Escavar para quê? Conhecer os artistas para compreender a arte do Côa [Why Excavate? Knowing the...
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Escavar para quê? Conhecer os artistas para compreender a arte do Côa
Thierry Aubry, António Fernando Barbosa,
Luís Luís, André Tomás Santos, Marcelo Silvestre
ResumoNeste texto pretende-se refletir sobre a importância da investigação arqueológica para o conhecimento da arte paleolítica do Vale do Côa, que deverá alicerçar os discursos produzidos para a divulgação alargada deste património, algo de essencial para o desenvolvimento integrado da região. Esta reflexão tem como "pano de fundo” os principais resultados advindos das duas campanhas de escavação levadas a cabo durante o ano de 2014 no sítio arqueológico da Cardina (Santa Comba, Vila Nova de Foz Côa).
Palavras-chave
Arqueologia; Arte rupestre; escavação; Cardina, Vale do Côa;
Paleolítico superior; Paleolítico médio
Arte e Arqueologia
Não é pacífica a definição de arte nas sociedades
contemporâneas, bem patente na incredulidade de muitos
quando um par de sandálias gigantes feitas com panelas é
vendido por cerca de 574.000 euros.
Trata-se de uma velha discussão, que perdura desde pelo
menos a Grécia Antiga e que, em traços gerais, é
protagonizada por dois campos. Um deles dá primazia à
estética, entendida como a busca do belo através da
organização formal harmoniosa dos elementos que
compõem uma obra. O segundo campo valoriza na obra de
arte a sua capacidade de servir como meio de
comunicação, cujo poder radica na sua capacidade
metafórica e na possibilidade que tem de ordenar ideias
transmitidas através de um conjunto de signos e técnicas
(Layton 2001). Embora na maioria dos casos ambas as
perspetivas se conciliem, a história de arte é feita de uma
*sucessão de correntes e autores
que vão dando mais importância
a uma ou outra perspetiva.
Hoje em dia a estética
parece por vezes estar
ausente da grande maioria
das obras de arte
contemporâneas e a
Fundação Côa ParqueR. do Museu 5050-610 Vila Nova de Foz Côa
*
mensagem deixou de ser evidente. Cada vez mais a
obra de arte é definida como tal, não pelas suas
características intrínsecas, mas pelo contexto em
que surge. Podemos não compreender uma peça,
mas se aparece num museu, no Palácio de
Versalhes, se é objeto de coleção, compra e venda
num mercado específico que move milhões, será
entendida como arte. Ela é assim definida em
grande medida pelo seu contexto.
Por outro lado, para além do prazer estético
subjetivo que nos possa proporcionar, a
compreensão da obra de arte depende também do
contexto em que é produzida. Ao olharmos para
um quadro como o Guernica de Picasso poderemos
gostar mais ou menos, mas seguramente iremos
compreendê-lo melhor se soubermos que se
inscreve no desenvolvimento da sua estética
cubista e que foi pintado em resposta ao
bombardeamento da cidade basca epónima, a 26
de Abril de 1937, pelas forças nazis durante a Guerra
Civil de Espanha. Os corpos despedaçados, a mãe
com o filho inerte nos braços ou o cavalo que
relincha ganham uma nova dimensão, quando
percebemos que Picasso os pintou como um
instrumento de combate contra a barbárie.
A arte é assim um reflexo indireto do contexto
social que a produz. A preocupação com a guerra e
a vanguarda estética de 1937 foram entretanto
substituídas pelo consumismo e pela
mercadorização. Neste contexto se compreende
uma peça como as sandálias Marilyn (2009) de
Joana Vasconcelos, não por acaso patrocinada por
uma marca de panelas.
Se a perspetiva social da arte é válida para a
compreensão da arte nas sociedades atuais e
possuidoras de escrita, ela ganha uma outra
dimensão quando tratamos de sociedades passadas
sem escrita, como os caçadores-recolectores
120
paleolíticos .
A única forma de acedermos à compreensão destas
sociedades é através da Arqueologia, a ciência da cultura
material. Ela estuda os vestígios físicos das sociedades do
passado, geralmente protegidos por camadas
sedimentares, que sobreviveram até à atualidade. Essa é a
sua primeira grande limitação, pois o arqueólogo tem
consciência que os vestígios conservados são uma ínfima
fração dos testemunhos deixados, inversamente e
proporcional à distância de tempo que nos separa deles.
Por outro lado, sendo uma ciência social, a Arqueologia
não se contenta com a descrição dos objetos que recupera,
ela pretende sobretudo partir desses reduzidos vestígios
materiais para compreender o todo social que os produziu.
A partir dos vestígios materiais será assim mais fácil
perceber a estrutura económica, o modo de vida, a
arquitetura, até o meio ambiente de uma sociedade, do
que conhecer os seus modos de pensar ou a sua ideologia.
É neste ponto que a arte rupestre tem um valor
fundamental, pois, sendo uma expressão artística
geralmente associada aos povos sem escrita (Taçon e
Chippindale 1998), ela é uma das poucas formas de aceder
a essas dimensões. Isso é aliás bem exemplificado por um
dos critérios da UNESCO na inscrição da arte do Côa na sua
Lista de Património Mundial, que para além das dimensões
económica e social afirma que a arte do Vale do Côa ilustra
de uma forma excecional a vida espiritual do mais antigo
antepassado da humanidade (UNESCO 1999: 31).
Neste sentido, a arte rupestre, também enquanto vestígio
material, deve ser estudada como um objeto arqueológico,
e não, como não poucas vezes acontece, como algo
desgarrado do contexto social que o criou. O objeto
artístico por si só não nos diz muito. Poderemos gostar
mais ou menos, admirar a técnica ou a harmonia da forma,
mas isso pouco nos dirá acerca de quem o fez, porquê, em
que contexto e quando. Conciliando a arte e os restantes
vestígios materiais estudados pela Arqueologia teremos
uma perspetiva mais global das sociedades do passado.
A singularidade do Vale do Côa
A descoberta da arte rupestre do Vale do Côa trouxe para a
ribalta um debate científico acerca da sua antiguidade. O
ruído mediático, criado com o intuito de invalidar a
atribuição cronológica dos vestígios então identificados,
pouco ou nenhum reflexo teve na comunidade
arqueológica, apesar de ainda se ouvirem por vezes alguns
ecos longínquos.
A resposta às perguntas que então foram suscitadas,
sobretudo relacionadas com a antiguidade das
representações artísticas do Baixo Côa, vieram da
1 1
Por comodidade,
utilizamos o termo
“arte” para designar as
manifestações gráficas
das sociedades de
caçadores-recolectores
do passado, embora
tenhamos consciência de
que para elas isso teria
um sentido distinto do
que a arte tem para a
nossa sociedade.
investigação arqueológica
iniciada em 1995.
Numa primeira fase, foi com
base em argumentos
estilísticos que se justificou a
datação paleolítica da fase
mais antiga da arte do Côa
(Zilhão 1997). São estes os
principais argumentos
utilizados para a atribuição
cronológica em toda a
História da Arte, incluindo a
arte paleolítica em gruta.
Foram então propostas duas hipóteses
cronológicas relativamente às densas
sobreposições dos sítios de Canada do Inferno e
Penascosa. Uma delas defendia uma diacronia
longa para este tipo de rochas (Baptista 1999),
interpretando as sobreposições como resultado de
uma acumulação.
Outros autores defendiam um tempo curto para a
gravação daquelas rochas há cerca de 18.000 anos,
com base no quadro crono-estilístico de Leroi-
Gourhan, interpretando, como este, as
sobreposições como composições (Balbín
Behrmann et al. 1996).
Ao mesmo tempo iniciava-se o trabalho de
prospeção e escavação dos sítios arqueológicos
passíveis de preservar vestígios paleolíticos.
Recorde-se que então se afirmava que o interior da
Península Ibérica teria estado despovoado durante
o Paleolítico superior, pelo que a arte não poderia
ter essa data.
Em Agosto de 1995 identificou-se a primeira jazida
arqueológica com vestígios de ocupação paleolítica
no Vale do Côa, o sítio da Cardina/Salto do Boi
(Santa Comba) (Zilhão et al. 1995) (Fig. 1).
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Fig. 1: Vista geral do sítio da Cardina (Santa Comba)
(fotografia José Paulo Ruas)
O seu reconhecimento comprovou, pela primeira vez, a
existência de ocupação humana contemporânea da data
atribuída à arte rupestre, rebatendo um dos argumentos
dos que defendiam uma cronologia recente para as
gravuras - o da ausência de contexto arqueológico coevo.
Quatro anos mais tarde, a descoberta da Rocha 1 do
Fariseu e a obtenção das primeiras datas absolutas que
confirmaram a atribuição tipológica das indústrias de pedra
lascada, vieram confirmar este facto.
Os trabalhos arqueológicos realizados entre 1996 e 2001 na
Cardina vieram atestar uma sequência de ocupação
paleolítica, com oito diferentes fases entre o Gravettense e
o Azilense, bem como identificar um conjunto de
estruturas nos diferentes níveis.
Entretanto, outros sítios foram sendo identificados e
escavados, nomeadamente o conjunto de sítios de caça
localizados no planalto granítico das Pedras Altas
(Almendra), onde se identificou um conjunto de picos em
quartzito utilizados na produção de gravuras picotadas
(Aubry 2009).
A descoberta e escavação do sítio do Fariseu em
Novembro de 1999 assinalam um marco no estudo do
122
Fig. 2: Cobertura sedimentar da rocha 1 do Fariseu durante a escavação de Dezembro de 1999 (fotografias Thierry Aubry).
Vale do Côa, pela descoberta de um painel repleto
de sobreposições de figuras gravadas, associado
fisicamente a um conjunto de camadas
sedimentares contendo vestígios arqueológicos
(Fig. 2).
Após a descoberta dos picos em quartzito e de
quatro placas gravadas com motivos não
figurativos na Cardina e Quinta da Barca Sul, esta
associação direta entre arte e ocupação humana,
preservada nas camadas arqueológicas, veio
confirmar a atribuição cronológica das gravuras
mais antigas do Vale do Côa ao Paleolítico superior,
como já defendido mediante critérios estilísticos.
As datações obtidas pelos processos da
luminescência (sobre sedimentos e pedras
queimadas) e do radiocarbono (sobre osso e sobre
carvão) no sítio do Fariseu, publicadas em 2005,
demonstraram que as gravuras da rocha 1 datam de
há mais de 18.400 anos (Aubry 2009). Foi ainda
possível obter uma data de cerca de 23.000 anos, a
partir de um fragmento de carvão recuperado num
nível mais antigo, mas não diretamente associado
ao painel gravado.
A análise da sobreposição das figuras e a organização na
superfície vertical do painel contradizem a hipótese de um
longa diacronia e indicam que a fase gráfica mais antiga do
Côa será de idade solutrense (23.000 a 26.000 anos) ou,
mais provavelmente, gravettense (26.000 a 30.000)
(Aubry et al. 2014). Deu-se assim por terminado o debate
relativamente à duração da gravação dos painéis com
densas sobreposições e ao seu posicionamento
cronológico, confirmando-se a hipótese do tempo curto,
num momento pré-magdalenense. Por outro lado, a
descoberta de mais de 70 plaquetas de xisto gravadas no
interior da camada 4 permitiu também a obtenção de um
referencial estilístico regional para a fase mais recente da
arte paleolítica, que corresponde ao fim da era glaciar,
datada de cerca de 12.000 anos antes do presente.
A existência de outros sítios contemporâneos,
diretamente associados ou não com a arte, alargou a
nossa compreensão do contexto social das gravuras,
assim como do meio ambiental (clima e fauna) que as
envolvia. Passámos assim a poder responder às perguntas:
De que recursos viviam? Como funcionavam e se
organizavam as sociedades em que se integravam os
artistas do Côa?
A identificação da origem das rochas, que foram utilizadas
para o fabrico das armas de caça, abandonadas depois de
utilizadas e fracturadas nos sítios do Côa, revelou a
exploração de rochas siliciosas de filão localizadas ao
longo do Côa e de alguns rios próximos, mas também a
importação de sílex do Centro de Portugal e do interior da
Meseta. Aquilo que inicialmente se considerava uma
desvantagem – a grande distância desta região para as
zonas ricas em sílex – revelou-se afinal uma oportunidade
para melhor compreender a organização social dos
autores da arte do Côa. A identificação das fontes de
matéria-prima utilizadas na região, algumas deles a mais
de 150 quilómetros, prova a existência de contactos entre
o bando local e outros grupos localizados, tanto na
Estremadura portuguesa, como no centro da Meseta
Norte (Aubry et al. 2012).
A investigação arqueológica realizada desde 1996 ensinou-
nos já muito sobre a arte do Côa e as sociedades que a
produziram e utilizaram. Foi o conhecimento científico
decorrente deste trabalho que permitiu desenvolver as
propostas interpretativas apresentadas no Museu do Côa
em 2010, de uma forma simples e acessível.
Mas o museu não pode ser considerado como a conclusão
de um processo iniciado em 1995. Por cada resposta que
obtemos, mais perguntas surgem, muitas vezes sugeridas
até por visitantes.
As 8 fases de ocupação documentadas
representam a totalidade da ocupação paleolítica
da região, ou são apenas o que foi possível
discriminar até ao momento? Qual a verdadeira
localização da fase 6 no interior do Magdalenense?
Qual a relação entre estas 8 fases e as 3 fases
artísticas até agora descriminadas? Confirmar-se-á
a datação magdalenense da fase intermédia
proposta pela análise estilística? Confirmar-se-á a
contração dos contactos intergrupais durante o
Magdalenense tal como sugerido pela análise da
arte rupestre? Como explicar essa contração? As
relações com o Norte peninsular durante o
Magdalenense, inferidas a partir da análise formal
da arte, detetar-se-ão no restante registo
arqueológico? Também no Côa se verificarão
diferenças substanciais entre a temática da arte
móvel e a da arte parietal? Qual a verdadeira
importância da ocupação Neandertal da região
durante o Paleolítico médio, apenas sugerida por
alguns vestígios isolados (Aubry e Carvalho 1998)?
Qual a organização espacial dos sítios escavados
apenas parcialmente? Que estrutura social
podemos inferir a partir desses vestígios?
Confirmar-se-á que a arte reflete essa mesma
estruturação social e é instrumental para a sua
manutenção? Qual a relação entre a fauna
existente ou consumida e a fauna representada ao
longo do Paleolítico superior? O que foi mudando
durante os cerca de 20.000 anos de evolução das
sociedades do Paleolítico superior na região? O que
é que as alterações que se identificam nas
diferentes fases artísticas nos dizem acerca das
sociedades que lhes deram origem?
Foi com estas e outras questões em mente que foi
submetido à Direção-Geral do Património Cultural,
no início de 2014, um projeto de investigação
plurianual de investigação arqueológica,
denominado “Cronologia e paleoambientes da
ocupação paleolítica do Vale do Côa”, que
contemplava também a realização de escavações
arqueológicas no sítio da Cardina.
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Fig. 3: Aspeto geral da 1ª campanha de escavação da Cardina em 2014
(fotografia José Paulo Ruas).
pende, por agora, para uma
ocupação por pequenos
grupos ao longo do tempo,
tendo em conta a falta de
vestígios de grandes
estruturas com uma
arquitetura que implique um
grande investimento
coletivo. A quantidade de
fragmentos de placas de
xisto não local recolhidos
neste nível, sete deles com
vestígios de traços,
reforçam a possibilidade de
identificação de elementos
2
2
Estes trabalhos foram
realizados por técnicos da
Fundação Côa Parque, com
a colaboração de
investigadores da DGPC,
UNIARQ (Universidade de
Lisboa) e Universidade de
Barcelona, e contaram com
o apoio logístico da Junta
de Freguesia de Santa
Comba e da Câmara
Municipal de Vila Nova de
Foz Côa.
gráficos que possam vir a contribuir para um
melhor conhecimento e datação arqueológica da
fase intermédia da arte do vale, localizada entre o
momento de realização da rocha 1 do Fariseu e o
das plaquetas gravadas da camada 4 do mesmo
sítio.
De regresso à Cardina
Passados 13 anos, o sítio da Cardina - o primeiro
identificado na região - foi considerado como o que
dispunha de mais potencial para poder responder a
algumas das questões levantadas acima.
Trata-se, afinal, de um acampamento no fundo do vale com
uma boa preservação sedimentar de um conjunto alargado
de ocupações humanas distintas, incluindo estruturas. Esta
escolha procurou ainda comparar os acampamentos do
fundo do vale com as ocupações logísticas do planalto
granítico da região de Almendra, tanto ao nível das
estruturas conservadas como da organização espacial. O
sítio foi assim objeto de duas campanhas entre Maio e
Outubro de 2014 (Fig. 3) .
Nestas campanhas abriu-se uma área de 26 m2, em três
setores distintos, escavando-se cerca de 25 m3 de terra e
atingindo-se uma profundidade máxima de mais de 3
metros a partir da superfície atual. Recuperaram-se 41.404
objetos arqueológicos (Fig. 4), com um peso total de 365,6
kg (Fig. 5), incluindo 7.187 termoclastos, 683 núcleos e 398
utensílios líticos (Fig. 6), para além de se ter documentado
um significativo conjunto de estruturas.
Nos níveis magdalenenses observou-se uma forte
densidade de pequenas fogueiras, constituídas por blocos
ou seixos de riólito, quartzo, quartzito, xisto e granito, que
se dispersam por toda a área escavada. Esta distribuição
poderá ser interpretada como resultando de uma única
ocupação por um grande grupo humano, ou como uma
sucessão de reutilizações de espaços adjacentes por um
pequeno número de pessoas, ao longo da plataforma.
Qualquer que seja a interpretação, a dispersão de
pequenas estruturas de tipologia semelhante parece
apontar para uma sociedade atomizada, baseada em
pequenas unidades de tipo familiar. A interpretação Fig. 4: Crivagem a água de uma unidade arqueológica, evidenciando a abundância de material arqueológico (fotografia José Paulo Ruas).
Fig. 5: Materiais recolhidos em escavação antes do seu tratamento e estudo para integração no espólio do Museu do Côa (fotografia José Paulo Ruas).
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Fig. 6: Utensílio sobre lâmina em sílex no momento da sua descoberta (fotografia José Paulo Ruas).
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Nos níveis mais antigos do Paleolítico superior, datados do
Gravettense, confirmaram-se as observações realizadas
entre 1999 e 2001, que indicavam a existência de pelo
menos duas fases de ocupação. Constatou-se ainda a
existência de pelo menos uma grande estrutura em fossa
de morfologia circular, preenchida por concentrações de
blocos, semelhante à estrutura descoberta nas escavações
anteriores (Fig. 7).
Estas estruturas com um raio de 5 a 6 metros deverão
dispersar-se por uma parte consideravelmente extensa da
plataforma, a julgar pelos resultados das sondagens
escavadas até 2001 e agora da U'15-16, assim como pelas
anomalias de resistividade detetadas durante a prospeção
geofísica realizada em 1996. Neste momento levantam-se
várias hipóteses para a sua interpretação funcional, desde
estruturas de habitação, processamento de recursos,
armazenamento ou outras.
Independentemente disso, a existência deste tipo de
estruturas implica um modo de ocupação do sítio que
contrasta com a ocupação magdalenense. A construção e
utilização de estruturas desta dimensão denunciam um
Fig. 7: Estrutura pétrea gravettense e sondagem nas camadas mais antigas, atribuídas ao Paleolítico médio (fotografia Thierry Aubry).
investimento tal que pressupõe uma organização
social de tipo distinto das fases subsequentes.
Presume-se assim a existência de maiores
concentrações populacionais e/ou durante mais
tempo. O mesmo acontece com o investimento
exigido para a construção das estruturas de
combustão no planalto granítico, como a Olga
Grande 4, durante esta mesma fase, que, também
aí, contrasta com a ligeireza das estruturas de
combustão do nível magdalenense.
Mas a maior novidade dos trabalhos arqueológicos
realizados em 2014 no sítio da Cardina consistiu na
identificação de pelo menos dois níveis de
ocupação atribuíveis ao Paleolítico médio. A
pequena área escavada não permite, para já, tecer
grandes considerações sobre estas ocupações,
contudo, a densidade de materiais registada, bem
como a documentação de algumas pequenas
acumulações de blocos, sugere que uma escavação
em extensão poderá vir a fornecer dados
relevantes, nomeadamente ao nível da organização
espacial, sobre a ocupação deste terraço por
grupos de Neandertais, que precederam a
produção artística conhecida no Vale do Côa. Uma
questão importante a averiguar no futuro será
perceber se a indústria destas ocupações se resume
ao quartzo e quartzo hialino, como até agora
identificado, ou se existe igualmente uma indústria
sobre suportes de silicificações de filão, sílex ou
silcretes, como durante o Paleolítico superior, o que
implicaria necessariamente a existência de uma
vasta rede de aprovisionamento (Aubry et al. 2012),
como se verifica, por exemplo, na Estremadura
portuguesa (Matias 2012).
Devido à profundidade a que se encontram estes
materiais e à densidade de vestígios nos níveis
superiores, a escavação destes contextos
apresenta vários desafios, mas também elevadas
potencialidades, não sendo ainda de descartar a
existência de vestígios de ocupações mais antigas
do Paleolítico inferior, até agora apenas
documentadas em posição secundária sobre os
terraços fluviais dos rios Côa e Douro (Aubry et al.
1997).
Perspetivas de futuro
Os resultados obtidos durante as duas campanhas
de escavação realizadas em 2014 no sítio da Cardina
abrem novas perspectivas para a compreensão e
valorização da arte do Côa, acrescentando dados
126
únicos sobre as sociedades que ocuparam o Vale do Côa.
A sequência da ocupação pleistocénica do Vale do Côa é
cada vez mais longa. A campanha de 2014 na Cardina
demonstrou que a região possui um elevado potencial na
preservação de vestígios mais consistentes de ocupação de
grupos neandertais, para além dos ténues achados
identificados até ao momento. Por outro lado, os dados
confirmam o carácter excepcional dos vestígios
gravettenses, que refletem as especificidades das
comunidades humanas desse momento. Entre esses
indícios refiram-se as estruturas monumentais da Cardina,
cuja complexidade só encontra paralelos nos sítios
clássicos do Centro e Norte da Europa.
O estudo e interpretação destas estruturas abrem caminho
para um aprofundamento da interpretação da fase mais
antiga da arte do Vale do Côa no seu contexto social.
Por outro lado, os vestígios de arte móvel identificados na
fase magdalenense confirmam a potencialidade do sítio
fornecer dados relativos à datação arqueológica da fase
intermédia do Côa.
Mas muito falta ainda responder. Sabemos que a arte mais
antiga do Côa tem mais de 18.400 anos. Mas quantos anos
mais? Datará de há 25.000 ou de há 20.000? Terá essa arte
pré-magdalenense sido produzida em bloco num período
ou ao longo de 7 ou 8.000 anos? Qual a relação direta entre
as três fases identificadas até ao momento na arte (Santos
2012) com as oito identificadas em escavação? A ocupação
paleolítica da região dividiu-se nas fases intermitentes que
conhecemos hoje ou foi contínua e a sua intermitência
arqueológica resulta de processos de erosão sedimentar?
Quando passam 20 anos desde o início do estudo
arqueológico da arte do Vale do Côa, grande parte das
perguntas que se levantavam nessa altura encontra-se
definitivamente respondida. Mas seguindo o paradoxo
filosófico socrático, quanto mais conhecemos, mais
dúvidas e perguntas temos. Temos assim dois caminhos.
Ou nos contentamos com as respostas que já temos e com
a nossa própria ignorância, ou seguimos a busca do
conhecimento e da compreensão desta arte no seu
contexto.
Não se trata aqui de uma mera busca diletante de
conhecimento. Na construção da memória histórica, a
Arqueologia tem um papel único e insubstituível, pois é a
única forma de aceder ao conhecimento de determinadas
sociedades do passado. Daí lhe advém a sua relevância
social.
Essa relevância, por vezes ignorada na sociedade
contemporânea, é bem exemplificada na apropriação ou
distorção do seu discurso.
Veja-se, no caso português, a
legitimação nacionalista do
discurso da ditadura fascista
por arqueólogos como
Manuel Heleno, que se
esforçou por afirmar de
forma não substanciada a
“unidade moral” da
nacionalidade desde “tempos
da pedra polida”, ou Mendes
Corrêa, que justificava o
Império colonial português
através de um suposto
Império Megalítico (Fabião
1999). De consequências mais
trágicas foi a utilização das
teorias do arqueólogo Gustaf
Kossinna para a justificação
do pangermanismo e do mito
ariano nazis. O vestígio
material pode ser tão
relevante que leve à sua
destruição, como no caso dos
Budas de Bamyan,
bombardeados pelos talibãs
afegãos em Março de 2001,
ou, mais recentemente, das
destruições no Museu de
Mossul e dos sítios
arqueológicos iraquianos de
Hatra e Nimrude pelo
autodenominado Estado
3
Esta é aliás a razão da
nossa grande ignorância
relativamente à
segunda mais
importante fase
artística do Vale do Côa,
a Idade do Ferro, que
conta já com mais de
450 painéis
identificados (Reis
2014). Também aqui, só
a investigação do seu
contexto arqueológico
pode trazer à luz do dia
novos dados, o que se
comprova pelo facto do
maior avanço recente
no seu conhecimento
advir dos resultados da
escavação arqueológica
do sítio do Castelinho
(Torre de Moncorvo) e
da identificação em
contexto arqueológico
de mais de 150 placas
com motivos gravados
(Santos et al. 2012), que
encontram paralelos
nos painéis das margens
do Côa e Douro.
Islâmico.
Mas para além da relevância social da Arqueologia
ela pode ter uma repercussão direta na região,
como exemplificado no Vale do Côa. Sem o
conhecimento arqueológico do contexto desta arte
ela poderia emocionar alguns espíritos mais
sensíveis, mas, para muitos, ela não teria deixado
de ser “uma série emaranhada de garatujas
horrendas e indecifráveis” (Moura 1995). Para além
da beleza que encontramos na arte do Côa, é o seu
contexto e a sua explicação que tem atraído os
mais de 400.000 visitantes que já vieram ao Parque
e Museu do Côa desde Agosto de 1996. Tem sido a
investigação arqueológica que tem fundamentado
este discurso transmitido através das visitas
guiadas à arte rupestre e, mais recentemente, no
museu. Só ela o poderá continuar a fazer .3
127
coavisão.17.2015Escavar para quê? Conhecer os artistas para compreender a arte do Côa I Thierry Aubry I António Fernando Barbosa I Luís Luís I André Tomás Santos I Marcelo Silvestre
Se ficarmos satisfeitos com o que já sabemos corremos o
risco de fossilizar e, por conseguinte, perdermos a
capacidade de atrair novos públicos. Só a Arqueologia
poderá continuar a alimentar o discurso que fundamenta
o Parque e Museu do Côa e os torna socialmente
relevantes, justificando o investimento público que neles
tem vindo a ser feito.
128
Bibliografia
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