Espaço e Reprodução Social No Capitalismo Tardio

165
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Instituto de Geociências Departamento de Geografia Espaço e Reprodução Social No Capitalismo Tardio A ASMARE Nos Meandros Da (Pobreza Da) “Vida Reciclada” Luiz Antônio Evangelista de Andrade Belo Horizonte Junho de 2007

Transcript of Espaço e Reprodução Social No Capitalismo Tardio

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Instituto de Geociências

Departamento de Geografia

Espaço e Reprodução Social No Capitalismo Tardio

A ASMARE Nos Meandros Da (Pobreza Da) “Vida Reciclada”

Luiz Antônio Evangelista de Andrade

Belo Horizonte

Junho de 2007

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Instituto de Geociências

Departamento de Geografia

Luiz Antônio Evangelista de Andrade

Espaço e Reprodução Social No Capitalismo Tardio

A ASMARE Nos Meandros Da (Pobreza Da) “Vida Reciclada”

Trabalho apresentado na disciplina Geografia Aplicada A do Curso de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientação da Profª Doralice Barros Pereira e avaliada pelos Professores Sérgio Martins e José Geraldo Pedrosa.

Belo Horizonte

Junho de 2007

3

AGRADECIMENTOS

À minha querida mãe, Ephigênia. Que ela fique sempre bem, esteja onde estiver.

Aos meus queridos tios Expedito e Alzira, pelo grande apoio que me deram durante toda a

minha vida, culminando na minha trajetória vitoriosa até aqui.

À minha orientadora, Profª Doralice Barros Pereira que tornou possível a realização desta

pesquisa.

Aos professores Sérgio Martins e José Geraldo Pedrosa, que se disponibilizaram a participar

de minha banca avaliadora.

À minha amada namorada Priscilla, pessoa sempre cuidadosa, compreensiva e companheira.

Aos “Sete Cavaleiros do Apocalipse” (João Henrique, Glauco Cézar, Renato Goulart, Marcelo

Apolônio, Raphael Madureira, “Max” Weberson Januário e Rogério Espinha), e aos demais amigos(as)

e companheiros(as) da “Lama”. Nossas deliciosas e intermináveis prosas e ensinamentos mútuos

deram-me fôlego para a realização dessa pesquisa.

Aos colegas do Grupo de Estudos “(Im)possiblidades do Urbano na Metrópole”, pela sempre

fecunda troca de idéias na construção conjunta do pensamento geográfico.

4

Muita vez (sic), ao rubor de um revérbero e ao vento, Que à chama sempre é um golpe e ao cristal um tormento,

Num antigo arrabalde, amargo labirinto De humanidade a arder em fermentos e instintos

Há o trapeiro que vem movendo a fronte inquieta, Nos muros a apoiar-se à imitação de um poeta,

E sem se incomodar com os policiais desdenhosos, Abre seu coração em projetos gloriosos.

Ei-lo posto a jurar, ditando lei sublime,

Exaltando a virtude, abominando o crime, E sob o firmamento – um pálio de esplendor –

Embriaga-se da luz de seu próprio valor.

Estes, que a vida em casa enche de desenganos, Roídos pelo trabalho e as tormentas dos anos,

Derreados sob montões de detritos hostis, Confuso material que vomita Paris,

Voltam, cheios de odor de pipas e barrancos,

Acompanhados dos que a vida tornou brancos,

Bigodes a tombar como velhos pendões (...);1

Isso é o que dá viver catando lixo Que falta de educação, mané Que tal criar vergonha, quem já viu ser transportadora de bicho-de-pé. Na secretaria há um enorme preocupação com a nova epidemia que ameaça a população pois o infeliz parece um mutante Quando ele anda, o que se vê segundo a secretária, faz dó O pobre é uma malha rodoviária ambulante Sua excelência o prefeito, homem de coração Se declarou perplexo e horrorizado Tanto que já mandou tomar providências Todo o lixão será protegido por vigilantes armados

que vão entregar cartilhas aos pés inchados.2

1 Trecho do poema “O vinho dos trapeiros”, do livro “As flores do mal”, de Charles Baudelaire. 2 “Édipo, o homem que virou veículo”, música do grupo pernambucano “Mundo Livre S/A”.

5

SUMÁRIO PÁGINAS

INTRODUÇÃO 09

CAPÍTULO 1. DA CRISE DO FORDISMO-KEYNESIANISMO AO CAPITALISMO

FLEXÍVEL-NEOLIBERAL: NOVAS EXIGÊNCIAS AO TRABALHO E AOS

PROCESSOS PRODUTIVOS

1.1. A saída capitalista da crise: a emergência do modelo flexível-neoliberal

1.2. A revalorização do trabalho no capitalismo tardio: velhos discursos, novas

práticas e estratégias

1.2.1. Apontamentos gerais sobre o “modelo de competência e suas repercussões

na ASMARE

1.2.2. De como a “qualificação profissional” torna ainda mais ilusório o

desenvolvimento das forças produtivas como redenção do trabalho sob o

capitalismo

23

24 32 36 43

CAPÍTULO 2. CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA “SOCIEDADE

ADMINISTRADA”: O ESPETÁCULO COMO MOBILIZAÇÃO DE SEUS SENTIDOS

DESMOBILIZADORES

2.1. Os encontros e desencontros da construção do ideário e da prática dos

direitos de cidadania no Ocidente

2.2. Breves apontamentos acerca dos (des)caminhos da cidadania e da

participação social: a especificidade brasileira

2.3. A ASMARE no pano de fundo contextual dos (des)caminhos da cidadania e da

participação social no Brasil

53 55 59 63

CAPÍTULO 3. EXCLUSÃO SOCIAL, CRISE ECOLÓGICA E AS SAÍDAS

CONSERVADORAS DA VEZ: O “PROGRAMA DE INCLUSÃO PRODUTIVA”, A

COLETA SELETIVA E A RECICLAGEM NOS (DES)CAMINHOS DA ASMARE

3.1. O debate teórico sobre a “exclusão social”

3.2. Crise ecológica e desenvolvimento sustentável: a irrupção do novo ofuscada

pela redefinição conservadora do existente

3.3. O “Projeto de Coleta Seletiva” em Belo Horizonte em sua constituição e sua

74 75 82 92

6

atualidade: prática sócio-ambiental ou suporte do circuito econômico da

reciclagem?

3.4. O “Programa de Inclusão Produtiva” no campo das “políticas sociais” em

Belo Horizonte: “incluir” quem e para quê?

3.4.1. O poder público, as parcerias e a otimização da precarização do fazer social

3.4.2. O “Programa de Inclusão Produtiva” e o “Programa de Coleta Seletiva” a ele

associado e suas ressonâncias no projeto ASMARE

103 104 108

CAPÍTULO 4. DA “PANHA” À CATAÇÃO INSTITUCIONALIZADA: HOMENS E

MULHERES CATADORES(AS) DE PAPEL DA ASMARE EM FACE DA PRODUÇÃO

DE SUA COTIDIANIDADE

4.1. Homens e mulheres catadores(as) de papel: quem são estas pessoas?

4.2. A representação social do pobre na sociedade burguesa: de “caso de polícia”

a “sujeito de direitos”?

4.3. A ação dos agentes de Pastoral: quais são os conteúdos de sua prática?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

112

114 132 137 147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

157

ANEXOS

165

7

ÍNDICE DE FIGURAS: PÁGINAS

Figura 1: Evolução na Taxa de Desemprego Total, por tipo: RMBH 1996 – 2006 38

Figura 2: Taxa de Desemprego Total Por Regiões Metropolitanas (%) 38

ÍNDICE DE TABELAS:

Tabela 1: Montante de materiais recicláveis coletados em Belo Horizonte no ano de

2006 e nos dois primeiros meses de 2007

96

Tabela 2: Comparativo anual de resíduos destinados 97

Tabela 3: Produção e Consumo de Papel no Brasil em 2006 e Projeção para 2007 102

ÍNDICE DE FOTOS:

Foto 1: Fachada da Sede da ASMARE, com seu lema “Reciclando a Vida” 43

Foto 2: Catadora realizando a triagem de materiais no galpão da Av. do Contorno 47

Foto 3: Área interna do depósito de triagem da ASMARE 48

Foto 4: Exposição de artesanato com produtos reciclados

Foto 5: Depósito de materiais recicláveis localizado à Av. do Contorno

Foto 6: Fachada frontal do “Reciclo 1”

Foto 7: Fachada frontal do “Reciclo 2”

Foto 8: Box interno do galpão da ASMARE, localizado à Av. do Contorno

Foto 9: Antiga área da RFFSA, antes ocupada pelas malocas dos catadores

“autônomos”

91

100

127

128 130 142

8

RESUMO

Partindo da constatação de que a consolidação da Associação dos Catadores de Papel,

Papelão e Material Reaproveitável (ASMARE) trouxe a institucionalização da atividade da catação em

Belo Horizonte, procuramos interrogar os sentidos e os significados deste processo. Para tanto, faz-se

necessário pensá-lo no movimento mais geral das reestruturações político-econômicas, técnico-

produtivas, laborais e sócio-culturais do capitalismo, sobretudo a partir do último quartel do século XX.

Questões vindas à tona a partir do momento em que a temática da pobreza passa a ganhar

importância nos debates envolvendo instituições governamentais e privadas, universidades e outros

centros de conhecimento no Brasil são também cruciais na perspectiva de entendimento a que

propomos trazer. Tais questões estão respaldadas por noções como “inclusão social”, “cidadania”,

“participação social” e a chamada “problemática ambiental”. Esta pesquisa volta-se também para as

preocupações em se dar voz aos homens e mulheres catadores(as) de papel, procurando compreendê-

los e compreender os significados que eles dão à sua atividade e à sua vida cotidiana. Neste sentido é

nossa intenção situar sua prática e suas vivências no movimento das representações do espaço e dos

espaços de representação concebidos, vividos e percebidos por essas pessoas na sua condição de

migrantes ou seus filhos, de pessoas que tendem a viver (ou mesmo vivem) a metrópole aquém das

suas possibilidades enquanto uso.

9

INTRODUÇÃO

O conhecimento se alimenta de ironia e de contestação (Henri Lefebvre, 1968, p.32).

Têm sido na contemporaneidade bastante recorrentes e controversos os debates sobre a

denominada "pobreza urbana". Em verdade, o "como lidar com a pobreza?" nunca esteve fora do

âmbito das preocupações e estratégias políticas e institucionais, culminando nas mais diferentes

modalidades da ação de Estado (e nos dias de hoje mobilizando o chamado “terceiro setor”) e

canalizando boa parte de seus esforços ao longo da formação histórica e social brasileira. E não

poderia ser diferente, quando se pensa na necessidade de se manter o frágil vínculo social tão caro ao

status quo. Apresentar de modo inautêntico a realidade social, invertendo-a e ocultando-a por meio da

ideologia (CHAUÍ, 1981) para tornar obscuras suas contradições: eis aí uma prática recorrente da

sociedade burguesa. Não é à toa que nos últimos 15 anos a "pobreza urbana" passa a receber um

olhar mais "acurado" das "autoridades competentes" para fazê-lo, sendo "objeto" de diferentes estudos

acadêmicos e de organismos de nível internacional e tema de inumeráveis seminários, conferências e

fóruns. No nosso entender, todo este campo de preocupações reside na necessidade de recompor as

aludidas estratégias de Estado, tendo em vista que a magnitude das transformações e reestruturações

em curso no modo de produção capitalista põe a nu os claros sinais de uma pobreza crônica e das

tensões sociais dela decorrentes.

No seio destes debates, emergem diferentes concepções e fabricam-se representações em

ampla medida divorciadas daquilo que se constitui de fato a realidade. No Brasil, prega-se a idéia de

uma “revisão crítica” da questão dos direitos sociais, trazidos ao primeiro plano das políticas públicas

voltadas à assistência social no País por um governo de “esquerda”, ao mesmo tempo em que é claro o

abandono destas por parte do Estado brasileiro, que em boa parte do século XX foi o seu principal

preceptor. Fala-se muito na construção de uma cidadania efetiva, representada pela viabilização de

melhores condições de vida a amplas parcelas sociais outrora (e ainda) destituídas dos direitos mais

elementares. Como afirma o próprio governo Lula: “Todos sabem que o Brasil tem uma pesada

herança histórica de exclusão social a enfrentar. A novidade hoje é que, pela primeira vez, o governo

federal deu prioridade absoluta às políticas de combate à fome e à pobreza”3, através do acesso das

“populações excluídas” aos programas sociais do governo, garantindo assim uma “verdadeira”

“inclusão social”. Fala-se, ainda, na ampliação sem precedentes da participação social para grupos

historicamente inviabilizados de ouvir e se fazerem ouvidos, pois: “Este é o momento, também, para

3 Trecho do discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura da última reunião ministerial, na Granja do Torto, 10 de dezembro de 2004.

10

celebrar a plena vigência da democracia e das liberdades públicas no País. A sociedade tem podido

expressar-se da forma mais livre possível (...). Nunca a sociedade foi tão ouvida...”4. Decerto uma

enorme gama de espaços públicos de participação e de expressão estão nos dias de hoje

potencialmente abertos à sociedade como um todo. Por outro lado, as possibilidades de realização da

política num terreno de atuação verdadeiramente alargado vêem-se embotadas pelos próprios

mecanismos que a perfazem ou mesmo pela falta de condições objetivas para a participação – entre as

quais, a imposição à nossa vida de tempos e espaços abstratos nos parece decisiva. Numa palavra:

nas atuais circunstâncias, a política vem se inscrevendo na contemporaneidade como a sua própria

negação. Todo este cenário não se deve ao fato do “espírito da época”, não obstante estar gerando

uma inquietante preocupação, vir se mostrando assustadoramente afeito à passividade contestatória,

corroborando a antipolítica?

Na mesma medida, vive-se num período mundialmente marcado pelo peculiar retrocesso das

conquistas obtidas pelas classes trabalhadoras, iniciadas no século XIX e consolidadas ao longo de

boa parte do século XX. A deterioração das condições mínimamente dignas de trabalho, associadas à

precarização ou mesmo ao desaparecimento de qualquer regulação sobre os empregadores no

concernente ao cumprimento da legislação trabalhista, não deixa de rivalizar com o aumento

sobremaneira dos níveis de produtividade por trabalhador e do crescimento positivo do comércio

exterior (HARVEY, 2004). São inúmeros os exemplos da estreita combinação da organização dos

processos produtivos e de controle do trabalho no capitalismo contemporâneo com formas até então

consideradas pré-modernas de relações de trabalho. Veja-se a atual geografia da acumulação

capitalista capitulando o deslocamento de linhas de produção ou por redes de subcontratação ligadas a

grandes grupos transnacionais (Nike, Lévis-Strauss, Reebok etc) para países do Sudeste asiático,

obrigando os trabalhadores lá instalados a trabalharem sob regimes extremamente desumanos. Há

nesse mesmo turbilhão a restauração das fábricas de fundo de quintal com sua produção operando-se

sob o regime familiar – onde direitos trabalhistas e proteção social são palavras desconhecidas – e os

contratos temporários e toda a situação de insegurança e incerteza que daí se gera. Há também, no

limite, a “economia subterrânea” (trabalhos informais diversos e mesmo o tráfico de drogas) e o

desemprego crônico, cujo seu “detentor”, no caso de apresentar ou possuir traços de uma

personalidade avessa ao controle social, tem grandes chances de ser confinado em uma prisão

(BAUMAN, 1999).

No entanto, querem nos fazer crer que a “realidade” sob a qual vivemos é outra! Neste cenário

espetacular pululam expressões afirmativas acerca dos mercados de trabalho no Brasil, apontados, de

4 Ibdem.

11

maneira “segura” pelos “entendidos do assunto”, como termômetros de um ambiente econômico

positivo e promissor. Os “níveis de emprego” estariam aumentando e oferecendo oportunidades para

parcelas cada vez maiores da população. Simultaneamente, a “revalorização do trabalho” aparece

como ratificação de relações mais “justas” e “dignas” estabelecidas em empresas a cada dia mais

“preocupadas” com a “qualidade de vida” de seus quadros profissionais. Mesmo nos segmentos sociais

mais desprotegidos, muitos deles trabalhando em condições abjetas nas tais atividades consideradas

“subterrâneas”, como é o caso da catação, a palavra de ordem é frear a agravamento da “exclusão”

com medidas de “inclusão social” pelo trabalho e o “resgate” dessas pessoas para a “convivência” em

sociedade.

A despeito destas representações um tanto pictóricas de mundo e sua insistência em tapar os

nossos olhos, não há mais como deixar de visualizar o aumento das doses de desespero e a falta de

perspectivas acometendo grupos sociais inteiros. Sejam as sublevações de imigrantes de origem árabe

e da África Subsaariana que vivem nos subúrbios empobrecidos de Paris, os imigrantes latinos nos

Estados Unidos que reivindicam para si a “cidadania estadunidense” ou as hostes de imigrantes

provenientes do norte de Minas e dos vales do Jequitinhonha e do Mucuri que vêm tentar melhorar de

vida em “Belzonte”, o cenário desenhado para ela nos parece especialmente aterrador. Valores,

referências, identidades e modos de ser e de viver parecem devotados a perder o sentido diante dos

valores invertidos e carentes de substancialidade presentes no ordenamento social vigente e

espacializados não mais somente nas grandes metrópoles, mas onde quer que cheguem as imagens

produzidas pela “fábrica de sonhos”. Alain Bihr (1991), chamando a atenção para o “non-sens

generalizado” que paira sobre as sociedades capitalistas desenvolvidas, nos faz pensar no mesmo

processo já há algum tempo se abalando sobre a sociedade brasileira. Do crescente e inquietante

desamparo, chegando à sensação de impotência, combinado com a necessidade de se dar sentido à

vida, decorre:

...uma busca enlouquecida, em todas as direções e a qualquer preço, do sentido perdido. E, uma vez que nenhum sentido global é mais proposto ou imposto pelas sociedades capitalistas e que cada um é, a partir de então, abandonado a si próprio para dar sentido à sua existência e livre para lhe dar o sentido que quiser, disso resulta a surpreendente feira de sentidos, que se desenrola aos nossos olhos (BIHR, 1991, p.172).

A busca individual para tentar sanar as angústias e insatisfações que nos assaltam e nos

cercam por todos os lados, tendendo a sugar nossas últimas energias ainda presentes não se resolve

nela mesma, apenas se exacerba através dos rompantes diários de impaciência com a falta de

sensibilidade e as atitudes violentas – tomadas aqui numa noção mais alargada – praticadas por muitos

“cidadãos”. A multiplicação dos espaços privatizados como manifestação da multiplicidade de

12

instâncias da vida igualmente privatizadas, acompanhadas do empobrecimento dos sentidos do público

– que pode ser demonstrado pelo esvaziamento das ruas e sua entrega à circulação do automóvel –, é

sintomática para designar o mal-estar latente nas pessoas quando se aponta a necessidade da

coletividade organizada, e evidenciada quando das reações e intolerâncias individuais.

Ganham expressiva notoriedade as contendas relacionadas à crise ecológica, em meio as

quais emerge a chamada "problemática ambiental". Sendo tal crise resultado do modelo de relação

com a natureza histórica e socialmente estabelecido pela civilização ocidental, em meio à qual o projeto

iluminista emerge como fornecedor das bases para a instauração da sociedade burguesa, as saídas

delineadas para ela não se assentam numa efetiva discussão sobre seus próprios fundamentos. Ao

contrário, eles não são tocados e, mais ainda, reiterados em seus conteúdos por "mudanças" apenas

no campo do aparente, privilegiando as formas. Isso significa submeter a natureza e toda a reprodução

social aos imperativos da reprodução do capital, retroalimentando o papel da ciência e da técnica na

linha de frente dessas redefinições conservadoras. O “desenvolvimento sustentável”, matriz teórico-

prática originada no seio das referidas contendas, aos poucos vai sendo esvaziada de seus sentidos

porque capturada e tornada ideologia assentada ao campo de interesses dos agentes detentores do

poder (PORTO-GONÇALVES, 2006).

Henri Lefebvre (2003, p.32) na década de 1970 assinalava para a redução das reflexões sobre

a natureza “...como simples matéria do conhecimento e (...) objeto das técnicas” ou por dentro de um

sentido nostálgico, tentando alcançar uma natureza que não existe mais. Convive-se então com a

produção de verdadeiros museus cuja atração é a “natureza natural do mundo” “recuperada” e

“preservada”. Na mesma medida, provém daí outras saídas conservadoras para esta relação de

distanciamento e dominação: seus fundamentos não são questionados – e muito menos atacados –,

apenas reproduzidos na forma da recuperação da natureza na forma de “refúgio” à vida insuportável,

mas (aparentemente) inexorável da metrópole poluída, suja e violenta. Numa sociedade em que tudo e

todos são capturados pelas tramas do universo mercantil, a natureza definitivamente se incorpora a

esse esquema.

Os objetivos de nossa pesquisa situam-se neste complexo emaranhado, passando pelas

questões contempladas anteriormente sem, no entanto, explorar mais detidamente algumas delas. O

primeiro deles propõe uma reflexão sobre a reprodução social no mundo moderno e sua qualidade de

resultado e ao mesmo tempo condição das determinações mais gerais da reprodução capitalista da

riqueza, sendo que esta se faz mediante um forte acento na produção e reprodução do espaço. Para

ajudar na compreensão deste intricado empreendimento, surge nosso segundo objetivo: direcionarmos

nosso olhar sobre o movimento que se realiza no âmbito dessas determinações e sua incidência na

espacialidade que dá corpo à Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável

13

– ASMARE. Algumas noções, as quais vem sendo tomadas de assalto por uma verdadeira desordem

semântica assumem grande importância na efetivação, até o momento, presente apenas nas nossas

pretensões, senão vejamos: “inclusão social”, “trabalho”, “participação social” e “cidadania”, as quais

vêm orientando o discurso e a prática levada a cabo pelos diferentes agentes envolvidos com “a causa

do catador”.

Atentos ao nada animador contexto histórico e social presente, a preocupação que nos povoou

durante toda esta pesquisa foi incursionar mais fundamente sobre um fenômeno que ganha ares de

uma explicação que se dá por si mesma: o alardeado sucesso do empreendimento ASMARE. Pode-se

dizer que nossa preocupação não se solidificou apenas no momento em que éramos já detentores de

questionamentos mais elaborados. Ela esteve presente ainda no germe da idéia, como uma questão

ainda tímida, mas inquietante. Seu combustível eram as desconfianças trazidas por mim e por meus

amigos estudantes de geografia, sempre transformadas em discussões um tanto acaloradas sobre o

desenvolvimento sustentável, muito embora elas não apresentassem ainda um conteúdo teórico de

maior fôlego. Ao visitarmos uma pequena indústria processadora de flake (produto obtido por meio da

trituração do plástico PET) e uma cooperativa de catadores de recicláveis no Barreiro de Cima, durante

um trabalho de campo das disciplinas de "Geografia do Comércio e Circulação" e "Geografia da

Energia e Indústria" (oferecidas à época no 5º período do curso noturno de geografia), veio-me a

vontade de discutir de maneira mais abrangente a questão da reciclagem desenvolvida no Brasil e o

seu ascendente mercado. A partir de então me pus a escrever um projeto de pesquisa que seria

posteriormente mostrado para a professora Doralice Barros Pereira. Ela viria a ser minha orientadora

mediante o deferimento de um pedido de bolsa de pesquisa obtido após o envio feito por nós do projeto

mencionado para o CNPq. Entre agosto de 2004 e agosto de 2006 ocupei-me do entendimento da

questão da reciclagem e de muitas outras temáticas com as quais eu me deparei, chegando até o

estudo que ora apresento, já no nível de uma monografia de final de curso.

A construção de nossa reflexão sobre questões tão diversas e complexas norteou-se por aquilo

que considerávamos portador de certo exagero e apresentado como fato dado e acabado: a idéia

propalada de que a ASMARE vem sendo considerada “modelo nacional” e “pedra de toque” das

políticas sociais e ambientais da municipalidade belohorizontina, “uma experiência bem sucedida na

política social do município”. Cabe então trazermos rapidamente um pouco do que foi a gênese da

ASMARE, com a finalidade de situar o leitor no eixo das discussões a serem desenvolvidas ao longo

dessa pesquisa.

Quem primeiro decidiu realizar um trabalho mais abrangente com os homens e mulheres

catadores(as) de papel na capital foi a Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte, um grupo

inicialmente formado por duas irmãs beneditinas em conjunto com outras 10 pessoas recém-chegadas

14

da capital Paulista. Elas se valiam da experiência vivida num trabalho sócio-pedagógico com a

população de rua daquela cidade. Tal experiência desembocaria numa ação pioneira no trato com essa

população: a organização da Cooperativa de Catadores de Papel Autônomos – COOPAMARE, no ano

de 1989.

Trabalhar de maneira semelhante em Belo Horizonte significaria utilizar outro tipo de

metodologia no trato com aquelas pessoas, que há muito já vinham sendo vitimadas pela repressão

aberta e direta do poder público. Sua concepção estaria calcada na substituição do assistencialismo

direto (doação de comida, roupas etc) para o estabelecimento de laços entre eles, base para uma

confiança mútua. Sônia Maria Dias (2002), tendo escrevido sua dissertação de mestrado sobre o

projeto de coleta seletiva na capital mineira e sua parceria com a ASMARE, define a metodologia da

Pastoral como sendo pautada:

...pelos princípios da educação popular que reconhece os catadores e a população de rua como sujeitos de sua própria história. O objetivo da ação pastoral é o de se uma presença solidária e evangélica junta a essa população historicamente excluída, fortalecendo o surgimento de novos sujeitos e valores (Dias, 2002, p.57).

A Pastoral de Rua apostava na possibilidade de que os homens e mulheres catadores(as)

pudessem exercer o seu trabalho fora da condição marginalizada de mendigo, detendo o

reconhecimento social e institucional como categoria profissional e também podendo se organizar em

cooperativas e associações. Ainda nas palavras de Dias (2002, p.58): “...realizar, em condições dignas,

a coleta seletiva da cidade, passo inicial que viabiliza a reciclagem”. Acreditava-se que uma iniciativa

dessa natureza, baseada no reconhecimento individual e social pelo trabalho representaria o resgate

da dignidade e da cidadania daquelas pessoas. A catação constituiria-se numa atividade econômica

que garantiria a reprodução individual dos catadores(as) e, já pincelada pelo discurso ecológico, traria a

componente ambiental para esta mesma atividade como fator de visibilidade e legitimação da mesma.

Quanto à Superintência de Limpeza Urbana – SLU, órgão municipal homônimo ao serviço por

ele executado, ela necessitava se colocar de maneira eficiente nas suas atribuições para a população

belorizontina, concorrendo para que a ação direta sobre as pessoas dos catadores fosse cada vez mais

violenta. Caracterizavam-se nessa ação as “operações limpeza”, realizadas conjuntamente ora pela

SLU e a Polícia Militar, ora pela Defesa Civil e esta última, cujos objetivos eram confiscar os materiais

provinientes da catação e queimá-los, além de expulsar do terreno localizado à Avenida do Contorno e

conhecido como “malocas”, utilizado por aquelas pessoas para refúgio e “moradia”. Todo o acontecido

foi relatado por meio de uma “Carta Aberta à Cidade de Belo Horizonte”, elaborada no dia 22 de agosto

de 1988 pelos(as) catadores(as) expulsos das “malocas” juntamente com a Pastoral de Rua: ”...a

Prefeitura chegou no dia 22 de agosto com a PM e a Defesa Civil às quatro horas da manhã jogando

15

os barracos para o chão com as coisas e todos nós dentro. A gente não teve tempo para tirar as

coisas. Perdemos tudo que tínhamos: cobertores, documentos (...), também o papel, a sucata, (...),

ferro que tínhamos para vender”5.

A mobilização dos homens e mulheres catadores(as), mediada pelos agentes da pastoral, foi

se fortalecendo a partir de diversas reuniões, culminando “...com a fundação da Associação dos

Catadores de Papel, Papelão e material Reciclável – ASMARE –, em assembléia de fundação no dia

27 de abril de 1990, com 10 associados” (DIAS, 2002, p.59).

A partir do ano de 1993, com a posse da Frente BH Popular na Prefeitura Municipal de Belo

Horizonte, as relações entre poder público e população de rua, sobretudo na forma de intervenção

daquele sobre esta, modifica-se significativamente. Os programas criados pautavam-se na adoção de

alternativas de trabalho e renda como via da “conquista da cidadania” por estes grupos marginalizados,

como foi o caso da, à época, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, lançando o “programa

da população de rua”. Já na SLU, “...inicia-se a implementação de um modelo de gestão que se

enquadra no marco de um sistema de gerenciamento integrado de resíduos sólidos que vê na

reciclagem um instrumento de participação e inclusão social” (DIAS, 2002, p.63).

Desde então a ASMARE adquiriu ampla visibilidade nacional e até internacional, com a

conquista de prêmios concedida por organismos internacionais. Em 1999, a ASMARE, juntamente com

técnicos da Pastoral iniciou nos municípios de Brumadinho e Ibirité a prestação de consultorias pelo

“Programa Lixo e Cidadania” do UNICEF, cujo objetivo é a erradicação do trabalho infantil nos lixões

através do incentivo à formação pelas famílias assistidas de cooperativas e associações. A atuação

dessa consultoria, de acordo com Dias (2002, p. 166), no ano de 2000 “...já havia se ampliado para 14

municípios e para 33, no final de 2001”. Vejamos abaixo algumas das alusões positivas que vêm sendo

feitas à ASMARE e disseminadas para a sociedade:

“Uma experiência ousada que permitiu a transformação do desperdício atual em matéria-prima para o

trabalho digno de centenas de famílias. Hoje, os catadores de Belo Horizonte são respeitados por sua

organização e colaboração com a melhoria do ambiente urbano”6.

“Dentro dos galpões da ASMARE, o trabalho é dividido em comissões, favorecendo o espírito da

coletividade (...). Ao adotar os princípios da coogestão, a Associação, também, proporciona aos

5 Trecho retirado da dissertação de mestrado “Construindo a Cidadania: Avanços e Limites do Projeto de Coleta Seletiva em Parceria com a ASMARE”, de autoria de Sônia Maria Dias (2002). 6 Folder produzido pela ASMARE (sem data).

16

catadores de papel o exercício da democracia”7.

“De excluídos a donos de um grande empreendimento”8.

Ao projetarem para a sociedade a imagem de uma associação voltada para a promoção do

“trabalho digno”, o estímulo à “coletividade” e ao exercício da “democracia”, fazendo dos catadores(as),

outrora “excluídos”, a “donos de um grande empreendimento”, a administração e os demais agentes de

mediação ligados à ASMARE deixam na escuridão seus problemas e contradições cruciais, para,

quando muito, ocuparem-se de questões elementares. Não queremos dizer que elas não sejam

importantes e que delas não devam se ocupar. Entretanto, devem ser tomadas como manifestações do

todo, o qual deve ser interrogado e, no limite, combatido. Mas o que estamos chamando de “todo”?

Ora, ele nada mais é do que o movimento geral de reprodução social, determinante e determinado na e

pela reprodução capitalista da riqueza.

A análise, ao se processar como separação entre o fenômeno e sua essência sem a

preocupação de recuperá-los nela mesma, destituindo de complementaridade o que também é

contraditório, perde-se no encobrimento do que deve ser efetivamente compreendido. Com efeito, não

pensar os problemas que nos acometem como parte da “...totalidade de relações complexas que

formam a natureza” (LEFEBVRE, 1979, p.185), inserindo-os numa relação abstrata e geral, contida

num mundo então entendido como “sistema fechado”, é privar de sentido o próprio movimento do real,

ferindo de morte o pensamento. Realizar a separação entre fenômeno e essência, portanto, não

envolve conferir-lhes o estatuto de oposições estanques, tampouco inseri-los numa espécie de

hierarquia de importância. Cumpre destacar que compreender a realidade é um exercício exigente da

sua decomposição a partir da apreensão dos fenômenos em separado, para em seguida reuni-los na

totalidade, no movimento do real.

Assim, deslocar os fenômenos tanto de suas conexões internas como as de ordem geral,

significa torná-los incompreensíveis na sua totalidade. Propiciar esta incompreensão, redefinir suas

condicionantes e a opacidade de seus véus tem sido o esforço histórico daqueles que por meio da

violência, o terror e a opressão tomaram para si a capacidade de determinar as condições sociais de

existência dos demais. Seus resultados catastróficos não são novidade para ninguém: guerras,

totalitarismos políticos e religiosos e toda sorte de injustiças sociais grassam sobre a humanidade,

inclusive, nos dias de hoje, na forma dos espetáculos midiáticos. O que se fez pairar sobre os

7 Idem. 8 Trecho retirado de: ASMARE – Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável. ASMARE: há dez anos reciclando vidas. Belo Horizonte, [2000?]. Edição especial comemorativa, n.p.

17

indivíduos é a exacerbação da sua incapacidade de ir além das formas fenomênicas e munir a

denúncia com as armas da transformação do existente, como realização dos possíveis históricos.

Advém daí o conceito de “pseudoconcreticidade”, cunhado por Karel Kosik (1976). A aparente

regularidade, acompanhada de uma suposta imediaticidade e evidência propiciada pelos fenômenos na

vida cotidiana, conservam em si mesmas o aspecto de “coisas” que se dão por si mesmas, “naturais”

porque “independentes” da vontade dos homens. O autor mencionado aduz que a realidade cotidiana

manifesta-se à consciência na forma dos múltiplos fenômenos, sendo projetada como “realidade

mesma”, percebida como “independente” e “espontânea”, embora esteja carregada pelo conteúdo

histórico e social, sendo esse contaminado pelas ideologias que fetichizam essa mesma realidade

(KOSIK, 1976). Ademais, numa sociedade como a nossa, cujos mecanismos sumamente complexos

utilizados para tornar ilusória a realidade, não mais advém somente dos grupos hegemônicos, mas são

ampliadamente reproduzidos pelos próprios indivíduos sobre os quais essa hegemonia pesa, penetrar

nas inúmeras camadas de representações fetichizantes e trazer à tona o real antes soterrado é algo

urgente.

Dizendo de outro modo, ao nos depararmos com dizeres evocando a ASMARE como

“experiência bem sucedida” e o poder público como promotor de “parcerias de sucesso”, alusões

localizadas apenas no plano do imediato, faz-se necessário querer mais: “O conhecimento (a razão que

quer conhecer) não pode parar nesse imediato (nas sensações, nas primeiras impressões), com o qual

se satisfaz freqüentemente o senso comum” (LEFEBVRE, 1979, p.216). Cabe ao conhecimento que se

faz conduzido pela crítica radical tomar a mera constatação dos supostos fatos (o imediato) avançando

na sua composição interna e buscando encontrar aquilo que se dissimula e simultaneamente pode se

evidenciar, a saber, a essência do que vem sendo dito, expresso e propalado quando o assunto é a

ASMARE: suas implicações e imbricamentos com o geral, com o todo.

A escolha deste caminho envolve uma questão de método e, por sua vez, os procedimentos

metodológicos com os quais trabalharemos no sentido de fornecer-lhe suporte, coerência e rigor

analítico. Provém daí nossa escolha pela perspectiva dialética de análise, a qual dá corpo à abordagem

calcada no materialismo histórico-geográfico. Harvey (2004, p.30), em seu livro “Espaços de

esperança”, ao optar por tal abordagem justifica-se pelo tratamento difícil com a “...questão da relação

entre ‘particularidade’ e ‘universalidade’ na construção do conhecimento (...). [Não há a separação]

entre particularidade e universalidade em nosso modo de pensar e nossa argumentação”. Em relação a

esse materialismo, ele é dialético porque está assentado num "...pensamento crítico que se propõe a

compreender a 'coisa em si' e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão

da realidade" (KOSIK, 1976, p.16). Não se contenta em encerrar o pensamento nas "adjacências" do

imediato, como se esse procedimento em si mesmo já fosse capaz de desvendá-lo e desvendar suas

18

conexões mais profundas. Além do mais, a realidade não é um conjunto de relações e representações

que sob as quais pesam apenas determinações, fixando essa realidade no espaço e no tempo como

parte de uma submissão à “transcendentalidade” de leis naturais e imutáveis. Refutar tais premissas,

em busca de verdades outras em relação àquelas cotidiana e ilusoriamente a nós “oferecidas”, como

bem nos diz Kosik (1976, p.19), consiste em perceber que “...a verdade não é nem inatingível, nem

alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza”.

Quanto aos procedimentos metodológicos nosso principal intento consiste em dar voz aos

homens e mulheres catadores(as) de papel. Pois conhecendo mais de perto a compreensão que eles

têm de si mesmos e do mundo do qual fazem parte e ajudam a construir – e a partir daí efetuam suas

escolhas (com maior ou menor margem para fazê-las) – nos municiaremos dos subsídios para

percebermos de que forma o aparecer social, ao se introjetar nas consciências como realidade mesma,

sob diversos aspectos passa a confundi-las ao invés de viabilizar qualquer esclarecimento. Tudo isso

se dá na medida em que o conjunto de abstrações e representações hegemônicas concretizam-se na

vida social reivindicando para si o estatuto dessa realidade mesma.

Desde o início da pesquisa, achamos por bem realizar saídas a campo que focassem os

homens e mulheres catadores(as) de papel, sem uma distinção entre associados à ASMARE e

aqueles(as) que prestam seus serviços junto aos depósitos particulares. Julgamos importante tomar

contato com essas pessoas primeiramente, transferindo outras observações de caráter empírico, como

visitas à Superintendência de Limpeza Urbana – SLU – ou a Pastoral de Rua para um momento

posterior. Teríamos assim a chance de reunir observações iniciais que confrontassem a aparência (a

imagem redentora da “conquista” da “cidadania” pelos catadores(as) associados veiculada para a

sociedade) e a essência (os processos gerais abarcando e compondo o cerne da vida social e os

tornando “pessoas”). Procuramos privilegiar as impressões acerca da relação que aquelas pessoas têm

com o seu trabalho, com a espacialidade da metrópole, com seus companheiros e com o lixo,

associando estes elementos às práticas espaciais experimentadas por elas e o embotamento de seus

sentidos vigorosos (porque atribuídos ao uso), sob os auspícios da sociedade burguesa.

Com isso, pensávamos na abertura de caminhos que tornassem possível uma aproximação

mais consistente junto aos homens e mulheres catadores(as) de papel. Nossa intenção era permitir a

utilização da “observação participante” (SELLTIZ, et al., 1987) conjugada com a obtenção de seus

relatos e suas histórias de vida, mais uma vez tomando o cuidado de ultrapassar o fenômeno em si,

como se seu conteúdo abarcasse tão somente a trajetória de vida dos entrevistados, estando ela

desconectada das mediações/determinações sociais.

E era a área central de Belo Horizonte, compreendendo a região do viaduto Castelo Branco e

adjacências, o principal espaço-tempo a ser investigado, visto ser ali que se desenrolava parte da

19

cotidianidade a ser apreendida em nossa pesquisa, sobretudo pela concentração de depósitos e

localização da sede da ASMARE. Esta incursão nos proporcionou um universo riquíssimo, recheado de

histórias de vida que não podiam passar incólumes à nossa observação. Pudemos perceber algo da

intricada rede de relações estabelecidas entre catadores(as) e depósitos, entre catadores(as)

“informais” e associados(as) e cooperados(as) e algumas das modalidades de espacialização do poder

público, na forma das instituições “corretoras” (o Centro de Referência da População de Rua, por

exemplo). Pode-se dizer que aquela aproximação foi fecunda na medida em que viria mais tarde a

“servir” como uma espécie de comparativo com a situação mais geral dos catadores(as) associados à

ASMARE.

Não resta dúvida que foi (e é) uma tarefa bastante difícil a aproximação junto a esse grupo

social. São pessoas desconfiadas, arredias, criando a necessidade de que nosso contato tivesse de ser

feito sem pressa, numa busca imbuída da criação de um vínculo de amizade, procurando de alguma

maneira diminuir o abismo que se colocava entre nós. E não poderia ser diferente. Como pensar outro

tipo de reação de pessoas cujas representações sociais advindas de grande parte da população são as

piores possíveis, onde não raro são vistos como “mendigos”, “marginais”, “excrescências” etc.? A vida

colocada para eles, muitas vezes forjada como consciência cotidiana de uma situação “justificável” e

até “merecida”, os deixa fragilizados e melindrosos em relação às pessoas que ali chegam e se põem a

conversar, ainda que “despretensiosamente”.

Deu-se então, com o passar dos meses, nossa aproximação junto aos associados(as) à

ASMARE. Fazíamos visitas quase diárias ao galpão da Avenida do Contorno, iniciativa deveras

necessária para sacramentar a conquista de confiança, tanto de nossa parte quanto dos catadores(as).

Aproveitando nossa observação atenta à rotina diária por eles desempenhada, aproveitávamos para

estabelecer conversas mais alongadas ou mesmo “bate-papos” em diferentes momentos, nos quais

não necessariamente tocávamos em assuntos associados ao seu trabalho. Concomitantemente,

surgiam laços de amizade mais firmes, ilustrados por convites que nos foram feitos por diferentes

catadores(as) para fazermos visitas às suas residências. Fomos mais de uma vez a três delas, onde

sempre nos receberam muito bem. Foram-nos proporcionadas longas e despreocupadas conversas,

todas elas entremeadas por um gostoso café ou o almoço simples, mas feito com carinho e satisfação.

Assuntos como família, filhos, alegrias, angústias, desejos, política e tantos outros deram o tom dos

encontros dominicais que tivemos, único dia possível para a recepção das visitas devido à semana

sempre árdua de trabalho reservada a cada um deles.

O resultado dessas visitas e conversas foram vastos e impressionantes depoimentos, um

precioso material para nossa pesquisa. Cinco “catadores históricos” foram escolhidos para fornecê-los.

Tal denominação é dada àqueles catadores e catadoras que participaram diretamente de todo o

20

processo de constituição da ASMARE, desde as primeiras reuniões, mobilizações, passeatas e

ocupações até o acordo com o poder público municipal, o qual desde então foi tido inexoravelmente

como “imprescindível” na viabilização daquela associação.

Por questões de privacidade e preservação da identidade, decidimos garantir o anonimato de

cada um deles nos valendo de nomes fictícios.

Esta pesquisa, além de sua introdução, considerações finais, referências bibliográficas e

anexo, está estruturada em quatro diferentes capítulos, a saber. O capítulo 1 versa sobre a crise e as

reestruturações do capitalismo no tocante ao modelo de acumulação, nos rearranjos de seus padrões

produtivos e na reorganização da gestão e do controle dos processos de trabalho. A idéia central nesse

capítulo é trazer à tona o debate e a reflexão sobre um paradoxal e contraditório movimento: as

mencionadas reestruturações verificadas no trabalho, solapando globalmente conquistas e direitos

trabalhistas – cujo fenômeno tem sido denominado “precarização do trabalho” (Antunes, 1999; Bihr,

1991, entre outros) – e a matriz discursiva apregoada pelo empresariado e por vários teóricos,

sobretudo na sociologia do trabalho, chamada de “revalorização do trabalho”. Trata-se também de

pensar esses processos em curso a partir de sua ressonância na ASMARE, empreendimento que,

como vimos acima, tem sido objeto da patente exaltação do “resgate da dignidade” e da “conquista da

cidadania” dos homens e mulheres catadores(as) de papel por meio do “direito ao trabalho”.

O capítulo 2 se apóia em duas frentes principais de análise. A primeira delas consiste em

realizar uma costura entre as concepções de cidadania e participação social no ocidente (com suas

repercussões no cenário e na especificidade brasileira) oriundas das lutas sociais empreendidas pelos

diversos movimentos que estiveram de uma forma ou de outra envolvidos na conquista de e também

na aquisição de novos direitos. Na segunda frente procuramos descrever e analisar a ascensão e o

retrocesso de tais lutas no cenário histórico-social recente brasileiro – aquele que se deu a partir do

processo de redemocratização e que chega aos dias de hoje. Esta espécie de “divisor de águas” deu

subsídios para pensarmos aquilo que chamamos de desordem semântica das noções de cidadania e

participação social, próprias de um momento que, contraditória e paradoxalmente, emerge como a “Era

dos Direitos”. Tais frentes de análise propiciam a verificação de toda a trama produzida como pano de

fundo da redemocratização e a sua realização no “Projeto ASMARE”. O que nos permitirá ratificar tudo

aquilo que vem sendo propalado acerca da Associação ou deixar claro seus (des)caminhos cada vez

mais evidentes, caracterizado pelo abandono da sua postura inicialmente fundada no enfrentamento

para outra, de reaparelhamento consentido aos desígnios hegemônicos representados pela via da

institucionalização das lutas.

Já no capítulo 3, a análise toma diferentes caminhos. No primeiro deles trazemos à baila o

debate teórico sobre a “exclusão social”. Nosso principal argumento neste momento é que, ao se trazer

21

o fenômeno da “exclusão” (tomada como categoria analítica) ao primeiro nível de análise da realidade

social, geram-se insuficiências no tocante à sua compreensão mais efetiva, muito mais ocultando do

que desvelando suas contradições. Nossa reflexão baseia-se na constatação de que grande parte dos

agentes de mediação partem do pressuposto da necessidade de realizar um “movimento” que faça o

“excluído” “alcançar” o universo da “inclusão” por meio de políticas sociais e do trabalho profícuo

daqueles que vêm se ocupando da “causa do catador” – sobretudo a Pastoral de Rua.

O segundo momento do referido capítulo procura tratar da crise ecológica e dos debates que

entremearam e deram corpo à “problemática ambiental”, da qual o conceito de “desenvolvimento

sustentável” emerge como “novo paradigma” econômico, político, social e ambiental. Nossa intenção foi

estabelecer um nexo entre a relação homem/natureza (com o primeiro se levantando de sua

animalidade e se voltando contra sua própria natureza e a natureza externa) inscrita teórica e

praticamente no processo civilizatório moderno-burguês (rapidamente pontuada na pesquisa) e o

modelo político-econômico e cultural fornecedor de sustentação ao desenvolvimento sustentável.

Imbuídos deste objetivo, mobilizamos a Agenda 21, tomada apenas na temática dos resíduos sólidos, e

suas repercussões no programa de coleta seletiva em Belo Horizonte. Este percurso nos leva ao

terreno das relações envolvendo poder público, grandes aparistas de papel e indústria da reciclagem,

permitindo a compreensão dos porquês da viabilidade do mercado dos recicláveis.

No terceiro e último momento, discutimos a “questão institucional”, as formas pelas quais se

dão as intervenções do poder público municipal no âmbito das relações tecidas entre este e a

ASMARE. Trata-se aqui de investigar o que hoje vem sendo chamado de “parcerias”, estabelecidas

entre esse poder público e as entidades civis (organizações não-governamentais, fundações etc) com

vistas a promover as ações de assistência social em Belo Horizonte. A conjugação entre este e o

primeiro momento propicia uma melhor compreensão da realização dos modelos de “assistência” e

“inclusão” (sendo o “Programa de Inclusão Produtiva” aquele sobre o qual nos debruçaremos) sociais

junto às populações em “vulnerabilidade social”, como é o caso dos homens e mulheres catadores(as)

de papel. Para tanto, recorremos às informações e dados adquiridos na Superintendência de Limpeza

Urbana – SLU – e na Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social – SMAAS –, de modo a

entender a maneira pela qual tais parcerias vêm ensejando a ação institucional.

Por fim, no capítulo 4 procuramos dar voz e vez aos homens e mulheres que realizam a

catação nas ruas de Belo Horizonte. Nossa intenção é situá-los na condição de pessoas, antes de

serem catadores. Ao deixá-los se exporem, estamos contribuindo para trazer à tona a fala do migrante,

do “agente ambiental” da área central que também é morador da periferia, daquele que tece relações

diversas em sua vida cotidiana, mas que também carrega o fardo cada vez mais pesado de uma vida

que insiste em lhe escapar.

22

Uma de nossas precauções é a de não situar essas pessoas numa categorização abstrata,

enclausurando-as na órbita socioeconômica porque reduzidas a meros trabalhadores. Igualmente, não

estamos dispostos a inscrevê-las numa fenomenologia que as transforma em “sujeitos” no vir-a-ser de

sua vida imediata, vivida como “dinâmica” descolada do processo geral e contraditório de reprodução

social sob o capitalismo.

23

CAPÍTULO 1

DA CRISE DO FORDISMO-KEYNESIANISMO AO CAPITALISMO FLEXÍVEL-

NEOLIBERAL: NOVAS EXIGÊNCIAS AO TRABALHO E AOS PROCESSOS

PRODUTIVOS

Para entendermos parte do porquê das substanciais mudanças ocorridas no trabalho na

contemporaneidade, achamos necessário apresentarmos um expedito exame das igualmente

substanciais redefinições e reestruturações do capitalismo tardio9. Não é nosso objetivo aqui realizar

um mergulho aprofundado no processo histórico-social no qual tais redefinições e reestruturações se

localizam e ao mesmo tempo ajudaram a construir. Por isso, não nos deteremos esmeradamente na

descrição e análise desse largo processo10, não deixando, contudo, de situá-lo no âmbito dos desafios

que foram colocados à reprodução do capital, dimensões substanciais das formas e conteúdos

conformadores da sociedade contemporânea. É preciso, pois, repisar o terreno das formulações

teóricas através das quais diversos autores procuraram se debruçar, pondo a nu o esfacelamento do

modelo fordista de acumulação e suas ressonâncias no modelo de regulação social-democrata

europeu. É neste esteio que o capitalismo, enquanto formação econômico-social, procura retomar as

taxas de lucro em níveis satisfatórios, atingindo um novo patamar de acumulação, a qual esses

mesmos autores vão denominar flexível, por dentro da “onda neoliberal”.

A nosso ver, a supracitada menção de tais pontos constitui-se na chave para uma melhor

compreensão do significado do imperativo colocado à necessidade de se tornar efetiva a reorganização

dos processos produtivos e da gestão e controle do trabalho. Toda essa reorganização tem acento na

introdução das novas tecnologias informacionais, a robótica, a gestão estratégica da informação, do

conhecimento e dos “recursos humanos”, para não mencionar outros processos em curso no campo

das “reengenharias” no interior das fábricas e empresas. Vem daí a problemática da “revalorização do

trabalho”, implicada na mudança das noções de qualificação profissional e de competência, sendo seus

modelos levados a cabo junto aos trabalhadores e desempregados, sobretudo, mas não deixando de

ter algum tipo de influência nas novas estratégias das políticas de assistência social para se lidar com

os grupos tidos como estando em “vulnerabilidade social”.

9 A adjetivação “tardio” feita por nós ao capitalismo está referida em Adorno (1994, p.63), quando este afirma que o modo de produção, devido ao imenso desenvolvimento técnico da sua forma reprodutiva, “...as relações de produção [a ele concernentes] se revelaram mais elásticas do que Marx imaginara”. 10 Nesse caso, teríamos como ponto de partida o modelo acumulativo-regulatório fordista-keynesiano para chegarmos ao seu gradual remodelamento e substituição por outro modelo, que aqui chamaremos de flexível-neoliberal.

24

1.1. A saída capitalista da crise: a emergência do modelo flexível-neoliberal

A grande crise sistêmica que atingiu o capitalismo global já em meados da década de 1960, em

larga medida é resultado da debilidade dos arcabouços econômicos, técnico-produtivos e político-

institucionais que lhe serviram de pilares no longo período de crescimento econômico do pós-guerra.

Tais arcabouços interferiam direta e indiretamente na regulação e na viabilização do processo de

acumulação e conferiam o fôlego necessário à manutenção das condições gerais de reprodução do

capital. Assim, durante quase trinta anos o capitalismo pôde experimentar momentos de grande

crescimento econômico, garantindo nos países centrais relativo controle político e social, muito embora

tensões dessa mesma ordem tenham se expressado pela ação de diversas frações dos movimentos

sociais, como o operário, que no final da década de 1960 chegou a questionar um dos centros

nervosos da sociabilidade do capital: o controle social da produção (ANTUNES, 1999).

Vale dizer que somos conscientes da necessidade de análise da crise no tocante à

incorporação da dinâmica e os processos em torno dos quais ela se dá. Entretanto, deixamos claro que

não nos deteremos neste empreendimento11. Mesmo assim, não estamos desatentos aos

“combustíveis” ensejadores da ciclicidade que envolve a umbilical relação entre crise e prosperidade

econômica sob o capitalismo. Afinal de contas, para orientar sua reprodução incessante, o modo de

produção vigente necessita lidar com as contradições a que se vê exposto, destruindo para logo em

seguida (re)criar, no sentido lato, suas relações fundamentais.

Para que o modelo fordista de acumulação pudesse ser viável, consistente e, sobretudo,

eficiente na manutenção das altas taxas de lucro (o telos da reprodução do capital), fizeram-se

necessárias, entre outras circunstâncias favoráveis, um amplo pacto interinstitucional envolvendo a

tríade Estado-capital-trabalho. Alguns fatores – em boa medida recorrentes no histórico do processo de

acumulação – tornados conhecidos pela literatura especializada, contribuíram decisivamente para a

debilidade e a criação de sérios entraves para a manutenção deste pacto. Até então funcionando como

“mola-mestra” da acumulação numa conjuntura em demasia favorável, são as suas próprias estruturas

viabilizadoras as “vilãs” a serem combatidas. Antes de expor o cerne explicativo da “saída capitalista da

crise” nas linhas a seguir, comungamos com a linha de análise de Georges Benko (2002), segundo a

qual o movimento de ruptura com as ditas estruturas anteriores primordialmente está ligado a uma

“...modalidade de aprofundamento das relações capitalistas” (BENKO, 2002, p.20), cuja necessidade é,

por assim dizer, vital à sobrevivência do modo de produção.

11 Para um maior contato mais com a dinâmica e os processos condicionantes e ao mesmo tempo resultantes das crises, sugerimos os trabalhos de Harvey (1996) e Antunes (1999).

25

Se durante o período mencionado os países centrais puderam conviver com índices crescentes

de produtividade – ajudando a sustentar seu vertiginoso crescimento econômico –, na sua curva

descendente tais índices conheceram bruscas e continuadas quedas. A generalização dos padrões

produtivos fordistas a uma miríade de setores industriais em busca da ampliação dos circuitos

econômicos existentes – condição fundamental para a criação de novas frentes de acumulação –

acabou revelando-se ineficiente quando observada sua trajetória de produção na fábrica12 – o que, em

última instância, prolongaria o tempo de giro da mercadoria e do próprio capital. Sua ineficiência

também está referida ao desengajamento – e até à negação virulenta – dos trabalhadores de um modo

geral aos “apertos” proporcionados pela intensificação dos métodos de exploração e controle dos

processos de trabalho. A fábrica passa a ser palco constante do “...absenteísmo, do turn over, da

dilapidação, da sabotagem, das greves, etc.” (BIHR, 1991, p.70), cuja contenção já não se dava com o

aumento de salários e gratificações, significando, com isso, aumento dos custos da força de trabalho

por dentro do círculo vicioso da diminuição dos ganhos de produtividade.

O modo de produção capitalista vem debatendo-se ao longo de sua formação econômico-

social com uma inquietante contradição: a imperiosa necessidade de aumentar os níveis de

produtividade com vistas a obter o progresso contínuo da acumulação. Para tanto, faz-se igualmente

necessário investimentos crescentes em capital fixo (máquinas, equipamentos, etc.) visando tais

aumentos. O que revela a tendência à elevação da composição técnica do capital (relação entre a

quantidade de trabalho morto e o trabalho vivo por ele mobilizado) podendo igualmente produzir a

elevação de sua composição orgânica (relação entre o capital que é consumido no processo produtivo

em geral e o valor criado pelo trabalho vivo) (BIHR, 1991). O aumento do capital fixo põe em risco as

frentes de extração da mais-valia e, conseqüentemente, a produção e obtenção do valor de sua fonte

fundamental: o trabalho vivo. Esses fatores, por sua vez, põem em xeque a continuidade de obtenção

de taxas satisfatórias de lucro, golpeando com firmeza a natureza da reprodução do capital.

O modelo fordista de acumulação deveria, obviamente, lidar com as contradições acima

mencionadas. Deveria, também, construir instrumentos que fornecessem paliativos à queda da taxa de

lucro. Portanto, simultaneamente aos amplos investimentos em capital fixo para sustentar uma

produção em massa que por sua vez impulsionasse o consumo de massa, no nível do regime de

acumulação como um todo, era necessário:

...de um lado, a desvalorização de elementos do capital constante (e particularmente de sua parte fixa: os equipamentos produtivos), graças aos ganhos de produtividade realizados na

12 Bihr (1991, p.70) afirma que tal generalização foi decisiva para que o sistema de produção se tornasse “contraprodutivo”, pois limitava a “...fluidez (multiplicação dos tempos mortos, prolongamento do tempo de circulação dos produtos entre os diferentes postos de trabalho, estocagem no final da cadeia) e a flexibilidade (grande vulnerabilidade ao menor incidente: pane, quebra de estoque, mudança de produção, greve parcial, etc.) do processo de trabalho”.

26

produção desses elementos, mas também graças à sua obsolescência acelerada e planificada; de outro, a generalização do trabalho por turnos (trabalho em equipes), que permite ao mesmo tempo diminuir a composição orgânica do capital e acelerar a rotação do capital fixo (BIHR, 1991, p.71).

No correr dos anos da “Era da Felicidade” foi o consumo privado de bens duráveis (mormente

automóveis, residências e eletrodomésticos) que não só alavancou, mas em ampla medida garantiu a

efetividade positiva da relação produção/consumo nos países centrais, possibilitando a ascendência da

valorização e da conseqüente reprodução do capital. Contudo, quando a demanda por estes produtos

revelou seus limites, “...levando a uma contração das perspectivas de venda para as indústrias em

ascensão” (BIHR, 1991, p.71) novos e complicados entraves à continuidade dos níveis satisfatórios de

produtividade voltaram a assombrar os capitalistas. Além disso, a organização produtiva da fábrica

fordista não estava adaptada às novas circunstâncias presentes no ambiente dos mercados de

consumo naquele momento. Ou seja, uma característica de demanda que exigiria, por exemplo, uma

reconfiguração dos níveis de produção no sentido de absorver suas flutuações. Ao contrário, como dito

acima, a fábrica fordista se baseava na produção em massa de produtos padronizados cujo sentido

último era obter economias de escala com vistas a efetuar com o menor tempo possível o giro da

mercadoria. Era necessário realizar mudanças drásticas nos padrões produtivos e de consumo

vigentes. Isso será explicado mais adiante, inclusive nos ajudando a perceber que tais padrões, ao lado

do que chamamos “padrão financeiro de acumulação”, acham-se sumamente associados à produção

de legitimidade das diretrizes orientadoras do desenvolvimento sustentável – desembocando nas

práticas sociais mediadas pela “consciência” ecológica: coleta seletiva, reciclagem etc.

Na esfera do consumo coletivo, a norma era horizontalizar ao máximo a disponibilidade de

serviços públicos, assistência social e equipamentos coletivos pelo Estado de bem-estar. Este vigoroso

fundo público foi propiciado pela massa crescente de recursos estatais direcionados a atender a

acumulação do capital (OLIVEIRA, 1998b). Todavia, esse mesmo fundo público passava a ser oneroso

para o Estado num ambiente de crise, em que o estacionamento dos ganhos de produtividade, do

arrefecimento da demanda efetiva, da diminuição da arrecadação pública (e, conseqüentemente, a

geração de déficits orçamentários) tornava-se algo patente. O aumento crescente dos custos de

fornecimento de tais benefícios estaria relacionado ao imbricamento de três fatores: a) o encarecimento

dos custos da reprodução da força de trabalho (por exemplo, o número cada vez maior de

aposentadorias); b) o deslocamento do exercício do consumo privado para a dimensão coletiva deste

(saúde, educação, habitação, etc. fora do âmbito de mercado); e c) a não adaptação do fordismo ao

fornecimento em amplo grau dos meios sociais de consumo, fato esse que circunscrevia a produção ao

nível do consumo privado (BIHR, 1991).

27

O desenvolvimento do trabalho improdutivo, mormente daquele “...que garantia a circulação do

capital (gestão, comercialização, bancos e seguros)...”, somado ao “...conjunto das condições sociais,

institucionais e ideológicas da reprodução do capital (principalmente concentrado nos aparelhos de

Estado)” (BIHR, 1991, p.73), foi outro elemento contraditório e fator de entrave à continuidade do

regime fordista de acumulação. Esse entrave explica-se, por um lado, pela tendência à subordinação

da vida social ao conjunto de mediações estatais e de mercado; por outro lado, “...a produtividade do

trabalho improdutivo aumentou muito menos que a do trabalho produtivo” (BIHR, 1991, p.73). Além

disso, a manutenção de uma gigantesca e imprescindível estrutura estatal traduzia-se em aumento das

despesas para a sua manutenção e o travamento de uma efetiva valorização do capital (incidindo

diretamente na sua reprodução ampliada) por ele provocadas ajudaram a agravar o esfacelamento do

fordismo. O trabalho improdutivo cresceu em todos os países capitalistas avançados.

Naquele período de crise, que, como já dissemos, anunciava a urgência do capital em

combater a deterioração dos mecanismos do modelo acumulativo que lhe garantia a reprodução

ampliada, significava em larga medida “dinamizar” suas estruturas produtivas, técnicas e institucionais.

Os compromissos firmados com a classe trabalhadora para garantir o sucesso fordista-keynesiano

tornaram-se elementos criadores de severas dificuldades para sua mobilidade. Harvey (1994) chama a

essas dificuldades de rigidez:

Havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em sistemas de produção em massa que impediam muita flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo invariantes. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho (especialmente no chamado setor ‘monopolista’) (HARVEY, 1994, p.135).

A idéia de rigidez trazida por David Harvey nos permite verificar alguns aspectos das

dificuldades do setor produtivo em modificar e reconfigurar suas estruturas de produção. O primeiro

deles relaciona-se à natureza operacional presente na estrutura corporativa como um todo, cujo quadro

de ineficiência apresentado pelos mecanismos do planejamento produtivo não propiciava mudanças

bruscas na rota de aquisição de capital fixo, monitoração dos preços dos produtos no mercado

internacional, preços de matérias-primas etc. O segundo aspecto diz respeito aos contratos sociais

rígidos praticados nos países centrais, associados a uma voraz fiscalização por parte da classe

trabalhadora desses países. Por fim, o terceiro aspecto chama a atenção para o descompasso entre as

atribuições sociais por parte do Estado e os problemas de arrecadação (desencadeado pelo alto preço

político e econômico de novos aumentos de impostos), combinados com a necessidade de ampliação

das benesses sociais objetivadas a partir dos compromissos interinstitucionais firmados no pós-guerra.

O que se percebe, é que o período áureo de crescimento verificado nos países centrais havia

28

gerado uma liquidez de fundos enorme, contraposta à impossibilidade por parte dos grupos

econômicos de se buscar novos nichos de mercado através da diversificação de produtos e alavancar

a capacidade produtiva ociosa, garantindo, assim, níveis contínuos de demanda efetiva. As políticas

monetárias, ao invés de ajudarem a tomar as rédeas da estabilidade econômica, estavam, ao contrário,

contribuindo para uma pressão inflacionária cada vez maior, gerando um círculo vicioso que tornava a

vida das principais instituições financeiras ainda mais difícil.

Na perspectiva microeconômica, diante da supracitada recuperação econômica da Europa

Ocidental e do Japão, houve um considerável aumento da competitividade entre as corporações

estadunidenses e suas rivais do Atlântico e do Pacífico. Destaca-se também o surgimento de sistemas

regionais periféricos de produção em massa em condições sólidas de competitividade, resultantes das

próprias necessidades do capital de destruir, reconfigurar e criar novos espaços de acumulação.

Paralelas a tal imperativo foram as fugas de capitais e o estabelecimento das grandes corporações em

paragens onde a força de trabalho fosse mais barata e mais dócil, onde o sistema jurídico-legislativo

fosse menos rígido etc. – notadamente no Sudeste asiático e países como Coréia, México e o próprio

Brasil. Este aumento da competitividade corporativa incidiu sobre os preços dos produtos finais,

fazendo com que estes decaíssem, comprometendo ainda mais as taxas de lucro (HARVEY, 1994).

Associada às dificuldades explicitadas, a crise energética desencadeia-se em 1973, quando a

OPEP ordenou um aumento a níveis estratosféricos do barril do petróleo – contribuindo para um

substancial aclive dos preços dos insumos energéticos dele derivados –, prejudicando sobremaneira as

economias centrais, amplamente dependentes desse combustível para viabilizar o crescimento de sua

produção industrial. Esse fator acabou levando “todos os seguimentos da economia a buscarem modos

de economizar energia através da mudança tecnológica e organizacional”, além de trazer à tona o

“problema da reciclagem dos petrodólares excedentes, problema que exacerbou a já forte instabilidade

dos mercados financeiros mundiais” (HARVEY, 1994, p.137).

Foi neste cenário que o modo de produção por inteiro, para retomar sua dinâmica de

manutenção, necessitava realizar uma ampla reconfiguração de suas estruturas produtivas no esteio

de não menos amplas redefinições nas suas dimensões econômicas, políticas, institucionais,

societárias, culturais e ambientais. Entretanto, tais definições se deram mediante a relutante conclusão

dos capitalistas de que as estruturas de valorização e acumulação fordistas não mais conseguiam

assegurar a navegação tranqüila pelas águas sempre revoltas da reprodução do capital (BIHR, 1991).

Este viés teórico nos ajuda na compreensão dos processos ensejadores do declínio do fordismo e a

emergência de estratégias e ações no sentido de reorientar a regulação político-institucional e os

termos da acumulação do capital.

Conforme mencionado, o alicerce político-institucional e técnico-produtivo que havia sustentado

29

o modelo fordista de acumulação até então, foi se mostrando ineficiente e, em alguns momentos,

representando um entrave à reprodução do capital. Contudo, as tarefas a serem desempenhadas numa

empreitada de retomada de taxas de lucro favoráveis pressupunham o reordenamento do amplo pacto

social anteriormente realizado, além das estruturas de produção e reprodução econômica, em sua boa

parte, solidamente constituídas. Mudanças dessa envergadura não se dariam sem grandes efeitos

colaterais. Para explicá-los, estarei amparado por Harvey (1994), utilizando assim o conceito de

“Acumulação Flexível” para designar o processo ora em curso.

A acumulação flexível, segundo Harvey:

...é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas... (HARVEY, 1994, p.140).

Ora, uma reestruturação sistêmica como esta necessariamente supõe um reaparelhamento

das forças sociais que formaram o pacto fordista do pós-guerra. Nesse sentido, o compromisso

trabalhista firmado na esteira do pacto interinstitucional de outrora, tornava-se um estorvo em um

ambiente mercantil altamente competitivo, marcado pela incerteza e avesso a uma disciplina contratual

que favorecesse o trabalhador. Ainda assim, não seria fácil criar um embate direto pela recuperação

das concessões anteriormente feitas à classe trabalhadora, se as condições econômicas gerais do

capitalismo não estivessem em meio a uma curva descendente da acumulação. Afinal de contas, a

força de trabalho encontrava-se no torvelinho de um mundo capitalista assolado “...por dois surtos

selvagens de deflação...”, fazendo o “...desemprego aumentar nos países capitalistas (...) (salvo talvez

no Japão) para níveis sem precedentes no pós-guerra” (HARVEY, 1994, p.140), o que fortalecia o

discurso contemporizador do patronato.

Com isso, o que se nota, ainda em relação aos processos de trabalho, é uma crescente erosão

dos contratos sociais e dos direitos trabalhistas, características marcantes do Estado de Bem-Estar

Social. Os sintomas da precarização das condições de trabalho e da subproletarização vivenciada

pelos trabalhadores (ANTUNES, 1995) confirmam-se pela diminuição do emprego formal como um

todo. Em meio aos regimes flexíveis de contratação grassam a imposição de contratos temporários –

feitos geralmente na época de picos de demanda – mediante a utilização do regime de

subcontratações, a instituição do trabalho em regime parcial e da prática do estágio, além de

crescentes camadas sociais jogadas na instabilidade e na economia subterrânea (BIHR, 1991).

30

Conforme sabemos, tais contratos temporários são formulados, não raro, sem nenhum tipo de proteção

social, já que se torna uma “...tendência dos mercados de trabalho (...) reduzir o número de

trabalhadores ‘centrais’ e empregar cada vez mais uma força de trabalho que entra facilmente e é

demitida sem custos” (HARVEY, 1994, p.144). Um claro exemplo dessa tendência na Europa é o

debate francês sobre a possibilidade do empregador contratar um jovem e mantê-lo num período de

“experiência” de até 2 anos, podendo demiti-lo sem ônus caso o mesmo não satisfaça as

“necessidades” da empresa contratante.

Disseminam-se sobremaneira formas resignificadas de trabalhos domiciliares ancoradas em

um regime paternalista e familiar que, devido à própria natureza de sua organização – o modo pelo

qual são organizadas e divididas as tarefas, tipologias de solidariedades etc. –, acabam por se mostrar

impermeáveis a uma ação e mobilização articuladas aos sindicatos. No Brasil, vários segmentos

empresariais e industriais vêm utilizando este tipo de subcontratação de mão-de-obra, entre eles as

indústrias têxtil e calçadista – por meio das chamadas “facções” – e até algumas grandes redes de

supermercados – requisitando pessoas para carimbar e etiquetar cartas de cobrança. As baixíssimas

remunerações baseiam-se na produção individual e não há qualquer tipo de direito trabalhista ou

proteção social para os contratados.

Outro aspecto a ser assinalado na organização dos processos de trabalho é o aumento gradual

da carga horária de trabalho – chegando algumas empresas a fornecerem telefones celulares para

seus funcionários e assim “solicitarem” seus serviços a qualquer tempo – não obstante a maior

utilização de capital fixo nos processos produtivos. Este movimento reativo do capital – através de

formas ampliadas de controle no chão da fábrica ou do escritório e de repressão política por parte do

Estado – se propaga não só por toda a Europa Ocidental e demais países centrais, mas também na

grande maioria dos países periféricos. Simultaneamente, tem sido evidente a regressão do poder

combativo dos sindicatos, capitaneado por sucessivas derrotas nas mesas de negociação e a uma

diminuição da massa sindicalizada naquele primeiro grupo de países (ANTUNES, 1999), onde há uma

tradição dos movimentos organizados de trabalhadores, chegando à inexistência em alguns países do

segundo grupo.

Na esteira da competitividade empresarial, na qual a incerteza, a volatibilidade dos mercados e

a necessidade da inovação são enormes, a introdução (que não raro chegava às raias da imposição)

de programas de “qualidade total” ganham uma proeminência sem precedentes. Tais programas

surgem a partir das necessidades de se implantar novas bases tecnológicas e novas políticas e

princípios organizativos e gerenciais. No arcabouço de sua implantação, empresas e indústrias são

compelidas à busca de incrementos de qualidade para seus produtos e/ou serviços (a implantação dos

“controles de qualidade” mostra-se como prova cabal), da diminuição dos custos de produção, ao

31

aumento dos investimentos na qualificação profissional, especialmente no corpo principal de

funcionários das empresas. Essa especialização encerrará uma redefinição da divisão do trabalho no

interior da fábrica, onde o trabalhador passa a exercer um conjunto maior de funções – a chamada

“polivalência” (ANTUNES, 1999). Combinam-se também uma série de estratégias empresariais mais

opacas de coerção e docilização do trabalhador, entre elas a de fazê-lo internalizar o “espírito da

empresa”, haja vista a suposição de que cabe a ele “vestir a camisa” e contribuir para o crescimento do

seu local de trabalho e, logo, do seu “crescimento” individual.

No que tange aos mercados de trabalho, as redefinições de suas divisões internacional e

territorial contribuem para o seu surgimento como conseqüência de novos e rentáveis circuitos

econômicos. Entre eles, vale sublinhar a “indústria” do entretenimento – tendo no turismo uma fonte já

bastante promissora – e o setor da biotecnologia, já açambarcada pela geopolítica ambiental dos

países centrais e de seus grupos empresariais ao estabelecerem novas relações de poder sobre os

países periféricos. Tais circuitos econômicos e os respectivos mercados de trabalho a partir deles

formados, são garantidos pela reestruturação dos processos produtivos, pelas inovações tecnológicas

e organizacionais e pela produção de novos espaços, condicionantes e resultantes do espraiamento

dos mercados a todos os recônditos do globo.

Verifica-se também um substancial aumento do setor de serviços da economia em diversos

países em face da diminuição do emprego industrial – não obstante essa tendência já vir se delineando

anteriormente através do incremento das atividades comerciais e das dificuldades da indústria como

um todo trazer para si a organização e a prestação de serviços. Este processo, controverso em sua

natureza, é explicado em duas vertentes principais. A primeira se refere à disseminação das

consultorias e das empresas prestadoras de serviços sob a forma da já mencionada subcontratação,

que passam a operar serviços (publicidade, marketing, auditoria etc.) antes circunscritos às próprias

empresas manufatureiras. A segunda estaria associada às necessidades de se aumentar o tempo de

giro do consumo através do fornecimento de serviços que, ao contrário dos bens duráveis produzidos

na indústria, seriam consumidos de imediato, como “a produção de eventos (como espetáculos, que

têm um tempo de giro quase instantâneo)” (HARVEY, 1994, p.149).

Acompanhando as novas técnicas de gestão e administração empresarial, surgem eficientes e

diversificadas estratégias produtivas, municiadas por um formidável arsenal tecnológico-organizacional,

visando atender às demandas das organizações. A produção em massa, dentre outras motivações

visando as economias de escala no fordismo, a partir da emergência dos sistemas produtivos flexíveis

acaba sendo gradualmente substituída pela “manufatura de uma variedade de bens e preços baixos

em pequenos lotes” (HARVEY, 1994, p.148), chamadas de “economias de escopo”. Há que se ressaltar

que alguns ramos da produção não adotaram de imediato esses modelos flexíveis, ou mesmo os

32

combinaram com nuances produtivas fordistas, de acordo com as necessidades surgidas no âmbito da

produção e do mercado. Tais economias de escopo garantiam a possibilidade de controlar os estoques

aliando-os às condições de demanda – mudanças no “gosto”, por exemplo –, a realização de um menor

tempo de giro da mercadoria através do avanço da automação e do sistema de gerenciamento de

estoques just in time “...que corta dramaticamente a quantidade de material necessária para manter a

produção fluindo” (HARVEY, 1994, p.148). Além disso, esses novos modelos de organização do

processo produtivo permitiram a inserção de um ritmo de inovação do produto mais acelerado, de

acordo com as necessidades do mercado.

1.2. A revalorização do trabalho no capitalismo tardio: velhos discursos, novas práticas

e estratégias

Nosso intento nessa sessão é realizar um rápido diálogo com algumas questões conformadas

no bojo daquilo que se convencionou chamar de tese da revalorização do trabalho. Seu corpus ganha

relevo no amplo movimento das anteriormente analisadas reestruturações político-institucionais e

econômico-produtivas do capitalismo global, com vigorosa ressonância no trabalho e suas dimensões

concernentes.

Argumentamos que o entendimento da matriz discursiva permeadora da tese da revalorização

do trabalho será de suma importância no nosso trato posterior com as experiências programáticas

levadas a efeito pela Secretaria Municipal de Políticas Sociais – SMPS – e suas Secretarias Adjuntas,

como a de Assistência Social, ao lado da Pastoral de Rua e outras entidades parceiras nas “lutas” pela

“inclusão social” e pela “construção da cidadania” dos homens e mulheres catadores(as) de papel.

Adiantamos que o período de atuação dessas secretarias a ser analisado dá-se a partir do ano de

2001, na criação do “Programa de Inclusão produtiva” pela antiga Secretaria Municipal de Assistência

Social – SMAS. Quanto à sua contextualização e a maneira através da qual tais secretarias ajudam a

reconfigurar as relações e as práticas sociais, o faremos no capítulo 3 desta pesquisa, numa sessão

dedicada às políticas públicas municipais de assistência social e suas repercussões na ASMARE.

Apoiados em Pedrosa, podemos dizer que é no mesmo movimento através do qual entra em

cena a “...tese do fim da centralidade do trabalho, [que] emerge o discurso ou o problema da

revalorização do trabalho, seja através da ideologia da ‘competência’ ou dos estudos sobre a

‘qualificação profissional’” (PEDROSA, 2003, p.148)13. Dito de outra maneira, nesse mesmo turbilhão

13 A título de esclarecimento, não nos deteremos nesse trabalho nas contendas envolvendo o fim da centralidade do trabalho ou a sua revalorização. Apenas aproveitaremos, retirando do âmbito analítico dessa última tese, as questões ligadas à qualificação profissional e do modelo de competência. Para o entendimento de tais contendas, é interessante ver

33

chamado trabalho convivem, na forma de contradição, a sua intensa precarização sob a batuta da

especialização flexível e o discurso da sua suposta valorização – entoada como resgate da

subjetividade do trabalho e a humanização das práticas no chão da fábrica ou no do escritório. Tal

contradição será posta à mesa e discutida nos seus termos mais gerais. Para isso, observaremos mais

de perto a tese da revalorização do trabalho partindo de um pressuposto fundamental: o seu

ancoramento a partir de uma “...concepção limitada e a-histórica do trabalho como atividade humana

ou como atividade embrionária da práxis” (PEDROSA, 2003, p.166).

Segundo esse mesmo autor, hodiernamente a revalorização do trabalho vem se fazendo

fortemente presente nas matrizes discursivas empresarial e governamental de um lado, e, do outro, nos

estudos acadêmicos, sob os mais diferentes matizes (PEDROSA, 2003).

A prática correspondente aos termos do discurso empresarial vem a reboque das mudanças

estruturais no modo de produção capitalista analisadas na sessão anterior. Ao ensejar a emergência de

novas modalidades de sistemas produtivos e de organização, gestão e controle do processo de

trabalho, a racionalidade capitalista cria novos ambientes, os quais passam a concorrer para o

redimensionamento instrumental e objetivo da pessoa do trabalhador. É aí que as novas determinações

passam a pesar sobre ele, sendo-lhe exigidos novos atributos, ao mesmo tempo em que a sua própria

vivência objetiva do processo retroalimenta tais determinações. Já no caso do discurso governamental,

sua materialização faz-se presente no terreno delineado pelo conjunto da ação do Estado no âmbito

das necessidades imperativas da reprodução do capital, cabendo-lhe formular novas políticas públicas

estabelecidas, direcionadas e articuladas de acordo com os interesses hegemônicos. Nessa “clausura”

acham-se – dentro de suas respectivas especificidades – tais políticas públicas, as quais envolvem,

desde o primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), as três diferentes

esferas de governo no Brasil. Vale dizer que o assoalho ideológico presente nos discursos empresarial

e governamental imbrica-se com a noção de “competência”, questão essa a ser discutida mais adiante.

Quanto aos estudos acadêmicos, a revalorização do trabalho aparece na seara promovida

pelas contendas envolvendo a chamada requalificação profissional. Seu recrudescimento dá-se já nos

idos da década de 1980, após o arrefecimento da “bravermania”14, com a emergência de diversos

os trabalhos de Gorz (1987) e Pedrosa (2003). 14 Harry Braverman ficou conhecido, não só no âmbito da Sociologia do Trabalho, mas também fora dela, por sua tese envolvendo a relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e o processo de trabalho sob o capitalismo. Assim, “...quanto mais tecnologia fosse introduzida ao processo de trabalho mais este se apresentaria como desqualificado, uma vez que essa tecnologia significava o aprimoramento dos mecanismos de divisão e controle” (PEDROSA, 2003, p.160). Num estudo que serviu de mote para uma série de trabalhos posteriores adotando sua mesma linha aqui no Brasil, aduzia em torno da “desqualificação inelutável, gradual, progressiva como conseqüência do aprofundamento da divisão do trabalho no capitalismo...” (HIRATA, 2000, p.131). Isso conduziria à “polarização das qualificações” por nós mencionada, fenômeno esse que criaria um sem-número de trabalhadores desqualificados ao lado de outros dotados de uma pujante qualificação afeita aos propósitos mais gerais do processo produtivo do capitalismo contemporâneo. Se por um lado Braverman

34

trabalhos – tanto de natureza pontual, por meio de estudos de caso, quanto de teses que se

debruçavam sobre o problema da qualificação de maneira mais abrangente.

Constata-se a umbilical relação, mediada pela tese da revalorização do trabalho, entre a

“requalificação profissional”, o “modelo de competência” e os seus significados na dinâmica régia

norteadora das relações sociais de produção sob o capitalismo. Nesse horizonte, recuperamos as

palavras de Oder José dos Santos (2004), quando o mesmo aduz que a necessidade de se formar um

novo trabalhador se dá justamente porque: “Mudaram-se as formas de acumulação de capital;

mudaram-se os parâmetros de integração e coordenação do sistema econômico; mudaram-se, ainda,

as formas de exploração e controle da força de trabalho” (SANTOS, 2004, p.85). Uma primeira

depreensão acerca da tese da revalorização do trabalho, no seu ínterim, pode ser feita. Tomada como

alicerce sobre o qual se assentam os fundamentos das ditas – e exaltadas – transformações positivas

dessa atividade no interior das organizações, essa concepção a-histórica e aparentemente desprovida

de ideologia acaba por ratificar e dissimular o trabalho desidentificador e precário. Isso daria aos seus

significados um direcionamento redutor ao apregoar esse supracitado (e suposto) resgate de uma

subjetividade relegada ao limbo nos paradigmas produtivos taylorista e fordista. Seu discurso exalta a

maior autonomia para o pensamento e para a iniciativa individual por parte do trabalhador, além, nesse

caso, da abertura de sua possibilidade de poder participar ativamente do processo produtivo. As

prescrições, presentes na organização e controle do processo de trabalho mudam de foco, segundo

Santos, justamente porque:

...a reorganização capitalista assumiu a forma de recuperação e aproveitamento das capacidades demonstradas pelos trabalhadores em seus processos de lutas (...). Nesse processo conseguiram inaugurar outro patamar de complexidade do trabalho passando a explorar as aptidões intelectuais dos trabalhadores (SANTOS, 2004, p.85).

Desse modo, notamos as estratégias do empresariado, cujo fim último é legitimar a própria

tese da revalorização do trabalho mediante um discurso que apregoa a superação do conflito entre

capital e trabalho, o qual colocaria em xeque, por extensão, todos os estatutos teóricos cujo cerne

aponta para a sobredeterminação do segundo pelo primeiro. Esse discurso estaria ancorado em dois

pontos principais. O primeiro deles refere-se à alteração da organização hierárquica no interior da

fábrica ou da empresa, devido às próprias exigências aumentadas de qualidade e competitividade. Isso

possibilitou pensar a forma pela qual as relações de produção no capitalismo relegam o trabalho e o trabalhador a meros apêndices de seus desígnios, por outro, “...a relevância analítica da temática da qualificação estava sacrificada uma vez que o resultado de todas as investigações já estava garantido a priori (...). Deste ponto de vista, estudar a qualificação significava acumular cada vez mais relatos sobre formas sumamente mais despóticas de controle do capital sobre o trabalho” (PEDROSA, 2003, p.160). Assim, essa análise unilateral feita por Braverman onerou outras possibilidades onde as contradições advindas da relação capital-trabalho (como as diversas modalidades de resistência às coerções e opressões impostas pelo primeiro ao segundo) pudessem ser vistas mais de perto (PEDROSA, 2003).

35

exigiria mudanças nos termos da relação entre “comandantes” e “comandados” no seu interior. O

segundo ponto remete-se à afirmação de que a gestão do capital variável nos paradigmas produtivos

taylorista e fordista estava centrada na redução de custos, “ficando a adição de valores na dependência

dos recursos tecnológicos” (PEDROSA, 2003, p.161). Já no paradigma da especialização flexível, o

binômio produtividade/competitividade assenta-se no incremento (adição de valor) dos recursos

humanos em oposição aos custos.

Este seria, pois, segundo Pedrosa, o sentido fundamental da revalorização do trabalho:

“ampliar a capacidade intelectual humana na produção industrial e nos serviços” (PEDROSA, 2003,

p.161). Ora, é imperioso para o processo de valorização e acumulação do capital – entre outras

maneiras, através da extração, circulação e consumo, na forma de mais-valia, do capital variável –

formar na contemporaneidade um trabalhador polivalente e flexível, apto a se “inserir” e realizar aquilo

que hoje vem se chamando trabalho complexo. No restrito âmbito estabelecido pela valorização e a

acumulação, as possibilidades de se poder pensar além da constante des-identificação pela qual passa

o trabalhador na sociedade que vive do trabalho15, isto é, um outro modo que não aquele da obsessão

em se garantir os aumentos de produtividade na produção de mercadorias por meio da desumanização

do trabalhador, consolida-se como algo insensato – para não dizer “irresponsável”.

Com efeito, a estratégia de tornar o trabalhador elemento ativo nas diferentes fases do

processo produtivo (sem, contudo, ter o poder de determinar o seu sentido e a sua finalidade) mostra-

se em boa medida eficaz nos aumentos de produtividade. O seu corolário são as novas e mais sutis

formas de exercício do controle, da divisão e da coerção que, embora não sejam impermeáveis à

contestação por parte daqueles que estão no chão onde se dá o trabalho, têm se mostrado bastante

eficientes. Nas palavras de Santos:

Os mecanismos de controle modificaram-se. Poder-se-ia afirmar que, hoje, preocupam, especialmente, em obter a cooperação dos trabalhadores, incentivando-os à maior liberdade de ações e à participação na vida da empresa. Tudo isso em prol dos objetivos da organização. Mas a decisão dos fins a serem alcançados é centralizada e tomada pelos gestores (SANTOS, 2004, p.86).

Torna-se importante dizer que esse processo nada mais é do que os meios e fins do trabalho

sendo confundidos e escamoteados no interior do mesmo cenário que anuncia sua revalorização. A

suposta autonomia sem precedentes conquistada a partir da “mútua valorização” e não mais da relação

de contradição entre capital e trabalho, é, na verdade, o aperto do cinto imposto pelo primeiro ao

segundo. Ou seja, o que parece ser o novo fim a que se encaminha o trabalho, trata-se, nas

entrelinhas, da redefinição dos meios com vistas a fins definidos de antemão. A isso Pedrosa chama de

15 Tomamos emprestada a denominação cunhada por Antunes (1999).

36

“nova pedagogia do capital: formar trabalhadores capazes de gerirem com autonomia sua própria

heteronomia” (PEDROSA, 2003, p.180).

Outro momento da matriz discursiva presente na tese da revalorização do trabalho, no nosso

entender dotado muito mais de pirotecnia do que propriamente de uma mudança efetiva nas relações

fundamentais que lhe dão sentido, é a argumentação em torno da democratização das práticas e das

relações no interior das organizações. Podemos incluir aí também os novos espaços-tempos de

produção, embora antigos, hoje presentes com grande relevância no novo cenário produtivo capitalista.

Sobressai-se nesse “novo cenário” o trabalhador como “sujeito ativo” na concepção, na implementação

e efetivação do processo produtivo e da gestão do trabalho, características essas que reforçariam a

tese em torno de seu papel enquanto “cidadão”, inserido em uma “democracia” organizacional

(SARAIVA, 2003). Discutiremos esta questão mais a fundo na próxima sessão.

1.2.1. Apontamentos gerais sobre o “modelo de competência” e suas repercussões na

ASMARE

Faz-se então relevante situarmos o chamado “modelo de competência”, constructo de ordem

ideológica e orientador da revalorização do trabalho cuja disseminação, conforme dito por Pedrosa,

torna-se presente “...via ministérios da Educação e do Trabalho e os empresários” (PEDROSA, 2003,

p.175). O caminho que temos percorrido, embora seja semelhante ao do supracitado autor sob

diversos aspectos, não toma a direção das relações entre trabalho e educação, empreendimento esse

um tanto exigente quanto ao seu esmero, além de fugir um pouco ao nosso raio de análise. Apenas

ressaltamos que tal relação, num nível mais geral da reprodução social, permeia todo o campo sobre o

qual decidimos incursionar.

Pode-se dizer que o discurso do modelo de competência tem sido proferido e se tornado

instrumento para a sua própria aplicação prática num momento cujas contradições do capitalismo se

avolumam e tornam as ideologias que lhe servem de sustentáculo crescentemente mais frágeis

(PEDROSA, 2003). Nasce então como uma espécie de antídoto, isto é, como instrumento ideológico-

prático para viabilizar sua lida com tais contradições.

Uma primeira faceta presente no discurso do modelo da competência acena para a idéia de

que “... o atual estádio de desenvolvimento das forças produtivas sinaliza para um novo tipo de relação

entre capital e trabalho, não mais uma relação de contradição, mas de mútua valorização!” (PEDROSA,

2003, p.179). As novas formas de coerção e de docilização na moldagem do ser social às

necessidades da produção e, por conseqüência, da valorização e reprodução do capital, impõem “... a

necessidade de envolver não mais apenas o corpo, mas o espírito do trabalhador, sua subjetividade,

37

sua criatividade e seu empenho” (PEDROSA, 2003, p.179). Os saberes trazidos pelos trabalhadores,

fruto de sua vivência no chão da fábrica ou do escritório, ao serem mobilizados como potencial

catalizador do processo produtivo, permitiriam, não só a elasticidade das relações de produção com

vistas à dita valorização do capital, mas também a introjeção por esse mesmo trabalhador da atual

arquitetura moral norteadora do modus operandi do capital.

Sendo, pois, a revalorização do trabalho a estratégia de tornar menos claros os objetivos do

capital – tendo à mão novos dispositivos para determinar de cima os modos e os ritmos do processo

produtivo e a utilização e o controle da força de trabalho –, as dissonâncias entre discurso e prática não

deixam de vir à tona. Com relação ao discurso, mostra-se interessante situar o debate a partir dele

suscitado reportando-nos às observações feitas por Helena Hirata (2000) acerca do declínio teórico da

noção de qualificação e a concomitante emergência da noção de competência, o que, segundo ela,

mostra-nos a insuficiência teórica e conceitual dessa segunda:

A competência é uma noção oriunda do discurso empresarial nos últimos dez anos e retomada em seguida por economistas e sociólogos na França (...). Noção ainda bastante imprecisa, se comparada ao conceito de qualificação [grifos meus], um dos conceitos-chave da sociologia do trabalho francesa desde os seus primórdios (...); noção marcada política e ideologicamente por sua origem, e da qual está totalmente ausente a idéia de relação social, que define o conceito de qualificação... (HIRATA, 2000, p.132).

Essa noção de competência também se traduz, como afirma Pedrosa (2003), numa redefinição

da conexão intrínseca entre as noções de trabalho e educação. Aqui “...o sistema educacional deve

formar (...) visando potencializar a capacidade de ‘desenvolvimento’” pela via da obtenção das novas e

imprescindíveis qualidades por parte do trabalhador, como a “...iniciativa, responsabilidade, autonomia,

espírito de equipe” (PEDROSA, 2003, p.177).

Pois é dando munição aos seus questionamentos que o autor mencionado traz para sua

discussão as “Diretrizes Curriculares para a Educação Profissional de Nível Técnico” e procura

demonstrar que, diante das atuais circunstâncias verificadas no mundo do trabalho, a “noção de

emprego é substituída pela de labor e, conseqüentemente, o conceito de empregabilidade pelo de

laboralidade” (PEDROSA, 2003, p.177). A laboralidade seria entendida como possibilidade, por parte

do trabalhador, de se apresentar em condições para a entrada ou a recondução no interior do processo

produtivo, garantindo assim a sua subsistência dentro de uma realidade social marcada pela incerteza

e a insegurança. Tais sensações passam a conviver e, em grande medida, a prescrever o ser e o viver

dos indivíduos em meio às abruptas e constantes transformações no mercado – refletidas, por

exemplo, nas vertiginosas redefinições (e até extinção) dos atributos ligados às profissões.

Ao mesmo tempo, conforme visto anteriormente, o círculo do mercado de trabalho vai se

38

fechando ao trabalhador num ritmo sem precedente, em que pese o fato das estatísticas do

desemprego demonstrarem sua redução tanto em Belo Horizonte, quanto nas principais Regiões

Metropolitanas Brasileiras (Ver figuras 1 e 2), sem, no entanto, mencionar a qualidade dos empregos

que vêm sendo gerados.. É “pegar ou largar”, se se quer garantir o mínimo para a (parca) reprodução

individual. Emergindo no seio do estado de coisas acima descrito, a ASMARE apresenta-se para a

sociedade (e, logo, para os homens e mulheres catadores(as) de papel a ela associado) como

oportunidade segura, devido às suas características de “associação formal”, em face da insegurança

presente do “lado de fora” de seus portões.

Figura 1: Evolução na Taxa de Desemprego Total, por tipo

Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1996 – 2006

Figura 2: Taxa de Desemprego Total Por Regiões Metropolitanas (%)

Fonte: Fundação João Pinheiro (FJP), Centro de Estatística e Informações (CEI), Pesquisa de Emprego e Desemprego na Região Metropolitana de Belo Horizonte (PED/RMBH). Convênio FJP/DIEESE/SEADE/SINE-MG.

0

5

10

15

20

25

30

Bel

o Hor

izon

te

Distri

to F

eder

al

Por

to A

legr

e

Reci

fe

Salva

dor

São

Pau

lo

Total

%

abr/06

abr/07

Fonte: DIEESE. Adaptado de: Jornal “O Tempo”, Belo Horizonte, 31 de maio de 2007.

39

Com efeito, é a dinâmica do capital, sempre calcada no aumento de produtividade com vistas à

sua valorização e reprodução ampliadas, o imperativo orientador da substituição do trabalho vivo

“...numa escala cada vez mais ampliada pelo trabalho pretérito, o que significa que o trabalhador

assalariado, produtor de descartáveis, torna-se ele mesmo descartável” (PEDROSA, 2003, p.178).

Diante de tais imperativos, as pressões e opressões sobre as pessoas que trabalham na catação, não

raro diluídas (mas nem por isso menos insidiosas) pelas pressões de um mercado tido como “cada vez

mais exigente e competitivo”, operadas em meio a uma realidade “externa” e “contingente”, conclamam

esses trabalhadores a serem mais dinâmicos e produtivos, tendo de alcançar uma produtividade

individual semanal de 2,5 toneladas. Quando este montante não é obtido pelo catador, este recebe um

número menor de vales-transportes, ficando sua normalização condicionada ao aumento da

produtividade. Além disso, há uma pressão exercida pelos próprios associados sobre aquele “menos

produtivo”, muitas vezes taxado de “preguiçoso” ou que “não contribui para o crescimento de todos”. No

plano geral, tais pressões adquirem maior intensidade na medida em que a administração da ASMARE,

no intento de fazer os associados internalizarem uma culpabilidade pelos eventuais insucessos em

suas negociações com os compradores intermediários, repassa a exigência feita por eles quanto ao

controle de qualidade do material – o cumprimento com rigor das metas ao volume catado, por

exemplo. Torna-se bastante ilustrativo um pequeno trecho de uma das “assembléias” mensais

realizadas pela ASMARE, quando o então gerente de negociação, após apresentar o balanço de

“entradas” e “saídas” de recursos, fala aos homens e mulheres catadores(as) sobre as dificuldades

encontradas em negociar o material:

“Acho que vocês estão sabendo, a discussão aqui vai ser séria. A ASMARE tem tentado arrumar bons

compradores e não tem conseguido. Por quê? O pessoal fala assim: ‘o volume do seu material é

excelente, é 340 toneladas’. Ou seja, qualquer um quer comprar. Mas, em contrapartida, não tem

qualidade, o material vem sujo, entendeu? Eu fiz questão de mostrar esse pacote aqui pra vocês... lixo

puro! Esse material foi encontrado no meio do papelão... plástico, absorvente... Olha, nós estamos

numa preocupação danada! Se não melhorar não tem dinheiro! Estamos passando a bola pra vocês

pra ver se ajuda a gente. Se não tiver comprador o que vamos fazer? Separa o material direitinho

senão não dá!” (10/05/2006).

Conforme se percebe, o ritmo, a intensidade e a “forma correta” do trabalho e da produção na

Associação há muito tempo estão sendo reguladas pela tal “realidade externa”. Ela é tida como sendo

“natural” porque parece fugir a qualquer possibilidade de controle social que não se submeta sem

reservas aos imperativos do mercado. Maneiras outras de se trabalhar e produzir são reduzidas

40

naquela cotidianidade a meras utopias abstratas, pois como diz o próprio gerente, “são bonitas no

papel, mas não condizem com a realidade”.

O exposto no trecho acima é apresentado pelos técnicos que assessoram a ASMARE como

“dificuldade” de muitos dos associados de assimilarem os princípios da racionalidade produtiva e

empresarial, além de ser enfatizado pelos “estudiosos críticos do assunto” como questões de ordem

“técnica” e/ou “organizacional”. Sem adentrarmos na discussão acerca da economia solidária16,

percebemos tal ênfase, por exemplo, em Lima (2003), quando este, ao realizar um estudo de caso dos

empreendimentos ligados aos resíduos sólidos, afirma ser necessário tocar nos seus diferentes

“...problemas de organização...” fundados, em suas premissas, “...sobretudo no que diz respeito à

capacitação em gestão...” (LIMA, 2003, p.121). Assim, as críticas e as proposições envolvendo novos

modos de organização aos “empreendimentos solidários” passam pela criação de ferramentas que

melhor desenvolvam a capacidade de gestão daqueles que estão à frente do negócio. Este

direcionamento possibilitaria aos envolvidos construir sua autonomia individual e a autonomia do

próprio negócio. Diante de problemas como os resultados insuficientes dos programas de formação

profissional, desaguando nas dificuldades de sua manutenção no mercado (LIMA, 2003), o enfoque a

ser dado residiria na aplicação de “...modelos pedagógicos centrados na realidade cotidiana desses

empreendimentos, a fim de aumentar a eficácia das ações que pretendem desenvolver a capacidade

empreendedora...” (LIMA, 2003, p.121) dos seus quadros. Além disso, num cenário onde é vedado às

empresas serem “auto-suficientes”, as vantagens competitivas dos “empreendimentos solidários”

deveriam ser obtidas por meio de parcerias com centros de pesquisa, fornecedores e redes de

distribuição, além de terem em conta as necessidades dos clientes e usuários e a diversificação da

produção com vistas a ampliar as competências do empreendimento. Para tal, o autor argumenta em

favor do desenvolvimento de uma:

...engenharia de produção solidária [que] preenche uma lacuna ao centrar sua ação na criação de ferramentas e na capacitação em gestão, tratando-se, aqui, de competências concretas e específicas para a organização e gestão de empresas da economia solidária (LIMA, 2003, p. 120).

Reconhecemos que a engenharia de produção poderia, sim, ser um poderoso instrumento para

se proporcionar a eficácia da gestão e do controle da produção e dos processos de trabalho. Porém,

ela só teria uma finalidade emancipatória se se inscrevesse na viabilização da real perspectiva de

redução da jornada e do tempo de trabalho socialmente necessário à produção, além do

16 Para se entender a concepção de Economia Popular Solidária, recomenda-se aqui Paul Singer (2002) como sendo a principal referência.

41

redirecionamento do sentido e da finalidade da mesma para caminhos outros que não a acumulação do

capital. Concomitantemente, a formação de uma consciência crítica dos homens e mulheres

trabalhadores(as) da catação (articulando-se a outros trabalhadores(as), formais ou não) acerca do

papel do exercido pelo Estado no capitalismo forneceria as bases para pressioná-lo, por exemplo, a

reconduzir suas políticas públicas para a regulação dos preços dos recicláveis no mercado. É claro que

muitos desses preços são regulados internacionalmente. Porém, o Estado poderia conferir poder por

meio da sua soberania praticando uma heterodoxia que, não obstante o caráter reformista a ela

associado, pode abrir flancos interessantes por fora da tirania de livre mercado.

Quanto aos empreendimentos constituídos no seio da economia solidária, fica patente que

estes só teriam vida longa sendo uma espécie de “simbiose” entre os princípios adotados pelas

empresas capitalistas “formais” e aqueles oriundos da “economia subterrânea”, marcados pela

informalidade e a precarização decorrentes dos efeitos da reprodução capitalista. Para tanto, deveriam

trabalhar com “técnicas de gestão”, de “inovação” e agregar continuamente novas “competências” de

modo a acompanhar a forte competitividade do mercado. Simultaneamente, as relações de trabalho

sem nenhum respaldo da legislação e a baixa composição orgânica do capital aparecem como linhas

mestras de controle das “externalidades” tão caras à sua manutenção no mercado. Isto nada mais é do

que submeter a autogestão às amarras do estatuto geral da racionalidade instrumental capitalista,

seguindo à risca o modelo de competência, visto que neste ambiente seus quadros necessariamente

devem possuir os cabedais técnicos e organizacionais visando à gestão do empreendimento. Nada

melhor para o promissor circuito econômico da reciclagem operar a máxima valorização de seus

capitais tendo como “satélites” os “empreendimentos solidários”, os quais fornecem seus produtos e

serviços aos grandes recicladores e ainda percorrem a rota das ações de horizontalização desses

últimos, viabilizando, entre outros, a redução dos seus custos com matéria-prima e capital variável.

Retomando a questão já exposta, ao lado da busca pelas garantias de crescente produtividade,

o modo de produção capitalista, tem sua sobrevivência condicionada à existência de consumidores.

Isso faz com que as estratégias do capital para lidar com essas vorazes contradições, voltem-se no

sentido de “...salvar o consumidor, a despeito da redução do emprego formal, [além] (...) do verdadeiro

significado da substituição no discurso oficial, orientado pelo ‘modelo de competência’, de trabalho por

labor” (PEDROSA, 2003, p.179). Ser competente, então, é estar preparado para os malabarismos

diários na busca pela sobrevivência, e, logo, para o consumo – dentro, é claro, da lógica imposta pelos

seus mecanismos de segmentação.

Percebemos a introjeção desses valores nos(as) catadores(as) de papel da ASMARE quando

estes têm como fruto da “natureza das coisas” a idéia de que é preciso “matar um leão por dia”,

projetando no bem de consumo a ser adquirido – “quando o dinheiro der” – a qualidade simbólica de

42

“troféu”17. São encontros e desencontros de sentimentos e desejos das pessoas num mundo cujas

possibilidades há muito deixaram de serem oferecidas através do “canto da sereia” do capital para se

tornarem o pífio dolorosamente buscado. Eis, portanto, o novo sentido das prescrições e opressões

impostas ao indivíduo pela lógica da produção e do consumo, através das quais “as ordenações

práticas da vida, que se apresentam como se favorecessem ao homem, concorrem, na economia do

lucro, para atrofiar o que é humano” (ADORNO, 1993, p.34).

O “modelo de competência” olha a realidade tomando-a como um fato desprovido de história e

ideologia – cujo inexorável é a lei; caminha de mãos dadas com as mudanças presentes, seja no

mundo do trabalho ou na esfera produtiva. De acordo com Pedrosa, a competência “passa a ser

entendida como uma capacidade do sujeito e não como um desempenho a ser definido objetivamente,

em termos operacionais” (PEDROSA, 2003, p.152). Cabe aqui ratificar a idéia de que, se a

competência apresenta-se como uma “capacidade do sujeito”, por extensão passa também a ser dele a

responsabilidade pela sua constante melhoria, superando sua condição individual de “estorvo” e

passando a contribuir para o “desenvolvimento” da sociedade. É ele quem deve buscar e ter

criatividade e iniciativa18 para agregar os saberes necessários e exigidos pelo mercado de trabalho, se

não quer carregar o pesado fardo do “fracasso individual”. Competência, portanto, seria um saber

“dinâmico, operativo e flexível” (PEDROSA, 2003, p.152), que dotaria o novo trabalhador do

instrumental necessário para que ele se reproduza numa sociedade marcada pela flexibilidade, pela

inconstância e pela incerteza povoando o ritmo das mudanças. Ademais, o modelo de competência

também requer capacidade de abstração, mobilidade, formação continuada, iniciativa e pensamento

crítico (PEDROSA, 2003).

De fato, a apreensão das novas formas de dominação e controle social dos pobres tornou-se

bastante melindrosa porque os sentidos e os significados do trabalho em nossa sociedade, quase que

a despeito da sua redução à faina heterônoma de todos os dias, estranhada e precarizada, ainda

denotam uma atividade fornecedora de dignidade ao indivíduo. E mesmo que o trabalho seja somente

17 Neste contexto, trazemos à baila a emblemática fala da catadora “Regina”. Primeiramente ela expressou para mim seu desejo de adquirir uma câmera de vídeo para filmar o crescimento de seus filhos, de ter uma espécie de “prova viva” de que ela pôde criá-los de uma forma “mais digna” do que aquela em que fora criada. A seqüência de sua fala vem acompanhada pelo “estalar de dedos” que a faz atinar para o volume de dinheiro a ser empregado na aquisição de tal produto, por um lado trazendo um sentimento de dificuldade pelo fato de “ganhar uma mixaria”, mas, simultaneamente, impregnando-a de uma anestesiante volúpia pelo consumo. Nota-se, também que a demonstração que ela quer dar a si mesma no seu desejo de mãe e de pessoa de bem, inconscientemente é produzido pela mediação da mercadoria, reduzindo a condição de mãe a algo já fora do âmbito do uso e do espontâneo. 18 Esta necessidade leva vários catadores a transcenderem a atividade da catação em si mesma. Isso se torna patente na reportagem “Catadores de olho no dólar para vender latinhas e papel”, veiculada pelo jornal “Hoje em dia”, de 13 de junho de 2005. Entrevistado pela reportagem, o catador “Renato” avalia que: “O dólar influencia em todos os setores da economia. A gente tem de ficar em dia com o que acontece. Se o dólar sobe bem, o preço da latinha, por exemplo, também aumenta e o catador fica incentivado a catar mais”.

43

estranhamento e heteronomia, ele é a única mercadoria passível de ser vendida por este mesmo

indivíduo – quando há quem a queira comprar. Neste cenário, práticas à primeira vista de cunho

alternativo – e, dito por vozes mais apressadas, “anticapitalistas” – ao problema do desemprego,

capitaneadas por “empreendimentos solidários” como a ASMARE, são vistas e exaltadas sem maiores

questionamentos pela sociedade. Pelo lado do poder público municipal, tais práticas são

institucionalizadas e fragmentadas, passando a ser denominadas “políticas sociais” e de

“desenvolvimento local”, garantindo a exaltação de sua imagem de administração “preocupada” com a

pobreza e a marginalidade social (ver foto 1).

Foto 1: Fachada da Sede da ASMARE com seu lema “Reciclando a Vida”, denotando aí a idéia de “construção da cidadania” a partir da “inclusão social” do(da) catador(a). Note-se também a logomarca da Petrobrás como patrocinadora da reforma do galpão. Autor: Luiz Antônio E. de Andrade. Foto tirada em 05/06/07.

1.2.2. De como a “qualificação profissional” torna ainda mais ilusório o desenvolvimento

das forças produtivas como redenção do trabalho sob o capitalismo

A noção de qualificação profissional aparece, primeiramente, nos esforços investigativos

levados a cabo por diversas ciências parcelares, partindo principalmente da Sociologia do Trabalho, da

Economia, da Administração e da Educação (PEDROSA, 2003). Tais esforços se empreenderam no

sentido de retomar análises outrora deixadas de lado devido ao suposto esclarecimento e o

conseqüente esgotamento de algumas problemáticas, como o “...progresso das forças produtivas e

seus efeitos sobre a qualificação das situações de trabalho, notadamente a qualificação profissional”

(PEDROSA, 2003, p.159). Não é nosso objetivo enveredar aqui pela discussão acerca dessa

44

retomada, mas percebê-la nos marcos da necessidade de reprodução da força de trabalho exigida pelo

capitalismo e levada a efeito por meio dos novos processos produtivos flexíveis. Este percurso nos

permite revelar a estreita relação entre a qualificação profissional e o modelo de competência

atualmente presentes em tais processos. Dá, também, elementos para pensarmos a prática da catação

sendo atravessada pelos eufemismos envernizadores, e, portanto, apresentada ao grande público – e

para os(as) catadores(as) que a exercem – como profissão19, como atividade exercida, não por

“elementos perniciosos” à ordem social, mas por pessoas engajadas na limpeza pública e na

preservação ambiental em Belo Horizonte.

Independentemente da terminologia utilizada para designar as exigências do perfil do

trabalhador que se quer no processo produtivo capitalista na contemporaneidade – se qualificação

profissional ou modelo de competência –, não se pode deixar de apontar seus limites teóricos e

práticos. Por não conseguirem superar as contradições intrínsecas à formação econômico-social em

tela, mas sim acirrá-las, tentam a duras penas nelas colocar um precário envoltório ideológico –

embora junto às massas ele seja em boa medida eficiente.

Com relação a esta constatação, apoiados em Adorno (1993 e 1994) e Pedrosa (2003),

julgamos pertinente fazermos alguns apontamentos acerca da situação de desentendimento criada por

vários teóricos marxistas20 com relação à qualificação profissional. Na tentativa de explicar seus novos

significados e a sua suposta consonância com a revalorização do trabalho, no sentido desta estar

propiciando a emergência daquela, esses teóricos, inadvertida ou deliberadamente, acabaram por não

alcançar as novas contradições surgidas no seio das reestruturações técnico-produtivas do capitalismo

e sua relação com essa questionável revalorização. Destarte, a não observância de tais contradições

descambou na construção de matrizes teóricas vazias de análises proponentes da superação das

determinações fundamentais através das quais o capitalismo se reproduz, contribuindo, assim, para

reiterá-las teoricamente – desta feita sob uma argumentação dotada de novas nuanças.

Para Pedrosa (2003), a primeira insuficiência apresentada nesse corpo teórico refere-se à

criação de obstáculos ao entendimento de que a resignificação das relações de poder e dominação no

âmbito da reprodução social sob o capitalismo passa pelo movimento da “...dialética entre as forças

produtivas e relações de produção...” (PEDROSA, 2003, p.182). Outra insuficiência está ligada à

precariedade da formulação conceitual envolvendo “...trabalho, a divisão do trabalho, e suas relações

com a propriedade e a dominação...” (PEDROSA, 2003, p.182). Ao atentarmos para a ampliação do

estatuto da propriedade privada na sociedade capitalista – não entendida tão somente como

19 Sua formalização se deu no Código Brasileiro de Ocupações – CBO, no ano de 2005. O CBO é o documento que reconhece, nomeia e codifica os títulos e descreve as características das ocupações do mercado de trabalho brasileiro. 20 Pedrosa (2003) dirige sua crítica, sobretudo, a autores como Philippe Zarifian (2003) e Helena Hirata (2000).

45

propriedade dos meios materiais e imateriais de produção, mas, outrossim, através de uma

avassaladora privatização dos mais longínquos recônditos da vida, das relações sociais e das

sociabilidades – não podemos deixar de interrogar o trabalho e a divisão do trabalho, além de suas

variantes contemporâneas. Senão vejamos.

O movimento que preside o estágio atual do modo de produção capitalista, assim como em

outros momentos do seu processo reprodutivo, tem na chamada “terceira revolução tecnológica” um de

seus principais suportes. Ora, e isso, por assim dizer, seria imanente à sua dinâmica: o progresso das

forças produtivas, ao lado de suas demais estratégias, estaria plasmado na criação das condições

gerais para a acumulação por meio de taxas de lucro satisfatórias, viabilizando o capital em sua

reprodução ampliada. Nesse vertiginoso percurso do progresso das forças produtivas, as ditas matrizes

teóricas, pretensamente amparadas no “materialismo histórico”, apontam para a possibilidade, de

acordo com Pedrosa, de que, a partir dos novos “...reflexos nas relações de poder que se estabelecem

no cotidiano da gestão empresarial e que, em decorrência da demanda por novas qualificações

profissionais, um novo tipo de sujeito individual e coletivo possa emergir” (PEDROSA, 2003, p.182).

Desse modo, a dialética envolvendo as forças produtivas e as relações de produção perde seu

vigor, pois torna-se mecânica. Suas tensões e contradições, na qualidade de combustível do seu

processo, ao não serem levadas em consideração dentro da totalidade social, mumificam a reflexão e

tornam ineficaz a crítica. Como então deixar de buscar o cerne das contradições de classe, elemento

tensionador desse movimento, deixar que desapareçam da análise mesmo estando presentes na sua

essência? É preciso fazê-las assumirem papel central na constituição e na dinâmica das relações

fundamentais do capitalismo, pois nele “...as relações de produção, apenas para a sua

autoconservação, continuaram [e continuam] a submeter a si as forças produtivas deixadas à solta”

(ADORNO, 1993, p.70).

Assim sendo, o progresso das forças produtivas estaria desvinculado de seu mote indutor, qual

seja, o das relações de produção orientadas pelo e para o processo de valorização e concomitante

acumulação do capital. Ao ganharem essa espécie de autonomia desestruturadora nas supracitadas

análises, as forças produtivas sobressaem-se como materialização de uma noção de progresso linear e

infinito, cuja ideologia, tão cara à manutenção de todo um status quo, apregoa a sua chegada aos

redutos mais diversos onde o trabalho enquanto atividade heterônoma está presente. Nesse caso,

progresso significaria o resgate da dita subjetividade do trabalho, sinônimo de maior bem-estar, tanto

nas relações de trabalho quanto na atividade em si mesma.

Tomemos como ilustrativo de tal ilusão a gênese e a consolidação da ASMARE, no que

concerne à órbita da constituição do novo corpo de representações que passaram a dar respaldo social

aos homens e mulheres catadores(as) de papel e sua atividade. Os princípios que ancoraram os

46

Agentes de Pastoral nas suas intervenções e estratégias, primeiro de aproximação e depois de

organização e mobilização dessas pessoas, valeram-se da constituição de uma identidade de “sujeito”

não mais “revirador de lixo”, e sim “agente ambiental” e “trabalhador”. Noutros termos, temos a

relativização do estigma anterior carregado por estes homens e mulheres em relação à sociedade, por

meio da dotação de subjetividade a uma atividade que entra numa rota de estranhamento e reificação.

A real desqualificação da catação mimetiza-se, aos olhos de vários, como ilusória valorização.

Estes artifícios não se dão ao acaso. Torna-se importante produzir determinado tipo de força

de trabalho (envolta num manto de “valorização”: é aí que se localiza a tal construção de uma

identidade de sujeito!) para garantir, num sentido lato, o crescimento de um promissor circuito de

valorização como é o mercado da reciclagem. Já num nível mais estrito – no âmbito da ASMARE –

deve-se produzir e direcionar à sociedade (e aos próprios catadores) uma imagem positiva de

associação que fornece “dignidade” aos seus associados pela via do trabalho (precário) como fator

cabal de “mudança de vida”. Paralela a esta lógica se dá a manifestação do projeto ASMARE na

cotidianidade destes homens e mulheres. Ora, o processo de “produção” dos materiais recicláveis

adequados às exigências do mercado (limpo, seco, enfardado e em grandes quantidades) envolve a

utilização do corpo e da subjetividade do trabalhador sob diferentes formas, a partir das várias fases do

mesmo processo. Como nos diz Harvey (2004, p.146), representa-se aqui “O hiato entre aquilo que o

trabalhador como pessoa pode desejar e aquilo que é exigido da mercadoria força de trabalho extraída

de seu corpo é o nexo da alienação”.

Vejamos como o corpo, reduzido no capitalismo a mero fator de produção, é mobilizado nos

dois tipos de serviço realizados por um(a) catador(a) de rua. Primeiramente, tem-se a catação

propriamente dita, por meio do carrinho, em horários geralmente definidos pelo doador (o fim de tarde,

por exemplo). Em seguida, é feita a triagem do material coletado (ver fotos 2 e 3), a qual se realiza

geralmente durante parte do dia ou no início da noite, pelo(a) próprio(a) catador(a) e membros da

família ou, ainda, por pessoas “contratadas” por ele. Seu trabalho, portanto, possui horários e ritmos

flexíveis, de acordo com as necessidades da “produção”. Todavia, em outro momento ele pode conter

uma orientação muito próxima dos modelos taylorista e fordista de organização do processo de

trabalho, sobretudo nos momentos da triagem. Emblemático nesse caso foi acompanhamento que

fizemos durante o ano de 2006 do trabalho das mulheres encarregadas da triagem das garrafas PET e

PP-5. Elas o exercem a partir das regras da produtividade, ou seja, com seus ganhos calculados de

acordo com a quantidade de material triado – cada quilo equivale a 01 centavo21! Já a atividade da

21 Desde o mês de fevereiro de 2007 a triagem de todos os materiais recicláveis com os quais a ASMARE trabalha (notadamente o papel e plástico PET) está sendo feita no galpão da rua Ituiutaba, no Bairro Prado. Os valores pagos aos catadores(as) correspondem a 50% do preço de mercado do material. Vale dizer que os valores aumentaram, mas as

47

triagem em si consiste, em termos gerais, na retirada do rótulo e o anel que acompanha as tampas das

garrafas, passando-as, de um local para outro, já devidamente limpas. Trata-se de um trabalho que

guarda muitas semelhanças com o taylorismo, pois os movimentos são extremamente repetitivos e a

coerção do tempo vem da exigência de produtividade implícita nos baixíssimos ganhos. Conversando

com algumas mulheres que trabalhavam na triagem de PET, ouvimos a revelação de quão dolorosa se

torna uma atividade praticada exclusivamente pela falta de opções de ganhos no trabalho de hoje. Ao

chegar ao galpão e cumprimentá-las, a catadora de nome “Cinthia” nos pareceu bastante transtornada

com seu serviço, chegando a dizer “...que isso aqui [o serviço da triagem] é um ‘inferno’, isso não é

serviço de gente” .

Foto 02: Catadora realizando o trabalho de triagem de materiais no galpão da Avenida do Contorno. Autor: Luiz Antônio E. de Andrade. Foto tirada em 19/04/06.

queixas acerca da jornada extenuante continuam, sendo que as dores pelo corpo (principalmente de coluna) são as mais recorrentes. Alguns catadores(as) têm se queixado da ausência de direitos trabalhistas e o medo de acidentes de trabalho.

48

Foto 3: Área interna do depósito de triagem da ASMARE localizado à Rua Ituiutaba, no Bairro Prado. Autor: Luiz Antônio E. de Andrade. Foto tirada em 07/06/07.

Destarte, é na confusão arquitetada pelo discurso hegemônico, através do qual a precarização

e a exploração do trabalho pelo capital são acobertadas pela “valorização” e pela “justiça” feita por este

em relação a aquele, toda a lógica de dominação que se assenhora dos corpos trabalhadores é

ocultada e ganha uma inversão espetacular. A precarização do trabalho é ilustrada pela retirada

gradativa de direitos (e concessões) conquistados e pela aceleração desmedida dos ritmos exigidos no

trabalho em nome do produtivismo cego – a despeito da formidável automação hoje verificada. O

aumento das coerções, prescrições e opressões no chão da fábrica ou da empresa, é destilado como

“mal necessário” e, no limite, como “medida benéfica” à manutenção e/ou geração dos poucos

empregos existentes. Eis aí o aumento da coisificação e do estranhamento do trabalho contribuindo

para o alastramento da vida danificada. Sustentamos, com o apoio em Adorno (1993), que não é

possível clarificar o entendimento dos sentidos últimos do progresso das forças produtivas sem

perceber o seu imbricamento com os irracionalismos da racionalidade que povoa a manutenção das

relações sociais de produção no capitalismo. Afinal, “...contrastar simplesmente entre si forças

produtivas e relações de produção de um modo polarizado, não ficaria nada bem para uma teoria

dialética (ADORNO, 1993, p.71).

Quanto aos estudos que relacionam progresso das forças produtivas e revalorização do

trabalho, estes advogam em torno do “...potencial formativo [deste último] (...) no contexto das tais

novas tecnologias de base microeletrônica” (PEDROSA, 2003, p.184). Premissa associada à crença na

libertação dos indivíduos no interior de uma sociedade em que tais tecnologias assumem o caminho

49

contrário: encarcerar o homem na prisão do trabalho estranhado e repressivo – porque tomado de um

produtivismo insano – no sentido de alastrar para os confins do sadismo a subordinação total do valor

de uso ao valor de troca, alimentando assim a manutenção aumentada das taxas de lucro.

Esse motor ao qual a sociedade está vinculada move a estratégia de ratificação da tendência à

busca pelo aniquilamento de qualquer pensamento e ação que não esteja dentro de seus imperativos

lógico-instrumentais. Isso é confirmado pelo discurso ancorador da sutil imposição do vale-tudo de

mercado. Ora, há mais coisas do que se imagina por detrás do cenário de crescente liberdade

disponibilizado para o trabalhador exercitar sua criatividade e subjetividade – combinadas com seu

savoir-faire –, resultado da “diluição” das hierarquias no interior das organizações num momento em

que nela “pululam” gestos de “efervescência democrática”. Nesse vão escuro escondem-se as

estratégias de canalização e subsunção do pensamento reflexivo, do dinamismo e da iniciativa – na

forma das competências hoje requeridas – para fins direta e objetivamente ligados à imposição da

melhor performance no trabalho e, logo, para garantir a máxima performance dos capitais (leia-se

valorização) empregados no processo produtivo como um todo. Este direcionamento, agora sob o véu

opaco de seu anteparo ideológico, no limite, só corrobora a vontade obsessiva de controle como

afirmação do pensamento único, embotando “a simples capacidade de imaginar concretamente o

mundo de um modo diverso de como ele dominadoramente se apresenta àqueles pelos quais é

construído” (ADORNO, 1994, p.70).

Qualificar-se, então, nada mais seria do que adquirir “conhecimentos” e “competências” cuja

utilização estaria localizada num universo inquietantemente mais restrito para as possibilidades da vida:

produzir e consumir. Concomitantemente (e paradoxalmente), a qualificação impõe-se como importante

necessidade para o trabalhador num mundo onde as relações sociais acham-se cada vez mais

embalsamadas pelo produtivismo exigido pelo movimento da reprodução ampliada do capital.

Constatação, portanto, mais do que cabal da vida reduzida a meio de vida (ADORNO, 1993). Eis aí o

pulo do gato da concretização transcendente da qualificação, não percebida no seio das relações

fundamentais determinantes de sua causalidade complexa, e que Pedrosa (2003), dentro dessa

mesma linha de pensamento, procura chamar a atenção que o trabalho poderia:

...de fato estar dando por atingido seu telos, e, portanto revelando a sua positividade, somente se o atual estádio de desenvolvimento das forças produtivas estivesse facultando a sua supressão, de forma a possibilitar um outro tipo de vida e de relações sociais, não mais estagnadas no reino da necessidade, mas no sentido daquele reino da liberdade pensado por Marx: momento em que a história seria efetivamente iniciada (PEDROSA, 2003, p.185).

Essa afirmativa de Pedrosa (2003) remete-se, mais uma vez, à sua crítica aos autores

“marxistas” Philippe Zafirian (2003) e Helena Hirata (2000) em seus estudos sobre a qualificação

50

profissional. Para ele, tais estudos possuem ainda dois equívocos derivados da dialética mecanicista

que lhes serve de método. Desembocam daí, dois sentidos: atribuem “...um valor-em-si ao trabalho e

não entende[m] a reciprocidade na determinação entre capital e trabalho” (PEDROSA, 2003, p.185).

Perdendo-se de vista essas condicionantes, no interior do seu conseqüente equívoco abre-se caminho

para se admitir a revalorização do trabalho mesmo em meio ao seu retorno aos obscuros primórdios

das relações capitalistas.

Deriva daí a nossa resistência em chamarmos de revalorização as transformações verificadas

no trabalho sob a égide do capitalismo, marcado pela impossibilidade de dar àquele um adjetivo

auspicioso, posto que contaminado pela ideologia burguesa, da qual, paradoxalmente, advém sua

representação positiva. Seria, portanto, coerente se pensar a crítica radical podendo assumir um

sentido diferente daquele que procura desvelar a lógica “...cada vez mais irracional e que impõe cada

vez mais sacrifícios aos indivíduos, embora as possibilidades objetivas para uma vida livre e feliz sejam

cada vez mais próximas” (PEDROSA, 2003, p.186)?

Pois é a crítica falsa, proveniente da não-reflexão sobre o verdadeiro significado

hegemonicamente dado (e imposto) às condições de existência social em nossa sociedade, que traz a

dimensão implícita da qualificação profissional já bafejada pela trama ideológica dada às noções de

“cidadania” e “inclusão social” na atualidade. Conforme veremos nos próximos capítulos, essas noções

estão desvinculadas de uma concepção vigorosa, tanto do seu significado próprio, quanto de uma

concepção de política. Entendemos que seu afastamento da condição de ebulidora dos imobilismos a

leva a uma outra, de ratificadora do marasmo reivindicatório, de prática dotada do poder de

desalienação dos corpos a produtora de uma vil passividade estrategicamente alimentadora do

existente. Talvez uma de suas conseqüências mais deletérias seja a perigosa validação da tendência a

que os homens sejam “...obrigados até mesmo em suas mais íntimas emoções a se submeterem ao

mecanismo social como portadores de papéis, tendo de se modelar sem reservas de acordo com ele”

(ADORNO, 1994, p.68).

Retomando o diálogo com as análises de Pedrosa, sérias dificuldades impõem-se ao

entendimento ampliado da qualificação profissional, do entendimento do processo de trabalho na sua

totalidade e, logo, de suas diversas conexões com os marcos gerais da reprodução social na sociedade

contemporânea. No seu entender, elas se originam da compreensão equivocada do “...verdadeiro

sentido da natureza na perspectiva marxiana, a condição de sujeito da natureza e a condição do

homem enquanto ser que se forma na natureza” (PEDROSA, 2003, p.187). Ao desqualificarem a

natureza, retiram dela sua qualidade de sujeito, relegando-lhe a mera condição subalterna. Na mesma

medida, erigem o trabalho à condição de atividade em si, ausente de sentido porque pesa sobre os

homens numa intensidade funesta, sem, todavia, compreenderem que, na perspectiva marxiana, “...o

51

telos do trabalho, tal como pensado em Marx e por Engels é a sua própria supressão” (PEDROSA,

2003, p.187). Destarte, o trabalho na sociedade burguesa, ao reduzir a natureza a objeto objetualiza

também o homem, transformando-o em simulacro de sujeito pelo simples fato de dirigir-se de fora a

essa natureza-objeto. O resultado dessa inversão é a natureza como mercadoria, condenada a possuir

um valor meramente “fora-de-si”. A natureza por ela mesma deixa de ser a subjetividade-objetividade

da qual o homem também pertence para ser abstração-concreta utilitária ao mercado. O preocupante

corolário – confirmador do que foi dito acima – daí advindo se expressa nas palavras de Pedrosa:

A ausência do conceito de natureza – do em-si da natureza – é significativo porque ela compromete o entendimento do sentido marxiano da alienação, porque não entende o verdadeiro sentido da propriedade privada burguesa. Assim, o conceito de divisão do trabalho é igualmente empobrecido porque ele se limita ao seu conteúdo técnico, isto é, a divisão do trabalho é destituída de sua condição social e se torna um conceito sem substância, meramente operacional... (PEDROSA, 2003, p.192).

Ainda segundo o autor aludido, outro equívoco dos estudos sobre qualificação profissional é

tomar o trabalho como categoria que pode ser compartimentada em análises estilhaçadas, isto é,

podendo ser pensada tão somente como categoria sócio-econômica e, absurdamente, localizada fora

da reprodução social desse mundo. Suas palavras corroboram tal afirmação:

Na verdade seu objeto de trabalho não é o trabalho propriamente e nem mesmo a divisão do trabalho em sua dimensão social, mas divisão técnica do trabalho: como se fosse possível separar trabalho de divisão do trabalho, como se também fosse possível pensar a divisão técnica do trabalho fora de sua dimensão social, desconectada do conceito de propriedade privada, a verdadeira origem da alienação segundo Marx (PEDROSA, 2003, p.187).

Aproximamo-nos novamente do mito da democracia organizacional, cujos princípios, em tese,

foram implementados e hoje são seguidos “religiosamente” na ASMARE por meio de assembléias,

reuniões periódicas, e eleições regulares da diretoria colegiada22, produzindo uma imagem de

coletividade e transparência nas suas decisões internas. Baseado no que vimos anteriormente, a

margem de autonomia do trabalhador, embora alargada em relação à organização do processo de

trabalho no taylorismo e no fordismo, continua circunscrita à esfera decisória de caráter eminentemente

técnica do cargo por ele ocupado (SARAIVA, 2001). A divisão técnica, não obstante diluída dentro da

necessidade de polivalência das funções no interior da fábrica ou da empresa, está intrinsecamente

atrelada aos mecanismos norteadores da divisão social do trabalho, a qual não se desconecta da

22 Ao conversarmos com diversos(as) catadores(as) e freqüentarmos algumas assembléias realizadas durante nossa pesquisa, percebemos o quanto as mesmas conformam-se para a grande maioria destes homens e mulheres como “encontros” ausentes de sentido. Em primeiro lugar, porque, nas palavras da catadora “Cinthia”, as assembléias são sempre a mesma coisa: “...cobrança, cobrança, cobrança”. Parece que eles lá [a administração] não sabe elogiar, é só cobrar. Melhorar a vida do catador eles num pensam não”. As “cobranças” a que se refere a catadora residem na já questionada necessidade posta pela administração de se ter a observância rigorosa da produção dos catadores e na qualidade do

52

propriedade privada, sustentáculo maior da formação econômico-social historicamente engendradora

do modo de produção capitalista.

Essa participação aumentada nas decisões mediante “os trabalhos em equipes, os círculos de

controle, as sugestões oriundas do chão da fábrica...” (ANTUNES, 2005, p.131) carecem de uma

análise mais acurada. Ela pode ser feita em duas frentes. Primeiramente, se no modo de produção

capitalista o seu fim último é o processo de valorização com vistas à reprodução do capital – não

importando os artifícios utilizados para tal –, as unidades de produção de mercadorias materiais ou

imateriais se orientam imperativamente para essa mesma realização num nível individual e imediato. O

envolvimento do trabalhador no processo produtivo, portanto, visa à maximização da obtenção do valor

num momento em que se individualiza o atendimento ao consumidor, entre outras formas, primando

pela qualidade do produto ou serviço. Em segundo lugar, o estranhamento, tal qual exposto por Marx,

não desaparece. São as modalidades de sua dissimulação que se complexificam, criando, sobretudo

entre as parcelas de trabalhadores mais qualificadas presentes nas atividades intelectuais de ponta,

formas um pouco mais abrandadas desse estranhamento (ANTUNES, 2005). Contudo, se esse

fenômeno se mostra presente em doses menos cavalares nessas parcelas “mais inseridas” da classe

trabalhadora, a situação nos seus estratos mais precarizados é aterradora porque ainda mais intensa,

pois são eles “...que vivenciam as condições mais desprovidas de direitos e em situação de

instabilidade cotidiana, dada pelo trabalho part-time, temporário, etc” (ANTUNES, 2005, p.132).

material catado (devendo estar seco, limpo e não misturado com detritos).

53

CAPÍTULO 2

CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA “SOCIEDADE ADMINISTRADA”: O

ESPETÁCULO COMO MOBILIZAÇÃO DE SEUS SENTIDOS DES-MOBILIZADORES

Advertimos desde já que nosso objetivo neste capítulo não passa pela preocupação em

apresentar os encontros e desencontros do devir democrático e o processo histórico-social que

orientou as diferentes concepções de cidadania e participação social no mundo ocidental, e que,

guardadas as devidas especificidades, transpuseram-se à formação política brasileira. Afinal de contas,

já há uma literatura sobejamente conhecida que tematiza as vertentes clássicas norteadoras de tais

concepções23. Por ora, julgamos importante iluminar a atual efusividade com que vários dos

“formadores de opinião” proclamam em torno das noções de cidadania e participação social, aquilo que

Evelina Dagnino (2004) vem chamando de “deslocamentos de significado”. Estes, por sua vez têm

concorrido para embotar os sentidos vigorosos de tais noções, postas, portanto, numa concepção

reduzida (e redutora) de bem-público. Concomitantemente, fragiliza-se a percepção do possível, do

caráter emancipatório das ações historicamente constituídas pela conquista dos direitos de cidadania e

da abertura de verdadeiros espaços públicos à participação social. Doravante, colocamos em tela uma

e outra noção como construídas pela e construtoras da radicalidade da prática política e social na

vontade de liberdade de amplas frações de classe outrora e ainda hoje alijadas das conquistas do

gênero humano.

No nosso entender, o rebarbativo privilégio que vem sendo dado aos significados dessas

noções, ao invés de tonificar o exercício democrático e a realização da vida na e pela Política, lança-

nos, inadvertida e inexoravelmente, rumo ao perigoso e obscuro caminho das novas feições do

totalitarismo e da antiliberdade. Em meio a essas “qualidades”, emergem excrescências paradoxais e

imbricadas: a consolidação de um “Estado mínimo” e de instituições políticas submissos aos desígnios

econômico-financeiros da vez, cujo “fazer social” se dá de acordo com as orientações desses últimos; a

delegação (ou seria o simples ato de relegar?) aos homens e mulheres contemporâneos a

“possibilidade” de “participar” da construção daquilo que hoje se chama de “políticas públicas” sob a

restrita autorização de pisar no terreno do “político” apenas dentro do designado de antemão, ou seja,

pela influência direta e indireta dos agentes hegemônicos.

Ao nos orientarmos pelas referências do supracitado embotamento trazido à baila por Evelina

Dagnino (2004) e no que dissemos acima, obtemos subsídios para a análise dos sentidos últimos do

23 Para conhecer mais a fundo tais concepções ver Carvalho (2000).

54

que tem sido o corpo do debate e também o mote sobre o qual vêm se apoiando a atuação do Estado

brasileiro, figurada nos diferentes governos dos últimos anos – sobretudo aqueles instalados sob os

auspícios da “Nova República”. Atuação essa notabilizada pela adequação fiel ao dado e definido por

forças de mercado que deveriam ser, no mínimo, submetidas à restrição eficaz de seus meios de ação.

Faz então sentido pensar um e outro efeito (Estado mínimo em consonância com o livre mercado)

incidindo sobre as concepções mais amplas que têm norteado o “projeto ASMARE”. Projeto que, como

vimos, assenta-se numa propalada “visão inovadora” das políticas de “inclusão produtiva” e

“reintegração social” da Prefeitura de Belo Horizonte. Tais políticas se apóiam numa matriz discursiva

que as coloca como pedra de toque de um suposto movimento de busca de uma “cidadania ativa”

como condição sine qua non para a (também supostas) “inclusão” e “participação” sociais alargadas de

grupos outrora destituídos da possibilidade mais elementar de ouvir e se fazerem ouvidos – como é o

caso das populações de ou em situação de rua. Seria o dito movimento uma “inflexão” ou “opção

institucional” visando pagar uma “dívida social histórica”? Em nossa pesquisa, conforme já aludido,

verticalizaremos a análise sobre os homens e mulheres catadores(as) de papel associados à ASMARE.

Partimos da seguinte hipótese: aquilo que se denomina nos dias de hoje como sendo uma

ampla e radical democratização dos processos participativos com vistas à formação de sujeitos sociais

dentro de um campo de construção e ampliação de direitos, ao que parece, perde terreno

vertiginosamente no espaço-tempo da ASMARE. Tudo isso, na medida em que a dita associação

penetra desmedidamente pelas cercanias da lógica mercantil, compelindo-a a se efetivar como

organização empresarial capitalista típica, tendendo, portanto, a redefinir internamente as noções que

orientaram suas premissas iniciais.

Torna-se pertinente resgatar sucintamente o que foram as noções de cidadania e participação

social que acompanharam as lutas de determinadas frações daqueles que, por assim dizer, são

protagonistas do processo contraditório de construção de uma nação cuja pujança econômica é

notável, mas que ficaram de fora da distribuição equânime da riqueza socialmente produzida nestas

paragens. Essa é a história da árdua construção do caminho possível para a realização de um ideal

democrático e cidadão brasileiro fundado numa verdadeira esfera pública, o qual decorreu, “...quase

que por inteiro, da ação das classes dominadas” (OLIVEIRA, 1999, p.60).

E isso, no embate com uma forte tradição de privatização das relações sociais, baseadas em

altas doses de cultura autoritária posta a ferro e fogo pelas elites deste país, gerando a “...obliteração

de um sentido de responsabilidade pública e obrigação social” (TELLES, 1997 p.226). Mas são os

conflitos, as lutas e os embates decorrentes da relação diametralmente oposta entre um projeto

“modernizante” de sociedade avassalador, despótico e negador do humano levado a efeito pelas

nossas elites, e aquele – não sem contradições – trazido como reivindicação da “parcela dos sem

55

parcela” (RANCIÈRE, 1996a) os ensejadores da exigência de novos termos para o que sempre foi

posto como “fato consumado”. Foram bandeiras de luta empunhadas por vários seguimentos sociais

populares ao longo da formação histórico-social brasileira que, à sua maneira, punham à mesa os

absurdos contidos na falácia verborrágica e unilateral do discurso desenvolvimentista burguês.

Contudo, nossos apontamentos não passam pela complexa contenda do processo no e pelo

qual forjou-se a formação política e econômica brasileira – donde encontram-se importantes pistas para

entendermos que tipo de cidadania e democracia temos por aqui. Entretanto, daremos alguns passos

no terreno histórico-social de fins da década de 1970, “quando novos personagens entram em cena”24.

Naquele momento constituíam-se movimentos sociais e reivindicativos25 advindos das classes

populares que intentavam demandar para si o direito a participar ativamente, por exemplo, da

deliberação daquilo que sempre lhes fora negado no interior do processo de urbanização brasileiro.

Processo esse costurado pela produção de um espaço heterônomo e constrangedor porque tornado

mercadoria e suporte da acumulação de capital. Tais movimentos não deixaram de trazer a força de

uma sociedade civil que buscava se fazer reivindicativa, combativa, mas também propositiva frente ao

Estado – não mais entendido como, por excelência, o eixo preferencial por onde passam as discussões

de caráter público – na busca por maior justiça e equidade sociais, mesmo por dentro da sociedade de

classes.

Tal empreendimento nos permitirá formar o assoalho teórico para a discussão nos capítulos

posteriores dessa pesquisa daquilo que vem se tratando como “inclusão social” pelo poder público

municipal e sua incidência no projeto ASMARE. Permitirá-nos, também, refletir sobre como os homens

e mulheres catadores(as) de papel associados se colocam em face dos mecanismos institucionais de

“inclusão”, o modo pelo qual a concebem.

2.1. Os encontros e desencontros da construção do ideário e da prática dos direitos de

cidadania no Ocidente

As definições clássicas da tradição democrática do Ocidente trazem a noção de cidadania

pensada a partir de diferentes vertentes, como a liberal, o humanismo cívico e a vertente comunitária

(CARVALHO, 2000). Contudo, as feições modernas da cidadania acabam por apresentar traços dessas

24 Frase alusiva ao título do arguto trabalho empreendido por Eder Sader (1995), utilizado em nosso estudo. 25 Azevedo & Mares Guia (2001) nos apresentam uma distinção sobre o caráter social ou reivindicatório de um movimento popular. Ele é social se suas perspectivas vão além da causa imediata que carregam em suas bandeiras de luta, isto é, alçando, a partir daquele foco momentâneo, vôos mais altos, rumo à transformação social. Já o caráter reivindicativo de um movimento popular se dará no caso daqueles grupos que buscam apenas a satisfação de uma necessidade ou de uma reivindicação imediata, diluindo-se quando esta ou parte dela é obtida.

56

três vertentes, associadas a um quadro desenhado pela titularidade de direitos nas suas esferas civil,

política e social como condição primordial para a existência de justiça social e construção das

identidades coletivas. Pode-se dizer que a formação da cultura cidadã não se descola de uma cultura

política constituída e constituidora das lutas contra a condição de desigualdades sociais surgidas e, em

maior ou menor medida reiteradas, no próprio seio da formação econômico-social capitalista. Se por

um lado, os grupos hegemônicos admitiam e consentiam a necessidade de “se fazer a revolução antes

que o povo a fizesse”, outorgando, aos poucos, direitos e concessões às classes trabalhadoras, por

outro, não se pode negar as pressões sociais que se fizeram presentes, acabando por provocar a

aparente mudança de mentalidade do caráter burguês. Destarte, seria leviano dizer que, no caso

europeu, a aquisição de direitos não tenha sido pleiteada e conquistada mediante as lutas

empreendidas nos séculos XVIII e XIX, obtendo os direitos civis e políticos, respectivamente, e,

sobretudo, no século XX, com a universalização dos direitos sociais (MARSHALL, 1967).

Essa universalização dos direitos estava plasmada no quadro de tais pressões e exigências,

encampadas, mormente, pelo movimento operário, visando à redefinição dos termos através dos quais

a riqueza socialmente produzida era repartida – e, em vários momentos, chegando à luta pela

redefinição dos termos da organização do trabalho e da produção e até das formas em que se dava a

reprodução social. Em suma, foram lutas que traziam no seu bojo reivindicações elaboradas em

contrário do até então concretizado: as terríveis desigualdades tributárias da apropriação privada de tal

riqueza como negação das possibilidades trazidas pelas conquistas reais do projeto civilizatório

burguês. Entremeada nessa seara, podemos nos arriscar a dizer, apoiados nas concepções de

cidadania de Marshall (1967), que esta nasceu e passou a conviver conflituosamente, numa tensão

irredutível, com o crescimento do capitalismo como modo de produção intrinsecamente produtor e

reprodutor de desigualdades.

O próprio Estado de Bem-Estar Social será, no entender de Marshall (1967), uma construção

possível para a realização de um nada desprezível projeto de justiça social, equidade e formação de

identidades coletivas. Se entendermos esse Estado de Bem-Estar, em última instância, como um

conjunto de arranjos envolvendo também as esferas do Capital e do Trabalho no sentido de garantir os

processos mais gerais do capitalismo por meio da reprodução da força de trabalho e do fôlego

necessário à acumulação de capital (OLIVEIRA, 1998a), talvez a própria cidadania seja um suporte

desses mesmos processos. Afinal de contas, a ampliação da esfera do financiamento público – por

exemplo, a partir da já mencionada universalização dos direitos sociais – abria frentes consideráveis à

reprodução do capital, principalmente na medida em que o valor não mais consistia no fator primordial

desse processo (OLIVEIRA, 1998a).

A cidadania então soergueu-se como prática que também revelava modos de se lidar com as

57

contradições oriundas da reprodução do capital. Entrementes, é importante ressaltar que, ao contrário

de sua fase concorrencial, quando o financiamento público dava-se de modo pontual, no capitalismo

contemporâneo sua provisão passa a ser sistemática e abrangente, além de estabelecer regras para o

funcionamento dos mercados, tudo isso firmado a partir de um consentimento que envolvia diferentes

setores sociais e políticos (OLIVEIRA, 1998a). Poderíamos então entender a cidadania, sem colocá-la

numa órbita traçada por uma mera relação de causa e efeito ou de causações estruturais, como

modelo traçado pelas classes dirigentes no sentido de ceder anéis para não ceder os dedos? Segundo

Marshall, ao referir-se aos direitos civis, afirma o fato destes “...serem indispensáveis a uma economia

de mercado competitivo” (MARSHALL, 1967, p.79), numa sociedade marcada pela diferença de classe

como algo proposital, tendo em vista que “...oferece o incentivo ao esforço e determina a distribuição

do poder” (MARSHALL, 1967, p.77). São formas e conteúdos impregnados no processo de reprodução

das relações sociais de produção que se objetivaram no ciclo de crescimento do capitalismo presente

em boa parte do século XX.

Herbert Marcuse (1982) tendo produzido sua obra “Ideologia da Sociedade Industrial: o homem

unidimensional” ainda na fase dos “anos de ouro” do capitalismo mundial, nos fornece um comentário

interessante e perceptivo do anúncio das mudanças a respeito:

Os direitos e liberdades que foram fatores assaz vitais nas origens e fases iniciais da sociedade industrial renderam-se a uma etapa mais avançada dessa sociedade: estão perdendo o seu sentido lógico e conteúdo tradicionais. Liberdade de pensamento, liberdade de palavra e liberdade de consciência foram – assim como o livre empreendimento, que elas ajudaram a promover e proteger – idéias essencialmente críticas destinadas a substituir uma cultura material e intelectual obsoleta por outra mais produtiva e racional. Uma vez institucionalizados, esses direitos e liberdades compartilharam do destino da sociedade da qual se haviam tornado parte integral. A realização cancela as premissas (MARCUSE, 1982, p.23).

Este era o apontamento para uma direção de coexistência possível e de reprodução ampliada

das bases econômico-político-culturais do modo de produção permeada por uma constelação de

interesses de classe. Isso num cenário de relações marcadas por antagonismos e complementaridades

envolvendo capital e trabalho, em meio aos quais captura e distensão, irrupção e reiteração de

práticas, pensamentos e ações eram suas marcas. Tem-se aí, o complexo reprodutivo num grau

ampliado da sociedade, efetivamente sobressaindo-se a reificação, o estranhamento e a desrealização

da vida como significâncias das relações de propriedade e de produção.

Talvez o Estado de Bem-Estar Social europeu seja seu exemplo mais cabal. Todavia, essa

processualidade ancora-se no momento em que a ampliação dos direitos entrava em conflito com os

princípios de classe inerentes à formação econômico-social tipicamente capitalista. Por isso, e ao

mesmo tempo, enquanto princípios opostos, eles cresceram e floresceram no mesmo lugar

58

(MARSHALL, 1967).

Francisco de Oliveira (1999), quando caracteriza o “movimento neoliberal”, marcado pela volta

ao indivíduo, à prevalência do privado nas relações sociais, articuladas ao desmantelamento do Estado

e das suas instituições políticas correspondentes, chama a atenção para a necessidade de analisá-lo

tanto nos fundamentos do processo de acumulação quanto no processo de “institucionalização do

Estado de Bem-Estar” (OLIVEIRA, 1999, p.56). O autor nos fala da experiência social-democrata, a

qual contribuiu para a sua “naturalização”, acompanhada do esgotamento das “energias utópicas” –

visto que a política passava a ser apenas um epifenômeno da sua própria prática, já que o Estado, por

dentro das suas atribuições, tomava para si o fazer social como totalidade. É como se esse mesmo

fazer social não tivesse condições de se efetivar plenamente fora dos auspícios de uma racionalidade

técnico-burocrática e abstrata, supostamente descolada de qualquer caráter de classe. Alcançava-se o

perigoso patamar da redução do político a uma prática embotada porque afastada do homem em sua

universalidade. Ou seja, grande parte do movimento operário acabou por se contentar com

concessões26 advindas das políticas de Estado no sentido de ampliar uma esfera de direitos composta,

entre outros, pela previdência social e a garantia (que há muito tempo já deixou de sê-la) do pleno

emprego.

Alain Bihr (1991), caminhando numa esteira de análise semelhante, reforça a crítica à

orientação teórica e prática do movimento operário europeu de tradição social-democrata. Ao

vislumbrar como projeto de emancipação a tomada para si do poder de Estado, as forças sociais que o

encamparam acabaram por deixar de fora uma perspectiva mais alargada de transformação social,

pois o poder político não seria superado, haja vista que sua circunscrição não se dá tão somente na

órbita do Estado. Não obstante esta instância de mediação e regulação, no caso da sociedade

capitalista ser, como diz o autor, “...na melhor das hipóteses, a principal...”, existem outras mediações,

como as “...relações mercantis e monetárias...” (BIHR, 1991, p.159) que vão muito além dela,

canalizando em seu favor a reprodução social por inteiro. Destarte, uma verdadeira transformação

social iria além do Estado, chegando “...ao poder do capital em toda a sua extensão e em toda a

profundidade da práxis social...” (BIHR, 1991, p.159), colocando o movimento operário – e, no sentido

lato, toda a sociedade – à frente da definição das condições sociais de sua existência, “...tanto dentro

do trabalho como fora dele” (BIHR, 1991, p.159).

Antes de nos direcionarmos especificamente à problemática da cidadania no Brasil,

26 O que chamamos de concessão neste momento caminha ao lado do alerta feito por Alain Bihr (1991) ao movimento operário europeu de tradição social-democrata: “O proletariado não pode mais se contentar em procurar obter por meio da negociação e/ou arrancar pela luta as melhores condições exploração de sua força de trabalho (ou, pelo menos, as menos ruins)” (BIHR, 1991, p.158), fato que contribuiu para o arrefecimento da radicalidade das lutas contra a hegemonia do capital na regulação da vida social.

59

comungamos com Eder Sader (1995) as preocupações tornadas questões de sua pesquisa sobre as

experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo, nas décadas de 1970 e 1980. De acordo

com esse autor, muito do que se produziu acerca dos movimentos e construção de práticas sociais

irruptivas desses trabalhadores, quando produzidas, as apresentavam apenas como “expressão das

contradições geradas no capitalismo” (SADER, 1995, p.38). Situavam tais movimentos e suas práticas

na estreiteza das determinações estruturais orientadas por condições objetivas dadas – materializadas

como resposta a um padrão de desenvolvimento excludente. Este viés, ainda segundo Eder Sader, por

si só não dá conta da complexidade presente nos marcos de ação desses mesmos movimentos, posto

que não são poucas as suas especificidades e singularidades – embora, não raro, elas sejam

consideradas apenas “traços conjunturais” (SADER, 1995, p.39). Trazemos essa questão à baila,

desejosos de que não sejamos mal interpretados na nossa expedita busca pelo entendimento das lutas

pela cidadania empreendidas pelos movimentos sociais de fins do século XIX e início do século XX.

Sejam estes, de base operário-sindical, seja o movimento dos(as) catadores(as) de papel de Belo

Horizonte, cada qual compartilha de desejos e inquietudes em alguma medida semelhantes, embora

particularizadas pelas diferenças históricas e as especificidades sociais. Voltaremos a essa questão.

2.2. Breves apontamentos acerca dos (des)caminhos da cidadania e da participação

social: a especificidade brasileira

No Brasil, o modelo de cidadania inicialmente instaurado não trazia em seu bojo os direitos

políticos e civis na qualidade de componentes primordiais de seus fundamentos. De acordo com Vera

Telles (1993), o que se definia como direitos sociais encontrava no Estado tutor e depositário da

“proteção social” sua linha mestra. Tais direitos nasceram sumamente atrelados aos vínculos

trabalhistas formais, que conheceram sua disseminação, sobretudo, a partir do início do Estado

Varguista. Nos dizeres da autora:

Trata-se de um peculiar modelo de cidadania, dissociado dos direitos políticos e também das regras da equivalência jurídica, tendo sido definida estritamente nos termos de um igual direito à proteção do Estado, através dos direitos sociais, como recompensa ao cumprimento com o dever do trabalho (TELLES, 1993, p.11).

Este arranjo que então se instituíra encerrava uma dissonância: o Estado reivindicava para si a

qualidade intrínseca de garantidor do “dever da justiça”, mas, ao mesmo tempo, o seu fazer social

tornava a equalização dos direitos e a materialização de seus efeitos apenas caricaturas, pois o que se

repunha à esfera social eram apenas “...desigualdades, hierarquias e exclusões” (TELLES, 1993, p.11).

A formação da cidadania no Brasil caminhava a passos largos para se estabelecer como instrumento

60

regulador e criador de diferenças, tendo no ato ou efeito de ser “trabalhador” – donde a carteira de

trabalho para o pobre significava, inclusive durante as batidas policiais “de rotina”, a demonstração da

sua condição de “indivíduo que trabalha” – o seu mote primordial27.

Essas foram (e são) aberrações encontradas no interior de uma sociedade cuja formação se

deu sob o signo da violência brutal, do autoritarismo social e das práticas escusas e arbitrárias por

parte de nossas elites para viabilizarem a sanha de seu interesse de classe pela manutenção de suas

hegemonias econômica, política e cultural. Nesse sentido, o público – cujos arranjos interpenetram-se

numa noção ampliada de direitos – posto como “público” calcado nas restrições im-postas pelas

concessões, dissimula-se revestido pelo seu simulacro: quando examinado um pouco mais de perto, o

que resta é apenas o público privatizado:

Trata-se de uma privatização das relações sociais, permitida dialeticamente pelo lugar do Estado na formação social brasileira. Um lugar proeminente, que reverte no fetiche da igualdade social: o máximo de Estado para o mínimo de esfera pública, ou o máximo de aparência de Estado para o máximo de privatização da relação social (OLIVEIRA, 1994, p.43).

Tudo isso por dentro de um amplo projeto de nação a partir do qual o chamado

“desenvolvimento”, levado a efeito mediante o crescimento econômico (alavancado pelo esforço de

industrialização) tornado fim em si mesmo, e, portanto, como totalidade última do processo histórico e

social. O Estado aqui se põe como “Astro Rei”, elo maior por onde devem passar todas as dimensões

27 Sem a intenção de procedermos à discussão realizando transposições simples dos processos europeus na relação entre cidadania e trabalho, arriscamo-nos a pensar o recuo do trabalho frente ao capital na Europa de certa forma semelhante ao Brasil. Embora não tenhamos convivido com um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social, donde os ventos da cidadania sopraram por aqui na forma da regulação a partir do trabalho (abstrato), algumas conexões podem ser feitas. Primeiramente, vemos a inserção formal do indivíduo a partir do trabalho (abstrato) – garantida pelas Leis Trabalhistas (sumamente baseadas na Carta Del Lavoro implementada na Itália de Benito Mussolini) –, mote primordial para se estender os direitos de cidadania aos brasileiros sob a forma da tutela (o atrelamento aos vínculos com o trabalho formal dão uma pista a respeito), ser substituída pela regressão, precarização e a eliminação crescentes desse e de outros direitos na era neoliberal do início da década de 1990, dando, assim, um duro golpe nessa cidadania forjada na Era Vargas. Em segundo lugar, tem-se aí a chave para entendermos o deslocamento das noções que dão corpo a essa cidadania e, conseqüentemente, a sua “construção” se dando a partir de outros meios, outras estratégias. Em suma: os meios pelos quais se disseminam as modalidades que compõem tal cidadania se deslocam da esfera política consagrada pela regulação estatal, para irem se refugiar e ao mesmo tempo estabelecer, sob os ditames do reino do privado, numa busca individualista dos “sujeitos econômicos” livres, embora desigualmente equipados, pela sua “conquista”. No caso da ASMARE é interessante pensarmos o trabalho (ainda abstrato e acrescido das características dos “novos tempos”, isto é, precarizado sob todas as formas) como condição sine qua non para a conquista da cidadania pelo catador como um deslocamento de significado e concomitantemente uma reafirmação de sua estrutura reguladora e docilizadora destes homens e mulheres. Outrossim, ainda que o trabalho na sociedade burguesa tenha se forjado como elemento formal e civil na cesta de direitos de cidadania na maior parte do mundo em fins da primeira metade do século XX, nos tempos bafejados pelas reestruturações diversas no modo de produção capitalista, a noção de direito ao trabalho, para não irmos muito longe, deslocou-se do campo dos direitos para transformar-se em dever. Trocando em miúdos, a colocação no famigerado mercado de trabalho reveste-se da condição de algo muito mais a ser alcançado individualmente do que algo socialmente fornecido. Nossa afirmação pode ser revelada naquilo que foi por nós dito anteriormente em relação à emergência como discurso e como concretude da ação política e econômica da noção de “empregabilidade” ou “laboralidade” (PEDROSA, 2003) como cabedais necessários ao “mercado de trabalho” e não como garantia imediata de emprego.

61

da prática social. O mais impressionante é que tal noção, paradoxalmente, nega essa mesma

historicidade nas suas mais diferentes manifestações na realidade da qual também é produto. A

simbiose do progresso com a categoria desenvolvimento, não raro efetivada, nos dizeres de Theodor

Adorno (1995a), pela “teoria do conhecimento”, ao invés de desvelar as intransparências da realidade,

de viabilizar a fluidez do movimento do pensamento, acabou por bloquear suas possibilidades:

“...insiste[-se] na exatidão ali onde a impossibilidade de um saber é inerente à coisa mesma,

desencontra-se com esta, sabota a intelecção e serve à conservação do ruim” (ADORNO, 1995a,

p.37).

Não obstante nossa formação social reprodutora de um projeto modernizante caracterizado

pela heteronomia e pelo embotamento das possibilidades do humano, da torpe tentativa de se ceifar a

mínima contestação da ordem vigente, essa trajetória não se traduz como linearidade. Ela é

movimento, campo fabricante de tensões, de conflitos e de contradições, engendradas nas e

engendradoras das determinações do processo histórico e social. São as diferentes modalidades de

lutas surgidas em meio à agudização das diferenças e das dificuldades encontradas pelos destituídos

da apropriação da riqueza que eles mesmos ajudaram a construir, mas que, numa sociedade de

classes como a nossa, parecem ter de se contentar com os despojos do privado. É no seio dessa

corrosão da possibilidade de universalização dos direitos como prática comum na sociedade burguesa

que se originam tais lutas e, com elas, a constatação de que: “o fosso social é tão imenso que parece

obstruir a possibilidade mesma de uma linguagem comum e, portanto, do convívio social, interlocução

e debate comum em torno de questões pertinentes” (TELLES, 1994, p.228). Este é o momento quando

se tenta “virar a mesa”, irromper contra o mais do mesmo desprovido do salto qualitativo possível: as

contradições materializam-se nos embates.

Cabe, todavia, uma importante ressalva acompanhada de duas questões: qual é a linha que

separa direitos de concessões e, mais ainda, transformação social de reformismo? São questões

importantes se quisermos levar em conta quais as formas que se insinuam em meio aos conteúdos dos

movimentos surgidos no Brasil, interessando-nos ainda mais por aqueles de fins da década de 1970.

Da mesma maneira, tais questões nos permitem refletir em torno dos meandros da trajetória dos

homens e mulheres catadores(as) de papel na metrópole belohorizontina, culminando na fundação da

ASMARE. Afinal de contas, a reivindicação “da parcela dos sem parcela” (RANCIÈRE, 1996b) pode

indicar e ratificar o seu contrário: não se pôr e se forjar como consciência e exigência de libertação; ao

contrário, apenas reafirmar (inocentemente ou não) os meios pelos quais o vigente se reproduz.

Esses são sintomas claros da política recuada em favor do avanço do Estado, e não o seu

contrário, como libertação qualificada. Nesses termos, Herbert Marcuse (1982) quando discute o que

pode vir a ser a “liberdade”, se por dentro ou por fora da lógica que preside a sociedade burguesa, nos

62

dá uma pista para nossas questões: “Sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser

transformada em poderoso instrumento de dominação” (MARCUSE, 1982, p.28). Esse autor elaborou a

obra citada num período cujo debate político experimentava um desgringolamento, efetivando-se como

prática tributária de uma esfera pública, até então e em boa medida, capitaneada pelo proletariado

europeu. A efervescência outrora demonstrada por esses sujeitos, conforme dissemos anteriormente,

desgasta-se no torvelinho da naturalização do “todo-poderoso” Estado de Bem-Estar Social, que aos

poucos tomava para si as rédeas de comando das esferas social, política e econômica.

Em nossa contemporaneidade, o exercício da liberdade negativa, praticada para além das

amarras das instâncias do institucional, imbricada à Política, cujos atributos verdadeiramente

democráticos manifestam-se, no entender de Zygmunt Bauman (2000, p.12), como “...a arte de

desmontar os limites à liberdade dos cidadãos” sofre um alto revés. Verificamos o quanto Marcuse

(1982) se mostra atual quando percebemos que os mecanismos de coerção/limitação/organização e

doutrinamento/moralização presentes na sociedade burguesa, ao invés de terem sido paulatinamente

superados, são redimensionados pelas exigências de uma história que parece ter se acabado. Essa

liberdade transformada em instrumento de dominação se confirma quando os indivíduos são

transformados de sujeitos políticos em meros consumidores com sua “capacidade de escolha”

sobredeterminada por um conjunto sem precedentes de mediações articuladas pelos mecanismos de

mercado. E mais ainda: quando os indivíduos vivem a anti-liberdade travestida mais “...sob a forma de

uma ‘oferta que não se pode recusar’ do que de uma ordem” (BAUMAN, 2000, p.84).

Em meio a esse processo mais amplo, avassalador e degradante, talvez pudéssemos trazer

algo fugido da inconformação tácita e “engolidora de sapos”, situado na busca de meios de ação

transcendentes da resignação e da inércia28. O cenário do crepúsculo da década de 1970, no calor do

clima de insatisfação cada vez mais presente devido à situação vivida no país, opera-se, por assim

dizer, como irrupção nas cenas política e social brasileiras de “novos atores sociais”, sobressaídos de

diferentes frações da sociedade. São inegáveis os seus gestos de clara coragem para se

desvencilharem da camisa de força que havia lhes sido imposta no transcurso da ditadura militar. De

acordo com Sader (1995), um momento que talvez possa ser considerado paradigmático seja a

contumaz eclosão do “…movimento grevista, que, iniciado em meio à região do ABC paulista,

28 Optamos por relativizar nossa informação em nota apoiando-nos nas palavras do mesmo Bauman (2000). Este autor é outro a tecer interessantes reflexões acerca do acirramento da “falta de liberdade” experimentado por homens e mulheres na sociedade contemporânea. Segundo ele, a falta de liberdade pode ser vivida como opressão, e desidentificação do homem consigo mesmo e com os outros homens, mas também vivida sem que se dê conta ou se tenha ao menos a sensação de tal opressão ou desidentificação. O autor comenta: “com bastante freqüência a obediência a regras e comandos que os atores não formularam nem escolheram não causa nem aflição nem lamento. Há um forte elemento de compulsão, isto é, de falta de liberdade em cada conduta rotineira; mas a rotina, longe de sentida como algo tirânico, é subjacente aos sentimentos de segurança e conforto que no geral são profundamente gratificantes” (BAUMAN, 2000, p.85).

63

rapidamente se alastrou pelos grandes centros industriais e urbanos do Estado, envolvendo centenas

de milhares de trabalhadores…” (SADER, 1995, p.25). Numa demonstração firme de recusa à

docilidade e à tutela a um sindicalismo cujos prepostos estavam lá nos corredores do poder, esse

movimento grevista demonstrava caminhos para “...uma revalorização de práticas sociais presentes no

cotidiano popular, ofuscadas pelas modalidades dominantes de sua representação” (SADER, 1995,

p.26).

Muitas das estratégias que foram se conformando no discurso político dos diversos

movimentos então emergentes estava associado às lutas pelas possibilidades de exercício de uma

cidadania ativa, irrompendo “...na cena pública reivindicando seus direitos, a começar pelo primeiro,

pelo direito de reivindicar direitos” (SADER, 1995, p.26). Ao seguirem na esteira do “processo de

redemocratização” brasileiro, esses novos atores pavimentavam um caminho possível à formação de

um discurso político crítico, em vários momentos pondo em questão os modelos e experiências da

política conformados sob a égide da marca insidiosa de apanágio de especialistas, chegando às raias

do totalitarismo deliberado de caserna.

Ao construírem-se como movimentos, em alguns casos ultrapassando o campo reivindicativo e

indo na direção do questionamento sem peias dos termos pelos quais a reprodução social canaliza a

vida, novas identidades coletivas se formavam. Elas ajudaram a dar corpo e sentido às lutas desses

movimentos, o quais direcionaram-se, não somente às demandas do chão de fábrica, mas, outrossim,

por aquelas de acesso aos equipamentos coletivos, aparelhos urbanos e pelas igualdades racial, de

gênero, étnica etc. (DAGNINO, 2004). Naquele momento verificava-se um ambiente propício, passível

de fornecer as bases à instauração de um terreno mais largo ao processo democrático, de um aumento

da virtude cívica, consoante à onda de politização florescida nas práticas de determinadas frações da

sociedade civil.

2.3. A ASMARE no pano de fundo contextual dos (des)caminhos da cidadania e da

participação social no Brasil

Vários autores no transcurso das décadas de 1980 e 1990 escreveram acerca de um

desenlace concomitante entre a emergência de uma cultura política associada aos movimentos sociais

e a chegada ao poder de gestões – sobretudo municipais – que traziam em sua agenda de governo

uma relação mais próxima com esses movimentos29. Tal contexto, pelo menos no que concerne ao

29 Para um contato mais acurado com as discussões envolvendo a relação entre fortalecimento da cultura política dos movimentos sociais e a polítização do Estado sugiro aqui o trabalho de Avritzer (2004).

64

município de Belo Horizonte, pareceu viabilizar-se a partir de 1993, quando o Partido dos

Trabalhadores, na figura de Patrus Ananias, assume a prefeitura trazendo na sua pauta de gestão um

processo de “recondução dialógica” através do incentivo à criação de espaços públicos

descentralizados de participação popular. Isso significava, em tese, a ratificação de uma reconfiguração

nos arranjos que compunham a natureza das relações entre o poder público e a sociedade civil,

caracterizando a ampliação de seu terreno com uma nova “governança” sob a égide do que se

convencionou chamar de “gestões democráticas inovadoras” (DIAS, 2002).

É nesse quadro que a literatura disponível estabelece uma espécie de divisor de águas, ou

seja, em que as relações entre poder público e entidades ligadas à busca do “alívio do sofrimento

daqueles que vivem da rua” passam a ser traçadas sob um “novo” prisma. Sônia Maria Dias (2002) é

uma das vozes propagadoras de um contexto sócio-político propício, onde se lança “um novo olhar

sobre a questão do catador”, com tais gestões operando a partir de um modelo de “junção entre

eficiência governamental, equidade e governança” (DIAS, 2002, p.63). Elas seriam, supostamente, um

amplo passo para “garantir o exercício da cidadania [grifo meu] dos grupos tradicionalmente

marginalizados” (DIAS, 2002, p.63).

Os momentos subsequentes são marcados pela “ampliação” das relações entre a ASMARE e o

poder público municipal. A nosso ver, sobressaem-se cinco pilares nos quais se fundaria a construção

da cidadania/inclusão social entre os homens e mulheres catadores(as) de papel na ASMARE. Eles se

constituem na a) conquista do “direito ao trabalho” por essas pessoas e a “efetivação” de sua

identidade de “trabalhador”; b) no poder público e suas instituições correlatas buscando abrir, aos

agentes que têm se ocupado do trabalho com a população de rua e/ou catadores(as) de papel – e

mesmo para esses últimos –, canais nos quais estes pudessem ouvir e se fazerem ouvidos; c) criação

de possibilidades para um amplo e incentivador trabalho visando seu processo organizativo; d) criação

de condições objetivas (através de diversos convênios envolvendo o poder público e entidades

parceiras) para a capacitação profissional dessas pessoas, visando a formação e o fortalecimento do

capital social30; e) afirmação, por parte dos agentes de mediação envolvidos com a “causa do catador”

(poder público e entidades diversas), de que todo o trabalho tem primado pela efetivação da melhoria

de suas “condições de vida” e de seu “reconhecimento social”. Mais uma vez, Sônia Maria Dias (2002),

em seu trabalho sobre o que ela considera a “construção da cidadania” na Associação, corrobora com

tais pilares:

Já vimos (...) as dificuldades dos associados em relação à adoção do universo de regras e deveres da ASMARE e dos seus espaços de trabalho, mas vimos também como a

30 O capital social, segundo Higgins (2005, p.03), são “todos os elementos de uma estrutura social que cumpram a função de recurso para que os indivíduos atinjam a satisfação de seus interesses...”.

65

linguagem e a prática da participação, do compartilhamento, da resolução de conflitos através da troca de idéias vem paulatinamente criando novas sociabilidades entre os catadores, possibilitando o exercício de uma prática cidadã, compreendida aqui no âmbito do estabelecimento de relações de co-responsabilidade que a gestão do projeto de coleta seletiva em parceria supõe (Dias, 2002, p.69).

Esse momento belorizontino, guardadas suas especificidades, vai ao encalço daquilo que

acontecia no âmbito nacional, não só em relação ao já mencionado aumento da força contestatória dos

movimentos sociais, mas também da “inauguração” de novos ajustamentos jurídico-políticos,

caminhando assim junto à onda democratizante de fins da década de 1980. A Constituição brasileira –

denominada “cidadã” – na sua essência ampliava, pelo menos enquanto letra da lei, o campo de ação

para que a sociedade civil tivesse à disposição elementos que conferissem a ela maior peso na gestão

da sociedade (DAGNINO, 2004): os espaços públicos de participação. Os dispositivos legais para a

criação de conselhos e a implementação de fóruns e assembléias puseram-se como concretização de

tal tendência. Ou seja, em tese reuniam-se as condições para que um projeto político democratizante

viesse à tona, contribuindo para uma possível desprotagonização do Estado em nome de um

alargamento tanto das suas características de atuação quanto da noção de sociedade civil a ser levada

em conta nas suas relações com o Estado.

Por outro lado, cumpre destacar – e isto se mostra patente na atualidade – que para a criação

de um ambiente onde estejam presentes as possibilidades de efetuação de uma cidadania ativa e

plena, somente o conteúdo formal das normas jurídicas não é suficiente para se garantir a supracitada

desprotagonização do poder de Estado. Para viabilizá-las não seria necessário que a própria essência

dos modos pelos quais o Estado compõe a prática social fossem questionados e, num patamar

superior, pudessem ser superados? No nosso entender, esses “ajustamentos” não só legitimam como

reforçam sua ação embotadora do fazer político enquanto universalidade do homem na qualidade de

ser genérico (ABENSOUR, 1998). Ao se im-por como demiurgo da prática social, em meio à qual seu

saber-poder é levado a efeito pelos asseclas de sua tecno-burocracia e dos instrumentos jurídico-

formais à sua disposição, o Estado aprioristicamente seria capaz de assegurar o bem-estar coletivo.

Noutros termos, o poder de Estado assume um papel ideologicamente definido e reiterado de instância

máxima do fazer social, uma instituição transcendente e anterior aos homens e à sociedade e não

histórica e socialmente produzida. Pensando os efeitos nefastos da imposição pelo Estado de um

consentimento coletivo sobre a prática social, Henri Lefebvre (2002) nos ajuda a pensar este máximo

de Estado corroborando o mínimo de política quando nos aponta a “ilusão estatista”, a qual:

...consiste num projeto colossal e irrisório. O Estado saberia e poderia gerir os assuntos de várias dezenas de milhões de sujeitos. Ele erigir-se-ia tanto como diretor de consciência, quanto como administrador superior. Providencial, deus personificado, o Estado tornar-se-ia o centro das coisas e das consciências terrestres. Sobre tal ilusão, poder-se-ia dizer que ela

66

se esboroa assim que é formulada (LEFEBVRE, 2002, p.140).

É nesse momento que poderíamos reverenciar verdadeiramente a abertura de portas para uma

ampla e sintonizada resignificação do conjunto das próprias relações sociais de produção, postas como

cerne único da reprodução social. Ora, torna-se necessário, nesses termos, a reivenção da política,

construção na qual o “homem comum” possa emergir como sujeito do fazer história, passando a ter

condições de deliberar para além daquilo que se estabelece como estabelecido de antemão.

Ainda percorrendo essa questão, achamos interessante trazermos para o debate Dalmo Dallari

(1982) Numa análise da Carta Magna brasileira, esse autor atentava para as dificuldades de se fazer

valer seu valor teórico correspondendo à prática (já que seus conteúdos são vazios da resignificação

efetiva dos termos pelos quais foi engendrada nossa sociedade), sendo isto recorrente quando “os

governos afrontam as normas constitucionais (...) alegando interesse público, razões de Estado ou

simplesmente ignorando a existência de preceitos constitucionais” (DALLARI, 1982, p.62).

Têm-se então as dissonâncias que a formalização e a institucionalização das práticas sociais

ao invés de extirpar acabam por municiar: ao mesmo tempo em que possuem um enorme peso, capaz

de canalizar e até enclausurar o agir autônomo dos indivíduos, revelam-se impotentes na regulação do

social pela universalização do bem-comum. O exercício de direitos e a ação política visando reatualizá-

los concretizam-se como exceções mediante as quais o político e o social são subtraídos pela violência

da desqualificação e anulação do outro como interlocutor ativo no processo político.

Eis aí a sutil e perversa conversão da “política em polícia”, para utilizar os termos de Jacques

Rancière (1996b). Em seu seminal ensaio intitulado “O Dissenso” – através do qual discorre acerca das

formas entonadoras que perfazem a relação entre Estado e sociedade civil, chegando aos redutos mais

longínquos da vida social – faz a “crítica do discurso atualmente dominante que identifica a

racionalidade política ao consenso e o consenso ao princípio mesmo da democracia” (RANCIÈRE,

1996b, p.368). Segundo o autor, o discurso entremeador da racionalidade política assinalada institui o

consenso como sendo, por excelência, a condição celebradora da razão, em oposição aos modelos

instaurados sob o “arcaísmo” e a “irracionalidade” no embate político. O dissenso como base discursiva

e ebulidor dos imobilismos passa a ser entendido como desavença e, por isso, pernicioso à política,

mas passível de ser superado por outro modelo de racionalidade. Nesse caso, a política seria uma

prática descolada da moldura contextual das relações sociais – movidas, entre outros aspectos, pelo

desejo e pelo conflito –, devendo situar-se numa plataforma objetiva e sem “paixões” desestruturadoras

do seu curso “normal”. Rancière alerta: “o que chamam de consenso é na verdade o esquecimento do

modo de racionalidade próprio à política”, significando, ao contrário do que se pretende, “um certo

retorno do irracional” (RANCIÈRE, 1996b, p.368).

67

A teoria política democrática que dá o tom da prática política assinalada assenta-se, assim, no

seu contrário: a “participação social” e sua aplicação propostas escamoteiam o seu fundamento

truculento. Ela traz também o aqui e agora do cenário sócio-político brasileiro como o ápice da

construção e da manifestação da cultura política, sendo tais fenômenos a ratificação simbólica do

discurso político crítico – cultura política carregada, portanto, de uma subestimação dos processos que

lhes constituíram. É possível então não reconhecer a participação social e a construção da cidadania

que se fazem presentes mostrando-se como caricaturas das formas, as quais, pode-se dizer, já soam

como anteriores? Eis aí a chave para se decifrar os desvios contidos na cantilena enfadonha

representada pelos homens e mulheres catador(es) de papel que passam a perseguir a condição de

“cidadãos”.

O discurso que tem dado fundamentação ao trabalho desenvolvido na ASMARE articula-se em

torno de “uma resposta que vem das ruas”31, um processo de inserção iníciado na década de 1990 e

que veio a se efetivar enquanto “novo modelo de política pública”32. Já a política pública que dá corpo

ao projeto ASMARE está imersa nos termos atuais do imperioso ajuste estrutural aplicado ao Brasil dos

tempos neoliberais – impondo novos ordenamentos para as funções e desígnios do Estado incidindo,

inclusive, sobre as noções de público e privado. Não seria mister, portanto, inscrevê-la no grupo dos

avanços democráticos e do fazer político qualificando-as adequadamente? Não realizar essa tarefa

seria atestá-los quase que como uma seqüência natural e indiscutível numa marcha evolutivo-linear

rumo à racionalidade política. O que nos faz dizer que essa “política pública” não pode ser

compreendida satisfatoriamente se não insistirmos em tocar nos fundamentos sob os quais o

capitalismo se estrutura na atualidade, calcado que está num novo e poderoso alicerce político-

ideológico.

A década de 1990, no entender de Evelina Dagnino (1994), sinalizava para as reais

possibilidades de uma verdadeira mudança na concepção de democracia (e, por sua vez, nas noções

supracitadas) que ainda perdurava no Brasil. Ao trabalhar no entendimento da relação entre os

movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania, procurava fazer uma distinção

entre aquela que foi dita e praticada nos fins do século XVIII e XIX, ancorada numa “...resposta do

Estado às reivindicações da sociedade” (DAGNINO, 1994, p.104) e uma outra, que ao final de década

de 1970 ascendia e buscava se fazer presente. A entrada dessa segunda noção nos cenários político e

social da época confluía para “a idéia de cidadania enquanto estratégia política” (DAGNINO, 1994,

p.107). Tal qualidade se justificaria ao se verificar seu caráter de construção histórica expressa nas

31 Frase contida na revista comemorativa dos 10 anos de fundação da ASMARE. 32 Palavras proferidas por José Aparecido Gonçalves, à época administrador geral da ASMARE, na mesma revista.

68

práticas concretas operadas nas lutas sociais. Além disso, quando não a reduzíssemos a uma

categoria fixa e fixadora, dentro de uma espécie de casulo que a tornasse imanente e transcendente no

tempo e no espaço, mas que a pensássemos como algo que se constrói a todo instante, na dinâmica

dos conflitos reais.

Numa direção parecida, Maria Victória Benevides (1994) esforçava-se para situar a questão da

cidadania no bojo teórico-prático da perspectiva da sedimentação do processo democrático no Brasil.

Ela discutia tal questão sob o prisma de dois temas correlatos: os chamados direitos políticos e os

mecanismos de democracia participativa, tidos como seus aperfeiçoadores, e a educação e a cultura

políticas como “causa e conseqüência” da cidadania na qualidade de uma prática democrática.

Distinguia a cidadania passiva, “aquela que é outorgada pelo Estado, com a idéia moral do favor e da

tutela” (BENEVIDES, 1994, p.09) daquela que “institui o cidadão como portador de direitos e deveres,

mas essencialmente criador de direitos para abrir novos espaços de participação política”

(BENEVIDES,1994, p.09). Essa última era vista como sendo a dimensão ativa da cidadania, baseada

num modelo de participação popular que passa a percorrer o fio e a trama da cultura e do engajamento

políticos.

Nesses termos, Dagnino (1994 e 2004) formula alguns itens que apontam para a distinção da

natureza histórico-social das noções de cidadania e aquela que se gesta ainda em fins da década de

1970. Para ela, o primeiro item, situado na noção de direitos, mostra-se essencial quando se tem conta

a sua total redefinição no cenário contemporâneo, isto é, “a concepção do direito a ter direitos”

(DAGNINO, 1994, p.107). Ela escapa da definição limitante dos direitos previamente definidos,

“materializada pela implantação efetiva de direitos abstratos e formais” (DAGNINO, 1994, p.108), para

a condição dos sujeitos deliberarem, no interior de espaços públicos constituídos para esse fim, acerca

da reivindicação e mesmo a criação de novos direitos. Nesse mesmo esteio a “nova cidadania (...) não

se vincula a uma estratégia das classes dominantes e do Estado para a incorporação política

progressiva de setores excluídos” (DAGNINO, 1994, p.108), forjada como inclusão social na sociedade

de consumo e como condição para a reprodução do capital.

Ao contrário, o que se percebe na nova cidadania é uma ampliação das concepções de política

e democracia. De certa maneira elas não estão achatadas por uma relação instrumental entre Estado e

sociedade civil – muito embora os homens que as constroem não estejam imunes à sedução do

aparelhamento irrefletido ao primeiro –, mas infundidas num debate político propagado no interior da

própria sociedade civil. O que não comportaria um sistema político como algo que se impõe “de cima”

como fundamento primeiro da racionalidade política, colocando-se de antemão na vida social, mas

também ali – nos espaços públicos de participação –, discutido e definido. Os cidadãos seriam então

“sujeitos sociais ativos”, verdadeiros “agentes políticos” (DAGNINO, 2004, p.104). Segundo a autora,

69

esta seria uma estratégia dos não-cidadãos e dos excluídos, o quais poderiam vir a ser portadores de

crescente lucidez em relação ao que seriam seus direitos e dessa maneira “lutando por seu

reconhecimento” (DAGNINO, 1994, p.108). Outro ponto refere-se ao aprendizado político dos

indivíduos que se refletiria em novas formas de sociabilidade e de um redesenho das relações sociais

em todos os seus níveis.

Também a noção de participação social que ganhou terreno com os movimentos sociais e

reivindicativos e que se constituiu na espinha dorsal do projeto participativo e democratizante brasileiro,

experimenta uma imensa redução de seus sentidos (DAGNINO, 2004). Naquele momento ela

significava uma árdua conquista, garantindo um flanco possível para a ampliação do poder de decisão

de setores da sociedade que na história política e social brasileira sempre foram relegados ao limbo do

esquecimento pelas classes dominantes. Esse modelo de participação anunciava uma maior

politização das discussões, as quais poderiam passar a se dar de maneira mais autônoma, pondo-se

para fora da redoma restritiva e pretensamente competente dos aparelhos e instâncias decisórias de

Estado. Abria-se um campo de possíveis ao se atingir a criação e disseminação de espaços públicos

de participação e decisão descentralizados – mas não fragmentados, haja vista que essa forma

enfraquece as lutas (pois seu reconhecimento sai da base universal) e esgarça os conteúdos da

politização. Não que esse processo passou repentinamente a correr em águas tranqüilas. Mas o

patamar das práticas políticas alternativas galgava posições até então não alcançadas, pois vários de

seus setores assumiam um posicionamento crítico, orientando-se decididamente rumo à superação das

relações de poder reprodutoras das práticas sociais hegemônicas. Ainda que constitutivas da trama

das relações sociais e das identidades coletivas, as relações de poder numa democracia radical não

seriam mais o combustível do constante redimensionamento do status quo, mas do conflito constituinte

das regras do jogo democrático permeando uma efetiva esfera pública (MOUFFE, 2003).

Evelina Dagnino (2004) se posiciona contundentemente contra a diluição da potência

transformadora dos movimentos sociais e demais setores da sociedade civil que emergiram em fins da

década de 1970 e que atuaram em nome da conquista e da construção de novos direitos. Diluição que,

como dissemos anteriormente, vem operando através de uma feroz (mas também sutil) campanha de

mistificação dos significados conquistados para a noção de cidadania (e também de participação e

sociedade civil). O que faz gerar conseqüências sérias no entendimento mais geral acerca do trabalho

que vem sendo desenvolvido no interior da ASMARE.

O que passa a se configurar então como participação social revela-se, por sua vez, numa

estranha dissonância, pois “quanto menos coisas há para discutir, mais se celebra a ética da

discussão, da razão comunicativa, como fundamento da política” (RANCIÈRE, 1996b, p.367).

Compõem tal fenômeno boas doses de sectarismo. Uma prática política ocultada sob o manto de

70

dialogicidade impõe-se cabalmente e determina as prerrogativas últimas do que é bom e mau para a

sociedade, infligindo seriamente sobre as possibilidades do dissenso criativo.

Falar em participação social na contemporaneidade nos traz também a necessidade de

enfatizar outros de seus limites práticos. Por um lado, eles se inscrevem no contra-senso decorrente da

sensação de que a sociedade contemporânea atingiu o ápice do exercício concreto da liberdade,

combinada com a falta de ousadia (chegando às raias da passividade) sem par de boa parte dos

“governantes” e “governados” (BAUMAN, 2000). Por outro lado, há as nada desprezíveis dificuldades

de mobilizar os indivíduos em causas que transcendam o campo imediato de seus desejos e ambições

prementes, algo que decorre, em boa medida, pelo fato de muitos deles estarem absortos em

concepções irrefletidas sobre os modos pelos quais a realidade social é produzida e reproduzida neste

mundo. Além do mais, toda sorte de percalços se impõe à realização plena do indivíduo como sujeito

político de fato, a começar pelo fato de que os tempos do trabalho são cada vez mais externos a ele,

contribuindo para que até o seu tempo livre, já não lhe seja objeto de deliberação (ADORNO, 1995b)33

Há aí o sutil imbricamento com o propalado “ambiente propício” à abertura de canais de participação

política àqueles historicamente destituídos das possibilidades de exercê-la, por meio da

institucionalização de espaços públicos.

Ora, as excrescências acima são o “fiel da balança” da “confluência perversa” (DAGNINO,

2004) na qual o projeto neoliberal e o projeto participativo brasileiro acham-se imersos. Não obstante a

essência daquele, à primeira vista, apresentar-se antagônica em relação a este, posto que foram os

movimentos sociais que puseram acento na redemocratização brasileira e na busca de uma cidadania

ativa ainda na década de 1970, o que se verifica é um acoplamento instrumental entre ambos. Nesse

sentido, o mais assustador seria que tais projetos “requerem uma sociedade civil ativa e propositiva”

(DAGNINO, 2004, p.97) cuja “cultura política” caminharia por uma forma de sociabilidade na qual a

construção das noções de cidadania e participação no imaginário social estaria tomada por um

processo sutil, intransparente e nocivo à instauração da democracia radical como práxis cotidiana.

Ora, isso se dá porque tal mistificação, no caso da noção de cidadania, “...se vincula

33 Adorno nos faz boas revelações acerca da produção estratégica do “tempo livre” na sociedade burguesa, produção essa que serve de anteparo aos esquemas de conduta do indivíduo, inclusive nas possibilidades de deliberar ativamente sobre sua existência individual e coletiva por meio da política. Noutros termos, viver de fato a democracia política, localizada muito além da sua esfera formal, cuja construção reduzida reduz os homens a reféns em potencial da forma abstrata do Estado, de seu aparelho técnico-burocrático e dos “políticos profissionais”. Eis o frankfurtiano: “Aqui nos deparamos com um esquema de conduta do caráter burguês. Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; sobre essa base, repousou outrora o trabalho assalariado, e suas normas foram interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho. Esta é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre”. Em seguida, sua constatação não poderia ser pior, a despeito de todas as possibilidades trazidas pela própria sociedade burguesa: “No estado de letargia culmina um momento decisivo do tempo livre nas condições atuais: o tédio” (ADORNO, 1995b).

71

diretamente à gestão do que é a nossa questão mais premente: a pobreza” (DAGNINO, 2004, p.106).

No caso do processo de redemocratização brasileiro, a “questão social” e a “pobreza” se inseriram num

campo de discussão que as apontava para as questões da cidadania e da igualdade de direitos, no

caso como princípios legítimos a serem perseguidos e conquistados. Já o que se tem na atualidade do

projeto neoliberal é uma “outra forma de gestão do social” (DAGNINO, 2004, p.106), que destitui a

essência dessas noções, colocando-as patamares abaixo.

De acordo com José Murilo de Carvalho (2002), a noção de cidadania disseminada atualmente

mostra-se por dois ângulos. Por um lado, recobra os traços típicos da sua concepção liberal clássica,

calcados numa versão que coloca os interesses individuais como sobrepostos aos demais. Ela se vale

de uma visão utilitarista que a apregoa a redenção individual a partir de uma inserção competitiva na

lógica de mercado. A outra se mostra inovadora, trazendo “...elementos novos das configurações

sociais e políticas da contemporaneidade” (CARVALHO, 2002, p.120).

Essa noção de cidadania se mostra como ausência de conteúdos de politização no seio das

discussões e o caráter de construção coletiva que em boa medida vieram à tona junto com os

movimentos sociais de fins da década de 1970. O que nela se vê são as energias utópicas sendo

substituídas pelo utopismo da conquista individual no salve-se quem puder do mercado. O outro,

anteriormente visto sob a intersubjetivdade construída nas árduas lutas coletivas pela conquista de

uma vida melhor, torna-se parceiro no jogo de soma zero da agressividade utilitarista do vale tudo,

buscando a todo custo a sua entrada no mercado como consumidor e como produtor. O privado como

dimensão em interface permanente com o público transmuta-se em individualidade privatizada,

desvinculada de qualquer ação que não aquela onde a competição entre sujeitos econômicos “livres” e

desigualmente municiados seja a regra.

Vive-se, portanto, no fio da navalha entre o esgarçamento do sentido do público enquanto

construção coletiva em meio ao dissenso e o conflito – mas também por meio do respeito e da

afirmação das diferenças – e a possibilidade de que tal noção readquira seus significados abrangentes.

Bauman (2000) constata um hiato na realização da política na medida em que a vida se torna refém de

forças antes mantidas sob um frágil (porque nas entrelinhas inscrito sob o campo de interesses do

capital), porém seguro controle: o da regulação estatal. Se esferas da produção social como a de

mercado outrora eram vistas como algo a ser devidamente regulado, face à sua “periculosidade”

quando deixadas à solta, nos tempos que pesam sobre nós a última palavra é que todos procedam à

desregulamentação, não só financeira, mas também de consumo. Esses são, pois, sintomas de que:

Explícita ou implicitamente, as instituições políticas vigentes vivem hoje um processo de abandono ou diminuição do seu papel de criadoras de código e agenda. O que, no entanto, não significa – ao menos não necessariamente – que se amplia o âmbito da liberdade negativa ou a liberdade de opção individual. Significa apenas que a função de estabelecer

72

código e agenda está sendo decididamente transferida das instituições políticas (isto é, eleitas e em princípio controladas) para outras forças [as de mercado] (BAUMAN, 2000, p.80).

Política e cidadania passam então a conviver com um nó górdio que as amarra justamente nos

seus mecanismos de ação direta. Passam a estar atreladas pela mediação de tais forças de mercado,

desfigurando-se de seus sentidos mais amplos. Convertem-se num importante apêndice de todo esse

ideário: incentivar os indivíduos-mônadas a buscarem individualmente a satisfação de seus interesses.

Esse fenômeno contribui para que se obscureçam os sentidos socialmente construídos das

desigualdades diversas, as quais passam a ser interpretadas como fruto da diferenciação de

desempenhos e competências individuais. O que se revela na transferência de responsabilidades,

levando o indivíduo a recolher para si a culpa pelo desemprego: ele não se qualificou para tal.

Além do mais, a noção de cidadania atualmente disseminada conduz ao fenômeno da

sociedade sendo exortada a se valer de uma benemerência instituída e estreita – de cunho puramente

individual e assistencialista – e pela “responsabilidade moral” (DAGNINO, 2004, p.106). O véu que

tampa tais contradições torna-se mais espesso, contribuindo para que o consumo como mediação

impositória das relações sociais torne-se talvez o principal mote para a definição do que seja cidadania.

Seus sentidos ampliados, plasmados na politização das lutas sociais pela conquista e construção de

novos direitos, têm sido capturados e diluídos por uma “dimensão” que faz dela um signo de

comiseração “politicamente correta” a ser exercida e consumida por aquele(s) que, inocentemente ou

não, acreditam exercer(em) sua condição de “cidadão(s)”. Isso é grave, pois se dispensa seu exercício

mediante a articulação e a mobilização sociais construtoras de uma cultura política, para se poder

adquirir tal “cidadania” no reino do espetáculo34, pois o “...consumo de espetáculo torna-se o

espetáculo do consumo” (LEFEBVRE, 1991, p.94).

Na esfera do poder de Estado, o que então passa a ser entendido como cidadania resume-se

em se jogar o fardo da dívida social para a própria sociedade, através da implementação de diversos e

mirabolantes programas governamentais que primam pela “geração de emprego e renda”, o incentivo

ao empreendedorismo e à qualificação profissional. Em suma, o que se vê então é a cidadania

entendida como enclausuramento da política, visto que a linha que se localiza entre o seu crescente

fértil e a truculência da racionalidade política fabricada pelo consenso redutor é extremamente tênue.

Jacques Rancière (1996b) chama a isso de uma dos paradoxos que vem marcando os debates

políticos e teóricos na contemporaneidade:

...no momento mesmo em que essa filosofia da necessidade se impõe quase que por toda

34 É o que acontece no caso dos shows cuja entrada é garantida mediante a doação de alimentos ou a alocação de recursos por entidades filantrópicas através de doações individuais ou feitas por empresas.

73

parte como a última palavra em sabedoria política, vemos por outro lado triunfar na filosofia política e nas ciências sociais um discurso que glorifica o retorno do ator, do indivíduo que discute, que contrata, que age [grifos meus]. No momento em que nos dizem que os dados são inequívocos e que as escolhas se impõem por si mesmas, celebra-se ruidosamente o retorno do ator racional à cena social (RANCIÈRE, 1996b, p.367).

Efetiva-se a cegueira: o trabalho (abstrato) como direito civil básico transfigura-se em puro

dever de cada um, numa famigerada busca individual na ânsia de não incorrer no risco de se ver

atolado no “fracasso profissional”. Ou ainda: “...[os direitos] considerado[s] no passado recente como

indicador[es] de modernidade, torna[m]-se símbolo[s] de ‘atraso’, um ‘anacronismo’ que bloqueia o

potencial modernizante do mercado” (DAGNINO, 2004, p.106).

Com efeito, a disseminação teórica e prática das noções de cidadania e de participação social

no Brasil contemporâneo discutidas anteriormente, a despeito de estarmos sob a égide (ou o jugo?) de

um governo que se autodenomina de “esquerda”, não parece ter ousadia (ou vontade política) para se

afastar do modelo neoliberal – dotador dos sentidos hegemônicos que a contaminam. Nos dizeres das

próprias publicações que servem de porta-vozes do governo Lula, a “prioridade absoluta” são as

“...políticas de combate à fome e à pobreza”, numa valorização dos “...direitos básicos da população,

como o acesso à alimentação, educação, saúde, habitação e cultura”35. E são bastante perceptíveis as

similitudes de direcionamento nas políticas sociais implementadas pela administração “petista” da

Prefeitura de Belo Horizonte. Veremos no próximo capítulo que há uma consonância nos programas e

ações empreendidos pelas secretarias de Políticas Sociais (sobretudo a partir de sua secretaria adjunta

de Assistência Social) e de Limpeza Urbana, na viabilização institucional, não só do “Projeto ASMARE”,

mas também de outros projetos concernentes ao par reciclagem de resíduos sólidos/”inclusão social”.

35 Retirado da Revista intitulada “O Brasil na era do desenvolvimento sustentável”, uma publicação da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República (SECOM/PR), em conjunto com a Casa Civil e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Ano 2/ número 4.

74

CAPÍTULO 3

EXCLUSÃO SOCIAL, CRISE ECOLÓGICA E AS SAÍDAS CONSERVADORAS DA

VEZ: O “PROGRAMA DE INCLUSÃO PRODUTIVA”, A COLETA SELETIVA E A

RECICLAGEM NOS (DES)CAMINHOS DA ASMARE

Nosso objetivo neste capítulo será articular dois amplos debates exaustivamente empreendidos

nas últimas décadas: as questões da “exclusão social” e a “problemática ambiental”, respectivamente.

Temos em alta conta a amplitude de cada uma delas, fato esse que nos leva a tocá-las nos seus

aspectos mais gerais, sem, contudo, deixar de nos determos em suas insuficiências e contradições. Ao

nos dedicarmos à verticalização sobre ambas, haverá um relativo “afastamento” sobre a temática

específica dos homens e mulheres catadores(as) da ASMARE – a qual será retomada em profundidade

no capítulo 4. Julgamos importante este artifício metodológico, posto que trazer para a análise as

questões propostas acima nos permitiria interrogá-las em seu qualificativo “questões de fundo”, patente

nos debates a elas relacionados. A insuficiência desse qualificativo, no nosso entender, reside no fato

de que, por não ser questionado na sua incorporação aos imperativos da reprodução do capital, ele

perde seu vigor e deixa de apontar possibilidades de transformação efetiva do existente.

Para tanto, mergulharemos primeiramente no debate teórico sobre a “exclusão social”, mais

precisamente nos entraves gerados pela quase imposição por parte de seus defensores de um termo

elevado à categoria de análise. Partimos do pressuposto que a “exclusão social” não é condicionante

superior, mas expressão fenomênica dos processos mais gerais de reprodução social. Logo em

seguida, nossa incursão é sobre a crise ecológica e os debates subseqüentes inauguradores da

“problemática ambiental”. Faz-se necessário trazer alguns apontamentos de ordem histórico-filosófica

acerca das motivações da crise para chegarmos aos amplos debates sucedâneos da mesma, os quais

inseriram a matriz ideológico-prática do “desenvolvimento sustentável” (numa perspectiva que a torna

refém dos interesses hegemônicos) como modelo de desenvolvimento capaz de lidar com a crise.

A observação mais de perto de ambos os debates (o da “exclusão social” e o da “problemática

ambiental”) nos permite lançar um olhar mais acurado sobre os programas municipais de “coleta

seletiva” e de “inclusão produtiva” e seus entrelaçamentos. No nosso entender, ambos visam o

alargamento do processo de valorização dos capitais presentes no circuito produtivo da reciclagem, ao

mesmo tempo em que o poder público dá uma resposta à sociedade quanto ao problema da

“marginalidade social” e das “preocupações” com a questão ambiental. Por último, um flanco é aberto

para verificarmos as ressonâncias de tais programas no universo sócio-espacial da ASMARE,

atentando para suas contradições e irracionalidades.

75

3.1. O debate teórico sobre a “exclusão social”

De início, comporemos nosso diálogo com algumas das reflexões empreendidas por José de

Souza Martins (1997 e 2002) acerca dos agentes de pastoral (entre outros agentes de mediação) e a

necessidade por ele preconizada de se fazer um balanço crítico do discurso e da prática emanada por

eles. Para esse autor, ao “...lidar conceitualmente com a nova desigualdade gerada (...) [através] da

exclusão” (MARTINS, 1997, p.26), incorreu-se na instrumentalização e na banalização de conceitos

que, ao contrário, deveriam funcionar como focos compreensivos de uma realidade marcada pelo

movimento e pelo conflito.

No entender do autor, ao se falar excessivamente em “exclusão”, levando este termo ao

primeiro nível de análise da realidade social, geraria insuficiências no tocante à sua compreensão mais

efetiva, muito mais ocultando do que desvelando suas contradições. Da mesma forma, o apelo para

construções teóricas e metodológicas cujo recurso se dê pela pretensa amplitude do universo

explicativo do termo “exclusão” – por meio do qual a realidade social poderia ser “vestida” pelo conceito

ou pela categoria –, não ajudaria em nada na sua compreensão. Uma das conseqüências nefastas

desta “cegueira” analítica é que o caminho reflexivo traçado a partir das autodesignações da

consciência social, ou seja, como o indivíduo vê a si mesmo na sua condição, ou é deixado de fora ou

aparece em segundo plano nas análises. Assim, a construção de conceitos e categorias explicativas

verdadeiramente coerentes, achar-se-ia prejudicada e muitas vezes submetida aos parâmetros do

racionalismo científico. O que se percebe é que, não obstante os discursos apontando a via contrária, o

método científico ainda se vê embebido de uma sutileza metafísica, insinuando-se (para não dizer

impondo-se) como mote analítico-explicativo anterior ao processo histórico-social do qual faz parte.

José de Souza Martins (2002a) atenta para a necessidade de se construir um trajeto analítico-

explicativo que tenha em alta conta o olhar que os indivíduos têm da sua condição – transformando-os

em sujeitos que expõem-na ativamente a si mesmos e ao pesquisador –, permitindo um salto

qualitativo no processo de compreensão da realidade social. No seu entender, esta perspectiva

metodológica e epistemológica ajudaria a trazer à tona os mecanismos que contribuem para o

ocultamento da realidade social a muitos daqueles que a vivenciam, sob diversas formas, ou, que de

uma maneira ou de outra, a questionam e a negam. Nestes termos, o autor nos faz um alerta:

Sem isso [a compreensão da consciência social], as designações e classificações podem até ser objetivas, mas não corresponderão ao que a pessoa ou grupo vêem em si mesmos nem, portanto, às possibilidades que ela mesma ou ele mesmo vê na situação em que se encontra (MARTINS, 2002a, p.26).

Ao fazer valer seu “discurso competente” (CHAUÍ, 1981), todos aqueles que se apresentam

76

como preocupados com o problema da “exclusão” e com a condição dos sujeitos sobre os quais ela se

manifesta, parecem muito mais imbuídos em tentar resolver o problema do esgarçamento do vínculo

social que os atinge direta e indiretamente do que comprometidos com um pensamento e uma prática

de conteúdo verdadeiramente transformador (MARTINS, 2002a). Expor o termo “exclusão” na

qualidade de categoria de análise também revela “...uma incerteza e uma grande insegurança teórica

na compreensão dos problemas sociais da sociedade contemporânea” (MARTINS, 2002a, p.27).

Assim sendo, o autor aludido chama a atenção para a constituição de duas vertentes distintas

de construção e interpretação do problema, uma de “orientação transformadora” e outra de “orientação

conservadora”. A primeira delas, segundo ele, é equivocada porque contém em seu nexo explicativo a

vontade de assomar ao “excluído” a situação de classe do operário e sua coisificação no âmbito da

exploração capitalista. Além disso, aponta-o como uma espécie de novo sujeito histórico36, portador

das potencialidades da transformação e da superação da sociedade capitalista. Já a orientação

conservadora destitui do plano principal de análise a figura do trabalhador, preenchendo este “vazio”

com a figura do “excluído”, cuja situação de marginalidade aplica-se ao morador de rua, aos jovens

pobres e (à primeira vista) sem perspectivas da periferia, ao desempregado, aos expropriados do

campo e da cidade, etc. As contradições outrora apontadas como vividas pelo trabalhador no processo

produtivo, em meio ao qual sua situação de desumanização e alienação eram condições presentes na

extração da mais-valia necessária à acumulação e à reprodução do capital (mas também à formação

de sua consciência de classe), já não são vividas, ou melhor, são vividas à revelia do “excluído”. É

como se as categorias e conceitos explicativos trazidos pelo arcabouço teórico marxiano simplesmente

devessem ser jogados na lata de lixo da história, pois seriam insuficientes (mesmo se atualizados) para

dar conta da complexidade das relações sociais na contemporaneidade37. O que é apresentado pelos

formuladores cuja categoria “exclusão” ganha proeminência e se torna o mote indutor da análise, é

uma formação econômico-social e um modo de produção em que seus fundamentos e contradições

não são mais aqueles que lhe deram origem e ao mesmo tempo foram (e são) seus resultados. Chegar

a tais fundamentos e contradições e aos mecanismos perversos através dos quais se dá a reprodução

36 A transferência da virtualidade da possibilidade histórica de transformação social ao “excluído” parece ir ao encontro daquilo que André Gorz (1987), em seu livro “Adeus ao Proletariado”, atribui àqueles que simplesmente foram expulsos ou destituídos da reprodução social sob o capitalismo contemporâneo: a condição de “novos sujeitos históricos”. Ou seja, o portador dessa possibilidade histórica não seria mais o proletariado, mas aqueles não mais pertencentes ao processo produtivo imediato na condição de trabalhadores assalariados, os “alérgicos ao trabalho”, nas palavras do autor. 37 Reportamo-nos às palavras de Henri Lefebvre (2005) em seu livro “Um pensamento tornado mundo: é preciso abandonar Marx?”, em que o autor dirige sua crítica àqueles que acreditam (ou o fazem de maneira consciente e, portanto, funesta) na suposta possibilidade de tomar a reflexão e a obra marxianas sob o ponto de partida do “...divórcio entre teoria ‘marxista’ e prática política...”, resultando num verdadeiro abismo. Ainda assim, tendo em conta o movimento do mundo, Lefebvre assinala que “...somente a reflexão atual pode apreciar as alterações no mundo moderno e detectar o que, nos conceitos ‘marxistas’ clássicos pode e deve ser abandonado em favor de conceitos novos”.

77

do capital e a subsunção da reprodução social aos seus imperativos, percebendo, a partir deles suas

manifestações fenomênicas na realidade social (entre elas o fenômeno da “exclusão”), definitivamente

parece sair da órbita das preocupações de um certo pensamento dito “crítico”. Por isso, segundo

Martins, “...as categorias ‘excluído’ e ‘exclusão’ são categorias conservadoras. Não tocam nas

contradições. Apenas as lamentam” (MARTINS, 2002a, p.35).

Ademais, o que Martins chama de “escassez de sensibilidade ecumênica” (MARTINS, 1997,

p.08) dos autores ligados ao catolicismo crítico e à Teologia da Libertação, foi se desdobrando no

conhecimento que se produziu e que sustentou a “prática educativa dos agentes culturais e políticos”

(MARTINS, 1997, p.08), fundada numa dialética mecanicista de origem estruturalista. Por dialogar

eminentemente com a economia, tomando a realidade social por dentro de uma realidade econômica

norteadora, as “respostas” para o problema da “exclusão” ficavam em ampla medida circunscritas à

questão da distribuição. Ora, tendo em conta que a reprodução ampliada e incessante do capital

pressupõe uma distribuição desigual e controlada da riqueza socialmente produzida de modo a tragar

em seu favor a totalidade da reprodução social, o aparelhamento de práticas com algum conteúdo anti-

hegemônico àquelas dominantes soa, na melhor das hipóteses, como um reformismo reiterador. Por

seu turno, quando se exime de captar a natureza de um conflito que é, sobretudo, de classes, tal

orientação deixa de ter vigor teórico e epistemológico críticos, dando munição para a reorientação

estratégica de práticas essencialmente mercantis.

Trazemos para o debate a obra “Vidas ao Léu: Trajetórias de Exclusão”, produzida por Sarah

Escorel (1999). Ao buscar compreender o significado da “exclusão” na contemporaneidade e ao situá-la

num eixo que faz dela uma categoria de análise, retoma-a na forma de entendimento do que seria a

fratura social a que estamos assistindo – e que a autora chama de “sociedade dual”:

Esse novo dualismo traduz uma ordem social segmentada, que produz um novo tipo de exclusão social, em que à integração precária no mercado se sobrepõem o bloqueio de perspectivas de futuro e a perda de um sentido de pertinência em relação à vida social (ESCOREL, 1999, p.56).

A contribuição de Escorel, embora a nosso ver seja da mais alta importância nos estudos

acerca da chamada “exclusão”, mostra-se insatisfatória por dois motivos.

Primeiramente porque não vincula a situação na qual o indivíduo é relegado aos confins de

qualquer possibilidade de existência social com dignidade – aquilo que ela chama de “exclusão” – com

os sentidos da produção e reprodução de seres humanos descartáveis numa sociedade que tornou

funcional e justificável ideologicamente a repartição desigual da riqueza socialmente produzida. Ainda

que a autora em seu prefácio admita que seu objetivo “...não foi atingir a causa do processo, mas ir

‘tirando os véus’ que recobrem a compliexidade tanto do fenômeno da exclusão social quanto das

78

condições de vida dos moradores de rua” (ESCOREL, 1999, p.17), julgamos imprescindível a autora

realizar, sim, tal percurso e demonstrar suas articulações. Não o realizando, as contradições e

irracionalidades presentes na dinâmica da reprodução capitalista, conquanto apareçam em seu texto

diluídas nas suas próprias expressões fenomênicas, como “reestruturações”, “precarização do trabalho”

etc, parecem algo externo, pois são postas à mesa sem que se demonstre seu imbricamento. No nosso

entender, captar esse movimento é sumamente necessário, mais do que para a denúncia, mas para

encampar um esforço do real apontamento da transformação do existente.

Em segundo lugar porque, conforme já dito acima, explicar a terrível situação vivida por um

número cada vez maior de seres humanos – os quais, vale dizer, são “jogados fora” como “coisas que

não servem mais” para a dinâmica de manutenção do capitalismo e, contraditoriamente, cada vez mais

tragados pela vontade obsessiva do lucro –, por meio da categoria “exclusão” mostra-se bastante

insuficiente. Insuficiência constatada quando se insiste em tornar os supostos “excluídos” como “algo”

que a sociedade, definitivamente, não quer mais. A própria “aceitação” (“inclusão”?) dos catadores de

papel à cotidianidade pode ser pensada pelo ângulo da necessidade que o capital tem de viabilizar

taxas de lucro favoráveis à sua reprodução ampliada. Ora, o trabalho diário deste verdadeiro “exército”

de homens e mulheres, saindo à “caça” de materiais recicláveis para vendê-los aos depósitos ou para

as cooperativas e associações garante o que José de Souza Martins (2002c) chamou de forma

“anômala” o supracitado movimento de reprodução ampliada do capital.

Utilizamos esta tese adaptando-a ao que, acreditamos, vem se passando na ASMARE e,

guardadas as devidas proporções, não deixa de estar presente em muitos dos depósitos e

cooperativas pelo Brasil. Faz-se necessário ressaltar que estamos nos referindo aqui à produtividade

do trabalho gerado na catação e suas conseqüências positivas na formação das taxas de lucro na

Associação. A tese pode ser explicada em quatro momentos concomitantes e imbricados. a) A

incorporação de um grande número de catadores ao processo de catação e triagem do material

coletado, atividades essas que comporiam o “processo produtivo” inicial até a sua ponta final, ou seja, o

material processado e transformado pela indústria da reciclagem; b) o grande número de catadores

trabalhando na Associação, à primeira vista, indica uma baixa composição orgânica do capital (pouco

capital constante empregado na produção) que, dentro da lógica da acumulação, estaria em seus

níveis iniciais, haja vista que, para se reproduzir de maneira contínua e ampliada, o capital necessita de

aumentar progressivamente sua composição orgânica; c) sendo o trabalho dessas pessoas

extremamente precário e, desta forma, apresentando altos níveis de exploração – ausência de

quaisquer direitos trabalhistas, a intensiva jornada diária e semanal de trabalho, grande insalubridade e

periculosidade e o baixo valor recebido pelos materiais recicláveis, o que normalmente gera ganhos

reduzidos por parte do catador –, o capital aí, que é de baixa composição orgânica, “transmuta-se” em

79

capital de alta composição orgânica; d) com isso, ao não precisar de grandes investimentos em capital

fixo (normalmente se usa, além do carrinho utilizado na catação, apenas uma prensa e um triturador)

chega-se ao rebaixamento da “...proporção do capital variável em relação ao conjunto do capital, de

modo que o que não é capital variável pareça e funcione como capital constante alto” (MARTINS,

2002c, p.156), tudo isso conquistado, pois, pela superexploração do trabalho desses homens e

mulheres.

Veja-se que a subsunção da reprodução social encarcera-se aos imperativos da reprodução

do capital, pois “incluir” os “excluídos” como consumidores marginais no existente nos atenta para:

...a contradição de que o excluído é produto e expressão não é contradição constitutiva [grifos do autor] de sua condição de marginalizado, de trabalhador à procura de trabalho ou de trabalhador aquém do nível mínimo de vida para fazer dele alguém com acesso às possibilidades do sistema econômico. Não é contradição constitutiva porque ela se resolve na reprodução ampliada e não na transformação da sociedade que o vitima (MARTINS, 2002a, p.38).

Ainda assim não deixa de ser interessante o esforço de Escorel em elaborar um percurso de

estudo do fenômeno da exclusão social através da externação de dimensões da vida social por meio

das quais e nas quais ela se manifesta. Desse modo, ela visa “...compreender as interferências dos

processos de desvinculação no cotidiano dos vulnerabilizados” (ESCOREL, 1999, p.75). Da trajetória

de vulnerabilidade até a de ruptura total dos vínculos com a sociedade por parte daquele que vive tal

situação, a autora tenta “mapeá-la” em três dimensões, senão vejamos.

Em primeiro lugar, os vínculos com o mundo do trabalho: seu esfacelamento envolveria,

segundo a autora, os processos de extinção e/ou precarização dos postos e das condições de trabalho,

respectivamente, gerando dificuldades do indivíduo se inserir na esfera ocupacional, culminando no

desemprego crônico. O perverso corolário daí advindo é que: “...contingentes populacionais cada vez

maiores são economicamente desnecessários e supérfluos” (ESCOREL, 1999, p.76). Devemos

ressaltar que, embora os meios pelos quais a inserção social na rede de produção e consumo de bens

e serviços seja a principal forma de ordenamento social existente, é preciso observar onde as possíveis

trajetórias podem se conformar em posturas de superação ou assumir um caminho reiterativo. É

possível entender o resgate dos vínculos sociais visando à inclusão por meio do trabalho abstrato,

estranhado e precarizado como sendo estratégias adequadas de correção de uma dívida social que se

assenta na própria natureza da reprodução social desse mundo? É necessário então dizer que a falta

de perspectivas “...de inserção pela via do trabalho” (ESCOREL, 1999, p.76) deve ser interrogada na

sua aparente naturalidade. Em que medida podemos chamar de exclusão (ou inserção) um processo

que, não obstante enclausurar as reproduções individual e social em critérios, valores e representações

pré-estabelecidos, opera também exclusões do exercício de valores, práticas e representações

80

“incoerentes” e “inadequados” ao modelo estabelecido?

Em seguida, tem-se a dimensão sociofamiliar: Escorel constata a “...fragilização e precariedade

das relações familiares, de vizinhança e de comunidade, conduzindo o indivíduo ao isolamento e à

solidão (ESCOREL, 1999, p.76). As intensas transformações sociais e econômicas trouxeram

vulnerabilidade ao âmbito familiar. Não podemos esquecer que a ausência de uma esfera pública que

garantisse a universalização de direitos trouxe a família ao primeiro plano na qualidade de “...suporte

das relações sociais” (ESCOREL, 1999, p.77).

Há também a dimensão política: nela, as trajetórias de exclusão revelariam-se pela ausência

de conteúdos de ultrapassagem das garantias formais rumo à prática efetivado gozo de direitos e da

prática vigorosa de sua reivindicação. Assim, configura-se um espaço de não-cidadania onde a

destituição de direitos se associa com a privação de um “...poder de ação e de representação”

(ESCOREL, 1999, p.77).

Retomando então a questão, nos perguntamos: o que estamos assistindo então? A face mais

dura e candente – porque não mais invisível – da exclusão social, diante da qual as alternativas

assomam-se tão somente na sua própria órbita? O prosseguimento de um avassalador movimento de

“exclusões” e “inclusões” numa realidade cujos imperativos expropriam e invadem a realização

individual e coletiva na apropriação? José de Sousa Martins (2002b) é provocador, ao dizer que “não

existe exclusão: existe contradição, existem vítimas de processos sociais, políticos e econômicos

excludentes” (MARTINS, 2002b, p.119). Essa sua afirmação nos permite dizer que não existe uma

realidade social que acontece “fora” do âmbito mais geral das próprias relações deste mundo. Ou

melhor: ao que parece, a ação ordenadora de Estado, tida como sendo viável no combate à chamada

exclusão se põe como garantia de ajuste de algo que não funciona bem. No caso da exclusão, realiza-

se uma espécie de movimento contrário: a via rumo a uma “tão sonhada” inclusão. O que temos nesse

caso é o pretenso combate desse fenômeno – que parece ser “extraterreno” – através de programas ou

políticas que “insiram” o indivíduo “para dentro” da sociedade, a qual, além de se apresentar como

manifestação daquilo que é “natural” e “indiscutível”, põe-se como referencial absoluto – embora as

conquistas do gênero humano realizem-se como conquista dos “proprietários” da vida social – do

chamado bem-estar.

Ao insistir na primazia da exclusão para justificar tanto seu discurso quanto sua prática –

“proporcionadora da inclusão” dos catadores associados –, tudo leva a crer que ASMARE se desfiliou

de um balanço crítico que a todo momento contemplasse o seu pensar/fazer. Ou seja, o modo pelo

qual a Associação estabelece seus vínculos com o poder público (até que ponto sua postura se deixa

institucionalizar, ao mesmo tempo em que busca uma linha “autônoma” no âmbito do mercado) irá dar

o tom da qualidade de sua ação política: se reiteradora ou com potencial de pôr em questão os

81

fundamentos da reprodução do capital. Consideramos, ainda, que não é possível deixar de lado a

multidimensionalidade de tais dinâmicas se elas acham-se imbricadas àquelas que se fazem presentes

na arena local. Noutros termos, ressaltamos que deve caber à ASMARE observar com mais amplitude

os processos globais e suas derivações no regime de acumulação e nas relações de propriedade (com

todos os corolários daí advindos), através dos quais se move a sociedade capitalista contemporânea.

Essas e outras são questões que poderiam ser envolvidas num contínuo processo de formação

política, não só de seus associados(as), mas também de outros(as) catadores(as), irradiando e

associando estrategicamente sua prática política a outros setores e movimentos sociais, num esforço

de unificação crescente e não de fragmentação das lutas sociais. No nosso entender, estariam abertas

as condições subjetivas e objetivas da formação – com vistas a uma práxis ampliada – de possíveis

agentes de transformação social. Sua análise debilitada acabou por tomá-las como realidades distintas

ou palidamente associadas ao âmbito global das relações sociais de produção. Reportando-nos às

palavras de Henri Lefebvre (2004), incorreu-se numa hospedagem permanente dentro de uma

“realidade ilusória (...) [ancorada] em separações ou descontinuidades absolutas” (LEFEBVRE, 2004,

p.52).

Seria então o caminho reformista seguido pela ASMARE como linha de ação derivada do

Movimento Nacional dos Catadores de Recicláveis – MNCR? Estaria este último adotando uma postura

de aparelhamento direto com o Estado como forma de se obter concessões (até certo ponto

importantes, desde que fundamentadas numa prática anti-hegemônica) no arco da redefinição

estratégica do ambiente propício à reprodução do capital?

Se na ponta do processo percebemos os irracionalismos da racionalidade instrumental, não se

pode deixar de compreender o mote da ação do Estado na composição e organização do fazer social.

O arcabouço teórico e conceitual orientador das intervenções da ASMARE tem partido de uma

constatação puramente objetiva, tanto em relação ao que seria a chamada “exclusão” quanto a seu

suposto movimento de “inclusão” de grupos sociais. Sem tocar nos mecanismos e processos geradores

até mesmo do porquê em se falar em exclusão em nossa sociedade, incluir, então, seria oferecer aos

indivíduos receptores dos “programas includentes” um maior alcance, ainda que precário, no âmbito do

existente. Proporcionar-lhes novas expectativas por dentro da “sociedade que os exclui” (MARTINS,

2002a, p.38), realidade povoada de ideologias e apologias, a qual, por isso mesmo, os “assistidos” não

raro são levados a enxergar como representação máxima do bem-estar. Tudo isso, vale lembrar, numa

forma econômico-social na qual as oportunidades, ao contrário de outrora, dispõem-se a um número

cada vez mais reduzido de “privilegiados”.

Por isso, as “políticas públicas” voltadas para a atenuação dos efeitos da pobreza tornam-se

“ações concertadas” da “gestão do social”, mediante as quais a racionalidade de Estado é o meio e o

82

fim, numa perspectiva de que no futuro tudo vai melhorar38. Cegados e (às vezes conscientemente)

oprimidos pelos imperativos ideológicos da vez, os “Homens de Estado” ordenam a “desordem” e

encarnam o papel demiúrgico da “Grande Instituição”. Rompem com parte dos parâmetros anteriores

da ação policial direta no trato com a pobreza, passando a trabalhar com a ação policialesca da

produção do sujeito decente. Entram em cena, sumamente ancoradas a essa “mudança de ares”,

noções “adocicadas” de “cidadania” e de “inclusão social” que trazem para a cena um catador de papel

em vias de se tornar um “sujeito social”.

A partir de agora examinaremos os debates em torno da crise ecológica, em meio a qual

emergiu a exaltada “problemática ambiental”, elevada ao primeiro plano das preocupações globais. Em

seguida, discutiremos a emergência da coleta seletiva como programa inscrito no recinto das políticas

“sociais” e de “limpeza urbana” (com um forte apelo ambiental) e sua associação com os programas de

“combate à pobreza” – como o “Programa de Inclusão Produtiva” – realizados em Belo Horizonte.

3.2. Crise ecológica e desenvolvimento sustentável: A irrupção do novo ofuscada pela

redefinição conservadora do existente

Embora não esteja no campo dos nossos objetivos imediatos realizar uma discussão mais

aprofundada acerca da crise ecológica em seu conjunto, não podemos nos furtar de trazer alguns

apontamentos sobre as contendas desencadeadas em seu seio. Isso porque os caminhos apontados

para a reprodução social estão imbricados aos desdobramentos oriundos da crise ecológica, pois será

nela e a partir dela que se buscará lidar com o acirramento de outras contradições de fundo, como a

própria crise da capacidade reprodutiva do capitalismo. Falar em coleta seletiva, reciclagem e “inclusão

social” sem pormos a nu o nascimento da “problemática ambiental” e, mais amplamente, sem situá-la

no universo da reprodução social, é correr o risco de tornar a análise incompleta.

Em termos gerais, a Conferência das Nações Unidas, realizada na cidade de Estocolmo no ano

de 1972, pode ser considerada a pedra inaugural dos debates internacionais que então se inscreveriam

na seara das “preocupações ambientais”. Naquele momento vinha a público, a pedido do Clube de

Roma39, o Relatório Meadows, intitulado The Limits of Ground, cujo estudo chamava a atenção para a

38 A linearidade ideologicamente transformadora do vil processo de reprodução social da vida em algo sub-reptício, donde a cantilena bocejante “Brasil, o país do futuro” tantas vezes entoada em alto e bom tom durante os “anos de chumbo” vividos nessas bandas, e reatualizada na questão do “combate à pobreza”, nos faz recorrer a Paulo Eduardo Arantes: “Um dos mitos fundadores de uma nacionalidade periférica como o Brasil é o do encontro marcado com o futuro. Tudo se passa como se desde sempre a história corresse a nosso favor (...). E mais, o futuro não só viria fatalmente ao nosso encontro, mas com passos de gigante, queimando etapas, pois entre nós até o atraso seria uma vantagem” (ARANTES, 2004, p.25). 39 O Clube de Roma foi criado por empresários e executivos ligados a grandes grupos transnacionais, como a Xerox, IBM, Fiat, Remington, Rand, Ollivetti, entre outras (PORTO-GONÇALVES, 2006).

83

os sérios entraves ao crescimento econômico mundial devido à iminência do esgotamento dos

“recursos naturais”, caso fossem mantidas suas formas de exploração até então utilizadas (PORTO-

GONÇALVES, 2006). A elaboração desse relatório por uma das mais proeminentes instituições

acadêmicas dos Estados Unidos, o Massachusetts Institute of Technology – MIT – foi uma

demonstração clara de como a problemática ambiental passava a ser campo privilegiado dos debates

acadêmicos, além de envolver organizações não-governamentais, diversos governos e organismos

internacionais, como a ONU, e multilaterais, como o Banco Mundial. Ou seja, o mesmo conhecimento

técnico-científico que havia dado chancela à destruição e à pilhagem da natureza ao longo dos mais de

duzentos anos da era urbano-industrial do capitalismo, passava a fazer previsões alarmistas sobre o

modo pelo qual sua condução fora feita – ainda que, como veremos, os processos gerais da

reprodução do capital não tenham sido tocados pelos grupos hegemônicos que estavam à frente dos

debates.

E por que afirmamos o exposto acima? Ora, sabemos que a matriz ideológico-prática em torno

da qual o modo de produção capitalista colocou-se de pé assentava-se num esforço de progresso-

modernização incessante. Decerto resignificada nas suas modalidades reprodutivas, chegando até

mesmo em aspectos importantes de seus fundamentos, tal matriz ainda se faz fortemente presente

entre nós. Este caminho forjou-se como uma espécie de “marcha evolutiva” necessária que, mais cedo

ou mais tarde, estender-se-ia a toda humanidade pela via do “desenvolvimento” – a versão posterior e

atualizada da idéia de “progresso” (PORTO-GONÇALVES, 2006). Sem a intenção de penetrar nos

meandros da temática40, podemos dizer que o corpo de representações que dão respaldo a esse

esforço remonta às revoluções científicas ocorridas a partir dos séculos XVII e XVIII41, fornecendo o

arcabouço gnosiológico em meio ao qual a natureza poderia de fato ser “conhecida”, “decifrada”

(acarretando em sua dominação). Tem-se então uma natureza desacralizada, “objeto” de intervenção e

análises “despidos” de paixões e vôos imaginativos, sendo tais procedimentos necessários ao ato

científico rigoroso e objetivo. Eis aí a técnica trazida ao primeiro plano: fundando as bases para que a

natureza inteira se convertesse, no âmbito projeto civilizatório ocidental-burguês, em força produtiva,

alimentando assim o tão esperado “progresso”.

Cabe aqui um detalhe: não podemos desvincular a sanha dominadora que se abalou (e se

abala) sobre a natureza (interna e externa) daquela que se abalou (e se abala) pelos homens sobre os

próprios homens. Sendo as abstrações doadoras de significado à natureza concretizadas no âmago do

40 Para maiores detalhes, ver: Adorno & Horkheimer (1985), principalmente capítulo 1. 41 René Descartes (1596-1650) é por muitos considerado o precursor da filosofia moderna. Em uma de suas obras mais conhecidas, o “Discurso do Método”, Descartes elabora bases importantes para a ciência moderna como o racionalismo e a rejeição a qualquer experiência de caráter sensorial.

84

processo histórico-social, foi a decisiva e viril atuação no sentido de submeter as forças naturais aos

seus desejos que lançou o homem contra si mesmo e contra seus pares no estabelecimento das

relações de dominação. Enfim, a dominação da natureza como protótipo da dominação entre os

homens (PEDROSA, 2003) foi a senha para a sustentação do projeto civilizatório ocidental-burguês,

fortemente calcado na propriedade privada e nas suas relações concernentes. No momento em que

este se im-pôs como condicionante do “bem-estar”, levando ao extremo e como único caminho possível

o conjunto de seus pressupostos, o preço a ser pago foi a ação humana intensa e sistemática sobre

uma natureza tida como “inesgotável”.

Nestes termos, a submissão da natureza (interna e externa) aos desígnios da dominação

encravada no projeto civilizatório ocidental-burguês não poderia se fazer sem que as relações de poder

que a orientavam fossem ocultadas. Pois foi sob o manto de uma “necessidade histórica” convertida no

e ao mesmo tempo como motor do “progresso” e o “desenvolvimento” que se justificou (e ainda se

justifica) todo o processo de desqualificação e de expropriação de modos de vida, de culturas, em

suma, de noções de natureza não devotadas às formas instituídas e alavancadoras desse ideário.

Afinal de contas, como bem assinala Porto-Gonçalves (2006), des-envolver significa:

...tirar o envolvimento (a autonomia) que cada cultura e cada povo mantém com seu espaço, com seu território; é subverter o modo como cada povo mantém suas próprias relações de homens (e mulheres) entre si e destes com a natureza; é não só separar os homens (e mulheres) da natureza como, também, separá-los entre si, individualizando-os (PORTO-GONÇALVES, 2006, p.81)

Voltando ao cenário da crise ecológica – cujos pressupostos causadores estão nas entranhas

do próprio processo de des-envolvimento –, torna-se importante salientar que naquele momento (início

da década de 1970) ganhavam relevo os chamados “movimentos ambientalistas”, os quais iriam pôr na

ordem do dia os desafios globais colocados pela problemática ambiental. Embora algumas de suas

vertentes viessem embebidas por arremedos de interrogações mais profundas (como o

questionamento do modelo de racionalidade adotado pela civilização ocidental), são as vertentes de

cunho reformista aquelas a dar o tom do estabelecimento de uma “nova ordem ambiental” – a qual, não

poderia deixar de ser, estava acoplada à nova ordem mundial marcada pela globalização neoliberal.

Talvez a terminologia mais representativa do ideário sobreposto e esta “nova ordem ambiental” seja

aquilo que se convencionou chamar de “desenvolvimento sustentável”.

O conceito de desenvolvimento sustentável é oriundo dos debates travados por diversos

grupos na tentativa de estabelecer um modelo de desenvolvimento cuja ótica se fizesse menos

destrutiva dos “recursos naturais”. O conceito veio à tona no Relatório de Brundtland, de 1987,

“...elaborado pela Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD) ao longo de

85

cinco anos” (EVASO et al., 1993, p.95). Apesar de sobejamente conhecido, cabe aqui apresentar o

trecho mais conhecido deste relatório, onde se define o conceito: “... aquele que atende às

necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as

suas próprias necessidades” (CMMAD, 1987, p.46 citado em EVASO et al., 1993, p.95).

Entendemos que o arcabouço ideológico-prático do desenvolvimento sustentável levado a cabo

pelos agentes hegemônicos, o qual vem sendo disseminado no imaginário social como “conhecimento

visando a uma prática sistêmica”, incorre na mesma soberba característica do atual modelo de

desenvolvimento de prevalência técnico-instrumental e econômico-produtivista. Senão vejamos.

Num primeiro aspecto, a técnica em nossa sociedade, mais do que meio e suporte da

produção material, realiza-se como concretude respaldada por determinadas abstrações, abarcando

extratos inteiros da vida social e garantindo a reprodução incessante do seu caráter redentor. Some-se

a isso o fato da técnica não ser vista enquanto construção social viabilizadora das relações

estabelecidas pelos homens entre si e com a natureza, mas como esfera separada e supostamente

neutra porque ausente de qualquer conteúdo ideológico (PORTO-GONÇALVES, 2006). Sua aplicação

mais relevante (e, por isso, estratégica) – posto que a técnica que chega ao “mundo comum” não passa

da ilusão dela mesma (LEFEBVRE, 1991) – seria responsabilidade de um grupo especialmente

possuidor da capacidade de operá-la: os tecnocratas. Destarte, deixando de lado a redução grosseira

feita por uma certa “crítica” lançada aos ambientalistas de reflexão abrangente e outros “inimigos do

progresso” – chamados de “recalcitrantes” e/ou “obscurantistas” –, é necessário ressaltar que não é a

existência em si da técnica que é questionada, mas o seu modo de aplicação num quadro social onde

as relações de produção estão encerradas nos imperativos da reprodução do capital. Assim, a

problemática ambiental constituiria-se como momento no qual a reflexão e as ações daí

desencadeadas (orientadas pelas premissas do desenvolvimento sustentável) fariam-se, mormente, no

âmbito privilegiado da técnica – mecanismos de gestão dos recursos naturais, dos resíduos sólidos,

mecanismos de desenvolvimento limpo, entre outros –, haja vista esta se reafirmar como instrumento

primordial porque legitimamente credenciado para tal.

Um segundo aspecto do desenvolvimento sustentável de corte hegemônico refere-se aos seus

conteúdos, notadamente exortadores de medidas imbuídas da já conhecida racionalidade instrumental

– cujo produtivismo econômico-mercantil, na essência, não deixa de ser sua mola mestra –,

canalizando para si a reprodução social por inteiro. Isso acontece porque o modo de produção

capitalista é uma forma de organização social assentada na propriedade privada dos meios de

produção e de vida, em torno da qual o trabalho passa a ser sobredeterminado, já que é ele a fonte

privilegiada de extração de mais-valia. Assim sendo, as forças produtivas e as relações de produção no

capitalismo, no intuito de garantir sua reprodução incessante, devem necessariamente ser direcionadas

86

para a sua máxima performance, meios e fins da acumulação de capital. Esse produtivismo não se liga

mais apenas aos termos da produção de mercadorias materiais. A abstração mercantil há muito tempo

já chegou na constituição da natureza como espaço produzido e reproduzido para a indústria do

entretenimento, abarcando inclusive os espaços inóspitos (desertos, montanhas etc.), outrora providos,

segundo os interesses do capital, apenas de seus subsolos, florestas ou rios. Hoje tais espaços

tornam-se importantes circuitos de valorização, mercadorias de grande aceitação, sendo,

precisamente, “...lugares nos quais se reproduzem as relações de produção, o que não exclui, ao

contrário, inclui, a reprodução pura e simples da força de trabalho” (LEFEBVRE, 2003, p.22).

Neste sentido, caberia a afirmação de que os meios através dos quais a natureza preside o

pensamento e a ação hegemônicos são redefinidos sob os auspícios de uma racionalidade

instrumental intocada em seus fundamentos. Porto-Gonçalves (2006) vale-se da expressão

“neoliberalismo ambiental” para denominar a nova ordem mundial fundada na mesma assimetria das

relações de poder que marcou a modernidade. A prova disso, é que a ciência e a técnica, o

economicismo vulgar e o produtivismo continuam na linha de frente dos discursos e das práticas de

Estado (por meio dos diferentes governos) cada vez mais mediadas pelas instituições multilaterais

(BIRD E FMI), organizações não-governamenais e grandes corporações transnacionais.

Assiste-se também à circunscrição das políticas ambientais aos parâmetros monetários e

financeiros (PORTO-GONÇALVES, 2006), por dois motivos. Em primeiro lugar, devido à própria

capacidade obtida pelo capital financeiro de determinar o nível, a modalidade e os locais dos

investimentos produtivos. O motivo anterior combina-se com a dependência cada vez mais acentuada

dos países periféricos desse tipo de capital (além, é claro, dos capitais ditos “produtivos”) para

equilibrar seu balanço de pagamentos ou para cumprir à risca a produção de superávits primários e

assim arcar com os juros e serviços de suas dívidas externas. Tudo isso faz com que a legislação

ambiental específica a cada um desses países muitas vezes sucumba frente às pressões dos

investidores, interessados em obter a máxima valorização de seus capitais. No caso brasileiro, o

IBAMA, órgão responsável pela fiscalização, licenciamento e controle ambientais está na iminência de

ser desmembrado, criando-se um órgão específico para o licenciamento, com o IBAMA permanecendo

à frente da fiscalização. E isso, devido à sua demora para conceder a aprovação (licenciamento) de

grandes “projetos de desenvolvimento” ligados ao “Programa de Aceleração do Crescimento” (PAC),

como as duas novas usinas hidrelétricas a serem construídas no Rio Madeira, em Rondônia.

No que concerne à “nova ordem ambiental”, a Agenda 21 pode ser considerada um importante

documento de legitimação e de ratificação deste “novo pensamento”.

A elaboração e o lançamento deste documento se deram durante a “Conferência das Nações

Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano” – a ECO-92 –, realizada no ano de 1992, na

87

cidade do Rio de Janeiro. A Agenda 21 conformou-se como um “amplo programa de ações” no qual

contribuíram diferentes governos, organismos internacionais, instituições multilaterais, de pesquisa e

organizações não-governamentais de 179 países, buscando promover, à escala global, um “novo

padrão de desenvolvimento”, conciliando “proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica”.

Todos os países que assinaram o acordo (entre eles o Brasil) assumiram o compromisso de elaborar e

implementar uma versão nacional da Agenda 21. Essa versão deveria adequar-se à realidade de cada

país de acordo com as diferenças sócio-econômico-ambientais, sempre em conformidade com os

princípios e acordos da Agenda 21 Global.

A Agenda 21 trata de diferentes temáticas englobadas em três sessões, sendo elas: 1)

“Dimensões econômicas e sociais”; 2) “Conservação e gerenciamento dos recursos para o

desenvolvimento”; e 3) “Fortalecimento do papel dos grupos principais”. Embora algumas dessas

temáticas, abordadas ao longo de todo o texto, suscitem questões que nos são

bastante caras, como “pobreza”, “crescimento econômico”, “geração de emprego e renda”,

“capacitação profissional”, “padrões de produção e consumo”, “criação de novos estilos de vida”, entre

outros, deteremos-nos42 somente na sua versão Global, dando ênfase ao Capítulo 21, dedicado ao

“Manejo Ambientalmente Saudável dos Resíduos Sólidos e Questões Relacionadas aos Esgotos”. Ele

nos proporcionará subsídios ao entendimento das bases contidas nas propostas para a realização da

coleta seletiva em Belo Horizonte enquanto instrumento engendrador da reciclagem dos resíduos

sólidos. No nosso entender, tornaríamos mais clara tal prática na sua instrumentalização, algo que fez

dela dimensão contraditória do que chamamos de resignificação instrumental da natureza no universo

reprodutivo do capitalismo tardio.

Na introdução do referido capítulo, tem-se a informação de sua incorporação em cumprimento

ao disposto no parágrafo 3 da seção I da Resolução 44/228 da Assembléia Geral de 22/12/1989,

quando as nações do mundo convocaram a Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento. Nela estabeleceu-se a necessidade de “...elaborar estratégias e medidas para deter

e inverter os efeitos da degradação do meio ambiente...” (p.419). No parágrafo 12 g, também da seção

I da mesma resolução, a Assembléia atenta para o que eles chamam de manejo “ambientalmente

saudável” dos resíduos encontrando-se “...entre as questões mais importantes para a manutenção da

qualidade do meio ambiente da Terra e, principalmente, para alcançar um desenvolvimento sustentável

42 Nossa opção se deve, primeiramente, ao fato de que uma incursão mais esmerada em todo o texto exigiria uma análise que acabaria por ultrapassar os limites e os objetivos de nossa pesquisa. Em segundo lugar, porque as questões aludidas acima em boa medida vêm sendo por nós abordadas, não só nesse, mas também em outros capítulos dessa mesma pesquisa. Já com relação à nossa preferência pela abordagem somente da versão global da Agenda 21, entendemos que o texto brasileiro, denominado “Ações Prioritárias”, não contempla diretamente em nenhum de seus 21 objetivos a questão dos resíduos sólidos, ainda que ela apareça diluída em todos eles.

88

e ambientalmente saudável em todos os países” (p.419). Ainda na introdução, o capítulo 21 aduz que:

“O manejo ambientalmente saudável desses resíduos [sólidos] deve ir além do simples depósito ou aproveitamento por métodos seguros dos resíduos gerados e buscar resolver a causa fundamental do problema, procurando mudar os padrões não sustentáveis de produção e consumo” [grifos meus] (p.420).

Desta forma, lidar com os resíduos sólidos de uma maneira que atinja a “causa fundamental do

problema” implicaria na utilização do conceito de “manejo integrado do ciclo vital”, portador da

“oportunidade única de conciliar o desenvolvimento com a proteção do meio ambiente” (p.420). Ainda

de acordo com o texto do capítulo, a ação a ser implementada deve estar calcada numa “hierarquia de

objetivos” (sendo estes, de acordo com o texto, correlacionados e se apoiando mutuamente)

discriminada em quatro áreas programáticas demonstradas e analisadas a seguir.

No que concerne ao item “a” (“Redução ao mínimo dos resíduos”) tem-se a constatação de que

“os padrões de produção e consumo não são sustentáveis” (p.420), causa principal dos substanciais e

crescentes aumentos dos resíduos. Apregoa-se uma “abordagem preventiva do manejo dos resíduos”

(p.420) que leve em conta uma “transformação do estilo de vida e dos padrões de produção e

consumo” (p.420) vigentes como estratégia para se inverter tais tendências. Faria-se necessário um

programa cujos objetivos seriam a redução da produção de resíduos destinados aos depósitos –

através de “tecnologias”, de “incentivos reguladores”, da “conscientização” e da “informação”, entre

outros procedimentos –, além de modificações em sua composição por meio de “instrumentos

econômicos ou de outro tipo” (p.421). As proposições desse capítulo da Agenda 21 para os governos

vieram na forma do estabelecimento, até o ano 2000, das seguintes metas: a) um amplo banco de

dados visando monitorar a tendência dos resíduos (níveis de geração e de tratamento, por exemplo) e

a implementação de “...políticas destinadas para sua redução ao mínimo” (p.421); b) o estabelecimento

de programas para os “países industrializados” e os “países em desenvolvimento” no intento de

“...estabilizar ou diminuir (...) a produção de resíduos destinados a depósito definitivo...” (p.421); e c)

aplicar programas em seus respectivos países, (o Capítulo 21 sinaliza para uma ênfase aos “mais

industrializados”), que reduzam “...a produção de resíduos agroquímicos, contêineres e materiais de

embalagem que não cumpram as normas para materiais perigosos” (p.421). De acordo com o texto, as

organizações não-governamentais e os “grupos de consumidores” deveriam ser estimulados a

participar e a ajudar na constituição dos programas citados.

Em relação ao item “b” (“Aumento ao máximo da reutilização e reciclagem ambientalmente

saudáveis dos resíduos”), diante da constatação do aumento dos custos do depósito dos resíduos de

maior persistência, a sua reciclagem e reutilização conformar-se-iam como práticas de suma

importância para conter esse aumento (do volume dos resíduos e dos custos de seu manejo e

89

controle). Assim, a diretriz contida no texto orienta para que os programas de manejo de resíduos

consigam “...aproveitar ao máximo as abordagens do controle de resíduos baseadas no rendimento

dos recursos”, aproveitando ao máximo aquilo que se denomina “programas de educação” (p.424) para

este fim. Para aumentar a performance desses programas, no momento de sua elaboração torna-se

“...importante que se identifiquem os mercados para os produtos procedentes de materiais

reaproveitados...” (p.424). Alguns objetivos deveriam ser perseguidos para o sucesso de tais

programas, como a garantia de infra-estrutura física e gerencial por meio de “sistemas nacionais de

reutilização e reciclagem dos resíduos” (p.425) e a realização de pesquisas científicas para a produção

de tecnologias como forma de “estimular” e “operacionalizar” tais sistemas. Aos governos, mais

especificamente (embora seus meios de intervenção devam estar presentes em todo o processo

descrito), caberia, até o ano 2000, “promover capacidades financeira e tecnológicas” (p.425) no intuito

de implementar políticas e ações de reutilização e reciclagem de resíduos sólidos; criar incentivos

diversos (que poderiam ser fiscais, aumento de recursos e de repasses financeiros) ao

desenvolvimento dos programas e ações (a coleta seletiva, por exemplo) para esse mesmo fim. No

caso brasileiro, as políticas nos níveis nacional, estadual e municipal de resíduos sólidos parecem

conter estes propósitos.

Já o item “c” (“Promoção do depósito e tratamento ambientalmente saudáveis dos resíduos”),

discorre mais detidamente sobre as práticas de tratamento e depósito dos resíduos, tanto os sólidos

como os de origem orgânica, atentando para a necessidade de “...tratar e depositar com segurança

uma proporção crescente dos resíduos gerados” (p.429). Segundo o texto, os governos deveriam

estabelecer, até o ano 2000, “critérios de qualidade, objetivos e normas”, (p.430) indispensáveis ao

tratamento e depósito eficientes dos resíduos. Isso implicaria no monitoramento do seu impacto

poluente e dos perigos epidemiológicos ocasionados pela sua incorreta disposição. Os governos

deveriam, ainda, desenvolver a infra-estrutura e a logística de saneamento e tratamento dos resíduos

(sólidos e orgânicos), entre outros meios, através da construção de estações de tratamento de

efluentes.

Por fim, o item “d” (“Ampliação do alcance dos serviços que se ocupam dos resíduos”), chama

a atenção para a necessária ampliação, de modo a universalizar os serviços sanitários básicos, assim

como os serviços de coleta e depósito de resíduos. Mais uma vez, caberia aos governos, até o ano

2000, “...ter a capacidade técnica e financeira e os recursos humanos necessários para proporcionar

serviços de recolhimento de resíduos à altura de suas necessidades” (p.434). Além disso, ficaria

firmado que até o ano 2025 toda a população urbana disporia de “serviços adequados de tratamento de

resíduos” e, para a população rural, “serviços de saneamento ambiental” (p.434). Os governos ficariam

ainda incumbidos de “desenvolver e aplicar metodologias para o monitoramento de resíduos” (p.434) e

90

estabelecer metas para o seu adequado depósito.

Várias são as contradições constatadas após esta breve descrição do Capítulo 21 da Agenda

21 Global. Uma delas é o caráter sumamente mercantil das orientações contidas num documento que

se propõe como de extrema importância para a efetivação de um modelo de desenvolvimento tido

como econômica, social e ambientalmente saudável.

Já sabemos quão simultâneos e conseqüentes têm sido os mecanismos de retração do Estado

na regulamentação e imposição de limites às forças de mercado em face dos estímulos à sua

liberalização – no intuito de desvencilhar essas mesmas forças de quaisquer obstáculos à sua plena

movimentação. Todavia, mercado sem limites não significa mercado despojado do poder de Estado, e

sim das tradicionais modalidades de regulação deste sobre aquele (HARVEY, 2004). Para verificar

como isso acontece, basta percebermos que o receituário dirigido aos governos para a definição de

suas “políticas ambientais” mostra-se estreitamente associado às exortações liberalizantes, sem,

contudo, que o Estado se faça ausente, por exemplo, dos grossos financiamentos ao setor privado.

Esse Estado “modernizado”, agora é denominado “gestor”, pois além de tais financiamentos está

incumbido de garantir apoio em infra-estrutura e logística, conduzir os arranjos políticos e legislativos e

fornecer segurança jurídica e institucional aos investimentos privados, produzindo novos espaços para

a acumulação ou mesmo redefinindo suas funções. Por isso a Agenda 21 traz como atribuições ao

Estado – por meio de cada governo específico – a necessidade (não raro cumprida à risca) de “criar

programas e ações”, “criar metodologias de monitoramento dos resíduos”, “identificar e difundir

tecnologias”, “identificar mercados potenciais para produtos reciclados”, “criar incentivos fiscais”,

“realizar investimentos em serviços de coleta e depósitos de resíduos” etc.

Num outro foco de atuação (intimamente ligado aos demais) de suas “políticas ambientais”, o

Estado em “parceria” com o mercado deve contribuir para a mudança dos “padrões não sustentáveis

de produção e consumo”. Ao garantir formas mais eficazes de utilização dos recursos e matérias-

primas empregados na produção de um modo geral, tais medidas tornam-se funcionais porque prestam

contribuição à diminuição dos custos dessa produção. Evidencia-se uma saída conservadora para a

questão, já que as causas fundamentais do problema não são tocadas. Ou seja, os padrões de

produção não são questionados em seus sentidos e suas finalidades, pois seu aumento constante (por

exemplo, no “estímulo à produção de embalagens”) não se dá numa perspectiva futura de sua redução

– o que incidiria na redução da jornada e também do tempo de trabalho.

Já os padrões de consumo na contemporaneidade não se desviam da órbita da produção

incessante de necessidades, mas apenas são redefinidos a partir da “criação de novos estilos de vida”

produtores de novas “identidades”. Reafirma-se em complexidade a reprodução das relações sociais

de produção (LEFEBVRE, 2003) aos nos depararmos com a forte disseminação de uma subjetividade

91

ecológico-individualista-mercantil, integrando-se crescentemente à dinâmica da vida. São seus

exemplos cabais o consumo crescente de mercadorias “ecológicas” – tais como produtos orgânicos,

tijolos reciclados para construção civil, artesanato feito com material reciclável (ver foto 4), entre outros

– consoante com o exercício da coleta seletiva como “prática cidadã” e a construção de condomínios

altamente fortificados e ao mesmo tempo trazendo signos que denotam tais “estilos de vida” (“viver

junto à natureza com todas as facilidades da metrópole”). Redefinem-se práticas que vão sutilmente

sendo incorporadas e simultaneamente produzindo a cotidianidade, prescrevendo e alimentando

modos de “ser”, de “viver” e de “pensar” por meio do consumo de mercadorias materiais e simbólicas.

Entretanto, na mesma medida em que a oferta de tais mercadorias aumenta sem precedente

conhecido, as possibilidades para a realização da prática espontânea no agir parecem esfumar-se a

um nível insuportável. Henri Lefebvre associa este imenso vazio ao fato de que: “Nossa vida cotidiana

se caracteriza pela nostalgia do estilo, por sua ausência e pela procura obstinada que dele

empreendemos” (LEFEBVRE, 1991, p.37).

Foto 4: Exposição de artesanato com produtos reciclados durante o 5º Festival Lixo e Cidadania. Autor: Luiz Antônio E. de Andrade. Foto tirada em 23/08/06.

Na contemporaneidade, os sentidos portadores de uma relação de alteridade entre homens e

natureza (tanto a externa quanto a interna), os quais não se separariam do constante e profundo

questionamento da organização social em curso, a despeito da aura do resgate de uma “ética”

ambiental e social, seguem num inquietante estado de latência. A sacramentação da norma social de

consumo (BIHR, 1991) e sua prática, alimentada por altas doses de signos e de representações da

coisa mesma, torna-se proporcional ao mal-estar causado pela não satisfação obtida. Entremeada

92

pelos “novos estilos de vida”, sendo esses produzidos em instâncias cada vez mais externas ao

indivíduo, o ser consumidor lhe é repassado como se ele tivesse tido a primazia na sua escolha43. A

produção intensiva de uma “falsa consciência” pela ideologia e a prática dominantes, pode ser

demonstrada pela evocação e na imposição ao consumo de embalagens recicláveis ou do papel

produzido com celulose advinda de árvores “especialmente plantadas” para a sua extração44,

alegando-se fatores de “preservação do meio ambiente”.

Vejamos então como o discurso e a prática da coleta seletiva passaram a incorporar as

preocupações do poder público em Belo Horizonte na forma de “políticas públicas”, ajudando a

municiar o “Programa de Inclusão Produtiva”. Antes de realizar a análise propriamente dita, interessa-

nos examinar mais de perto a sua constituição.

3.3. O Projeto de Coleta Seletiva de Belo Horizonte em sua constituição e sua atualidade:

prática sócio-ambiental ou suporte do circuito econômico da reciclagem?

Segundo Dias (2002), é a partir de 1993 que o poder público municipal “modifica” sua postura

em relação ao segmento social dos catadores de papel, deixando de vê-los como “inimigos da limpeza

urbana” e passando a incorporá-los como “parceiros primordiais” na sua execução e também do projeto

de coleta seletiva. O nascedouro deste último teria sido fruto do “reconhecimento” da importância de

uma antiga45 e informal atividade de coleta seletiva realizada por esses homens e mulheres. A partir

daí, esse “reconhecimento” seria a base para a implementação pela Superintendência de Limpeza

Urbana – SLU –, valendo-se do modelo de “gerenciamento integrado de resíduos sólidos”46 do projeto

43 Com relação a essa ilusória liberdade de escolha permeadora das relações sociais, Lefebvre (1979b, p.23) assim bem diz: “O consumidor de significações toma o significante pelo significado; vendem-lhe bem caro o signo da coisa da qual ele acredita assim estar se apropriando”. 44 Inclusive uma maneira ao que parece eficaz de agregar valor aos produtos vem se ratificando pela “cultura” do “consumo consciente”, a partir da qual as pessoas têm sido levadas a optar por produtos fabricados por empresas social e/ou ambientalmente “responsáveis”. Dados recentes de uma pesquisa realizada pelo “Instituto Akatu de Consumo Responsável” demonstram que o consumidor já se mostra simpático em pagar um pouco mais por produtos que “não agridem o meio ambiente”, embora esta disposição ainda não tenha se convertido numa prática. Parece ser só uma questão de tempo! Numa outra pesquisa realizada pelo mesmo instituto, 11% dos brasileiros consideram que uma empresa é responsável quando investe em meio ambiente. Ver também matéria publicada no caderno de economia do jornal “O Tempo”, editada no dia 25/03/2007: “Preservar também é um bom marketing”. 45 Em vários momentos do texto nos valemos dos termos utilizados pelos homens e mulheres catadores(as) na sua atividade, como “panha” ou mesmo “catação”. O termo “coleta seletiva” nada mais é do que uma espécie de eufemismo contribuinte para o processo de institucionalização dessa atividade, cujo discurso entoado com vistas à sua legitimação nos termos dos nada pequenos interesses em jogo é o da “humanização” e o da “contribuição” à mudança nas representações sociais acerca do trabalho destas pessoas. 46 O Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos Urbanos é “...o envolvimento de diferentes órgãos da administração pública e da sociedade civil com o propósito de realizar a limpeza urbana, a coleta, o tratamento e a disposição final do lixo”. Extraído de "Manual de Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos". Publicação elaborada pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal IBAM, sob o patrocínio da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da

93

aludido, num “...processo de construção coletiva entre a equipe técnica da SLU, a ASMARE, a Pastoral

de Rua e a Cáritas” (DIAS, 2002, p.77). Mas, para que essa “mudança de percepção” efetivamente

pudesse ser operada no campo de intervenção do poder público, era preciso que ela chegasse aos

seus arranjos burocráticos e institucionais, de modo a viabilizar de fato o projeto de coleta seletiva.

Esta mesma autora nos apresenta o que ela chama de “histórico do projeto”, dividindo-o em

três fases. Vamos a elas.

A primeira fase contou com o “diagnóstico da realidade” dos catadores de papel, realizado

ainda em 1993. Sua obtenção permitiria formular um modelo de coleta seletiva que articulasse e ao

mesmo tempo equacionasse “...tanto os aspectos ligados à “limpeza urbana, quanto os de natureza

social” (DIAS, 2002, p.78).

A segunda fase, intitulada “implantação dos galpões de triagem/disseminação dos

levs47/mobilização social”, deu-se entre os anos de 1994 e 1996. Durante este período foram

implantados os galpões da Rua Curitiba (em julho de 1994) e o da Rua Itambé (em julho de 1996),

ambos alugados pela SLU e providos de máquinas e equipamentos (boxes individuais, balanças,

prensas, etc.) necessários à execução da triagem. Ao se implantar esses galpões, permitiu-se, nas

palavras da autora aludida, “a eliminação de 46 pontos críticos de triagem” das ruas centrais,

propiciando assim “espaço de trabalho” (DIAS, 2002, p.81) para vários catadores. Cabe ressaltar que

ambos os galpões foram extintos: o da Rua Itambé em novembro de 2001 e o da Rua Curitiba em

1999, devido ao aumento do preço cobrado pelos aluguéis.

Por fim, a terceira fase significou a chamada “ampliação e consolidação da parceria SLU-

ASMARE”, ocorrida entre 1997 e 1999. Neste momento entraram em pauta os limites da coleta seletiva

feita pelo catador, entre outros, o seu desgaste físico e a dificuldade de cobertura de toda a cidade feita

pelo sistema, principalmente devido ao seu relevo acidentado (DIAS, 2002). Entra em cena também a

questão da crescente competição no mercado da reciclagem, a qual a ASMARE, definitivamente,

estava presente, demandando a incorporação em seu roll de atuação de termos como “agilidade” e

“eficiência”. A aceitação dessas novas demandas exigiram da Associação todo um processo de

avaliação interna, a começar pela sua reestruturação administrativa e a redefinição dos seus processos

produtivos e de coleta (DIAS, 2002.). Para explicar melhor como se traduziu esta “mudança de ares”,

trazemos as palavras de Sônia Maria Dias:

Sob o ponto de vista administrativo, houve um grande esforço de melhoria do sistema de informações da associação com a informatização e com um maior investimento na

República SEDU/PR. 47 Os Locais de Entrega Voluntária (levs) são recipientes diferenciados por tipo de material (vidro, papel, metal e plástico) e colocados em regiões de Belo Horizonte com maior movimento de pessoas ou maior concentração de pontos de comércio, onde os materiais selecionados podem ser depositados pelas pessoas.

94

capacitação dos funcionários contratados da ASMARE. O espaço físico do galpão-sede foi reestruturado, criando-se uma área específica para a triagem dos recicláveis advindos dos LEVs. Sob o ponto de vista da coleta, a principal modificação foi o fato da ASMARE passar a assumir parte da operacionalização da coleta mecanizada com o aluguel de um caminhão [pago com recursos de um convênio estabelecido entre a Associação e a Prefeitura de Belo Horizonte], a partir de maio de 1997, para execução de um dos roteiros da coleta seletiva nos LEVs. Os associados envolvidos nesse roteiro de coleta foram devidamente treinados pela equipe técnica da SLU (DIAS, 2002, p.83).

É nesse momento que as contradições avolumam-se e passam a bater à porta, na medida em

que a falta de uma reflexão aprofundada sobre os direcionamentos tomados por uma iniciativa

louvável, que precisa ser destacada em seu projeto inicial, mas que parece desde então penetrar num

caminho cujo aparelhamento consentido vem sendo o ponto de chegada. Ao incorporar, aparentemente

sem maiores ressalvas, a necessidade de “...cada vez mais assumir um perfil empreendedor [os

grifos são meus] sem no entanto enfraquecer sua dimensão de inserção social...” (DIAS, 2002, p.84),

os agentes envolvidos no “Projeto ASMARE” deixam-se levar pelo discurso e pela prática do poder

constituído – ajudando-o a reorientar-se em face de suas contradições.

De acordo com a menção feita acima, a implantação do projeto de coleta seletiva demandaria

várias mudanças no arranjo institucional da SLU, as quais se processaram tanto no seu organograma

quanto na sua estrutura operacional48. Criou-se então, no ano de 1993, a Assessoria de Mobilização

Social, a qual, através da Lei 8052/2000, seria convertida em Departamento de Mobilização Social e

incorporado no organograma interno da SLU. Sua função principal desde então foi funcionar como uma

espécie de canal de comunicação entre o poder público municipal (via SLU), os catadores de papel e a

sociedade. Posteriormente, após a Reforma Administrativa da PBH implantada em 2001, tal

Departamento ainda seria transformado em Gerência de Mobilização Social, cuja “...função pedagógica

é a sensibilização e mobilização da população em relação aos resíduos sólidos (DIAS, 2002, p.86).

Ainda de acordo com Dias (2002) todo o projeto de coleta seletiva “...foi gestado dentro dessa

assessoria de mobilização social” (DIAS, 2002, p.86). A equipe multidisciplinar constituinte dessa

assessoria estava diretamente voltada para o projeto (denominada “Comitê BH Reciclando”), sendo

composta por sociólogos, antropólogos, engenheiros, arquitetos etc.. Cabia a essa equipe a

“...coordenação geral do projeto, a condução do processo de educação ambiental e mobilização social

em relação aos aspectos específicos da implantação da coleta seletiva e o suporte institucional à

ASMARE” (DIAS, 2002, p.86). Vale dizer que esse suporte dava-se na forma de acompanhamento

operacional direto nos galpões, o recolhimento dos materiais recicláveis nos LEVs, além da ajuda

financeira por meio de repasses viabilizados por convênio. Firmado há 14 anos, de acordo com a

48 As atribuições da SLU na sua constituição deram-se em torno de uma limpeza urbana calcada na varrição de ruas, avenidas e praças, a capina e a coleta e destinação final do lixo do município de Belo Horizonte.

95

Prefeitura de Belo Horizonte, ele tem sido regularmente renovado. Em 2005, o valor anual do convênio

foi de R$ 1.099.678,72, sendo R$ 761,2 mil da Secretaria de Assistência Social (hoje Secretaria de

Políticas Sociais) e contrapartida de 30% - R$ 338,4 mil – da ASMARE. Em 2005 havia também um

repasse anual de R$ 262 mil à Associação para o pagamento de aluguel, IPTU, seguro contra

terceiros, vigilância e água e luz do galpão da rua Ituiutaba49. No dois primeiros meses de 2007, os

repasses da SLU somaram R$ 24.263,8750.

Quanto à mobilização social, na qualidade de atuação educativa da SLU, é do entendimento de

Dias (2002, p.88) de que desde a sua colocação em prática ela tem sido “...fundamental na

implantação do modelo de gerenciamento integrado de resíduos sólidos”. A ação mobilizadora da SLU,

visando atingir um público cada vez maior, vale-se, entre outros recursos pedagógicos e

metodológicos, da educação ambiental, a qual implicaria em um: “...processo de reflexão sobre as

questões ambientais emergentes, que deve conduzir a uma participação efetiva e ao resgate da

cidadania nas tomadas de decisões, permitindo-se, assim, o desenvolvimento da noção de co-

responsabilidade”51. Ainda de acordo com Dias (2002), a mobilização social está dividida em “quatro

níveis”: 1) a “mobilização para a implantação dos locais de entrega voluntária de recicláveis; 2)

mobilização em espaços multiplicadores; 3) mobilização interna dos funcionários da SLU; e 4)

mobilização e capacitação dos catadores.

Já no correr de 2007 – e apesar de ainda realizada sob os auspícios da SLU e agora chamada

de “serviço” –, a coleta seletiva também se articula na modalidade de “programa” ao conjunto de ações

envolvidas na amplitude do “Programa de Inclusão Produtiva”. Seu objetivo principal consiste na

destinação de todo o material reciclável recolhido por esse “serviço” na região Centro-Sul de Belo

Horizonte para as cooperativas e associações de catadores de papel “parceiras”, sendo a ASMARE a

responsável pelo recebimento do maior montante de material. A Associação realiza a sua triagem

utilizando um galpão localizado à Rua Ituiutaba, no bairro Prado. Lá trabalham e fazem parte do

programa cerca de 70 pessoas, as quais realizam exclusivamente a triagem dos materiais.

O serviço de coleta seletiva52 existente é considerado como bastante incipiente pela SLU,

apresentando pequenas variações no ano de 2006 e início de 2007 (ver Tabela 1). Há um grande

interesse desta autarquia em ampliar esse serviço para um maior número de regiões da cidade por

49 Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte e ASMARE: Modelo de programa social. Folder sem data. 50 Fonte: Demonstrativo dos pagamentos dos contratos – 2007 – DV. COC; Pessoal e encargos – SC.PPE; Receita própria – SC.CCO. 51 O trecho citado está contido em um Documento interno da SLU, cujo título é: “Programa de Comunicação Social e Gestão Ambiental Participativa da Central de Tratamento de Resíduos Sólidos de Capitão Eduardo”. 52 O serviço “porta-a-porta” está instalado em sete bairros: Gutierrez, Carmo-Sion, Serra, Buritis, Savassi, Cidade Nova e parte do São Lucas. Há também 150 endereços com Locais de Entrega Voluntária (LEVs).

96

meio de uma política de terceirização. Está em curso um processo de licitação para permitir a

ampliação do serviço, o qual passaria a abranger toda a região Centro-Sul e os Centros Comerciais do

Barreiro e da região Oeste da capital (bairro Gutierrez e adjacências), segundo informações da própria

SLU. Com a iniciativa de “ajudar” neste intento, a Comissão Permanente de Meio Ambiente da Câmara

Municipal de Belo Horizonte realizou no dia 23 de Abril de 2007 uma audiência pública para discutir a

coleta seletiva no município. Estiveram presentes, além de vereadores, representantes da Prefeitura e

da SLU, e também “especialistas” ligados à industria de reciclagem, representantes de cooperativas e

de associações de catadores.

Tabela 1

Montante de materiais recicláveis coletados em Belo Horizonte no ano de 2006 e nos dois primeiros

meses de 2007.

A questão determinante na escolha das espacialidades citadas, conforme os dizeres da própria

Superintendência, reside no fato de nelas concentrar-se uma “grande oferta de materiais recicláveis”,

fato contribuinte na criação das condições gerais e dos atrativos necessários aos interesses

econômicos das empresas que operarão o serviço de coleta seletiva em Belo Horizonte. Contudo, o

espaço produzido – como “campo” onde se desenvolvem as estratégias de Estado – não pode ser

pensado tão-somente como produção dos arcabouços materiais e dos dispositivos legislativos e

institucionais para a ascendência de um mercado da coleta seletiva fatalmente articulado ao mercado

da reciclagem. A produção do espaço como condicionante e também resultado da realização de tais

mercados se interpenetra na produção do espaço como produção de novas e mais complexas relações

sociais: uma subjetividade estratégica que, sob os pressupostos da natureza como raridade e idílio,

Fonte: SLU: Relatório de atividades de limpeza urbana, fevereiro 2007.

97

recria modos de ”ser”, de “pensar” e de “viver” consoantes com as necessidades da reprodução

capitalista. A produção do espaço alcança em profundidade a produção da vida cotidiana, dissimulando

a ampliação dos constrangimentos na forma de uma prática (a coleta seletiva) na qual os desarvores

econômicos dão-se na proporção das possibilidades de auferir maiores ganhos com ela.

Em significativa medida, a Prefeitura de Belo Horizonte vem atuando como agente privilegiado

na (re)produção do espaço, mais uma vez submetendo-o aos interesses dos capitais em jogo. Eis aí a

insistência (e a imposição) de uma suposta “lógica” do espaço pretensamente racional e formal

repartido em pedaços vendáveis, dessa vez para os grupos empresariais que atuam no mercado da

coleta seletiva. Em contrapartida, problemas considerados de “ordem ambiental” como o lixo, são

apresentados como sendo responsabilidade de todos no que concerne à sua resolução, cabendo aos

tecnocratas determinar a “melhor” forma de implementá-la – de preferência mediante a “participação”

das “partes interessadas”.

Concomitantemente, torna-se pertinente aos interesses municipais incrementar a coleta

seletiva, de modo a dar fôlego à vida útil do aterro sanitário municipal (já quase se expirando) enquanto

a nova área em estudo não é de todo aprovada. Para se ter uma idéia, hoje em dia cerca de 5% de

todos os resíduos em Belo Horizonte deixam de ser destinados em direção ao aterro (ver tabela 2) e

vão para a reciclagem, sendo que este índice pode ser ampliado à medida que a coleta seletiva se

disseminar mais amplamente na capital mineira. Ademais, a coleta seletiva, não obstante apresentar

um custo de 321,65 R$ por tonelada, de acordo com dados da SLU53, transforma-se num serviço

menos oneroso (pois diminuem os “gastos improdutivos”) para o poder público na medida em que os

custos de aterramento diminuem os da própria coleta, já terceirizada. Tudo isso sem contar os

dividendos políticos intangíveis, gerados pelo programa de coleta seletiva.

Tabela 2

Comparativo anual de resíduos destinados.

Até o momento, os catadores de um modo geral respondem por quase 50% do material obtido

53 Informação retirada do “Relatório de Atividades de Limpeza Urbana”, relativo a fevereiro de 2007.

Fonte: Relatório de Atividades de Limpeza Urbana: 02/07 PBH, SMPU, SLU, Diretoria de Planejamento e Gestão, Departamento de Projetos, Seção de Estatística.

Destinação de Resíduos O1/O6 O1/O7 % Resíduos Destinados à Aterragem 110.416,09 116.784,06 5,77 Resíduos Destinados à Reciclagem 8.294,91 6.336,44 -23,61 VARIAÇÃO TOTAL (t/mês) 118.711,00 123.120,50 3,71

98

pela coleta seletiva em Belo Horizonte54. A despeito desta contribuição, o seu caráter de atividade

alimentadora da reciclagem – cumprindo fundamental importância no seu sucesso – não autoriza sua

disseminação senão por dentro das necessidades estratégicas do mercado, como a baixa oferta de

matérias-primas virgens, alta dos preços internacionais das mesmas, entre outras. Por um lado, as

características dessa disseminação revelam-se bastante importantes para esse promissor mercado, o

qual ainda trabalha com uma grande capacidade ociosa, haja vista a oferta de materiais, no geral,

ainda ser muito baixa55. De outro lado, há os entraves naturais da concorrência e das flutuações do

mercado da reciclagem, como a própria disponibilidade de oferta de materiais, uma possível maior

oferta de matérias-primas virgens, diminuição dos custos de energia, fatores como a politributação dos

recicláveis etc.

Em relação às motivações e à maneira como se dará o trabalho da catação por parte desses

homens e mulheres, sua “dimensão ambiental” está sumamente submetida à frieza dos critérios

eminentemente econômicos, condicionando o recolhimento de determinado material (ainda que esse

recolhimento também se alie à sua disponibilidade nas ruas) ao seu preço de mercado (regulado

internacionalmente). Há também a preferência de recolhimento atrelada à qualidade do material (como

a ausência de sujeira56), a qual dará a ele um maior ou menor valor de mercado. Outro indício da

prevalência dos critérios econômicos sob os demais, são os conflitos (que já resultaram em brigas e até

homicídios) pelo controle dos pontos de coleta em Belo Horizonte onde se concentram os serviços

econômico-financeiros ou nas áreas nobres, ambos detentores de uma maior oferta, por exemplo, do

papel branco (denominado “papel de primeira”). Além disso, ser “agente ambiental” para os catadores

torna-se uma característica fortemente motivada pela necessidade de auferir algum ganho para sua

parca reprodução individual (que, embora não seja a única questão em jogo, cada vez mais se torna

um fator determinante na decisão de se trabalhar na catação) do que propriamente fruto de uma

conscientização acerca da problemática ambiental. Ainda assim, mesmo as “cabeças feitas” pela

ideologia dominante que perpassa essa problemática reproduzem em alto grau o empobrecimento

tanto da noção de natureza quanto da chamada “questão ambiental”.

54 De acordo com matéria publicada pelo jornal “O Tempo”, edição do dia 24 de março de 2007, os catadores vêm recolhendo até 480 toneladas de recicláveis por mês em Belo Horizonte, número que se aproxima da média mensal da coleta seletiva realizada pela Prefeitura, que em 2006 ficou em torno de 575 toneladas. 55 Segundo informações do Compromisso Empresarial para a Reciclagem – CEMPRE –, o Brasil reaproveita algo em torno de apenas 2% do lixo sólido orgânico urbano. 56 A presença de “impurezas” misturadas num fardo de PET ou de papel branco, por exemplo – sendo ela representada por determinado material não condizente com aqueles que compõem o fardo –, simplesmente unitiliza-o comercialmente. Conforme destacado anteriormente, esta tem sido uma clara exigência dos compradores do papel vendido pela ASMARE. E paralela à pressão exercida pela administração sobre os(as) catadores(as) associados(as), cobrando maior qualidade do material, são as táticas levadas a cabo por estes últimos (como a própria colocação de tais “impurezas” ou molhá-lo) para aumentar o peso dos fardos e assim auferirem maiores ganhos na hora da pesagem.

99

Por tudo isso, não podemos deixar de realizar uma abordagem sobre a reciclagem de resíduos

sólidos que leve em conta sua presença marcante na qualidade de um circuito econômico cada vez

mais pujante. Se, como já dito em outros momentos, instâncias cada vez mais longínquas da vida

social vão sendo tragadas pelas relações tipicamente capitalistas, a reciclagem (uma atividade por sinal

bastante antiga) não poderia deixar de ser transformada em circuito de valorização. Ora, a orientação

primordial pelo e para o lucro – já socialmente aceita porque naturalizada – faz com que qualquer

“política” de “preservação ambiental” possa ter caráter mercantil, desde que supostamente dê conta de

lidar com a “dimensão ambiental” associada à “eficiência econômica”. A série de normas ISO 14000 –

apresentadas como “resposta à demanda mundial por uma gestão ambiental mais confiável” – há

algum tempo fazem parte das estratégias de empresariais no sentido de se cortar custos, conseguir

financiamentos e construir a imagem de empresa social e ambientalmente “responsável”.

As benesses sociais, ambientais e econômicas da reciclagem dos resíduos sólidos têm sido

constantemente exaltadas pelo poder público e pelo empresariado por meio de uma série de

campanhas publicitárias. Vejamos algumas dessas benesses apresentadas à sociedade: a) diminui a

exploração de recursos naturais renováveis e não renováveis; b) reduz o consumo de energia; c)

diminui a poluição do solo, água e ar; d) prolonga a vida útil dos aterros sanitários; d) melhora a

limpeza da cidade; e) diminui os gastos com limpeza urbana; f) cria oportunidade de fortalecer

organizações comunitárias; g) diminui o desperdício; h) gera renda pela comercialização dos

recicláveis; i) contribui para a melhoria da qualidade de vida; e j) gera empregos para a população57.

Todavia, estando submetida aos imperativos da reprodução do capital, a prática da reciclagem

orienta-se sob os pressupostos de uma racionalidade econômica que a despoja das possibilidades e do

atributo de atividade com grande importância, seja no trato com o lixo, seja como “iniciativa cidadã”. O

que faz dela uma ponte para a proposta de “inclusão social” no seio do existente. Alguns dos nossos

críticos poderiam dizer que ações de “cunho sustentável” não se baseiam apenas na esfera econômica

porque as esferas social e ambiental ganham enorme proeminência nas decisões econômicas. Porém,

estas últimas esferas também foram canalizadas pelos interesses da primeira, cujo toque de Midas tem

o poder de transformar (e reduzir) a tudo e a todos em mercadorias, em simples instrumentos do

processo de valorização do capital (MARX, 1985). Esta contradição pode ser constatada ao se verificar

que para ser atrativo ao mercado, o material reciclável deve possuir, além da ótima qualidade, um

baixo custo, apresentar grande disponibilidade (oferta) e dispor de um mercado consumidor garantido

(LEAL et al., 2002), gerando, como já vimos grandes ressonâncias no trabalho dos homens e mulheres

catadores(as).

57 Informações obtidas por meio de um livreto intitulado “Coleta Seletiva” (sem data), produzido pela Prefeitura de Belo

100

Analisando o modo pelo qual se dá a inserção dos materiais recicláveis na cadeia produtiva de

mesmo nome, por dentro das relações sociais de produção tipicamente capitalistas, estes se

apresentam como valores de uso, nos quais dois dos agentes com maior poder econômico (os grandes

aparistas e a indústria da reciclagem) investiram seu dinheiro (capital). Eles o fazem de modo a inserir

tal material no processo produtivo como meio de trabalho (matéria-prima), transformando-os em

mercadoria (cujo valor de troca é um elemento de valorização do capital inicialmente empregado) por

meio do trabalho social. Subtraindo todas as circunstâncias que levaram aparistas e indústria a

investirem seu dinheiro (capital) nos materiais e tomando-os apenas no âmbito do processo produtivo,

a reciclagem se torna lucrativa porque dá um valor de uso possível e, mais ainda, um valor de troca

àquilo que antes era simples dejeto, algo em princípio sem nenhuma capacidade criadora de valor.

Advém daí o grande interesse dos segmentos com maior poder na cadeia produtiva da

reciclagem, como os grandes aparistas e a indústria recicladora. Entre os grandes aparistas em Belo

Horizonte temos o “Santa Clara Comércio de Materiais Recicláveis” e o “Comércio de Resíduos

Bandeirantes” – CRB. Além de disporem (sobretudo o CRB) de grandes redes de fornecedores e infra-

estrutura, como caminhões e máquinas para preparação dos fardos, ambos os aparistas detêm a

propriedade dos depósitos localizados na Av. do Contorno (ver foto 5), sendo estes os compradores

dos materiais recicláveis trazidos pelos(as) catadores(as) “autônomos”. Já entre a indústria recicladora

em Minas Gerias, a mais importante é a “São Roberto”, localizada no município de Santa Luzia.

Foto 5: Depósito “Novo Mundo”, localizado à Avenida do Contorno. Autor: Luiz Antônio E. de Andrade. Foto tirada

em 05/06/07.

Horizonte através da Superintendência de Limpeza Urbana, com o patrocínio da Caixa Econômica Federal.

101

Os materiais passíveis de serem reciclados, quando vão para o lixo e posteriormente são

reinseridos no processo produtivo como matérias-primas, em ampla medida graças ao trabalho inicial

das pessoas que trabalham na catação, guardam em si uma característica que os diferem das demais

matérias-primas sob as quais não houve incidência do trabalho: possuem em sua forma corpórea

trabalho social objetivado anteriormente mobilizado na sua produção (LEAL et al, 2002). Ora, esses

materiais nada mais são do que o dinheiro empregado para comprá-los “...transformado em mercadoria

e são um modo de existência do seu capital, tal e qual como o era esse seu dinheiro” (MARX, 1985,

p.47). Esses materiais são num nível mais abrangente e funcionam “...realmente como capital, isto é,

como criadores de valor, valorizadores do valor (...), funcionam para aumentá-lo” (MARX, 1985, p.47).

Estas premissas de ordem teórica vão subsidiar na prática todo o conjunto de estratégias dos agentes

econômicos envolvidos na reciclagem, visando sempre a reprodução ampliada dos capitais investidos,

com uma ampla estrutura, como nos aponta Leal et al (2002):

...que vai além da planta fabril, territorializando-se nos centros urbanos, onde há material reciclável em abundância, articulando e envolvendo depósitos e vários outros trabalhadores além dos catadores, uma estrutura que conta com um esquema de transporte do material dos depósitos onde o material é acumulado, nas mais diversas cidades, para o local onde está sediada a indústria que irá realizar o processo de reciclagem industrial (LEAL, et al, 2002, p.183).

A ASMARE afirma nas estatísticas de sua atuação que tem mantido uma média mensal de

recolhimentos de 450 toneladas de materiais recicláveis em Belo Horizonte, o que, por sua vez,

contribuiria para o “aumento da vida útil do aterro sanitário58”, auxiliaria o município na economia com

os “custos de limpeza urbana”, além da “preservação de árvores”. Tomando por base que cerca de

90% do material coletado pela Associação é o papel, sustentamos aqui que essa elevação em boa

medida tem sido sustentada pela igual elevação da produção brasileira desse material – desacelerada

somente nos momentos de baixa demanda – por parte das indústrias fabricantes de papel e celulose.

Esse fato obviamente contribui para gerar um consumo ainda maior (ver tabela 3) e conseqüentemente

disponibilizar mais materiais para a reciclagem. Segundo informações obtidas no site da Associação

Nacional dos Aparistas de Papel – ANAP – além de não poder ser feita infinitamente59, a reciclagem do

papel é uma atividade complementar e não substituta da produção de matérias-primas virgens.

58 Os resíduos de Belo Horizonte são atualmente encaminhados para a Central de Tratamento de Resíduos Sólidos da BR 040, ou seja, todo o lixo que é gerado no município, cerca 3800 toneladas por dia em 2007, segundo dados do Relatório de Atividades de Limpeza Urbana da SLU. 59 Na medida em que o ciclo de reciclagem se repete, as fibras vão se tornando menores, em conseqüência das operações de refino realizadas para a uniformização da massa fibrosa, tornando-se assim cada vez mais fracas. Na prática, a reciclagem de papel só se torna possível graças à constante entrada no processo de novos papéis recicláveis produzidos total ou parcialmente com matérias-primas fibrosas virgens. Ou seja, o aumento da produção e do consumo utilizando matérias-primas virgens também nesse aspecto torna-se um imperativo.

102

Todavia, é importante dizer que as aparas de papel apresentam boas vantagens competitivas, pois o

preço médio da fibra para a fábrica pode ser ajustado para baixo com o uso da apara, sendo esta mais

barata que a fibra virgem. Outrossim, as aparas podem garantir a continuidade da produção em tempos

de escassez de celulose60. Esses fatos apenas confirmam os grandes interesses na expansão da

indústria de papel e celulose que, por meio das técnicas de “gestão ambiental” e do produtivismo

otimizado (redutor do uso de energia, matéria-prima, água etc.) vêm garantindo os fabulosos lucros

deste segmento industrial.

Tabela 3

Produção e Consumo de Papel no Brasil em 2006 e Projeção para 2007.

A indústria de papel e celulose apresenta sua produção de modo integrado, com os maiores

grupos detendo desde a propriedade de áreas exclusivas para o reflorestamento das principais

espécies de eucalipto utilizadas como matéria-prima, até mesmo indústrias recicladoras, como o é caso

da KLABIN. Atualmente, esta empresa possui 198 mil hectares de florestas plantadas, divididas pelos

estados do Paraná e Santa Catarina. Este fator é determinante para que os grandes grupos

empresariais deste setor tenham grandes ganhos de escala.

Já a estrutura do mercado de reciclagem de papel no Brasil, conforme Calderoni (1997) é do

tipo piramidal, tendo a indústria recicladora no topo da pirâmide, logo abaixo vêm os grandes aparistas

e tendo à sua base os depósitos e sucateiros para, por último, chegar aos catadores. Há atualmente

três grandes empresas que representam mais da metade do faturamento proveniente da indústria do

papel: Klabin, Suzano e Votorantin.

Por fim, é preciso dizer que a coleta seletiva e a reciclagem não podem ser simplesmente

negadas, mas superadas na concretude em que se apresentam atualmente através da sua inserção

num amplo processo discursivo que deve envolver um modelo de organização social não mais tragado

por esta “entidade” que é o capital.

60 Informações obtidas na Associação Nacional dos Aparistas de Papel – ANAP. Fonte: site www.bracelpa.org.br, acessado em 15/05/07

Fonte: BRACELPA (Associação Brasileira de Celulose e Papel).

2006 2007 PAPEL 2005 (1000t) Projeção (1000t) VAR.% Previsão (1000t) VAR.%

Produção 8.597 8.750 1,8 9.000 2,9 Importação 770 960 24,7 980 2,1 Exportação 2.039 1.990 -2,4 1.950 -2,0 Consumo aparente 7.328 7.720 5,3 8.030 4,0 Consumo Per Capita (Kg/hab.) 39,5 41,1 42,3

103

3.4. O “Programa de Inclusão Produtiva” no campo das “políticas sociais” em Belo

Horizonte: “incluir” quem e para quê?

Nossa intenção a partir de agora é buscar compreender como o discurso da necessidade de se

operar a “inclusão social”61, saído de orientações teóricas insuficientemente refletidas, conforma-se

numa práxis política e social por nós entendida como reduzida e redutora. Ela vem sendo estendida às

populações em “vulnerabilidade social” por meio de políticas públicas – como é o caso dos catadores

de papel – envolvendo parcerias com entidades da sociedade civil e, principalmente, com as

organizações não-governamentais. Focaremos aqui o “Programa de Inclusão Produtiva”, levado a cabo

pela Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social – SMAAS –, que na hierarquia institucional está

integrada à Secretaria Municipal de Políticas Sociais – SMPS –, e que incide diretamente no trabalho

da ASMARE. Essa incidência se dá não só em relação aos trabalhadores da triagem, mas também

para os chamados “grupos de produção”, cujas oficinas funcionam no “Centro de Qualificação Reciclo”.

Vale dizer que a “Coleta Seletiva”, conforme veremos, embora realizada pela Superintendência de

Limpeza Urbana, inscreve-se no “Programa de Inclusão Produtiva” como uma de suas ações62.

A supracitada práxis política e social a qual, para ganhar legitimidade, precisa articular

eficientemente os diversos discursos (institucional, do mercado, da técnica e da ciência comprometida

com a reprodução social sob a égide do poder) que lhe servem de suporte, marcará presença junto

àqueles historicamente tidos como “indesejáveis” pela sociedade. Este estigma ganhou novos

contornos na contemporaneidade, pois as formas de exploração que ele ajuda a ensejar (até mesmo

como justificativa para sua suposta eliminação) também foram resignificadas. Expliquemo-nos melhor.

Os “indesejáveis” não deixaram de possuir essa alcunha. Eles devem continuar como tais, mas sem

incomodar e criar constrangimentos às “pessoas de bem”. No discurso-alicerçe do moralismo burguês,

os “indesejáveis” devem ser banhados pela seiva da “formação libertadora” do trabalho, aquela que

teria a propriedade de extirpar as personalidades “disruptivas” e “degeneradas”, tão perniciosas ao

pleno desenvolvimento da sociedade. Precisam se transformar em cidadãos de segunda classe,

cidadãos sem o sê-lo, verdadeiramente. Temos então uma representação vazia e abstrata de cidadania

61 Não é difícil hoje em dia escutar vozes da “esquerda” ou da “direita”, cada qual a seu modo proferindo discursos inflamados atentando para a “obrigação moral” de se reparar uma “dívida social histórica” para com os povos tradicionalmente “excluídos” da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que parece propor uma verdadeira “inversão de prioridades”, a “esquerda” se mostra tímida em pensar e agir num propósito mais radical de transformação social. 62 Através da mediação do “Grupo Gestor de Economia Solidária” – o qual tem entre seus componentes representantes da SLU e da SMPS – está sendo fechado um projeto de implantação de um galpão de triagem no bairro Granja de Freitas, em Belo Horizonte. Uma das intenções desse projeto seria viabilizar a criação de uma rede de cooperativas facilitando as negociações de venda dos materiais. Outra intenção seria ampliar o “Programa de Inclusão Produtiva”, oferecendo mais vagas para o trabalho de triagem desses materiais.

104

assumindo o primeiro plano do real: ocultamento deveras sofisticado, pois é a postura escancarada do

“estamos fazendo o possível” ou o “é difícil, mas é a realidade” que lhe serve de manto!

3.4.1. O poder público, as parcerias e a otimização da precarização do fazer social

Duas questões nos interessam a partir de agora. A primeira delas seria externar ao leitor como

a parceria entre a SMAAS e a ASMARE (culminando no “Programa de Inclusão Produtiva”) dá

ressonância aos modelos atuais de “inclusão social” das pessoas em “vulnerabilidade social”. A outra

questão envolve o mesmo processo, perpassado pela mesma modalidade de parceria, desta vez entre

a SLU e a ASMARE, no programa de coleta seletiva municipal.

Com base no material por nós acumulado ao longo de uma pesquisa de Iniciação Científica,

realizada entre agosto de 2004 e agosto de 2006, passamos a perceber, no cerne do discurso que

serve de sustentáculo teórico-conceitual e metodológico à política de Assistência Social em Belo

Horizonte, o bafejamento da tese apregoadora da qualificação social e profissional como redenção dos

pobres. Ou seja, os programas daí derivados, aos serem direcionados às pessoas por eles assistidas,

contribuiriam decisivamente para viabilizar a “equiparação de oportunidades de acesso ao mundo do

trabalho” a tais pessoas. Tem-se então, a criação do “Programa de Inclusão Produtiva”. É mister então

apresentarmos uma exposição um pouco mais detida acerca de suas origens.

Nascido na primeira administração de Fernando Pimentel (2001-2004), o programa é tido pelos

técnicos que lhe formularam como um projeto inovador na construção da cidadania e na promoção

social através do acesso do público assistido ao mercado de trabalho. Segundo tais formuladores, é aí

que se localizaria seu diferencial: ser portador de um caráter qualitativamente distinto dos programas

sociais predecessores ao buscar “garantir a autonomia do assistido” ao invés de apenas reiterar sua

situação de dependência social e econômica. Já no decorrer da atual gestão municipal, o “Programa de

Inclusão Produtiva” corresponde a uma espécie de “programa-tronco”, juntamente com outros 05

programas da mesma espécie. Dentro do “Programa de Inclusão Produtiva” estão incluídos 18

programas pontuais, somando-se a um “pacote” que abriga um total de 91 programas sociais da

Prefeitura de Belo Horizonte, os quais atendem, segundo seus dados, mais de um milhão e setecentas

mil pessoas na cidade63. Dentre esses 18 programas pontuais podemos, a título de exemplo,

mencionar o “Inclusão Digital”, o “Geração Trabalho/Profissão Futuro”, o “Qualificarte”, o “Economia

Popular Solidária”, os “Grupos de Produção”, o “Espaço da Cidadania” e o “Coleta Seletiva”.

Vale ressaltar que o “Programa de Inclusão Produtiva” ultrapassa em muito o universo do

63 Dados retirados do panfleto “Prefeitura: 91 programas sociais”, sem data.

105

trabalho realizado junto ao catador de papel associado a ASMARE64. Seu “público alvo” abrange, para

além do conjunto maior da população de rua, alguns setores da chamada “população carente”

moradora das periferias da metrópole belorizontina e trabalhadores em situação de desemprego. Cabe,

desta forma, tomarmos como exemplo o caso dos programas “Correção Ambiental e Reciclagem com

Carroceiros”, o “Credenciamento de Lavadores e Guardadores de Carros” e o “Sistema Nacional de

Emprego (Sine): BH Norte e Barreiro”. Há, também no âmbito do “Programa de Inclusão Produtiva”, o

“Projeto Tzedaká”, programa gerador de emprego e renda voltado para jovens carentes de 16 a 21

anos e o programa de “Estágios”, voltado para jovens com escolaridade tanto de nível médio quanto

superior.

O “Programa de Inclusão Produtiva” está assentado na formação de parcerias entre o poder

público e entidades não diretamente ligadas ao âmbito estatal. Esta possibilidade tem se dado desde a

regulamentação, pelo município, da “Lei de parcerias” (Lei 7.427, de 19 de dezembro de 1997). Ela

consistiria num “novo enfoque” nas relações entre o poder público e as entidades “sem fins

econômicos” (denominação substituta de “sem fins lucrativos”) de modo a possibilitar a construção e a

implementação de ações ligadas à assistência social. Na prática, trata-se de demarcar o campo de

atuação desta miríade de novos “agentes de promoção social” – materializados na forma de

organizações não-governamentais, fundações etc. – que agora gravitam em torno do Estado, chegando

a ocupar a trajetória orbital até então percorrida exclusivamente por este último.

Os argumentos do poder público para o estabelecimento da “Lei de Parcerias” atentaram para

uma série de avanços no campo da gestão e do controle públicos. Entre eles estão: a) a

“democratização”, marcada pelo acesso universal às modalidades de formalização dos convênios; b)

“continuidade garantida” pela renovação dos convênios com qualidade e demanda social comprovadas;

c) “recursos” e a garantia de sua disponibilização pelo executivo; d) “capacitação” garantida pelo

executivo com vistas à supervisão da rede conveniada; e e) “política pública”, com as entidades

64 Estamos conscientes do risco de erro pelo qual podemos incorrer ao separar estes homens e mulheres em duas categorias. Para reduzir drasticamente essa possibilidade, decidimos então tomar como sujeitos da pesquisa apenas os catadores associados a ASMARE. Para fazer cair por terra qualquer margem para dúvida, trazemos um exemplo da dita impossibilidade da separação das categorias. Em nossas andanças pela área central de Belo Horizonte, temos notado que os moradores de rua, na sua luta diária pela sobrevivência, recorrem muitas vezes à catação como um dos mecanismos de obtenção de algum dinheiro para sua parca alimentação. Recentemente conversamos com um morador de rua. Contando-nos sua história, que incluía sua proveniência do Espírito Santo em busca de sua irmã, o insucesso nesse encontro pela ausência do endereço correto da mesma, culminando então com a perda devido ao furto de seus pertences e documentos, disse-nos ter como único bem material o seu “carrinho”, que além de servir para a atividade da catação tem também a função de “cama” e de “ponto de espera” até o início da manhã, momento em que os depósitos de recicláveis abrem suas portas. Em suma: embora seja um morador de rua, este indivíduo também é uma pessoa, um catador de recicláveis, sem ponto fixo e sujeito às reações intempestivas dos demais catadores na disputa agressiva pela manutenção territorial dos pontos de coleta. Seu “perfil”, portanto, está imbricado nas duas categorias criadas para diferenciar catadores e moradores de rua. Seria possível, então, manter tal rigor? Ou seja, é possível pensar essas duas categorias para além de um primeiro – e não mais que provisório – recurso metodológico?

106

conveniadas devendo fazer cumprir as deliberações dos Conselhos Municipais de Políticas Sociais65.

Portanto, a precarização ainda mais contundente do fazer social por parte do Estado surge

para a sociedade como “reforma” (ARANTES, 2004), garantindo como princípio a “qualidade no acesso

a serviços sociais”. Haveria também, de acordo com o texto da Lei de Parcerias, a garantia dos

“mínimos sociais” com base no entendimento da “dignidade humana”, num arcabouço pautado na

“prioridade do social”, “participação social”, “complementaridade entre poder público e sociedade civil”,

“igualdade de direitos” e “igualdade de oportunidades”.

Com base no discurso da Assistência Social em Belo Horizonte66 – cuja primeira denominação

é “Políticas Sociais” – duas questões podem ser levantadas. A primeira delas parte da idéia que povoa

o discurso institucional no município, qual seja, que a Assistência Social em Belo Horizonte estaria

fortemente ancorada numa “representação positiva de cidadania e promoção social”, pois formaria os

indivíduos “para a sua própria autonomia”, inserindo-os de forma, em maior ou menor medida,

“sustentada” no mercado de trabalho. A segunda impressão, a qual pode ser entendida como

desdobramento da primeira, é a de que o discurso institucional, implícita e explicitamente, estaria

inscrito no eixo norteador das políticas sociais na capital orientando-se por meio de uma noção de

“construção de direitos” e não mais do mero assistencialismo promotor de concessões. Ademais, tais

políticas teriam como ação legitimadora aquilo que foi visto por nós anteriormente: a formação do

trabalhador – seja ele precarizado ou portador de alguns dos benefícios caracterizadores do pleno

emprego em extinção – dentro das determinações do modelo de competência imperiosamente exigido

pelo mercado de trabalho. Ainda no que se refere às nossas questões, os propósitos do “Programa de

Inclusão Produtiva”, presentes no seu veículo de comunicação impresso, falam por si mesmos:

Viabilizar a equiparação de oportunidades de acesso ao mundo do trabalho e ensejar formas de os usuários desenvolverem sua capacidade produtiva [grifos meus], tornando-se sujeitos econômicos capazes de garantir sua sobrevivência, transitando da situação de beneficiário para a de trabalhador, com possibilidades de garantir seu sustento próprio e o de sua família (SMAS – Revista Inclusão Produtiva, 2003, p.05).

Nesses termos, o “Programa de Inclusão Produtiva” ensejaria estratégias alternativas para que

os “assistidos” superassem as próprias condições objetivas de sua “exclusão”. Daí o fato dele se

65 Fonte: Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social (SMAAS), Lei Municipal nº 7427/97. 66 Julgamos importante atentar para a distinção operada na gestão do segundo mandato do prefeito Fernando Pimentel, entre política social e assistência social. A primeira abrangeria as “políticas universais”, como saúde e educação. Já a assistência social refere-se a “aquelas políticas voltadas para as pessoas que perderam a possibilidade de competir na sociedade pela sua sobrevivência, que inclui, por exemplo, os deficientes físicos, os idosos desamparados e os loucos. As nossas políticas sociais têm um viés de inclusão social, e nós trabalhamos um conjunto de políticas que visa dar equidade nas oportunidades” (Fonte:site: www.fernandopimentel.com.br/entrevista-detalhe.php?CodEntrevista=13). Acessado em 27/05/06.

107

apresentar como “...via estratégica para superar as situações de desemprego, falta de qualificação

profissional e ausência de renda” (SMAS – Revista Inclusão Produtiva, 2003, p.04).

Desse modo, a “Gestão da Política da Assistência Social em Belo Horizonte”, ganha o fôlego

necessário para emergir como “inovação institucional”, a partir da qual são exaltadas as substanciais

mudanças no seu paradigma norteador. Do anterior, calcado no binômio assistencialismo/pobreza

como “caso de polícia”, para outro, cuja pedra de toque é a “construção de direitos” por meio da

“equiparação de oportunidades”. Trocando em miúdos, a meta seria superar o “recorte conservador”

durante décadas presente nos programas institucionais de assistência em Belo Horizonte, calcados

num ordenamento “paliativo e compensatório”, em busca de um “sistema público de Assistência Social”

(SMAS – Revista Inclusão Produtiva, 2003, p.04). Nesse sentido, essa “nova” política pública de

Assistência Social ganharia o estatuto legal de “política de direitos”, tornada, de acordo com o discurso

institucional, “...afiançadora de cidadania [grifos meus], superando as marcas históricas que sempre a

associaram à caridade, caracterizada como via de ajudar a pessoas ou a segmentos excluídos da

sociedade” (SMAS – Revista de Inclusão Produtiva, 2003, p.04).

Levando em conta aquilo que prefigura no discurso institucional como “ruptura” com as

políticas “paliativas e compensatórias” e indo em direção a uma verdadeira “política de direitos”,

reatamos a discussão nos seguintes termos: o que se entende como “direito”, sobretudo na sua

formulação pelo poder público? Estando o trabalho, no universo das políticas de assistência social,

sendo oferecido como direito, isto é, como condicionante para a obtenção da cidadania pelos

“assistidos”, que trabalho é esse de que se está falando – e exigindo?

Ao que parece, a noção de direito sofre de um empobrecimento semântico, tendo, desse modo,

seu significado primordial desviado (e degenerado) para a noção de concessão. Ora, se estivermos

equivocados em nossa constatação, poderemos ainda dizer que coexistem na mesma realidade social

“direitos iguais” (o direito ao trabalho, por exemplo), mas com modalidades internas distintas e que se

expressariam diversamente para diferentes indivíduos. A segmentação social manifestar-se-ia

fenomenicamente nos diferentes tipos de trabalho que cada um ocuparia na vida social. Aqui a questão

estaria mais próxima da “competência individual” do que propriamente no campo de uma problemática

como as chamadas “desigualdades sociais”. Noutros termos, a divisão social do trabalho é reiterada

em sua pretensa naturalização fazendo o indivíduo assumir a culpa dos seus eventuais “insucessos” na

disputa por um emprego fruto de seu “despreparo” e da sua falta de qualificação, inaceitáveis em

tempos de mercado de trabalho “exigente” e “competitivo”.

108

3.4.2. O “Programa de Inclusão Produtiva” e o “Programa de Coleta Seletiva” a ele associado e

suas ressonâncias no projeto ASMARE

Eis aí o “fato novo” presente, dotador deste “significado diferenciado” do “Programa de Inclusão

Produtiva”: propor-se a atuar, no caso dos homens e mulheres catadores(as) de papel, precisamente

naquilo que para eles – até mesmo devido ao histórico de perseguições e impedimentos à realização

de sua atividade por parte da Polícia Militar e da Superintendência de Limpeza urbana – torna-se

elemento fulcral: o direito ao trabalho como condição sine qua non para seu ganho de cidadania e sua

inclusão social. Um detalhe: afasta-se das preconizações programáticas generalizantes e direciona-se

para uma prática voltada para o sujeito individual, construtor de novos papéis para si mesmo rumo a

uma “nova realidade”.

Já fizemos em outro momento uma descrição do programa de coleta seletiva enquanto

parceria envolvendo a SLU e a ASMARE, por meio da destinação dos materiais recicláveis coletados

ao galpão de triagem da Associação. Acrescentamos, portanto, que a SMAAS presta assessoria no

“Centro de Qualificação Reciclo” e também no galpão enviando seus técnicos para realizar um

acompanhamento mais sistemático das atividades. Esse acompanhamento consiste na verificação da

aprendizagem dos “assistidos” nas oficinas e na identificação e solução de conflitos e dificuldades de

relacionamento entre eles. Ao entrevistarmos um técnico que trabalha diretamente com as atividades

mencionadas, demonstra para nós um grande envolvimento, louvando as possibilidades trazidas pelo

“Programa de Inclusão Produtiva” sem questionar o seu alcance: “Eu acredito nas pessoas. Quando se

dá oportunidade, se dá trabalho... eu acho que dá!”.

Com base na discussão acerca do significado do trabalho na vida do homem e os

desencontros e estranhamentos experimentados por esse último no momento da desqualificação do

primeiro na sociedade burguesa, de que noção de trabalho se está tratando quando se fala em direito

ao trabalho para essas populações e, mais precisamente, para as pessoas que trabalham na catação e

são ligadas à ASMARE?

Qualificar o indivíduo cuja existência é “marcada por trajetórias de exclusão do acesso a bens e

serviços” (SMAS – Revista de Inclusão Produtiva, 2003, p.05) mostra-se como ação sumamente ligada

ao repertório conceitual que orienta a noção de “revalorização do trabalho”, vista no primeiro capítulo

desta pesquisa. Pautada no “resgate da subjetividade” do trabalho em meio às reestruturações dos

processos produtivos, em alguma medida as orientações teóricas e práticas da “revalorização do

trabalho” aparecem implícitas no corpo do “Programa de Inclusão Produtiva”. Uma delas mostra-se

presente na maneira pela qual se trabalhará a qualificação profissional (chamada pelo programa de

“formação profissional”) entre os assistidos, chamada de “Metodologia Qualificarte”. De acordo com

109

seus proponentes, tal metodologia se propõe a “trabalhar a pessoa enquanto sujeito em suas múltiplas

dimensões...” enfatizando o trabalho com os “... conhecimentos gerais e técnicos da formação

profissional de forma integrada, construindo-se uma relação dialética entre a profissionalização e o

trabalho como experiências de formação e realização humana” (SMAS – Revista Inclusão Produtiva,

2003, p.05).

Aproveitando o ensejo, é interessante relacionarmos as nuanças do “Programa de Inclusão

Produtiva” àquilo que Pedrosa (2003) chama de “flexibilidade nas relações de produção”. Embora o que

se apresenta na esfera dos processos produtivos e do trabalho seja a redução sem precedentes da

necessidade do trabalho vivo, isto é, do trabalho socialmente necessário pelo capital à sua reprodução

ampliada, aqueles que são acometidos por esse fenômeno não deixam de ser produtores e

consumidores. E é justamente isso que acontece no caso dos(as) catadores(as) de papel ligados à

ASMARE ou aqueles que estão vinculados às cooperativas – as quais, no caso brasileiro, voltaram a

se proliferar (NUNES, 2001). Nesses termos, sobressaem-se nos dias de hoje diversos programas e

agências de qualificação profissional – onde a figura do trabalhador se mistura à do “empreendedor” –

capitulando a preparação de indivíduos que, sozinhos ou em grupos, estariam capacitados a criar

alternativas de renda longe do mercado de trabalho formal.

Ora, o conjunto das relações que vêm governando o trabalho na contemporaneidade não é

mera objetividade conformada tão somente no âmbito das contingências e “humores” do mercado ou

do “ambiente econômico”. Elas são resultado e simultaneamente ajudam a criar as condições propícias

ao livre desimpedimento do processo de reprodução do capital. Processo esse, como sabemos, inscrito

no bojo de uma formação histórico-social na qual o trabalho foi assumindo um significado que o tornou

“atividade” cuja distância entre aqueles que participam de sua execução e outros, aqueles que se

apropriam de seus resultados, torna-se cada vez mais abissal.

Assim sendo, as pré-condições para o trabalho exteriorizado, des-identificado e estranhado –

formas pelas quais objetivou-se na sociedade burguesa o trabalho realizado pelo homem, resultado da

distância abissal dita acima – estão dadas, paradoxalmente, a partir daquilo que se convencionou

chamar de “revalorização do trabalho”. Recordando o que dissemos em outro momento, tal

revalorização não ultrapassa o universo do desenvolvimento das forças produtivas e nem das relações

de produção sob o capitalismo, pois não tem em pauta a superação de seus fundamentos norteadores:

suas formas abstratas aludidas acima e a propriedade privada. Numa síntese apertada, poderíamos

dizer que, se não se toca na essência, nos fundamentos norteadores, mantêm-se as pré-condições.

Ora, não é preciso ir muito longe quando observamos estarem em curso um conjunto de medidas que

reafirmam e intensificam os postulados do trabalho abstrato por meio da precarização sem precedentes

que abala o trabalho na contemporaneidade. Mais do que nunca, falar em trabalho em nossa época é

110

nos depararmos com a constatação de uma “...vida danificada e alienada, (...) uma vida que se reduz a

meio de vida” (PEDROSA, 2003, p.66).

A conseqüência desse novo campo de relações no trabalho sobre empreendimentos como a

ASMARE, tem sido o desvio das relações sociais da mobilização e da construção coletivas mais

abrangentes, para a instauração de diversos (porém sutis) mecanismos de coerção e de imposição de

condutas, descambando na perda do espaço público enquanto campo de possíveis. Isso tem

significado a sacramentação da anulação do outro como interlocutor ativo e de sua palavra, enquanto

ingrediente essencial à política. A privatização das relações sociais no interior da Associação vem

instituindo o consenso redutor pela “projeção de critérios de validade que não fazem referência a uma

esfera compartilhada de valores e significações...”, onde “...os homens [do poder] tenderão, para impô-

los no mundo, a fazer uso da violência” (TELLES, 1990, p.33).

São reações ilustradas pela saída de catadores(as) que não concordaram com as

normatizações (entre outras, as exigências veladas ou deliberadas de produtividade) durante toda a

existência da ASMARE. Internamente, percebemos as diferenças individuais de produtividade semanal

ou mensal não ligadas somente à debilidade física, o uso de drogas e/ou bebidas alcóolicas, entre

outros desregramentos, mas às manifestações de discordância (via de regra individuais) com o ritmo

de trabalho exigido – por um capitalista típico e seus “capitães do mato”, ela seria chamada de “corpo

mole”, “vagabundagem”, etc. O mal-estar do catador da ASMARE sai de sua latência e se manifesta

nos furtos de material67 e na desilusão com a sua própria capacidade organizativa.

As possibilidades para a construção das alteridades, do conflito como elemento primeiro da

prática política e uma reciprocidade libertadora, elementos basilares para uma democracia radical e a

consolidação do exercício de uma cidadania ativa têm sido destituídos de interesse, desaguando na

sua transformação em mero espetáculo. Esse cenário se transpõe ao rés do chão da ASMARE na

medida em que a desqualificação do outro – capitaneada por relações crescentemente dicotômicas

entre a administração e os demais catadores – e uma espécie de “política do medo” cultivada pela

necessária aceitação de “premissas invioláveis” – ou o caminho em direção à porta da rua! – passam a

vigorar como instrumentos de controle recorrentes nas relações internas à associação. Assim, a

construção coletiva passa a dar lugar à reificação de tais relações, à despolitização, ao estranhamento

e à conseqüente busca pelas saídas individuais, as quais se constituiriam inclusive como “estratégia de

sobrevivência” em um ambiente que, “contrariadamente”, optou pela premência cega e surda de

67 Ainda pensando os processos internos à ASMARE, insistimos que é a partir daí que começam a se verificar os “deslizes” de alguns catadores. A título de exemplo, foi por nós presenciada o desvio de uma doação que chegou à ASMARE e que seria (pelo menos em tese) contabilizada como soma coletiva na Associação. A catadora que se incumbiu de recebê-la, ao invés de repassá-la para o box coletivo, desviou o material para o seu box individual. Tal atitude não visaria garantir sua produtividade semanal?

111

índices aumentados de produtividade. Situação essa captada em seu movimento geral por Zygmunt

Bauman (1999), quando este nos fala dos estranhos da era do consumo, dos descartáveis (ainda que

importantes às “engrenagens”):

A responsabilidade pela situação humana foi privatizada e os instrumentos e metidos de responsabilidade foram desregulmentados. Uma rede de categorias abrangente e universal desintegrou-se. O auto-engrandescimento está tomando o lugar do aperfeiçoamento socialmente patrocinado e a auto-afirmação ocupa o lugar da responsabilidade coletiva pela exclusão de classe. Agora, são a sagacidade e a força muscular individual que devem ser estirados no esforço diário pela sobrevivência e aperfeiçoamento (BAUMAN, 1999, p.54).

Com isso, o anterior campo de possíveis que poderia ser vislumbrado a partir de uma

orientação da ASMARE que primasse pela constituição de um espaço público onde a politização, o

conflito, e o estatuto reivindicativo vigorassem como verdadeiras linhas de força no seu interior, acaba

por se reduzir a práticas sociais semelhantes aos de uma organização privada – o que a faz mera

reprodutora e alimentadora da sanha mercadológica vigente. A privatização das relações sociais no

âmbito interno da Associação acaba por gerar ali uma grande contradição: onde deveria existir a

publicização, a horizontalidade e a crescente eliminação das relações de poder (ou em torno dele se

fazerem presentes formas convivenciais), passa a assistir ao retorno do discurso competente, que olha

o outro de cima e que por ele decide. O estrago se completa quando a construção de instrumentos e

estratégias para uma luta anti-hegemônica via articulação coletiva acaba cedendo lugar a uma mera

“complementaridade instrumental”, alimentadora do mercado da reciclagem, e com isso ajudando a

tensionar ainda mais, ao invés de extirpar, o conflito entre capital e trabalho no interior da ASMARE.

112

CAPÍTULO 4

DA “PANHA” À CATAÇÃO INSTITUCIONALIZADA: HOMENS E MULHERES

CATADORES DE PAPEL DA ASMARE EM FACE DA PRODUÇÃO DE SUA

COTIDIANIDADE

“Apareceu uma dona e falô comigo assim: ah, vamu pra rua catá papel? Ah, vamu... Aí eu falei assim: será que dá certo? Aí ela falô de novo: ah, vamu catá papel? Vamu catá o papel de noite e de manhã a gente vem embora. Aí eu vinha trazeno a comida pra tratá das criação, né? Aí fiquei. A gente ficava no banco 24 hora ali limpano. Aí o Getúlio falô assim comigo: mãe, vamu pra ASMARE? Aí eu respondi: eu num vô pra ASMARE não. Eu comecei foi aqui [na rua] (...) Aí eu fiquei lá mais um mês e depois subi pra cá [para a ASMARE] (...) Com isso eu tô aqui até hoje” (Depoimento de Dona “Dilma”, em 09/04/2006).

Iniciamos esse capítulo com a seguinte assertiva: o modelo vigente de reprodução social no e

através do qual a (re)produção do espaço está atrelada, faz emergirem – na qualidade de resultado e

também condição de seu processo – a catação e os homens e mulheres catadores(as) de papel, sejam

os “informais”, sejam aqueles associados à ASMARE. Tal assertiva serve para enfatizar que, até o

momento, o desfecho por nós verificado indica o paradoxal empobrecimento daquilo que é mais

humano pela via da otimização do que, pretensa e imperiosamente, ainda se põe como sendo a

continuidade da realização do ideário da liberdade operada pelo projeto civilizatório burguês. A

reprodução da ausência de possibilidades e da própria liberdade reatualiza sua forma abstrata e se

realiza, no discurso e na prática, como o ápice das “possibilidades” e das “liberdades” (BAUMAN,

2000). Na mesma medida, a produção e a reprodução do espaço devem ser pensadas sob essa ótica,

todavia com o seguinte acréscimo: como negação na possibilidade e como possibilidade na negação.

Como então refletir sobre a condição do homens e mulheres catadores(as) de papel da ASMARE e a

atividade da catação? Como demonstrar que aquilo que aparece como concretude, isto é, aquilo que é

tido – por meio de um discurso e uma prática carregados de estetismo – como “conquista” penetra

desmedidamente na rota do enclausuramento da autonomia – ampliando as (im)possibilidades de

realização do humano?

Vale mais uma vez destacar que a ASMARE, na qualidade de “empreendimento solidário” tido

como “modelo nacional” a ser seguido, além de ser, no âmbito das estratégias oficiais, pedra de toque

das políticas sociais e ambientais da Prefeitura de Belo Horizonte, era assim definida por José

Aparecido Gonçalves (à época Administrador Geral da ASMARE) nos seus dez anos de fundação:

“...um novo modelo de política pública, capaz de inserir, formalmente, o catador no mercado de

reciclagem. Uma conquista que é de cada trabalhador, agente pastoral, empresário e dirigente público,

113

que ousou participar deste projeto”68.

Este será o desafio, enfrentado nas páginas que se seguem, numa tentativa expedita (e nunca

esgotada) de deslindar elementos não levados em conta – mesmo quando a análise se propõe a

mergulhar nas “qualidades humanas” do(da) catador(a) de papel ou da população de rua.

O intento, ao refletirmos e lançarmos um olhar sobre esses homens e mulheres, não é o de

situá-los numa categorização demográfico-estatística funcional ao economicismo vulgar, isto é, como

conjunto de indivíduos dispostos numa cadeia de dados e índices nos quais, por exemplo, seriam

externados indícios de uma “ascensão social” por meio da elevação dos “ganhos de renda”.

Igualmente, não estamos dispostos a tomá-los apenas como “sujeitos” no vir-a-ser de suas vidas

imediatas, vividas como “dinâmica” descolada do processo geral, contraditório e obscuro do cotidiano

avassalador (LEFEBVRE, 1991). Procuramos aqui pensar aquele a aquela que se ocupa da catação na

ASMARE como alguém “...comum, fragmentado, divorciado de si mesmo e de sua obra...”, mas

vivendo sua vida simples no dia-a-dia, “...obstinado no seu propósito de mudar a vida, de fazer história,

ainda que pelos tortuosos caminhos de sua alienação e de seus desencontros, os difíceis caminhos

cotidianos da vida” (MARTINS, 1999, p.12). É como se esses homens e mulheres “comuns” estivessem

entrelaçados a uma contraditória sina, de estar no mundo mediante uma intensa e dolorosa luta pela

sua realização – alimentada por conquistas que preenchem de sentido a sua existência – e, ao mesmo

tempo, compulsoriamente divorciados da possibilidade da transformação efetiva de si mesmos e do

mundo. Eis aí a aparente “inexorabilidade” da vida, que o pensamento e a prática hegemônicos fazem

chegar a essas pessoas impondo-lhes a condição de estar no limiar da desumanização. Pois é algo do

humano de cada uma delas, com seu adormecido e miúdo, porém real poder de apontar para a

transformação do existente, que buscamos enfatizar nesse capítulo.

Já a atividade da catação será apresentada como prática espacial (LEFEBVRE, 2006),

construída e realizada no âmago das (im)possibilidades trazidas pela modernização; pontuada como

expressão e como condição de suas contradições e irracionalidades. Tal prática não é entendida por

nós como tão somente como “trabalho”, visando à obtenção do mínimo para a satisfação das

necessidades básicas – ou seja, numa perspectiva que domina apenas a órbita sócio-econômica –,

mas também na qualidade de ação produzida por e produtora de sociabilidades, sendo estas

reveladoras de táticas de sobrevivência, de afetividades, de conflitos etc. Outrossim, aquilo que nos

leva a falar em modernização se dá como superação das concepções dicotomizadoras do “moderno”

ideologicamente tido como “superior” ao “tradicional”, como eterna ida a galope nas costas do des-

68 GONÇALVES, José Aparecido. Editorial. ASMARE: há dez anos reciclando vidas, Belo Horizonte, [2000]. Edição

Especial Comemorativa, n.p.

114

envolvimento rumo ao encontro com o futuro (Arantes, 2004). Modernização é aqui entendida,

sobretudo, como promessas não realizadas; como movimento mecanizado e esterilizado das formas,

numa consonância-dissonância com a manutenção/diluição/empobrecimento do(s) conteúdos(s) nela

articulados; como possível não realizado69 e, portanto, tornado impossível nela e por ela própria,

servindo como alerta para uma urgente resignificação de conduta da “civilização”.

Trataremos da vida de pessoas com origens e histórias de vida diversas, cuja complexidade

transcende o discurso e a prática científicos, muitas vezes inibidores e encobridores dessas qualidades

do humano. Deve-se não incorrer no erro de tomar a realidade social como uma espécie de “massa

informe” da qual certo “pensamento” deve se ocupar e “organizar” através de “análises fidedignas” do

“real”. Ao contrário, urge reorientar a ciência tornando-a instrumento importante (sem ter a pretensão

de ser o único), uma modalidade de interpretação nunca acabada dessa realidade.

4.1. Homens e mulheres catadores(as) de papel: quem são estas pessoas?

As pessoas que ontem e hoje realizam a atividade da catação são aqueles(as) que, como

todos nós, vivem a cidade, dialogando com ela à sua maneira, tecendo relações sociais entre si,

lutando e (sobre)vivendo no e com um espaço (ilusoriamente) neutro, condição e produto do

estranhamento. Abrindo um rápido parêntese, optamos pelo fio condutor não da negação, mas da

superação das abordagens que ainda tomam o espaço tão-somente como “campo” funcional e

instrumental da produção em sentido restrito (e restritivo). Ou seja, a modalidade “...produção de coisas

e seu consumo” (LEFEBVRE, 2003, p.21) não pode se conformar como uma forma pura, cujos

conteúdos se põem como definitivos e unidimensionais: deve incorporar a (re)produção do próprios

homens e mulheres na sua totalidade e relações sociais nas quais se inserem e delas tomam partido.

Nesse sentido, o autor dá relevo à necessidade desse salto qualitativo na reflexão crítica acerca do

espaço: “Não se pode dizer que o espaço seja um produto como um outro, objeto ou soma de objetos,

coisa ou coleção de coisas, mercadoria ou conjunto de mercadorias” (LEFEBVRE, 2003, p.21).

Longe de querermos apresentar um “histórico” desses homens e mulheres e da atividade da

catação na metrópole belorizontina, haja vista as possíveis insuficiências de tal empreendimento na

compreensão do processo geral de reprodução social e de suas determinações, a idéia aqui é

apresentá-los e também a sua atividade no seio das contradições do processo mencionado. Ao invés

de corroborarmos leituras estigmatizantes sobre a pobreza, demonstradas e tencionadas, entre outros

69 “A modernidade anuncia o possível, embora não o realize” (MARTINS, 1999, p.20).

115

autores, por Vera Telles (2001)70, procuramos pensá-la como expressão e como condição de

reprodução daquilo que se entende como “moderno”. A pobreza, mais do que apenas uma situação

vivida como chaga – e longe de ser idealizada –, é também uma mostra dos amplos traços da força do

humano no embate contra o esbulho da desumanização, manifestação essa típica das condições

atuais, em que “...os próprios bens da fortuna convertem-se em elementos do infortúnio” (ADORNO &

HORKHEIMER, 1985, p.15).

Torna-se necessário pensar a vida social impressa no movimento de construção do modo de

produção capitalista, visto este ser uma formação histórico-social na qual a propriedade privada e suas

relações concernentes – entre outras, o trabalho abstrato e a divisão do trabalho – aos poucos naquela

foram se alastrando ao se estabelecerem como suas mediações-chave. Podemos pensar toda esta

processualidade pelo prisma de uma trama de abstrações concretizadas, organizando-se e

reproduzindo-se até os nossos dias, num acirramento sem precedentes de seus princípios e de suas

conseqüências sociais. Nesse sentido, podemos ter subsídios para algo do entendimento dos homens

e mulheres catadores(as) de papel e de sua atividade, os diversos olhares sobre eles lançados ao

longo das décadas, e compreender, numa perspectiva crítico-dialética, seu movimento constituinte. Em

suma: ir além da linearidade mecânica (tida como “processo”) do olhar incapaz de ultrapassar a

dimensão institucional e cujo discurso baliza-se na transformação do(da) catador(a), de “inimigo da

limpeza urbana a parceiro prioritário” (Dias, 2002).

A figura do(da) catador(a) ajuda a compor a cidade de Belo Horizonte desde o momento em

que esta se põe de pé. Ou melhor: preferimos dizer que não é somente a forma abstrata do(da)

catador(a) que a compõe, mas os Joãos, Marias, Josés, pessoas que ajudaram a construir essa cidade

tornada metrópole. Pessoas essas de origens diversas, aportadas em Belo Horizonte na busca da

concretização do ideário de uma “vida melhor”, numa cidade tida como “cenário de oportunidades” e de

“esperanças”. Grande parte delas, a despeito de seus conhecimentos e de suas experiências de vida –

consideradas “dispensáveis” aos parâmetros do modelo de racionalidade que move a reprodução

capitalista da riqueza – na melhor das hipóteses acabavam obtendo os empregos socialmente tidos

como de menor status e remuneração. Outras, de “menor sorte”, acabavam vendo o tal sonho de uma

vida melhor se transformar numa constante e diária luta pela sobrevivência. Provinham (e provém) daí

as atividades consideradas “subterrâneas” como a catação de papel, os furtos, ou, no limite, recorrer à

caridade pública por meio da mendicância para garantir o mínimo para sua reprodução. Essa luta pela

70 TELLES (2001, p. 19-20, grifos meus) demonstra como o “pobre” no Brasil “…incomoda ao acenar o avesso do Brasil que se quer moderno e que se espelha na imagem - ou miragem – projetada das luzes do primeiro mundo”. Segundo a autora, nestes termos a pobreza vê-se “…transformada em natureza…” sendo o “pobre” “… considerado como resíduo que escapou à potência civilizadora da modernização…” tendo, portanto, “…que ser capturado e transformado pelo progresso”.

116

sobrevivência – paradoxalmente num momento em que o Brasil bebia da “poção mágica” do progresso

pela via desenvolvimentista de base urbano-industrial – é demonstrada no depoimento de Dona

“Dalva”, sobre a vida na rua ainda na década de 1950, em Belo Horizonte:

“Na época, quando eu tava com meus sete anos já tinha muita gente na rua catano papel e pedino

esmola. Eu conheci muita gente mais velha catano papel e pedino esmola na rua”. (...) Ali na Igreja São

José ficava cheio de gente catano papel e pedino esmola na rua. O padre protegia muito nós, né? A

mamãe já apanhou demais da polícia, não porque tava roubano, mas sim porque tava pedino esmola

ou então catano papel na rua (21/11/2005)”.

Eis aí o campo de “alternativas”, não raro, postas para o migrante. Não é nosso objetivo

discorrer aqui acerca da saga desse migrante. Ante a complexidade do problema social das migrações,

limitar-nos-emos a relacioná-lo no movimento passado entre o desenraizamento (a exclusão) e a sua

“inclusão”71 por dentro da sociedade capitalista. Destarte, poderíamos localizar a produção e a

reprodução da mais-valia social e a reprodução ideológica das relações de produção – contribuinte,

entre outras dimensões, do processo de metropolização de Belo Horizonte – produzindo o e sendo

produzida pelo migrante. A exemplo da ressalva feita no tocante à pessoa do(da) catador(a), não

queremos transformar o migrante numa categoria abstrata, mas tomá-la como quem vive as

contradições do espaço e do tempo tornados mercadorias, e, ao mesmo tempo e à sua maneira, lida,

consciente e/ou inconscientemente, com elas.

Para tanto, julgamos pertinente trazer à tona alguns depoimentos dos “catadores históricos”,

sendo que o porquê dessa denominação já foi explicitado na introdução desta pesquisa. São falas que

revelam a vida, tendo de se constituir enquanto tal, no chão da metrópole a partir da condição seja de

migrante strictu sensu, seja de filho de migrante – mas direta e indiretamente vivendo as dificuldades

postas por tal condição. Abaixo seguem, respectivamente, os depoimentos de três catadores históricos,

a saber: Dona “Dalva”, Dona “Esther” e Dona “Antônia”. O primeiro depoimento foi retirado da

dissertação de Mestrado de Maria Vany de Oliveira (2001), já citada anteriormente; os dois últimos

foram por mim mesmo coletados em entrevistas com Dona “Esther” e Dona “Antônia”:

“Eu sou de Belo Horizonte, mas minha mãe é do Serro. Minha mãe veio pra cá conseguir uma vida

71 Vale então completarmos esta idéia com as palavras de José de Souza Martins: “Nem todos os migrantes são um problema social, mas nas migração está envolvido, sem dúvida, um problema social. Onde está o problema social? Está na reinclusão, no problema da dificuldade da inclusão, na forma patológica da inclusão” (Martins, 2002b, p.127, os grifos são meus).

117

melhor. Só que chegou aqui, minha mãe também veio catar papel. Ah! Já tem uns 45 anos que ela veio

pra cá... Acho que tem mais! Já tem mais de 50 anos. Eu to com 50. Ela me ganhou aqui. Tem mais de

50 anos que ela mora aqui catano papel também. Ela veio pra cá conseguir trabalho e veio catar papel

(in: OLIVEIRA, 2001, p.54)”.

“Eu sou de Pitangui. A gente mudou pra qui, nós era tudo pequenininho. Lá era uma cidade fraquinha.

Então, a gente mudou pra cá pra melhorar a sorte. Nós tinha dois terrenos em Pitangui. Morava perto

do cemitério, perto da Santa Casa, mas acontece que não tinha recurso. O único recurso que tinha em

Pitangui pra nós era manga e mandioca” (04/06/2006).

“Nós chegamo de manhãzinha na rodoviária e ficamo por lá. Aí chegô um homem e perguntou assim: a

senhora é de onde? Aí eu comecei a chorar. A senhora é de onde? Oh moço, eu sou de Itambacuri!

Meus pais mora lá. Tô sem dinheiro, sem nada pra dá de comer pros menino, meu marido veio pra cá

mais eu ‘caçá’ uns parente. Tão falano pr’eu saí daqui com meus trem, pra onde q’eu vô? Ele falô

assim: beleza. A senhora tá com fome? Eu respondi: fome?! Oh moço, eu nem sei o que é mais fome!”

(21/04/2006)

Os três depoimentos mostram-se interessantes em vários aspectos para o entendimento do

significado do afluxo de pessoas provenientes “da roça” ou do “interior” para os grandes centros

urbanos. Percebe-se nas entrelinhas os desdobramentos do substancial, avassalador e contraditório

processo de transformação econômico-político-social brasileiro, com a passagem de um padrão

econômico e social colonial e agrário para um padrão urbano-industrial e capitalista, definitivamente

inserindo o país numa ordem social competitiva (FERNANDES, 2006). Há nesta contenda algumas

literaturas (PRADO JÚNIOR, 2004) que se apoiam numa vertente teórica que localiza tal processo na

chamada “modernização”, alavancada pela pujança do crescimento econômico brasileiro, permitindo a

saída do “atraso” em que nos encontrávamos até então, rumo à constituição de uma sociedade sob

novas bases: mais sólidas e coerentes com a “inerência dos novos tempos”.

Neste caso, o migrante poderia passar a experimentar os frutos do “desenvolvimento” e da

“modernização” da sociedade pela via da mobilidade social, desde que se “esforçasse” para tal. Ou

seja, estas pessoas passavam a conviver com valores e normas presididos pela moral burguesa da

realização humana pelo trabalho, a qual não poderia se dar sem que houvesse a disposição individual

à renúncia, à espera, à parcimônia etc. Sendo a produção e a reprodução da riqueza ideologicamente

concebidas não como produto de relações de exploração do trabalho pelo capital, mas como

empreendimento conjunto de trabalhadores e empresários, o trabalho esforçado e sistemático garante

118

o aumento da produtividade e a reprodução do capital e, simultaneamente, irriga o sonho da mobilidade

social do trabalhador como resultado de seus esforços individuais (MARTINS, 1979). Todavia, faz-se

necessário ressaltar que o mito da mobilidade social por meio do trabalho associado à renúncia, à

espera e à parcimônia, no nosso entender, vem sendo paulatinamente substituído pelo mito do trabalho

(mesmo o mais precário) como algo a ser louvado pelo seu “possuidor” num mundo em que a figura do

trabalhador nunca foi tão dispensável.

É importante reter que a realização da vida pelo uso e pela apropriação, o trabalho não voltado

para a acumulação de riqueza, ações e vivências desvinculadas do pragmatismo e do utilitarismo –

vistos na sociedade competitiva norteada pelos valores burgueses como sinônimo de “preguiça” e de

“ausência de projetos de vida” – passavam a ser, consciente e inconscientemente, sobrepostos por tais

valores. Entra aí a noção de “ambição positiva”, associada às conquistas materiais e demarcando as

conquistas subjetivas do reconhecimento social e da dignidade pessoal. Trazemos a seguir o

depoimento de Dona “Dilma” enfatizando a reforma de sua casa e a aquisição de móveis e toda a

parafernália eletrônica moderna com o dinheiro oriundo de anos dedicados ao trabalho da catação. A

conseqüência de todo esse esforço foi a conquista do respeito de todos na ASMARE, haja vista ela ter

se convertido numa espécie de “catadora padrão”, devido à sua produtividade semanal. Ambos os

depoimentos nos dão mostras da internalização de traços das aspirações tipicamente burguesas como

desdobramentos do modelo de “inclusão social” norteador do trabalho desenvolvido com os homens e

mulheres catadores(as) ligados à Associação, além de embeber a auto-estima e a vaidade de Dona

“Dilma” através do reconhecimento pelos companheiros do prodígio de seu trabalho:

“...Tem coisa q’eu num falo da ASMARE não. Foi lá q’eu consegui reformá minha casa. Tem meus

trocadim q’eu ganho que num é muito não (...), mas eu consegui reformá minha casa (...), eu investi

meus trocadim aqui ó, igual cê tá veno! Esses móvil aí tudo eu comprei aos poco, comprei a televisão

grandona, o som, ajudei muito no carro parado ali na garaje... Alguns móvil tá estragado porque os

minino mexe demais, mas taí” (09/04/2006).

“Na ASMARE eu tirei o primero lugar, o primero lugar de catadera e de honestidade. Num tem quem

trabaie igual a eu naquele lugar”! (09/04/2006).

Uma outra vertente teórica, de perspectiva crítica e contraposta à vertente supracitada, é

trazida para o debate na obra “Quando Novos Personagens Entram em Cena”, de Eder Sader (1995),

no momento em que o autor nos fala da trajetória dos migrantes na cidade de São Paulo. Segundo o

autor, nela “...vemos assinalados os mecanismos de exclusão, desenraizamento, marginalização, que

119

atingem os migrantes pobres nas metrópoles” (SADER, 1995, p.89), produzindo neles um sentimento

de rejeição e de desamparo devido à desqualificação de seu modo de vida – tido como “atrasado”.

Todavia, a caracterização do migrante no âmbito da perspectiva assinalada, ao mesmo tempo em que

tem a virtude de captar “...com precisão a perda de raízes, tem o defeito de fixar esse momento como

se fosse um atributo essencial do migrante” (SADER, 1995, p.90). Este limite analítico mencionado

pode ainda ser identificado quando percebemos a trajetória do migrante com base no já dito ideário de

uma “vida melhor”, contraposto às dificuldades deixadas “para trás”, no local de origem. Isto é, as

referências desse ideário estão ancoradas nos valores permeadores do modo de vida moderno e

urbano, que poderiam ser ilustradas quando Dona “Esther” fala que Pitangui, sua cidade natal, “era

uma cidade fraquinha” ou que “não tinha recurso”. Entretanto, tornar a análise absoluta neste aspecto

seria negar muitos dos traços rurais – como a vida comunitária e as relações pessoais (não deixando

de lado suas ambigüidades e contradições) – ainda presentes nas periferias metropolitanas, não

obstante os desafios e dramas cotidianos ameaçadores de sua existência.

Talvez a análise mais expressiva das tensões e contradições presentes no seio do

alastramento das relações tipicamente capitalistas, com estas passando a abarcar a totalidade da vida

social através da programação do cotidiano, esteja em Henri Lefebvre (1991). Num dado momento de

sua obra “A vida cotidiana no mundo moderno”, ao analisar a sociedade francesa do pós-guerra,

permeada por ideologias que exortavam sua “reconstrução” calcada nos valores do trabalho, da

produção e do planejamento econômico, enfatiza o dilaceramento da riqueza da vida ocultada por

aqueles que pretensamente punham-se como demiurgos do seu bem-estar. A família burguesa

definitivamente erigia-se como modelo de unidade social e seus valores efetivavam-se como

referenciais, pressupondo (e sendo supostos pelos) modos de vida. Já o modo de vida camponês,

donde o modo de vida operário retém muito de seu significado, parecia se perder na avalanche das

determinações e prescrições da vida urbana ainda mais intensa – límpida materialização da

organização social em curso. Provém daí o que o referido autor chama de “miséria do cotidiano” e suas

conseqüências:

...os trabalhos enfadonhos, as humilhações, a vida da classe operária, a vida das mulheres sobre as quais pesa a cotidianidade. A criança e a infância sempre recomeçadas. As relações elementares com as coisas, com as necessidades e o dinheiro, assim como com os comerciantes e as mercadorias. É o reino do número (...). O repetitivo. A sobrevivência da penúria e o prolongamento da escassez: o domínio da economia, da abstinência, da privação, da repressão dos desejos, da mesquinha avareza (LEFEBVRE, 1991, p.42).

Eis um importante ponto a ser levado em consideração nesta discussão: mesmo após a

constatação de que o “sonho de uma vida melhor” em muitos aspectos converte-se em agruras e

dificuldades para o migrante, ainda assim ele é visto como passível de realização, diferentemente

120

daquela possível no local de origem. Ora, vivemos num modelo civilizatório notabilizado pela formidável

e pujante produção dos meios de vida, ontem e hoje dados como promessas a serem concretizadas –

e produtoras de felicidade – na inexorabilidade do “desenvolvimento”, abrindo caminho crescente rumo

ao “reino da liberdade” – na qualidade de práxis ampliada dos homens. Mas é a apropriação privada

desses meios de vida, ocultada por discursos sutis e ao mesmo tempo truculentos – produtores de

verdades pela via da verdade falsa ou, nos dizeres de Debord (1997, p.16), transformando-a num

“...momento do que é falso” – que retiram desse mesmo modelo civilizatório sua conotação vigorosa e

converte-no em retrocesso e barbárie.

O migrante vive todo este conjunto de contradições; seu sofrimento é tributário das

materializações absurdas dos seus processos. Suas alegrias e eventuais conquistas também estão

localizadas nesse mesmo celeiro, ajudando na sua legitimação e (re)produção. Por isso, longe de

tomar como um epifenômeno a alienação do migrante na reprodução de sua vida por dentro de nossa

mistificadora e mistificada sociedade, não podemos, a título de exemplo, incorrer no simplismo de opor,

maniqueisticamente, um “rural idílico” a um “urbano demoníaco”. Da mesma forma, as dificuldades e

privações do migrante, seu sofrimento na metrópole que o nega para incluí-lo à sua maneira, ausentes

e desvinculadas do bálsamo atenuante das dores, presente na conquista miúda da vida cotidiana,

fazendo-a caminhar, contra tudo e contra todos, no vai e vem do mundo.

Aproveitamos então para destacar o depoimento de Dona “Esther” acerca das “peripécias”

realizadas em Belo Horizonte junto com seu irmão, fazendo da arte de cantar, também a arte de tentar

sobreviver na metrópole capitalista:

“A gente costumava viajar demais. A gente cantava muito. Um dia tava sorrino, outro dia tava chorano.

Mas de qualquer forma, tinha que cantar, porque era aquilo q’eu ganhava o meu pão. Nós fazia show.

Hoje eu num faço mais não. Ele fazia a voz grossa e eu fazia a fininha. Em qualquer uma praça a gente

costumava cantar. Aqui em Belo Horizonte, ali na Igreja São José, pelo menos, nos cantamos muito.

Na rua Pescada, Conceição do Mato Dentro, Congonhas do Campo... onde tinha festa a gente ia. Toda

festa que tinha nós ia porque nós sabia que dava dinheiro” (04/06/2006).

O trecho acima é revelador de todo o movimento de alegrias e tristezas, de conquistas e de

perdas, da vida orientada por tempos e movimentos que há muito deixaram de ser autônomos, fazendo

ambos os irmãos buscar “ganhar o pão” em meio às incertezas de cada dia. Ele nos revela também a

incorporação, nas práticas outrora fundadas no uso, de outros valores, internalizados como artifícios

táticos de sobrevivência num mundo mediado e canalizado pelo dinheiro. Neste sentido, o ato de

cantar inscreve-se na vida de Dona “Esther” e de seu irmão, como prática contornada por traços

121

mercantis, materializada no descolamento da prática de seu exercício gratuito. Nota-se algo de

fragmentação e recomposição forçada, ou seja, “...a unificação que [aqui se] realiza é tão-somente a

linguagem oficial da separação generalizada” (DEBORD, 1997, p.14).

Associamos as processualidades aludidas à produção do espaço em seu conjunto, nos

embates ora latentes ora manifestos provocados no e pelo seu movimento. Sérias vêm sendo as

dificuldades engendradas pela disseminação de leituras parciais e fragmentadoras do espaço, as quais

dão a ele apenas a “qualidade” de produto, sem pensá-lo também como produtor de práticas, de

vivências e de conflitos. Em “A produção do espaço”, Henri Lefebvre (2007), se vendo diante dos

inúmeros níveis, fragmentações e especializações no processo do conhecimento da realidade social e

do espaço como seu produto, distanciando esse conhecimento ao invés de aproximá-lo de uma prática

reflexiva e transformadora, realiza um amplo esforço de chegar a uma “teoria unitária do espaço” no

intuito de lidar com a questão. O “espaço social” apresenta-se em sua obra como um importante

conceito na compreensão da realidade social e dos processos que a constroem.

Assim, o espaço social seria o espaço da reprodução das relações (sociais) de produção

(LEFEBVRE, 2007), espaço que no capitalismo tardio converteu-se em reduto do concebido, “campo”

onde se desenvolvem estratégias, mas sem deixar de ter seus conteúdos de espaço vivido e

percebido, onde a vida se desenrola em sua miséria e sua riqueza. Esse espaço, que “...implica,

contém e dissimula relações sociais” (LEFEBVRE, 2007, p.13), reproduz as e contribui para a

naturalização das relações de propriedade, pois retrata e supõe o trabalho abstrato e a divisões social,

técnica e territorial do trabalho. Ele é lançado à condição de força produtiva pelas relações de produção

que operam no capitalismo, não raro como uma avalanche sobre os modos de ser e viver precedentes,

ainda que nos seus interstícios hajam contornos das relações marcadas pela afetividade e pelo lúdico.

É um espaço cujos agentes que o produzem, que o tomam de assalto com suas estratégias,

introduzem de maneira meticulosa uma docilização monitorada, mas não sem questionamentos e

transgressões – conscientes ou não.

As representações do espaço (LEFEBVRE, 2007) operadas pelos “homens de ciência” (os

tecnocratas) para se legitimarem lançam mão de índices, médias aritméticas, desvios padrões,

reduzindo-o a uma grandeza abstrata visando à concretude da ação do poder hegemônico. Contudo,

nos escombros da destruição provocada pela frieza dos números e do cálculo renascem outros

simbolismos, outras práticas mais ou menos espontâneas. O espaço social pressupõe um tempo

social, que fragmenta o heterogêneo para o recompor, homogeneizando-o: funciona como abstração

que pesa sobre a vida, ordenando e cronometrando os trajetos e os deslocamentos. Por tudo isso:

“Não há um espaço social, mas vários espaços sociais, e mesmo uma multiplicidade indefinida, da qual

o termo ‘espaço social’ denota o conjunto não-enumerável” (LEFEBVRE, 2007, p.15, o grifo é do autor).

122

A complexidade do espaço social não pode ser percebida e muito menos explicada por um campo

específico da ciência, pois, se assim o fosse, a leitura seria restrita e não desvelaria a trama de

relações que o compõe:

Ora, o espaço (social) não é uma coisa entre as coisas, um produto qualquer entre os produtos; ele engloba as coisas produzidas, ele compreende suas relações em sua coexistência e sua simultaneidade: ordem (relativa) e/ou desordem (relativa). Ele resulta de uma seqüência e de um conjunto de operações, e não pode se reduzir a um simples objeto. Todavia, ele não tem nada de uma ficção, de uma irrealidade ou “idealidade” comparável àquela de um signo, de uma representação, de uma idéia, de um sonho. Efeito de ações passadas, ele permite ações, as sugere ou as proíbe. Entre tais ações, umas produzem, outras consomem, ou seja, gozam os frutos da produção. O espaço social implica múltiplos conhecimentos.”(LEFEBVRE, 2007, p. 5)

Além do mais, é a multiplicidade de percepções e de vivências do espaço e do tempo que deve

ser contemplada em qualquer análise que encabeçe uma crítica aprofundada. Acrescente-se aí que

tratar de maneira pertinente as relações imediatas entre o espaço e o tempo não é transformar os

sujeitos em agentes de sua sujeição, dando a eles a “oportunidade” de decidir a melhor forma de fazê-

lo. Trata-se de possibilitá-los oferecerem a si mesmos as melhores maneiras de transformarem suas

vidas pelo conhecimento radical da realidade existente, transformando a crítica no combustível da ação

transformadora. Nossas reflexões são corroboradas, pelas palavras de Harvey (1994):

Considero importante contestar a idéia de um sentido único e objetivo de tempo e de espaço com base no qual possamos medir a diversidade de concepções e percepções humanas. Não defendo uma dissolução total da distinção objetivo-subjetiva, mas insisto em que reconheçamos a multiplicidade das qualidades objetivas que o espaço e o tempo podem exprimir e o papel das práticas humanas em sua construção (HARVEY, 1994, p.189).

Ao entendermos os modos pelos quais a produção do espaço como mercadoria reduz as

possibilidades do uso ao inscrevê-lo nos termos da troca mercantil – fazendo dele, paradoxalmente,

uma “raridade” – podemos perceber que as provações impostas ao migrante na sua chegada aos

grandes centros urbanos também são desveladas no âmbito da busca pela moradia, na construção de

um novo lar. Este lugar, mesmo quando apresentando uma simplicidade irrisória ou reduzido ao lugar

da “reprodução da força de trabalho”, é carregado de simbolismos e conotações porque relativo ao

“habitar” (LEFEBVRE, 2002), à magia proporcionada pelo conforto ao corpo e à consciência,

contribuindo na produção de relações afetivas e sociabilidades diversas. Trazemos então, mais dois

depoimentos. O primeiro deles é de “Paulo”, contando-nos sobre sua chegada à capital seguida do

estabelecimento no aglomerado da Serra. O segundo depoimento é de Dona “Dalva”, que na qualidade

de filha de migrante, experimentou as agruras da conquista de um teto. Ambos nos auxiliam a melhor

entender como todo o campo de dificuldades encontradas, embora recheados de desafios, inaugura

123

práticas simples, formadoras de sociabilidades, retirando um pouco do cinzento da vida:

“Eu vim pra Belo Horizonte, eu ia fazer um ano. Meu pai veio pra cá porque minha avó já morava aqui.

Ela morava na Serra do Capivari. Aí, trouxe minha mãe pra cá. Eles morava todo mundo lá. Na época,

na Serra do Capivari nem tinha água. Tinha água mais era na máquina. Aí, minha mãe perguntava os

outros se queriam encher o tambor. Ela vivia carregando água na cabeça pros outros com nós

pequenininho, porque meu pai trabalhava” (In: OLIVEIRA, 2001, p.58).

“Mamãe chegou aqui e foi logo pra Pedreira Prado Lopes, porque tinha umas pessoas que eram do

Serro e que moravam lá na Pedreira. Então, mamãe veio morar na casa deles. A Pedreira é ocupação,

uma favela (...) Aqui em Belo Horizonte já morei em vários lugares. Já morei em Venda Nova, bairro

Aparecida, só no bairro Aparecida eu morei três vezes. Depois mudamos pro Céu Azul. Compramos

um lote no Céu Azul e mudamos pra lá. Nas favelas, era tudo invadido, era ocupado, né? A gente

carregava tábua. Fazia de tábua. A gente levava as tábua aqui da cidade e fazia os barraquinhos de

tábua pra morar” (25/11/2005).

Tais dificuldades, desafios, alegrias, tristezas não são manifestações dadas ao largo, fora da esteira

das relações sociais num nível mais amplo. Ao mesmo tempo, não são meras extensões de seu

conjunto, na qualidade de aparência fenomênica desarticulada da essência que lhe contém. Feitas as

devidas ressalvas, julgamos pertinente localizar os supracitados depoimentos a partir do que

expressam, como sentido do vivido destas pessoas. São relações se dando na esteira e também no

limiar entre as relações sociais e o imediato-mediato. Elas nos permitem compreender como a chegada

a Belo Horizonte (ou a (sobre)vivência profunda no seio da condição daquele que é migrante, na

qualidade de filho deste), a ocupação das áreas periféricas, a auto-construção das habitações, a

(sobre)vivência em meio à negação do mínimo para a reprodução da vida (refletida na dificuldade para

se obter a água) não podem vir desarticuladas dos processos em torno do desmesuramento do tecido

urbano. E é no âmbito de tais processos que se conformam as periferias empobrecidas, a partir de

loteamentos carentes do mínimo de infra-estrutura básica. Ermínia Maricato (1982), embora realize

uma leitura bafejada pelo privilégio às formas – em vários momentos apoiando-se numa concepção

reduzida de bem-estar –, caracteriza as periferias urbanas como a forma espacial desses loteamentos:

…o espaço da residência da classe trabalhadora ou das camadas populares, espaço que se

estende por vastas áreas ocupadas por pequenas casas em pequenos lotes, longe dos centros de comércio ou negócios, sem equipamento ou infra-estrutura urbanos, onde o comércio e os serviços particulares também são insignificantes enquanto forma de uso do solo (Maricato, 1982, p.82).

124

Para além da forma, o processo de periferização guarda em seus conteúdos a negação do

urbano como possibilidade e realidade para amplas parcelas sociais. Ele é expressão do que é dado a

tais parcelas: simulacros de bens sociais subsumidos a um espaço (re)produzido única e

exclusivamente na qualidade de produto de relações e atividades mercantis, onde operam as

estratégias engendradoras do pleno processo de valorização do capital. Podemos dizer que o espaço,

sendo um produto social, lócus onde os agentes do poder econômico (mercado imobiliário, por

exemplo) e político (aqueles que implementam as leis de uso e ocupação do solo) fazem valer seus

interesses, separa para reagrupar, “...deve recuperar os indivíduos isolados como indivíduos isolados

em conjunto... [grifos do autor]” (DEBORD, 1997, p.114). Suas gentes precisam ser incorporadas como

produtoras e consumidoras de mercadorias – mesmo em tempos anunciadores do fim do sonho da

mobilidade social –, mas devendo ser mantidos longe, até mesmo do consumo pleno do espaço,

enquanto materialidade e mercadoria. Todo este movimento considerado se dá, vale dizer, no nível de

uma reprodução social capturada pelos tentáculos da reprodução do capital, a partir da qual dimensões

da vida cada vez mais longínquas submetem-se aos seus desígnios. A atividade da catação, ao

aprofundar sua orientação nos termos das determinações do trabalho abstrato, coaduna-se ao

embotamento de possibilidades outras a essa reprodução social e contribui para a reprodução

ampliada de suas contradições.

Ou seja, as ditas periferias urbanas, na qualidade de espacialidades que contêm a “prova viva”

de uma deliberada e institucionalizada política de apartação social, experimentam, concomitantemente,

a integração precária e subalterna nos eixos de reprodução econômica do capitalismo. Mobilizamos

então o conceito de “prática espacial” trazido por Henri Lefebvre (2007) para compreendermos aquilo

que é “oferecido” para as pessoas a partir de um espaço que prescinde delas na sua produção pelos

agentes tecnoburocráticos. Sendo esse espaço uma abstração-concreta destoada do viver como

prática espontânea, já que (re)produzido como mera força produtiva, o econômico prevalece nele como

instância superior (sobredeterminando as demais instâncias da vida), mesmo quando o estetismo se

encarrega de dar-lhe uma aparência de espaço de recuperação72. Como pensar as práticas espaciais

em meio a todos esses constrangimentos? Segundo Lefebvre, (2007, cap 01, p.37), elas estariam

72 Exemplar neste caso tem sido o “Vila Viva”, um programa municipal (contando, inclusive, com recursos do Banco Mundial) em atuação no Aglomerado da Serra que se propõe a realizar amplas melhorias na infra-estrutura do local, “removendo” várias famílias de áreas de risco e reassentando-as em conjuntos de apartamentos próximos ao aglomerado. Há, ainda, o projeto “Favela Bela”, cujo objetivo é rebocar e pintar as casas e barracos do Aglomerado Santa Lúcia. Este projeto está sendo realizado em conjunto por moradores e a iniciativa privada, tendo como objetivo principal, de acordo com seu coordenador, o líder comunitário Cristiano da Silva, “resgatar a auto-estima” dos moradores e “fazer uma favela diferente por dentro e por fora”. Até novembro de 2006, haviam sido beneficiados 269 imóveis. Um aspecto “interessante” é o requisito utilizado pela coordenação para a escolha dos “beneficiados”: “...todos devem estar bem posicionados, em lugar que possam ser vistos”. Como um dia escreveu Debord (1997, p.16): “...o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana (...) como simples aparência” [o grifo é do autor].

125

associadas “...estreitamente, no espaço percebido, a realidade cotidiana (o emprego do tempo) e a

realidade urbana (os percursos e redes ligando os lugares do trabalho, da vida ‘privada’, dos lazeres)”.

Em seguida, o mesmo autor põe em questão que essa é uma: “Associação surpreendente, pois ela

inclui em si a separação exacerbada entre esses lugares que ela religa”. Logo abaixo colocaremos à

mesa as práticas espaciais realizadas pelos homens e mulheres catadores(as) da papel da ASMARE.

O direito à cidade (LEFEBVRE, 2004) afasta-se da concepção radical de democracia e política

para se configurar como mera obtenção de traços do urbano, revestidos tão-somente de sua

materialidade básica. A dinâmica processadora do par dialético desenraizamento/integração forçada e

subalterna do morador das periferias deve guardar, fidedignamente, semelhança com os fundamentos

que presidem a sociedade burguesa. Assim, a produção do espaço pelos agentes hegemônicos, nos

dizeres de Lefebvre (2003, p.26) “...é um esquema do qual essa sociedade se serve para tentar

constituir-se em sistema, para atingir a coerência”. Para tal, a organização social vigente, cuja

expressão mais límpida é a práxis danificada, opera no mundo e sobre si mesma: “Mascarando suas

contradições, inclusive as do próprio espaço, esse caráter ao mesmo tempo global e pulverizado,

conjunto e disjunto” (LEFEBVRE, 2003, p.26).

Temos, pois, a ausência dos sentidos do uso (reduzido a um resíduo) presente no espaço

tornado amorfo por esses agentes, ganhando ares de limpidez democrática, supostamente destinado e

construído a partir do que (aparentemente) seria a vontade geral da sociedade. Mas, ao contrário, é no

e pelo espaço que se sacramenta o aprisionamento das massas que nele, e não com ele, se

relacionam. “Esse espaço abstrato reúne o espetáculo e a violência, a eficácia do espírito analítico na e

pela dispersão, separação, segregação” (LEFEBVRE, apud DAMIANI 1981, p.355). São, portanto,

modulações colocadas como pano de fundo para a realização da forma dicotômica espaço/sociedade

que invadiu o conhecimento – inclusive aquele que se produz no interior da Geografia – e a prática, e

que Ruy Moreira (1994) contesta, ao afirmar que: “O espaço é a sociedade pelo simples fato de que é a

história dos homens produzindo e reproduzindo sua existência por intermédio do processo de trabalho”

(MOREIRA, 1994, p.90).

Sendo assim, de que modo se realiza no e através desse espaço hegemônico e

tecnoburocraticamente concebido da metrópole belohorizontina, o movimento construtor das

sociabilidades e das vivências destes homens e mulheres catadores(as) de papel da ASMARE – que,

como vimos, também são migrantes (ou seus filhos)? Devemos articular tal movimento àquele através

do e no qual as práticas espaciais são propiciadas para estas pessoas. De que forma elas percebem

suas vidas e suas dificuldades no torvelinho da metrópole, entrecruzada por uma série de

determinações, não raro em guerra aberta com seus modos de experienciar o tempo e o espaço?

No final da década de 1980, dormir na rua ou nas “malocas” significava para as pessoas da

126

catação simultaneamente a falta de moradia digna e a tensa vigília sobre o “produto” de seu trabalho

para que a polícia ou um “concorrente” não o tomassem – fato que fazia do carrinho o seu próprio

“teto”. Esta combinação era um tanto intragável para os olhos e os narizes burgueses, à época já

aninhados aos primeiros postulados do que viria a se chamar “planejamento estratégico”73. A fundação

da ASMARE, em 1990, trouxe com ela alguns requisitos para a aceitação de novos associados. Um

deles consistia no consentimento do(a) catador(a) a deixar a rua e procurar moradia fixa. Embora não

deixe de apontar para alguma conquista em relação à atroz condição do “morar na rua”, que a

obtenção do endereço fixo tenha trazido um sentimento de dignidade e auto-estima para muitos dos

“agraciados”, esta não pode ser tomada como realização plena quando sabemos dos termos através

dos quais o solo urbano é regulado. Ora, sendo o espaço uma mercadoria situada nos marcos da

propriedade da terra, torna-se quase um truísmo dizer que não são as parcelas mais valorizadas (e, por

isso mesmo as que dispõem de maior materialidade) aquelas a serem disponibilizadas aos

catadores(as) que deixaram de viver nas ruas. Como aduz Lefebvre (2003, p.67): “...o espaço é

rarefeito para ‘valer’ mais caro; ele é fragmentado, pulverizado, para a venda no atacado e no varejo.

Ele é o meio das segregações”. E são as longínquas e precárias periferias ou as ocupações em

terrenos irregulares, com todos os constrangimentos e privações possíveis, os locais a abrigar esses

homens e mulheres.

Na mesma medida, ao invés de propiciar um debate aprofundado acerca das problemáticas da

pobreza e do déficit de moradias no Brasil, a burguesia reproduz em grau superior as contradições do

espaço ao engendrar feições mais opacas à segregação espacial. Parafraseando Engels, quando este

se refere aos abjetos bairros operários londrinos: a burguesia prefere afastar a pobreza para as bordas

da cidade a lidar seriamente com a questão. Neste ínterim, o poder público constrói os precedentes

para exercer a máxima vigilância sobre o espaço “público”, impedindo, desde meados de 2006, a

separação (triagem) de materiais recicláveis feita por catadores(as) nas ruas de Belo Horizonte.

Entretanto, “cuidar” para que o(a) associado(a) adquira o tal “endereço fixo” na periferia expõe

algumas contradições, por exemplo, entre a maneira pela qual ele é instado a procurar moradia e as

condições objetivas que o assolam no deslocamento de casa para o trabalho, como na situação de

uma catadora com quem conversamos por diversas vezes. Morando atualmente num bairro de Ibirité –

município limítrofe com Belo Horizonte –, mas impossibilitada de ir pra casa todos os dias devido à

grande distância a ser percorrida (gerando um tempo de deslocamento de cerca de 1 hora), e o número

insuficiente de vales-transportes recebidos (proporcionais à “insuficiência” de sua produtividade

73 Sobre a temática citada, sugerimos o texto “Pátria, empresa e mercadoria”: notas sobre o planejamento estratégico da cidade do Rio de Janeiro”, de autoria de Carlos Vainer (2001).

127

mensal), “optou” por dormir num depósito próximo à Associação. A vida ou a quase ausência dela

levada por essa mulher na metrópole acha-se distanciada como nunca da miríade das próprias

possibilidades por ela trazidas. Até mesmo o “Reciclo ASMARE Cultural” (ver fotos 6 e 7), casa de

shows e restaurante “temático” localizado à Avenida do Contorno, em frente à ASMARE74, e cuja

decoração interna contém os signos alusivos à reciclagem dos resíduos sólidos e ao “meio ambiente”,

embora carregue o nome da Associação não está voltado para seus associados. Quando muito, alguns

egressos da vida nas ruas da metrópole, após passarem por oficinas de “qualificação profissional”,

compõem seu quadro de funcionários de baixa qualificação (garçons, caixas ou seguranças). Sempre

perguntávamos às pessoas associadas se já haviam ido ao “Reciclo” para dançar, divertir-se. A

resposta quase sempre era a mesma: “...aquele lugar alí num é pra nóis não. Ali só dá bacana...”

Foto 6: Fachada frontal do “Reciclo 1”. Autor: Luiz Antônio E. de Andrade. Foto tirada em 07/06/07.

74 Foi aberto recentemente o “Reciclo 2”, restaurante, cafeteria e loja de artigos elaborados com materiais recicláveis nas oficinas do “Reciclo 1”. Localizado na região Centro-Sul de Belo Horizonte, o estabelecimento está voltado para uma clientela de níveis de renda “A” e “B”.

128

Foto 7: Fachada frontal do “Reciclo 2”. Autor: Luiz Antônio E. de Andrade. Foto tirada em 10/06/07.

A sobreposição de carências e dificuldades, descambando no embotamento da consciência

crítica sobre o seu lugar e suas potencialidades no terreno da luta de classes, revela-se na produção

da rotina diária de boa parte dos(as) associados(as) que a absorvem como se esta fosse justificável

porque a eles inerente. Tal rotina consiste, basicamente, em acordar logo cedo (por volta das 6 horas

da manhã), sair de casa, realizar um longo e desgastante trajeto num ônibus lotado até o centro, dirigir-

se à ASMARE, iniciar os trabalhos dando prosseguimento à separação do material recolhido no dia

anterior, sair para a catação no final da tarde e começar a separar o material à noite até por volta das

21 horas para, por fim, pegar novamente o ônibus para casa, tomar banho, assistir a novela (quando dá

tempo) e dormir.

Embora o contexto histórico e geográfico seja um tanto distinto, associamos o empobrecimento

da vida das pessoas que trabalham na catação pela prisão do trabalho estranhado ao “homem de 35

anos”, personagem arquetípico da “Era da felicidade” que marcou o Estado de Bem-Estar Social

europeu, exemplo dado por Raoul Vaneiger (2002). Ao “viver” uma gama de papéis por meio de

estereótipos produzidos e definidos “de fora”, o “homem de 35 anos” perde-se em si mesmo e busca

atenuar suas angústias no consumo e na parcela de poder aparente que lhe foi dada para que assim

fique calado e não questione o existente: “Durante breves momentos, a sua vida cotidiana liberta uma

energia que, se não fosse recuperada, dispersa e dissipada nos papéis, bastaria para subverter o

universo da sobrevivência” (VANEIGER, 2002, p.145).

Quanto aos homens e mulheres associados à ASMARE, a vida parece se apresentar pelo

129

embuste da condição de trabalhador da catação, papel a ser desempenhado sem hesitações, devendo

ser aceito de “bom grado” num universo social em que a Associação deve ser preservada como está. A

“inerência” da condição de catador(a), embora traga uma mistura de resignação, orgulho e desespero,

aparece reforçada no imaginário de cada uma dessas pessoas, inclusive pelo que chega até elas com

a disseminação de notícias contendo ameaças de privatização da coleta seletiva que sempre batem à

porta, trazendo consigo o risco iminente da volta para as ruas. A introjeção de tais ameaças aparecem

na fala de Dona “Dalva” com recorrência:

“Olha, aqui [na ASMARE] pode até num está do jeito que a gente quer, mas aqui é uma conquista, é

melhor do que ficá na rua. Os grande tudo qué isso aqui, já ouviu falá? É meu filho... tão querendo

privatizá a coleta... os grande num qué sabê de nóis não...” (31/05/07).

Associando a rotinização da existência através da imposição dos tempos e espaços mediados

pelo trabalho com as relações e a convivência entre as pessoas da catação dentro da ASMARE,

algumas pistas podem nos ser dadas acerca da produção do catador(a) que se quer. Apresentamos a

seguir dois depoimentos, respectivamente de Dona “Antônia” e Dona “Dilma”, com cada uma delas

falando um pouco sobre o significado da Associação em suas rotinas diárias.

“A gente achano um local pra trabaiá em paz, trazeno todo dia um bucadinho pra casa, é o que importa

(...). A gente vai pra ASMARE... Qué vê: às vêis eu saio daqui nervosa, arrebentano praqui abaixo... Aí

eu chego lá, a Dona ‘Esther’ vem contá caso mais eu, os guarda nosso lá brinca mais eu lá. Só aqueles

‘papelero’ que num entende a gente que é ignorante (...). Eu saio daqui 7 horas, lá abre 8 horas. Aí eu

8 horas já tô trabaiano (...). Eu primeiro quando dá pra descarrega, que o caminhão chega, aí eu

começo a separá. Aí deu 2 horas [da tarde] eu tenho que pôr o carrinho no ponto. Eu volto 3 horas, aí

volto pra separá mais. Ah, é muita alegria...!” (21/04/06)

“Chego lá [na ASMARE] 8 e meia, 9 horas. Tem vez qu’eu pego o ônibus aqui 07 e 15 e chego em

casa 10 horas da noite. ‘Trabaio’ bom, ué? Agora eles puseram um ‘bebedor’ pra gente lá, né? Acho

que eles ficaram com vergonha porque a ‘reportage’ foi lá (...) a gente tava bebeno resto de gelo, tava

bebeno água do Geloso, era do Geloso a água, se quisé tem que ir pra ‘tornera’. A gente ficava com

medo de ‘derretê’ as ‘tripa’.., né? Porque água assim derrete as ‘tripa’” (09/04/2006).

É possível verificar nos depoimentos acima a ambigüidade que permeia a percepção destas

mulheres sobre a Associação e o significado dela em suas vidas. Embora o trabalho ali seja extenuante

130

e apresente altos graus de insalubridade e periculosidade (situação agudizada se pensarmos que

ambas já passaram dos 55 anos), elas parecem resignadas com a precariedade presente (ou

inerente?), pois é esse mesmo trabalho que fornece para elas o “bucadinho” levado para casa.

Outrossim, é de suma importância apreender a dimensão da ASMARE percebida pelas mulheres dos

depoimentos: trata-se de um lugar, que remete ao afetivo, trazendo-lhes algo das sociabilidades,

conquistadas pelos laços de confiança. No entanto, são tais referências simbólicas, associadas a

aspectos ligados ao vivido (por exemplo, a maneira pela qual o box individual é “decorado” por cada

um), que nos ajudam a compreender como esses verdadeiros espaços de representação (LEFEBVRE,

2007), ora desvinculados dos ordenamentos produtivistas, ora submetidos à racionalidade instrumental

– pesando com seu produtivismo sobre todos –, atenuam o estranhamento propiciado por esta última

(ver foto 8).

Foto 8: Box interno do galpão da ASMARE, localizado à Avenida do Contorno. Ver o detalhe do som e seu caráter de objeto atenuador da dureza do trabalho da catação. Autor: Luiz Antônio E. de Andrade. Foto tirada em 12/04/06.

É por isso que transitar de uma periferia longínqua até a área central dentro de um ônibus

desconfortável não se constitui na maior dificuldade: a frieza dos trajetos de casa ao trabalho – dentro

dos tempos por ele definidos –, conduzindo antes ao tédio, são muitas vezes suprimidos pela idéia de

que se está indo ao trabalho, como qualquer pessoa digna. Não estamos aqui para questionar a fruição

e/ou decepções vividas por essas pessoas: não temos (e não queremos ter) este poder, pois tais

sentimentos são próprios de cada um. Entretanto, não podemos admitir que esta realização se dá, em

nossa sociedade, na plenitude de suas potencialidades. Reiteramos a programação da cotidianidade

como programação que se instala nos mais longínquos recônditos da vida, reificando as relações e

131

alienando as pessoas do mundo no qual vivem, além de aliená-las da grandeza de seu poder

transformador do existente. As palavras de Lefebvre (2007, p.12) nos ajudam neste entendimento: “A

aparência e a ilusão não se encontram no uso e no gozo, mas na coisa como suporte de signos e

significações falaciosas”. Sendo assim, questionamos as modalidades através das quais as

satisfações, os desejos, as insatisfações, em suma, a maneira como vários desejos que assaltam os

homens e mulheres modernos (entre os quais os que realizam a atividade da catação) são

proporcionados. Sabemos que o trabalho abstrato e a realização dos desejos e supressão das

angústias no consumo são mediações umbilicalmente presentes na cotidianidade, ideologicamente

colocadas como única maneira de se viver a vida.

Com efeito, a ASMARE não só se incorpora ao espaço abstrato, transformando-se em

instância menor de seus pressupostos, mas também a ele reage, como uma de suas instâncias. As

representações do espaço, balizadas pelas relações de produção (com todas a suas interdições,

coerções e coações), manifestam-se na forma dos mecanismos administrativos e institucionais, pelos

imperativos da racionalidade de mercado (determinando preços, níveis de produtividade, maneira como

são feitas as negociações com compradores etc), acabando por orientar as práticas dos que dela

fazem parte, além de seu ser e seu viver. O trabalho como ideologia e como prática traga para si esses

aspectos da vida, levando com eles as energias vitais as quais serão norteadas para a produção

alimentadora do mercado da reciclagem. “Melhorar a vida” passa então a significar para os homens e

mulheres catadores(as) associados(as) ser mais produtivo e “consciente” de suas capacidades para o

trabalho na Associação. Deriva daí e ao mesmo tempo torna-se um condicionante na criação dos

espaços de representação – controlados e vigiados para que não haja “surpresas”, como revoltas ou

questionamentos mais agudos. Na mesma medida, argumentamos mais uma vez, a manutenção desta

“passividade” implica no incentivo às práticas espaciais doadoras de respaldo à ASMARE como espaço

de convivência e de reconhecimento de alteridades – não sem contradições.

Ainda no âmbito das práticas espaciais vividas pelos homens e mulheres catadores e o

embotamento da capacidade de viver plenamente o espaço como condição e resultado do viver

plenamente a vida, qual é o significado da rua para eles? O depoimento a seguir, concedido por Dona

“Dilma” é expressivo para a compreensão desse significado:

“A ‘rua’ era boa demais! Tinha papel que cê num güentava carregá, os papel pesado. Hoje tem nada

não, hoje tem muito é poquinho, tem é lixo, que a gente aproveita os papel branco. Os banco tão

vendeno, as faxinera tão vendeno... A ‘rua’ num é mais pra trabaiá não, num tá boa mais não”

(09/04/2006).

132

Salta aos olhos como a rua adquire o significado de local onde está a matéria-prima para o

trabalho desta mulher, onde se criam as condições para o seu exercício. A rua também não parece ser

mais do que o simples local de passagem e de travessia, seja com o carrinho para a catação dos

materiais disponíveis, seja para a caminhada a pé até o ponto de ônibus de retorno para casa. A rua,

ao ser devastada pelo mundo da mercadoria, converte-se no local onde “...a troca e o valor de troca

prevalecem sobre o uso, até reduzi-lo a um resíduo” (LEFEBVRE, 2002, p.31). Sociabilidades existem?

Sim, porém devemos examinar as mediações interpostas na sua construção. O tempo do trabalho

prescreve a permanência de Dona “Dilma” na rua, delibera em torno dos diálogos que ela mantém com

as outras pessoas e das suas permanências, que devem ser rápidas e ágeis.

A rua da metrópole belohorizontina situa muito bem o aprofundamento abissal da separação

entre o público e o privado: o primeiro é a dimensão atribuída (porque relegada) aos que não podem

pagar pelo segundo. O espaço dito “público”, quando não abandonado aos “dispensáveis” (até que

sejam novamente expulsos por algum projeto de “revitalização” de áreas degradadas), é o espaço

“objeto” das intervenções estatistas, privilegiando suas formas para mascarar a pobreza de seus

conteúdos. O espaço “público” para Dona “Dilma” também não é espaço de uso e de permanência.

Quando muito é de contemplação: o tempo da vida submetido ao tempo abstrato do trabalho parece ter

corrompido as outras possibilidades...

A partir de agora iremos pôr à mesa outra discussão relevante no entendimento da regressão

das potencialidades então presentes na emergência dos homens e mulheres catadores(as) de papel na

cena de Belo Horizonte e de tantas outras cidades do Brasil. Trata-se da articulação entre a

representação social do pobre na sociedade burguesa e as “novas” maneiras de “se lidar” com ele.

Vale dizer que elas estão ancoradas nas versões contemporâneas dessa mesma representação, a qual

traz no seu repertório as matrizes discursivas alimentadoras das já discutidas noções de “cidadania” e

“inclusão social”, presentes no discurso e na prática institucionais. Aproveitamos para repisar

rapidamente em algumas áreas do terreno marcado pela trajetória dessas pessoas envolvidas na

atividade da catação em Belo Horizonte.

4.2. A representação social do pobre na sociedade burguesa: de “caso de polícia” a

“sujeito de direitos”?

Como vimos anteriormente, é fato a verificação de exemplos de consonâncias entre a atividade

da catação em Belo Horizonte e seu exercício pelo migrante pobre, aquele cuja pouca escolaridade e a

desqualificação de seus saberes repercute nas modalidades de trabalho socialmente a ele reservadas.

Sabemos que não podemos homogeneizar grupos sociais e suas atividades (pensadas neste momento

133

como aquelas que, de algum modo, visam garantir o mínimo para a reprodução individual), dizendo que

todos ou a maior parte dos migrantes trabalham com a catação. Ao mesmo tempo, não precisamos

relativizar ao extremo as reais possibilidades daqueles que migram para a metrópole em busca da “vida

melhor” acabarem por recorrer à catação para efetivarem, não raro precariamente, a dita reprodução

individual.

É pertinente repetirmos mais uma vez: deve-se ter o cuidado para não situarmos os homens e

mulheres que em suas vidas também realizam a atividade da catação, numa categoria abstrata

aprisionadora e totalizadora, como se, por si só, ela fosse capaz de abarcar, na “essência”,

determinado indivíduo ou grupo social. Ora, por serem pessoas, eles possuem uma maneira própria

(muitas vezes carregada de resignação e impotência, o que não desqualifica sua imensa força interior)

de viver e de se relacionarem com a metrópole, esbarrando, ainda que inconscientemente, em seus

conflitos e contradições. Nesses termos, a problematização radical da pobreza e da marginalidade

mostra-se como mote essencial no entendimento de como a riqueza socialmente produzida tem como

raiz do processo de sua apropriação o privado, numa estreita articulação com o trabalho abstrato e a

sua divisão social no âmbito da reprodução das relações (sociais) de produção. Resta dizer que os

mecanismos e parâmetros simbólicos e objetivos ancoradores da forma mais geral da reprodução

social vigente tornam-se tão mais complexos (por que mais impessoais e “espontâneas” tornam-se as

redes de dominação) quão mais complexa vem a ser a sociedade75.

Já sabemos que as perambulações dos homens e mulheres catadores de papel em Belo

Horizonte remontam às primeiras décadas do século XX, momento em que a cidade ainda dava seus

primeiros passos na qualidade de capital de Minas Gerais (OLIVEIRA, 2001). A identidade social

destas pessoas sempre fora associada àquela dos mendigos, dos “sujismundos” e dos marginais.

Estereotipados e estigmatizados, sob a alcunha de “indesejáveis” numa sociedade cujos arcabouços

morais ajudam a definir, como se estivessem acima do bem e do mau, as hierarquias sociais – ao

mesmo tempo em que o trabalho passa a balizar uma ética fundada na meritocracia premiadora do

indivíduo “digno” e “racional” –, esses homens e mulheres há muito têm sido “objeto” do indiscreto olhar

vigilante e interventor das “instituições competentes”. E será o poder público, sobretudo a partir da

instauração da República, aquele que, de forma “impessoal” e “neutra” (porque dotado da racionalidade

científica) ajudará a introjetar naqueles supostamente “reticentes” e até “refratários” à sociabilidade

burguesa, as “regras de civilidade” orientadoras do “bem-viver”. Desta maneira, munidos de

instrumentos “moralizadores”, norteados por uma “pedagogia totalitária” que passa a prescrever os

75 Seguindo este raciocínio, Souza (2003, p.49) aponta que “...quanto mais difícil [é] o exercício da dominação direta mais e mais [são necessárias] formas mascaradas de dominação”.

134

comportamentos, os agentes da fiscalização pública (médicos, assistentes sociais etc) e a Polícia

Militar, serão aqueles a colocar em prática as modalidades institucionalizadas da repressão sobre o

pobre. No que concerne à prática da catação, a qual deve ser pensada para muito além de mera “tática

de sobrevivência”, há uma literatura que se ocupou do seu histórico em Belo Horizonte, confirmando as

ações desses agentes: atuando, sobretudo, por meio de métodos extremamente truculentos.

Cabe então externar rapidamente duas das políticas oficiais levadas a cabo pelo poder público

na capital mineira, ao longo de sua formação urbano-metropolitana, as quais denotam, de maneira

límpida, como as representações sociais em torno do pobre materializam-se em práticas repressivas e

saneadoras sobre o “objeto” de intervenção. Uma delas, instituída ainda no ano de 1900, pelo

Presidente do estado, na figura de Silviano Brandão, refere-se à busca pelo controle social da prática

da mendicância. Instaurava-se então, o “Regulamento dos Mendigos”: “Nenhum indivíduo poderá pedir

esmolas, no distrito da cidade, sem estar inscrito como mendigo no respectivo livro da Prefeitura”

(ANDRADE, 1987, p.65). Para viabilizar sua condição de mendigo, o indivíduo deveria comprovar por

meio de exame médico que não se apresentava apto ao exercício do chamado “trabalho regular”.

Trocando em miúdos, a condição de mendigo era, pois, imputada aos considerados “incapazes”,

aqueles que não se “adequavam” – devido à sua “desordem” física e moral – em suas mais diversas

formas à ordem social burguesa, estando passíveis de “medidas atenuantes” para o seu sofrimento,

orientadas pela benevolência pública ou pelos “cuidados” do Estado.

A outra política a ser mencionada, apresenta sua incidência sobre o pobre já em fins da década

de 1970, mas tem como ápice do seu caráter repressivo no transcurso da década de 1980, as

chamadas “operações limpeza” (DIAS, 2002), efetuadas pela Superintendência de Limpeza Urbana –

SLU –, em parceria com a Polícia Militar. Elas visavam, sob o artifício da violência aberta, reprimir a

atividade da catação – naquela época desvinculada da condição de atividade que “ajuda a limpar a

cidade”, competência essa, segundo o estatuto anterior da SLU, que era do Serviço Municipal de

Limpeza Urbana. Para ilustrarmos o sentido e a finalidade da repressão sobre os homens e mulheres

catadores(as), então respaldado por tais operações, trazemos as palavras do ex-superintendente da

Secretaria de Limpeza Urbana – SLU, proferidas em 1979:

...a ação predatória dos CATADORES DE PAPEL (...) porque suja o meio ambiente da sua ação

criminosa (...) cresce em intensidade e perigo e será, por certo, catastrófica se o Poder Público não

arregimentar forças, atos e procedimentos capazes de neutralizá-la a curto prazo76.

76 Citado em Dias (2002, p.43) como “Ofício GAB-3679/558/79”.

135

Num e noutro exemplo, as representações sociais alicerçadoras dos modos pelos quais se

buscará lidar com os “indesejáveis” apresentam-se como manifestação cabal da pobreza vista como

“desarranjo”, “excrescência” e “incivilidade”. O constructo de tais representações ganha novos

elementos de complexidade, contribuindo ainda mais para a sua naturalização, bafejada pelo mesmo

suposto “desinteresse”, operado pelos grupos hegemônicos (Estado e classes dominantes). A pobreza

permanece deslocada do âmbito das relações sociais, sendo diagnosticadas tão-somente como

“fenômenos menores” de um ordenamento social inato, acima dos desejos e vontades humanos,

embora tal “situação” possa ser remediada pelo esforço e dedicação individuais forjados na esfera do

trabalho.

Conforme veremos adiante, o trabalho incide sobre a vida das pessoas enquanto prática

formativa, reveladora de suas “qualidades superiores”, visto achar-se embebido pelos códigos

presentes no arcabouço moral dessa mesma sociedade. Embora incluído no celeiro maior das

promessas não cumpridas pela civilização (cujas oportunidades se esboroaram com a crise da

modernidade instrumentalista), ainda apresenta a mesma conotação positiva: reside no seu pleno e

efetivo exercício a práxis “humanizadora”, “dignificante” e “formadora de personalidade”.

Ademais, àqueles cuja “natureza” supostamente os havia feito carentes de uma personalidade

devotada aos costumes, hábitos e práticas “edificantes”, cabia uma vigilância sistemática e presente,

com o objetivo do não alastramento da “corrosão do caráter” para o restante da sociedade – então

recentemente tingida pelas tintas republicanas. É imputado ao poder público, apoiado pelas “pessoas

de bem”, empunhar a bandeira do processo civilizatório e modernizante inexoravelmente condutor dos

apetites animalescos e irracionais dos “retardatários sociais” e conduzi-los ao caminho da decência e

da humanização. Sidney Chalhoub (1999) nos mostra como se desdobravam tais cuidados: erguia-se

uma constante vigília, pois, “os pobres carregam vícios, os vícios produzem os malfeitores, os

malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção de que os

pobres são, por definição, perigosos” (CHALHOUB, 1999, p.22).

Respaldadas por este corpus ideológico, as classes dominantes, agirão por dentro do Estado

arregimentando forças para povoar o imaginário social com a figura do pobre e da pobreza como “caso

de polícia” e, o que é mais perverso, também como “problema de saúde pública”, haja vista a sua

aparente atuação sobre um direito que era de todos: a saúde como expressão do bem estar de uma

sociedade. Margareth Rago (1997) nos chama atenção para tal fato, quando em fins do século XIX, as

conformações sociais na sociedade burguesa se inscrevem na utopia de um espaço urbano

disciplinado e desodorizado, sob o qual a intensificação das práticas segregadoras e repressoras

ocultava-se por baixo do manto da busca irrefreada pela harmonia social. O poder legitimador dessa

ideologia encontrava-se diluído e assentado em dois pilares. Um deles, municiado pelo discurso

136

técnico-científico, representado pela vertente médico-sanitarista, cujos cabedais teóricos e práticos

seriam os mais indicados para promover a assepsia urbana. O outro pilar, trazia no seu bojo os

interesses econômicos e políticos de afastar a “sujeira” e a pobreza para o mais longe possível, além

de garantir a proliferação do nascente mercado imobiliário77. A citada autora dá o tom do modelo de

repressão desses poderes, dissimulados pela ação imbuída do caráter “puramente científico”,

invadindo e colonizando a vida do pobre, nas suas mais diversas instâncias:

Esta política sanitária de descongestionamento dos corpos define a produção do espaço urbano e, ao mesmo tempo, determina a invasão da casa do pobre, impondo-lhe novos regimes sensitivos e uma outra disciplina corporal (RAGO, 1997, p.166).

A isso – em que pesem as formas opacas do seu exercício – podemos denominar como

manifestação cabal do “poder disciplinar”, termo utilizado por Michel Foucault (2005), em sua obra

“Vigiar e Punir”. A lógica ordenadora desse poder se organiza e se faz presente por meio de

instrumentos de coação exteriorizados das práticas sociais que lhe dotam de sentido, ganhando uma

feição neutralizada e até justificável, obstruindo uma visão capaz de discerni-los para além de sua

“naturalidade”. Numa frase: quanto mais presente na vida social, mais impessoal e intransparente ele

se verifica. Foucault argumenta que:

...para se exercer, esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente capaz de tornar tudo visível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível. Deve ser como um olhar sem rosto que transforme todo o corpo social em um campo de percepção (FOUCAULT, 2005, 188.).

Devido à enorme repressão historicamente sofrida pelos homens e mulheres catadores(as) de

papel nas ruas de Belo Horizonte, a vontade de um dia serem reconhecidos como pessoas repercutia

amplamente em sua subjetividade. “Tornar-se” pessoa, passava pelo reconhecimento social da sua

condição de “trabalhador digno”, esforçando-se numa luta diária com vistas à redenção por meio da

conquista de seu “ganha pão”. Vale ressaltar que tal reconhecimento apresentava-se como importante

elemento de elevação da auto-estima desses homens e mulheres, pois na mesma medida em que se

enxergavam como trabalhadores, tinham vergonha de sua própria atividade – caracterizada pela

sociedade como contravenção e mendicância, trazendo sujeira para as vias públicas. A questão do

77 Nas palavras de Chalhoub (1999, p.52), acerca da produção do espaço na cidade do Rio de Janeiro, tomada como vislumbramento e como campo de atuação e proliferação dos capitais imobiliários: “O discurso dos higienistas contra as habitações coletivas interessou sobremaneira a grupos empresariais atentos às oportunidades de investimentos abertas com a expansão e as transformações da malha urbana da Corte. Haveria no processo um enorme potencial para a especulação na construção de moradias e no provimento da infra-estrutura indispensável à ocupação de novas áreas na cidade (...). O crescimento da cidade para novas áreas tornou-se factível a partir dos anos 1870 devido à expansão das linhas de bonde. Pouco a pouco, fazendas e chácaras nos subúrbios foram sendo compradas e loteadas, numa conjunção de interesses entre empresários da área de transportes e agentes do capital imobiliário”.

137

trabalho também era muito importante para os homens e mulheres catadores(as), sobretudo no

concernente ao não desvinculamento da atividade da catação das outras instâncias de sua vida:

“...entre esses atores sociais, a atividade laboral, em momento algum, se separa de outras situações da

vida (...). E a vida para esses desconhecidos homens e mulheres é trabalho” (OLIVEIRA, 2001, p.207).

Concomitantemente, tal reconhecimento poderia significar para esses homens e mulheres

passar a poder transitar livremente com seu carrinho pelas ruas da metrópole sem serem acossados

pelas “operações limpeza”. Significava, ainda, no âmbito das representações sociais positivas do

trabalho honesto e digno, a também positiva representação do trabalho associada ao valor simbólico do

local onde ele é desenvolvido: “eu trabalho na ASMARE. Quando vou comprar alguma coisa numa loja,

posso dizer que trabalho lá. Lá é meu endereço de trabalho!”, diz a catadora “Regina”. Poder entrar em

uma loja de departamentos, por ela transitar e realizar o ato de consumir algum produto como uma

outra pessoa qualquer, possui um significado enorme para esses homens e mulheres: representa o

“reconhecimento social” acima mencionado. Conforme enfatiza Oliveira (2001, p.215), “A conquista do

direito ao trabalho e da identidade de trabalhador se dá através de ações concretas”.

Contudo, tomarmos a realização dos desejos da mulher catadora citada como fato cabal na

exemplificação de uma “conquista” social (quiçá a denominação de “inclusão social” pela via da

“conquista da sua cidadania”) é negar a condição primeira de reprodução social sob a égide do capital:

a incorporação contínua não só de produtores e consumidores, mas também a de indivíduos que

cultivem os valores e a ética capitalistas. A vida passa a ser vivida como pura representação,

aprisionando em seus tentáculos as qualidades do humano de cada um em nome de qualidades

pretensamente “superiores” do “todo social”. Eis aí, o modelo de sujeito decente do imaginário burguês

contemporâneo: ser alguém descendo ladeira abaixo na redução de si mesmo a consumidor pleno,

cuja capacidade para consumir criará seu diferencial e seu “valor” nesse mundo. Associa-se à cegueira

que se abate sobre esse “sujeito” o fato de, não raro, ele não se dar conta de que a vida converteu-se

em mero “apêndice do sistema produtivo (...) sem autonomia e sem substância própria” (ADORNO,

1993, p.166).

4.3. A ação dos agentes de Pastoral: quais são os conteúdos de sua prática?

Uma importante questão emerge neste momento: qual estatuto teórico-prático municiou a

Pastoral de Rua e, mais tarde, os demais agentes de mediação no processo de mobilização e de

organização dos homens e mulheres catadores(as) de papel em Belo Horizonte, materializado na

criação da ASMARE? Tê-lo em conta significa podermos visualizar, no âmbito da dinâmica das

relações estabelecidas pela Associação com o poder público e o mercado, a qualidade das mesmas:

138

ou seja, o aparelhamento e a conseqüente subsunção aos desígnios e interesses dos dois agentes

citados ou uma postura de diálogo sem perder de vista sua criticidade e combatividade face à lógica

mais geral e suas manifestações particularizadas. Para tanto, embora já o tenhamos feito na introdução

desta pesquisa, torna-se pertinente resgatar de maneira expedita mais alguns aspectos relativos à

gênese78 e a posterior consolidação do empreendimento ASMARE. Trazendo-os à tona, permitir-se-á

iluminar certos pontos obuscurecidos na esteira da conformação da Associação, tanto como “modelo a

ser seguido” quanto à sua qualidade de pedra de toque das políticas sociais do município de Belo

Horizonte.

Conforme já indicado anteriormente, foi a radicalização da ação policiadora do poder público –

que no seu modus operandi de tratar os catadores(as) e a atividade da catação até então, não via

possibilidade de olhá-los, além das vestes de seu estigma – aquela a acelerar o processo de

mobilização dos homens e mulheres catadores(as) de papel. De acordo com Oliveira (2001), o final da

década de 1970 e a década de 1980 foram particularmente difíceis para essas pessoas, pois:

“...coincidem com o maior número de registros relativos às ‘operações limpeza’ realizadas por uma

instituição preocupada em oferecer à cidade, um serviço de limpeza urbana ‘moderno’” (OLIVEIRA,

2001, p.48).

Em meio ao acirramento das tensões entre o poder público e aqueles homens e mulheres, um

importante agente de mediação passa a se interpor: a Pastoral de Rua, entidade religiosa ligada à

Igreja Católica e formada por um grupo de irmãs beneditinas recém-chegadas da capital Paulista. Elas

traziam na bagagem, a experiência da realização de intervenções junto à população de rua daquela

cidade, sobressaindo-se, especificamente com o seguimento dos(as) catadores(as) de papel, no

trabalho que culminaria na formação da Cooperativa de Catadores de Papel Autônomos –

COOPAMARE, em 1989, primeira cooperativa de catadores de papel do Brasil. Após perceberem a

aberrante situação a qual os homens e mulheres catadores(as) vinham sendo vítimas e protagonistas,

as irmãs beneditinas decidiram iniciar um trabalho semelhante com estas pessoas em Belo Horizonte

(JACOBI & TEIXEIRA, 1997).

Os Agentes de Pastoral, ao se depararem com a realidade vivida por aqueles de uma forma ou

de outra dependentes das ruas de Belo Horizonte, tiveram de adotar métodos diferenciados. Num dos

casos, específicamente o dos homens e mulheres catadores(as) de papel, “...a relação se daria com

uma população de trabalhadores marginalizados socialmente e que tinham algum tipo de engajamento

com uma atividade econômica, mesmo que marginalizada” (JACOBI & TEIXEIRA, 1997, p.16). No

outro caso, o dos homens e mulheres mendigos, “...o trabalho teria de ser de natureza assistencial, já

78 Sobre a gênese e consolidação da ASMARE, ver Oliveira (2001) e Dias (2002), já citados em nosso trabalho.

139

que esta população não desenvolvia nenhum tipo de atividade econômica e se encontrava numa

situação de total dependência” (JACOBI & TEIXEIRA, 1997, p.16). A Pastoral de Rua acabou por optar

pelo trabalho junto aos catadores(as) de papel devido:

...à possibilidade de empreender em médio prazo uma iniciativa que representaria o resgate da dignidade e da cidadania do grupo alvo. Viu-se que era necessário inverter a relação destes com a sociedade. O objetivo era inserí-los como trabalhadores que contribuem com a limpeza da cidade e que sobrevive de uma atividade econômica que precisa ser valorizada para todo o conjunto da sociedade (JACOBI & TEIXEIRA, 1997, p.16, os grifos são meus).

Conforme se percebe, na fala dos autores citados as noções de “dignidade”, “cidadania” e

“inserção” dos homens e mulheres catadores(as) de papel na sociedade respaldam-se por um modelo

de racionalidade, cujo ancoradouro assenta-se nas ações potencializadoras do seu trabalho. Tais

ações partem do pressuposto da catação representada tão-somente como “atividade econômica”, cuja

subjetividade e objetividade estariam atreladas ao movimento de passagem da reprodução simples à

reprodução ampliada dos capitais envolvidos no mercado da reciclagem, alargando o terreno de sua

valorização. Como nos diz Harvey (2004, p.146), “...a produtividade da pessoa fica reduzida à

capacidade de produzir mais-valia”. Nesta perspectiva, fundada puramente nos marcos da econômica

política e salpicada pelo discurso ambiental sob a égide do “desenvolvimento sustentável”, as relações

sociais, sejam elas “produtoras” da mercadoria “material reciclável”, sejam aquelas produtoras da

cotidianidade dos homens e mulheres catadores(as) de papel (mediadas, sobretudo, pela sua

“inserção” na sociedade), têm suas contradições mascaradas e reiteradas, ao invés de postas a nu e

combatidas. Estariam os modos de atuação da Pastoral de Rua e demais agentes de mediação

envolvidos com a “causa do catador” presos a estas mesmas armadilhas? Vejamos como se

conformou a relação desses agentes com esses catadores e catadoras.

Em se tratando de um grupo extremamente marginalizado na sociedade e acossado por toda

sorte de repressão, os Agentes de Pastoral procuravam utilizar-se de metodologias de aproximação

junto àquelas pessoas distintas das praticadas até então, baseando-se na fundamental “...atenção a

todos os momentos fortes que pudessem servir como meio de integração e de maior socialização dos

catadores com a equipe” (OLIVEIRA, 2001, p.189). Neste sentido, os aniversários, os nascimentos e as

mortes, as datas como o natal, Semana Santa e Páscoa e outros “...momentos especiais constavam na

pauta de atividades da equipe de Pastoral” (OLIVEIRA, 2001, p.190). O trabalho posterior realizado

pelos Agentes, entre 1990 e 1992, foi a busca pela efetivação do dificultoso processo de organização e

mobilização social daqueles homens e mulheres, os quais viviam dispersos pela metrópole. Dificultoso

porque, embora realizado noutros termos, o dito trabalho esbarrava numa espécie de “cultura do

140

ceticismo” vivenciada pelo lado daquelas pessoas, materializada em altas doses de descrença e

desencanto em relação aos Agentes de Pastoral – sendo estes últimos, vistos como “espiões da

Prefeitura”, pelos primeiros. A Pastoral de Rua, definitivamente, assumia a linha de frente como

mediadora dos conflitos entre os homens e mulheres catadores(as) e o poder público.

Do lado da administração pública municipal, em 1990 discutia-se a elaboração da nova Lei

Orgânica que privilegiaria a privatização da coleta seletiva realizada na cidade. Após várias

mobilizações conjuntas, envolvendo vários setores da sociedade, “os catadores sairam em defesa de

uma política de coleta seletiva articulada com as suas atividades” (JACOBI & TEIXEIRA, 1997, p.19).

Os resultados acabaram sendo favoráveis aos catadores(as) e incidiram na mudança de alguns

dispositivos jurídico-legislativos, através dos quais se passava a assegurar a coleta e a comercialização

dos materiais recicláveis preferencialmente por meio de cooperativas de trabalho. Ou seja, estavam

dadas as condições para se ratificar institucionalmente o trabalho da catação.

Essas condições contribuíram para todo um conjunto de reorientações internas na

Superintendência de Limpeza Urbana através de rearranjos na estrutura técnico-operacional mediante

a criação da Assessoria de Mobilização Social, já aludida no capítulo 3, desta pesquisa. Houve também

a implantação de um novo modelo de gestão, o chamado “Gerenciamento Integrado de Resíduos

Sólidos”. Esse programa apoiava-se no seguinte tripé: “consistência técnológica, valorização e

qualificação do trabalhador e cidadania e participação social” (DIAS, 2002, p.63).

O aparato repressivo atua de modo profilático, como instrumento moralizador e propiciador dos

elementos simbólicos e concretos que confeririam “dignidade” àqueles(as) que desenvolvem a

atividade da catação, ação essa que “daria satisfação” e ao mesmo tempo legitimaria o papel do

Estado como “promotor do social”. Criam-se também as condições gerais para o chamado des-

envolvimento por meio da prevalência e da unilateralidade do crescimento econômico (com total

liberdade ao capital financeiro), satisfazendo a idéia de sua “razão de ser”, não obstante o seu

afastamento e até o seu abandono da promoção e da regulação da esfera do social, convertida em

pura desregulamentação. Santos (1997) refere-se a este momento como sendo aquele no qual: “O

princípio do mercado adquiriu pujança sem precedentes, e tanto que extravasou do econômico e

procurou colonizar tanto o princípio do Estado, como o princípio da comunidade – um processo levado

ao extremo pelo credo neoliberal” (SANTOS, 1997, p.187). No âmbito da relação entre as noções de

“exclusão” e “inclusão” sociais, percebemos o quanto a idéia desta, fundada na dicotomia entre sua

permanência e seu combate, favorece a legitimação do discurso daquela.

Trocando em miúdos, a pobreza como manifestação mais vil e abjeta do humano tornado

desumano, mais do que nunca, torna-se necessária como algo para servir de “exemplo”, na forma de

uma espécie de “auto-ajuda” diante das dificuldades pessoais (ao que parece associada às “bem-

141

aventuranças” bíblicas, com altas doses de apologia da negatividade). Serve, também, como “bálsamo”

atenuante para as “reclamações da vida”, a qual, embora não esteja boa, ainda é melhor do que a

vivida pelo outro – percepção essa que já ganhou contornos de ditado popular: “tá ruim mas tá bom!”.

Ao mesmo tempo, a pobreza é algo a ser “denunciado” (veja-se a pletora de estatísticas e os longos

relatórios anuais da ONU) e “combatido”, atacado firmemente pela “ação concertada” do Estado ou

pelos setores comprometidos com o “social”. A pobreza, nesses termos, está totalmente desvinculada

dos processos maiores, já que tomada como fenômeno em si.

Podemos então inferir que, tanto no caso dos homens e mulheres catadores(as) de papel

quanto no da população de rua de Belo Horizonte, o poder disciplinar buscou agir de forma a extirpar

os elementos deletérios e perturbadores da ordem social, ou que tendessem a colocar em questão, o

modelo de sujeito decente que se ergue como um dos pilares da sociedade moderna e burguesa. Esse

poder busca estabelecer tipologias estigmatizantes de modo a separar, diferenciar, classificar e definir,

sob uma ótica dualista, os indivíduos “normais” dos “anormais”, os “sãos” dos “doentes”, os “produtivos”

dos “improdutivos” etc. É a partir dessas dicotomias que se abre caminho para que os dispositivos

disciplinares (FOUCAULT, 2005) possam estabelecer seus critérios de medição, controle e correção

dos indivíduos “problemáticos”. Assim sendo, não queremos colocar os mecanismos de dominação e

de controle disciplinar em campos separados. Urge, isso sim, a necessidade de tomá-los como

complementares numa mega-estrutura de condicionamento e modulação, cujo objetivo último é a

eficácia das dominações social, econômica e política, nas suas dimensões simbólicas e objetivas,

incrustadas que estão no cotidiano.

Articula-se por meio da estratégia de disciplinar os corpos, encaixá-los adequadamente ao “seu

lugar”, dentro de uma trama de relações cuja dinâmica e o movimento povoam a “mecânica social” do

mundo. Tal estratégia, em última instância, procura dirimir qualquer possibilidade de agitações,

sublevações, enfim, qualquer modalidade de questionamento aos termos sob os quais se dá a

reprodução social dentro da ordem burguesa. Ordem essa, na qual também se exerce muitas vezes

uma vigilância sutil, haja vista sua fluidez no ato de perpassar a vida cotidiana nas suas mais variadas

dimensões, atreladas ao fato de que “...o capitalismo está voltado precisamente para a produção

[contínua] de um novo tipo de corpo trabalhador” (HARVEY, 2004, p.144) e esconder aquilo que destoa

das cores já desbotadas do des-envolvimento. Vale reforçar a idéia do agir sobre os corpos como

intento de agir também sobre as práticas sociais formadoras desses corpos. Logo, os espaços de

vivência, estando fora daquilo que é naturalmente definido como “correto”, “decente” e “humanizado”,

devem ser extirpados para não contaminarem o "corpo social".

Conforme já assinalado, até o final da década de 1980, não obstante o fato de que alguns

destes homens e mulheres catadores(as) tivessem residência fixa, a grande maioria acabava

142

enfrentando os perigos da madrugada (ações truculentas da Polícia Militar, por exemplo) e pernoitando

pelas ruas da metrópole, para proteger seu material de outros que pudessem roubá-lo ou atear fogo,

esperando pela abertura, logo no início da manhã, dos depósitos compradores. Além dos viadutos

(principalmente o “Castelo Branco”79) e marquises da área central, um dos locais que serviam de

abrigo e espaço de convivência para os(as) catadores(as) eram as “malocas” da Av. do Contorno, local

onde hoje em dia situa-se a ASMARE (ver foto 9). É inegável para qualquer um, a constatação da

precariedade das condições físicas e materiais, de salubridade e de capacidade do local em fornecer o

mínimo de dignidade para aqueles que por lá passavam. Porém, tal constatação não é capaz de

apontar, por si mesma, o significado do conjunto das vivências, das sociabilidades e dos conflitos

florescentes a cada momento nas “malocas”. Pode-se demonstrar o quanto tal questão é melindrosa

tomando-se um pequeno trecho do depoimento da catadora “Regina” acerca da cotidianidade das

malocas, comparada com essa mesma vida nos dias de hoje, amparada no seio da ASMARE:

Foto 9: Antiga área da RFFSA, antes ocupada pelas malocas dos catadores “autônomos” e agora destinada à construção dos novos galpões da ASMARE, na Av. do Contorno. Autor: Luiz Antônio E. de Andrade. Foto tirada em 05/06/07.

“Antes era muito legal, num tinha egoísmo, num tinha nada. Então, tipo assim, sabe... Nós comia, nós

bebia, não pagava água, não pagava nada, entendeu? Hoje nós é reconhecido, mas... Sei lá, cara!

Hoje é muita confusão assim, sabe? O pessoal aí... Ah! É muito egoísmo mesmo! Eu vou te ser

sincera: se uma pessoa ganha um troco a mais o cara quer ganhar mais que ocê na outra semana. Aí é

aquela confusão, aquela disputa, aquela brigaiada danada... Hoje tá difícil... E antes o lixo num tinha

79 Esse viaduto propicia a travessia sobre a Av. do Contorno, interligando a área central com a região Noroeste de BHte.

143

tanto valor. Hoje tá uma ‘guerra’ danada” (08/03/2006).

As palavras acima nos chamam a atenção para alguns aspectos. Não obstante as supracitadas

condições abjetas do local, das brigas e dos desregramentos florescendo e fazendo parte da rotina de

vida daquelas pessoas, ainda assim, havia algum espaço para a apropriação, a espontaneidade e as

solidariedades. A chegada da ASMARE e o seu desenrolar na colonização e na produção da

cotidianidade dos homens e mulheres catadores(as) trouxe algum tipo de “reconhecimento” social, mas

trouxe também as práticas competitivas, o acirramento das solidariedades instrumentais, as tensões

decorrentes da necessidade de se produzir cada vez mais... Enfim, não se faz necessário colocar em

questão as contradições da propalada “melhoria” das condições dos catadores (reconhecimento social,

maiores ganhos, local para se trabalhar etc.), visto serem produtos e produtoras do modelo de

reprodução social que ora assistimos?

O grande problema apontado pelos Agentes de Pastoral eram os olhares e as ações

“corretivas” do poder público respaldados por pretensas verdades ideologicamente legitimadas, cujos

modos de atuação, já sabemos, consistiam em situar simbolicamente, no âmbito da moral e do sentido

de mundo próprio da sociedade burguesa, o problema da catação e do catador. No nosso entender, se

a reflexão desses agentes tinha o mérito de pôr em questão e denunciar a reprodução dos estigmas e

da repressão vividos por aquelas pessoas – como sendo a própria encarnação da “imundície”, do

“vício” e da “promiscuidade”, devendo ser combatidos, já que classes pobres eram (e são) classes

perigosas! –, ela pecava (e peca) por direcionar seus esforços para o lado da necessidade de

“inclusão” por dentro do existente. Noutros termos, a sociedade burguesa e seus parâmetros

sobressaem-se como talvez a única forma possível de subjetiva e objetivamente, “construir”, “integrar”

e “dotar” o pobre (comumente chamado de “excluído”) da personalidade “correta” e da possibilidade do

convívio social. Assim, atuação da Pastoral de Rua tem reiterado o modelo de ação social vigente –

mudando aspectos da vida sem, no entanto, operar a sua transformação efetiva –, instaurado desde a

sua chegada a Belo Horizonte, como mostrado no trecho a seguir: “...incentivar a organização para que

o povo da rua superasse o estigma de exclusão e conquistasse sua cidadania”80.

Retomamos então, a discussão acerca do sentido “pedagógico”, significante e significado do

trabalho, o qual respalda a sua centralidade social na contemporaneidade como sendo, cada vez mais,

a centralidade do capital (PEDROSA, 2003). Combina-se aí, a repressão pura, direta e aberta sobre o

pobre, legitimada pela representação social deste último, sob a condição de “estorvo” e de

“degenerado”, desviada para outro conjunto de artifícios, mais opacos e sutis – ainda que, decerto, ela

80 Fonte: Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte. Folder intitulado “O povo da rua renasce entre o concreto das

144

se faça extremamente presente através do aparato policial como força legítima de Estado. Doravante, a

nova roupagem do ideário burguês da produção do indivíduo “digno” e “decente” faz-se acompanhada

de novos arranjos, os quais reforçam, pois, a despeito da insustentabilidade de suas contradições, a

ética do trabalho e a sua supracitada centralidade.

Ademais, diante do que vimos anteriormente em relação à dinâmica do mundo do trabalho na

contemporaneidade, marcado pelo cenário hostil entre capital e trabalho, cuja ressonância verificamos

na sua já aludida precarização, verificamos, ao lado dos acirramentos de tais contradições, a retomada

do fôlego da ideologia que lhe dá suporte. Ao deixar de lado qualquer possibilidade além do existente,

o discurso dos agentes de mediação traz na sua essência o puro real como fato dado e objetivo. Isso é

“confirmado” nas palavras de José Aparecido Gonçalves, em palestra no “Seminário Legislativo Lixo e

Cidadania: Políticas Públicas Para Uma Sociedade Sustentável”, pelo fato dos homens e mulheres

catadores(as) não quererem mais “...voltar à política do assistencialismo; querem crescer como

empreendedores, transformar suas experiências em negócios e sobreviver da produção do seu

trabalho...(grifos meus)”81. No que concerne às estratégias de repressão ao pobre, nota-se a

redefinição de suas elaborações norteadoras, também amparadas pelos mecanismos de “inclusão

social”, inscrevendo-se num ambiente de compartilhamento (chegando ao nível da transferência) das

responsabilidades na “formação” e “inserção” do pobre na sociedade.

A gravidade da situação encontra-se ocultada na forte exortação ao trabalho voluntário, por um

lado, e transformação do pobre em “agente puro” de sua “mudança de vida”, por outro. Primeiramente,

porque num mundo onde as “oportunidades” tornam-se restritas a parcelas sociais cada vez mais

ínfimas, tê-las passa a ser um privilégio que se deve agarrar com unhas e dentes. Deixá-las escapar

(as tais “oportunidades”) soa no mundo inseguro e cultivado pela incerteza como “irresponsabilidade”,

“vagabundagem” e “transgressão”, cuja punição deve ser o desprezo e o esquecimento. Em segundo

lugar, a “inserção” desse pobre na sociedade, deve garantir a reprodução em grau mais elevado dos

valores, entre outros, da “competitividade”, “flexibilidade” e “autonomia individual”, fazendo-se

desprovida de quaisquer elementos de construção coletiva reflexiva e questionadora dos valores e

parâmetros existentes na sociedade capitalista. Ou ainda: o que vem sendo chamado na

contemporaneidade de “construção coletiva”, nada mais é do que, a reunião de indivíduos privatizados,

fragmentados em suas lutas e movidos por interesses utilitaristas e instrumentais, os quais, tão logo

sejam alcançados, são dissolvidos por esses mesmos indivíduos como castelos de areia no deserto de

suas vidas entrincheiradas82.

cidades”, sem data. 81 Esse seminário foi realizado na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, entre os dias 21 e 23 de novembro de 2005. 82 Quanto a estes tênues e precários rompantes de sociabilidade e de enfrentamento dos problemas imediatamente

145

Articulam-se aí, dois momentos da prática de Estado: a pretensa “competência técnico-

científica” para executar a formulação de políticas públicas proporcionadoras do simulacro do direito em

possuir as “competências” e “qualificações” exigidas pelo mercado do trabalho heterônomo e

estranhado, ainda que atreladas à definição dos diversos níveis de conhecimento e hierarquias sociais

– e, portanto, transformado em dever. Direito, diga-se de passagem, porque se criariam as condições

para a aquisição dos (também segmentados) cabedais, dos conhecimentos para que o “resíduo

humano”, se não consiga alcançar o trabalho enquanto materialidade, pelo menos tenha condições,

como já foi dito no capítulo 1, de “laboralidade”, que possua cartuchos a queimar no famigerado mundo

da ordem competitiva. Dever, porque deve partir do indivíduo, a “iniciativa” para “aprender a aprender”,

possuir o “senso de trabalho em equipe”, “ser ambicioso”, entre outros valores. Em meio às tensões do

salve-se quem puder, sai fortalecida a noção de liberdade insistentemente disseminada no imaginário

social: “A liberdade humana traduziu-se em liberdade de cada um de seus indivíduos” (BAUMAN, 2000,

p.74, os grifos são meus). Concomitantemente, essa liberdade aparente é alimentada por modalidades

intransparentes e paradoxalmente ainda mais repressivas de dominação, incidindo sobre as pessoas

na forma de uma auto-vigilância insuportável, fazendo-se desnecessária a volta de regimes

abertamente totalitários. Pois, como diria Lefebvre (1991) ao caracterizar a sociedade repressiva e seu

terror difuso: “Não é preciso ditador, cada um se denuncia a si mesmo e se pune” (LEFEBVRE, 1991,

p.158).

Advém e ao mesmo tempo compõem este movimento as reações de alguns catadores(as),

dando mostras evidentes de como determinadas insatisfações, movidas pelo descrédito com a

ASMARE e suas “promessas” oferecidas (e não cumpridas) sob a égide do existente, mas que muitas

vezes se voltam contra a pessoa, a qual tende a transferir para si a culpa pelos percalços da

Associação, culminam numa revolta interior, resignada. Entretanto, ela também pode ser direcionada

ao descrédito e o enfado com aqueles que estão à sua volta, acabando por sobrepujar a mística

inicialmente depositada nas possibilidades então coletivas. A fala de “Paulo” sobre o fato de não ter

conquistado a casa própria e a falta de confiança na capacidade mobilizatória dos demais associados,

talvez um espelho da falta de confiança na sua própria capacidade, deixam clara tal situação:

“Pois é, vô te falá, viu... Eu sô o XXX associado dessa ASMARE, ajudei dimais nisso aqui... 16 anos

num são 16 dias não! Ocê ta veno onde q’eu moro, eu moro numa invasão... Já num era hora d’eu

comuns da vida privada, Zygmunt Bauman (2000) tece interessantes comentários: “...as únicas queixas ventiladas em público são um punhado de agonias e ansiedades pessoais que, no entanto, não se tornam questões públicas apenas por estarem em exibição pública”. E ainda: “À falta de pontes firmes e permanentes e com as habilidades de tradução não praticadas ou completamente esquecidas, os problemas e agruras pessoais não se transformam e dificilmente se condensam em causas comuns” (BAUMAN, 2000, p.11).

146

conquistá minha casa? O q’eu conquistei foi um problema de coluna que ta me matano! Só isso! Aquilo

ali [a ASMARE] num muda não, o pessoal é difícil, só qué cuidá da sua vida... é difícil ‘ajuntar’ todo

mundo; não tem união, o pessoal só qué saí pra ‘panha’ e ganhá dinheiro” (12/02/06).

147

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Seria com efeito bem fácil fazer a história do mundo se só lutássemos em condições infalivelmente favoráveis. Por outro lado, seria sobremodo mística a situação caso não ocorressem ‘acidentes’” (MARX, LENIN, 1940, p.87).

Privilegiaremos este momentâneo “apagar de luzes” ilustrado nestas considerações finais para

tentar dizer algo em torno da insinuação de possibilidades quando se pensa em espaços, tempos e

vida social distintos daqueles que nos são impostos pela égide do capital. Sabemos que as

constatações verificadas no projeto ASMARE – em maior ou menor medida podendo ser estendidas a

todos os “projetos de desenvolvimento pessoal e social” sob o jugo das orientações teóricas e práticas

postas em tela ao longo de nossa pesquisa – vêm conduzindo à reiteração simples do existente.

Entretanto, é nesse cenário de uma aparente “falta de alternativas”, no seio das tensões e contradições

identificadas e analisadas, que devemos nos esforçar e ajudar a pavimentar o tortuoso caminho rumo

ao diferente. Nossa crítica não procurou “dourar a pílula” e deixar de apontar pela análise as

insuficiências teóricas – com todas as suas ressonâncias na prática – que nortearam (e norteiam) a

ação da tecnoburocracia do poder público municipal em Belo Horizonte, dos agentes de mediação e de

todos aqueles grupos de uma forma ou de outra ligados à “causa do catador”.

É importante dizer que entre agosto de 2004 (quando começamos a tomar contato com a

realidade da Associação e de seus(uas) associados(as)) e junho de 2007 algumas mudanças pontuais

e mesmo abrangentes ocorreram na dinâmica social a qual procuramos melhor compreender.

Podemos citar, a título de exemplo, o reajuste nos valores pagos aos triadores(as) lotados no galpão da

Rua Ituiutaba e os critérios de avaliação do material triado e o destino das garrafas PET triadas. A

conseqüência dessas mudanças para nossa pesquisa se deu principalmente na aparente defasagem

de determinadas informações, fato que pode levar ao leitor ou leitora a questioná-las, ainda que, dentro

do possível, elas tenham sido atualizadas. Todavia, há um aspecto bastante positivo na dificuldade de

manter tais informações atualizadas, que é instigar a todos aqueles que tomarem contato com este

texto a não só buscarem melhor precisá-las, mas também aprofundar pontos insuficientemente

abordados por nós. Além do mais, como nossa pesquisa primou pela reflexão sobre os processos

gerais, os fundamentos da reprodução social subordinada aos imperativos da reprodução do capital – e

os modos pelos quais a ASMARE a reproduz e ao mesmo tempo lhe fornece novos sentidos e

significados –, as informações pontuais, embora importantes, não são de todo primordiais ao

entendimento geral.

Quatro diferentes (mas, ao mesmo tempo, sumamente imbricadas) vias de análise foram por

nós percorridas nessa pesquisa, senão vejamos.

148

A primeira delas esboçou-se no primeiro capítulo, quando discutimos as substanciais

reestruturações político-econômicas e técnico-produtivas do capitalismo tardio – assinalando, por

conseqüência, destruições, redefinições ou permanências nas formas e conteúdos do trabalho na

contemporaneidade. A segunda via, desenvolvida no segundo capítulo, procurou analisar os

(des)caminhos da construção da noção de cidadania no ocidente e sua influência no Brasil. Este

resgate nos permitiu chegar ao cenário de uma verdadeira produção da degeneração dos sentidos e

significados da política – num momento em que se alardeia um ambiente de “efervescência

democrática” nunca antes vivido. A terceira via foi apresentada no capítulo subseqüente, procurando,

primeiramente, captar as contradições presentes nas formulações teóricas sobre a “exclusão social”.

Em seguida, fomos buscar nos debates acerca da “problemática ambiental” e seus desdobramentos na

construção da matriz teórico-prática do “desenvolvimento sustentável”, o arcabouço ideológico que vem

orientando as ações de governo e dos mercados, entre eles o da reciclagem e de um de seus

principais suportes: a coleta seletiva. Assim, pudemos chegar às formulações pelo poder público em

Belo Horizonte de suas “políticas sociais” para as populações de ou em situação de rua, momento em

que privilegiamos aquelas voltadas aos homens e mulheres catadores(as) de papel da ASMARE. Por

fim, a quarta via, ensaiada no último capítulo, tratou de chamar a atenção para a necessidade de se

olhar as pessoas que trabalham na catação de materiais recicláveis para além da condição de

catadores(as), procurando não conduzir (e reduzir) a análise ao viés puramente socioeconômico ou à

sua vida imediata desprovida de conexão com os processos gerais a que a reprodução social se vê

enredada. Por isso, procuramos não perder de vista o viver dessas pessoas, seu modo de se relacionar

com o mundo e com o outro, sua fruição, seus desejos e frustrações. Tendo em conta tais elementos,

procuramos situá-las na condição de migrantes, de pais, de mães, enfim, de verdadeiros sujeitos com

algum potencial de transformação deste mundo.

Essas considerações finais procurarão discutir a maneira pela qual a ASMARE e, numa escala

nacional, o Movimento Nacional dos Catadores de Recicláveis – MNCR –, têm procurado se

constituírem como “empreendimento solidário” e como movimento social, respectivamente. Mesmo

sabendo que deixamos de fora da pesquisa uma análise mais detida acerca do MNCR, traremos aqui

alguns pontos de suas reivindicações e da linha de atuação que as têm norteado. Ambas nos servirão

no estabelecimento das proposições que colocamos a seguir.

Conforme mencionado, a gênese da ASMARE contribuiu para que ela se notabilizasse como

“experiência bem sucedida” de mobilização popular contra o poder público e suas políticas de

“assistência social”. A posteriori, a alardeada manutenção de seu sucesso resultaria da iniciativa de

“apoio” por parte desse mesmo poder público por meio de uma “parceria”, cuja meta era “continuar

garantindo” a retirada de indivíduos da condição de marginalizados para uma outra, a de “sujeitos de

149

direitos”. Este mesmo discurso prevalece em 2007, aprofundando as feições contemporâneas dos

marcos de institucionalização das práticas sociais pelo Estado, as quais se ratificam nas “Políticas

Sociais” da Prefeitura petista em Belo Horizonte, e também contribuindo para demarcar legislativa e

institucionalmente os mercados da reciclagem e da coleta seletiva. A ASMARE definitivamente se

aliaria aos pressupostos da racionalidade de mercado (entre outros, a gestão e o controle dos

processos de trabalho com vistas à sua máxima performance e a valorização dos capitais investidos)

destruindo/agregando/redefinindo elementos de formas pré-modernas de relações de produção e de

trabalho – há algum tempo já adotadas por grandes corporações transnacionais. Esta tem sido a pedra

de toque que vem permitindo essa associação difundir sua imagem de “empresa social”,

“empreendimento solidário”, “construtora de cidadania” e “promotora da inclusão social” para seus

associados e para a sociedade como um todo.

Quanto ao MNCR, sua fundação se deu em 1999, durante a realização do 1° Encontro

Nacional de Catadores de Papel. O Movimento se estabelece em tese colocando-se sob os princípios

da “independência de classe”, dispensando a “fala de partidos políticos, governos e empresários”83.

Porém, se suas lutas não visam tocar (ou tocam superficialmente) nos arcabouços ideológicos que

passam a produzir determinadas concepções de natureza no imaginário social ou deixam nas sombras

as contradições fundamentais da reprodução social sob o capitalismo, deixando-se levar por medidas

que as atenuam, mas não as combatem, como a exigência do direito (ou dever?) ao trabalho ou a

“inclusão social” como consumidores marginais, o MNCR torna-se instrumento de legitimação das

estratégias hegemônicas. Até o momento, o MNCR tem estado atrelado às modalidades instituintes do

Estado através de diferentes alianças com o governo federal, como no caso do fornecimento de linhas

de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES – voltadas

especificamente para a formação de cooperativas e associações de catadores. As principais lutas

desse movimento têm se concentrado na: a) na defesa contra a privatização da coleta seletiva pelo

poder público; b) na remuneração pelos serviços prestados, c) no controle da cadeia produtiva

pelos(as) catadores(as); d) na conquista de moradia, saúde, educação e creches para os(as)

catadores(as) e suas famílias; e e) o fim dos lixões e sua transformação em aterros sanitários.

Já no concernente ao âmbito do espaço social da ASMARE, como fazer com que os homens e

mulheres a ela associados – vendo sua crença no potencial de mudança diluir-se no ceticismo com o

estado de coisas lá presente – reconduzam suas vidas para a negação abrangente das determinações

constituintes dessa sociedade? Como retomar as lutas em patamares outros do que a produção sob a

83 Fonte: Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR: “Caminhar é resistir E se unir é reciclar”. Folder sem data.

150

lógica do lucro como uma “...finalidade em si” e, por conseqüência, bloqueadora do “...objeto que seria

a realização plena da liberdade” (ADORNO, 1994, p.72)?

Faremos a exposição de cinco amplos e implicados campos de reflexão teórica, os quais se

mostram primordiais na construção da radicalidade das lutas sociais empreendidas pelos(as)

catadores(as) e os agentes de mediação ligados à Associação e que podem ser aproveitados, na

escala nacional, pelo MNCR: 1) a crítica sobre os (des)caminhos da natureza e dos debates

envolvendo a problemática ambiental; 2) a crítica ao trabalho tal qual ele se apresenta na sociedade

burguesa e a necessidade da libertação de sua égide; 3) a crítica voltada para a negação dos sentidos

e as finalidades da produção no capitalismo; 4) fazer com que a exigência do direito à moradia se

construa como crítica à metropolização segregadora; e 5) a crítica ao poder de Estado tal qual ele se

coloca: reproduzindo os interesses do capital.

Antes de passarmos à discussão de cada um dos pontos assinalados, é pertinente dizer que

luta dos homens e mulheres catadores(as), mediada por sua instância maior, o MNCR, precisa conter

uma componente que a faça ultrapassar o campo reivindicativo e reformista, indo em direção à

proposição de um programa emancipatório. Retomamos as palavras de Bourdieu (2001, p.68), quando

este aponta, entre as motivações do declínio do sindicalismo europeu, o fato de que “...as lutas

sindicais passaram à situação de instituições que, estando agora na base de obrigações e de direitos

(...) tornaram-se objeto de lutas entre o próprio sindicato”. No caso do MNCR, se ele realmente quer se

confirmar como instância verdadeiramente independente e combativa, deve ter o exemplo do declínio

do sindicalismo europeu em alta conta.

Portanto, por que a ASMARE não começa a se valer da preponderância por ela conquistada

junto à sociedade, às entidades e organismos internacionais para construir as bases de substituição do

aparelhamento consentido e tácito junto ao Estado para outro, desta vez estratégico? Tal

preponderância, por si mesma, pode desde já assumir esse caráter, embora não pareça tê-lo sido

durante boa parte do seu tempo de existência. Para tanto, deve-se substituir o compromisso tácito com

os agentes hegemônicos, apoiado num suposto “realismo” das condições políticas, econômicas e

sociais de momento – porque calcado no pragmatismo e desprovido de ousadia – pelo

desvencilhamento tático e da produção de planos de ação mediante a prática, consciente e refletida, de

“corroer por dentro” o Estado (BIHR, 1991).

Comungamos com as opiniões de autores como Harvey (2004) e Bourdieu (2001), as quais

atestam a necessidade de reorganização das lutas, de modo que estas consigam se articular de

maneira transescalar, organizando-se e atuando em bases locais, sem perder de vista as perspectivas

nacional e mundial. Contudo, as lutas não podem se circunscrever às ações de caráter pontual,

organizadas sob determinada bandeira que lhes vá retirar a capacidade de transcender os limites de

151

suas reivindicações imediatas. Nesse sentido, a ASMARE (obviamente contando com as demais

associações e cooperativas de catadores) e, na escala nacional, o MNCR e o Movimento da População

de Rua – MPR –, precisam carregar nas suas lutas questionamentos e ações que chamem a atenção

para as características da condição de seus militantes: soerguida no seio das amplas transformações

do trabalho na contemporaneidade e no acirramento das contradições do modo de produção

capitalista. Uma outra componente associada ao trabalho das pessoas da catação pode e deve ser

utilizada como estratégia de luta: o eufemismo “agente ambiental” dado a elas e a imensa

potencialidade contida na problemática ambiental, desde que tratada de modo diametralmente oposto

àquele hoje presente nos círculos do poder – leia-se grandes corporações e agentes políticos mundiais.

Crítica aos (des)caminhos da natureza e dos debates envolvendo a problemática

ambiental

Ao nos depararmos com o aprofundamento da incorporação da natureza aos circuitos de

valorização do capital sob os termos da racionalidade econômico-instrumental-mercantil, torna-se

urgente que a ASMARE e o MNCR concentrem seus esforços no apontamento de estratégias que de

alguma maneira assumam a contra-mão deste movimento. Os mecanismos de “precificação” da

natureza nos termos da economia ecológica, os quais vêm favorecendo a formação de um mercado de

bens e serviços ambientais (PORTO-GONÇALVES, 2006), até o momento têm sido reiterados tanto

pela Associação quanto pelo movimento que a representa. Da mesma forma, os materiais recicláveis

há muito já se converteram na concorrida matéria-prima alimentadora do lucrativo mercado da

reciclagem. Com isso, a utopia neoliberal dos mercados auto-regulados chega à natureza e aos

despojos produzidos pela sociedade burguesa, criando a ilusão de que é possível estabelecer uma

relação com a natureza “diferente” daquela baseada na pilhagem e na destruição. A idéia de

“preservação” e de “responsabilidade sócio-ambiental” ganha força e passa a orientar as “políticas

ambientais” de governos e a gestão das empresas, ratificando as soluções técnicas (como as

tecnologias limpas e eficientes e a própria reciclagem) em detrimento das questões de ordem ética,

filosófica e política (no sentido forte da palavra).

Nesse sentido pela própria característica de sua atividade, histórica e geograficamente voltada

para o reaproveitamento daquilo que a sociedade descarta, os homens e mulheres catadores(as) de

papel poderiam trazem consigo, logicamente respaldados pela ASMARE e pelo MNCR (e, mais

indiretamente, o MPR), o germe para a realização de um amplo e profundo debate sobre a

problemática ambiental. Entretanto, para se tornar um discurso visando a uma prática anti-hegemônica,

deve-se ultrapassar a perspectiva redutora das respostas fáceis e superficiais que atestam a ciência e

a técnica como sendo, por excelência, os eixos preferenciais através dos quais deve passar a

152

problemática ambiental. Noutros termos, estes grupos sociais devem elevar tal problemática a um

patamar que denuncie e aponte caminhos contra a injustiça ambiental e sua umbilical relação com as

injustiças sociais e espaciais. Para isso, devem rechaçar a orientação conservacionista que tem

perpassado o pensamento e a prática hegemônicos em torno da problemática ambiental, propondo um

outro tipo de racionalidade, construída sob os arcabouços da ética, da justiça e da alteridade.

Crítica ao trabalho tal qual ele se apresenta na sociedade burguesa e a necessidade da

libertação de sua égide

As reivindicações em prol do domínio da cadeia produtiva pelos(as) catadores(as) e a

remuneração pelos serviços por eles prestados, muito embora sejam louváveis, poderiam vir

acompanhadas por uma importante proposição: a formulação de uma “Política Nacional de

Regulamentação do Mercado da Reciclagem”. Ela se objetivaria, por exemplo, na instituição de uma

bolsa nacional de compra e venda dos diferentes tipos de material, cujo papel seria determinar

patamares mínimos para seus preços através da: a) intervenção no mercado por meio de estoques

reguladores; e b) pelo aumento da tributação aos grandes recicladores ou indústrias fabricantes das

matérias-primas da reciclagem (alumínio, plástico, papel etc). Essa Política também atuaria no

fornecimento de amplos subsídios à formação de cooperativas, para a criação de indústrias de

reciclagem geridas pelos próprios catadores(as). Medidas como esta, concorreriam para abrir frentes

ao aumento do número de pessoas trabalhando na produção de bens e serviços de limpeza urbana,

simultaneamente viabilizando políticas de redução da jornada e, quiçá, do tempo de trabalho. No nosso

entender, fortaleceriam-se as bases para se trabalhar menos para que todos trabalhem (BIHR, 1991).

Trabalhar menos poderia possibilitar o paulatino resgate do trabalho enquanto atividade

devotada à satisfação individual, composta de sentidos desviados da produção mercantil. A relação do

homem com a natureza tenderia a se direcionar para o respaldo numa racionalidade superior, na qual a

produção como uso seria a produção de objetos com significado em si e para si ao homem, movendo

sua existência tanto física quanto psíquica também por estes parâmetros de racionalidade. Portanto, o

trabalho poderia voltar a se constituir como vida, obra e desejo e não meramente meio de vida. Seria

no e pelo trabalho que o homem se realizaria definitivamente enquanto ser. Nele e por ele o homem se

reconheceria novamente em um mundo por ele criado, tornado obra dinâmica, mas palpável e sensível.

Trabalhar menos significaria, entre outras atividades de engrandecimento pessoal desviadas

da lógica mercantil dos lazeres programados, o tempo livre desses homens e mulheres sendo utilizado

na compreensão mais aprofundada de toda a cadeia produtiva da reciclagem e o conhecimento da

gestão dos processos de trabalho na Associação. Esse tempo livre também poderia ser utilizado na

sua contínua formação política, de modo a construir uma compreensão mais aprofundada dos pilares

153

sobre os quais assenta a reprodução das relações sociais de produção, numa perspectiva constante da

luta pela sua superação.

É importante ressaltar que a remuneração pelos serviços prestados não deve estar

referenciada numa relação salarial ou como ação benevolente de Estado fornecida aos “incapazes”,

mas ligada a algo parecido àquilo que Bihr (1991) chamou de “renda social garantida”. Esta

remuneração, logicamente devendo ser estendida à toda sociedade, seria assegurada “...durante toda

a sua existência, a cada um de seus membros, em troca da obrigação que ela lhe impõe, fazendo-o

participar (que necessariamente vai diminuindo) do trabalho socialmente necessário” (BIHR, 1991,

p.193). Com isso, ao serem remunerados pelo seu trabalho, os(as) catadores(as) continuariam não

sendo formalmente submetidos à imposição de horários de trabalho (muito embora nas condições

atuais em que eles se encontram sua jornada de trabalho seja das maiores devido ao baixo preço

auferido com os recicláveis.

Crítica voltada para a negação dos sentidos e as finalidades da produção no capitalismo

Na mesma direção, estariam dadas as condições, no âmbito das lutas sociais dos(das)

catadores(as) da ASMARE e do MNCR, para que sentidos e finalidades outros fossem atribuídos à

produção social, reforçando este caráter e caminhando rumo à diluição da lógica privada de

apropriação daquilo que é produzido por todos. Uma estratégia interessante seria assomar o trabalho

da catação e o grau de importância nela contido – quando se pensa na reciclagem e na reutilização dos

materiais – como parte da desqualificação do modelo de reprodução social orientado pela produção

incessante de mercadorias. Ao reproduzir-se, entre outras motivações, mediante a ânsia de reduzir

drástica e continuamente o tempo de rotação dos capitais a partir da fluidez da circulação espaço-

temporal ou da diminuição da vida útil das mercadorias, o modo de produção capitalista acentua sua

dependência da exploração e da destruição da natureza. Ora, a melhor maneira de se economizar

matérias-primas é redefinir a produção social tendo em conta o “o quê?” e o “para quem?” produzir.

Ao se apontar as contradições entre os conteúdos dissimulados nas formas pelas quais a

reciclagem e a coleta seletiva se apresentam, contrapondo-as com o aumento generalizado do

consumo material e imaterial, poder-se-ia questionar o caráter das relações de produção sob o

capitalismo. Ao se encontrarem canalizadas pelos imperativos da racionalidade econômico-

instrumental-mercantil, em estreita consonância com os princípios do trabalho, da divisão social do

trabalho e da propriedade privada, tais relações de produção reivindicam para si todos os esforços,

concorrendo para o embotamento das diversas potencialidades humanas. Ademais, a produção deve

atender, antes, a uma finalidade social, definida coletivamente no âmbito local, forçando também a

redefinição das espacialidades a abrigarem as unidades produtivas. A desconcetração dessas

154

unidades poderia se efetivar fora dos interesses econômicos e mercantis, facilitando a sua tomada

pelas diversas pessoas trabalhadoras.

Crítica ao poder de Estado tal qual ele se coloca: reproduzindo os interesses do capital

A ASMARE e o MNCR devem, numa outra linha de atuação, conformarem-se como grupo de

pressão contra a ampliação dos princípios que, embora pareçam caminhar numa via contrária, atestam

a desregulamentação e a liberalização presentes nas políticas econômica e social do atual governo

federal, com vistas à plena liberdade de mercado. Esta orientação demonstra que o poder de Estado

continua possuindo extrema importância na criação dos arcabouços e condições gerais para o pleno

processo de acumulação do capital. Nestes termos, devemos nos perguntar: fim do Estado para quem?

Diante dos modos pelos quais o recuo do Estado face ao avanço do livre mercado chega até

as “políticas” direcionadas aos catadores(as) e à população de rua em geral, deve-se colocar na ordem

do dia o questionamento radical quanto à filiação a modelos de “inclusão” (como é o caso do

“Programa de Inclusão Produtiva”) pura e simples no existente. A satisfação das necessidades

prementes destas pessoas sem dúvida alguma é um imperativo. Todavia, não devem ser aceitos como

satisfações em si mesmas, arrefecendo as lutas maiores pela transformação da vida. O concernente às

reivindicações pelo “direito ao trabalho” (precário, estranhado e exteriorizado) deve ser substituído por

estratégias que visem à determinação coletiva sobre as condições sociais de existência, a qual envolve

o questionamento sobre o estatuto do trabalho na sociedade burguesa. É contra o capital e seu

conjunto de mediações (políticas e mercantis) que deve ser direcionada a luta dos(das) catadores(as) e

dos agentes de mediação ligados a ASMARE ou ao MNCR.

O questionamento aprofundado das condições sociais de existência proporcionaria chegar ao

centro do debate sobre a “exclusão social” situando-a no nível de análise que permitiria estabelecer a

sua denúncia sem tomá-la como fundamento da reprodução social vigente, mas como sua mais vil

expressão fenomênica. A “conquista da cidadania”, reduzida à inserção precária e tutelada nos eixos

de reprodução econômica do capitalismo, transformando as pessoas e sua cotidianidade numa

seqüência de movimentos programados pelos tempos e espaços abstratos da produção mercantil, não

pode deixar de ser interrogada. Embora dê algum tipo de alento aos seus “agraciados(as)”, permitindo-

os experimentarem o sentido burguês de “dignidade” pelo consumo (obviamente proporcional à sua

capacidade financeira para exercê-lo), esta cidadania mais parece o retorno da invariabilidade

estamental do “cada um no seu lugar”, impedindo a vida de transcender as adjetivações que lhe têm

sido dadas na contemporaneidade.

Os homens e mulheres catadores(as) necessitam de conquistar essa consciência de si

mesmos e do mundo. Para isso, a catação não pode ser a atividade que aniquila as demais faculdades

155

individuais, todas elas mobilizadas e encarceradas nas 10, 12, 14 horas diárias de trabalho duro. Na

mesma medida, a participação social deve ser uma prática que se constitua como parte da jornada de

trabalho diária do(da) catador(a). Entra aí, conforme salientado, o benefício à formação política por

meio do seu verdadeiro exercício propiciado pela remuneração por parte do Estado aos serviços

prestados por essas pessoas, que com o aumento de seus ganhos poderiam despender tempo fora da

catação.

Fazer com que a exigência do direito à moradia se construa como crítica à

metropolização segregadora

A ASMARE e o MNCR poderiam, ao longo da sua maturidade política, se constituir em

instâncias produtoras de um conhecimento crítico sobre o processo de urbanização e metropolização,

direcionando a luta para construção de uma democracia urbana fundada na política como ação refletida

de homens e mulheres em sua universalidade. Ao procurarem demonstrar que as discussões sobre o

“direito à moradia” postas à mesa pelo governo possuem forte acento na regulação fundiária que

determina a propriedade e o preço da terra, incidindo direta e indiretamente na qualidade da morfologia

dos diferentes lugares da metrópole, possibilita-se transformar a luta pela moradia numa pressão que

atinja as contradições fundamentais do capitalismo. Outrossim, a pobreza (material e espiritual) e a

falta de substância generalizadas que nos tomam de assalto, entre outras dimensões percebidas como

tais na redução do direito à cidade às conquistas apenas parciais da materialidade espacial nas

periferias, devem ser trazidas à tona, pois: “Mostrando como as pessoas vivem, a crítica da vida

cotidiana instala o ato de acusação contra as estratégias que conduzem a tal resultado” (LEFEBVRE,

2002, p.129).

Tais estratégias, revestidas pelo invólucro de “políticas públicas”, objetivam lidar com as

contradições expostas na metrópole, onde a marginalidade social ganha proporções alarmantes.

Procuram, como foi o caso das antigas “malocas”, dotar de funções produtivas espaços (construindo ali

a sede da Associação) onde as relações constitutivas formadoras da base de acumulação do capital

ainda não estavam postas. Por outro lado, a ASMARE e o MNCR não podem aceitar que a pobreza

mais uma vez seja escondida nas periferias distantes e empobrecidas a título de legitimação de

programas habitacionais draconianos. A centralidade deve ser democratizada, devendo as relações de

poder geradoras das assimetrias sociais – as quais fazem dela apenas o centro estratégico das

decisões econômicas e políticas – serem negadas na sua essência.

Enfim, as feições institucionalizadas assumidas pela atividade da catação também devem

entrar num novo campo de reflexões, priorizando outro tipo de relação com o Estado. Para tal, a

catação deve ser questionada na qualidade de portadora de uma “dimensão ecológica” porque

156

praticada por “agentes ambientais” e não mais por verdadeiros “inimigos da limpeza urbana” que lhe

vem sendo atribuída. Antes de qualquer coisa, é a própria reprodução do espaço na metrópole

enquanto reprodução ampliada das contradições do espaço que devem ser o mote para reflexão. Esse

direcionamento poderia proporcionar a percepção dos limites do fazer social do Estado – nos termos

em que se encontra e nos interesses e imperativos a que sustenta – e sua atuação com eles

consoante.

157

REFERÊNCIAS

ABENSOUR, Miguel. A democracia contra o Estado: Marx e o movimento maquiaveliano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. 147p.

ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 254p.

ADORNO, T.W. Mínima moralia: reflexões sobre a vida danificada. São Paulo: Ática, 1993. 216p. ADORNO, T.W. Capitalismo tardio ou sociedade industrial? In: COHN, Gabriel (Org.) Theodor Adorno. São Paulo: Ática, 1994. p. 62-75. Coleção Grandes Cientistas Sociais nº 54. ADORNO, T.W. Progresso. In: ADORNO, T.W. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995a Cap. 2, p.37-61.

ADORNO, T.W. Tempo Livre. In: Adorno, T.W. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995b. Cap. 4, p.70-82. ANDRADE, Luciana Teixeira de. Ordem Pública e Desviantes Sociais em Belo Horizonte (1897-1930).Belo Horizonte 1987, 320f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política), Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1999. 155p. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editoral, 2005. 258p. ARANTES, Paulo Eduardo. A fratura brasileira do mundo.In: ARANTES, Paulo Eduardo. Zero à Esquerda. São Paulo: CONRAD EDITORA, 2004. Cap. 02, p.25-77. ARANTES, Paulo Eduardo. Esquerda e direita no espelho das ONGs. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Zero à Esquerda. São Paulo: CONRAD EDITORA, 2004. Cap.11, p.165-189. AVRITZER, Leonardo Modelos de deliberação democrática: uma análise do orçamento participativo no Brasil. In Santos, Boaventura de Sousa (Org.), Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Porto: Afrontamento, 2005. Cap 7, p. 467-496.

158

AZEVEDO, Sérgio de; MARES-GUIA, Virgína Rennó. Orçamento Participativo como política pública: reflexões sobre o caso de Belo Horizonte. Caderno CRH, Salvador, n.35, p.179-197, jul./dez.2001 BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. 272p. BAUMAN, Zigmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 216p. BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua Nova, São Paulo, n.33, p.05-16, 1994.

BENKO. Georges. Economia, espaço e globalização na aurora do século XXI. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002. 266p.

BIHR, Alan. Da grande noite a alternativa: o movimento operário europeu em crise. São Paulo: Boitempo Editorial, 1991. 284p. BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2: por um movimento social europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. 116p. BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista: A Degradação do Trabalho no Século XX. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 379p.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania na Encruzilhada. In: BIGNOTTO, Newton (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000.

CHALLOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 250p. CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna, 1981. 220p. CONFERENCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO: 1992. RIO DE JANEIRO, RJ; NAÇÕES UNIDAS. Agenda 21. Brasília: Senado Federal /Subsecretaria de Edições Tecnicas, 2000. 260 p. DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: DAGNINO, Evelina (Org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.

159

174p. DAGNINO, Evelina. ¿Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?. In: MATO, Daniel (Coord.), Políticas de ciudadanía y sociedad civil em tiempos de globalización. Caracas: FACES, Universidade Central de Venezuela, 2004. Cap 5, p.95-110. DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e constituinte. São Paulo: Saraiva, 1982. 89p.

DAMIANI, Amélia Luisa. As contradições do espaço: da lógica (formal) à lógica dialética, a propósito do espaço. In: DAMIANI, Amélia Luisa, et al. (Orgs.). O espaço no fim de século: a nova raridade. Cap. 3, p.48-61. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 237p. DIAS, Sônia Maria. Construindo a cidadania: avanços e limites do projeto de coleta seletiva em Parceria com a ASMARE. 2002, 203f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. ESCOREL, Sarah. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1999. 275p. EVASO, Alexander Sérgio et al. Desenvolvimento sustentável: mito ou realidade? Terra Livre, São Paulo, n.11-12, p.91-100, ago.92/ago.93. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2006. 512p. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1997. 277p. GORZ, André. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro: Forense – Universitária, 1987. 203p. HARVEY, David. Condição pós-moderna: pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1994. 349p.

HARVEY, David. Espaços de esperança. São Paulo: Loyola, 2004. 384p.

HIGGINS, Silvio Salej. Precisamos de capital social?: sim, mas socializando o capital. Em tese, Florianópolis, v.2, n.1(3), p.1-21, jan./jul.2005.

160

HIRATA, Helena. Da polarização das qualificações ao modelo da competência. In: FERRETI, Celso João et al. (Orgs.), Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 2000. p.128-139.

JACOBI, Pedro; TEIXEIRA, Marco Antônio C.. A formação do capital social: o caso ASMARE – Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo Horizonte. Cadernos de Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v.2, jun.1997. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 230p.

LEAL, Antônio Cezar et al. A reinserção do lixo na sociedade do capital: uma contribuição ao entendimento do trabalho na catação e na reciclagem. Terra Livre, São Paulo, n.19, p.177-190, jul./dez.2002. LEFEBVRE, Henri. Posição: Contra os tecnocratas. São Paulo: Nova Crítica, 1979. 203p.

LEFEBVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 301p. LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991. 216p. LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Tradução de Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins. [S.I.:s.n.], 2003. Inédito. Título original: Espace et politique (Paris: Anthropos, [1972]). LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Tradução de Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins. [S.i.:s.n.], 2007. Inédito. Título original: La production de l’espace. 4ª ed. Paris: Éditions Anthropos, 2000). LEFEBVRE, Henri. Revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 178p. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2004. 145p.

LEFEBVRE, Henri. Um pensamento tornado mundo: é preciso abandonar Marx?. Tradução de Sérgio Martins. Título original: Une pensée devenue monde. Faut-il abandonner Marx?. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1980. Primeira versão. Início: mai. 2005. LIMA. Francisco de Paula Antunes. A engenharia de produção solidária. Trabalho & Educação, Belo Horizonte, vol.12, n.01, p.115-126, jan./jun. 2003.

161

MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 238p. MARICATO, Ermínia. Autoconstrução, a arquitetura possível. In: MARICATO, Ermínia. A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Alfa-Omega, 1982. p. 71-93. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. 220p. MARTINS, Jose de Souza. Conde Matarazzo o empresário e a empresa: estudo de sociologia de desenvolvimento. São Paulo: Hucitec, 1976. 121p. (Coleção estudos brasileiros,1). MARTINS, José de Souza. O falso problema da exclusão e o problema social da inclusão marginal. In: MARTINS, José de Souza. A exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997. p.25-38. MARTINS, José de Souza. Reflexão crítica sobre o tema da “exclusão social”. In: MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002a. p.25-47. MARTINS, José de Souza. O problema das migrações e da exclusão social no limiar do terceiro milênio. In: MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002b. p.119-137. MARTINS, José de Souza. A escravidão na sociedade contemporânea – A reprodução ampliada anômala do capital e a degradação das relações de trabalho. In: MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002c. p.151-162. MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples. S. Paulo: Hucitec, 1999. 210p. MARX, Karl. Capítulo VI inédito de O Capital: resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Moraes, 1985. 169p. MOREIRA, Ruy. O que é Geografia?. São Paulo: Brasiliense, 1994. 113p. (Coleção Primeiros Passos, 48) MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania. Política e Sociedade – Revista de Sociologia Política, Florianópolis, vol.01, n.03, p.11-26, outubro 2003.

162

NUNES, Christiane Girard Ferreira. Cooperativas, uma possível transformação identitária para os trabalhadores do setor informal. Sociedade e Estado, Brasília, v.16, n.1-2, jan./dez.2001. OLIVEIRA, Francisco de. Da dádiva aos direitos: a dialética da cidadania. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 25, ano 09, p.42-44, junho de 1994.

OLIVEIRA, Francisco de. O surgimento do antivalor. In: OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do antivalor. Petrópolis: Vozes, 1998a. Cap.1, p.19-48. OLIVEIRA, Francisco de. A economia política da social democracia. In: OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do antivalor. Petrópolis: Vozes, 1998b. Cap.2, p.49-61. OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. In: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.) Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis: Vozes, 1999. p.55-79.

OLIVEIRA, Maria Vany. Entre ruas, lembranças e palavras: a trajetória dos catadores de papel em Belo Horizonte. 2001. 330f. Dissertação (Mestrado em Sociologia: Gestão das Cidades). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. PEDROSA, José Geraldo. Trabalho e educação no capitalismo tardio: crítica ao trabalho hipostasiado. 2003. 217f. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Valter. Globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 464p. PRADO JÚNIOR, Caio. Historia Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004. 364p. RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil – 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 209p.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996a. 144p.

RANCIÈRE, Jacques. O Dissenso. In: NOVAES, Adauto (Org.) A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996b. p.367-382.

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. 329p.

163

SANTOS, Oder José dos. Reestruturação capitalista: trabalho e escola. Trabalho & Educação, Belo Horizonte, v.13, n.01, jan./jul.2004. SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997. 348p. SARAIVA, Luiz Alex Silva. Consenso ou Consentimento? A pseudodemocracia na organização contemporânea. In: PIMENTA, Solange Maria; CORRÊA, Maria Laetitia (Orgs.) Gestão, Trabalho e Cidadania: Novas Articulações. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. 368p.

SECOM/PR – SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO DE GOVERNO E GESTÃO ESTRATÉGICA DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. O Brasil na era do desenvolvimento sustentável. Brasília, ano 2, n.4, dez.2004. SELLTIZ, Claire et al. Métodos de pesquisa nas relações sociais. São Paulo: E.P.U., 1987. SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2002. 127p. SMAS – SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Inclusão Produtiva. Belo Horizonte, Julho de 2003. SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. 207 p. TELLES, Vera da Silva. Espaço público e espaço privado na constituição do social: notas sobre o pensamento de Hannah Arendt. Tempo Social, São Paulo, v.2, n., p.23-48, 1sem.1990. TELLES, Vera da Silva. Pobreza e Cidadania: dilemas do Brasil contemporâneo. Caderno CRH, Salvador, n.19, p.8-21, 1993.

TELLES, Vera da Silva. Pobreza, movimentos sociais e cultura política: notas sobre as (difíceis) relações entre pobreza, direitos e democracia. DINIZ, Eli; LOPES, José Sérgio Leite; PRANDI, Reginaldo (Orgs.). O Brasil no Rastro da Crise: Partidos, Sindicatos, Movimentos Sociais, Estado e Cidadania no Curso dos Anos 90. São Paulo: ANPOCS/HUCITEC/IPEA, 1994. p.225-243.

TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania: figurações da questão social no Brasil moderno. In: TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia: Ed. 34, 2001, p.13-56.

164

VAINER, Carlos. Pátria, empresa, mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. In: ARANTES, Otilia Beatriz Fiori. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2001. 192 p. VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: CONRAD EDITORA, 2002, 296p. ZARIFIAN, Philippe. O modelo da competência – trajetória histórica, desafios atuais e propostas. São Paulo: Editora SENAC, 2003. 192p.

165

Anexo 1

Imagem 01: Folder produzido pelo MNCR, com o apoio do Governo Federal.