referenciando Arthur Miller, salienta que o personagem trágico “é
aquele que está pronto a entregar sua vida, se preciso for, para garantir senso da própria
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dignidade. E o direito trágico é uma condição de vida, segundo a qual a personalidade
humana é capaz de florescer e realizar-se” (MAY, s/d, p. 69).
Analisando alguns aspectos acerca da condição humana nas obras de Shakespeare,
Fellows expõe:
É bastante comum ouvirmos falar de um humanismo nascente dentro das obras de
Shakespeare. Seus dramas primam pela capacidade de expor, com o brilho poético
inigualável, os conflitos internos vivenciados por uma subjetividade ainda frágil, porém
consciente de seus dilemas. Certamente, Hamlet é o melhor exemplo desta habilidade
shakespeariana, uma das grandes responsáveis, até hoje, pelo culto que se presta ao
poeta elisabetano. À nossa análise, contudo, interessa mais investigar os momentos de
fragilidade deste sujeito ainda em vias de desenvolvimento. É consenso, em qualquer
definição de tragédia, que esta só pode surgir de um mundo submetido a profundas
transformações. Shakespeare, arauto cênico do homem moderno, nos deixou, em seu
vasto legado, uma enorme gama de olhares sobre estas transformações (FELLOWS,
2011, p. 8).
Hamlet reflete a antítese do homem que carrega os vícios e as virtudes, pois é um
homem extremamente inteligente, astuto, justo, amável, mas que também traz consigo o
ódio e o desejo de vingança, sentimentos que acabam destruindo a ele próprio,
revelando a efemeridade do homem no universo. Ele representa a diversidade de
sentimentos e condutas típicas do ser humano, a máxima de que o homem não é
totalmente bom ou mau, mas bom e mau, dependendo da situação e das adversidades,
sendo também influenciável e deixando-se levar por condutas que, mesmo racionais,
misturam-se aos sentimentos e desejos. Temos, em Hamlet, príncipe da Dinamarca,
uma tragédia psicológica que apresenta um herói fragmentado. Para Fellows, “Naquilo
que muitas vezes nomeou-se a “hesitação” de Hamlet em vingar a morte do pai, o que
vemos é o nascimento de uma consciência reflexiva, que retira o herói do fluxo da ação
para abrir uma pequena clareira concedida à liberdade humana” (FELLOWS, 2011, p.
8).
No conto machadiano “A Cartomante”, de 1884, a vingança perfaz-se também em
decorrência de traição. Camilo, amigo de Vilela, o traiu com Rita, esposa deste.
Diversamente da peça ora analisada, na qual Claudius matou seu irmão para
posteriormente casar com Gertrute e então assumir o trono, no conto a traição conjugal
é que levou aos assassinatos. Hamlet pretendia matar seu tio por vingança, pela
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necessidade pessoal de tentar fazer justiça à morte do pai, enquanto Vilela matou a
esposa e o amigo amante para fazer justiça pessoal, vingar sua própria honra e seu
orgulho ferido.
Além de o conto iniciar, como já mencionamos anteriormente, com a citação de
uma frase da peça shakespeariana, quando o narrador, em terceira pessoa, expõe que
“Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa
filosofia” (ASSIS, 1996, p. 31), ao se referir à explicação que Rita dava a Camilo, logo
em seguida novamente a retoma, contando sobre a conversa entre os amantes: “Foi
então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita
cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o
certo é que a cartomante adivinhava tudo” (ASSIS, 1996, p. 32).
Percebemos, com a citação supra, a superstição da personagem Rita, sua crença na
adivinhação da cartomante, o que inicialmente não era pactuado pelo amante, que
somente depois de se sentir angustiado e amedrontado com a possibilidade de seu amigo
ter descoberto a traição, apelou às previsões da cartomante e se sentiu reconfortado e
novamente seguro com o que ela lhe disse. Já na obra de Shakespeare encontramos um
alto grau de menções sobrenaturais, religiosas, típicas da época, a iniciar pela aparição
do espectro, o qual relatou a verdade sobre sua própria morte, fator indispensável na
peça, que gerou toda a sequência de atos e as incertezas no cético príncipe. Um exemplo
desse caráter relativo à crença religiosa, especificamente acerca da visão do inferno, é a
fala do espectro quando encontrou Hamlet e começou a relatar o motivo de sua
aparição. Antes de apresentar os fatos, informou: “está quase na hora de eu voltar às
torturantes chamas do enxofre” (SHAKESPEARE, 1997, p. 26), remetendo-nos ao
inferno como lugar quente, com fogo, e de odor desagradável, visão que até hoje se faz
presente. E ainda: “Eu sou a alma do teu pai, condenada a andar vagabunda durante um
determinado período da noite, e a jejuar no inferno de dia, até que os crimes de que me
manchei durante a vida natural sejam apagados pelas chamas da purificação”
(SHAKESPEARE, 1997, p. 26).
Hamlet, em vários momentos da peça, em suas falas, invoca a Deus e manifesta
suas possíveis crenças religiosas: “(...) Se o Eterno não tivesse erguido a sua lei contra o
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suicídio! Deus! Meu Deus! (...)” (SHAKESPEARE, 1997, p. 19). Mesmo com suas
possíveis crenças embaralhadas com seu ceticismo e após a loucura e o suicídio de
Ophelia, a quem Hamlet supostamente amava, este não desistiu do seu plano de
vingança, cujo desenlace levou ele próprio a óbito.
No célebre solilóquio de Hamlet está presente o martírio de viver e aturar males e
injustiças, bem como o receio do pós-morte, por ser algo desconhecido:
Ser ou não ser... Eis o problema. Será mais nobre suportar as pedradas e as flechadas de
uma fortuna cruel, ou pegar em armas contra um mundo de sofrimentos e, resistindo,
acabar com eles? Morrer, dormir, nada mais, e com o sono dizer que demos cabo da
aflição no coração e as demais enfermidades naturais da carne: [...] Quem quereria suar
e praguejar sob o fardo de uma vida ingrata, não fosse pelo receio das terras incógnitas
do além, país do qual ninguém jamais voltou? Eis o que estorva a vontade e nos decide
a suportar os males que sofremos, com medo de enfrentarmos outros que não
conhecemos. Eis porque a consciência faz de todos nós covarde (SHAKESPEARE,
1997, p. 48, negritos nossos).
A morte seria o fim das aflições sofridas em vida? E o desconhecido a ser
enfrentado depois que a vida acaba, seria pior? Hamlet, martirizado pelo que a vida lhe
reservou, sofria com os mistérios que imaginava haver entre o céu e a terra. Sob a ótica
da doutrina existencialista, o homem é responsável por todos os seus atos e as
consequências geradas. Para Sartre, “é preciso que o homem se reencontre e se
convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem mesmo uma prova válida da
existênica de Deus” (SARTRE, 1970, p. 18). Hamlet, repleto de dúvidas e obstinado
pela vingança, não conseguiu salvar-se das consequências de seus atos.
Em “A Cartomante”, a crença é direcionada ao poder humano de previsão do
futuro, de adivinhação; o divino não se faz presente, mas os mistérios que o futuro nos
reserva, sim. Camilo, inicialmente, ironizou a crença de Rita no poder de previsão da
cartomante, todavia, quando se viu desesperado ao receber o bilhete de Vilela com a
inscrição “Vem já, já em nossa casa; preciso falar-te sem demora” (ASSIS, 1996, p. 36),
cogitando que o amigo poderia ter descoberto a traição, não se prendeu à ciência ou à
religião, mas se entregou à curiosidade e procurou a cartomante, como se ela fosse sua
salvação naquelas circunstâncias. Quando a cartomante inicia dizendo “O senhor tem
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um grande susto” (ASSIS, 1996, p. 39), o narrador prontamente informa que Camilo
ficou maravilhado com a adivinhação e respondeu afirmativamente. Após a declaração
da “vidente” de que ele poderia ficar tranquilo porque nada aconteceria, Camilo diz a
ela que sua paz de espírito foi restituída, paga-lhe considerável quantia e sai rindo de
seus receios anteriores. Bastaram as palavras positivas e acalentadoras da cartomante
para que toda a aflição de Camilo desaparecesse e ele seguisse ao encontro do amigo
traído sem mais achar que as palavras constantes no bilhete poderiam sugerir que Vilela
teria descoberto o caso entre os amantes. Passou, inclusive, a achar que o incidente
poderia ser útil para retomar a assiduidade perdida, visto que deixou de ir à casa do
amigo e cultivar a amizade devido à traição e receio de que ele pudesse suspeitar.
Quando chegou à casa de Vilela, este, com “as feições decompostas” (ASSIS, 1996, p.
42), após já ter matado Rita, que foi vista “morta e ensanguentada” por Camilo, pegou o
então amigo “pela gola e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão” (ASSIS,
1996, p. 42).
O conto termina com as últimas palavras transcritas no parágrafo anterior.
Camilo, acreditando na previsão da cartomante, seguiu tranquilo para a casa de Vilela,
onde foi assassinado. Vilela matou por vingança quem o traiu. Hamlet, na tentativa de
vingança, morreu, mas enquanto estava ferido, esperando partir para o outro plano, o
plano divino, de mistério, da eternidade, fez um discurso em prol da honra e avisou a
Horácio que estava morrendo, vinculando a ideia de que a morte traria felicidade,
quando disse: “evita por mais algum tempo a felicidade e continua respirando a tua
dor neste mundo sofrido, para contar a minha história” (SHAKESPEARE, 1992, p. 96,
negritos nossos).
Novamente retomando o conto, após Camilo sair da casa da cartomante, já
aliviado e tranquilo, o narrador relata que “ao passar pela Glória, Camilo olhou para o
mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve
assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável” (ASSIS, 1996, p. 42). A
“Glória”, o abraço infinito do céu e da água, o futuro longo e interminável, anunciam
uma passagem de plano, o fim da vida de Camilo, que caminhava rumo ao seu
desfecho, também misterioso.
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2 Considerações finais
O ser humano, embora muito estudado e retratado em obras científicas e literárias,
não é facilmente explicável. Muitas vezes executa ações acerca das quais
posteriormente se arrepende; nem sempre entende suas próprias atitudes, seus desejos,
seus medos; age inúmeras vezes por impulso, movido por ódio ou paixão, ou ainda com
extrema racionalidade. Em obras literárias encontramos a magia da representação do ser
humano com todos os seus defeitos e suas virtudes. Na tragédia ou no realismo, na
crença em forças superiores ou no poder do próprio homem, a literatura retrata as
fraquezas humanas, que se repetem, assim como as obras intertextuais.
[...] o texto como lugar de constituição e de interação de sujeitos sociais, como evento,
portanto, em que convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais [...] ações por meio
das quais se constroem interativamente os objetos-de-discurso e as múltiplas propostas
de sentidos, como função de escolhas operadas pelos co-enunciadores entre as inúmeras
possibilidades de organização que cada língua lhes oferece... construto histórico e
social, extremamente completo e multifacetado... (KOCH et al., 2008, p. 13).
Nietzsche (2006), no fragmento 19 da obra A gaia ciência, no qual fala sobre o
mal, indaga se poderia ser realmente possível haver um “grande crescimento, mesmo na
virtude”, se os sentimentos considerados negativos, como “toda espécie de ódio, de
inveja, de teimosia, de desconfiança, de dureza, de avidez, de violência” (NIETZSCHE,
2006, p. 54-55) não existissem.
Ninguém é, a todo tempo, totalmente forte ou plenamente correto, cumpridor e
seguidor de normas legais e morais sem o mínimo deslize. De acordo com Sartre, “O
homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo” (SARTRE, 1970, p. 4).
Sartre ainda expõe que a liberdade de que o homem dispõe acaba sendo uma espécie de
condenação, pois sua liberdade acarreta na responsabilidade por tudo que faz.
[...] o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e,
como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo
que faz. O existencialismo não acredita no poder da paixão. Ele jamais admitirá que
uma bela paixão é uma corrente devastadora que conduz o homem, fatalmente, a
determinados atos, e que, consequentemente, é uma desculpa. Ele considera que o
homem é responsável pela sua paixão. (SARTRE, 1970, p. 7)
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Retomando os textos analisados, constatamos que o ser humano, independente das
crenças que possua e dos períodos históricos retratados na literatura, é dotado de
sentimentos e comportamentos que se repetem. Hamlet deseja vingar a morte do pai e
com isso também sentir-se vingado e acabar com a podridão que se vislumbra no reino.
Simula sua loucura para seguir com seu plano e, mesmo após a morte de Ophelia e de
Polonius, não desiste de seu plano, que o leva ao fim de sua própria vida. Vilela, após
descobrir que foi traído pela esposa e pelo amigo, os executa, vingando, assim, sua
honra. Em ambas as histórias, com as peculiaridades já apontadas, temos a
concretização da vingança e as mortes decorrentes, a representação da condição
humana, do indivíduo que ama, que trai, que sente medo, que sofre, que morre. Os
séculos passam, os meios mudam, as crenças se alteram, a literatura se transforma e o
ser humano permanece essencialmente com os mesmos vícios e virtudes, com
sentimentos turbulentos, o que faz com que grandes obras permaneçam sempre atuais.
Referências
ASSIS, Machado de. A cartomante. In: Contos – Machado de Assis. 5ª ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 31-42.
FELLOWS, Theo. “Eu cometi o ato”: sobre o trágico no Macbeth de
Shakespeare. In Viso – Cadernos de Estética Aplicada, n. 10, p. 71-84, jan.-
dez.2011. Disponível em
<http://www.revistaviso.com.br/pdf/Viso_10_TheoFellows.pdf>. Acesso em: 7
jul. 2017, 21h30.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel.
2ª edição. Florianópolis: UFSC, 2011.
KOCH, Ingedore G. Villaça et al. Intertextualidade: diálogos possíveis. 2ª
edição. São Paulo: Cortez, 2008.
MAY, Rollon. O homem à procura de si mesmo. Tradução de Aurea Brito
Weissenberg. 33ª ed. Petrópolis: Vozes, s/d.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Antonio Carlos
Braga. São Paulo: Escala, 2006.
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SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Rita
Correia Guedes. Paris: Les Éditions Nagel, 1970.
SHAKESPEARE, William. Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução de
Mario Fondelli. Curitiba: Posigraf, 1997.
SHAKESPEARE, William. Hamlet, prince of Denmark. In: The complete
illustrated works of William Shakespeare. China: Bounty Books, 2013. p. 799-
831.
STAM, Robert. Do texto ao intertexto. In Intermidialidade e estudos
interartes: desafios da arte contemporânea. Organizadora Taïs Flores
Nogueira Diniz. Belo Horizonte: UFMG, 2012. p. 225-236.
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