Foucault, michel. o sujeito e o poder

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Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow MICHEL FOUCAULT Uma Trajetória Filosófica Para além do estruturalismo e da hermenêutica Tradução: Vera Porto Carrero Introdução: Traduzida por Antonio Carlos Maia

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Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow

MICHEL FOUCAULTUma TrajetóriaFilosófica

Para além doestruturalismo e da

hermenêutica

Tradução: Vera Porto CarreroIntrodução: Traduzida por

Antonio Carlos Maia

hiFOPÉNSÉ UNIVERSITÁRIA

O Sujeito e o PoderFOUCAULT, Michel.

I

Por que estudaro poder: a questão do sujeito1

As idéias que eu gostaria de discutir aqui nãorepresentam nem uma teoria nem uma metodologia.

Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu

trabalho nos últimos vinte anos. Não foi analisar ofenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de talanálise.

Meu objetivo, ao contrário, foi criar umahistória dos diferentes modos pelos quais, em nossacultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos. Meutrabalho lidou com três modos de objetivação quetransformam os seres humanos em sujeitos.

O primeiro é o modo da investigação, que tentaatingir o estatuto de ciência, como, por exemplo, aobjvetivação do sujeito do discurso na grammairegénérale,1 na filologia e na linguística. Ou, ainda, aobjetivação do sujeito produtivo, do sujeito quetrabalha, na análise das riquezas e na economia. Ou,um terceiro exemplo, a objetivação do simples fato deestar vivo na história natural ou na biologia.

Na segunda parte do meu trabalho, estudei aobjetivação do sujeito naquilo que eu chamarei de"práticas divisoras". O sujeito é dividido no seuinterior e em relação aos outros. Este processo oobjetiva. Exemplos: o louco e o são, o doente e osadio, os criminosos e os "bons meninos".

1 Este texto foi escrito em inglês por Michel Foucault.

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I      Em francês, no original (N. do T.).

Finalmente, tentei estudar — meu trabalho atual— o modo pelo qual um ser humano torna-se um sujeito.Por exemplo, eu escolhi o domínio da sexualidade —como os homens aprenderam a se reconhecer comosujeitos de "sexualidade".

Assim, não é o poder, mas o sujeito, queconstitui o tema geral de minha pesquisa.

É verdade que me envolvi bastante com a questãodo poder. Pareceu-me que, enquanto o sujeito humano écolocado em relações de produção e de significação, éigualmente colocado em relações de poder muitocomplexas. Ora, pareceu-me que a história e a teoriaeconômica forneciam um bom instrumento para asrelações de produção e que a lingüística e asemiótica ofereciam instrumentos para estudar asrelações de significação; porém, para as relações dopoder, não temos instrumentos de trabalho. O únicorecurso que temos são os modos de pensar o poder combase nos modelos legais, isto é: o que legitima opoder? Ou então, modos de pensar o poder de acordocom UM modelo institucional, isto é: o que é o Estado?

Era, portanto, necessário estender as dimensõesde uma definição de poder se quiséssemos usá-la aoestudar a objetivação do sujeito.

Será preciso uma teoria do poder? Uma vez queuma teoria assume uma objetivação prévia, ela nãopode ser afirmada como uma base para um trabalhoanalítico. Porém, este trabalho analítico não podeproceder sem uma conceituação dos problemas tratados,conceituação esta que implica um pensamento crítico —uma verificação constante.

A primeira coisa a verificar é o que eu deveriachamar de "necessidades conceituais". Eu compreendoque a conceituação não deveria estar fundada numateoria do objeto — o objeto conceituado não é o únicocritério de uma boa conceituação. Temos que conheceras condições históricas que motivam nossaconceituação. Necessitamos de uma consciênciahistórica da situação presente.

A segunda coisa a ser verificada é o tipo derealidade com a qual estamos lidando.

Certa vez, um escritor expressou, num jornalfrancês bem conhecido, sua surpresa: "Por que a noçãode poder é discutida por tantas pessoas hoje em dia?Trata-se de um tema tão importante? É ela tãoindependente que pode ser discutida sem se levar emconsideração outros problemas?"

A surpresa deste escritor me surpreende. Nãoacredito que esta questão tenha sido levantada pela

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primeira vez no século XX. De qualquer maneira, nãose trata, para nós, apenas de uma questão teórica,mas de uma parte de nossa experiência. Gostaria demencionar duas "formas patológicas" — aquelas duas"doenças do poder" — o fascismo e o estalinismo. Umadas numerosas razões pelas quais elas são, para nós,tão perturbadoras é que, apesar de sua singularidadehistórica, elas não são originais. Elas utilizam eexpandem mecanismos já presentes na maioria dassociedades. Mais do que isto: apesar de sua próprialoucura interna, utilizaram amplamente as idéias e osartifícios de nossa racionalidade política.

O que necessitamos é de uma nova economia dasrelações de poder — entendendo-se economia num sentidoteórico e prático. Em outras palavras: desde Kant, opapel da filosofia é prevenir a razão de ultrapassaros limites daquilo que é dado na experiência; porém,ao mesmo tempo — isto é, desde o desenvolvimento doEstado moderno e da gestão política da sociedade —, opapel da filosofia é também vigiar os excessivospoderes da racionalidade política. O que é, aliás,uma expectativa muito grande.

Todos têm consciência de tais fatos tão banais.Porém, o fato de serem banais não significa que nãoexistam. O que temos que fazer com eles é descobrir —ou tentar descobrir — que problema específico etalvez original a eles se relaciona.

A relação entre a racionalização e os excessosdo poder político é evidente- E não deveríamosprecisar esperar pela burocracia ou pelos campos deconcentração para reconhecer a existência de taisrelações. Mas o problema é: o que fazer com um fatotão evidente?

Devemos julgar a razão? Em minha opinião, nadaseria mais estéril. Primeiro, porque o campo a sertrabalhado não tem nada a ver com a culpa ou ainocência. Segundo, porque não tem sentido referir-seà razão como uma entidade contraria à não-razão. Porúltimo, porque tal julgamento nos condenaria arepresentar o papel arbitrário e enfadonho doracionalista ou do irracionalista.

Devemos investigar este tipo de racionalismoque parece específico da cultura moderna e que seorigina na Aufklärung?2 Acredito que esta foi aabordagem de alguns membros da Escola de Frankfurt.Meu objetivo, contudo, não é iniciar uma discussão emseus trabalhos, apesar de serem, na maior parte,importantes e valiosos. Ao contrário, eu sugeriria

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uma outra forma de investigação das relações entre aracionalização e o poder.

Seria mais sábio não considerarmos como um todoa racionalização da sociedade ou da cultura, masanalisá-la como um processo em vários campos, cada umdos quais com uma referência a uma experiênciafundamental: loucura, doença, morte, crime,sexualidade etc.

Considero a palavra racionalização perigosa. O quedevemos fazer é analisar racionalidades específicasmais do que evocar constantemente o progresso daracionalização em geral.

A despeito da Aufkfärung ter sido uma fase muitoimportante da nossa história e do desenvolvimento datecnologia política, acredito termos que nos referira processos muito mais remotos se quisermos

compreender como fomos capturados em nossa própriahistória.

Gostaria de sugerir uma outra forma deprosseguir em direção a uma nova economia dasrelações de poder, que é mais empírica, maisdiretamente relacionada à nossa situação presente, eque implica relações mais estreitas entre a teoria ea prática. Ela consiste em usar as formas deresistência contra as diferentes formas de poder comoum ponto de partida. Para usar uma outra metáfora,ela consiste em usar esta resistência como umcatalisador químico de modo a esclarecer as relaçõesdc poder, localizar sua posição, descobrir seu pontode aplicação e os métodos utilizados. Mais do queanalisar o poder do ponto de vista de suaracionalidade interna, ela consiste em analisar asrelações de poder através do antagonismo dasestratégias.

Por exemplo, para descobrir o que significa, nanossa sociedade, a sanidade, talvez devêssemosinvestigar o que ocorre no campo da insanidade; e oque se compreende por legalidade, no campo dailegalidade. E, para compreender o que são asrelações de poder, talvez devêssemos investigar asformas de resistência e as tentativas de dissociarestas relações.

Para começar, tomemos uma série de oposiçõesque se desenvolveram nos últimos anos: oposição aopoder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre osfilhos, do psiquiatra sobre o doente mental, da

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2        Em alemão no original (N. do T.).

medicina sobre a população, da administração sobre osmodos de vida das pessoas.

Não basta afirmar que estas são lutasantiautoritárias; devemos tentar definir maisprecisamente o que elas têm em comum.1) São lulas "transversais"; isto é, não sãolimitadas a um país. Sem dúvida, desenvolvem-se maisfacilmente e de forma mais abrangente em certospaíses, porém não estão confinadas a uma formapolítica e econômica particular de governo.2) O objetivo destas lutas são os efeitos depoder enquanto tal. Por exemplo, a profissão médicanão é criticada essencialmente por ser umempreendimento lucrativo, porém, porque exerce, umpoder sem controle, sobre os corpos das pessoas, suasaúde, sua vida e morte.3) São lutas "imediatas" por duas razões. Emtais lutas, criticam-se as instâncias de poder quelhes são mais próximas, aquelas que exercem sua açãosobre os indivíduos. Elas não objetivam o "inimigomor", mas o inimigo imediato. Nem esperam encontraruma solução para seus problemas no futuro (isto é,liberações, revoluções, fim da luta de classe). Emrelação a uma escala teórica de explicação ou umaordem revolucionária que polariza o historiador, sãolutas anárquicas.

Porém, estes não são seus aspectos maisoriginais; os que se seguem me parecem maisespecíficos:

4)São lutas que questionam o estatuto doindivíduo: por um lado,afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudoaquilo que toma osindivíduos verdadeiramente individuais. Por outrolado, atacam tudo aquiloque separa o indivíduo, que quebra sua relação com osoutros, fragmenta a vida comunitária, força oindivíduo a se voltar para si mesmo e o liga a suaprópria identidade de um modo coercitivo.

Estas lutas não são exatamente nem a favor nemcontra o "indivíduo"; mais que isto, sãobatalhas contra o "governo daindividualização".

5)São uma oposição aos efeitos de poderrelacionados ao saber, acompetência e à qualificação: lutas contra osprivilégios do saber. Porém, são

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também uma oposição ao segredo, à deformação e àsrepresentações mistificadoras impostas às pessoas.

Não há nada de "cientificista" nisto (ou seja,uma crença dogmática no valor do saber científico),nem é uma recusa cética ou relativista de todaverdade verificada. O que é questionado é a maneirapela qual o saber circula e funciona, suas relaçõescom o poder. Em resumo, o regime du savoir.3

6)Finalmente, todas estas lutas contemporâneasgiram em torno daquestão: quem somos nós? Elas são uma recusa a estasabstrações, do estadode violência econômico e ideológico, que ignora quemsomos individualmente, e também uma recusa de umainvestigação científica ou administrativa quedetermina quem somos.

Em suma, o principal objetivo destas lutas éatacar, não tanto "tal ou tal" instituição de poderou grupo ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica,uma forma de poder.

Esta forma de poder aplica-se à vida cotidianaimediata que categoriza o indivíduo, marca-o com suaprópria individualidade, liga-o à sua própriaidentidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemosreconhecer e que os outros têm que reconhecer nele. Éuma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos.Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito aalguém pelo controle e dependência, e preso à suaprópria identidade por uma consciência ouautoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poderque subjuga e toma sujeito a.

Geralmente, pode-se dizer que existem trêstipos de lutas: contra as formas de dominação(étnica, social e religiosa); contra as formas deexploração que separam os indivíduos daquilo que elesproduzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a simesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutascontra a sujeição, contra as formas de subjetivação esubmissão). Acredito que na história podemosencontrar muitos exemplos destes três tipos de lutassociais, isoladas umas das outras ou misturadas entresi. Porém, mesmo quando estão misturadas, uma delas,

na maior parte do tempo, prevalece. Por exemplo, nassociedades feudais, as lutas contra as formas dedominação étnica ou social prevaleciam, mesmo que aexploração econômica possa ter sido multo importantecomo uma das causas de revolta.

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3      Em francês no original (N. do T.).

No século XIX, a luta contra a exploração surgiu em primeiro plano.E, atualmente, a luta contra as formas de

sujeição — contra a submissão da subjetividade — estáse tornando cada vez mais importante, a despeito deas lutas contra as formas de dominação e exploraçãonão terem desaparecido. Muito pelo contrário.

Eu suponho que não é a primeira vez que a nossasociedade se confrontou com este tipo de luta. Todosaqueles movimentos dos séculos XV e XVI, e quetiveram a Reforma como expressão e resultado máximos,poderiam ser analisados como uma grande crise daexperiência ocidental da subjetividade, e como umarevolta contra o tipo de poder religioso e moral quedeu forma, na Idade Média, a esta subjetividade. Anecessidade de ter uma participação direta na vidaespiritual, no trabalho de salvação, na verdade querepousa nas Escrituras — tudo isto foi uma luta poruma novasubjetividade.

Eu sei que objeções podem ser feitas. Podemosdizer que todos os tipos de sujeição são fenômenosderivados, que são meras conseqüências de outrosprocessos econômicos e sociais: forças de produção,luta de classe e estruturas ideológicas quedeterminam a forma de subjetividade.

Sem dúvida, os mecanismos dc sujeição não podemser estudados fora de sua relação com os mecanismosde exploração e dominação. Porém, não constituemapertas o "terminal" de mecanismos mais fundamentais.Eles mantêm relações complexas e circulares comoutras formas.

A razão pela qual este tipo de luta tende aprevalecer em nossa sociedade deve-se ao fato de que,desde o século XVI, uma nova forma política de poderse desenvolveu de modo contínuo. Esta nova estruturapolítica, como todos sabem, é o Estado. Porém, amaior parte do tempo, o Estado é considerado um tipode poder político que ignora os indivíduos, ocupando-se apenas com os interesses da totalidade ou, eudiria, de uma classe ou um grupo dentre os cidadãos.

E isto é verdade. Mas eu gostaria de enfatizaro fato de que o poder do Estado (e esta é uma dasrazões da sua força) é uma forma de poder tantoindividualizante quanto totalizadora. Acho que nunca,na história das sociedades humanas — mesmo na antigasociedade chinesa —, houve, no interior das mesmasestruturas políticas uma combinação tão astuciosa das

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técnicas de individualização e dos procedimentos detotalização.

Isto se deve ao fato de que o Estado modernoocidental integrou, numa nova forma política, umaantiga tecnologia de poder, originada nasinstituições cristãs. Podemos chamar esta tecnologiade poder pastoral.

Antes de mais nada, algumas palavras sobre estepoder pastoral.

Dizia-se que o cristianismo havia gerado umcódigo de ética fundamentalmente diferentedaquele do mundo antigo. Em geral, enfatiza-se

menos o fato de que ele propôs e ampliou as novasrelações de poder no mundo antigo.

O cristianismo é a única religião a seorganizar como uma Igreja. E como tal, postula oprincípio de que certos indivíduos podem, por suaqualidade religiosa, servir a outros não comopríncipes, magistrados, profetas, adivinhos,benfeitores e educadores, mas como pastores. Contudo,esta palavra designa uma forma muito específica depoder.1) É uma forma de poder cujo objetivo final éassegurar a salvação individual no outro mundo.2) O poder pastoral não é apenas uma forma depoder que comanda; deve também estar preparado parase sacrificar pela vida e pela salvação do rebanho.Portanto, é diferente do poder real que exige umsacrifício de seus súditos para salvar o trono.3) É uma forma de poder que não cuida apenas dacomunidade como um todo, mas de cada indivíduo emparticular, durante toda a sua vida.4) Finalmente, esta forma de poder não pode serexercida sem o conhecimento da mente das pessoas, semexplorar suas almas, sem fazer-lhes revelar os seussegredos mais íntimos. Implica um saber daconsciência e a capacidade de dirigi-la.

Esta forma de poder é orientada para a salvação(por oposição ao poder politico). É oblativa (poroposição ao princípio da soberania); éindividualizante (por oposição ao poder jurídico); éco-extensiva à vida e constitui seu prolongamento;está ligada a produção da verdade — a verdade dopróprio indivíduo.

Mas podemos dizer que tudo isto faz parte dahistória; a pastoral, se não desapareceu, pelo menosperdeu a parte principal de sua eficácia.

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Isto é verdade, mas suponho que deveríamosdistinguir dois aspectos do poder pastoral — por umlado, a institucionalização eclasiástica, quedesapareceu ou pelo menos perdeu sua força desde oséculo XVIII, e, por outro, sua função, que seampliou e se multiplicou fora da instituiçãoeclesiástica.

Um fenômeno importante ocorreu no século XVIII— uma nova distribuição, uma nova organização destetipo de poder individualizante.

Não acredito que devêssemos considerar o"Estado moderno" como uma entidade que sedesenvolveu, acima dos indivíduos, ignorando o queeles são e até mesmo sua própria existência, mas, aocontrário, como uma estrutura muito sofisticada, naqual os indivíduos podem ser integrados sob umacondição: que a esta individualidade se atribuísseuma nova forma, submetendo-a a um conjunto de modelosmuito específicos.

De certa forma, podemos considerar o Estadocomo a matriz moderna da individualização ou uma novaforma do poder pastoral.

Algumas palavras mais sobre este poder pastoral.

1) Podemos observar uma mudança em seu objetivo.Já não se trata mais de uma questão de dirigir o povopara a sua salvação no outro mundo, mas, antes,assegurá-la neste mundo. E, neste contexto, a palavrasalvação tem diversos significados: saúde, bem-estar(isto é, riqueza suficiente, padrão de vida),segurança, proteção contra acidentes. Uma série deobjetivos "mundanos" surgiu dos objetivos religiososda pastoral tradicional, e com mais facilidade,porque esta última, por várias razões, atribuiu-sealguns destes objetivos como acessório; temos apenasque pensar no papel da medicina e sua função de bem-estar assegurados, por muito tempo, pelas Igrejascatólica e protestante.2) Concomitantemente, houve um reforço daadministração do poder pastoral. Às vezes, esta formade poder era exercida pelo aparelho do Estado ou,pelo menos, por uma instituição pública como apolícia. (Não nos esqueçamos de que a força policialnão foi inventada, no século XVIII, apenas paramanter a lei e a ordem, nem para assistir os governosem sua luta contra seus inimigos, mas para assegurara manutenção, a higiene, a saúde e os padrõesurbanos, considerados necessários para o artesanato e

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o comércio.) Outras vezes, o poder se exercia atravésde empreendimentos privados, sociedades para o bem-estar, de benfeitores e, de um modo geral, defilantropos. Porém, as instituições antigas como afamília eram igualmente mobilizadas, nesta época,para assumir funções pastorais. Também era exercidopor estruturas complexas como a medicina, queincluíam as iniciativas privadas, com venda deserviços com base na economia de mercado, mas queincluíam instituições públicas como os hospitais.3) Finalmente, a multiplicação dos objetivos eagentes do poder pastoral enfocava o desenvolvimentodo saber sobre o homem em torno de dois pólos: um,globalizador e quantitativo, concernente à população;o outro, analítico, concernente ao indivíduo.

E isto implica que o poder do tipo pastoral,que durante séculos — por mais de um milênio — foiassociado a uma instituição religiosa, definida,ampliou-se subitamente por todo o corpo social;encontrou apoio numa multiplicidade de instituições.E, em vez de um poder pastoral e de um poderpolítico, mais ou menos ligados um ao outro, mais oumenos rivais, havia uma "tática" individualizante quecaracterizava uma série de poderes: da família, damedicina, da psiquiatria, da educação e dosempregadores.

No final do século XVIII, Kant escreveu, numjornal alemão — o Bertiner Monatschrift —, um pequenotexto. O título era Was heisst Aufklärung? que foi pormuito tempo, e ainda é, considerado um trabalho depouca importância.

Porém, não posso deixar de achá-lo muitointeressante e perturbador, visto que foi a primeiravez que um filósofo propôs, como uma tarefafilosófica, a investigação não apenas do sistemametafísico ou dos fundamentos do conhecimentocientífico, mas um acontecimento histórico — umacontecimento recente e até mesmo contemporâneo.

Quando, em 1784, Kant perguntou: Was heisstAufklärung?, ele queria dizer: o que está acontecendoneste momento? O que está acontecendo conosco? O queé este mundo, esta época, este momento preciso em quevivemos?

Em outras palavras: o que somos, enquantoAufklärer, enquanto parte do Iluminismo? Façamos umacomparação com a questão cartesiana: quem sou eu? Eu,enquanto sujeito único, mas universal e a-histórico —eu para Descartes é todo mundo, em todo lugar e atodo momento?

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Kant, porém, pergunta algo mais: o que somosnós? num momento muito preciso da história. A questãode Kant aparece como uma análise de quem somos nós edo nosso presente.

Creio que este aspecto da filosofia adquiriucada vez maior importância. Hegel. Nietzsche...

O outro aspecto da "filosofia universal" nãodesapareceu. Mas a tarefa da filosofia como umaanálise crítica de nosso mundo tornou-se algo cadavez mais importante. Talvez, o mais evidente dosproblemas filosóficos seja a questão do tempopresente e daquilo que somos neste exato momento.

Talvez, o objetivo hoje em dia não sejadescobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temosque imaginar e construir o que poderíamos ser paranos livrarmos deste "duplo constrangimento" político,que é a simultânea individualização e totalizaçãoprópria as estruturas do poder moderno.

A conclusão seria que o problema político,ético, social e filosófico de nossos dias nãoconsiste em tentar liberar o indivíduo do Estado nemdas instituições do Estado, porém nos liberarmos tantodo Estado quanto do tipo de individualização que aele se liga. Temos que promover novas formas desubjetividade através da recusa deste tipo deindividualidade que nos foi imposto há váriosséculos.

Como se exerce o poder?*

Para certas pessoas, interrogar-se sobre o"como" do poder seria limitar-se a descrever seusefeitos, sem nunca relacioná-los nem a causas nem auma natureza. Seria fazer deste poder uma substânciamisteriosa que, sem dúvida, se evita interrogar em simesma, por preferir não "colocá-la em questão". Nestemecanismo, que não se explicita racionalmente,suspeita-se de um fatalismo. Mas sua desconfiança nãonos mostra que elas supõem que o poder é algo queexiste com sua origem, sua natureza e suasmanifestações?

Este texto foi traduzido do original em francês. (N. do T.)Se provisoriamente atribuo um certo privilégio

à questão do "como", não é que eu deseje eliminar a

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questão do quê e do porquê. É para colocá-las deoutro modo; ou melhor: para saber se é legítimoimaginar um "poder" que reúne um quê, um porquê, e umcomo. Grosso modo, eu diria que começar a análise pelo"como" é introduzir a suspeita de que o "poder" nãoexiste; é perguntar-se, em todo caso, a que conteúdossignificativos podemos visar quando usamos este termomajestoso, globalizante e substantificador; édesconfiar que deixamos escapar um conjunto derealidades bastante complexo, quando engatinhamosindefinidamente diante da dupla interrogação: "O queé o poder? De onde vem o poder?" A pequena questão,direta e empírica: "Como isto acontece?", não tem porfunção denunciar como fraude uma "metafísica" ou uma"ontologia" do poder; mas tentar uma investigaçãocrítica sobre a temática do poder.

1. "Como" não no sentido de "Como se manifesta?", mas "Como se exerce?", "Como acontece quando os indivíduos exercem, como se diz seu poder sobre os outros?"

Deste "poder" é necessário distinguir,primeiramente, aquele que exercemos sobre as coisas eque dá a capacidade de modificá-las, utilizá-las,consumi-las ou destruí-las — um poder que remete aaptidões diretamenteinscritas no corpo ou mediatizadas por dispositivosinstrumentais. Digamosque, neste caso, trata-se de "capacidade". O quecaracteriza, por outro lado, o "poder" que analisamosaqui, é que ele coloca em jogo relações entreindivíduos (ou entre grupos). Pois não devemos nosenganar: se falamos do poder das leis, dasinstituições ou das ideologias, se falamos deestruturas ou de mecanismos de poder, é apenas namedida em que supomos que "alguns" exercem um podersobre os outros. O termo "poder" designa relaçõesentre "parceiros" (entendendo-se por isto não umsistema de jogo, mas apenas — e permanecendo, porenquanto, na maior generalidade — um conjunto deações que se induzem e se respondem umas às outras).

É necessário distinguir também as relações depoder das relações de comunicação que transmitem umainformação através de uma língua, de um sistema designos ou de qualquer outro meio simbólico. Semdúvida, comunicar é sempre uma certa forma de agirsobre o outro ou os outros. Porém, a produção e a

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circulação de elementos significantes podemperfeitamente ter por objetivo ou por conseqüênciasefeitos de poder, que não são simplesmente um aspectodestas. Passando ou não por sistemas de comunicação,as relações de poder tem sua especificidade.

"Relações de poder", "relações de comunicação","capacidades objetivas" não devem, então, serconfundidas. O que não significa que se trata de trêsdomínios separados; e que haveria, de um lado, odomínio das coisas, da técnica finalizada, dotrabalho e da transformação do real; e, do outro, odos signos, da comunicação, da reciprocidade e dafabricação do sentido; enfim, o da dominação dosmeios de coação, de desigualdade e de ação dos homenssobre os homens.4 Trata-se de três tipos de relaçãoque, de fato, estão sempre imbricados uns nos outros,apoiando-se reciprocamente e servindo-se mutuamentede instrumento. A aplicação de capacidade objetiva,nas suas formas mais elementares, implica relações decomunicação (seja de informação prévia, ou detrabalho dividido); liga-se também a relações depoder (seja de tarefas obrigatórias, de gestosimpostos por uma tradição ou um aprendizado, desubdivisões ou de repartição mais ou menosobrigatória do trabalho). As relações de comunicaçãoimplicara atividades finalizadas (mesmo que sejaapenas a "correta" operação dos elementossignificantes) e induzem efeitos de poder pelo fatode modificarem o campo de informação dos parceiros.Quanto às relações de poder propriamente ditas, elasse exercem por um aspecto extremamente importanteatravés da produção e da troca de signos; e tambémnão são dissociáveis das atividades finalizadas, sejadaquelas que permitem exercer este poder (como astécnicas de adestramento, os procedimentos dedominação, as maneiras de obter obediência), sejadaquelas que recorrem, para se desdobrarem, arelações de poder (assim na divisão do trabalho e nahierarquia das tarefas).

Sem dúvida, a coordenação entre estes trêstipos de relação não é uniforme nem constante. Nãohá, numa sociedade dada, um tipo geral de equilíbrioentre as atividades finalizadas, os sistemas decomunicação e as relações de poder. Há, antes,diversas formas, diversos lugares, diversascircunstâncias ou ocasiões em que estas inter-relações se estabelecem sobre um modelo específico.Porém, há também "blocos" nos quais o ajuste das

144      Quando Habermas distingue dominação, comunicação e atividade

finalizada, ele não vê aí, acredito, três domínios diferentes, mas três "transcendentais".

capacidades, os feixes de comunicação e as relaçõesde poder constituem sistemas regulados e concordes.Seja, por exemplo, uma instituição escolar: suaorganização espacial, o regulamento meticuloso querege sua vida interior, as diferentes atividades aíorganizadas, os diversos personagens que aí vivem ese encontram, cada um com uma função, um lugar, umrosto bem definido — tudo isto constitui um "bloco"de capacidade-comunicação-poder. A atividade queassegura o aprendizado e a aquisição de aptidões oude tipos de comportamento aí se desenvolve através detodo um conjunto de comunicações reguladas (lições,questões e respostas, ordens, exortações, signoscodificados de obediência, marcas diferenciais do"valor" de cada um e dos níveis de saber) entraves detoda uma série de procedimentos de poder(enclausuramento, vigilância, recompensa e punição,hierarquia piramidal).

Estes blocos onde a aplicação de capacidadestécnicas, o jogo das comunicações e as relações depoder estão ajustados uns aos outros, segundofórmulas refletidas, constituem aquilo que podemoschamar, alargando umpouco o sentido da palavra, de "disciplinas". Aanálise empírica de certas disciplinas — de suaconstituição histórica — apresenta, por isto mesmo,um certo interesse. Primeiramente, porque asdisciplinas mostram, segundo esquemas artificialmenteclaros e decantados, a maneira pela qual os sistemasde finalidade objetiva, de comunicações e de poderpodem se articular uns sobre os outros. Porque elesmostram também diferentes modelos de articulação oracom proeminência das relações de poder e deobediência (como nas disciplinas de tipo monástico oude tipo penitenciário), ora com proeminência dasatividades finalizadas (como nas disciplinas dasoficinas ou dos hospitais); ora com a proeminênciadas relações de comunicação (como nas disciplinas deaprendizagem); como também com uma saturação dos trêstipos de relação (como talvez na disciplina militar,onde uma pletora de signos marca, até a redundância,relações dc poder fechadas e cuidadosamentecalculadas para proporcionar um certo número deefeitos técnicos).

E aquilo que se deve compreender pordisciplinarização das sociedades, a partir do século

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XVIII na Europa, não é, sem dúvida, que os indivíduosque dela fazem parte se tornem cada vez maisobedientes, nem que elas todas comecem a se parecercom casernas, escolas ou prisões; mas que se tentouum ajuste cada vez mais controlado — cada vez maisracional e econômico — entre as atividadesprodutivas, as redes de comunicação e o jogo dasrelações de poder.

Abordar o tema do poder através de uma análisedo "como" é, então, operar diversos deslocamentoscríticos com relação à suposição de um "poder"fundamental. É tomar por objeto de análise relações depoder e não um poder; relações de poder que sãodistintas das capacidades objetivas assim como dasrelações de comunicação; relações de poder, enfim,que podemos perceber na diversidade de seuencadeamento com estas capacidades e estas relações.

2. Em que consiste a especificidade das relações de poder?

O exercício do poder não é simplesmente umarelação entre "parceiros" individuais ou coletivos; éum modo de ação de alguns sobre outros. O que querdizer, certamente, que não há algo como o "poder" ou"do poder" que existiria globalmente, maciçamente ouem estado difuso, concentrado ou distribuído: só hápoder exercido por "uns" sobre os "outros"; o podersó existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva numcampo de possibilidade esparso que se apóia sobreestruturas permanentes.

Isto quer dizer também que o poder não é daordem do consentimento; ele não é, em si mesmo,renúncia a uma liberdade, transferência de direito,poder de todos e de cada um delegado a alguns (o quenão impede que o consentimento possa ser uma condiçãopara que a relação de poder exista e se mantenha); arelação de poder pode ser o efeito de umconsentimento anterior ou permanente; ela não é, emsua própria natureza, a manifestação de um consenso.

Será que isto quer dizer que é necessáriobuscar o caráter próprio às relações de poder do ladode uma violência que seria sua forma primitiva, osegredo permanente e o último recurso — aquilo queaparece em última instância como sua verdade, quandocoagido a tirar a máscara e a se mostrar tal qual é?De fato, aquilo que define uma relação de poder é ummodo de ação que não age direta e imediatamente sobre

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os outros, mas que age sobre sua própria ação. Umaação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais,futuras ou presentes. Uma relação de violência agesobre um corpo, sobre as coisas; ela força, elasubmete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas aspossibilidades; não tem, portanto, junto de si, outropólo senão aquele da passividade; e, se encontra umaresistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Umarelação de poder, ao contrario, se articula sobredois elementos que lhe são indispensáveis por serexatamente uma relação de poder: que "o outro"(aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramentereconhecido e mantido até o fim como o sujeito deação; e que se abra, diante da relação de poder, todoum campo de respostas, reações, efeitos, invençõespossíveis.

O funcionamento das relações de poder,evidentemente, não é uma exclusividade do uso daviolência mais do que da aquisição dosconsentimentos; nenhum exercício de poder pode, semdúvida, dispensar um ou outro e frequentemente osdois ao mesmo tempo. Porém, se eles são seusinstrumentos ou efeitos, não constituem, contudo, seuprincípio ou sua natureza. O exercício do poder podeperfeitamente suscitar tanta aceitação quanto sequeira: pode acumular as mortes e abrigar-se sobtodas as ameaças que ele possa imaginar. Ele não é emsi mesmo uma violência que, às vezes, se esconderia,ou um consentimento que, implicitamente, sereconduziria. Ele é um conjunto de ações sobre açõespossíveis; ele opera sobre o campo de possibilidadeonde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos;ele incita, induz, desvia, facilita ou torna maisdifícil, amplia ou limita, torna mais ou menosprovável; no limite, ele coage ou impedeabsolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobreum ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ousão suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações.

O termo "conduta", apesar de sua naturezaequivoca, talvez seja um daqueles que melhor permiteatingir aquilo que há de específico nas relações depoder. A "conduta" é, ao mesmo tempo, o ato de"conduzir" os outros (segundo mecanismos de coerçãomais ou menos estritos) e a maneira de se comportarnum campo mais ou menos aberto de possibilidades. Oexercício do poder consiste em "conduzir condutas" eem ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menosda ordem do afrontamento entre dois adversários, oudo vínculo de um com relação ao outro, do que da

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ordem do "governo". Devemos deixar para este termo asignificação bastante ampla que tinha no século XVI.Ele não se referia apenas às estruturas políticas e àgestão dos Estados; mas designava a maneira dedirigir a conduta dos indivíduos ou dosgrupos: governo das crianças, das almas, dascomunidades, das famílias, dosdoentes. Ele não recobria apenas formas instituídas elegítimas de sujeição política ou econômica; masmodos de ação mais ou menos refletidos e calculados,porém todos destinados a agir sobre as possibilidadesde ação dos outros indivíduos. Governar, nestesentido, é estruturar o eventual campo de ação dosoutros. О modo de relação próprio ao poder nãodeveria, portanto, ser buscado do lado da violência eda luta, nem do lado do contrato e da aliançavoluntária (que não podem ser mais do queinstrumentos); porém, do lado deste modo de açãosingular — nem guerreiro nem jurídico — que é ogoverno.

Quando definimos o exercício do poder como ummodo de ação sobre as ações dos outros, quando ascaracterizamos pelo "governo" dos homens, uns pelosoutros — no sentido mais extenso da palavra,incluímos um elemento importante: a liberdade. Opoder só se exerce sobre "sujeitos livres", enquanto"livres" — entendendo-se por isso sujeitosindividuais ou coletivos que têm diante de si umcampo de possibilidade onde diversas condutas,diversas reações e diversos modos de comportamentopodem acontecer. Não há relação de poder onde asdeterminações estão saturadas — a escravidão não éuma relação de poder, pois o homem está acorrentado(trata-se então de uma relação física de coação) —mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite,escapar. Não há, portanto, um confronto entre poder eliberdade, numa relação de exclusão (onde o poder seexerce, a liberdade desaparece); mas um jogo muitomais complexo: neste jogo, a liberdade aparecerá comocondição de existência do poder (ao mesmo tempo suaprecondição, uma vez que é necessário que hajaliberdade para que o poder se exerça, e também seusuporte permanente, uma vez que se ela se abstraísseinteiramente do poder que sobre ela se exerce, porisso mesmo desapareceria, e deveria buscar umsubstituto na coerção pura e simples da violência);porém, ela aparece também como aquilo que só poderáse opor a um exercício de poder que tende, enfim, adeterminá-la inteiramente.

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A relação de poder e a insubmissão da liberdadenão podem, então, ser separadas. O problema centraldo poder não é o da "servidão voluntária" (comopoderíamos desejar ser escravos?): no centro darelação de poder, "provocando-a" incessantemente,encontra-se a recalcitrância do querer e aintransigência da liberdade. Mais do que um"antagonismo" essencial, seria melhor falar de um"agonismo"5 — de uma relação que é, ao mesmo tempo,de incitação recíproca e de luta; trata-se, portanto,menos de uma oposição de termos que se bloqueiammutuamente do que de uma provocação permanente.

3. Como analisar a relação de poder?

Podemos, ou melhor, eu diria que éperfeitamente legítimo analisá-la em instituições bemdeterminadas; estas últimas constituindo umobservatório privilegiado para as atingir —diversificadas, concentradas, ordenadas e levadas,parece, ao seu mais alto grau de eficácia; numaprimeira abordagem, é aí que podemos pretender veraparecer a forma e a lógica de seus mecanismoselementares. Contudo, a análise das relações de podernos espaços institucionais fechados apresenta algunsinconvenientes. Primeiramente, o fato de uma parteimportante dos mecanismos operados por umainstituição ser destinada a assegurar sua própriaconservação apresenta o risco de decifrar, sobretudonas relações de poder "intra-institucionais", funçõesessencialmente reprodutoras. Em segundo lugar, aoanalisarmos as relações de poder a partir dasinstituições, nos expomos de nelas buscar aexplicação e a origem daquelas; quer dizer, em suma,de explicar o poder pelo poder. Enfim, na medida emque as instituições agem essencialmenteatravés da colocação de dois elementos em jogo:regras (explícitas ousilenciosas) e um aparelho, corremos o risco deprivilegiar exageradamente um ou outro na relação depoder e, assim, de ver nestas apenas modulações dalei e da coerção.

Não se trata de negar a importância dasinstituições na organização das relações de poder.Mas de sugerir que é necessário, antes, analisar asinstituições a partir das relações de poder, e não oinverso; e que o ponto de apoio fundamental destas,mesmo que elas se incorporem e se cristalizem numainstituição, deve ser buscado aquém.

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Retomemos a definição segundo a qual oexercício do poder seria uma maneira para alguns deestruturar o campo de ação possível dos outros. Destemodo, o que seria próprio a uma relação de poder éque ela seria um modo de ação sobre ações. O que querdizer que as relações de poder se enraízamprofundamente no nexo social; e que elas nãoreconstituem acima da "sociedade" uma estruturasuplementar com cuja obliteração radical pudéssemos

talvez sonhar. Viver em sociedade é, de qualquermaneira, viver de modo que seja possível a algunsagirem sobre a ação dos outros. Uma sociedade "semrelações de poder" só pode ser uma abstração. O que,diga-se de passagem, torna ainda mais necessária, doponto de vista politico, a análise daquilo que elassão numa dada sociedade, de sua formação histórica,daquilo que as torna sólidas ou frágeis, dascondições que são necessárias para transformar umas,abolir as outras. Pois, dizer que não pode existirsociedade sem relação de poder não quer dizer nem queaquelas que são dadas são necessárias, nem que dequalquer modo o "poder" constitua, no centro dassociedades, uma fatalidade incontornável; mas que aanálise, a elaboração, a retornada da questão dasrelações de poder, e do "agonismo" entre relações depoder e intransitividade da liberdade, é uma tarefapolítica incessante; e que é exatamente esta a tarefapolítica inerente a toda existência social.

Concretamente, a análise das relações de poder exige que estabeleçamos alguns pontos:

1. O sistema das diferenciações que permitem agir sobre aação dos outros: diferenças jurídicas ou tradicionaisde estatuto e de privilégio; diferenças econômicas naapropriação das riquezas e dos bens; diferenças delugar nos processos de produção; diferençaslingüísticas ou culturais; diferenças na habilidade enas competências etc. Toda relação dc poder operadiferenciações que são, para ela, ao mesmo tempo,condições e efeitos.2. O tipo de objetivos perseguidos por aqueles que agemsobre a ação dos outros: manutenção de privilégios,

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5 O neologismo usado por Foucault está baseado na palavra grega (PALAVRAGREGA) que significa "um combate".O termo sugeriria, portanto, um combate físico no qual os opositoresdesenvolvem uma estratégia de reação e de injúrias mútuas, como se

acúmulo de lucros, operacionalidade da autoridadeestatutária, exercício de uma função ou de umaprofissão.3. As modalidades instrumentais: de acordo com o fato deque o poder se exerce pela ameaça das armas, dosefeitos da palavra, através das disparidadeseconômicas, por mecanismos maia ou menos complexos decontrole, por sistemas de vigilância, com ou semarquivos, segundo regras explicitas ou não,permanentes ou modificáveis, com ou sem dispositivosmateriais etc.4. As formas de institucionalização: estas podem misturardispositivos tradicionais, estruturas jurídicas,fenômenos de hábito ou de moda (como vemos nasrelações de poder que atravessam a instituiçãofamiliar); elas podem também ter a aparência de umdispositivo fechado sobre si mesmo com seuslugares específicos, seus regulamentos próprios, suasestruturas hierárquicas cuidadosamente traçadas, euma relativa autonomia funcional (como nasinstituições escolares ou militares); podem tambémformar sistemas muito complexos, dotados de aparelhosmúltiplos, como no caso do Estado que tem por funçãoconstituir o invólucro geral, a instância de controleglobal, o princípio de regulação e, até certo pontotambém, de distribuição de todas as relações de podernum conjunto social dado.5. Os graus de racionalização: o funcionamento dasrelações de poder comoação sobre um campo de possibilidade pode ser mais oumenos elaborado emfunção da eficácia dos instrumentos e da certeza doresultado (maior ou menor refinamento tecnológico noexercício do poder) ou, ainda, em função do custoeventual (seja do "custo" econômico dos meiosutilizados, ou do custo em temos de reaçãoconstituído pelas resistências encontradas). Oexercício do poder não é um fato bruto, um dadoinstitucional, nem uma estrutura que se mantém ou sequebra: ele se elabora, se transforma, se organiza,se dota de procedimentos mais ou menos ajustados.

Eis por que a análise das relações de podernuma sociedade não pode se prestar ao estudo de umasérie de instituições, nem sequer ao estudo de todasaquelas que mereceriam o nome de "política". Asrelações de poder se enraizam no conjunto da redesocial. Isto não significa, contudo, que haja umprincípio de poder, primeiro e fundamental, quedomina até o menor elemento da sociedade; mas que há,

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a partir desta possibilidade de ação sobre a ação dosoutros (que é co-extensiva a toda relação social),múltiplas formas de disparidade individual, deobjetivos, de determinada aplicação do poder sobrenós mesmos e sobre os outros, de institucionalizaçãomais ou menos setorial ou global, organização mais oumenos refletida, que definem formas diferentes depoder. As formas e os lugares de "governo" dos homensuns pelos outros são múltiplos numa sociedade:superpõem-se, entrecruzam-se, limitam-se e anulam-se,em certos casos, e reforçam-se em outros. É certo queo Estado nas sociedades contemporâneas não ésimplesmente uma das formas ou um dos lugares — aindaque seja o mais importante — de exercício do poder,mas que, de um certo modo, todos os outros tipos derelação de poder a ele se referem. Porém, não porquecada um dele derive. Mas, antes, porque se produziuuma estatização contínua das relações de poder(apesar de não ter tomado a mesma forma na ordempedagógica, judiciária, econômica, familiar). Ao nosreferirmos ao sentido restrito da palavra "governo",poderíamos dizer que as relações de poder foramprogressivamente governamentalizadas, ou seja,elaboradas, racionalizadas e centralizadas na formaou sob a caução das instituições do Estado.

4. Relações de poder e relações estratégicas

A palavra estratégia é correntemente empregadaem três sentidos. Primeiramente, para designar aescolha dos meios empregados para se chegar a um fim;trata-se da racionalidade empregada para atingirmosum objetivo. Para designar a maneira pela qual umparceiro, num jogo dado, age em função daquilo queele pensa dever ser a ação dos outros, e daquilo queele acredita que os outros pensarão ser a dele; emsuma, a maneira pela qual tentamos ter uma vantagemsobre o outro. Enfim, para designar o conjunto dosprocedimentos utilizados num confronto para privar oadversário dos seus meios de combate e reduzi-lo arenunciar à luta; trata-se, então, dos meiosdestinados a obter a vitória. Estas três significaçõesse reúnem nas situações de conforto — guerra ou jogo— onde o objetivo é agir sobre um adversário de talmodo que a luta lhe seja impossível. A estratégia sedefine então pela escolha das soluções "vencedoras".Porém, é necessário ter em mente que se trata de umtipo bem particular de situação; e que há outros emque se deve manter a distinção entre os diferentessentidos da palavra estratégia.

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Ao nos referirmos ao primeiro sentido indicado,podemos chamar "estratégia de poder" ao conjunto dosmeios operados para fazer funcionar ou para manter umdispositivo de poder. Podemos também falar deestratégia própria às relações de poder na medida emque estas constituem modos de ação sobre a açãopossível, eventual, suposta dos outros. Podemos entãodecifrar em termos de "estratégias" os mecanismosutilizados nas relações de poder. Porém, o ponto maisimportante é evidentemente a relação entre relaçõesde poder e estratégias de confronto. Pois, se éverdade que no centro das relações de poder e comocondição permanente de sua existência, há uma"insubmissão" e liberdades essencialmente renitentes,não há relação de poder sem resistência, semescapatória ou fuga, sem inversão eventual; todarelação de poder implica, então, pelo menos de modovirtual, uma estratégia de luta, sem que para tantovenham a se superpor, a perder sua especificidadee finalmente a se confundir. Elas constituemreciprocamente uma espécie de limite permanente, deponto de inversão possível. Uma relação de confrontoencontra seu termo, seu momento final (e a vitória deum dos dois adversários) quando o jogo das reaçõesantagônicas é substituído por mecanismos estáveispelos quais um dentre eles pode conduzir de maneirabastante constante e com suficiente certeza a condutados outros; para uma relação de confronto, desde quenão se trate de luta de morte, a fixação de umarelação de poder constitui um alvo — ao mesmo temposeu completamento e sua própria suspensão. E, emtroca, para uma relação de poder, a estratégia deluta constitui, ela também, uma fronteira: aquelaonde a indução calculada das condutas dos outros nãopode mais ultrapassar a réplica de sua própria ação.Como não poderia haver relações de poder sem pontosde insubmissão que, por definição, lhe escapam, todaintensificação e toda extensão das relações de poderpara submetê-los conduzem apenas aos limites doexercício do poder; este encontra então suafinalidade seja num tipo de ação que reduz o outro àimpotência total (uma "vitória" sobre o adversáriosubstitui o exercício do poder), seja numatransformação daqueles que são governados emadversários. Em suma, toda estratégia de confrontosonha em tornar-se relação de poder; e toda relaçãode poder inclina-se, tanto ao seguir sua próprialinha de desenvolvimento quanto ao se deparar com

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resistências frontais, a tornar-se estratégiavencedora.

De fato, entre relação de poder e estratégia deluta, existe atração reciproca, encadeamentoindefinido e inversão perpétua. A cada instante, arelação de poder pode tornar-se, e em certos pontosse torna, um confronto entre adversários. A cadainstante também as relações de adversidade, numasociedade, abrem espaço para o emprego de mecanismosde poder. Instabilidade, portanto, que faz com que osmesmos processos, os mesmos acontecimentos, as mesmastransformações possam ser decifrados tanto nointerior de uma história das lutas quanto na históriadas relações e dos dispositivos de poder. Não serãonem os mesmos elementos significativos, nem os mesmosencadeamentos, nem os mesmos tipos deinteligibilidade que aparecerão, apesar de sereferirem a um mesmo tecido histórico e apesar de quecada uma das duas análises deve remeter à outra. E éjustamente a interferência das duas leituras que fazaparecer estes fenômenos fundamentais de "dominação"que a história apresenta em grande parte dassociedades humanas. A dominação é uma estruturaglobal de poder cujas ramificações e conseqüênciaspodemos, às vezes, encontrar, até na trama mais tênueda sociedade; porém, e ao mesmo tempo, é uma situaçãoestratégica mais ou menos adquirida e solidificadanum conjunto histórico de longa data entreadversários. Pode perfeitamente acontecer que um fatode dominação seja apenas a transcrição de um dosmecanismos de poder de uma relação de confronto e desuas conseqüências (uma estrutura política derivadade uma invasão); também pode ocorrer que uma relaçãode luta entre dois adversários seja o efeito dodesenvolvimento das relações de poder com osconflitos e as clivagens que ela encadeia. Porém, oque toma a dominação de um grupo, deuma casta ou de uma classe, e as resistências ou asrevoltas às quais ela seopõe um fenômeno central na história das sociedades éo fato de manifestarem, numa forma global e maciça,na escala do corpo social inteiro, a integração dasrelações de poder com as relações estratégicas e seusefeitos de encadeamento recíproco.

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