Encenação enquanto Instalação: reflexões sobre a estrutura tectônica do arranjo espetacular...

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Encenação enquanto Instalação: reflexões sobre a estrutura tectônica do arranjo espetacular pós-dramático 1 Resumo Este trabalho discute as práticas pós-dramáticas de encenação por meio do conceito de instalação. Alguns aspectos desta noção, tais como imersão do espectador no trabalho artístico, capacitação do espectador enquanto leitor ativo e até interação do espectador com o dispositivo artístico, bem como a hegemonia das qualidades materiais e sensoriais dos objetos sobre sua dimensão simbólica, vem diretamente ao encontro das práticas teatrais pós-dramáticas. Nelas, percebemos o deslocamento do eixo comunicacional dominante, do eixo intra-ficcional para o eixo palco-platéia. Em outras palavras, produção e recepção do trabalho artístico (teatral ou escultural) são vistos, em primeiro lugar, como configuração de um acontecimento social. Um efeito dramatúrgico é o deslocamento do conflito dramático da seqüência temporal para as relações espaciais. O objetivo fundamental deste deslocamento é claramente uma tentativa de reintroduzir na prática teatral e em sua recepção uma discussão sobre as relações entre a prática teatral e a realidade social, especialmente no que concerne a construção do que chamamos de realidade, bem como uma tomada de consciência dos espectadores sobre seu posicionamento concreto nesse processo. Palavras Chave: Instalação – teatro pós-dramático – representação – performativo Abstract This work discusses aspects of postdramatic ways of producing theatrical performances through the concept of installation. Some aspects of this installation, such as 1 Texto publicado nos Anais do I Colóquio Internacional Arquitetura, Teatro e Cultura – UNIRIO: Rio de Janeiro, 2010.

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Encenação enquanto Instalação: reflexões sobre a

estrutura tectônica do arranjo espetacular pós-dramático1

ResumoEste trabalho discute as práticas pós-dramáticas deencenação por meio do conceito de instalação. Algunsaspectos desta noção, tais como imersão do espectador notrabalho artístico, capacitação do espectador enquantoleitor ativo e até interação do espectador com odispositivo artístico, bem como a hegemonia das qualidadesmateriais e sensoriais dos objetos sobre sua dimensãosimbólica, vem diretamente ao encontro das práticasteatrais pós-dramáticas. Nelas, percebemos o deslocamentodo eixo comunicacional dominante, do eixo intra-ficcionalpara o eixo palco-platéia. Em outras palavras, produção erecepção do trabalho artístico (teatral ou escultural) sãovistos, em primeiro lugar, como configuração de umacontecimento social. Um efeito dramatúrgico é odeslocamento do conflito dramático da seqüência temporalpara as relações espaciais. O objetivo fundamental destedeslocamento é claramente uma tentativa de reintroduzir naprática teatral e em sua recepção uma discussão sobre asrelações entre a prática teatral e a realidade social,especialmente no que concerne a construção do que chamamosde realidade, bem como uma tomada de consciência dosespectadores sobre seu posicionamento concreto nesseprocesso.Palavras Chave: Instalação – teatro pós-dramático –representação – performativo

AbstractThis work discusses aspects of postdramatic ways ofproducing theatrical performances through the concept ofinstallation. Some aspects of this installation, such as1 Texto publicado nos Anais do I Colóquio Internacional Arquitetura,Teatro e Cultura – UNIRIO: Rio de Janeiro, 2010.

immersion of the viewer into the work of art, enabling thespectator to be an active reader or even an interactiveuser, as well as the dominant role of material andsensorial qualities of the objects over their symbolicdimension meets directly with practices of postdramaticways of staging theatre. In these practices, one canperceive a shifting of the dominant communicational axisfrom the intra-fictional to the stage-theatron axis. Inother words, production and reception of the artistic work(theatrical or sculptural) are seen in the first place asthe configuration of a social happening. A dramaturgiceffect is the transformation of the dramatic conflict froma temporal sequence into a series of spatial relations. Thefundamental objective in this shift is clearly to find waysof reintroducing into the theatrical practice and itsreception a discussion on the relations between theatricalpractice and social reality, especially as regards possiblemodalities of constructing reality and ways how spectatorscan become aware of how they assume concrete positions inthis process.Keywords: Installation Art – Postdramatic Theatre –Representation - Performativity

1

Comparar o mundo a um espaço teatral para explicar a

situação existencial humana é tão antiga quando a

civilização ocidental, embora a relação entre palco e

platéia, bem como sua relação com o macrocosmo, certamente

tivesse sofrido modificações profundas. Já Platão, na sua

parábola da caverna, escolhe um arranjo cênico para

refletir sobre o modo errado do ser humano de perceber e

pensar sua relação com a razão e o Divino. O panóptico de

Bentham na leitura de Foucault, ou o pensamento nômade de

Deleuze e Guattari; podem ser vistos como propostas de

arranjos cênicos. Além disso, esses modelos sugerem que a

análise da relação entre modos de pensar e modos de

configurar espaços ajuda compreender as forças sociais que

posicionam os seres humanos em seus respectivos mundos

históricos.

A configuração do espaço teatral, abarcando palco,

platéia e até a arquitetura externa, faz parte desse

posicionamento, assim como acontece na escola, no museu ou

na galeria. No mundo das Artes Visuais, criar um espaço

artístico significante que permita e provoque diferentes

modos de se relacionar com ele, tanto mental quanto

fisicamente, é um dos objetivos estéticos e éticos da

prática da instalação. É importante frisar que os arranjos

espaciais de, por exemplo, Olafur Eliasson, Carsten Höller,

ou Atelier Van Lieshout, não apresentam simplesmente uma

ilustração ou concretização de um conceito, mas

problematizam a própria situação artística e social que

eles em primeiro lugar instalam. Ou seja, a instalação

visa, em primeira instância, colocar um ou vários objetos

numa situação para evidenciar criticamente uma relação com

seu contexto e não para criar algo que podia ser uma obra

nos sentido tradicional de algo fechado e acabado; algo que

podia incorporar em seu interior um sentido determinado.

Para esta problematização, os objetos, atividades e espaços

aparecem como simultaneamente metafóricos e metonímicos,

estéticos e pragmáticos, ficcionais e reais. A instalação

justapõe estas características e cria objetos e espaços

marcados por esta cesura semiótica. Podíamos dizer que com

essa justaposição a instalação contemporânea problematiza

as condições da sua enunciação em seu próprio enunciado. Em

outras palavras, a instalação problematiza não só seu

funcionamento interno, mas também o seu contexto,

instigando os espectadores/participantes a tomar

consciência dessas relações problemáticas para poder deixar

seu lugar fixado e brincar com as possibilidades que a

cesura semiótica oferece. No meu ver, constatar que a

instalação propõe uma relação entre objeto, espaço e

espectador, marcada por princípios como imersão, interação,

dissociação e recombinação de signos,2 me parece menos

importante do que constatar que ela faz surgir nestes

princípios uma justaposição semiótica que é a copresença do

metonímico e do metafórico, ou como podemos também dizer,

de objetos dominantemente auto-referenciais e objetos

capazes de referir-se a uma realidade fora do encontro

estético. Através dela, a instalação não propõe uma relação2 Ver Coulder-Smith (2006) e Bishop (2005).

direta e autêntica entre espectador e espaço ou objeto, mas

uma relação que aponta constantemente ao seu caráter

construído, mediado, ou como podemos dizer também, uma

relação teatralizada. A instalação realiza uma

teatralização de objetos para chegar a uma teatralização

dos olhares. Nesta teatralização instala-se tanto um vazio

semiótico como um possível excesso de significados. De

fato, a teatralização da situação, do objeto e do olhar, se

dá devido ao jogo interativo desses dois efeitos

paradoxais: por um lado, focar a materialidade dos objetos

e expô-los na sua auto-referencialidade, e por outro, focar

sua referencialidade, sua capacidade de trazer para a cena

associações de contextos sociais, de memórias coletivas e

outros contextos imaginários.

2

Exemplo 1: Em meados dos anos 90, o diretor austríaco

Josef Szeiler montou o tríptico textual Margem ao

Abandono/Medeamaterial/Paisagem com Argonautas de Heiner

Müller por ocasião do festival de teatro em Argos. A

localidade escolhida foi uma antiga fábrica de tecidos que

ainda estava em funcionamento. Durante os ensaios e a

apresentação, as máquinas ficaram paradas. Neste trabalho,

Josef Szeiler criou uma plataforma encima das máquinas,

onde os atores andavam e recitavam o texto de Müller. O

texto fala, entre outros, da viagem dos Argonautas em busca

da captura do “Velo Dourado” e da relação conflituosa não

só entre Jasão e Medea, mas também entre homens e mulheres

numa perspectiva histórica. O que relacionou o texto e a

localidade foi a dimensão da tessitura e da textura

presente em ambos, bem como a relação entre a imagem e a

realidade da máquina e a relação entre conflito bélico e a

máquina, ou seja, a máquina enquanto símbolo e arma de uma

guerra. Szeiler frisou esta temática ao fixar fios entre os

grandes cilindros das máquinas, criando uma teia entre

elas. Numa galeria, na parte superior da fábrica, foram

expostos figurinos vazios de Jasão e Medea. Os ensaios eram

abertos e, na verdade, eram parte integral da prática

teatral que se compreendia como processual, de modo que

várias trabalhadoras ficaram na fábrica após sua jornada de

trabalho para assisti-los. Nas apresentações, para frisar o

término, foram religadas as máquinas, e as operárias, na

maioria mulheres, voltaram a trabalhar. Como sabemos, o

texto de Heiner Müller não possui uma lógica temporal e não

constrói uma narrativa.No seu lugar, ele instaura uma

intertextualidade que comporta o que era antigamente o

conflito dramático. A idéia dessa montagem era relacionar e

confrontar vários signos e práticas teatrais que

possibilitassem uma recepção concreta, sensorial e também

associativa tanto do texto quanto do espaço. Desse modo, o

diretor conseguiu resignificar este espaço industrial e

abrir o texto, bastante hermético no nível formal, para uma

experiência atual. Experiência criada por meio da

configuração de relações concretas e abertas entre o

público, a materialidade da encenação e o espaço.

Exemplo 2: Em 2005, o coreógrafo William Forsythe, um

americano radicado na Alemanha, apresentou um trabalho em

Zurique que misturava elementos da dança, da performance e

da instalação num projeto intitulado Human Writes.3 Já o

título era uma brincadeira com a literalidade e ambiguidade

da língua, por juntar uma ação performativa (o ato de

escrever) com uma temática (os direitos humanos). Essa

junção constitui o fundamento do trabalho. Nesta montagem,

Forsythe colocava numa sala 4 fileiras de 12 mesas brancas.

Nos extremos da sala estavam colocadas 4 e 7 tábuas de

madeira, respectivamente. Nestas tábuas estavam afixados

trabalhos semelhantes àqueles que os bailarinos produziam

no momento da apresentação de forma colaborativa. Nesse

processo preenchiam com letras e desenhos folhas de papel

que estavam coladas nas mesas. Nas paredes laterais estavam

expostos os artigos que compõem os direitos humanos.

Enquanto os espectadores caminhavam entre as mesas, podiam

observar os bailarinos em ação. Eles desenhavam e escreviam

numa postura complicada de se executar. Por exemplo,

desenhar com os pés sentado sobre a mesa ou sentado no chão

com a mesa na posição vertical; segurar o grafite com a

boca e desenhar enquanto os colegas movimentam a mesa;

rabiscar com o grafite na boca e de barriga para cima

enquanto os colegas deslocam a mesa; ou simplesmente

desenhar com olhos vendados seguindo as instruções de um

colega, e outras formas inusitadas. Em diversas mesas, as

possibilidades de movimentar o carvão dependiam do uso de

cordas de diferentes grossura. Alguns bailarinos tinham as

mãos e as pernas atadas. Numa outra mesa, a regra de

3 Agradeço a Hans-Thies Lehmann por me ter fornecido uma gravação destetrabalho a fim de poder reconstruir a sua estrutura.

colaboração implicava em acertar o dedo de uma pessoa

encima do papel, fazendo com que essas tentativas

produzissem o desenho. No decorrer da apresentação, os

bailarinos convidam os espectadores para participarem no

processo de escrita. Perto do final da apresentação, se

formava uma fila de pessoas, na qual cada pessoa escrevia

letras ou formas nas costas da pessoa que estava colocada à

sua frente, de forma que a última, posicionada próxima a

uma mesa, as escrevia no papel.

O que estes dois exemplos têm em comum é a co-presença

de elementos cênicos performativos e representacionais; de

signos que expõem seu caráter principalmente metonímico -

como as cordas no uso cotidiano ou os desenhos dos dias

anteriores - e signos que falam mais metaforicamente, -

como as cordas grossas que remetem á situações de

enforcamento. De fato, há uma tendência em ambas as

propostas de codificarem o mesmo objeto duplamente. O

próprio ato de colaborar na escrita ou de acionar as

máquinas de tecido no final da apresentação possui esta

dupla qualidade semiótica, de ser real e referencial. No

caso do primeiro exemplo podemos mencionar os fios como

elementos que a instalação cênica usa para adquirir este

duplo sentido. Eles são uma parte real da fábrica de

tecido, mas também remetem a ideia do texto enquanto

tessitura e a ideia da máquina enquanto uma armadilha ou

instrumento de opressão. Percebemos também que se cria um

enfoque na situação estética enquanto relação dinâmica e

instável; seja essa relação a dos espectadores com o espaço

da apresentação, com as características físicas das ações

cênicas ou com a co-presença dos outros espectadores. Ambos

os trabalhos enfocam uma relação com o texto espetacular

que é tanto auditiva/sensorial quanto interpretativa/

reflexiva. E por último, um elemento central para entender

os procedimentos da instalação é o fato de que se constrói

certo conflito dramático entre as qualidades dos objetos e

os campos associativos que eles abrem. Digo dramático, pois

esta relação envolve opções opostas e provoca

enfrentamentos e escolhas no que diz respeito ao olhar do

espectador. Este conflito não se manifesta através das

relações temporais, mas sim através das relações espaciais

entre os objetos, ações e signos copresentes. O que me

parece significativo para a instalação enquanto princípio

cênico é a criação de conflitos por meio de relações

espaciais. Há uma simultaneidade de signos. Entretanto, na

relação entre eles se abrem campos de associações opostas.

E no uso deles se manifesta uma ambiguidade semiótica

devido a processos performativos e representacionais

simultâneos que revelam características de auto-

referencialidade e referencialidade.

3

O conceito da instalação provém das Artes Visuais. Ao

usar um conceito plástico, escultural e espacial, para

falar de procedimentos de montagem teatral, eu espero poder

levar em consideração um fato que constitui ou diferencia a

prática teatral desde sempre, mas que foi esquecido durante

o reinado do textocentrismo: o fato de que o teatro é – e

sempre foi – uma prática multidisciplinar que juntava o

visual, o musical e auditivo, o corporal, e o textual.

Especialmente a discussão e montagem de textos não-

dramáticos de autores como Bernard-Marie Koltés, Heiner

Müller ou Sarah Kane, entre outros, levou a crítica a

cunhar termos como mise-en-voix,4 mise-em-espace ou instalação.5

Nas estruturas teatrais não-mais dramáticas, a

autonomização dos diferentes elementos cênicos no conjunto

do texto espetacular, sua co-presença não hierarquizada,

faz com que eles adquiram qualidades crescentemente

“espaciais-corporais” (STRICKER, 2007, p.37). Essa

autonomização dos diferentes elementos cênicos possui um

caráter auto-referencial. Entretanto, vamos ver na análise

da situação da instalação, que elementos auto-referenciais

podem servir para teatralizar a situação, o objeto e o

olhar estético. Ou seja, no contexto teatral, a

autonomização pode realizar um efeito meta-teatral, como é

o caso nos dois exemplos citados. Stricker (2007, p.37)

frisa que nos textos não-dramáticos tanto escritos quanto

espetaculares, a organização sequencial do conflito ao

longo do passar do tempo – como no drama –, é substituído

por uma sobreposição espacial. Ou seja, devemos pensar o

texto espetacular de uma montagem pós-dramático como uma

estrutura tectônica.

De fato, este procedimento de transformar relações

temporais em relações espaciais se deve, em primeiro lugar,

não a um impulso de inovação dentro das práticas teatrais.4 Ver a discussão da dramaturgia contemporânea em AUTANT-MATHIEU, 1995.5 Ver STRICKER, 2007, pp. 39-53.

Ao contrário, esta transformação formal é expressão de uma

crise mais profunda: a da relação do ser humano

contemporâneo com o mundo ao seu redor e com os parâmetros

de tempo e espaço na constituição de sua própria

subjetividade. Palavras chave como: o fim do sujeito

autônomo, o fim do autor e sua substituição pelo texto, o

fim da história, o fim da noção do natural e orgânico pelo

cultural e o construído são outras testemunhas desse

processo. Ao incorporar nas suas práticas teatrais

elementos da instalação, ou torná-los até dominantes na sua

prática de montagem, o teatro realiza um processo que nas

Artes Visuais começou já com o cubismo e o dadaísmo e levou

à instalação, mas que responde a uma crise do mundo

burguês, do seu sujeito burguês e dos paradigmas

epistemológicos, antropológicos, e filosóficos que

sustentam este mundo. É claro que o teatro também possui

outras possibilidades que não sejam as da instalação para

expressar uma estética além do mundo burguês, mas o

surgimento da encenação enquanto instalação me parece ser

expressão dessa crise.

Para reagir criticamente a essa crise, procedimentos

teatrais contemporâneos criam arranjos cênicos que misturam

espacialmente o real e o ficcional. Performativamente, eles

fazem oscilar as modalidades de representar, performar, e ser

do fenômeno cênico. No que diz respeito à relação com o

espectador, esses procedimentos podem romper com a posição

fixa e estável do espectador e inseri-lo no espaço cênico

em diferentes funções simultâneas, enquanto espectador e

figurante, espectador e ator côrico, ou espectador e ator

individual. O objetivo é criar um diálogo entre

espectadores e prática teatral que não focalize o conteúdo,

mas principalmente os procedimentos e meios de

apresentação; criar uma situação teatral no qual o conteúdo

se revela a partir de um procedimento cênico que também

coloca lado a lado um uso metafórico e metonímico dos

elementos teatrais.

Atores que entram em cena com sua roupa cotidiana

(Daniel Veronese, Un hombre que se ahoga, Buenos Aires,

2004); espectadores que assumem a função de coro (Christoph

Schlingensief, Chance 2000, Berlin, 2000); não-atores que

aparecem em cena contando memórias ou realizando ações

cotidianas (Rimini Protokoll, Wallenstein, Mannheim e

Weimar, 2005 ou Mapa Teatro, Testigo de Las Ruínas, Bogotá,

2006), atores que alteram seu trabalho entre ações físicas

sem aparente significado referencial e representações

teatrais com personagem (Rodrigo Garça, Agamêmnon, Palermo,

2003), atores que saem do personagem para expressar uma

preocupação pessoal ou biográfica com a temática da peça

(os trabalhos de René Pollesch em Hamburgo e Berlin, 2003-

2010), mas também os experimentos com espaços cênicos

realizados pelo coletivo teatral gaúcho Oi nóis aqui traveiz,

todos são exemplos deste teatro que justapõe o metafórico e

o metonímico para realçar a concretude ambígua e até

contraditória da situação teatral e desestabilizar a

percepção do espectador. O grau de imersão e interação

varia, também o grau do enfoque metateatral na situação do

encontro teatral, mas sempre há uma grande proximidade

entre atores e espectadores, devido a esta desestabilização

da percepção que é resultado da interseção do real e do

ficcional e do distanciamento que se realiza das

modalidades dramáticas de representação teatral.

O que estes trabalhos têm em comum, a pesar de muitas

diferenças estéticas e ideológicas, é o fato de que o

enunciado é problematizado por meio da copresença de

diversas modalidades de enunciação. E esta copresença é

estabelecida, colocada em cena, através de uma

justaposição: de atos e objetos metafóricos e metonímicos,

representacionais e performativos. O jogo explícito com

esta copresença de diversas modalidades de apresentação ou

de enunciação (bem como o fato de que o conteúdo temático

dos objetos pode criar associações conflitantes) permite

desestabilizar a percepção habitual do espectador. O

conflito dramático talvez continue existir, mas é

sobreposto por um conflito entre essas modalidades de

apresentação, tanto mais quanto mais elementos de

instalação a montagem incorpora.

Cabe ao espectador criar as relações entre eles,

encontrar sua resposta pessoal a esta situação concreta de

incongruências. Estamos perante um trabalho cênico que em

termos de tempo e espaço trabalha com princípios de

montagem e colagem. Nos dois exemplos descritos

anteriormente, o princípio da colagem transgride o espaço

ficcional e engloba o espaço teatral como um todo, ou seja,

inclusive o eixo cena-theatron. De fato, a justaposição de

elementos representacionais e performativos leva a colagem

cênica em sua tendência a romper a unidade do espaço

ficcional. Por exemplo, em termos de atuação, são

apresentados corpos em cena que possuem a qualidade de

oscilar descontinuamente entre a pura corporeidade, a sua

potência performativa e a capacidade de incorporar um

personagem. Essa justaposição de qualidades e elementos

incongruentes instala, portanto, um jogo de atenção que faz

com que o espectador perambule mentalmente neste universo

tanto real quanto semiótico, se este não o faz movimentar-

se fisicamente nele. Este tipo de montagem produz um espaço

cênico híbrido e fragmentado sem estética ilusionista que

busca teatralizar o olhar do espectador, colocá-lo em

movimento e torná-lo consciente de seu movimento.

Justaposição de elementos estruturais concretos, mas

semioticamente incongruentes; justaposição de modalidades

de apresentação; inserção do espaço ficcional dentro de um

espaço real; desestabilização do olhar fixo e habitual para

provocar uma reação subjetiva são procedimentos e efeitos

que encontramos tanto no teatro contemporâneo quanto na

prática da instalação no campo das Artes Visuais. Nesse

contexto, se falamos na entrada de estruturas performativas

na prática teatral há muito tempo, percebemos agora a

presença de uma lógica de instalação na prática teatral.

Mas essa proximidade das artes no momento atual também se

revela se olhamos para o fenômeno do ponto de vista das

Artes Visuais. De fato, existia desde os primórdios da

performatividade e da instalação nas Artes Visuais algo

como a teatralidade desses procedimentos e uma

teatralização dos olhares provocados por eles.

4

Se na instalação a relação com o real é marcada pelos

princípios conflitantes de imersão e interação, a relação

com o semiótico que ela estabelece revela o duplo

procedimento da dissociação e da recombinação de

significados e significantes.6 Conhecemos esse fenômeno de

práticas de diretores como Bob Wilson, Tadeusz Kantor ou

Achim Freyer.7 Buscar suporte no conceito e nas

características da instalação, e não da performance (que em

determinados contextos trabalho com uma interação

semelhante entre o real e o ficcional) para entender as

práticas teatrais pós-dramáticas da contemporaneidade me

parece promissor tanto mais porque a instalação não só

coloca um objeto (ou vários) no espaço, mas – como espero

poder mostrar no que segue – também tece uma teatralidade a

partir desta situação. De fato, acredito que performances

como aquela antológica no Black Mountain College em 1957

apresentam uma conjugação de qualidades performativas e

representacionais em um texto espetacular, ou seja, uma

rede de relações significativas internas, cheio de lacunas

6 Ver os livros de Coulter-Smith (2006) e Bishop (2005).7 De uma perspectiva contemporânea, me parece necessário complementarque a importância da materialidade dos elementos cênicos aumentoumuito, enfatizando o nível do ser nas modalidades da apresentação eproblematizando, assim, o status da realidade dentro e fora do espaçoteatral.

e incongruências, que vejo como prática típica da

instalação.8

Tanto a enunciação teatral quanto a instalação não

podem representar uma verdade abstrata ou universal. Sua

verdade é concreta e local, pois existe somente no momento

de ser percebido por um espectador. Ela se encontra no

nível da experiência, e não do logos. O teatro

contemporâneo assume essa característica, quando focaliza o

fazer teatral enquanto configuração de uma situação de

encontro, enquanto instalação de objetos e signos

metafóricos e metonímicos que criam processos comunicativos

contraditórios no eixo entre palco-plateia.9 Assim, o

teatro pós-dramático problematiza e desconstrói a verdade

abstrata pelo arranjo cênico concreto que se estabelece

como montagem. Este exige um espectador que não busca a

verdade do arranjo através da lógica das informações

(através de questões como: O que quer dizer isso?), mas

busca vivenciar um diálogo com este arranjo (Que tipo de

relações este propõe? Quais são os modos diferentes de

afetação?), construindo assim uma percepção problemática,

sempre histórica e local, mais ética do que lógica,

enquanto traço de um encontro entre espectador e objeto

estético, enquanto evento e não como texto.

8 Para uma análise deste evento como fundador de uma estéticaperformativa e uma mimese da produção, ver Fischer-Lichte, 2004.9 Em outras ocasiões, eu chamei este eixo comunicativo de extra-ficcional, o que criou certos malentendidos, pois não se trata dacomunicação entre membros da platéia, senão de um vetor em direção aotheatron, motivo pelo qual Hans-Thies Lehmann fala do eixo theatron. O usoda palavra grega também deve ressaltar a semelhança entre as práticasnão-mais dramáticas e as práticas teatrais gregas da antiguidade.

A dialética entre imersão e interação, bem como os

procedimentos semióticos de dissociação e recombinação,

provém do legado das vanguardas do início do século XX. Sua

justificativa ética e estética reside nas tentativas de

definir as relações entre arte e vida de modo tanto crítico

quanto dinâmico, se comparadas com as relações que a

burguesia estabeleceu ao longo da constituição de sua

hegemonia. Este impulso de investigar e reconfigurar a

relação arte-vida inspirou posteriormente a arte da

instalação e também as práticas de um teatro não-dramático.

No contexto da atividade teatral, as tentativas de abrir o

espaço ficcional do palco para a presença do real, seja

esse último apresentado como um signo metonímico da

realidade empírica ou como intensidade física da presença

do ator-performer, levam ao deslocamento do agon teatral do

eixo temporal e intra-ficcional (ou seja, do conflito

dramático) para um eixo espacial e direcionado ao espaço da

platéia (ou seja, para um conflito entre as modalidades da

apresentação). É claro que estes dois eixos constituem a

dupla articulação comunicativa do discurso teatral, mas o

que é característico para esta relação no teatro

contemporâneo é um tipo de oscilação entre estes eixos no

mesmo espetáculo. Esta oscilação não pretende mais cobrir o

abismo entre o ficcional e o real, arte e vida, mas

relacionar ambos de modo problemático e estimulante. Existe

uma consciência mais clara das possibilidades estéticas e

éticas que este deslocamento permite, quando se faz a

lógica representacional do espetáculo oscilar entre as

possibilidades metafóricas e metonímicas. Este conflito

entre modalidades de apresentação não recalca ou substitui

o conflito dramático, mas o incorpora e desdobra

criticamente. Nesse sentido dialético, podemos falar de

fato de um teatro pós-dramático.10

A justaposição do real e do ficcional e a oscilação do

centro agonal entre o ficcional (ou a ilusão de

referencialidade) e o funcionamento performativo (ou as

modalidades de apresentação), estes dois fenômenos se

implicam mutuamente, como um breve olhar para a história da

instalação pode explicar. Acredito que se pode iniciar tal

história com uma crítica ao espaço de exposição enquanto

cubo branco, como o chamou Brian O’Doherty (2007). Um

espaço no qual tudo é organizado de tal forma a purificar

os objetos expostos de qualquer referência ao mundo

externo. A crítica ao cubo branco ou tentou mostrar que

tudo pode ser arte dentro deste espaço, ou tentou

evidenciar como a suposta passividade, auto-suficiência ou

‘literalidade’ das obras expostas, é uma ilusão a partir do

momento em que eles almejam uma eficácia estética. Refiro-

me à crítica de Marcel Duchamp através de seus ready-made e

às (auto-)críticas de artistas da Minimal Art, como Robert

Morris, por exemplo na sua obra dos três blocos em forma de

L.11 Em ambos os movimentos artísticos, a separação entre

arte/não-arte bem como entre o real e o ficcional (ou entre10 Na medida em que este conflito não exclui a modalidaderepresentacional do drama burguês, podemos falar em pós-dramático.Somente neste perspectiva, o conceito do pós-dramático faz sentido eexplicita corretamente um posicionamento histórico deste fazerteatral. 11 Ver Didi-Huberman, 1998, pp.65-68.

o físico e o conceitual) é posto em cheque.12 Duchamp, ao

colocar objetos de uso cotidiano dentro do espaço da

galeria, não só dilui as fronteiras entre objetos

artísticos e não-artísticos, mas hibridiza o espaço da

galeria na justaposição de duas lógicas distintas dentro

deste espaço. Morris, por sua vez, mostra que não pode

haver experiência estética sem uma percepção de diferenças

no olhar do espectador, ou seja, sem uma relação

intersubjetiva e dialógica entre espectador e obra. O que

importa no caso de Morris é o fato de que este diálogo não

se dá a partir das qualidades figurativas, mas das

qualidades estruturais e relacionais (espaço, tempo,

materialidade, etc.) no contexto da apresentação. Ou seja,

o impacto da obra não segue uma mimese representacional,

mas uma mimese de produção.

Em ambos os casos, percebemos uma contextualização da

situação expositiva, do espaço artístico e do seu objeto, e

a criação de uma possibilidade de olhares conflitantes, de

experiências diferenciais.13 De fato, então, há uma

teatralização do discurso estético no que diz respeito à

situação estética, ao objeto estético e à percepção do

espectador. Há também uma dramatização no sentido cotidiano12 Talvez haja uma terceira tentativa, mais radical do que astentativas de Duchamp e daquelas da arte conceitual de diluir asfronteira entre arte/não-arte. A proposta de grupos como GrupoProdutivista, do qual Aleksandr Rodchenko, era integrante. Rodchenkoparou de pintar, para dedicar-se ao artesanato e à arte gráfica, natentativa de incorporar os impulsos artísticos na vida diária. Noâmbito teatral, podemos detectar na peça didática de Brecht e emalgumas propostas do Teatro Educação intenções semelhantes.13 A discussão de Didi-Huberman deste fato se refere diretamente aoartigo “Art and Objecthood” de Michael Fried que ataca a arte modernada sua época por ser teatral demais.

da palavra, na medida em que as relações internas e

externas dos objetos expostos produzem conflitos na

percepção e na experiência do receptor. O interessante é

que não se precisa para esta teatralização do conflito uma

narrativa ou uma seqüência temporal no artefato exposto. A

instalação enquanto arranjo cênico transforma qualidades

temporais em qualidades espaciais, ou seja, dentro do

espaço cênico da galeria, ela efetua uma alegorização do

espaço. Esta alegorização é teatral, ela é até agonal, mas

não segue a lógica do drama. Em outras palavras, as tensões

e conflitos montados através de procedimentos da instalação

permitem entender como “o dramático” enquanto momento de

crise pode continuar existir dentro da prática teatral pós-

dramática: enquanto conflito entre as modalidades de

apresentação e, consequentemente, enquanto crise do nosso

olhar, do olhar do espectador. Instala-se uma crise

epistemológica e emocional entre, nós, espectadores e os

acontecimentos teatrais. Pois assim tomamos

consciência,internalizamos o caráter construído do nosso

olhar e somos obrigados a nos perguntar acerca dos motivos

emocionais e das dimensões éticas dessa construção.

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Até agora, eu falei do fato que a instalação, ao

colocar elementos metonímicas dentro de uma cena

metafórica, cria uma estrutura alegórica que permite

expressar crises e conflitos de caráter social e ético, sem

recorrer à estrutura do drama. Mas ao lado da interação

entre o real e o ficcional que enfoca o situacional e sua

instabilidade e dinâmica, a não-hierarquia na instalação

entre a corporeidade autoreferencial e seus aspectos

indicativos e referenciais do material usado, fazem com que

a cena da instalação oscila entre este diálogo (mais ou

menos crítico) com o mundo social e histórico, e outro

diálogo que é com a eternidade ou a mortalidade da criação.

Entramos aqui naquilo que é chamado a tendência ao

hermetismo ou ao enigmático na instalação.

Diferente da arte figurativa, a instalação

frequentemente usa objetos geométricos ou abstratos;

objetos que formam signos que se não referem através de uma

ilusão de verossimilhança à realidade externa para instalar

o diálogo com o espectador, mas que se referem ao seu

próprio funcionamento interno. Nessa lógica de uma mimese

de produção (e não de representação), a instalação

configura uma tensão entre a literalidade e a dialogicidade

do signo, entre a auto-suficiência física do objeto real e

seu potencial referencial dentro de uma construção

ficcional, ou também entre a existência física do corpo

humano e a existência social dele enquanto significante. .

Entretanto, a auto-suficiência física do significante é

alcançada somente na tautologia, no puro estar-aí, num

simples fazer que provém de um espaço certamente além da

intenção do indivíduo, que ultrapassa a comunidade humana.

Ou seja, o horizonte do performativo, ao dissociar o signo

de qualquer ilusão de referente, radicalmente relativiza o

enquadramento social e remete o olhar do indivíduo humano à

eternidade, à sua própria mortalidade biológica14 Como

afirma Didi-Huberman (1998), é este vazio da eternidade que

nos olha detrás daquilo que vemos. A situação estética

torna perceptível este vazio, e com isso evidencia uma

fragilidade radical na existência humana. Embora a

performatividade auto-referencial do objeto na instalação

possa aparecer como formalismo, ela se relaciona

essencialmente com essa tentativa de expor e relativizar

radicalmente os nossos parâmetros antropocêntricos; como

tentativa de evidenciar criticamente a função de contextos

históricos e sociais, ou seja, contextos políticos na

construção de significados e daquilo que nós seres humanos

chamamos de sentido. Esta função crítica só aparece quando

estes contextos são negados, quando o objeto se apresenta

como pura materialidade do “significante sem significado”,

pois não se trata mais de defender uma posição ideológica

contra outra, ou mostrar como ideologias se entrelaçam.

Desta forma, os discursos políticos podem emergir como

estratégias para usar o medo humano em relação a esta

fragilidade existencial. Eles, os discursos, se tornam

perceptíveis como ofertas de uma ideologia e uma ideia de

comunidade que serve de garantia contra o impacto

assustador dessa fragilidade. Infelizmente, este impulso

14 Enquanto dimensão dialógica e referencial surge quaseautomaticamente, por um lado, a solidão e até o medo do ser humanoperante a eternidade, e por outro lado, a imersão (resignada oudionisíaca, talvez com qualidades trágicas) no eterno ciclo danatureza. Seja visto como algo horroroso ou extático, a pura presençafísica condena o mundo social humano a uma fragilidade radical. Traçosdessa estética (e filosofia) encontramos no teatro de Bob Wilson,Tadeusz Kantor, ou da Societas Raffaelo Sanzio.

ideológico é necessariamente excludente. Portanto, o

impulso autoreferencial na instalação pode radicalmente

questionar a validade desse discurso político e discutir o

seu poder de manipulação. De fato, os trabalhos mais fortes

neste sentido são aqueles que conseguem cruzar uma presença

da materialidade da cena com uma exposição crítica da

construção e do funcionamento dos discursos sociais.

Novamente, esta discussão não depende ou se desdobra

através de uma construção temporal. Ela não se situa no

eixo comunicativo intra-ficcional, mas no eixo entre

materialidade cênica e os processos perceptuais e

reflexivos do público, ou seja, no eixo palco-plateia.

Na cena, esta tensão é perceptível principalmente

através das diversas modalidades de presença do corpo

humano. Ele sempre aparece na dupla perspectiva de ser

materialidade e significante, e os trabalhos pós-dramáticos

buscam aproveitar esta ambiguidade, criar uma lacuna entre

ambas as dimensões e justapô-las.15 A criação desta lacuna

transforma a presença corporal orgânica do ser humano em

uma presença montada, ou seja, carregada de uma

teatralidade que revela seus modos de construção. A cisão

permite à imaginação do espectador experimentar um vazio

nessa teatralidade, experimentar uma relação com o corpo em

15 Penso, pór exemplo, da perspectiva do teatro, no trabalho do diretorChetouane ou da companhia Societas Raffaelle Sanzio. Não por acaso,este tipo de trabalho rompe com a fronteira entre dança e teatro. Otrabalho de Pina Bausch obviamente pode ser visto também nessaperspectiva, ou também um trabalho como Braindance de Gilles Jobin, noqual a manipulação dos corpos dos bailarinos torna presente aconstante interação do poder político sobre o corpo humano, o uso docorpo humano (inclusive do morto) enquanto fonte de imagens de beleza,etc..

cena além da validade de discursos sociais e da figuração

psicológica. A criação desta lacuna faz com que o corpo

humano na prática pós-dramática, por um lado, se assemelhe

ao corpo auto-referencial de um objeto numa instalação.

Concomitantemente, a cisão instiga o espectador

resignificar o corpo em cena, mas nesta re-associação está

registrada a lembrança dessa primeira dissociação. Dessa

forma, qualquer recombinação de signos para um discurso

social, mesmo que seja um discurso igualitário ou

libertador, mantém um aspecto problemático. Pois na

dissociação que se efetua entre o corpo e os discursos

sociais feitos sobre este corpo percebemos nós, os

espectadores, um convite para realizar outra forma de

solidariedade humana que não se baseia nos processos

excludentes da ideologia e das ideias de comunidades, senão

na compaixão com o ser humano enquanto uma criatura

copresente no espaço e tempo que sempre compartilhamos: o

tempo da nossa mortalidade e o espaço de nosso

desaparecimento.

7

Tento com essa reflexão, certamente mais indutiva do

que dedutiva, mostrar como a realização formal de propostas

de instalação no campo teatral corresponde com a

justaposição tática de imagens performativas e

representacionais. Essas imagens dialogam com as temáticas

centrais da montagem, a fim de realizar a espacialização do

conflito, de deslocar o conflito do mitos para a opsis. Este

deslocamento cria um espaço teatral e um discurso teatral

cindido pelas tensões existentes entre as diferentes

modalidades de apresentação. Como a instalação implica

também a qualidade do real, a materialidade do significante

e a presença material do objeto e do corpo constroem essa

tensão, permitindo instalar o fazer teatral numa zona de

conflito entre o ficcional e o real. A encenação enquanto

instalação dessas modalidades permite discutir tanto as

relações internas do ficcional, como no teatro dramático,

quanto complementar essa discussão com uma investigação

acerca do status das imagens e ações teatrais frente à

realidade empírica. Diferente das propostas de simplesmente

evidenciar a teatralidade do espetáculo, os princípios da

instalação permitem confrontar a linguagem da prática

teatral com as forças sociais e existenciais que a final

configuram o lugar dessa linguagem.

Por trabalhar com o representacional e o performativo,

a instalação não representa um conflito simplesmente, como

tampouco o simula num jogo teatral, mas o expõe numa

relação espacial e alegórica entre o ficcional e o real, o

representativo e o performativo. Esta pode ser tanto

específica quanto instável e mediada pelas qualidades

teatrais da instalação.

Expor a cisão entre representar (o ficcional) e ser (o

real), mediado dialeticamente pela teatralidade da situação

expositiva e da consequente performatividade dos objetos,

está no cerne da lógica da instalação. Representar, mostrar ou

expor a atividade representacional, e ser são atividades

também constitutivas para a prática teatral. O que a idéia

da instalação para mim permite é 1. refletir sobre a lógica

da estética teatral pós-dramática, e 2. perceber que o

dramático enquanto um lugar de conflitos e contradições

(entre o individuo e a sociedade ou contradições internas à

sociedade) não desaparece no teatro pós-dramático, mas

simplesmente muda as suas características de uma categoria

temporal para uma categoria espacial.

Somente a partir do momento em que a relação arte/não-

arte no teatro não aconteça mais segundo as linhas da

ilusão referencial e verossímil ou da transformação

performativa de arte em vida, é que poderá surgir um teatro

mais instável em suas modalidades de apresentação; um

teatro que se desloca na sua lógica interna saltando

constantemente de uma camada de apresentação para a outra,

fazendo com que a atenção do espectador deslize junto com

estes deslocamentos. Na importância dos conflitos entre

estas três modalidades de apresentação se manifesta a

dominância do eixo comunicativo entre palco e platéia que é

um dos paradigmas constitutivos para o teatro não-

dramático.16 Seu intuito é problematizar as modalidades da

percepção. Concomitantemente, trabalhar com diferentes

modalidades de apresentação permite deslocar o foco da

critica: do conteúdo para os meios de sua produção como

16 O tema norteador do livro de Lehmann e de seus ensaios posteriores éo enfoque no teatro enquanto situação. Nem sempre Lehmann frisaexplicitamente que este enfoque implica num deslocamento dacomunicação teatral do eixo intra-ficcional para o eixo cena-theatron.Mas, não obstante, ele constitui o cerne da prática de fazer um teatropós-dramático, junto com a intrusão do real no ficcional que faz comque o foco não está mais numa exposição da teatralidade do espetáculo,mas numa indagação da relação entre diversas modalidades de construira realidade.

também do texto espetacular para o arranjo cênico e para o

evento teatral. Com esse enfoque estamos de volta à caverna

de Platão, mas desta vez com a proposta de fazer o público

perambular no espaço mental e físico, de olhar um para o

outro, e de perceber na interação entre fogo, objetos e

imagens tanto as qualidades desses elementos quanto o

status de sua interação, afirmando assim a potência crítica

e a relevância estética do teatro na sociedade

contemporânea.17 Neste sentindo, só nos fica a questão:

para onde foi a abertura da caverna? Será que na interação

entre o representacional e o performativo, na interação

entre o vazio atrás dos objetos e sua comunicação com nós

humanos, acontece algo a mais que a exposição das nossas

ilusões?

Referencias

AUTANT-MATHIEU, Marie-Christine. Écrire pour le théâtre. Les enjeux del’écriture dramatique. Paris: CRNS Editions, 1995

COULTER-SMITH, Graham. Deconstructing Installation Art. Casiad Publishing,2006. Livro Online disponível em www.installationart.net,acesso em 24/07/2010.

BISHOP, Claire. Installation art: a critical history. Tate: London, 2005.17 Para Guénoun, aliás, assumir e evidenciar a realidade darepresentação, de fato, é característico de um teatro que exerce umafunção cívica e política: “Nas épocas fortes do teatro [...] aassembleia dos espectadores é visível. Portanto: iluminada. […] Só emdeterminados períodos e em contexto definidos os espectadores sãomergulhados na obscuridade. O efeito – político – está determinado: aplateia se esquece em proveito do palco, como se pode esquecer opróprio corpo durante um sonho.” (Guenoun, 2003, p. 30) Num teatro queenfoca a situação enquanto centro de seus arranjos cênicos,dificilmente o espectador esquecerá de seu corpo e de si mesmo.

FISCHER-LICHTE, Erika. Ästhetik des Performativen. Frankfurt/Main:Suhrkamp, 2004.

GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras. Uma ideia (política) doteatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.

DIDI-HUBERMAN, Georges. [1992] O que vemos, o que nos olha. Trad. PauloNeves. SP: Editora 34, 1998.

Lehmann, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. São Paulo:Cosac&Naify, 2007.

O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco. A Ideologia do Espaço daArte. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

STRICKER Achim. Text-Raum. Strategien nicht-dramatischerTheatertexte. Heidelberg: Winter, 2007.