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ANA MARIA TAVARES DA SILVA RODRIGUES OLIVEIRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA MODELOS E COMPORTAMENTOS D DISSERTAÇÃO DE DOUTORAMENTO FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA JUNHO DE 2004

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ANA MARIA TAVARES DA SILVA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA

NA SOCIEDADE MEDIEVAL

PORTUGUESA

MODELOS E COMPORTAMENTOS

D DISSERTAÇÃO DE DOUTORAMENTO

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

JUNHO DE 2004

Ana Maria Tavares da Silva Rodrigues Oliveira

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

MODELOS E COMPORTAMENTOS

Dissertação de Doutoramento em História Medieval apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Lisboa Junho de 2004

PREÂMBULO

Apesar dos caminhos da investigação histórica em que me envolvi nos últimos anos terem sido eminentemente solitários e individuais, eles teriam sido bem mais difíceis sem os fortes e continuados incentivos que fui recebendo.

Assim, muitas dívidas de gratidão fui acumulando. Ao Professor Doutor Luís Krus devo a motivação, o apoio científico e a confiança para mais uma vez enveredar

comigo numa investigação pioneira em Portugal. Sem as suas valiosas sugestões este trabalho não teria sido possível.

Ao Professor Doutor A.H. de Oliveira Marques devo o carinho, o estímulo intelectual e a disponibilidade que sempre demonstrou , não só para fazer a leitura crítica de alguns capítulos como para escutar as minhas queixas e os meus medos e, muitas vezes, colmatá-los com um "saboroso" telefonema de "novas" crianças, porventura em alguma

fonte que eu ainda desconhecia. Ao Professor Doutor Luís Miguel Duarte, o incentivo e o apoio bibliográfico.

Aos Professores Doutores Jorge Custódio, João Alves Dias e Maria Adelaide Miranda, também o meu agradecimento pelo apoio iconográfico prestado.

À Professora Doutora Eugénia Cunha agradeço o importante material facultado na área da Paleobiologia. À Doutora Maria João Vilhena de Carvalho, agradeço a boa vontade demonstrada nas muitas horas de pesquisa

realizada no Museu Nacional de Arte Antiga, bem como os conhecimentos de escultura medieval que me transmitiu.

Às minhas colegas e amigas, particularmente, à Glória e à Maria de Jesus, agradeço a compreensão por algumas "escapadelas antes do tempo" quando os afazeres da investigação se acumulavam. Ao Rui e ao Fernando, os vários

trabalhos gráficos que ao longo destes anos me foram fazendo. Ao Vitor, que soube entender as minhas muitas indisponibilidades, mesmo nos graves momentos em que tanto de mim precisou.

Finalmente, à família. À Carmo e à Margarida,, agradeço as sugestões dadas nas áreas do texto e da iconografia.

Ao Manuel, para além da sempre boa vontade demonstrada na realização das muitas fotografias, agradeço o seu apoio e estímulo, bem como a paciência com que aturou os meus múltiplos afazeres.

Ao Pedro e à Filipa que lá foram tentando entender os meus impedimentos, as minhas ausências , o meu entusiasmo com estas novas crianças e a minha muita indisponibilidade para as "coisas" dos filhos

À minha mãe, agradeço a compreensão demonstrada pelos meus telefonemas apressados e pelas "voltinhas" sempre adiadas.

Ao meu Pai, onde quer que ele esteja, um eterno obrigado . A ele devo o amor pela História e pela investigação.

INTRODUÇÃO Disse alguém que a história se restringe aos indivíduos com mais de vinte anos. Assim parece ser, na verdade. Todo o mundo da infância e da adolescência se furta ao interesse e às possibilidades de captação do investigador.

A. H. de Oliveira Marques1

Tendo em conta o desafio lançado pela citação em epígrafe, tentaremos

debruçar-nos sobre um tema tão pouco estudado e tão controverso como a história da

infância medieval. A criança ocupa hoje, na maior parte das sociedades ocidentais,

um lugar cada vez mais importante no seio da família, sendo objecto de preocupações

específicas por parte dos governantes que produzem vasta legislação orientada para a

protecção dos respectivos direitos. No campo científico, tanto a Pediatria como a

Pedagogia ou a Psicologia atribuem às necessidades e interesses da criança um lugar

cada vez mais central.

Passar-se-ia algo semelhante na Idade Média, ou, pelo contrário, teremos de

nos render à ideia, já corrente e preconcebida, de que a criança permaneceu durante

dez séculos um ser ignorado, esquecido, oprimido e mesmo desprezado? Seria então a

criança considerada mais do que “gritos, sujidade, aborrecimentos e ansiedade?”2

Qual o lugar que ocuparia nas preocupações sociais? Existiria entre os letrados

medievais a consciência da "infância"? Seria ela percepcionada pelo léxico da época?

Como era pensada e representada? Diferiria a sua educação conforme o meio social?

Como funcionariam as relações afectivas entre os pais, os filhos e a restante família?

Seria sentida a morte de uma criança ou, pelo contrário, ela não afectaria os pais? De

facto, tal como teria dito um alcaide de Zamora no contexto da guerra luso-castelhana

de 1369-71, ela poderia sempre ser substituída desde que houvesse a forja e o martello

para fazer outra.3

Seriam afinal as crianças amadas?

1 A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1974, p. 105. 2 Como a caracteriza Eustácio Deschamps no Miroir du mariage, um texto do século XIV, citado em Pierre Riché e Danièle Alexandre-Bidon, L'enfance au Moyen Âge, Paris, Ed. du Seuil, 1994, p. 23. 3 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, ed. G. Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1975, p. 134.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ___________________________________________________________________________________________

A resposta a este conjunto de interrogações constitui a base do nosso trabalho

cuja pesquisa se centra na criança, numa época delimitada e no caso específico de

Portugal. As balizas cronológicas que determinámos coincidem, grosso modo, com os

últimos séculos da Idade Média, ou seja, do século XII ao século XV. Em alguns

aspectos, porém, não hesitámos em recorrer a fontes mais arcaicas ou mais tardias,

tentando nelas observar a continuidade ou o corte com uma determinada linha de

pensamento ou comportamento. Ao escolhermos os últimos tempos do período

medieval, procurámos explicar um conjunto de realidades, atitudes e quotidianos que

só pode compreender-se recorrendo a contextos geo-civilizacionais mais vastos e

comparativos.

Delimitados o local e a época, uma outra questão importa definir. O que é a

infância? Até que idade ela vai? A resposta não é fácil, apesar de todos termos sido

crianças. Simplisticamente, ela começa no momento do nascimento, continuando até

ao momento em que a criança começa a andar e a falar. O seu terminus é, no entanto,

mais difícil de definir, sendo vulgarmente aceite o seu fim com o início da puberdade.

Embora sabendo que também esta fase varia de idade conforme o sexo, e de criança

para criança, adoptámo-la como limite etário desta investigação. Na realidade, se hoje

é difícil definir concretamente o conceito e a idade da infância, quando nos referimos

aos tempos medievais a ideia mais comum é de que esta fase só era considerada em

termos físicos.

Ao longo do nosso trabalho, iremos, então, tentar "descobrir" a criança

medieval desde os seus primeiros instantes de vida até, sensivelmente, aos seus

catorze anos. Começando um pouco mais atrás, pelo problema da concepção,

debruçar-nos-emos também sobre as práticas e rituais "médicos" que levavam mais

facilmente a uma gravidez desejada, bem como aos cuidados a ter no momento do

parto, momento sempre de grande risco para a vida da mãe e da criança. Seguiremos

então o pequeno ser até à sua entrada na adolescência, passando pelos cuidados da

amamentação, da higiene, dos primeiros passos, dos primeiros dentes, das primeiras

palavras. Uma atenção particular será dada às protecções infantis – as espirituais, as

jurídicas e as sociais. Nas primeiras abordaremos os sacramentos concedidos à

criança, desde o baptismo até à extrema-unção, caso tivesse sido baptizada. Nas

jurídicas, referiremos alguma da legislação protectora da infância que foi sendo

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ANA RODRIGUES OLIVEIRA

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________________________________________

elaborada ao longo do período em estudo. Nas últimas formas de protecção

salientaremos os casos da assistência, do abandono e da consequente adopção.

Continuando a tentar desvendar um pouco mais da infância da Baixa Idade

Média portuguesa, iremos conviver com algumas doenças infantis e com as curas ou

mortes das crianças enfermas. Estas serão também objecto de um capítulo próprio,

onde abordaremos a forma e os locais de inumação. A última parte do nosso trabalho

remete-nos para o cerne da nossa problemática: seria ou não a criança medieval

portuguesa amada e acarinhada?

Em suma, é sobre a vivência desta criança que incidirá o nosso estudo.

Sabemos, à partida, que a sua realidade muito difere da actual, dado que a menor

esperança de vida da época tornava mais rapidamente o adolescente em adulto. Era a

partir dos sete anos que os rapazes podiam ser prometidos em casamento,4 atingindo a

maioridade aos catorze, a idade em que os reis menores assumiam o encargo de

governar.5 Por sua vez, as raparigas que atingiam os doze anos eram consideradas

aptas para a consumação do matrimónio e para a procriação. 6

De facto, tendo em conta uma tal precocidade infantil, a história das crianças,

que se desenvolveu a partir da década de sessenta do século vinte, sobretudo a partir

de A criança e a vida familiar no Antigo Regime de Phillippe Ariès,7 assentou

inicialmente na tese da prática inexistência de um sentimento medieval da infância, o

qual só se afirmaria a partir do século XVII, quando a criança teria começado a ser

verdadeiramente distinguida do adulto, ou até mesmo do século XVIII, centúria que

teria visto surgir a consciência da necessidade de uma sua educação específica.

Segundo Ariès, tais conclusões poderiam deduzir-se a partir da iconografia. O

facto de a Baixa Idade Média representar a criança tal qual um adulto, com as mesmas

vestes, a mesma expressão e o mesmo corpo, apenas numa escala menor, seria

__________________________________________________________________________________________________ 3

4 Vejam-se, a título de exemplo, os casos dos esponsórios do infante Afonso, filho de D. João II, com a infanta Isabel de Castela e os do príncipe D. João de Castela com a infanta D. Joana: Rui de Pina, “Chronica do Senhor Rey D. Affonso V” in Crónicas, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, pp. 869-870. 5 Conforme explicitamente refere Rui de Pina ao contar como foi entregue a Afonso V, ao cumprir a idade de catorze anos, o Regimento do reyno, pois que, segundo foro d’Espanha qualquer Pryncepe Real deve aver ynteira posse e administraçam de seu Reyno e Senhoryo a partir desta idade - “Chronica do Senhor Rey D. Affonso V” in Rui de Pina, ob. cit., ed. cit., p. 696. 6 Consulte-se, Ana Rodrigues Oliveira, As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (sécs. XII a XIV), Patrimónia Histórica, Cascais, 2000, pp. 56-57. 7 Originalmente publicada em 1960, a obra será citada a partir da edição portuguesa: A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Lisboa, Relógio d’Água, 1988.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ___________________________________________________________________________________________

reflexo de uma forma específica de conceber os mais pequenos, ou seja, de que a

criança vivia e era tratada como um adulto. Assim, embora reconhecesse como as mais

tardias representações do Menino Jesus demonstravam que alguma coisa tendia a

mudar na forma de encarar a infância, concluiu que as crianças que começaram a

surgir na iconografia do século XV mais não eram ainda que figuras ornamentais e

pitorescas, destinadas a dar vida a um quadro mas sem valor suficiente para serem

representadas isoladamente. 8

O ponto de vista de Ariès influenciou, sobretudo, os historiadores não

medievalistas que, na década de setenta, não se afastavam muito das suas ideias.

Assim, em 1972, Hunt realçou o facto de as crianças medievais serem tidas como seres

inferiores e até como elementos indesejados e perturbadores da vida dos adultos. 9

Três anos depois, Plumb afirmava que, até aos finais do século XVII, as

atitudes para com as crianças teriam permanecido autocráticas ou mesmo cruéis e que,

somente a partir dessa época, seria possível encontrar sinais de mudança. 10

Em 1977, Shorter e Stone não se desviaram muito desta linha. Para o primeiro,

a criança medieval seria tida em tão baixo grau de estima que nem chegava a

considerar-se humana. As próprias mães não conceberiam os filhos com capacidades

de sofrimento e alegria iguais às suas, embora lhes dedicassem a afeição residual que

seria fruto de um elo meramente biológico. De resto, mesmo admitindo que a partir do

século XVI se começara a verificar nas classes superiores uma alteração da posição

relativamente à criança por parte da mãe, ela não teria chegado às classes pobres,

cujos pais, pelo menos até finais do século XVIII, teriam permanecido indiferentes aos

filhos. Para Shorter, a indiferença dos pais em relação aos filhos seria sobretudo

visível no abandono das crianças, embora reconhecesse que tal prática se ficava muito

a dever à pobreza de alguns progenitores que, apesar de tudo, se mostrariam

incomodados e tristes com a separação. 11

Stone, por seu lado, defenderia que, embora a partir da segunda metade de

Quinhentos, e num crescendo gradual, fosse já possível detectar algumas

manifestações de interesse pela infância, a criança continuou a ser desvalorizada até à

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8 Phillippe Ariès, ob. cit., ed. cit., pp. 58-63. 9 D. Hunt, Parents and Children in History: The Psychology of Family Life in Early Modern France, Nova Iorque, Harper Torchbooks, 1972. 10 J.H.P. Plumb, “The New World of Children in Eighteenth-century England”, Past and Present, 67, 1975, citado por Linda Pollock, Forgotten Children: Parent-Child Relations from 1500 to 1900, Cambridge, Cambridge University Press, 1985, pp. 8, 18.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________________________________________

terceira década de Seiscentos, referindo como os pais, tanto das classes superiores

como dos mais baixos estratos sociais, podiam abandonar os filhos e, de uma forma

geral, não se comoviam com a sua morte. Mesmo assim, a mudança mais significativa

apenas teria ocorrido entre a segunda metade da centúria de Seiscentos e os começos

do século XIX, a partir das famílias com maiores capacidades para suportar o luxo do

investimento sentimental dos filhos. Factor importante para tão tardia transformação

seria a omnipresença da morte, que, ao atravessar todas as relações afectivas nos

vários níveis sociais, reduziria o capital emocional investido a um nível de prudência,

particularmente quando se tratava de criaturas tão efémeras como as crianças.12

Os anos oitenta também não produziram alterações significativas. Logo em

1980, Badinter retomou as conclusões de Stone para considerar que até à segunda

metade de Setecentos os educadores, filósofos e teólogos continuaram a entender a

criança como “le mal ou le péché”, sendo considerada pela maioria da população

como um incómodo ou mesmo uma desgraça.13

Em 1988, Tucker, ao debruçar-se sobre os séculos XVI e XVII, concluía que,

embora desde os finais de Quinhentos tendessem a ser cada vez mais reconhecidas

como seres humanos com características diferenciadas das dos adultos, as crianças

não deixariam de ser consideradas enquanto seres nos quais não se podia confiar e

que, por isso, se deviam colocar no fundo da escala social. Portanto, em Quinhentos e

em Seiscentos ainda a infância seria entendida como uma idade mais tolerada do que

apreciada, visto os pais não saberem se deviam olhar as crianças como um bem ou

como um mal, nem se as deviam incluir ou excluir da sociedade dos adultos. 14

No mesmo ano, DeMause não se afastava destas conclusões. Para ele, quanto

mais se recuasse no tempo maiores probabilidades haveria de as crianças terem sido

maltratadas e mais baixo seria o nível de cuidados que lhes era reservado, aceitando-se

com complacência que pudessem ser mortas, abandonadas, sovadas ou aterrorizadas.

Assim, pelo menos até à centúria de Setecentos, os pais não teriam amado os seus

filhos, porque lhes faltaria maturidade emocional suficiente para os poderem

__________________________________________________________________________________________________ 5

11 Edward Shorter, The Making of the Modern Family, Londres, Fontana/Collins, 1977. 12 Lawrence Stone, Family, Sex and Marriage in England, 1500-1880, Londres, Weidenfeld and Nicolson, 1977. 13 Elisabeth Badinter, The Myth of Motherhood : An Historical View of the Maternal « Instinct », Londres, Souvenir Press, 1981. 14 M. J. Tucker, “The Child as Beginning and End : Fiftheenth and Sixteenth Century English Childhood” in Lloyd DeMause (ed.), The History of Childhood. The Untold Story of Child Abuse, Nova Iorque, Harper Torchbooks, 1988.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ___________________________________________________________________________________________

considerar como pessoas. De resto, o infanticídio constituiria, para este autor, bem

como para Tucker, um sinal inequívoco de negligência paterna.15

Em suma, com monótona regularidade a historiografia das crianças dos anos

setenta e oitenta tende a argumentar que a Idade Média desconhecia a percepção das

reais necessidades da criança, negligenciando-a e tornando-a até vítima de maus

tratos, tanto pelos pais como pelos poderes públicos, já que não se diferenciava o

adulto daquela que era considerada a sua miniatura. Com efeito, defende-se que uma

tão grande indiferença para com a criança só seria ultrapassada durante o século

XVIII, mantendo-se até aí uma concepção da infância como idade indiferenciada que

fazia com que lhe fosse reservada uma severa disciplina, afirmando-se mesmo que as

crianças seriam sistematicamente objecto de abuso por parte dos adultos. A elevada

taxa de mortalidade motivaria a negligência e a indiferença face aos mais jovens.

Contudo, também muitos medievalistas se têm dedicado ao estudo da história

da infância. De uma maneira geral, todos eles refutam a tese de Ariès, mostrando,

pelo contrário, que os adultos olhavam a infância como uma fase distinta de outras

fases, que os pais tratavam as suas crianças como crianças e que o faziam

evidenciando cuidados e carinho e que estas tinham, inclusivamente, actividades e

brinquedos próprios da sua idade. De facto, desde os começos dos anos oitenta que

Pierre Riché e Emmanuel Le Roy Ladurie começaram a contribuir para a modificação

da ideia de uma infância desconsiderada e mal amada durante a Idade Média,16

devendo-se também a Linda Pollock a crítica de que as crianças não terão então sido

tão ignoradas como Ariès afirmara, nem tão indesejadas como Hunt reforçara. Como

salientou a autora, as fontes primárias que utilizou revelaram um quadro muito mais

vivo do interesse que os pais então tinham pelas crianças do que as fontes secundárias

que haviam sido excessivamente valorizadas por autores como Ariès e Hunt. Para

Pollock, não só se teria verificado, durante a Idade Média, uma grande preocupação

com as crianças como é até possível que os pais lhes demonstrassem uma

atenção semelhante à documentada entre os séculos XVI e XIX, salvo as diferenças

decorrentes dos desenvolvimentos tecnológicos ou das mudanças sociais.17 Shulamith

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15 L., DeMause, “The Evolution of Childhood” in ibidem. 16 Entre muitos outros, Pierre Riché, “Sources Pédagogiques et Traités d’Éducation” in Les entrées dans la vie, XII congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, Nancy, 1981, pp. 15-29; Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou Cátaros e Católicos numa aldeia occitana 1294-1324, Lisboa, Edições 70, 2000. 17 L. Pollock, Forgotten children, ed. cit.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________________________________________

Shahar, Didier Lett, Danièle Alexandre-Bidon, Barbara Hanawalt, Ronald Finucane18

são outros medievalistas que nos seus múltiplos estudos não encontraram argumentos

que suportassem a tese defendida por Ariès; todos eles, pelo contrário, de diferentes

formas e com diferentes fontes, a refutam. De resto, o próprio Phillippe Ariès, ao

reeditar a sua obra, lamentou não se encontrar melhor informado sobre a Idade Média,

período de que o seu livro fala tão pouco. 19

Entretanto, nos últimos trinta anos, tanto na Europa como na América, a

criança e a história da pedagogia medieval começaram a ser alvo de trabalhos cada vez

mais numerosos e aprofundados. 20 A constante publicação de artigos, revistas, teses e

obras colectivas, assim como a realização de congressos e colóquios subordinados a

essas temáticas provam um interesse cada vez maior pela infância e pela adolescência

medievais.21 Citando Danièle Alexandre-Bidon, a criança medieval passou, assim, de

um mau tema a um bom tema para os historiadores.22 Em muitos países, sínteses

recentes testemunham e atestam afeição e um real conhecimento da infância na Idade

Média.

Mais do que discutir hoje o problema da afeição ou da não afeição pela criança

medieval, Jean-Louis Flandrin, ao criticar a obra de Phillippe Ariès, levantou uma

questão importante que se prende com a própria natureza do sentimento medieval e

com as características da infância nas diferentes épocas: a de não se poder, neste caso,

como em muitos outros, estudar o passado a partir das normas sociais

contemporâneas.23 Muitas situações que hoje nos pareceriam aberrantes têm todo o

significado e coerência quando contextualizadas numa determinada época e num

determinado sistema de valores.

Na medida em que a história da criança é elaborada pelos adultos, as suas

qualidades e os seus comportamentos são referidos, muitas vezes, por oposição.

Paralelamente, porque a criança é objecto da palavra e do discurso de ou-

__________________________________________________________________________________________________ 7

18 Para todos estes autores, consulte-se a bibliografia inserida neste trabalho. 19 Phillippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, ed. cit., Prefácio, pp. 9-31. 20 Vejam-se, entre outros, Danièle Alexandre-Bidon, “Grandeur et renaissance du sentiment de l’enfance au Moyen Âge” in Éducations médiévales, l’enfance, l’école, l´Église en Occident (VIe.-XVe. siècle), J. Verger (dir.), Histoire de l’éducation, 50, 1991, pp. 39-63 ou L. Paterson, “L’enfant dans la littérature occitaine avant 1230” in Cahiers de civilization médiévale, 32, 1989, pp. 233-245. 21 Na bibliografia final são referidas várias destas publicações, tanto de origem europeia como americana. 22 “Grandeur et renaissance du sentiment de l’enfance au Moyen Âge”, ed. cit., p. 63. 23 Jean-Louis Flandrin, “Enfant et Societé” in Annales, E.S.C., 1964, p. 327.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ___________________________________________________________________________________________

tro,24 a sua história identifica-se com o olhar que os homens têm sobre ela,

transmitindo frequentemente, valores e princípios que podem não se coadunar com a

realidade.

Este trabalho sobre a realidade medieval portuguesa começa assim por ser

uma história das representações, conjugando o real com o imaginário e com a

comparação do que há já sido investigado, trabalhado e concluído por estudos

relativos ao Ocidente medieval cristão. De facto, à falta de investigações portuguesas,

tivemos de nos basear na problemática do medievalismo geral. Em Portugal a história

social da criança não despertou ainda o interesse dos historiadores; dos mais antigos,

como Costa Lobo25 às mais recentes Histórias Gerais,26 esta temática não tem sido

desenvolvida nem autonomizada. Mesmo em textos mais específicos sobre o

quotidiano27 não há um capítulo dedicado à representação ou à sociologia da criança.

O presente trabalho procurará, assim, abordar os modelos e os comportamentos da

criança na Baixa Idade Média portuguesa, tendo em conta as diversas etapas do

crescimento, os distintos meios culturais e sociais e as respectivas proveniências

sócio-geográficas. Neste sentido, temos a consciência de que é um estudo pioneiro,

com todas as dificuldades (e aliciantes!) que daí advêm.

Ao terminar esta breve introdução queríamos lembrar a natureza desta pesquisa

que, como refere Didier Lett, citando M.- F. Morel, mais do que em outros domínios

reflecte a personalidade do investigador. À natural subjectividade do historiador,

apesar da bagagem científica de que se rodeia, acresce frequentemente a lembrança da

sua infância e da dos seus próprios filhos. 28

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24 Como escreve Micheline de Combarieu du Gres no seu estudo sobre as “aprendizagens” de Perceval e Lancelot, “(...) il est certain qu’auteurs d’épopées et même de romans nous disent peu de choses sur l'enfance de leurs héros. Sauf exception, ceux-ci attendent, dans le silence du texte, la disparition de leurs pères et de leurs oncles pour devenir des personnages importants. (...) Il faut des circonstances exceptionnelles pour que, entre fin du XIIème et début du XIIIème siècle, l’enfance des chefs devienne matière romanesque.” : “Les “apprentissages” de Perceval dans le Conte du Grall et de Lancelot dans le Lancelot en Prose" in Éducation, Apprentissages, Initiation au Moyen Âge, Actes du Premier Colloque International de Montpellier, Université Paul Valéry, 1991, pp. 129-130. 25 A. de Sousa Silva Costa Lobo, História da Sociedade em Portugal no século XV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1903. 26 A. H. de Oliveira Marques, Portugal na crise dos séculos XIV e XV, Nova História de Portugal, IV, Lisboa, Presença, 1987; José Mattoso, (coord.), A Monarquia Feudal, História de Portugal, 2, Lisboa, Estampa, 1993; Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem, (coord.), Portugal em definição de fronteiras (1096-1325). Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, Nova História de Portugal, III, Lisboa, Presença, 1996. 27 Como, por exemplo, A Sociedade Medieval Portuguesa, de A. H. de Oliveira Marques, ed. cit. 28 Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe - XIIIe siècle), Paris, Aubier, 1997, p. 15.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

FONTES

Etudier l’histoire de l’enfance peut paraître anodin et sans danger. Pourtant, depuis plusieurs décennies, les historiens sont loin d’être d’accord, sur ce sujet qui prête à controverse.

Danièle Alexandre-Bidon Didier Lett 1

O estudo da criança medieval portuguesa implica a

exploração de uma vasta e dispersa variedade de fontes, já que

as informações a reter, a analisar e a interpretar não se

encontram veiculadas por nenhum tipo de fonte em particular,

devendo, por isso, todas elas ser valorizadas e confrontadas

entre si em função da natureza do contexto informativo em que

se registam. Neste sentido, a presente investigação

desenvolveu-se a partir da análise crítica de dados provenientes

quer de fontes escritas, quer de fontes arqueológicas e

iconográficas, necessariamente interpretadas e relativizadas

tanto entre elas, como no âmbito do mais global universo

cultural e civilizacional em que se inseriu a sociedade medieval portuguesa, já que ela

se estruturou e individualizou pela forma como o soube, progressivamente, moldar e

gerir.

Entre as fontes escritas foram consultadas e valorizadas as que podiam fornecer

dados de tipo normativo e/ou comportamental, privilegiando as primeiras o enunciado

de regras e preceitos ideais e as segundas um registo menos teórico e mais empírico, já

que, embora devedoras de um idêntico discurso regulamentador, o confrontam e

articulam com as práticas e os acontecimentos sociais. Em ambos os casos, consideram-

-se fontes predominantemente narrativas, dado que, quer o âmbito geo-cronológico da

investigação a prosseguir, o do Portugal medieval, quer os prazos a respeitar para a

finalização do presente estudo, inviabilizavam o desenvolvimento de uma análise

minimamente sistemática das fontes avulsas de tipo documental as quais, portanto,

apenas serão consideradas de forma pontual e exemplificativa.

1 Danièle Alexandre-Bidon e Didier Lett, Les enfants au Moyen Âge (Ve. – XVe. Siècles), Paris, Hachette, 1997, p. 9.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ________________________________________________________________________________________________________

No que respeita às fontes narrativas susceptíveis de fornecer informações de

natureza normativa, tiveram-se em conta os dados veiculados pela tratadística de tipo

enciclopédico, didáctico-moral, médico e jurídico, implicando, sobretudo nos três

primeiros casos, a consideração de obras representativas da cultura letrada cristã e

árabe, já que ambas influenciaram e modelaram a forma como a sociedade medieval

portuguesa teorizou e representou o lugar nela ocupado pelas crianças. Assim, tanto

para os escritos dos enciclopedistas, como para os dos pedagogos ou médicos, foram

devidamente considerados os materiais contidos em fontes que, embora não tendo sido

elaboradas no Portugal medieval, tanto foram directamente conhecidas ou até utilizadas,

no todo ou em parte, pelos seus letrados, como sintetizaram ou compendiaram

conhecimentos e saberes por eles atestadamente partilhados.

No primeiro caso, figuram sobretudo os enciclopedistas, desde Isidoro de

Sevilha, a Vicente de Beauvais ou Bartolomeu, o Inglês,2 a eles se juntando, no campo

dos tratados pedagógicos, o Livro das Três Vertudes de Cristina de Pisano, mandado

traduzir para português pela esposa do rei Afonso V, a rainha Isabel, e depois impresso

por vontade de outra soberana lusa, Leonor, a mulher do monarca João II. 3

No segundo caso, tanto se situam vários outros manuais de educação, como dois

tratados médicos que, no seu conjunto, permitem completar e diversificar as

informações veiculadas pelas obras do português Pedro Hispano,4 ou seja, o compêndio

hispano árabe de obstetrícia e pediatria conhecido por Livro da Geração do Feto,5 e o

manual de Aldebrandino de Siena escrito em francês sob o título de Le Régime du

corps6 onde se compilam os saberes que a Cristandade medieval desenvolveu e reuniu

acerca dos cuidados a ter com as grávidas e os recém-nascidos.

Quanto aos outros manuais de educação infantil e juvenil, um género que apenas

se autonomizou em Portugal durante o Renascimento, foram igualmente analisados

alguns dos que serviram de fonte à posterior tratadística lusa, como sejam, entre os

2 Vejam-se: José Mattoso, "As enciclopédias medievais" in Prelo, 4, 1984, pp. 43-51; Maria Margarida Santos Alpalhão, L'Image du Monde de Gossonin de Metz. Apresentação, leitura interpretativa, tradução e notas, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1996 (Tese de Mestrado). 3 Cristina de Pisano, O Livro das tres Vertudes ou O Espelho de Cristina, ed. Maria de Lurdes Crispim, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1995 (Tese de Doutoramento). 4 Pedro Hispano, Obras Médicas, ed. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1973. 5 El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Árib Ibn Sa'íd (Tratado de Obstetricia Y Pediatría hispano árabe del siglo X), ed. Antonio Arjona Castro, Córdova, 1983. 6 Aldebrandino de Siena, Le Régime du corps, ed. L. Landouzy et R. Pépin, Paris, 1911.

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FONTES ________________________________________________________________________________________________________

ibéricos, o que Afonso X de Castela e Leão compôs, cerca de 1263, para ser incluído

nas suas Siete Partidas,7 e o De Doctrina Pueril redigido, na centúria de Trezentos,

pelo catalão Raimundo Lúlio8, a eles se juntando, entre os produzidos além-Pirinéus, os

que foram compostos na segunda metade do século XIII, por Filipe de Novara e Gil de

Roma, respectivamente, Des quatre teus d'aage d'ome9 e De Regimine principum,

tratado escrito para a educação do futuro rei Filipe, o Belo, de França, onde se

desenvolvem os cuidados a ter com os príncipes desde o nascimento até aos sete

anos.10 Todos eles oriundos dos meios cortesãos leigos, permitiram completar e

desenvolver os dados fornecidos quer por Frei João Álvares, relativamente aos

adolescentes a criar nos mosteiros beneditinos,11 quer, no século anterior, pelo bispo de

Silves, o franciscano Álvaro Pais, no seu Status et Planctus Ecclesiae 12 no que se

relaciona com as normas educacionais a seguir pelas crianças presentes nas instituições

eclesiásticas.13

Este último texto foi também utilizado na qualidade de fonte jurídica, sobretudo

no tocante às prescrições canónicas sobre a infância e a adolescência, tal como, no

mesmo sentido, a legislação sinodal lusa14 e as normas penitenciais constantes na

tradução para português do castelhano Libro de las Confessiones de Martin Pérez, 15 ou

no mais tardio Tratado de Confissom,16 sem esquecer as regras veiculadas pelos

7 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey cotejadas con vários códices antiguos, Madrid, Real Academia de la Historia, 1807, Partida Segunda, Título 7. 8 Raimundo Lúlio, Doctrine d'enfant, ed. e trad. de A. Llinares, Paris, 1969. 9 Filipe de Novara, Les Quatre Âges de l´homme, ed. M. de Fréville, Paris, 1888. 10 Gil de Roma, Le Livre du gouvernement des Princes (De regimine principum), ed. S.P. Molenaer, Paris, 1899. 11 Frei João Álvares, "Carta aos monjes professos do Moesteiro de Sam Salvador de Paaço de Sousa e Regra do Muy Bem Aventurado Sam Bēeto Abade", ed. Adelino de Almeida Calado, in Frei João Álvares, Obras, II, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960, pp. 1-90. 12 Álvaro Pais, Estado e Pranto da Igreja, (Status et Planctus Ecclesiae), ed. Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, J.N.I.C.T., 1994-5. No tratado que Álvaro Pais compôs sobre as virtudes a exigir à realeza (Espelho dos Reis, ed. Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, IAC, 1955) não se encontra desenvolvida a temática da educação dos príncipes. 13 Sobre a influência de todas estas obras na tratadística portuguesa do Renascimento, consulte-se Ana Isabel Buescu, Imagens do príncipe. Discurso normativo e representação (1525-49), Lisboa, Cosmos, 1996. 14 Reunida em Synodicon Hispanum. II – Portugal, ed. Francisco Cautelar Rodriguez, Avelino de Jesus da Costa, Antonio Garcia Y Garcia, Antonio Gutierrez Rodriguez, Isaías da Rocha Pereira, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1982. 15 O Penitencial de Martim Pérez em Medievo-Português, ed. Mário Martins, Lisboa, 1957. Veja-se também, José Antunes, A cultura erudita portuguesa nos séculos XIII e XIV (Juristas e Teólogos), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1995, pp. 269-326 (Tese de Doutoramento). 16 Tratado de Confissom, ed. José V. de Pina Martins, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ________________________________________________________________________________________________________

catecismos tardo-medievais.17 Contudo, entre as fontes jurídicas consultadas, foram

sobretudo as leigas – se bem que, em alguns aspectos, bastante devedoras das canónicas

– as que mais informações forneceram sobre normas e regulamentos respeitantes à

criança.

A nível da legislação geral, foram examinadas as principais compilações

medievais das leis a aplicar no reino, começando com os códigos castelhanos

elaborados sob a direcção de Afonso X de Castela e Leão, já que, para além de terem

funcionado como direito subsidiário no Portugal dos séculos XIII e XIV, havendo

mesmo sido traduzidos para português, influenciaram decisivamente a posterior

legislação lusa.18 Nesse sentido, tanto foi analisado o Foro Real, o código concluído

entre 1252 e 1255, e destinado a ser outorgado como legislação a aplicar nas vilas e

cidades régias que não tinham foros próprios - pretendendo, desse modo, funcionar

como meio jurídico destinado a unificar os diversos direitos municipais locais nas

questões civis, processuais e penais,19 - como o Código das Sete Partidas,20 onde, em

sete grandes secções ou partes, se articulava a legislação tradicional peninsular com

normas inspiradas no direito justianeu, então retomado por toda a Cristandade, e nas

Decretais do Papado, ao mesmo tempo que se recolhiam contributos e interpretações

provenientes das obras dos principais glosadores e comentadores do direito europeu dos

séculos XII e XIII. 21

Mais tardios, os códigos medievais portugueses onde se ia compilando a mais

importante legislação geral do Reino também foram, naturalmente, atento objecto de

heurística e hermenêutica, desde o chamado Livro das Leis e Posturas22 - que, ainda

elaborado na centúria de Trezentos, copiava e disponibilizava várias das leis

promulgadas pelos anteriores monarcas lusos, de Afonso II a Afonso IV, assim como

regulamentos relativos às praxes adoptadas nos tribunais da corte, tratados teóricos de

direito processual, notas doutrinais extraídas, quer das leis imperiais romanas quer das

17 Consulte-se O Cathecismo Pequeño de D. Diogo Ortiz Bispo de Viseu, ed. Elsa Maria Branco Silva, Lisboa, Colibri, 2001. 18 José de Azevedo Ferreira, "A obra legislativa de Afonso X em Portugal" in Estudos de história da língua portuguesa, Braga, Universidade do Minho, 2001, pp. 75-90. Consulte-se também, Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, I, Lisboa, Pedro Ferreira, 1999, pp. 186-201. 19 Afonso X, Foro Real, ed. José de Azevedo Ferreira, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. 20 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey cotejadas con vários códices antiguos, ed. cit. 21 Marcello Caetano, História do Direito Português (1140-1495), Lisboa, Ed. Verbo, 1994, pp. 340-342. 22 Livro das Leis e Posturas, ed. Maria Teresa C. Rodrigues, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1971.

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FONTES ________________________________________________________________________________________________________

concordatas celebradas entre os reis e a igreja e ainda alguns artigos apresentados e

respondidos pelos soberanos em Cortes gerais do Reino23 -, até às já quatrocentistas

Ordenações del-Rei D. Duarte24 e Ordenações Afonsinas.25 Muito mais completa e

sistemática do que a compilação legislativa antes elaborada,26 o primeiro destes

códigos, não só acrescenta novas leis régias às que anteriormente haviam sido

compiladas, e as apresenta ordenadas por reinados, ou, menos vezes, por temáticas,

como também inclui, numa certa desordem, legislação promulgada pelos mais recentes

monarcas, ou seja, João I e Duarte, o soberano, aliás que, para lá de ter ordenado a

feitura do códice, assume a responsabilidade pela elaboração do respectivo índice.

Quanto às Ordenações Afonsinas, organizadas em cinco livros, onde se

compilam leis, jurisprudência e tratados relativos aos direitos civil, processual, penal e

diplomático, de uma forma ainda mais exaustiva do que as anteriores, embora tenham

sido pensadas como um repositório da legislação régia promulgada no Reino até ao

monarca Afonso V, para uso dos legistas e magistrados da corte e, portanto, como

códice cuja promulgação deveria revogar toda a anterior legislação, nem sempre

transcrevem, de forma completa e isenta de lacunas, ou até de erros de transcrição, o rol

das decisões que sobre os diversos assuntos nelas abordados fora antes decidido pelos

sucessivos monarcas portugueses. Nesse sentido, embora essenciais para a recolha de

dados relativos à forma como a criança medieval foi sendo considerada pela legislação

régia portuguesa, as Ordenações Afonsinas não permitiram dispensar a consulta e a

análise das anteriores compilações de leis gerais do Reino.

Por outro lado, o conhecimento de toda a legislação régia está longe de se poder

esgotar nas normas e preceitos jurídicos transcritos nas compilações atrás mencionadas.

Ele implica, nomeadamente no que diz respeito à jurisprudência, a consideração das

fontes onde, em geral, se justifica a razão e o sentido da aplicação das leis e das

excepções ou isenções previstas ou concedidas para o seu não cumprimento, como

23 Marcello Caetano, História do Direito Português, ed. cit., pp. 346-347. Sobre a possível autoria desta obra, consulte-se Luís Miguel Duarte, Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação Gulbenkian, 1999, pp. 109-110. 24 Ordenações del-Rei D. Duarte, ed. M. Albuquerque e E. Borges Nunes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. 25Ordenações Afonsinas, ed. M. J. Almeida Costa e E. Borges Nunes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, 5 vols. 26 Marcello Caetano, História do Direito Português, ed. cit., pp. 529-551. Sobre ambas as Ordenações, a forma como foram compiladas e a sua possível paternidade, veja-se, Luis Miguel Duarte, ob. cit., ed. cit., pp. 105-107 e 110-130. Consulte-se também, Mário Júlio de Almeida Costa, História do Direito Português, Coimbra, Almedina, 1989, pp. 265-280.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ________________________________________________________________________________________________________

sejam os privilégios, os perdões e as escusas concedidas pelos reis. Ou seja, tanto a

consulta e análise da documentação emitida pelas Chancelarias Régias, que, a partir de

Afonso III, se tornaram num organismo fundamental para a expedição e registo de

diplomas sobre questões de justiça ou de graça exercida ou concedida pelos

soberanos,27 como a relativa às actas das Cortes Gerais do Reino, cujas propostas a

discutir podiam vir a adquirir força de lei, já que, se fossem homologadas pelo rei,

passavam a funcionar como legislação geral do Reino.28 Ora, no seu conjunto, também

esta tarefa foi prosseguida no que respeita a materiais já transcritos e editados no todo

ou em partes, conforme se indica ao longo do presente trabalho.29

Paralelamente, também foram objecto de investigação as fontes jurídicas de

âmbito local, sobretudo as relativas aos três grandes tipos de foros e costumes

concelhios, visto que, dado o seu maior ou menor arcaísmo relativamente ao direito

familiar neles consagrado, nos permitem esclarecer o sentido evolutivo das normas

relativas à criança. 30 Neste sentido, tanto foram analisados os mais ruralizantes foros

concedidos por Afonso IX de Leão, na região de Cima-Coa aos concelhos de Alfaiates,

Castelo Bom, Castelo Rodrigo e Castelo Melhor, aos quais se podem tipologicamente

aproximar os concedidos por Sancho I à Guarda, como os que derivam dos mais

urbanos costumes de Santarém e de Évora, representados, respectivamente, pelos foros

de Oriola, Alvito e Beja, aos quais se podem ainda associar os de Torres Novas, e

pelos de Alcácer do Sal, Garvão, Terena e Alcáçovas, todos eles transmitidos através de

cópias datadas da segunda metade do século XIII.31

Continuando a ter força de lei local, os foros, usos e costumes locais

continuaram a vigorar, com mais ou menos rectificações ou acrescentos, durante os

27 Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem, Origines et évolution du registre de la chancellerie royale portugaise (XIIIe.-XVe. Siècles), Porto, 1995. 28 Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), Porto, INIC, Centro de História da Universidade do Porto, 1990, vol. I, p. 254. 29 A edição das cortes e chancelarias medievais portuguesas tem vindo a ser prosseguida, sob a direcção de A.H. de Oliveira Marques, pelo Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, encontrando-se actualmente disponíveis, quer as cortes dos reinados de Afonso IV (1982), Pedro I (1986), Fernando I (1990-93) e Manuel I (2001), quer as chancelarias de Afonso IV (1990-92), Pedro I (1984), Duarte (1998-2002) e João I (2004). 30 José Mattoso, “Notas sobre a estrutura da família medieval portuguesa” in A nobreza medieval portuguesa – a Família e o Poder, Lisboa, Ed. Estampa, 1987, pp. 393-394. 31 Sobre todos estes foros, consulte-se António Matos Reis, Origens dos municípios portugueses, Lisboa, Horizonte, 1991. O estudo dos foros de Riba Coa foi sobretudo desenvolvido por Luís Filipe Lindley Cintra, A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. Sobre a Guarda, consulte-se os Forais e Foros da Guarda, ed. Maria Helena da Cruz Coelho, Guarda, Câmara Municipal, 1999.

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FONTES ________________________________________________________________________________________________________

séculos XIV e XV .32 Com efeito, conforme observa A. H. de Oliveira Marques, se se

mantinha quase sempre o foral primitivo dos séculos XII ou XIII, havia que somar-lhe

tantas outras leis que praticamente o submergiam e minimizavam: leis alterando

pormenores do foral em si, foros e costumes, posturas locais, e todo um conjunto de

regimentos e ordenações de carácter geral ou local que se tornavam a base mais

importante da legislação citadina.33 Uma tal ampliação da legislação concelhia,

sobretudo a urbana, também implicou a elaboração de Livros de Vereações onde se

registavam posturas e informações preciosas sobre a gestão municipal das crianças órfãs

ou abandonadas, tendo essa sido a razão que motivou a sua consideração como fontes

jurídicas a também consultar e analisar no âmbito de uma história medieval da

criança.34

Quanto às fontes escritas susceptíveis de fornecer elementos de tipo mais

comportamental do que exclusivamente normativo, foram sobretudo tidas em conta as

crónicas, as hagiografias e os livros de milagres. As primeiras, nomeadamente as

produzidas pelos letrados da corte dos reis de Avis, remetem para uma cultura leiga e

profana bastante atenta à função de propor modelos de comportamento político e social

aos vassalos da coroa, relembrando o passado do Reino de acordo com os interesses e

os objectivos da dinastia que pretendiam exaltar e prestigiar.35 Nesse sentido, ao

proporem-se disponibilizar modelos de conduta cortesã, as crónicas acabam por

fornecer toda uma série de informação sobre a infância e a adolescência dos filhos e das

filhas dos reis que não se encontra facilmente presente noutro tipo de fontes, e que, no

seu conjunto, permite elucidar, tanto a forma através da qual as elites profanas do reino

foram criando e educando as novas gerações, como o protagonismo e a função que iam

reservando às suas crianças.36

32 Acerca da distinção entre costumes, usos e foros, veja-se Luís Miguel Duarte, ob. cit., ed. cit., pp. 130--134. 33 A.H. de Oliveira Marques, Portugal na crise dos séculos XIV e XV, Nova História de Portugal, IV, Lisboa, Presença, 1987, p. 198. 34 Sobre as posturas enquanto direito concelhio complementar ao foral, veja-se António Manuel Hespanha, História das Instituições. Épocas Medieval e Moderna, Coimbra, Livraria Almedina, 1982, p. 244. 35 Luís Krus, "Historiografia. Época medieval" in Carlos Moreira Azevedo (dir.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, pp. 512-523. Consulte-se, também, Carla Silvério, Representações da realeza na cronística medieval portuguesa. A dinastia de Borgonha, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1999 (Tese de Mestrado). 36 Sobre a cronística como fonte para a história medieval da mulher portuguesa, veja-se Ana Rodrigues Oliveira, As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (sécs. XII a XIV), Cascais, Patrimonia Histórica, 2000.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ________________________________________________________________________________________________________

Enquanto textos integrados numa mais ampla cultura cortesã cujo principal

objectivo era a formação dos príncipes e dos fidalgos, as crónicas articularam-se com

outros géneros literários igualmente pensados e desenvolvidos em ordem à educação

dos jovens presentes nos paços régios e senhoriais, encontrando-se entre eles a lírica

profana dos cancioneiros trovadorescos ou palacianos, as genealogias, as novelas de

cavalaria e os tratados didáctico-morais sobre as ocupações dos reis e dos grandes

senhores.37 Globalmente analisados, não forneceram, no entanto, muitos elementos

sobre as crianças, sobretudo quando comparados aos dispensados pela cronística, salvo

o caso das mais pessoais obras do rei Duarte.38

Na verdade, foi em dois considerados géneros menores da literatura clerical que

encontrámos um maior número de informações sobre a criança medieval portuguesa,

suplantando, em muito, os fornecidos quer pela prosa e poesia profanas, quer pelos

tratados espirituais, compostos ou traduzidos pelos monges e pelos eclesiásticos. 39

Referimo-nos às hagiografias e aos livros de milagres, habitualmente desprezados pelos

historiadores da cultura e da sociedade, porque estilisticamente pouco elaborados e, em

geral, portadores de informações quase sempre deformadas ou recriadas pelos óbvios

interesses dos templos que promoveram a sua escrita, ou seja, a pura exaltação dos

poderes taumatúrgicos dos cultos que patrocinavam, sobretudo os relativos aos santos

cujos corpos custodiavam e para cujas festividades litúrgicas desejavam

atrair peregrinos.40

37 Uma síntese fundamental, com indicação de abundante bibliografia, encontra-se em António Resende de Oliveira, "A cultura das cortes" in Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem (coord.), Portugal em Definição de Fronteiras (1096-1325). Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, Nova História de Portugal, III, Lisboa, Presença, 1996, pp. 660-692, podendo ser pontualmente actualizada pela História da Literatura Portuguesa. Das origens ao Cancioneiro Geral, Lisboa, Alfa, 2001. Sobre o elenco, transmissão e edição dos textos narrativos medievais, consulte-se Isabel Vilares Cepeda, Bibliografia da Prosa Medieval Portuguesa, Lisboa, I.B.N.L., 1995. 38 Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte, ed. J.J. Alves Dias e A.H. de Oliveira Marques, Lisboa, Estampa, 1982 e D. Duarte, Leal Conselheiro, ed. Maria Helena Lopes de Castro, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998. 39 Como é o caso, entre outros, do Orto do Esposo, ed. Bertil Maler, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1956-1964, do Castelo Perigoso, ed. Maria Branca da Silva, Lisboa, Colibri, 2001 e o da Corte Enporial, ed. Adelino Almeida Calado, Aveiro, Universidade, 2000. 40 Sobre a progressiva reabilitação dos textos hagiográficos pelos historiadores medievalistas: Pierre Riché, “Réflexions sur l’histoire de l’éducation dans le haut Moyen Âge (Ve - XIe siècles)” in Éducations médiévales, l´enfance, l' école, l' Église en Occident (VIe.-XVe. siècles), J. Verger (dir.), Histoire de l' éducation, 50, 1991, p. 21; Pierre-André Sigal, “La grossesse, l' accouchement et l' attitude envers l' enfant mort-né à la fin du Moyen Âge d' aprés les récits de miracles" in Santé, Médicine et Assistance au Moyen Âge, Paris, C.T.H.S. , 1987, pp. 23-24.

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FONTES ________________________________________________________________________________________________________

Contudo, o cepticismo provocado pela utilização histórica de fontes quase

sempre marcadas pela constante ocorrência de estereotipados tópicos literários, como é

corrente nas vidas dos santos ou, no caso do relato dos milagres, pela forma como os

clérigos ou religiosos adaptaram e distorceram os depoimentos orais prestados pelos

miraculados ou pelas testemunhas do milagre, de acordo com formulários próprios de

um registo escrito sujeito a regras e exigências canónicas, pode e deve ser ultrapassado

quando as informações a reter se descentram do milagre per si.41 Com efeito, se se

consideram criticamente os diversos episódios da vida terrena do santo, e as condições,

motivos e protagonistas dos supostos milagres - tendo em conta o seu funcionamento

enquanto materiais discursivos susceptíveis de tornar os textos hagiográficos credíveis

ou plausíveis pelo diversificado auditório a que se destinavam - , as vidas dos santos e

as memórias dos seus milagres acabam por fornecer informações e dados acerca das

crianças medievais mais próximas dos quotidianos sociais dos que são fornecidos pela

literatura profana cortesã, sobretudo atenta às elites, pela tratadística dos médicos e

pedagogos letrados, demasiado preocupada em articular as práticas sociais com os

saberes herdados da Antiguidade, ou até, pela generalidade das fontes jurídicas, já que

nelas a criança surge bastante diluída nas questões relativas à família e à transmissão do

respectivo património. 42

É, assim, quase sempre através dos textos hagiográficos e, na maior parte dos

casos, por via dos relatos de milagres, que conseguimos entrever imagens de infância e

adolescência minimamente concretas e plausíveis. Sejam crianças que trabalham ou

brincam com os irmãos e os amigos, sofrendo os acidentes próprios de meninos e

meninas que partilham espaços públicos e privados organizados em função dos adultos,

sejam jovens cuja impetuosidade e imprudência geram motins ou perturbações nos

quotidianos sociais rurais e urbanos.

41 Conforme salienta Eleanora C. Gordon, "Child Health in the Middle Ages as seen in the Miracles of Five English Saints. A.D. 1150-1120" in Bulletin of the History of Medicine, 60, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1986, p. 503. 42 Sobre a consideração dos livros de milagres como fonte histórica, consulte-se, Ronald C. Finucane, “The use and abuse of medieval miracles”, History, 60, 1975, pp. 1-10.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ________________________________________________________________________________________________________

Com origens que remontam à Cristandade da Antiguidade Clássica e à literatura

judicial romana da Acta Martyrum, os textos hagiográficos produzidos ou traduzidos no

Portugal medieval compreendem diversos sub-géneros, nem sempre nitidamente

autonomizados. De facto, se, por vezes, é possível distinguir entre as breves memórias

dos santos, incluídas, para efeitos litúrgicos, nos Legendários, e as mais desenvolvidas

narrativas das Vidas, Milagres e Transladações de relíquias, existem vários exemplos de

obras resultantes da sobreposição e conjugação desses sub-géneros.43 São, sobretudo, os

casos que respeitam às vidas em que se desenvolvem as memórias dos milagres

ocorridos depois da morte dos santos, reportando-se a cultos prestados nos santuários

em que se encontram sepultados ou para onde foram transferidas, total ou parcialmente,

as respectivas relíquias.

A produção portuguesa de escritos hagiográficos iniciou-se nos tempos da

formação territorial do Reino, ou seja, durante a Reconquista, compreendendo, desde

logo, várias Vidas, Milagres e Transladações redigidas em latim.44 Mais antigas, as

Vidas começaram por registar a biografia de santos reformadores ou fundadores de

grandes instituições eclesiásticas, sendo esses os casos do bispo Geraldo, em relação à

Sé de Braga,45 dos cónegos Telo e Teotónio, associados à memória do pároco Martinho

de Soure, no tocante ao convento régio de Santa Cruz de Coimbra,46 ou, já nos finais do

século XII, da abadessa Senhorinha, no que respeita ao mosteiro de Refojos de Basto,47

43 Aires A. Nascimento, “Hagiografias”, Dicionário de Literatura Medieval Galega, org. e coordenação de Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, Lisboa, Ed. Caminho, 1993, pp. 307-310. 44 Para uma panorâmica geral sobre a evolução das hagiografias e dos livros de milagres medievais portugueses, consultem-se: José Mattoso, "Le Portugal de 950 à 1550" in Guy Philippart (dir.), Hagiographies, II, Turnhout Brepols, 1996, pp. 83-102; Mário Martins, Peregrinações e Livros de Milagres da Nossa Idade Média, Coimbra, Instituto de Estudos Históricos Doutor António de Vasconcelos, 1951; Maria de Lurdes Rosa, "Hagiografia e Santidade" in Carlos Moreira Azevedo (dir.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 326-361. 45 Bernardo, Vida de S. Geraldo, trad. de José Cardoso, Braga, Livraria Cruz, 1959. 46 "Vida de D. Telo", "Vida de D. Teotónio", "Vida de S. Martinho de Soure", ed. Aires A. Nascimento, in Hagiografia de Santa Cruz, Lisboa, Colibri, 1998. Veja-se, também, Vida de S. Teotónio, ed. Maria Helena da Rocha Pereira, Coimbra, Santa Cruz, 1987. 47 A hagiografia de Senhorinha de Basto foi transmitida através de três tradições manuscritas: "Vida da Bem Aventurada Virgem Senhorinha" e "Outra Vida de Santa Senhorinha" in Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. e trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Porto, 1970, pp. 113-157; "Vida e Milagres de Santa Senhorinha", ed. Torquato Peixoto de Azevedo, Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, Guimarães, Gráfica Vimaranense, 2000, pp. 444-479. Sobre as origens e a tradição manuscrita das hagiografias de Senhorinha de Basto, consulte-se Odília Alves Gameiro, A construção das memórias nobiliárquicas medievais. O passado da linhagem dos Senhores de Sousa, Lisboa, Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 2000, pp. 85-112.

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FONTES ________________________________________________________________________________________________________

havendo a mesma sido antes referenciada na hagiografia do abade Rosendo, o também

santo fundador do cenóbio galego de Celanova.48

Entretanto, mais a Sul, na Lisboa recentemente conquistada aos Muçulmanos,

tanto se foram elaborando os registos dos milagres atribuídos ao cavaleiro Henrique de

Bona, um mártir cruzado alemão que morrera durante a tomada cristã da cidade e se

encontrava sepultado no mosteiro peri-urbano de S. Vicente de Fora,49 como os

propiciados pelas relíquias do próprio S. Vicente, transladadas, em 1173, do Algarve

islâmico para a Sé lisboeta,50 enquanto, por outro lado, se reescrevia, no também

olisiponense convento santiaguista de Santos, uma antiga vida dos mártires hispânicos

Veríssimo, Máxima e Júlia, cujos despojos aí se teriam descoberto nos finais do século

XII.51

Contudo, se no conjunto de todos estes primeiros textos hagiográficos se

encontram algumas referências à infância ou à adolescência dos santos e várias

informações sobre crianças miraculosamente agraciadas, são sobretudo os escritos

produzidos a partir dos finais da Reconquista que fornecem dados mais desenvolvidos e

frequentes. Em primeiro lugar, porque referenciam a vida e os milagres de santos menos

relacionados com o exercício de altas funções eclesiásticas ou com acontecimentos

apologéticos da militância cristã contra o Islão. De facto, ao recordarem as vidas,

quer de frades mendicantes envolvidos na pregação urbana,52 como António de

48 Ordonho de Celanova, "Libro de la Vida y Milagros del obispo San Rosendo", ed. e trad. de M.C. Díaz y Díaz, in Vida y Milagres de San Rosendo, Corunha, Galicia, 1990, pp. 112-231. Veja-se, também, Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit. 49 "Notícia da Fundação do Mosteiro de S. Vicente de Lisboa", ed. e trad. de Aires A. Nascimento, in A conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um cruzado, Lisboa, Vega, 2001, pp. 178-197. Sobre o contexto cultural do registo dos milagres do cavaleiro Henrique de Bona: Armando de Sousa Pereira, Representação da guerra no Portugal da Reconquista, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2003, pp. 33-79. 50 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", e "Milagres de S. Vicente", ed. e trad. de Aires A. Nascimento, Saúl A. Gomes, S. Vicente de Lisboa e Seus Milagres Medievais, Lisboa, Didaskalia, 1988, respectivamente, pp. 28-69 e 69-91. 51 Mário Martins, "A Legenda dos Santos Mártires, Veríssimo, Máxima e Júlia do cod. CV/I – 23 d., da Biblioteca de Évora", Revista Portuguesa de História, 6, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1964, pp. 44-50. 52 O conhecimento das Vidas e Milagres dos Santos mendicantes portugueses de Duzentos está muito dependente de tradições manuscritas que apenas se conservaram na obra de posteriores cronistas das ordens franciscana e dominicana. Nesse sentido, consultaram-se, para o efeito, tanto a tradução quatrocentista para português da Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), ed. José Joaquim Nunes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, como as seiscentistas História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de Frei Manuel da Esperança, Lisboa, 1656 e a História de S. Domingos de Frei Luís de Sousa, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, 2 vols.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ________________________________________________________________________________________________________

Lisboa,53 Gil de Santarém54 ou Gonçalo de Amarante,55 quer as de leigos que, embora

poderosos, teriam vivido uma santidade caracterizada, para além da vivência exemplar

da espiritualidade cristã, por uma grande disponibilidade para exercer o auxílio e a

assistência caritativa às mais pobres ou desprotegidas populações do Reino, sendo esse

o caso da rainha Isabel de Aragão,56 acabam por referenciar contextos sociais marcados

por uma mais intensa presença das crianças.

Em segundo lugar, porque é a partir de então que se afirma e desenvolve o

maternal culto mariano, marcado e propagandeado pela difusão da suposta ocorrência

de múltiplos milagres protagonizados por crianças.57 Como sucede nas Cantigas de

Santa Maria, onde Afonso X de Castela e Leão concede um amplo espaço a graças

concedidas pela Virgem cultuada em vários santuários portugueses,58 nomeadamente

em Terena,59 a muitos meninos e meninas, ou, nos milagres registados nos séculos XIV

e XV em louvor de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães,60 e Nossa Senhora das

Virtudes, próximo de Santarém.61 Paralelamente, também então se registaram por

escrito, as benesses outorgadas pelo Deus menino, o Bom Jesus, aos seus mais

pequenos devotos, sendo esse o caso das propiciadas pelo seu culto no Mosteiro de S.

Domingos de Lisboa.62

Contudo, a recordação de milagres protagonizados por crianças não foi apenas

utilizada para atrair peregrinos a festas e romarias celebradas em nome de Nossa

53 "O Livro dos Milagres de Santo António em Medievo-Português", ed. J.J. Nunes, in Brotéria, LXXI, 10/60, pp. 299-307; Cousas Notaveis e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. José Joaquim Nunes, Porto, 1912. Sobre a tradição hagiográfica portuguesa relativa a António de Lisboa, vejam-se Vida e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. Fernando Thomaz de Brito, Lisboa, 1894 e, sobretudo, "Livro dos Milagres de Santo António de Lisboa", Fernando Felix Lopes, in Henrique Pinto Rema (dir.), Fontes Franciscanas, III, Braga, Editorial Franciscana, 1998, pp. 65-140. 54 Pelas razões indicadas na nota 52, a Vida e os Milagres de Frei Gil de Santarém foram analisados a partir da História de S. Domingos, de Frei Luís de Sousa, tendo também sido analisada A Vida do bem aventurado Gil de Santarém, de Frei Baltazar de S. João, ed. Aires A. Nascimento, Lisboa, 1982. 55 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, 2 vols. Sobre as tradições hagiográficas relativas a Gonçalo de Amarante, consulte-se Arlindo Cunha, São Gonçalo de Amarante, um vulto e um culto, Gaia, Câmara Municipal, 1996. 56 Vida e Milagres de D. Isabel, ed. J.J. Nunes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921. 57 Consulte-se "O Livro dos Milagres da Bem-Aventurada Virgem Maria", ed. Mário Martins, in Brotéria, vol. LXX, 5, 1960, pp. 517-532. 58 Mário Martins, Peregrinações e Livros de Milagres da Nossa Idade Média, ed. cit., pp. 71-88. 59 Alfonso X, o Sábio, Cantigas de Santa Maria, ed. Walter Mettmann, Madrid, Castália, 1986-1988, cantigas 197, 198, 199, 223, 224, 228, 275, 283, 299, 319, 325, 333 e 334. 60 Afonso Peres, "O Livro dos Milagres de Nossa Senhora da Oliveira", ed. Mário Martins, in Revista de Guimarães, 63, 1953, pp. 83-132. 61 Frei João da Póvoa, "Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes", ed. F. Correia, in Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, 3, nº 1, 1988, pp. 7-42. 62 "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa", ed. Mário Martins, in Lavdes & Cantigas Espiritvais de Mestre André Dias, Lisboa, 1955, pp. 283-298.

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FONTES ________________________________________________________________________________________________________

Senhora ou do Menino Jesus. Também se encontra frequentemente registada nos Livros

compostos para publicitar e desenvolver as devoções a prestar às relíquias de novos e

antigos santos. Entre os primeiros, conta-se o beato Nuno Álvares Pereira, o fundador

do mosteiro de Nossa Senhora do Carmo, onde se elaborou um rol de milagres

destinado a propagandear-lhe o culto em torno da sepultura onde jazia.63 Entre os

segundos, por sua vez, contam-se santos cujos corpos há muito repousavam em templos

de Coimbra, ou seja, o mosteiro de Santa Clara, onde se custodiavam os restos mortais

da rainha Isabel de Aragão,64 e o convento de Santa Cruz de Coimbra, que guardava,

desde 1220, as relíquias dos chamados Mártires de Marrocos, sendo elas objecto de um

culto que se reavivou no contexto da espiritualidade cruzadística que regressara ao

Reino após a conquista de Ceuta.65 Esse mesmo revivalismo religioso encontra-se aliás,

bem presente na hagiografia em que Frei João Álvares recordou o sentido da vida do

infante Fernando, o também martirizado em Marrocos, Infante Santo.66

Paralelamente, os finais da Idade Média ainda conheceram um notável

acréscimo dos textos hagiográficos produzidos no Reino por via da tradução para língua

vulgar de muitas vidas e milagres de santos venerados por toda a Cristandade. Nesse

sentido, distinguiu-se o mosteiro cisterciense de Alcobaça, devendo-se aos seus monges

letrados a versão ou adaptação para português de um grande número de biografias de

santos orientais e ocidentais, como as que integram a chamada Colecção Mística de Frei

Hilário da Lourinhã,67 a elas também se tendo ficado a dever, no contexto da tradução

do texto castelhano de Bernardo de Brihuega sobre as Vidas e Paixões dos Apóstolos, a

63 Utilizamos a tradição manuscrita recolhida por Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, Lisboa, 1745. 64 "Vida e Milagres de D. Isabel Rainha de Portugal", ed. Maria Isabel da Cruz Montes, in Vida e Milagres de D. Isabel Rainha de Portugal (Edição e Estudo),Lisboa, Universidade Nova, 1999 (Tese de Mestrado). 65 "Livro dos Milagres dos Santos Mártires", ed. Maria Alice Fernandes, in Livro dos Milagres dos Santos Mártires, Edição e Estudo, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1988 (Tese de Mestrado). Veja-se, também, Tratado da vida e martírio dos 5 Mártires de Marrocos, ed. A. da Rocha Madahil, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928. 66 Frei João Álvares, "Trautado da vida e feitos do muito vertuoso Sor Ifante D. Fernando" in Obras, I, ed. Adelino de Almeida Calado, Coimbra, 1960. Sobre a perspectiva hagiográfica desta biografia do infante Fernando, consulte-se João Luís Fontes, Percursos e memória: do infante D. Fernando ao Infante Santo, Cascais, Colibri, 2000, pp. 167-198. 67 Ivo Castro (dir.), "Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense" in Revista Lusitana, 4, 1983, pp. 5 -15 e 5, 1985, pp. 43-46.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ________________________________________________________________________________________________________

versão para linguagem dos milagres de Santiago,68 autónoma de uma que,

paralelamente, foi realizada na Galiza.69

Já no século XVI, imprimiram-se em Português os Flos Sanctorum, extensas

colectâneas de vidas e milagres de santos cultuados ao longo do calendário litúrgico

cristão por todo o Ocidente,70 tendo como modelo a Legenda Áurea de Jacobo de

Voragine71 e sendo amplamente devedoras de anteriores compilações castelhanas.72

Para uma história da criança medieval em Portugal, revelou-se particularmente

proveitosa a análise das vidas que integram a secção dos santos apresentados como

específicos do Reino, quer porque seus naturais, quer devido a nele se encontrarem as

respectivas relíquias,73 visto todas essas hagiografias se basearem em anteriores

narrativas medievais que, em certos casos, só assim sobreviveram, conforme explicitou

o dominicano Frei Diogo do Rosário, o autor do Flos Sanctorum de 1567.74

De uma forma geral, todas as Vidas consultadas comportam registos tipificados

sobre a infância e a adolescência dos santos e sobre as relações por eles mantidas em

vida, ou post mortem com crianças beneficiadas pelos seus poderes taumatúrgicos.

Nesse sentido, apresentam-se, frequentemente, como narrativas que recorrem a

símbolos e tópicos literários bastante padronizados, sendo essa a razão que levou Mário

Martins a considerar as Vidas como fontes onde “a originalidade é bastante rara" nelas

predominando a "hagiografia mais ou menos apócrifa" que vive "repetindo lugares

comuns" e copiando-se "a si mesma numa espécie de autofagia literária.” 75 Contudo,

se, ao contrário da crónica, ou até da épica, as vidas não recordam os feitos humanos

separados de uma instância sagrada que lhes fornece o último e decisivo sentido,

configurando-se, portanto, como narrativas mais centradas nos factos divinos do que

nos terrenos, não deixam de se interessar pelo registo dos acontecimentos que tornavam

68 Bernardo de Brihuega, Vidas e Paixões dos Apóstolos: ms alcobacense 280 da BN de Lisboa, 1505, I, ed. Isabel Vilares Cepeda, Lisboa, I.N.I.C., 1982, pp. 254-337. 69 Miragres de Santiago, ed. José L. Pensado, Madrid, 1958. 70 Consulte-se Maria Clara de Almeida Lucas, Hagiografia Medieval Portuguesa, Lisboa, I.C.L.P. – - M.E., 1984, pp. 15-20. 71 Jacques de Voragine, La Légende Dorée, Paris, Garnier-Flammarion, 1967, 2 vols. 72 Cristina Sobral, "O Flos Sanctorum de 1513 e suas adições portuguesas" in Lusitania Sacra, Lisboa, 13-14, 2002, pp. 531-568. 73 Ho Flos Sanctorum em Linguage: os Santos Extravagantes, ed. Maria Clara de Almeida Lucas, Lisboa, INIC, 1988; Cristina Sobral, Adições Portuguesas no Flos Sanctorum de 1513 (Estudo e Edição Crítica), Lisboa, Faculdade de Letras de Lisboa, 2000 (Tese de Doutoramento). 74 Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, Lisboa, 1869/1870, 12 vols. 75 Mário Martins, "A Legenda dos Santos Mártires Veríssimo, Máxima e Júlia do cod. CV/I – 23 d., da Biblioteca de Évora", Revista Portuguesa de História, 6, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1964, p.25.

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FONTES ________________________________________________________________________________________________________

a biografia dos homens e mulheres nelas recordados socialmente reconhecida e

partilhável, sob pena de não poder funcionar como exemplo ou modelo a imitar. 76

Neste sentido, os textos hagiográficos revelam-se fontes históricas decisivas

para a reconstituição da sociedade que procuram formar, já que funcionam muitas vezes

como registos que visam documentar e validar o passado próximo ou longínquo que

narram, transmitem e testemunham.77 É esse o caso, nomeadamente, dos livros de

milagres, elaborados com o objectivo de creditar por escrito a veracidade dos

acontecimentos oralmente relatados pelos peregrinos que se deslocavam aos santuários

para invocar a cura dos seus filhos, cumprir promessas pela recuperação da saúde de

algumas das suas crianças, ou difundir um qualquer milagre acontecido longe do

santuário mas por intermédio de uma relíquia nele conservada, ou através da invocação

de um santo aí cultuado, tudo isso frequentemente comprovado por parentes, vizinhos

ou pelo pároco local. 78

Ora, tendo os livros de milagres começado a ser escritos desde o século XII,

com o objectivo de promover junto da Santa Sé, o reconhecimento oficial de novas

santidades e devoções, ou, posteriormente, com a intenção de desenvolver e até relançar

cultos que iam perdendo popularidade, caracterizam-se por apresentar um estilo

bastante próximo do utilizado na documentação jurídico-administrativa, carecendo, em

geral, da retórica e dos artifícios literários usados na redacção das Vidas. De facto,

durante a Baixa Idade Média, chegam a ser escritos por tabeliães locais que neles

utilizam o formulário próprio dos diplomas públicos, ao mesmo tempo que todos eles

revelam a progressiva preocupação de registar, com grande precisão, as efectivas

condições da ocorrência dos milagres, tanto no que diz respeito à sua tipologia, como no

referente aos respectivos espaços, tempos, protagonistas e testemunhas.79

Devidamente analisada e confrontada entre si, a informação relativa a um total

de 175 milagres medievais acontecidos a crianças e adolescentes, permitem então

estabelecer séries de dados extremamente preciosas para a abordagem e para o

76 André Vauchez, “Santidade” in Enciclopédia Einaudi, 12, Mythos/Logos, Sagrado/Profano, Lisboa, I.N.C.M., 1987, p. 287. 77 Maria de Lurdes Rosa, "A santidade no Portugal medieval: narrativas e trajectos de vida" in Lusitania Sacra, Lisboa, 13-14, 2002, pp. 369-450. 78 Sobre o poder taumatúrgico dos santos, consulte-se André Vauchez, La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Age, Roma, Escola Francesa de Roma, 1988. 79 Veja-se Cristina Oliveira Fernandes, "O Livro dos Milagres de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães" in Lusitania Sacra, Lisboa, 13-14, 2002, pp. 597-607. Consulte-se, também, Aires A. Nascimento, “Milagres Medievais”, Dicionário de Literatura Medieval Galega, org. e coordenação de Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, Lisboa, Ed. Caminho, 1993, pp. 459-461.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ________________________________________________________________________________________________________

desenvolvimento de temáticas relativas à saúde e aos quotidianos das crianças

medievais portuguesas, sobretudo quando os resultados podem ser comparados com os

já apurados nesse mesmo tipo de fontes para outros países da Cristandade medieval.80

Por fim, no tocante às fontes não escritas, mencione-se, à partida, que a

consideração e análise de informações relativas às imagens e aos vestígios e objectos

relacionados com a civilização material, só foi possível através da consulta e

interpretação dos resultados contidos em trabalhos já realizados ou em curso por

investigadores especializados. Relativamente às fontes arqueológicas foram, assim,

referenciados e contextualizados, quer diversos objectos relativos aos quotidianos

infantis e juvenis, apresentados em trabalhos monográficos recentemente concluídos,81

ou expostos em diversas exposições cujos catálogos permitiram o respectivo

conhecimento e consideração,82 quer materiais osteológicos pertencentes a crianças ou

adolescentes que se encontram recenseados e interpretados, na perspectiva da

paleobiologia e da paleoantropologia, em estudos e relatórios de apresentação científica

dos resultados obtidos por intervenções arqueológicas ultimamente realizadas em

alguns cemitérios medievais portugueses.83

Quanto às fontes iconográficas, a ausência de sínteses específicas sobre a

representação das crianças na arte medieval portuguesa, tornou necessária a consulta de

vários estudos gerais84 e de repertórios sobre a escultura e a iluminura românica e

80 Sobretudo no que diz respeito à França medieval: Didier Lett, L'enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe.-XIIIe. siècle),Paris, Aubier, 1997 e Pierre-André Sigal, L'homme et le Miracle dans la France médiévale (XIe.-XIIe. siècle), Paris, Lés Éditions du CERF, 1985. Numa perspectiva mais metodológica, veja-se Angela Muñoz Fernandez, “El Milagro como Testemonio Historico - Propuesta de una Metodologia para el Estudio de la Religiosidad Popular” in La Religiosidad Popular, 1, C. Álvarez Santaló, Maria Jesús Buxó e S. Rodriguez Becerra (coord.), Barcelona, 1989, pp. 164-185. 81 Mário Jorge Barroca, Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), Porto, Faculdade de Letras da Universidade, 1995 (Tese de Doutoramento); Rosa Varela Gomes, Silves – Uma cidade do Gharb Al-Andalus – Arqueologia e História (séculos VIII-XIII), Lisboa, Universidade Nova, 1999 (Tese de Doutoramento). 82 Paulo Pereira (dir.), Hospital Real de Todos os Santos: Séculos XV a XVII. Catálogo da Exposição, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1993; Cláudio Torres, Santiago Macias (dir.), Portugal islâmico. Os últimos sinais do Mediterrânico. Catálogo da Exposição, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 1998; Rosa Varela Gomes, Palácio Almoada da Alcáçova de Silves. Catálogo da Exposição, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 2001. 83 Veja-se a relação completa de todos estes trabalhos na Bibliografia. 84 Tendo em consideração, nomeadamente, as indicações fornecidas em: Maria Adelaide Miranda, José Custódio Vieira da Silva, História da Arte Portuguesa. Época medieval, Lisboa, Universidade Aberta, 1995; Francisco Pato de Macedo, "Manifestações artísticas" in Maria Helena da Cruz Coelho, Armando Luís Carvalho Homem (coord.), Portugal em Definição de Fronteiras (1096-1325). Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, Nova História de Portugal, III, Lisboa, Presença, 1996, pp. 692 - - 745;Carlos Alberto Ferreira de Almeida, História da Arte em Portugal. O Românico, Lisboa, Presença, 2001; Carlos Alberto Ferreira de Almeida, Mário Jorge Barroca, História da Arte em Portugal. O Gótico, Lisboa, Presença, 2002.

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FONTES ________________________________________________________________________________________________________

gótica,85 cingindo-se a heurística e a hermenêutica assim realizadas aos

materiais existentes nas colecções públicas portuguesas já inventariadas ou

catalogadas,86 tendo apenas sido aprofundadas áreas ou temáticas já minimamente

abordadas ou referenciadas pelos medievalistas dedicados à investigação iconológica.

Para o efeito, tanto se tiveram em conta imagens directamente produzidas em Portugal

como também as que circularam no Reino durante a Idade Média ou que, sendo

externas ao País, integraram uma mesma área linguístico-cultural, como sucede

relativamente às iluminuras contidas nos códices das Cantigas de Santa Maria de

Afonso X de Castela e Leão.87

Devidamente contextualizadas pela análise das fontes escritas, as fontes

iconográficas revelaram-se fundamentais para caracterizar a evolução da forma como a

sociedade medieval portuguesa valorizou a criança. Com efeito, sendo pouco frequentes

na arte românica, as imagens da infância e da adolescência só começaram a

desenvolver-se e a expandir-se nos tempos góticos, reproduzindo e indiciando, desse

modo, a importância que a Baixa Idade Média urbana e cortesã começou a dar à

especificidade social e cultural das crianças.

No seu conjunto, foi o cruzar das informações contidas em todas estas fontes

que nos permitiu desenvolver o que necessariamente será um começo da história

medieval das crianças e dos adolescentes portugueses, já que os distintos conhecimentos

e metodologias envolvidos na respectiva crítica histórica apontam para inevitáveis

aprofundamentos, rectificações e desenvolvimentos. Até lá, porém, atrevemo-nos a

seguir, um pouco temerariamente, uma norma enunciada por Maria Helena da Cruz

Coelho a propósito da abordagem da história social pelos medievalistas, a de que,

85 Maria Adelaide Miranda (dir.), A Iluminura em Portugal. Identidade e Influências. Catálogo da Exposição, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1999; Sérgio Guimarães de Andrade (dir.), O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal (1300-1500). Catálogo da Exposição, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 2000; Carla Varela Fernandes, Memórias de Pedra. Escultura Tumular Medieval da Sé de Lisboa, Lisboa, IPPAR, 2001; José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, Lisboa, IPPAR, 2003. 86 Sobre a iluminura: Isabel Vilares Cepeda, Teresa Duarte Ferreira (dir.), Inventário dos Códices Iluminados até 1500, I e II, Lisboa, Instituto da Biblioteca e do Livro, 1995 e 2001. Sobre a escultura, tiveram-se em conta os materiais disponibilizados no site oficial do Instituto Português dos Museus WWW.IPM.PT. 87 Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial, Siglo XIII; Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice B.R. 20 de la Biblioteca Nazionale Centrale de Florencia, Siglo XIII. A consideração das iluminuras das Cantigas como fonte para a história social da Hispânia de Duzentos, foi objecto de um notável ensaio de Gonzalo Menendez Pidal, La España del Siglo XIII Leida en Imagens, Madrid, Real Academia de la Historia, 1986.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ________________________________________________________________________________________________________

"quando carecemos de fontes directas, não devemos desprezar quaisquer ocasionais

referências”.88

88 “Os Homens ao longo do Tempo e do Espaço” in Maria Helena da Cruz Coelho, Armando Luís de Carvalho (coord.), Portugal em Definição de Fronteiras(1096-1325). Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, ed, cit., p. 168.

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1 DIFERENCIAR Le vocabulaire est le document le plus riche, mais aussi le plus difficile à exploiter, car les mots sont des enveloppes dont le contenu n’a pas le même sens dans les différents milieux sociaux, et se modifie d’autre part avec le temps.

Georges Duby1

A consciência da existência de várias fases, idades ou

estádios, que se sucedem ao longo da vida de cada indivíduo,

encontra-se bem presente no discurso letrado ocidental, desde a

Antiguidade clássica. Tal como então, também a Idade Média

considerou a infantia como a primeira das idades de um conjunto

que tendia a ser de seis, antecedendo a pueritia (dos seis aos

catorze anos), a adolescentia (dos catorze aos vinte), a juventus

(até aos quarenta), a senectus (até aos sessenta anos) e a senium

(depois dos sessenta). De facto, tendo como base um esquema

difundido através das Etimologias de Isidoro de Sevilha, sempre

foi esta a formulação mais seguida nos tempos medievais.2

No século XIII, por exemplo, esta divisão continuava a vigorar na nova e muito

consultada enciclopédia de Bartolomeu, o Inglês,3 e, dois séculos mais tarde, já no

âmbito da cultura letrada leiga e cortesã, ela também se encontra na base do

repartimento das idades enunciadas por D. Duarte no seu Leal Conselheiro, onde se

volta a repetir ser a

ifancia ataa VII annos, puericia ataa XIIII, ataa XXI adolacencia, mancebia

ataa cincoenta, velhice ataa LXX, senium ataa LXXX. E dali, ataa fim da vida,

decrepidus.4

1 Georges Duby, Hommes et structures au Moyen Âge, Paris, 1973, p. 104. 2 Isidoro de Sevilha, Etimologias, II, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1982, pp. 39-47. 3 Veja-se Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe. - XIIIe. siècle), Paris, Aubier, p. 26. 4 D. Duarte, Leal Conselheiro, ed. Maria Helena Lopes de Castro, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998, p. 16.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _____________________________________________________________________________________________

Contudo, embora existisse um consenso entre os letrados medievais sobre a

validade da consideração de seis etapas a percorrer na vida de qualquer indivíduo,

assistiu-se, sobretudo a partir do século XIII, à formulação de propostas que ampliavam,

reduziam ou complexificavam o esquema isidoriano das idades do homem, sem contudo

alterar os seus aspectos essenciais. Algumas delas resultaram da tentativa de impor um

ciclo de sete etapas, mais propício ao estabelecimento de relações simbólicas entre as

sucessivas fases etárias e os planetas, os dias da semana, as idades do mundo ou os dons

do Espírito Santo, acrescentando à fórmula das Etimologias uma nova idade terminal,

senies, a alcançar depois dos setenta anos, ou subdividindo a primeira, conforme

propôs, na década de sessenta do século XIII, Aldebrandino de Siena, para quem a

infantia se reduzia até ao tempo do aparecimento dos primeiros dentes, sendo depois

seguida, até aos sete anos, pela idade da dentum plantatura.5

Paralelamente, começaram também a surgir propostas de vários pedagogos

apontando para uma redução no cômputo das seis idades. Filipe de Novara, por

exemplo, baseando-se nas tradições pitagórica e aristotélica, sugeria, em 1260, a

consideração de quatro idades correspondentes às quatro estações do ano e aos quatro

elementos da natureza. Neste caso, à infância, que decorreria até aos vinte anos e que se

articularia com a Primavera e com a água, suceder-se-iam a juventude, até aos quarenta

e sob o signo do Verão e do fogo, a média idade, conotada com o Outono e a terra, e, a

partir dos sessenta anos, a velhice, a fase etária correspondente ao Inverno e ao ar. Mais

sintético e global, Gil de Roma sugeria, em 1285, a simples consideração de uma

juventude primaveril, seguida pela idade madura do Verão e finalizada pela velhice de

um Outono-Inverno.6

No seu conjunto, todas estas novas propostas acabavam por desvalorizar as

idades extremas, remetendo os inícios da sequência, princípio - progressão - equilíbrio -

- declínio, para uma fase etária em que ainda não se tinham adquirido as capacidades

vitais, e os seus finais para um tempo de decrepitude e de senilidade. Sendo assim, a

infância e a velhice surgiam como idades imperfeitas, sobretudo por contraste com a

fase que correspondia aos trinta anos, a idade em que Cristo começou a fazer milagres.

De resto, tanto os textos dos médicos como dos pedagogos medievais insistiam em

atribuir à infantia várias carências e debilidades que acentuavam, por sua vez, a ideia de

_______________________________________________________________________________________________ 28

5 Michel Pastoureau, “Les emblèmes de la jeunesse” in Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt (dir.), Histoire des Jeunes en Occident de L’Antiquité à l’Époque Moderne, Paris, Seuil, 1996, pp. 255-257. 6 Michel Pastoureau, ibidem.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

DIFERENCIAR _____________________________________________________________________________________________

uma imperfeição, aspecto que as Etimologias de Isidoro de Sevilha tinham contribuído

para evidenciar, dado registarem para a infantia a etimologia de in-fans, ou seja, quem

“não sabe ainda falar” ou “articular palavras”, porque, sem “ter ainda desenvolvido os

dentes”, lhe faltava “a faculdade da linguagem”.7

Assim, para os médicos, ao seguir a teoria dos humores, a criança era um ser

muito quente e muito húmido, explicando-se a fraqueza e a debilidade dos primeiros

anos de vida por um desequilíbrio com o frio e o seco exteriores que só seria corrigido

com o avanço dos anos. Para os pedagogos, por sua vez, a infantia caracterizava-se por

uma genérica falta de maturidade, expressa na incapacidade de elaborar um discurso

coerente antes dos cinco anos, mostrando-se, portanto, bastante cépticos sobre o início

de um processo pedagógico de aprendizagem antes dessa idade.8 De facto, mesmo para

alguns teólogos, a criança não deveria ser responsabilizada por actos praticados antes

dos cinco anos, só devendo ser confessada e admitida à comunhão depois dos seus cinco

sentidos corporais se encontrarem devidamente espiritualizados pelo conhecimento do

significado simbólico dos cinco elementos associados à eucaristia, ou seja, a carne e o

sangue de Cristo que se consubstanciavam no pão, no vinho e na água manipulados

durante a missa. 9

Baseando-se no conhecimento de todas estas formulações, Philippe Ariès

acabou por as generalizar. Se “a duração da infância era reduzida ao período de maior

fragilidade, em que a cria humana não se bastava a si própria” na Idade Média passar-

-se-ia “directamente de criança muito pequena a adulto jovem, sem passar pelas várias

etapas da juventude.” 10 Ora, tais conclusões revelam-se, hoje, demasiado radicais.

Com efeito, mesmo a nível das representações, assistiu-se a partir da Baixa

Idade Média a uma participada problematização das características e especificidades da

primeira das idades do homem, desde a questionação do momento exacto dos seus

começos, até à elaboração de complexas considerações normativas relativamente ao

respectivo enquadramento social. Ao mesmo tempo, aliás, que as fontes

documentais começam a permitir a revelação da existência de um vocabulário

___________________________________________________________________________________________________ 29

7 Isidoro de Sevilha, Etimologias, II, ed. cit., pp. 40-41. Para além de Isidoro de Sevilha, outros estudiosos da infância seguiram teorias semelhantes. Sobre este tema, veja-se Didier Lett, ob. cit., ed. cit., p. 28. 8 Didier Lett, ibidem. 9 Id., ibidem, p. 101. 10 Philippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Lisboa, Relógio d’Água, 1988, p. 10.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _____________________________________________________________________________________________

consciente e atento às realidades do crescimento infantil, distinguindo e considerando

diferentes níveis etários na infância e na puberdade.

Antes de mais, a criança começou a suscitar um alargado debate sobre o exacto

momento da sua entrada na vida. Para a maioria da população leiga, o início da

infância coincidia com a hora do parto, constituindo o grito da criança ao nascer a mais

forte manifestação da afirmação pública de um novo ser.11 No grupo dos letrados,

porém, recuava-se à altura em que o feto teria recebido a alma, variando, contudo, o

cômputo dos dias em que essa ocorrência se verificaria. Entre as seis e as sete semanas

para os que a situavam na fase em que o feto adquiria os respectivos membros sem

distinção de sexo e, para os seguidores da concepção aristotélica, aos quarenta dias para

o rapaz e aos noventa para a rapariga.12

Em 1234, o papa Gregório IX adoptou como posição oficial da Igreja a

segunda das teses, passando então os textos normativos eclesiásticos a considerar que a

criança não só começava a sua infância antes do nascimento, como sobre ela já

penderiam determinadas regras e disposições. Nas actas dos sínodos diocesanos, nos

penitenciais e nos livros de milagres portugueses, ou redigidos em língua lusa, era essa

a situação dos nascituros, referidos como fruytos, ou seja, os fetos que já se encontram

concebidos como crianças,13 contando-se, por exemplo, entre os milagres atribuídos a

Nuno Álvares Pereira, terem sido agraciadas parturientes, quer com a criança morta no

ventre quer com a criança atravessada com uma perna e um braço de fora ou ainda

com complicados partos.14

Entretanto, os canonistas e os legistas multiplicavam as referências feitas às

crianças na legislação produzida, passando estas a definir um grupo etário

crescentemente abrangido por normas e procedimentos jurídicos diferentes dos

aplicados aos rapazes e raparigas que, após a entrada na adolescentia, aos,

respectivamente, catorze e doze anos de idade, passavam a estar quase sempre

_______________________________________________________________________________________________ 30

11 Sobre o papel atribuído a este primeiro grito na resolução de conflitos jurídicos relacionados com a transmissão das heranças, bem como as diversas interpretações sobre as suas causas, consulte-se Didier Lett, ob. cit., ed. cit., pp. 21-24. 12 É só no século XVII, com a aceitação da descoberta do mecanismo da ovulação que a Igreja passa a considerar a simultaneidade da concepção e da animação. Sobre este tema e respectiva bibliografia, veja--se Didier Lett, ob. cit., ed. cit., pp. 20-24. 13 Veja-se, por exemplo, no Penitencial de Martin Perez as penas reservadas para os que procuravam que o fruyto nom seja conçebido: O Penitencial de Martim Pérez em Medievo-Português, ed. Mário Martins, Lisboa, 1957, p. 42. 14 Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, Lisboa, 1745, pp. 551-553.

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DIFERENCIAR _____________________________________________________________________________________________

enquadrados pelo regime reservado aos adultos. Neste sentido, as regras e as práticas

jurídicas acabam por reflectir e testemunhar a progressiva construção medieval de uma

concepção de criança valorizada e diferenciada mesmo que, atendendo à reduzida

esperança de vida desta época e às categorias mentais herdadas da Antiguidade, se

confinasse aos anos correspondentes à infantia e à pueritia, não coincidindo assim, seja

com a tendência moderna e contemporânea de nela também vir a incluir uma parte da

adolescentia, seja com a actual consideração de uma meta etária comum aos rapazes e

às raparigas para atingir a idade adulta. Abandonava-se, neste último caso, a concepção

aristotélica, muito presente na cultura letrada masculina da Idade Média, de que a

precocidade da mulher no que diz respeito à sua completa maturidade se deveria ao

facto de que as leis da natureza finalizariam mais depressa o que era menos nobre,

complexo ou subalterno. 15

Entre os juristas da Baixa Idade Média, foram, sobretudo, os canonistas quem

mais precocemente se ocupou com o direito da criança, produzindo uma abundante

legislação sobre as interdições e as protecções devidas à consideração da sua idade, a

qual foi depois, em grande parte, adoptada e ampliada pelos civilistas. No seu conjunto,

todo esse labor jurídico baseava-se na consideração de uma escala muito mais precisa

das etapas de crescimento e maturidade a percorrer pelas crianças até atingirem a

adolescentia, e, uma vez ultrapassadas as duas fases - uma semi-plena, terminada aos

dezoito anos, e outra plena - chegarem à juventus, a idade em que, cerca dos vinte e

cinco anos, entravam finalmente no mundo dos adultos e dos seus deveres e

responsabilidades relativamente à sociedade e à crença. De facto, antes da adolescentia,

tanto os canonistas como os teólogos começaram a defender a consideração de uma

responsabilização individual mais branda e desculpabilizante, propondo, em primeiro

lugar, que fosse progressivamente acentuada durante a pueritia, mais no decorrer de

uma sua segunda metade - dos dez e meio até aos doze para as raparigas e catorze para

os rapazes - do que numa primeira, iniciada aos sete anos, e, em segundo lugar, que na

considerada primeira infantia - do nascimento até aos três ou cinco anos - fosse

completamente ignorada, tendo em conta que o in-fans, mesmo que já falasse e pudesse

___________________________________________________________________________________________________ 31

15 Didier Lett, ob. cit., ed. cit., p. 25.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _____________________________________________________________________________________________

confessar as suas faltas, deveria ser considerado inocente e alheio à intenção de pecar,

pelo menos enquanto não atingisse a segunda fase da sua primeira idade. 16

A preocupação evidenciada pela legislação canónica em considerar a

especificidade jurídica das crianças nem sempre teve como objectivo a respectiva

protecção. De facto, uma parte significativa das normas produzidas nesse contexto

destinou-se a proteger os adultos das consequências de uma considerada falta de

responsabilidade social e religiosa por parte das crianças, a qual seria tanto mais grave

quanto mais jovem elas fossem. Nesse sentido, os canonistas preocuparam-se,

sobretudo, em enunciar as incapacidades jurídicas que deveriam atingir os não adultos,

com vista à preservação do bom funcionamento das instituições eclesiásticas.

Por um lado, preconizaram a exclusão dos pré-adolescentes de todas as

eleições destinadas a escolher responsáveis pelos cargos e funções diocesanas, devendo-

-se a Bonifácio VIII (1294-1303) a norma canónica que passou a fixar os catorze anos

como idade mínima requerida para esse efeito, a qual, de resto, foi depois ampliada por

Clemente V (1305-1314), quando exigiu a prévia condição de sub-diácono aos

participantes em tais sufrágios, ou seja, nunca antes dos dezoito anos. Por outro lado, os

canonistas também começaram a expressar a opinião da necessidade de se restringir às

crianças o usufruto directo e imediato de direitos familiares de padroado e de eleição do

local de sepultura, visto ambos implicarem um problemático acesso a bens e

rendimentos eclesiásticos. Nesse sentido, duas decretais de Bonifácio VIII

determinaram que as crianças menores de sete anos apenas poderiam reivindicar a

satisfação dos direitos de padroado herdados dos pais por intermédio de uma tutoria

juridicamente reconhecida, o mesmo sendo necessário no caso de pretenderem contestar

a escolha familiar prévia do seu futuro lugar de sepultura e, nesse caso, apropriar-se dos

bens e rendimentos que já tinham sido entregues à instituição religiosa antes designada

para esse efeito.17

Aliás, a salvaguarda do património eclesiástico relativamente a actos ou

decisões tomadas por crianças consideradas muito influenciáveis e sem suficiente

discernimento jurídico também foi objecto das decisões canónicas que impuseram

a entrada na adolescentia como condição necessária ao exercício da capacidade de

_______________________________________________________________________________________________ 32

16 Sobre a formulação das diversas fases das idades da vida no direito canónico, consulte-se René Metz, "L’enfant dans le droit canonique médiéval” in La femme et l’enfant dans le droit canonique médiéval, Londres, Variorum Reprints, 1985, pp. 11-23. 17 René Metz, “L’acession des mineurs à la cléricature et aux bénéfices eclésiastiques dans le droit canonique médiéval” in La femme et l’ enfant dans le droit canonique médiéval, ed. cit., pp. 553-567.

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depor ou citar em justiça. No primeiro caso, só aos catorze ou aos doze anos, conforme

se tratasse de um rapaz ou de uma rapariga, é que os jovens podiam ser ouvidos em

causas cíveis, enquanto para as causas criminais se passou a exigir a idade da passagem

da adolescentia para a juventus como limite mínimo para testemunharem em juízo.

Reservava-se, contudo, a excepção no caso de não haver qualquer outra possibilidade de

prova, de poderem ser ouvidos ainda durante a adolescentia, não sendo porém o seu

testemunho prestado sob juramento e funcionando apenas como indício a ter em conta

para a resolução da sentença a dar ao crime em julgamento, conforme, aliás, refere, no

século XIV, o bispo de Silves, Frei Álvaro Pais, no seu Estado e Pranto da Igreja.18

Em relação ao segundo caso, acabou por prevalecer o princípio da negação aos

infantes de qualquer direito de acusação em justiça, visto, nas palavras do canonista

atrás referido, não saberem “o que vêem”.19 De resto, nem durante a adolescentia

deveriam as crianças ser consideradas capazes de promover uma acção judicial que

visasse matérias temporais, havendo que atingir a juventus para poderem desencadear

um litígio que envolvesse a denúncia de delitos situáveis fora da esfera dos bens ou

benefícios espirituais, já que só relativamente a esses - entre os quais se incluíam os

casos de casamento, entrada na vida religiosa ou direito de padroado - lhes era

reconhecido o direito de citar em justiça.20

Porém, embora os canonistas da Baixa Idade Média se tenham preocupado com

o desenvolvimento de uma legislação orientada para a discriminação negativa dos

direitos das crianças, não deixaram de agir em ordem à sua protecção jurídica, tal como

sucede em relação aos esponsórios, à sua entrada na vida religiosa e à questão da

respectiva responsabilização criminal.21 No que se refere à primeira matéria, foi com

Gregório IX (1227-1241) que se consagrou o princípio da validação jurídica dos

esponsórios das crianças prometidas em casamento pelos pais, muitas vezes antes dos

sete anos de idade, passando a fazer depender a sua futura transformação num

matrimónio do consentimento dos noivos quando chegados à idade da puberdade,

salvo no caso da existência de uma união carnal prévia e precoce.

___________________________________________________________________________________________________ 33

18 Álvaro Pais, Estado e Pranto da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae), V, ed. Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, J.N.I.C.T., 1995, pp. 362-363. 19 Id., ibidem, pp. 436-437. 20 René Metz, “L’enfant dans le droit canonique médiéval” in La femme et l’enfant dans le droit canonique médiéval, ed. cit., pp. 11-23. 21 René Metz, “L’entrée des mineurs dans la vie religieuse et l´autorité des parents d’aprés le droit classique. La réaction contre l’ancien rigorisme en faveur de la liberté des enfants” in La femme et l’enfant dans le droit canonique médiéval, ed. cit., pp. 553-567.

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Uma tal medida, que retirava aos progenitores ou aos familiares a exclusiva

decisão do futuro conjugal dos respectivos filhos ou parentes, insere-se no conjunto das

medidas que os eclesiásticos desenvolveram, desde o século XII, para sacralizar o

matrimónio. De facto, é neste contexto que os contratos de casamento deixaram de ser

apenas considerados como meros actos de gestão familiar de alianças de parentesco

para passarem também a significar decisões religiosas que deviam envolver a

concordância e a responsabilização individual dos cristãos que as protagonizavam, não

sendo as mesmas concebíveis antes de eles atingirem a puberdade, porque só então

poderiam validar ou rejeitar conscenciosamente os compromissos de conjugalidade que

haviam sido feitos em sua intenção.22

O mesmo objectivo de harmonização dos interesses familiares acerca do futuro

das crianças em ordem a assegurar o seu posterior consentimento pessoal acabou

também por se concretizar nas disposições canónicas sobre a incapacidade dos menores

para decidirem uma sua entrada na vida religiosa definitiva e irrevogável. Esta passou a

depender, quando formulada antes de atingida a puberdade, quer de uma mais

conscenciosa renovação da sua opção mal ultrapassassem os catorze anos, quer de uma

autorização paterna ou, na sua falta, tutorial, tal como viriam a precisar, no segundo

quartel do século XIII, as Decretais de Gregório IX. Com efeito, é por estas que os pais

ou tutores das crianças impúberes adquirem o direito explícito de reivindicar a anulação

de uma decisão infantil sobre a entrada na vida religiosa durante o período de um ano,

prorrogável em diversas circunstâncias.23

Por fim, no que diz respeito à responsabilidade jurídica das crianças, também

os canonistas produziram legislação que consagrou e salvaguardou a respectiva

especificidade etária. Por um lado, fixaram nos sete anos a idade a partir da qual se

deviam julgar e punir os delitos infantis, definindo assim o princípio da imunidade

judicial das crianças. Por outro, consideraram a existência de várias atenuantes a serem

tidas em conta na redução das penas a aplicar aos jovens com menos de catorze

anos, fixando nessa idade o patamar etário a partir do qual se atingia uma plena

responsabilidade criminal. Para o canonista Graciano, era só então que se podia atribuir

às crianças a aquisição de uma inequívoca compreensão das consequências produzidas

_______________________________________________________________________________________________ 34

22 Sobre o processo histórico que conduziu à sacramentalização do casamento, veja-se Georges Duby, Le chevalier, la femme et le prêtre. Le mariage dans la France féodale, Paris, Hachette, 1981. 23 René Metz, “L’entrée des mineurs dans la vie religieuse et l´autorité des parents d’après le droit classique. La réaction contre l’ancien rigorisme en faveur de la liberté des enfants”, ob. cit., ed. cit, pp. 553-567.

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pelos seus actos, já que a sua anterior actividade delitual seria equiparável aos

irracionais comportamentos dos dementes, sendo, portanto, atribuíveis a atitudes

desencadeadas pela desordenada actuação dos sentidos.24

No seu conjunto, toda esta legislação canónica, em grande parte transposta e

adaptada pelas leis civis europeias da Baixa Idade Média,25 testemunha,

independentemente do sentido positivo ou negativo com que nela é encarada a

especificidade infantil ou adolescente, a existência medieval de uma representação

social e mental da criança, bem desenvolvida e consolidada. Esta, de resto, também se

encontra visível, desde os começos do século XII, em várias narrativas biográficas onde

os religiosos letrados concedem um lugar mais ou menos destacado à evocação dos seus

tempos de infantia, pueritia e adolescentia. Tal evocação acontece pioneiramente nas

memórias que o abade beneditino francês Gilberto de Nogent redigiu entre 1114 e 1117,

quando tinha cerca de sessenta anos de idade.26

Por outro lado, tanto todos estes textos, como os próprios diplomas produzidos

a partir do século XII, evidenciam a utilização de um vocabulário cada vez mais

complexo e diversificado de referência às crianças e aos jovens.27 Com efeito, segundo

Georges Duby, foi durante o século XII que se começou a tornar frequente distinguir o

adulescentulus, o adulescens inberbis ou o puer - o termo aplicável aos rapazes

fidalgos que ainda não haviam terminado a sua aprendizagem guerreira - do juvenis - o

vocábulo reservado aos cavaleiros experientes que permaneciam solteiros,28 tendo essa

primeira diferenciação linguística evoluído de forma a já compreender, durante a

centúria de Quatrocentos, um muito mais numeroso campo de variantes lexicais, como

___________________________________________________________________________________________________ 35

24 René Metz, “L’enfant dans le droit canonique médiéval” in La femme et l’enfant dans le droit canonique médiéval, ed. cit., pp. 69-96. 25 Sobre a transposição do direito canónico na legislação régia europeia e portuguesa, consultem-se, respectivamente, António M. Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica europeia, Lisboa, Europa-América, 1998 e Marcello Caetano, História do Direito Português (1140-1495), Lisboa, Verbo, 1994, pp. 334-343. 26 Yves Ferroul, “Devenir adulte. L’exemple de Guibert de Nogent” in Éducation, Apprentissages, Initiations au Moyen Age, Actes du Premier Colloque International de Montpellier, Université Paul Valéry, 1991, pp. 155-164. 27 Vejam-se, sobre a imprecisão do vocabulário carolíngeo relativo à criança e sobre a forma como ele evoluiu ao longo dos séculos XII e XIII, respectivamente, Michel Rubellin, “Entrée dans la vie, entrée dans la chrétienté, entrée dans la société: autour du baptême à l’époque carolingienne” in Les entrées dans la vie- Initiations et apprentissages, XII congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, Nancy, 1981, pp. 34-35 e Pierre-André Sigal, “Le vocabulaire de l’enfance et de l’adolescence dans les recueils de miracles latins des XIe. et XIIe. siècles” in L’enfant au Moyen Âge, (Littérature et Civilization), Senefience, 9, Université de Provence, 1980, pp. 141-160. 28 Georges Duby, “Au XIIe siècle: les “jeunes” dans la société aristocratique” in Annales, E.S.C., 1964, pp. 826-840. Consulte-se também, do mesmo autor, Guilherme, o Marechal, O Melhor Cavaleiro do Mundo, Lisboa, Gradiva, 1994, pp. 41-43.

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sejam, impubes, pubes, puella, puer jam juventutis altatem contingens, virguncula,

virgo ou juvenculus.29

Em Portugal, os livros de milagres dos séculos XIV e XV permitem verificar

uma idêntica evolução lexical.30 De facto, se considerarmos os termos neles utilizados

para referir as crianças e os adolescentes de ambos os sexos, obtemos um total de

dezanove vocábulos e expressões vocabulares diferentes. O sentido preciso de um tal

léxico não é, no entanto, fácil de determinar, já que o seu possível e esclarecedor

relacionamento com informações respeitantes à idade exacta dos jovens a que se refere

só muito raramente pode ser feito, apenas se revelando viável para cerca de 25% das

crianças e adolescentes registados, conforme é visível no Quadro I - O Léxico sobre a

Infância e a Adolescência nos Livros de Milagres Medievais Portugueses.

Antes de mais, porque a menção precisa à respectiva idade não se revelava

essencial para os redactores dos livros de milagres. Com efeito, sendo o seu objectivo

produzir memórias destinadas a difundir e propagandear os poderes taumatúrgicos dos

santos cujas relíquias e cultos pretendiam promover entre as comunidades de cristãos,

bastava-lhes apontar os jovens de muito pouca, tenra ou já de alguma idade como

exemplos de agraciados, destinados a captar a devoção, promessas e peregrinações da

generalidade dos pais angustiados com a saúde dos filhos.

Por outro lado, porque a menção exacta da idade dos jovens miraculados,

embora pudesse funcionar como reforço da credibilidade de uma efectiva e concreta

ocorrência das graças registadas, não era fácil de obter numa sociedade marcada por

uma global indiferença à necessidade de um tempo mensurável e progressivo, bem

distinto do tempo impreciso, cíclico e repetitivo que modelava as vivências e as práticas

de uma civilização ainda estruturalmente rural.31 Na verdade, perante tais características

mentais, os letrados responsáveis pela feitura dos livros de milagres apenas se podiam

socorrer das memórias familiares, sobretudo femininas, sendo elas tanto mais precisas

quanto mais pequenos fossem os filhos.32 No fundo, sem o contributo das mães a quem

as Ordenações Del-Rei Dom Duarte reconheciam especial aptidão para testemunhar a

_______________________________________________________________________________________________ 36

29 Pierre Charbonnier, “ L’entrée dans la vie au XVe. siècle, d’après les lettres de rémission” in Les entrées dans la vie - Initiations et apprentissages, XII congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, Nancy, 1981, pp. 72-73. 30 Sobre os livros de milagres medievais portugueses consultados, veja-se o capítulo FONTES. 31 Veja-se Jacques Le Goff, A Civilização do Ocidente Medieval, I, Lisboa, Estampa, 1983, pp. 203-205. Consulte-se também Luís Krus, “A vivência medieval do tempo” in Passado, Memória e Poder na sociedade medieval portuguesa. Estudos., Redondo, Patrimonia, 1994, pp. 11-24. 32 Cf. Elisabeth van Honts, Memory and Gender in Medieval Europe, Londres, MacMillan, 1999.

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naÇença e a hjdade de menjnos,33 dificilmente se conheceriam os anos exactos de

cerca de 25% das crianças e adolescentes registados nos livros de milagres medievais

portugueses.

No seu conjunto, os vocábulos mais utilizados para designar a totalidade da

população infantil e juvenil presente entre os miraculados são filho/filha (44%) e

moço/moça (28%), ambos os binómios correspondendo a cerca de 3/4 do léxico

expresso. À primeira vista, tais valores evidenciariam, desde logo, o predomínio de uma

concepção familiar da infância e da adolescência, dada a menor representatividade da

terminologia referenciadora das crianças enquanto seres autónomos e dissociáveis do

grupo do parentesco original, paralelamente ao que acontece com a utilização do

vocábulo neto para as mencionar.

Contudo, a consideração das informações disponíveis sobre as idades exactas

das crianças a que se aplica um tal vocabulário permite matizar essa primeira leitura, já

que esclarece sobre a existência de um léxico tendencialmente utilizado para referir

distintos níveis etários. De facto, enquanto o par filho/filha, associado a menino/menina,

se apresenta maioritariamente relacionado com a forma de designar a criança de idade

inferior a oito anos, e, entre estas, à semelhança do que ocorre com os vocábulos recém-

-nascido e menino de peito, às que não ultrapassam os dois anos, o par moço/moça

surge, sobretudo, aplicado à referenciação de jovens de oito ou mais anos, tal como

ocorre com rapaz/rapariga, reservando-se o registo de mocinho para o nível etário

inferior.

___________________________________________________________________________________________________ 37

33 Ordenações del-Rei D. Duarte, ed. M. Albuquerque e E. Borges Nunes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 149.

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QUADRO I - O LÉXICO SOBRE A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA NOS LIVROS

DE MILAGRES MEDIEVAIS PORTUGUESES

Vocábulos 34 Idade Indefinida 0-2 3-8 9-12 + 13 Total

Recém-nascido 1 1

Menino de peito 1 1

Menino 11 7 1 1 20

Menina 2 3 2 7

Criancinha 1 1

Filho 50 10 7 67

Filha 22 3 1 1 27

Neto 2 2

Criança 4 1 1 6

Mocinho 2 2 4

Moço pequeno 4 4

Moça pequena 1 1

Moço 36 1 1 2 1 41

Moça 17 1 2 20

Rapazinho 2 2

Rapaz 2 2 4

Rapariga 1 1 2

Mancebo 4 4

Jovem 2 2

TOTAL 163 28 15 4 6 216 35

PERCENTAGEM 75% 13% 7% 2% 3% 100%

34 A grafia dos vocábulos foi por nós actualizada.

_______________________________________________________________________________________________ 38

35 O número total de termos utilizados é maior do que o total de miraculados porque no mesmo relato do milagre se referem, por vezes, vários vocábulos relativos à mesma criança.

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Sendo assim, apesar da presença de algumas excepções, talvez mais devidas à

intervenção escrita dos letrados responsáveis pela elaboração dos livros de milagres36

do que a verdadeiras ambiguidades linguísticas, podemos concluir que o léxico

respeitante às crianças e aos adolescentes reflecte a consideração social da existência de

pelo menos quatro fases no desenvolvimento infantil e juvenil. Ou seja, a que vai do

nascimento até aos dois anos (recém-nascido; menino de peito; menino/menina;

filho/filha), seguida pela que se prolonga até aos oito (mocinho; menino/menina;

filho/filha), continuada primeiro pela que tem o seu termo pelos doze (moço; rapaz) e

depois pela que então se inicia (moço/moça; rapaz/rapariga) correspondentes,

respectivamente, às primeira e segunda infantiae, à pueritia e à adolescentia.

Globalmente, as idades da criança evidenciadas pelo vocabulário presente nos

livros de milagres medievais portugueses dos séculos XIV e XV, não diferem muito das

que Le Roy Ladurie verificou encontrarem-se difundidas entre os habitantes da aldeia

pirenaica de Montaillou durante a primeira metade de Trezentos, baseando-se, para o

efeito, no léxico infantil e juvenil por eles utilizado nas informações prestadas aos

dominicanos que aí, então, desenvolveram um processo de inquisição contra a heresia

cátara. Assim, tendo em conta o vocabulário das declarações transcritas, os moradores

dessa aldeia distinguiam, entre os menores de doze anos, três níveis etários,

maioritariamente expressos por distintos vocábulos: infans/filius/filia para designar as

crianças até aos dois anos de idade; puer em relação às que se situavam entre os dois e

os doze e adulesceus/juvenis, relativamente às maiores de doze.37

Ao contrário do que foi defendido por Philippe Ariès, 38 a civilização

medieval do ocidente, na qual se inclui a sociedade portuguesa, não só atribuiu à criança

uma decisiva importância no conjunto das idades da vida, como a considerou

susceptível de ser lexicalmente diferenciada e objecto de teorização e normalização

jurídica, de forma a adequar o conceito às realidades e vivências sociais que, desde o

século XII, tiveram nos jovens um decisivo factor de transformação e inovação.

___________________________________________________________________________________________________ 39

36 Vidé nota 35. 37 Emanuel Le Roy Ladurie, Montaillou. Cátaros e católicos numa aldeia occitana, 1294-1324, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 282. 38 Na opinião deste autor, uma civilização que não possui uma palavra para definir um conceito não pode verdadeiramente conhecer esse conceito (neste caso o da infância) : Philippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, ed. cit., p.182.

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2 NASCER

Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra

Génesis1

Na concepção medieval do mundo e da sociedade, a

maternidade era tão importante para o quotidiano feminino

como o casamento ou as origens familiares. Dar à luz e criar

os filhos era a “profissão” das mulheres casadas. Para os

letrados da época, esta relação era tão óbvia e evidente que,

por exemplo, S.Tomás de Aquino, na centúria de Duzentos,

atribuía o aparecimento da mulher à necessidade de assegurar

a descendência masculina:

Era necessário que a mulher entrasse na Criação,

como diz a Escritura, como ajudante do homem; e não

como ajudante para quaisquer outras obras da criação, como

alguns afirmam, pois o homem encontra para as restantes

obras melhor ajuda noutro homem do que na mulher, mas sim

como ajudante na obra da procriação.2

1 – A MATERNIDADE SAGRADA

O século XII revalorizou o problema da procriação e do nascimento com a

consolidação do culto mariano. Embora de cariz popular, só então foi devidamente

orquestrado e institucionalizado pela Igreja devido à influência das ordens religiosas,

tanto monásticas, sobretudo a cisterciense, como mendicantes. De facto, enquanto

responsáveis pela introdução de uma nova mentalidade religiosa orientada para a

pureza das origens evangélicas, foram elas as grandes promotoras do culto à Virgem,

quer ao nível das práticas devocionais quer no que respeita à sua escolha para

patrona de um muito numeroso grupo de mosteiros e conventos. Paralelamente, no 1 Génesis: 9.1 in Antigo Testamento, Bíblia Sagrada, em Português, ed. e trad. de João Ferreira de Almeida, Lisboa, Soc. Bíblicas Unidas, 1968. 2 Citado por Claudia Opitz, "O quotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500)" in Georges Duby e Michelle Perrot (org.), História das Mulheres, 2, Porto, Afrontamento, 1993, p. 378.

NASCER __________________________________________________________________________________________

contexto da restauração ou criação de novas dioceses, também a maior parte das

catedrais foi dedicada à Virgem Maria, cujo culto encontrou nas Cantigas de Santa

Maria de Afonso X, o Sábio, a máxima expressão da sua dimensão literária.

Em Portugal, essa devoção remonta à centúria anterior. De facto, tanto os

condes portucalenses como o rei Afonso Henriques concederam especiais privilégios

à catedral de Braga, em honra de Santa Maria, a rainha do céu e do novo reino

nascente. Depois, nas centúrias de Duzentos e Trezentos, à medida que progredia e

se consolidava a Reconquista, muitos dos templos então erguidos, foram consagrados

a Santa Maria, a protectora dos que defendiam a verdadeira fé. De facto, nos finais

do século XV, existiam em Portugal mais de mil templos dedicados a Maria, fossem

igrejas, capelas ou ermidas, todas as sés catedrais e um grande número de mosteiros.3

Ao mesmo tempo, multiplicaram-se e diversificaram-se as representações de

Maria na sua função de mãe. Ao longo do século XIV, mais de metade das imagens

conhecidas e produzidas nos ateliers portugueses corresponde precisamente à Virgem

nas suas três iconografias góticas mais típicas: a Virgem da Expectação, ou Senhora

do Ó, a Virgem em pé segurando o Menino - normalmente no braço esquerdo - ou

sentada no trono com o Menino sobre o joelho esquerdo, brincando com Ele ou

amamentando-O, o que daria origem à série das chamadas Virgens de Ternura.4 O

Cristo-criança tornou-se, assim, uma referência constante e os progressos do culto

mariano trouxeram a proliferação de imagens em que a Virgem se associa ao Deus

menino, contribuindo para os avanços de uma nova consciência social da gravidez e

para a emergência de um diferente olhar sobre a mulher e a criança.

Tendo em conta o corpus da escultura medieval actualmente conservado

no Museu Nacional de Arte Antiga,5 torna-se bem nítida a forma como progrediu a

vontade de conceder à Virgem uma maior visibilidade e representatividade. Por um

lado, nota-se a tendência para conferir um relevo cada vez maior às imagens

maternais. Por outro, vai-se acentuando o abandono de uma representação

majestática da Virgem entronizada com o Menino e começa-se a evidenciar a

______________________________________________________________________________________________ 42

3 Cf. A.H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1974, p. 161. 4 Para uma geografia e caracterização das várias imagens marianas góticas, veja-se Mário Barroca, "Escultura Gótica" in Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Barroca, História da Arte em Portugal . O Gótico, Lisboa, Ed. Presença, 2002, pp. 157-179. 5 Vidé Quadro II. Identificação e quantificação feitas através da consulta do ficheiro de escultura do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.

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procura de novas soluções temáticas e formais destinadas a acentuar a maternidade

de Nossa Senhora.

As chamadas Virgens da Expectação constituem um dos aspectos mais

visíveis destas mudanças, já que contribuem para associar Nossa Senhora não só à

maternidade como à própria gravidez, permitindo assim figurar sob a imagem da

Virgem as mulheres grávidas que, como ela, podem e devem ser socialmente

respeitadas e veneradas. De resto, também as chamadas Virgens do Leite contribuem

para detectar os progressos da valorização da maternidade ao conferirem especial

relevo à amamentação materna,6 enquanto, por outro lado, as imagens das Santas

Mães, tendo como tema a genealogia maternal de Cristo, reflectem a vontade de

prestigiar o contributo fornecido pela mulher à reprodução familiar, sendo de

assinalar como se começam a afirmar a partir do século XIV.

Centradas na tripla representação da avó e da mãe do Cristo-criança, as

imagens das Santas Mães ilustram o tema da divindade humana, acentuando-se,

portanto, a crescente importância ao dogma da Encarnação na espiritualidade da

Baixa Idade Média. Ora, do ponto de vista iconográfico, a solução formal mais

divulgada foi a de centrar a representação do tema numa imagem sedente de Santa

Ana sobre a qual se faz figurar a Virgem, que, por sua vez, segura o menino nos

braços ou o aconchega ao colo, acentuando-se, portanto o protagonismo de Santa

Ana, como intercessora junto da Virgem para a obtenção do perdão dos pecados, ou

como intermediária sagrada para uma boa morte, pois, segundo a tradição dos

evangelhos apócrifos, havia obtido do neto Jesus Cristo assistência espiritual no

momento da sua morte.7 Sendo assim, a progressiva afirmação do culto a Santa Ana

acaba por reflectir o crescente papel reservado à maternidade da Virgem nas

devoções marianas da Baixa Idade Média.

__________________________________________________________________________________________________

43

6 Vidé no capítulo CRESCER os cuidados a ter com a escolha das amas, caso a mãe estivesse impossibilitada de amamentar. 7 Cf. Sérgio Guimarães de Andrade (dir.), O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal [1300-1500]. Catálogo da Exposição, Lisboa, Ministério da Cultura, Instituto Português dos Museus, Museu Nacional de Arte Antiga, 2000, p. 256.

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NASCER __________________________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________________________ 44

Figura 1 – Santas Mães (Século XIV-XV) Santa Ana, num plano intermédio dacomposição, apresenta a Virgem, sentada noseu regaço, a qual, inclinando-se, concentraafectuosamente o seu olhar no Menino queamamenta.

Figura 2 – Santas Mães (Século XV) Santa Ana acolhe no seu regaço, quer a figura daVirgem, em perfil, quer a do Menino que, emposição frontal, exibe um orbe na mão direita. AVirgem segura na sua mão esquerda uma rosa,lembrando uma das invocações marianas bastantedifundidas no século XV, a da Virgem da Rosa.

No seu conjunto, a estatuária mariana medieval conservada no Museu

Nacional de Arte Antiga, atesta, eloquentemente, o progressivo relevo fornecido às

representações sagradas da maternidade que, por sua vez, traduzem a sua crescente

valorização social. Contudo, embora o seu número progrida de século para século, o

Quadro II revela um constante predomínio das imagens de tamanho médio e a

exponencial representatividade das de mais reduzidas dimensões.

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QUADRO II

A VIRGEM-MÃE NA ESTATUÁRIA MEDIEVAL DO MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA.

DIMENSÕES E TIPOLOGIAS

__________________________________________________________________________________________________

45

Século Até 50 cm Entre 50 e 90 cm Mais de 90 cm Totais

XIII

. Virgem com o

Menino - 1

TOTAL - 1

. Virgem com

o Menino - 9

TOTAL - 9

_____________

10

XIV

. Virgem com o

Menino - 4

TOTAL - 4

. Virgem com o

Menino - 25

. Virgem do Leite - 1

. Virgem da

Expectação - 1

. Santas Mães - 2

TOTAL - 29

.Virgem com o

Menino - 10

.Virgem do Leite - 1

. Virgem da

Expectação - 3

. Santas Mães - 1

TOTAL - 15

48

XV

. Virgem com o

Menino - 15

. Virgem do Leite - 4

. Virgem do Rosário - 1

. Virgem em Glória - 1

. Virgem - 1

. Santas Mães - 2

TOTAL - 24

. Virgem com o

Menino - 73

. Virgem do Leite - 17

. Virgem do Rosário - 2

. Santas Mães - 8

TOTAL - 100

. Virgem com o

Menino - 11

.Virgem do Leite - 3

. Virgem do Rosário - 1

TOTAL - 15

139 197 TOTAIS 29 138 30

Apesar de muito pouco se saber sobre a proveniência de quase todas as

imagens deste espólio, pensamos poder detectar-se um reflexo da intensificação

social do culto mariano, visto as estátuas de menores dimensões, sendo de mais baixo

custo, tanto poderem corresponder a objectos devocionais oriundos de meios rurais

abastados ou de comunidades urbanas de reduzidas posses, como a imagens

devocionais privadas, provenientes de oratórios ou capelas leigas. No século XIV, a

imagem era uma referência obrigatória em todo lugar de devoção; ver, passou a ser

fundamental para a oração. O rezar "a quente" perante uma imagem supostamente

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capaz de comover e suscitar sentimentos veio substituir o rezar "a frio", longe das

imagens, como até aí acontecia.8 A nova importância conferida à escultura

devocional, se surge no contexto de uma mutação profunda na forma de se lidar com

o sagrado, testemunha, também, a crescente atenção prestada à maternidade e aos

seus valores no Portugal da Baixa Idade Média.

Contudo, tal não significa que os mistérios da “produção feminina”

deixassem de representar um domínio quase sempre reservado às mulheres, sendo

pouco abordados pela cultura letrada medieval predominantemente masculina. De

facto, tanto a gravidez, como o parto ou os cuidados com a criança pequena

continuavam a ser assuntos e funções da esfera do feminino, a que os homens

tinham pouco acesso. O conhecimento do que se passava no quarto da parturiente

permanecia vedado por um véu de pudor que nem o marido nem o próprio médico

facilmente ultrapassavam.

Sendo assim, as informações letradas medievais sobre a transmissão da vida

são muito escassas, encontrando-se quase todas condensadas em três tipos de fontes:

os tratados médicos e científicos, os manuais de educação moral destinados às

mulheres9 e as hagiografias e livros de milagres. Nos dois primeiros casos,

predominam informações técnicas e normativas sobre a gravidez, o parto e os

cuidados a ter com o recém-nascido, não sendo possível saber até que ponto

testemunham práticas socialmente seguidas. De facto, só as hagiografias e os livros

de milagres nos permitem, ainda que muito indirectamente, vislumbrar um pouco

dessa realidade.

2 – A ESTERILIDADE E A CONCEPÇÃO

De uma forma geral, o cristianismo exalta a gravidez e valoriza o feto. Uma

família fértil é considerada uma família cristã que segue os preceitos evangélicos.

Pelo contrário, a esterilidade surge como marca da vergonha, do pecado e da

inutilidade. Sobre Santa Ana e S. Joaquim, os pais da Virgem Maria, noticiava-se,

por exemplo, como sofriam muita pena e vergonha por nõ teer geraçõ, pensando ela

______________________________________________________________________________________________

8 Cf. Mário Barroca, "Escultura Gótica", ob. cit., ed. cit., p. 158. 9 Consulte-se Pierre André Sigal, « La grossesse, l’accouchement et l’attitude envers l’enfant mort--né à la fin du Moyen Âge d’après les récits de miracles » in Santé, Médicine et Assistance au Moyen Âge, Actes du 110e Congrès National des Sociétés, Paris, C.T.H.S., 1987, Tomo I, p. 23.

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NASCER __________________________________________________________________________________________

que por seus pecados Deos a avia fecta maninha, ao mesmo tempo que se lembrava

ter o marido sido expulso do Templo por ser maninho, e, assim, considerado um

homē mais sem proveito e inutile que todos os homēs. 10

De facto, a procriação tendia a funcionar enquanto elemento aferidor da

dignidade e da estabilidade do vínculo conjugal. Casamento e fecundidade surgiam,

nesse sentido, como obrigações morais de todos os cônjuges, sobretudo para a

mulher, já que gerar filhos representava a possibilidade de ser resgatada do pecado

de Eva e ver aberta a porta da salvação da sua alma. “Gerar filhos continuamente até

à morte” era, para além da virgindade, segundo lembrava o dominicano Nicolau de

Gorran († 1295), a única forma de a mulher conquistar a salvação.11

Um casamento estéril deixava, então, o casal sob suspeição, quer de usar

contraceptivos, realizar o aborto ou praticar o infanticídio, quer de dedicar-se a

prazeres sexuais não orientados para a sua única suposta legítima função, a da

procriação.12 Com efeito, segundo a moral clerical, a esterilidade poderia ser

interpretada como consequência de uma sexualidade conjugal desregrada e aviltada

pela procura pecaminosa de um prazer incontrolado.13

Em suma, um bom casamento devia ser prolífero e uma boa esposa devia

ser uma mãe, mesmo que canonistas e teólogos tivessem reconhecido, sobretudo a

partir do século XIII, que um matrimónio não consumado, ou sem filhos, podia ser

um sacramento abençoado, desde que os cônjuges vivessem um amor sincero e

temente a Deus, e que alguns deles chegassem mesmo a admitir a importância da

relação sexual para a consolidação do afecto a existir entre os esposos, como foi o

__________________________________________________________________________________________________ 47

10 'Da vida e linhagem de Sancta Anna, madre de Nossa Senhora' in "Adições Portuguesas no Flos Sanctorum de 1513", ed. Cristina Sobral, Adições Portuguesas no Flos Sanctorum de 1513 (Estudo e Edição Crítica), Lisboa, Faculdade de Letras de Lisboa, 2000 (Tese de Doutoramento), pp. 700, 701 e 703. 11 Citado por Silvana Vecchio, “A boa esposa” in Georges Duby e Michelle Perrot (org.), História das Mulheres, 2, Porto, Afrontamento, 1993, p. 163. 12 Como denunciam os penitenciais, ao condenar a achegança do marido a sua molher de tras, assy como besta, ou o fornizio praticado mediante aliquo insturmento ou os tratados de confissão ao referir os que dormem com as molheres per outra maneira salvo como a natureza demãda. Respectivamente, O Penitencial de Martim Pérez em Medievo-Português, ed. Mário Martins, Lisboa, 1957, p. 44; Tratado de Confissom (Chaves, 8 de Agosto de 1481), ed. José V. de Pina Martins, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973, p. 233. 13 Para o combate do qual os penitenciais recomendavam a interdição de práticas sexuais desde XX dias ante de Natal adeante, atáa o cabo del, domingos ou en nas festas dos apostolos ou em nas outras festas mayores ou en qual quer dia de jajuneum da eigreja ordenado, assim como durante todo o período da Quaresma: ob. cit., ed. cit., p. 45. Também o Tratado de Confissom refere os dias interditos às práticas sexuais: ob. cit., ed. cit., p. 204.

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caso dos mendicantes S. Tomás de Aquino e S. Boaventura.14 Com efeito, a presença

entre os relatos medievais de milagres da Baixa Idade Média de inúmeras graças de

fertilidade concedidas a casais estéreis permite perceber como a ausência de filhos

continuava a ser considerada uma grave culpa individual e social.15

Uma tal angústia encontra-se presente nos textos bíblicos, a propósito dos

miraculosos nascimentos de Ismael, Isaac, Samuel, Sansão, João Baptista e,

sobretudo, a Virgem Maria, tida de Santa Ana após vinte anos de esterilidade. Ora, à

semelhança do que se sabia relativamente a tais personagens das Escrituras, também

circulavam no Portugal medieval as histórias de Santos e simples fiéis que teriam

nascido em idênticas circunstâncias.

No seu conjunto, conhecem-se os textos de nove desses milagres, incluindo,

na hagiografia portuguesa de Santa Ana, o respeitante ao nascimento da Virgem.

Apenas num deles se conta como a graça fora obtida a pedido do pai, já que no caso

dos restantes, ou foi concedida a rogo do casal ou só da mãe, sendo esse

protagonismo feminino justificável pela razão de, à época, se atribuir exclusivamente

às mulheres a responsabilidade na infertilidade de um matrimónio. No caso de um

dos milagres atribuídos a S. Frei Gil de Santarém, explica-se como Mécia, a mulher

do alcaide de Faro, pedira a intercessão do santo para engravidar porque

havendo muitos annos que era casada, temia que a falta de filhos fosse

causa de seu marido se vir a desgostar com ella, vivendo ambos em tudo o

mais com muita conformidade.16

De facto, a suposta infertilidade feminina era então causa suficiente para o

repúdio marital de uma esposa, atribuindo-se à própria Santa Ana o lamento de se

sentir, antes do milagre do nascimento da Virgem,

muy triste e desconsollada polla asencia de seu marido que avia cinco

meses que nõ sabia delle parte nē nova não fazia senom chorar cuydando

que por ser maninha ha avya deyxado seu marido.17

______________________________________________________________________________________________

14 Jean-Louis Flandrin, Le sexe et l’occident, évolution des attitudes et des comportements, Paris, Seuil, 1981, pp. 106-107. 15 Pierre-André Sigal, L'homme et le Miracle dans la France médiévale (XIe – XIIe siècle), Paris, Les Éditions du CERF, 1985. 16 Frei Luís de Sousa, “S. Frei Gil” in História de S. Domingos, I, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, p. 219 17 'Da vida e linhagem de Sancta Anna, madre de Nossa Senhora' in ob. cit., ed. cit., p. 703.

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48

NASCER __________________________________________________________________________________________

Nomeadamente para as fidalgas, era difícil explicar um casamento sem

filhos. O não poder satisfazer o desejo do marido e da sua linhagem de vir a ter um

herdeiro varão, provocaria em muitas dessas mulheres a vivência angustiada dos

últimos meses da sua gravidez.

Nos relatos dos milagres dos nascimentos de S. Frei Gil de Santarém e de S.

Rosendo de Celanova refere-se a infelicidade causada pela falta de filhos, a,

respectivamente, pais da alta nobreza descendentes de estirpe real,18 e progenitores

provenientes da ilustríssima árvore genealógica real, que, parecendo abundarem em

felicidade, estavam privados da alegria de herdeiros, noticiando-se como os

primeiros tinham feito voto a Deus para o conseguirem, e como os segundos haviam

peregrinado pelos mosteiros, não cessando de depor oferendas e incenso sobre os

altares, regando com lágrimas os templos. Segundo depois se conta, fora quando o

pai de S. Rosendo se ausentara para a guerra, que a mãe, ao continuar as suas preces

e ao deslocar-se todos os dias, a pé e descalça, a uma distante igreja onde ia ouvir os

ofícios divinos para obter de Deus a maternidade, teria então tido a visão de um anjo

anunciador da próxima concepção de um filho santificado por Deus.19

Ora uma tal história não se distinguia muito da que se dizia ter acontecido

aos futuros pais da Virgem Maria, Santa Ana e S. Joaquim, dos quais se lembrava

como

fezerõ voto e prometimēto a Deos que, se lhe desse alguu fruyto de geraçõ,

que lho offereceriõ. E cõ este voto e petiçõ hyã cada festa do anno ē pessoa

a visitar o sancto Templo de Jherusalem cõ seus dões e obrigações e

offertas e devotas oraçoões.20

Entre os reis, por outro lado, também a mesma situação é recordada por Rui

de Pina a propósito de D. João II e da sua rainha, noticiando-se como ambos foram

em romaria a S. Domingos da Queimada, com ricas ofertas para pedir que Deos lhe

desse filhos d’antre ambos, que ElRey sobre todalas cousas sempre mais desejou. 21

__________________________________________________________________________________________________ 49

18 Frei Baltazar de S. João, A vida do bem aventurado Gil de Santarém, ed. Aires A. Nascimento, Lisboa, 1982, p. 24. 19 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. e trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Porto, 1970, pp. 17- -19. 20 “Da vida e linhagem de Sancta Anna, madre de Nossa Senhora” in ob. cit., ed. cit., p. 700. 21 Rui de Pina, “Chronica d’ElRey D. João II” in Crónicas, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, p. 926.

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

Figura 3 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) As peregrinações a santuários próprios dedicados à Virgem, onde se ofereciam imagens decera da forma e do peso do bebé que se desejava ter, eram uma maneira vulgar de invocar aconcepção.

______________________________________________________________________________________________

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50

NASCER __________________________________________________________________________________________

Outros exemplos referem-se a fidalgas e a simples mulheres do povo, como

Mécia, a já antes mencionada mulher do alcaide de Faro que invocara S. Frei Gil de

Santarém para a ajudar a conceber, esperando o milagre que já teria ocorrido a

Maria Antíoca, uma mulher não privilegiada declarada estéril pelos médicos com

quem se tinha cançado, e despendido após dez anos de casada22 ou a Beatriz

Álvares, casada há catorze anos, que apenas concebera ao pedir a intercessão de

Nuno Álvares Pereira, a quem se prestava culto em torno da sepultura onde fora

enterrado no mosteiro lisboeta do Carmo. 23 Ao mesmo tempo também se regista o

caso de

huum barom nobre que como nom podesse aveer jeraçom, foi-sse ao sepulcro

de samto Amtonio e fez voto. 24

De resto, a angústia individual ou social sentida pelos cônjuges sem filhos,

não se encontra apenas testemunhada pelo registo das muitas promessas e milagres

que teria suscitado ou desencadeado. Revela-se, ainda, através da notícia dos vários

pós, unguentos, alimentos e regimes dietéticos aconselhados pelos médicos e pelos

mágicos para corrigir os excessos de calor ou de secura que provocariam a

esterilidade.25 De facto, só no caso da farmacopeia recomendada por Pedro Hispano

na sua obra O Tesouro dos Pobres, para permitir ou garantir aos casais a procriação,

encontram-se noventa e cinco receitas, trinta e quatro para excitar ao coito, cinco

para predispor o organismo feminino à maternidade e mais cinquenta e seis para a

__________________________________________________________________________________________________ 51

22 Frei Luís de Sousa, "S. Frei Gil" in História de S. Domingos, I, ed. cit., pp. 218-219. Veja-se também a notícia sobre a mulher estéril a quem Santa Senhorinha teria permitido uma miraculosa maternidade : "Vida da Bem Aventurada Virgem Senhorinha", ed. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, in Vida e Milagres de S. Rosendo, Porto, 1970, p. 145. 23 Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, I, Lisboa, 1745, p. 552. 24 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), ed. J.J. Nunes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, p. 272. 25 Tal como se pode observar, quer nos livros da arte de curar anglo-saxónicos onde se mencionam métodos destinados a excitar a paixão, a propiciar e consolidar a gravidez, ou a impedir o aborto, quer através dos lapidários hispânicos medievais no contexto das receitas para a utilização das rochas e minerais, entre as quais se destacam as destinadas a impedir o aborto espontâneo e as utilizadas para assegurar a gravidez. É ainda de referir a menção nos Contos de Cantuária de Geoffrey Chaucer (1342-1400) aos meios a utilizar pelo homem para assegurar a sua potência e às instruções fornecidas às parteiras sobre o modo de responderem a perguntas das doentes sobre a esterilidade no quatrocentista Tratado sobre o Útero de António Guainério, entre as quais se referem os emplastros quentes e os pessários aconselhados para assegurar a concepção e a informação de que a fecundidade feminina se podia confirmar pela fermentação de farelos sobre a urina. Sobre tudo isto, consulte-se Angus Mclaren, História da Contracepção – Da Antiguidade à Actualidade, Lisboa, Terramar, 1997, p. 126.

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

mulher conceber com sucesso, combinando ingredientes de origem animal (como a

vulva de lebre, o leite de burra, o testículo direito da doninha-macho, o chifre de

veado ou a urina de elefante), com produtos quer de origem vegetal (sendo esse o

caso do joio, do incenso, da erva-cidreira, do mangericão, da mangerona ou da

hortelã), quer mineral (mencionando-se para tal propósito o alúmen, a mirra, o

mastique, a colofónia, o gesso, ou a tinta negra), os quais, devidamente triturados

constituiriam um meio precioso e deleitoso para ajudar admiravelmente as estéreis a

conceber.26

Idênticos objectivos eram, ainda, prosseguidos pelas receitas e conselhos

contidos nos tratados de obstetrícia árabe conhecidos no Al-Andalus. Entre as

primeiras contam-se várias mezinhas que deviam ser aplicadas no corpo da mulher

através de pessários. Quanto aos segundos, tanto por eles se preconizava a

necessidade de respeitar certas prescrições temporais, nomeadamente a de ter

relações sexuais pouco frequentes e só depois do período menstrual, como

posicionais, sendo esse o caso da recomendação de que a mulher deveria dormir de

barriga para baixo ou, ainda, alimentares, receitando-se-lhe a bebida, ao deitar, de

leite fresco fervido com gordura de cabra, peixe e búfalo,27 tudo isto combinado

com o conselho de muito repouso após a relação, lembrando-se como um simples

espirro poderia fazer sair a semente para fora do vaso e, assim, privar a mulher de

uma desejada maternidade.28

Em certos casos, o cumprimento de todos estes preceitos médico-farma-

cológicos para a cura da infertilidade podia ser acompanhado por práticas rituais

propiciatórias, como a de rodear a grávida com várias bonecas que para ela atraíssem

o sucesso da gravidez,29 ou, de acordo com um procedimento mais letrado, planificar

a gestação de forma a fazê-la coincidir com uma favorável conjugação astral. Se

nada disso resultasse, os tratados árabes consideravam, então, a possibilidade de se

testar a fertilidade dos dois cônjuges, já que admitiam também o facto de a

______________________________________________________________________________________________

26 Pedro Hispano, Obras Médicas, ed. e trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Coimbra, Universidade, 1973, respectivamente pp. 234-238, 242 e 262-270. 27 El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. Antonio Arjona Castro, Córdova, 1983, capítulo III. 28 Cf. Charles de la Roncière, "A vida privada dos notáveis toscanos no limiar do Renascimento" in Phillipe Ariès e Georges Duby (dir.), História da Vida Privada, 2, Lisboa, Afrontamento, 1990, p. 220. 29 Christiane Klapisch-Zuber, “Holy Dolls: Play and Piety in Florence in the Quattrocento” in Women, Family and Ritual in Renaissance Italy, Chicago, 1985, p. 317.

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NASCER __________________________________________________________________________________________

esterilidade se poder manifestar no homem. Para o efeito, poderia, então, recorrer-se

à observação das urinas do marido e da mulher, vertendo-se, ao pôr do sol, a urina

de cada um deles sobre uma folha de alface para que, na manhã seguinte, a que

estivesse seca determinasse qual o cônjuge estéril.30 Contudo, para verificar a

esterilidade feminina existiam outros testes. Citando um deles, pedia-se à mulher,

que deveria estar em jejum, para se sentar num cadeirão com o assento perfurado,

mantendo os pés suspensos. Tapada com um pano, faziam-se por baixo dela

fumigações de incenso e outros produtos. Se ela sentisse na boca ou no nariz o aroma

e o sabor da fumigação, era fértil, porque se havia provado a permeabilidade dos

canais uterinos.

De acordo com a medicina galénica, o contributo masculino era superior ao

feminino em matéria de reprodução humana. Do ponto de vista anatómico, conforme

um saber herdado de Aristóteles, a fisiologia sexual do homem considerava-se mais

perfeita do que a da mulher, visto os órgãos sexuais femininos, entendidos como

inversamente semelhantes aos masculinos, se conceptualizarem como diminuídos e

defeituosos. Sendo assim, dado o suposto paralelismo existente entre os testículos e o

ovário, o sémen por eles produzido teria uma distinta eficácia no processo da

procriação, competindo ao da mulher apenas fornecer “matéria para ser trabalhada

pelo sémen masculino”, tal como a madeira na qual o carpinteiro trabalhava.

Para Galeno, o sémen feminino funcionaria, então, como um alimento do

esperma masculino, tanto se comportando na qualidade de uma espécie de diluente

que ajudava a semente varonil, demasiado espessa, a espalhar-se no útero, como na

de substância capaz de assegurar a formação da membrana que envolve o feto. De

resto, ainda actuaria enquanto matéria susceptível de contrariar a força da semente

masculina, impedindo-a da procriação de um varão, e fazendo-a gerar um ser

feminino que mais não era que um homem cujo devir fora impossibilitado. Uma filha

era, assim, consequência de um acidente ou de uma fraqueza do esperma e, por isso,

fruto da imperfeição.

Inspirada por tais representações, a medicina letrada medieval, em grande

parte galénica, acentuou ainda o primado que o sábio clássico concedera ao sémen

masculino no processo da fertilidade humana. Por um lado, difundindo a teoria,

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30 El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ibidem.

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muito presente desde meados do século XII, nos manuais escolares para o ensino dos

médicos, de que o sémen feminino, por muito secundária que fosse a sua acção na

procriação, só se libertaria pelo prazer causado pelo homem durante o acto sexual, tal

como o provaria a suposta esterilidade das prostitutas, já que se defendia não

conceberem por nunca sentirem e sempre fingirem a satisfação causada durante as

suas relações eróticas; era essa a razão, aliás, porque se deveria duvidar de qualquer

reclamação feita por uma grávida relativamente a qualquer acto de rapto e violação,

visto, certamente, não ter a ele sido obrigada, antes se tendo prestado a uma relação a

que fora conduzida pela fraqueza da carne. Por outro lado, como acontece em vários

tratados de educação cristã produzidos durante a Baixa Idade Média, chegava a

negar-se qualquer funcionalidade ao esperma feminino por carecer de uma efectiva

acção formativa na constituição do embrião, sendo todo ele visto como produto de

uma máscula semente, conforme, de resto, já antes dera a entender o médico e

filósofo árabe Averróis (†1198) quando referira a possibilidade de a mulher poder

engravidar pela água do banho na qual o homem tinha lançado o seu esperma.31

Contudo, se os cônjuges medievais acabam por se socorrer de múltiplas

devoções, rituais, mezinhas e conselhos médicos para afastarem e até esconjurarem

uma infertilidade cujo ónus tende a recair mais sobre a esposa do que sobre o marido,

muitas vezes considerado como parte lesada ou ofendida, as pressões sociais e

familiares também se fazem sentir no que se refere à necessidade de procriar varões

capazes de ajudar a família e de a continuar.32 Neste caso, são ainda os tratados

médicos medievais que nos elucidam sobre práticas onde se aliam os conhecimentos

farmacológicos e as práticas mágico-religiosas ainda hoje vigentes. No Tesouro dos

Pobres de Pedro Hispano encontram-se mencionadas duas dessas mezinhas. Uma

delas, recomenda as virtudes das diferenças existentes entre os dois testículos do cão,

visto um se descrever como duro e seco, enquanto o outro se apresenta na qualidade

de mole e húmido. Ora, se o homem tomasse o seco e maior, a sua geração seria do

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31 Consultem-se: Henrietta Leyser, Medieval Women. A Social History of Women in England 450- -1500, Londres, Phoenix Press, 1995 pp. 96-97 e Claude Thomasset, “Da natureza feminina” in Georges Duby e Michelle Perrot (dir.), História das Mulheres, 2, Porto, Afrontamento, 1993, pp. 66- -83. 32 Segundo alguns autores, a maior parte das receitas para escolher o sexo dos filhos denunciava o desejo de conceber um rapaz. Veja-se, entre outros, Sylvie Laurent, Naître au Moyen-Âge: De la conception à la naisssance, la grossesse et l'accouchement (XIIe. – XVe. Siècle), Paris, Cahiers du Léopard d'Or, 1989, p. 122; M. Greilsammer, L'Envers du tableau. Mariage et maternité en Flandre médiévale, Paris, Armand Colin, 1990, p. 207; Colin Heywood, A History of Childhood, Cambridge, Polity Press, 2001, p. 45.

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NASCER __________________________________________________________________________________________

género masculino, obtendo-se uma fêmea se a mulher tomasse o menor. Outra receita

aconselha o uso de uma planta designada por mercurial. Ao triturar as folhas e a

semente do mercurial-fêmea, para com elas untar o pénis, obter-se-iam fêmeas,

gerando-se varões ao aplicar na mulher uma mesma preparação de mercurial-ma-

cho.33

Mais eruditos, os tratados médicos hispano-árabes preconizavam

procedimentos baseados na teoria da determinação do sexo da criança pela qualidade

de sémen do progenitor, pressupondo que um sémen forte daria origem a um rapaz e

um mais debilitado a uma menina. Então, aos homens que só engendravam meninas

e queriam rapazes, os médicos recomendavam fortificantes para o corpo poder

fabricar um sémen forte, do mesmo modo que receitavam aos que só tinham rapazes

e queriam meninas, banhos destinados a debilitar o esperma.

De resto, também enunciavam, conforme os escritos hipocráticos, como os

estados de espírito e as condições climáticas condicionavam a definição sexual do

feto, fazendo com que um homem tivesse filhos ou filhas da mesma mulher. Por um

lado, a alegria que revigorava o corpo contribuiria para o nascimento de filhos

varões, enquanto a tristeza que o deprimia estaria relacionada com a geração de

filhas. Por outro, o vento suão que, vindo do Sul, debilitava os corpos, originando-

-lhes o enfraquecimento responsável pela fluidez do sémen que assim saía

imperfeito, era visto como propício à geração de mulheres, ao contrário do vento

nortenho que fortificava o corpo e o esperma.34 Ainda de acordo com este ponto de

vista, os rapazes seriam mais facilmente concebidos se as relações sexuais

ocorressem na frescura e vigor da manhã enquanto que, fruto do cansaço de um dia

de trabalho, as raparigas seriam mais vulgarmente concebidas pela noite.35

Para além disto, os médicos hispano-árabes ainda teorizavam acerca dos

condicionantes corporais maternos que determinavam a atribuição da sexualidade ao

feto, fazendo-a depender dos desequilíbrios ocorridos entre as células que se

formavam à esquerda e à direita da célula matriz a partir da qual se produzia o feto.

Nesse sentido, um predomínio das células situadas à direita, cuja comunicação

directa com o fígado, tornava susceptíveis de melhor fortalecer e alimentar o feto,

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33 Pedro Hispano, Obras Médicas, ed. cit. pp. 260 e 266. 34 El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. cit., pp. 59-61. 35 Colin Heywood, ob. cit., ed. cit., p. 45.

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seria responsável pela produção de varões, enquanto um maior peso das células

situadas à esquerda, mais frias e menos nutritivas, estaria na origem da geração das

raparigas, atribuindo-se, por outro lado, à falta de um desequilíbrio entre ambas, o

nascimento de hermafroditas. Uma tal explicação supostamente biológica, muito

corrente nos manuais de ensino latino da medicina ocidental a partir do século XIII,

não implicou, contudo, o desaparecimento de outro tipo de explicações, sobretudo

afectivas e morais, tal como se encontravam exemplarmente expressas nos textos da

abadessa Hildegarda de Bingen. De facto, para essa mística e naturalista alemã do

século XII, se era a força da semente masculina que determinava o sexo do embrião,

dever-se-ia ao amor existente entre os pais da criança as qualidades morais que esta

viria a evidenciar. Sendo assim, e partindo do princípio de que uma grande

quantidade de semente masculina e um grande amor entre os pais permitiria a

gestação de um rapaz pleno de virtudes, o nascimento de uma boa filha seria

determinado por um fraco esperma paterno e um grande amor entre os cônjuges,

enquanto uma débil semente varonil e a falta de amor entre o casal se saldaria no

dar à luz uma má rapariga. Para além disso, Hildegarda também sublinhara como a

mãe bem constituída imporia, pelo vigor do seu calor, semelhanças a um filho, do

mesmo modo que um homem suficientemente varonil deixaria os seus traços na face

de uma filha.36

Por fim, os tratados hispano-árabes de medicina referiam ainda os

procedimentos destinados a obter gémeos. Um deles consistia na bebida, em partes

iguais, pelo homem e pela mulher, de um líquido obtido pela mistura de espargos

cozidos e secos, leite de cabra, manteiga de vaca, mel e pimenta. Outro,

recomendava a ingestão pela futura mãe de um preparado de gengibre moído e

misturado com leite de mulher, de burra e de camela em partes iguais, o qual deveria

ser feito um dia e uma noite antes de ser bebido e previamente desnatado,

reservando-se a nata para untar o corpo feminino antes do início da relação sexual.

Esta nunca deveria ocorrer depois de um banho quente já que a ele se seguiria o

amolecimento e a tranquilidade contrários à força e à actividade necessárias ao

coito.37

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36 Claude Thomasset, ob. cit., ed. cit., p. 84-84. 37 El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. cit., pp. 62-64.

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NASCER __________________________________________________________________________________________

Nos manuais de medicina hispano-árabes, a gravidez poderia ser

comprovada por toda uma série de formas supostamente infalíveis. Se uma mulher,

por exemplo, bebesse água com mel antes de se deitar e durante a noite tivesse dores

à volta do umbigo poderia afirmar-se uma segura espera de filhos. Idêntica esperança

poderia ter se, de manhã, a sua vagina ainda cheirasse ao alho que lá tinha colocado

à noite, antes de adormecer.38

3 - A GRAVIDEZ

Entretanto, após o sémen se ter convertido em espuma pelos sete dias, e

esta se haver transformado em sangue, entre os quinze e os trinta e cinco dias, o feto

havia adquirido, ou uma forma masculina aos quarenta dias ou feminina, aos oitenta,

explicando-se como teria então passado a definir um embrião que permanecia de

joelhos, as mãos sobre a face e envolto na fina bolsa onde se alimentava do sangue

da progenitora. Se fosse menino, a sua cara virava-se para as costas da mãe, se

menina, para a frente.

Porque o esperma masculino era considerado mais forte e mais rápido do

que o feminino, o feto de um varão começaria a mover-se por volta dos três meses,

enquanto o de uma menina ainda esperaria mais um mês.39 De resto, a diferenciação

sexual do feto poderia facilmente observar-se através do aspecto e da postura da mãe.

Assim, se a grávida apresentava um rosto bonito e alegre, a pele limpa e os

movimentos ligeiros, tudo indicaria estar um varão para nascer, porque ele reforçava

o calor da mãe e tornava-lhe a tez mais bela, ao mesmo tempo que lhe activava os

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38 Id., ibidem, p. 68. 39 Id., ibidem, pp. 68-73. De acordo com os tratados médicos hispano-árabes, a gestação também se encontraria regida pela influência dos astros. Assim, no primeiro mês, o feto estaria sob a influência de Saturno, um astro frio e seco, pelo que se resumiria a uma massa sem percepção nem movimento. No segundo mês surgia Júpiter, quente e húmido. Começaria, então, o desenvolvimento e o crescimento do feto convertendo-se num pedaço de carne já sexualmente diferenciado - se masculino, branco e de forma redonda, se feminino, avermelhado e esguio. No mês seguinte surgia Marte, quente e seco, permitindo ao feto converter-se num pedaço de carne com nervos e sangue. Com o Sol, também quente e seco, completar-se-ia a formação do sexo. No quinto mês, o feto apresenta-se influenciado por Vénus, um astro frio, formando-se então o cérebro, os ossos e a pele. Mercúrio, equilibrado entre o calor e a secura, regeria a formação da língua e do ouvido. No sétimo mês, a Lua perfeccionaria o feto e dar-lhe-ia um movimento próprio para sair. Se nascesse nesse mês, conseguiria sobreviver, porque a sua formação já se completara sob a influência das sete estrelas. Se permanecesse no útero, passaria a sofrer a influência de Saturno, o astro frio, seco e corruptor. Não sobreviveria se nascesse nesse mês. Para além da considerada má influência de um tal planeta, a suposição da maior fragilidade do feto de oito meses baseava-se na crença de que, após ter procurado sair no sétimo mês, se encontrava muito debilitado por tal fracasso. Por último, Júpiter, quente e húmido, traria ao feto a vida e o desenvolvimento: Ibidem, pp. 83-84.

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sentidos e lhe facilitava os movimentos. Uma pele materna com manchas escuras,

acompanhada por olhos encovados e por movimentos e sentidos entorpecidos

indiciaria, por sua vez, uma menina, porque esta trazia o frio que alterava a pele da

mãe e lhe congelava o sangue. Também pelo andar da mãe se podia determinar o

sexo da criança: se a progenitora assentava todo o peso do seu corpo nos calcanhares,

estava grávida de um rapaz; se o descarregava nos dedos dos seus pés, trazia uma

menina.

Por outro lado, a gestação de um rapaz ou de uma rapariga também se

espelharia nas transformações que se iriam evidenciando na própria morfologia do

corpo da grávida, sobretudo as respeitantes às assimetrias laterais. Assim, se fosse

maior o peito direito da progenitora, ou se sentisse ardor e peso no mesmo lado do

útero, o seu corpo revelaria a presença de um futuro menino, do mesmo modo, aliás,

que uma idêntica lateralidade na movimentação dos olhos, saliência das veias ou até

a circunstância do avanço de um dos pés ao andar, pressupondo-se que os mesmos

sintomas sentidos à esquerda prenunciariam o nascimento de uma menina.40

Uma tão vasta colecção de sintomas a ter em conta para a determinação do

sexo dos fetos, reflecte, ao nível erudito dos tratados médicos, um conjunto de

práticas certamente muito mais vastas do que as aí registadas, dada a dificuldade em

se conhecerem usos e costumes próprios de uma população maioritariamente

iletrada. No fundo, uma tão grande atenção dada à gestação dos filhos justifica-se

pelas elevadas taxas de mortalidade infantil então existentes, as quais atingiam,

segundo estudos paleobiológicos, valores próximos dos cerca de 30% para o campo e

cerca de 12% para a cidade.41 De facto, nos livros de milagres medievais abundam

exemplos de nados mortos e de mulheres que repetidamente ultrapassavam o longo e

penoso processo de gravidez para ver os seus filhos nascer e logo depois virem a ser

sepultados.

Eram sobretudo as elites urbanas e vilãs que possuíam melhores meios para

zelar pelos filhos pequenos, tendo nas serviçais domésticas e nas aias, preciosas

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40 Vejam-se El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. cit., e Henrietta Leyser, ob. cit., ed. cit., respectivamente, pp. 59-60 e 124. 41 Consultem-se Eugénia Cunha, Paleobiologia das populações medievais portuguesas: os casos de Fão e S. João de Almedina, Coimbra, Universidade, 1994 (Tese de Doutoramento) e Maria Helena Coelho, "Os homens ao longo do tempo e do espaço" in Maria Helena Cruz Coelho e Armando Luís Carvalho Homem (coord.), Portugal em definição de fronteiras (1096-1325). Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, Lisboa, Presença, 1996, pp. 180-182.

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NASCER __________________________________________________________________________________________

coadjuvantes nos cuidados a ter com as crianças, como sejam os relativos aos

banhos, enfaixamentos, alimentação e toda a espécie de vigilância e

acompanhamento. Este não seria certamente o caso da maioria das mães pertencentes

às populações rurais e mesmo vilãs e citadinas mais desfavorecidas, para quem tratar

os pequenos seria difícil de harmonizar com as muitas ocupações familiares e sociais

que desempenhavam, para já não mencionar a forma como tinham de enfrentar a

impossibilidade de diversificar a alimentação infantil e até, por vezes, a sua escassez.

Por outro lado, o costume de aleitarem os filhos até aos dois ou três anos e até,

frequentemente, receberem, enquanto amas de leite, as crianças das famílias mais

abastadas, acabava também por provocar a estas mães a existência de intervalos

intergenéticos mais espaçados e dificultar-lhes as gravidezes e os partos. Nesse

sentido, conforme observa Stéphane Boisselier, a sua taxa de fecundidade não

ultrapassaria, na generalidade, o total de quatro filhos, apresentando valores médios

inferiores aos das mulheres oriundas das famílias rurais mais prósperas e das que

integravam as elites urbanas.42

Mesmo entre as fidalgas eram muito baixos os índices de fecundidade. 43 É

certo que, tal como as aristocracias citadinas e vilãs, podiam beneficiar de condições

susceptíveis de virem a integrar um grupo social menos atingido pela mortalidade

infantil, ao mesmo tempo que a tendência para se casarem muito jovens lhes

possibilitava o prolongamento do período de fertilidade. Contudo, dada a

circunstância de fazerem parte de um grupo social privilegiado particularmente

marcado pelo predomínio da taxa de masculinidade sobre a da feminilidade, fracos

índices de nupciabilidade e frequentes uniões conjugais endogâmicas, integravam um

colectivo feminino bastante atingido pela infertilidade e pela ocorrência de abortos

naturais, provocados pelas incompatibilidades hormonais ou sanguíneas existentes

entre os cônjuges. De facto, as tentativas até agora feitas para calcular os valores da

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42 Stéphane Boisselier, Naissance d’une identité portugaise. La vie rurale entre Tage et Guadiana de L’Islam à la reconquête (Xe. – XIVe. Siècles), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1999, pp. 245-246. Segundo a autora, a alcunha de Sete Filhos documentada para um habitante de Arraiolos em 1296 seria reveladora da excepcionalidade das progenituras mais numerosas. Vejam-se também as obras mencionadas na nota anterior. 43 Veja-se, a título exemplificativo, como a própria média de filhos nascidos na realeza de Afonso I a Manuel I, tendo em conta os dados indicados por A. H. de Oliveira Marques, apresenta o valor de cinco filhos por casal: A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, I, Lisboa, Presença, 1997, genealogias inseridas entre as pp. 128-129, 225-226, 256-257 e 320-321.

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taxa de fecundidade da nobreza dos séculos XII e XIII, situam-se entre os poucos

mais de três e os menos de dois filhos por casal.44

Neste contexto, não admira o relevo atribuído pelos tratados médicos

letrados à gravidez. Eles reflectem a atenção devida a um acto social cujo êxito era

bastante problemático dada a então vulnerabilidade das grávidas a muitas infecções e

doenças que ainda tornavam mais dramáticas as já de si deficientes condições em que

decorria a gestação dos fetos, entre as quais, sobretudo para as mulheres dos grupos

sociais mais desfavorecidos, avultavam os trabalhos violentos e a má nutrição que

causavam muitos abortos espontâneos. Por isso, os tratados médicos hispano-árabes

revelam-se bastante atentos aos respectivos sintomas. Assim, se a grávida adoecesse

e os seus peitos subitamente diminuíssem, deveria esperar-se um aborto que, no caso

da espera de gémeos e se só se verificasse a diminuição de um dos peitos, apenas

ocorreria para um deles; se os seios deitavam leite, era sinal de fraqueza do feto. Por

outro lado, os olhos encovados, a cara, o corpo e os pés inchados, as orelhas e o nariz

brancos ou os lábios esverdeados também prenunciariam o nascimento de um nado

morto ou de uma criança que conseguiria sobreviver ao parto por pouco tempo. Por

fim, clisteres, unguentos e diversos tipos de alimentos faziam parte das prescrições

médicas que procuravam evitar as múltiplas causas dos abortos, como sejam, quedas,

fadiga excessiva, tristeza, angústia, debilidade do útero ou do sémen, fome, fluxo de

sangue ou até mesmo diarreia. 45

Nos livros de milagres medievais portugueses, a graça da cura de fluxos

sanguíneos, acompanhados de dores, corresponderia a promessas e a protecções

destinadas a ultrapassar os abortos durante as primeiras semanas de gravidez. De

facto, parece ser esse o milagre feito por Santa Senhorinha a uma mulher de

Guimarães que avia fluxo de sangue e que tinha dores desvairadas,46 ou aquele que

a intercessão do beato Nuno Álvares Pereira permitira a uma grávida de Lisboa, a

qual, devido a uma hemorragia declarada há nove meses, estivera no fim da vida, e

desconfiada de todos os médicos,47 o mesmo devendo ser o caso da dona honrada,

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44 José Augusto de Sotto Mayor Pizarro, Linhagens medievais portuguesas. Genealogias e estratégias (1279-1325), Porto, Universidade Moderna, 1999, pp. 480-495. 45 El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. cit., pp. 91-93. 46 "Vida e Milagres de Santa Senhorinha", ed. Torquato Peixoto de Azevedo, Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, Guimarães, Gráfica Vimaranense, 2000, p. 473. 47 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 550.

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moça, e muito rica de Santarém, a quem S. Frei Gil de Santarém salvara de tal

infirmidade por ela padecida havia cinco annos.48

Nesta última situação, tratar-se-ia de um milagre capaz de evitar os abortos

sucessivos que eram bastante frequentes entre as fidalgas, dados os desequilíbrios

hormonais e as incompatibilidades sanguíneas nelas provocadas pelas práticas

matrimonias endogâmicas a que já nos referimos, o que também poderá evidenciar a

notícia de como Santa Senhorinha permitira a uma mulher que paria muitos filhos, e

avia depois grão nojo, porque lhe morriam todos, logo conceber de seu marido e

parir um filho.49 De resto, também se invocam os santos como remédio para as

graves doenças que poderiam levar ao aborto das grávidas, tal como se conta a

propósito de uma mulher de Coimbra que, grávida e com hidropesia disforme e sem

remédio, pois os que a Física aplicava tolhiam a gravidez, acabou por encontrar cura

numa relíquia de S. Frei Gil de Santarém e, assim, teve bom parto.50

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48 Frei Luís de Sousa, "S. Frei Gil" in ob. cit., ed. cit., p. 241. 49 "Vida e Milagres de Santa Senhorinha" in ob. cit., ed. cit., p. 473. 50 Frei Luís de Sousa, "S. Frei Gil" in ob. cit., ed. cit., p. 241.

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Figura 4 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII). Após a morte sucessiva de vários recém-nascidos, a invocação à Virgem permitiu a esta mulherconceber e parir sem problemas uma criança.

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Nos tratados de medicina

medievais concede-se, ainda, uma grande

atenção aos hábitos alimentares da

grávida, visto a saúde do feto, que se

alimentava do seu sangue, não poder ser

indiferente à dieta seguida pela

progenitora. Nesse sentido, a obstetrícia

hispano-árabe recomendava que a futura

mãe se alimentasse convenientemente,

evitando os alimentos salgados ou

amargos, pois a criança poderia nascer

sem unhas ou sem cabelo e mais sensível

às doenças. As especiarias, mesmo o sal e

a pimenta, eram susceptíveis de provocar a

lepra. Algumas carnes eram também

proibidas, sendo particularmente recomen-

dadas as carnes brancas. As refeições pe-

sadas e abundantes eram desaconselhadas.

A este regime, sem sal e sem excitantes,

podia adicionar-se o consumo de bebidas

energéticas e açucaradas mas nunca o

vinho, pois o seu consumo tornaria a criança

epiléptica. Referia-se ainda o modo como a

Figura 5 – Virgem do Ó (Século XIV) A Virgem coloca a sua mão direita sobre oventre e com a esquerda abençoa.

fome ou o jejum da grávida prejudicavam

o desenvolvimento do feto, já que, sem alimento, o estômago da progenitora passava

a aspirar perigosas secreções corporais, provocando-lhe as náuseas, as dores e a

quebra do apetite que lhe debilitavam o sangue. Recolhido pela medicina letrada

latina, um tal saber depressa acabou por se cristianizar, aconselhando-se a grávida a,

para além de comer e beber com temperança, viver alegre e em Deus, para que a

sua alma ganhasse um gentil hábito que seria transmitido ao feto, pelo que,

sobretudo, se deveria abster de relações sexuais no período após a concepção.

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Segundo a medicina hispano-

-árabe, o período mais perigoso para a

ocorrência de um aborto situava-se nos

primeiros quarenta dias da gravidez.

Durante esse tempo, recomendava-se

tanto o evitar de movimentos bruscos,

saltos e alimentos perigosos como a

moderação nos banhos e nas lavagens

corporais, ao mesmo tempo que se

chamava a atenção para a nocividade dos

espirros violentos e se forneciam várias

receitas para os transtornos estomacais,

vómitos e apetites anómalos.

Depois, a partir dos sete meses,

aconselhavam-se banhos frequentes e a

ingestão de alimentos laxantes como

meios destinados a precaver a grávida

das dores do parto.51

Globalmente, a mulher grávida

gozava de especiais protecções na so-

ciedade medieval cristã. O seu estado,

______________________________________________________________________________________________

susceptível de ser considerado detentor

de privilégios civis e eclesiásticos, reme-

tia para um tempo suspenso, isentando-a

de qualquer pena ou sanção. Podia, por exemplo, ausentar-se ou não participar nos

actos religiosos, assim como escusar-se a ser citada em justiça, ou por ela castigada.

O seu tempo não obedecia às leis civis ou eclesiásticas. Representava, sobretudo a

partir do século XII, o tempo da gestação de Cristo no ventre de Maria, ou seja, o do

mistério da incarnação do filho de Deus que nascera para salvar os homens. Nesse

Figura 6 – Nossa Senhora do Ó (Século XIV) Sobre o ventre assaz avultado a Virgem repousaa sua mão direita.

51 El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. cit., e Claude Thomasset, ob. cit., ed. cit., respectivamente, pp. 87-91 e 164.

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sentido, a gravidez remetia para o sagrado e para os seus interditos, sendo por

isso que a Cristandade encarava o aborto com tanta severidade.52

No plano teológico e iconológico, a gravidez conota-se, então, com o dogma

da maternidade de Maria, ou seja, com o culto e a devoção à Virgem da

Expectação, também conhecida em Portugal a partir da difusão popular da interjeição

com que se iniciavam, durante o Advento, as sete antífonas recitadas na liturgia

das Vésperas, por Nossa Senhora do Ó. Bastante intenso na época romano-

-visigótica, um tal culto, festejado a 18 de Dezembro como preparação para a festa

do Natal, foi fixado pelo Xº Concílio de Toledo, reunido em 656, como a mais

importante das anuais solenidades marianas, tendo depois sido particularmente

celebrado entre as comunidades moçárabes hispânicas. A partir do século XII, com a

crescente devoção dedicada a Maria por toda a Cristandade, reafirmou-se o seu culto,

sendo inúmeras as imagens e as narrativas de milagres que o atestam no Portugal da

Baixa Idade Média, até que a Contra-Reforma o veio a banir dos altares, censurando-

-lhe uma suposta falta de decoro e zelando pela substituição das estátuas que o

difundiam em muitos templos.53

Antes disso, porém, a festa litúrgica da Virgem da Expectação e as imagens

de Nossa Senhora do Ó ofereciam a todas as grávidas uma representação sagrada da

maternidade. Nas igrejas, a mãe do Deus homem era, então, visualizada como a

grávida que acariciava com uma mão a barriga proeminente, enquanto com a outra

saudava ou abençoava as suas devotas.54

__________________________________________________________________________________________________ 65

52 Sobre este tema e respectiva bibliografia, consultem-se: Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe. – XIIIe. Siècle), Paris, Aubier, 1997, pp. 253-254 e Sylvie Barnay, La Vierge. Femme au visage divin, Paris, Gallimard, 2000. 53 Veja-se Avelino de Jesus da Costa, "A Virgem Maria Padroeira de Portugal na Idade Média" in Lusitânia Sacra, 2, Lisboa, 1957, pp. 7-49. 54 Sobre a iconografia medieval portuguesa da Virgem da Expectação, veja-se, Maria João Vilhena Carvalho, "Virgem da Expectação" in Sérgio Guimarães de Andrade (dir.), O Sentido das Imagens, ed. cit., p. 255.

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

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66

Figura 7 – Virgem da Expectação (Século XIV) A mão pousada sobre o ventre proeminente representa o desejo de sentir a criança,situação muito comum na futura mãe, enquanto do rosto emana um misto de serenidadee de alegria.

NASCER __________________________________________________________________________________________

Figura 9 – Nossa Senhora do Ó (Século XV) A inclinação do busto de Maria introduz umanotação realista da postura da grávida.

Figura 8 – Nossa Senhora do Ó (Século XIV) As mãos que afagam e abençoam sugerem atranquilidade de um parto sagrado.

4 - O PARTO

Nos começos do século XIV, o franciscano Durando de Champagne

evocava a reprodução feminina como o difícil caminho que, ao começar numa

concepção a que se associa o "prurido da carne" e o "ardor da líbido", percorria

depois a gestação, marcada pelos incómodos físicos, pelas ânsias e pelas apreensões

sobre a sobrevivência da grávida e do seu feto, até atingir, com o parto, a expressão

de uma maior dor e ameaça de morte.55 Apesar da retórica da pregação mendicante,

o parto era, na realidade, a última etapa de um percurso incerto, cujo fim se revelava

particularmente ansiado e ainda mais temido, surgindo correntemente nas

55 Citado por Claude Thomasset, ob. cit., ed. cit., p.164.

__________________________________________________________________________________________________ 67

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

hagiografias informações relativas às mulheres que parem com grande perigo de sua

vida.56

Na literatura medieval das visões do Além, os partos chegam a associar-se

aos suplícios do Inferno. Com efeito, no texto quatrocentista da tradução portuguesa

da Visão de Túndalo, uma das imagens com que se pretende transmitir o horror dos

castigos aí praticados refere-se aos partos a que estariam votadas as almas

fecundadas por uma das bestas que guardavam o Inferno, afirmando-se que todos os

punidos com um tal destino se tornavam mulheres que

nõ paryã pollos lugares per onde sooē a parir as molheres. Mas paryã

pellos braços e pellos peitos. E pellas pernas. E paryã serpentes e bestas q

avyam dentes de ferro muy agudos e mordiam as almas de q sayam. E avyã

em si aguylhoões tortos como armuzellos de pescadores cõ q travavã das

almas.57

Ora, embora de forma menos intensa e diabólica, os partos terrenos (que

inspiravam aqueles cenários de horror) certamente provocariam idênticos medos e

pavores, pois para além das narrativas dos livros de milagres, temos de ter em conta a

circunstância das recentes investigações paleobiológicas feitas em ossos provenientes

de necrópoles medievais portuguesas apontarem a classe etária feminina situada

entre os vinte e os trinta anos como a mais atingida por índices de mortalidade, ou

seja, a idade que normalmente coincidia com o tempo da gravidez e/ou parto.58 De

resto, a consciência social do risco do parto encontra-se bem traduzida no facto de se

aconselhar a confissão e a comunhão às mulheres prestes a dar à luz.

Na verdade, parece hoje demonstrado como os partos de alto risco que

provocavam a morte das parturientes faziam parte do quotidiano medieval,

reflectindo, tanto o predomínio de gravidezes prejudicadas por deficientes condições

alimentares e sanitárias como as dificuldades sentidas pela medicina então praticada

no lidar com imprevistos, complicações e emergências que poderiam surgir durante o

parto. Para além disto, a idade das parturientes era também um sério factor de risco,

______________________________________________________________________________________________

56 A título de exemplo, veja-se Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 491. 57 Citado por José Augusto Miranda Mourão, A Visão de Túndalo. Da Fornalha de Ferro à Cidade de Deus (Em torno da semiótica das Visões), Lisboa, I.N.I.C., 1988, p. 121. 58 Eugénia Cunha, "Paleobiologia, História e Quotidiano: critérios da transdisciplinaridade possível" in Amélia Aguiar Andrade e José Custódio Vieira da Silva (coord.), Estudos Medievais, Lisboa, Horizonte, 2004, p. 124.

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68

NASCER __________________________________________________________________________________________

porque, sendo por vezes muito jovens, apresentavam uma ossatura deficiente para

essa função, já que os quadris demasiado estreitos e a bacia pouco desenvolvida

deixavam um espaço reduzido para a gestação de um feto em boas condições de

crescimento e mobilidade. No caso de mulheres que já haviam sido protagonistas de

sucessivas gravidezes, levadas ou não a bom termo, a existência de úteros

deformados e tecidos relaxados não propiciariam, também, partos fáceis e/ou bem

sucedidos.

Contudo, não eram só os sofrimentos e a mortalidade associados aos partos

que os tornavam temidos pela sociedade medieval. Conforme reflecte a passagem da

Visão de Túndalo atrás citada, eles também se conotavam com os medos de vir a

gerar crianças deficientes ou monstruosas, cujas anomalias ou deformidades

reflectiriam um castigo divino lançado aos pecados e indignidades cometidas pelos

respectivos progenitores. Na literatura épica e genealógica, encontram-se ficcionados

alguns desses receios. Por um lado, a punição devida a um incesto reflecte-se na

forma negativa como se apresenta um dos cavaleiros mouros que os cristãos teriam

derrotado em Sevilha durante a conquista da cidade, explicando-se como era muito

ancho e muito membrudo e mui negro, e havia entre olho e olho três dedos porque

era filho do rei muçulmano da Tunísia, que o fezera em ũa sua filha e o abandonou

quando veo o tempo de fazer seu parto.59 Por outro lado, numa história medieval

tardia sobre a infância do primeiro rei de Portugal, este é referido como uma criança

que nacera com as pernas tão encolheito que, a parecer de Mestres e de todos,

julgavam que nunca poderia ser são delas, atribuindo-se um tal facto - cujo relato se

destinava a melhor heroicizar a memória de um monarca fundador que se rebelara

contra a progenitora e soubera depois vencer e superar um destino que ela tornara, à

partida, adverso - ao castigo de pecados feitos pelos pais quando ainda estava no

ventre de sa madre. 60

__________________________________________________________________________________________________ 69

59 Livro de Linhagens do conde D. Pedro, I, ed. José Mattoso, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1981, p. 234 (LL,2169). 60 Duarte Galvão, Chronica de El Rei D. Affonso Henriques, Lisboa, I.N.C.M., 1995, p. 21. Veja-se José Mattoso, "João Soares Coelho e a gesta de Egas Moniz" in Portugal medieval. Novas interpretações, Lisboa, I.N.C.M., 1985, pp. 409-435.

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

De resto, a angústia

por um parto difícil bem como

a ansiedade sentida pelas

incertezas relativas tanto à

sobrevivência da mãe e dos

filhos como à sua posterior

saúde e normalidade também

eram responsáveis por várias

devoções e milagres, reflec-

tindo o modo como tais

aflições encontravam no culto

e nas promessas feitas aos

santos uma natural

predisposição. Entre os

intercessores sagrados mais

evocados, conta-se Santa

Margarida de Antioquia, a

Virgem do século III de quem

se contava como se teria liberta- Figura 10 – Santa Marinha (Século XV) O milagre hagiográfico da saída da santa do ventre de umdragão que a devorara, tornou-a, progressivamente,evocada como protectora de um parto seguro.

do do ventre de um dragão que

a devorara, ao rasgar-lhe com

uma cruz a barriga por onde

depois escaparia. De facto, cultuada na Península Ibérica desde o século IX,

Margarida, sob a designação de Marinha, surge muitas vezes como santa padroeira

de inúmeras igrejas medievais portuguesas, sobretudo na diocese bracarense, já que

se tende a apresentar, desde o século XIII, como santa supostamente originária da

antiga cidade de Braga, sendo invocada pelas parturientes para darem à luz com a

mesma facilidade com que ela se libertara do ventre do dragão.61

Para além de Santa Marinha, e da própria Virgem da Expectação a que já

nos referimos, outros santos podiam desempenhar idênticos serviços de intercessão

sagrada, quer por corresponderem a cultos de devoção pessoal, familiar ou regional

______________________________________________________________________________________________

61 Avelino Jesus da Costa, O bispo D. Pedro e a organização da Arquidiocese de Braga, 2ª ed., Braga, Ed. da Irmandade de S. Bento da Porta Aberta, 1997; Rui Maurício, "Santa Margarida" in Sérgio Guimarães de Andrade (dir.), ob. cit., ed. cit., p. 250.

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70

NASCER __________________________________________________________________________________________

da parturiente, quer porque a sua associação à presença de relíquias os tornava mais

desejados e eficazes. De facto, na Lisboa quatrocentista, os livros de milagres da

Nossa Senhora das Virtudes e do beato Nuno Álvares Pereira relatam sucessos e

graças obtidas por parturientes a quem foi possibilitado o contacto com terra da

sepultura ou vestuário outrora pertencente aos intercessores evocados, referindo-se

para o segundo a eficácia encontrada no vestir de uma sua camisa e no colocar de um

seu barrete sobre o ventre.62

Por outro lado, também os tratados médicos hispano-árabes concedem

particular atenção aos cuidados a ter durante o parto. Ao começarem as dores,

aconselhava-se a grávida a caminhar devagar e com intervalos de descanso. Pouco

antes do início do parto, recomendava-se, por sua vez, à parteira - que deveria ser

uma mulher cuidadosa, de modos suaves e com bons conhecimentos, experiência e

instrumentos - fazer sentar a parturiente num cadeirão, de modo a conservar as

pernas suspensas, explicando-se que isso só então deveria ser feito, dado essa

posição ser muito incómoda e cansativa. Depois, durante o parto propriamente dito,

sugere-se a presença, para além da parteira, sentada em frente da grávida e com as

unhas cortadas para melhor apalpar a placenta e receber o bebé, de outras três

mulheres: duas de cada lado da parturiente para a segurar com força, animá-la,

estimulá-la e confortá-la; outra, para, por detrás dela, a apoiar quando se inclinasse

para trás. Por fim, no momento da expulsão da criança, ainda se observa como a

parteira deveria tentar cuidadosamente que a cabeça saísse antes dos membros, ao

mesmo tempo que lhe competia evitar qualquer deformação.63

No que diz respeito às posições utilizadas pelas parturientes para dar à luz,

as fontes revelam-se omissas. Numa escultura românica de um templo do norte rural

encontra-se representado, segundo Jorge Rodrigues, um nascimento em que a mãe se

encontra de pé e amparada por duas outras figuras femininas.64 Contudo, tal não

parece dever interpretar-se como testemunho de uma prática usual ou frequente, já

que, conforme esclarece Pierre-André Sigal, dar à luz de pé apenas figura como

__________________________________________________________________________________________________ 71

62 Respectivamente, Frei João da Póvoa, "Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes", ed. F. Correia, in Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, 3, n.º 1, 1988, p. 20 e Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 551 e 552. 63 El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. cit., pp. 96-106. 64 Jorge Rodrigues, "A escultura românica" in Paulo Pereira (dir.), História da Arte Portuguesa, I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, p. 298.

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excepção entre as muitas imagens por ele recolhidas sobre o parto em diversas

regiões da Cristandade medieval.65 Sendo assim, atendendo a que uma tal postura

das parturientes resulta extremamente dolorosa, talvez a imagem portuguesa se possa

entender como forma de recordar o parto enquanto condição extrema de sofrimento

terreno que o pecado original trouxe à Humanidade.

Figura 11 – Igreja Paroquial de Adeganha (Século XIII) Possível figuração de uma cena de parto, em que a parturiente dá à luz depé, amparada por duas mulheres.

No que diz respeito à iluminura, também se desconhece qualquer

representação da mais comum modalidade da postura medieval das parturientes, ou

seja, a de deitadas. Com efeito, sendo as iluminuras das Cantigas de Santa Maria de

Afonso X, o único repositório iconográfico onde figuram imagens de parto no

contexto da arte medieval galaico-portuguesa chegada até nós, só aí se representam

nascimentos ocorridos de parturientes acocoradas ou sentadas, parecendo esta 65 Pierre-André Sigal, “La grossesse, l’accouchement et l'attitude envers l'enfant mort-né à la fin du Moyen Âge d' après les récits de miracles" in Santé, Médicine et Assistance au Moyen Âge, ed. cit., p. 28.

______________________________________________________________________________________________

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72

NASCER __________________________________________________________________________________________

segunda postura respeitar os

preceitos recomendados pelos

tratados médicos hispano-

-árabes.

__________________________________________________________________________________________________ 73

Quanto às hagio-

grafias e livros de milagres, se

o parto surge várias vezes refe-

renciado, não se encontra

qualquer informação sobre a

forma de como teria ocorrido,

limitando-se tais textos a

mencionar a presença junto da

grávida de comadres,66 vizi-

nhas que a acompanhavaõ,67

mulheres que com ella esta-

vaõ 68 e, ocasionalmente, a

parteira. Neste sentido, parece, Figura 12 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) Representação de um nascimento em que a mãe seencontra de joelhos.

então, verificarem-se as prescri-

ções recomendadas nas Siete

Partidas de Afonso X, ou seja,

as que interditam aos homens a permanência durante o acto do parto e as que

aconselhavam a presença de parteiras, mulheres e serviçais, se bem que o rei, ao ter

em mente os nascimentos da corte régia, se refira ao excepcional número de duas

mulheres sabedoras que sean usadas de ayudar a las mujeres cuando paren.69

Na corte portuguesa temos notícia, pela primeira vez, da utilização de uma

parteira entre as servidores da rainha Leonor de Aragão, a mulher do rei Duarte.70

66 Frei Luís de Sousa, "S. Frei Gil" in ob. cit., ed. cit., pp. 241-242. 67 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 491. 68 Id., ibidem, p. 551. 69 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey cotejadas con varios códices antiguos, Madrid, Real Academia de la Historia, 1807, (Título 6, Lei 17). 70 Rita Costa Gomes, A corte dos reis de Portugal nos finais da Idade Média, Lisboa, Difel, 1995, p. 57.

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te funcionava

A presença de um médico à cabeceira da parturiente muito raramente se

deveria verificar. Por um lado, porque, por razões de pudor, estes eram assuntos só

de mulheres. Por outro, porque, sendo o seu número pouco elevado, se tendiam a

concentrar nos principais centros populacionais do reino. 71 O trabalho de parto era,

assim, um acontecimento privado e doméstico. Participado por uma comunidade

feminina, apresentava-

-se como um momen-

to de convivialidade

entre as mulheres da

casa, as familiares, as

vizinhas e a “coma-

dre”, ou seja, uma

mulher mais velha e

mais experiente que,

pela prática, se tornara

parteira. De uma for-

ma geral, a presen-

ça de todas estas mu-

lheres junto da par-

turien

como um encorajamen- Figura 13 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) Representação de um parto em que a mãe dá à luz sentada.

to à futura mãe, fazen-

do-a sentir-se menos

solitária naquele momento de dúvida e de dor. De qualquer das formas, ao

aproximar-se esse momento, ela debater-se-ia, por certo, com uma pluralidade de

sentimentos, onde, a par do medo, da ansiedade, da angústia, do arrependimento e do

desespero, também teriam lugar a esperança e o amor. Dar à luz não era apenas

sinónimo de dor e de sacrifício.72

71 No estudo feito por Iria Gonçalves sobre as cartas de exame atribuídas a físicos e cirurgiões quatrocentistas, concluiu-se que só Lisboa detinha mais de 14,5% do total dos clínicos examinados, reunindo Évora, Porto, Beja, Coimbra, Santarém e Covilhã metade dos médicos em causa. – “Físicos e cirurgiões quatrocentistas” in Imagens do Mundo Medieval, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p. 21. 72 Consultem-se: Yvonne Knibiehler e Catherine Fouquet, L’Histoire des mères du moyen âge à nos jours, Paris, Ed. Montalba, 1980, p. 76; Jacques Gélis, Mireille Laget e Marie-France Morel, Entrer dans la vie. Naissances et enfances dans la France tradicionelle, Paris, Gallimard/Julliard, 1978, particularmente as pp. 88-89.

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74

NASCER __________________________________________________________________________________________

Em todo este processo, competia às parteiras um papel importante e

decisivo. Nos livros de milagres, elas são mencionadas na qualidade de peritas na

avaliação das complicações surgidas de um mau parto. A parteira que lhe assistia

desconfiara della poder ter vida, ou a parteira a desenganara, são exemplos da

visibilidade dessa função.73 A sua formação médica seria decerto rudimentar,

valendo-lhes, sobretudo, o vasto repertório de conhecimentos e técnicas que a

experiência e a tradição lhes ensinara. Contudo, o facto de alguns tratados de

obstetrícia incluírem instruções especificacamente dedicadas às parteiras, assim

como muitas ilustrações das diversas posições em que se podia encontrar o feto à

nascença, leva a supor que algumas pudessem ter sido letradas, ou, pelo

menos, capazes de ler.

Com efeito, de acordo com alguns manuais de gestação de fetos, chegam a

referir-se as parteiras como mais aptas para lidar com partos difíceis e complicados

do que alguns médicos letrados a quem faltava prática e discernimento.74 É certo, no

entanto, que os meios de que dispunham eram muito limitados, sendo-lhes

desconhecida a prática de intervenções hoje tão correntes como a episiotomia, a

utilização de medicação para fazer aumentar as contracções ou a utilização de

fórceps.

Mesmo assim, as parteiras conseguiam desenvolver procedimentos bem

sucedidos no que se refere à resolução das dificuldades que o frio ou o calor

excessivos podiam trazer ao trabalho de parto. Com efeito, conforme indicam os

tratados médicos hispano-árabes, era a elas que competia evitar o frio ou o calor

excessivos que prejudicavam os nascimentos, devendo providenciar à parturiente

quartos quentes ou frescos, assim como, no primeiro caso, friccionar o peito e os

membros da grávida depois de acender um lume na sala, e, relativamente à segunda

situação, aspergir com água fria a futura mãe.75

__________________________________________________________________________________________________ 75

73 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., respectivamente, p. 551 e p. 552. 74 Veja-se Sylvie Laurent, ob. cit., ed. cit., p. 173. 75 Para tudo isto, veja-se El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. cit., pp. 98-102.

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Figura 14 – Iluminuras. Colecção de tratados médicos. (Século XIII) As imagens das más posições dos fetos enquanto auxiliares das profissionais dos partos.

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NASCER __________________________________________________________________________________________

As complicações do parto relativas ao estado da grávida eram, no entanto,

mais difíceis de resolver. De uma forma geral, resultavam das fortes dores

provocadas pelo prolongamento do parto, relacionando-se, quer com problemas do

foro psicológico, originados por depressões ou excessiva angústia, quer com a

existência de deficientes condições físico-anatómicas, fossem as decorrentes de uma

demasiada gordura, fossem as suscitadas pela estreiteza do canal uterino. Esta última

situação foi, por exemplo, mencionada a propósito do milagre propiciado pelo beato

Nuno Álvares Pereira a uma mulher que não podia parir por estar muito apertada.76

Nas memórias escritas durante o século XII pelo abade francês Gilberto de

Nogent, encontra-se uma desenvolvida evocação literária de todos estes problemas.

Com efeito, nelas se relatam, com surpreendente pormenor, as dores intensas e

prolongadas sofridas pela mãe antes de ele nascer, contando-se como se haviam

manifestado durante todo o período da Quaresma e depois acentuado por alturas do

parto, já que Gilberto se teria “recusado” a sair do ventre materno para não se separar

da progenitora. De resto, teria sido o desejo de se penitenciar pela prática de um acto

que só não provocara a sua morte e a da mãe por manifesta intervenção divina que se

apresenta como justificação para o relato confessional da ocorrência.77

Nos livros de milagres medievais portugueses também se encontram

referências a parturientes que após vários dias de sofrimento ficavam exaustas e sem

forças para conseguir provocar o nascimento dos filhos. No caso de um milagre

proporcionado por Nossa Senhora das Virtudes, atribui-se à terra da santa a

capacidade de sem nenhuu perijgo ter feito parir huu filho baram a uma mulher com

dores de parto há vários dias.78 Por sua vez, entre os milagres atribuídos a S. Frei Gil

relata-se, entre outros, como após três dias inteiros com dores de parto contínuas,

uma grávida, cujos gritos eram tão lastimosos que as Comadres a davão por morta,

encontrara a ajuda que logo lhe deu alívio, e forças, e hora boa, que a fez mãi de hum

filho.79 Por fim, também se credita à intercessão de Nuno Álvares Pereira a graça do

rápido e bem sucedido nascimento da criança de uma mulher cujo parto muito

__________________________________________________________________________________________________ 77

76 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 551. 77 Yves Ferroul, " Devenir adulte. L’exemple de Guibert de Nogent " in Éducation, Apprentissages, Initiation au Moyen Age, Actes du Premier Colloque International de Montpellier, Université Paul Valéry, 1991, pp. 160-161. 78 Frei João da Póvoa, "Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes", ob. cit., ed. cit., p. 19. 79 Frei Luís de Sousa, "S. Frei Gil" in ob. cit., ed. cit., pp. 241-242.

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demorado fizera pensar às mulheres que com ella estavaõ, que em breves horas

daria a alma a Deos. 80

Quanto às complicações a enfrentar pelas parteiras relativamente à saúde

das crianças que faziam nascer, as mais temidas relacionavam-se com a deficiente

posição do feto no momento do parto. Nesse sentido, revela-se bastante significativo

o caso acontecido a Beatriz Álvares, de Lisboa, quando, depois de ter a criança

atravessada em o corpo de tal maneira que a parteira pensara que morria, e lhe

dissera que despuzesse de sua alma com toda a brevidade, invocou o beato Nuno

Álvares Pereira e logo de improviso a criança dera dentro do ventre huma volta, e a

parira viva.81

Em tais situações, os manuais de medicina recordavam como as parteiras

deveriam ser prudentes e dotadas de grande experiência, ao mesmo tempo que lhes

sugeriam diversas indicações sobre a maneira de lidar com as várias posições

tomadas pelo bebé ao nascer. Assim, se confiavam nas “comadres” para

desenvolverem as operações destinadas a puxar o mais rapidamente possível a

criança do ventre da mãe, aconselhavam-nas a obrigar o bebé a tomar a posição

conveniente, indicando-lhes como, ao mesmo tempo que deviam tratar cui-

dadosamente a parte do corpo já saída, teriam de manobrar de uma forma suave e

cuidadosa dentro do útero da progenitora, para que, com gestos precisos, e nos

momentos das dores, tentassem rodar o feto e lhe ajeitassem o corpo, dado ser

frequente terminarem os partos difíceis, ou com fetos decepados e arrancados à

força, ou com crianças mortas no ventre das mães.

Nos milagres de Nuno Álvares Pereira encontram-se várias referências às

tragédias ocorridas com os fetos e os recém-nascidos. Os nados mortos, tanto se

encontram registados a propósito do auxílio prestado pelo beato a uma mulher que

lhe prometera, através do marido, romaria e missa para se livrar do filho sem vida

que trazia no ventre, como no contexto do milagre em que uma das suas devotas, ao

vestir uma camisa que outrora pertencera ao antigo condestável do reino, teria obtido

a graça de ver sair das suas entranhas a criança que se desconfiara della poder ter

vida.82 Por outro lado, a expulsão de fetos despedaçados por se encontrarem em más

posições na altura do nascimento figuram nas histórias de dois milagres obtidos pelo

______________________________________________________________________________________________

80 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 551. 81 Id., ibidem, p. 552. 82 Id., ibidem, pp. 551-552.

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NASCER __________________________________________________________________________________________

contacto das relíquias do santo com o ventre de mulheres acidentadas durante o

parto; assim, atribui-se à que utilizou o barrete usado em vida pelo condestável a

graça da expulsão dos restos de um bebé morto ao dar à luz, por ter ficado

atravessado e só dele ter saído um braço e uma perna, enquanto a que usou a terra da

sepultura do beato Nuno logo teria expelido a criança partida pelo meyo do

espinhaço.83

Para além dos casos de morte, os partos acidentados também eram

responsáveis pelo nascimento de crianças depois atingidas por sérios problemas de

saúde e mesmo por deformações físico-anatómicas.84 Em relação à primeira situação

podemos referir, a título de exemplo, o caso do infante Fernando, o Infante Santo,

que, após um parto complicado de uma mãe muito debilitada,

trouve de sseu naçimento grandes doenças e muy aficadas. E todo o coiro

do corpo se lhe esfolou em tamanhos pedaços, que o coiro da mãao saya

todo inteiro como se fose luva e em toda sua vida teve conthinuadamente

door de coraçom. 85

Quanto às deformações físicas, podemos citar o caso de Afonso Martins,

alfaiate de profissão, que era

priuado da perna derreita per nascença porque tall nasçera do ventre da

sua madre.86

Contudo, de acordo com os tratados médicos hispano-árabes, as

deformidades físicas das crianças eram, em grande parte, atribuídas a problemas

ocorridos durante a gravidez, responsabilizando-se as mães, e não tanto as

"comadres", já que geralmente eram entendidas como consequências de um útero

mal constituído. Nesse sentido, se a criança nascia com os membros retorcidos, tal

__________________________________________________________________________________________________ 79

83 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 551-553. 84 De facto, nos relatos dos livros de milagres sobre várias doenças curadas pela intercessão dos santos referem-se muitos casos de males presentes desde o nascimento, indicando, desse modo, possíveis sequelas de traumatismos provocadas pelo parto. Retomaremos o assunto. 85 Frei João Álvares, "Trautado da vida e feitos do muito vertuoso Sor Ifante D. Fernando", Obras, vol. I, ed. Adelino de Almeida Calado, Coimbra, 1960, p. 8. 86 Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, III, ed. Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2002, p. 81.

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dever-se-ia ao facto de ser um mau produto de um molde deformado que impedira o

correcto desenvolvimento do sémen masculino.87

No entanto, perante a alternativa de os acidentes do parto poderem fazer

perigar a vida da mãe ou a do bebé, tudo leva a crer, embora não existam

informações concretas e específicas nas fontes analisadas, que se optaria pela

salvação da progenitora. Por um lado, porque a multiplicidade dos factores de risco

trazidos à criança pela rudimentaridade das técnicas obstétricas então utilizadas não

tornava fácil a sobrevivência de um bebé atravessado no útero da mãe ao nascer,

havendo poucas hipóteses de a salvar por via de um recuo intra-uterino destinado a

corrigir-lhe a posição de saída. Por outro lado, porque essa realidade tornava mais

valiosa a salvação da vida da parturiente, possivelmente com outros filhos para criar

e ainda capaz de novas gravidezes. Contudo, perante a eminência de um parto

funesto para a mãe, extrair o filho ainda vivo e baptizá-lo era considerada uma tarefa

prioritária, pois, caso a criança não sobrevivesse, poderia morrer cristã e aguardar no

limbo a salvação. Importava, sobretudo, preservar a alma de um novo ser, torná-lo

cristão e evitar que fosse enterrado dentro do ventre da mãe. Perante a dificuldade ou

a inviabilidade do parto normal, poderia recorrer-se a uma cesariana, se bem que as

dificuldades técnicas então inerentes a uma tal intervenção cirúrgica tendessem a

torná-la duvidosa, visto sujeitarem a parturiente a um sofrimento atroz que não trazia

garantias à sobrevivência da criança.

Realizadas desde a Antiguidade, as cesarianas encontravam-se reco-

mendadas na lei judaica e tinham sido objecto de especial regulamentação através da

Lex Regia durante a época romana. No entanto, teriam caído em desuso durante a

Alta Idade Média ocidental. De facto, é preciso esperar pelos finais do século XII

para que as cesarianas voltem a figurar na jurisprudência europeia. É a partir de então

que o direito canónico as passa a considerar enquanto meio destinado a permitir a

salvação das crianças cujas mães faleciam durante os partos, ou seja, numa

modalidade post mortem que fosse capaz de viabilizar o baptismo dos filhos assim

nascidos, mesmo que fossem muito ténues as suas hipóteses de sobrevivência. Na

verdade, é neste sentido que as cesarianas começam a ser aconselhadas nas

______________________________________________________________________________________________

87 El libro de la generatión del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Arib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. cit., p. 82.

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NASCER __________________________________________________________________________________________

deliberações tomadas em vários concílios, em simultâneo com as primeiras

abordagens nos tratados médicos produzidos nos primórdios do século XIII.88

Em Portugal, a prática de cesarianas não se encontra documentada, nem

mesmo através dos resultados dos estudos paleobiológicos feitos a partir dos fetos

sepultados em vários cemitérios medievais. O único testemunho indirecto de uma sua

concretização reside no possível sentido da alcunha registada pelo Livro de

Linhagens do conde D. Pedro relativamente a um dos fundadores da nobreza

portuguesa, o infanção Guiçoi, ou Vizoi, de onde descendem os senhores de Sousa,

ou seja, a alcunha de Nomnado, tal podendo, ao significar "não nado" ou "não

nascido", constituir uma alusão a um nascimento artificialmente provocado por

cesariana.89 De resto, só uma das iluminuras das Cantigas de Santa Maria de Afonso

X, comporta uma representação explícita de uma cena de cesariana, embora ocorrida

textualmente fora do espaço português.

__________________________________________________________________________________________________ 81

88 Pierre-André Sigal, “La grossesse, l'accouchement et l'attitude envers l'enfant mort-né à la fin du Moyen Âge d'après les récits de miracles" in ob.. cit., ed. cit., pp. 33-34. As cesarianas realizadas em mães vivas apenas tiveram início no século XVI, sendo encaradas com muito cepticismo e geralmente consideradas como “absurdas, inacreditáves e inúteis”: Henrietta Leyser, ob. cit., ed. cit., p. 127. Ao que parece, a primeira cesariana feita em mulher viva ocorreu em França, em 1500, tendo sido realizada por um capador na sua própria mulher: Jacques Gélis, Mireille Laget e Marie-France Morel, ob. cit., ed. cit., p. 98. 89 Livro de Linhagens do conde D. Pedro, ed. cit., p. 207 (22 A3). Sobre Guiçoi ou Vizoi de Sousa, veja-se José Mattoso, Ricos-homens, infanções e cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII, Lisboa, Guimarães Editores, 1985, p. 47.

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

Figura 15 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) Representação de uma cesariana.

O papel e a responsabilidade das parteiras eram essenciais para a decisão e

aplicação de uma cesariana. Antes de mais, competia-lhes avaliar a efectiva morte da

parturiente e estarem munidas dos meios e dos conhecimentos necessários ao muito

provável baptismo das crianças que não sobreviveriam à cesariana ou morreriam

pouco depois de ela ter sido realizada, sendo, portanto, exigido às "comadres" que,

para além de sempre terem perto de si um recipiente com água limpa para efectuar a

cerimónia da iniciação cristã dos bebés ainda vivos, soubessem as fórmulas e os

rituais correctos a utilizar nessa ocasião. Depois, era também nelas que recaía a

responsabilidade da escolha do momento oportuno para realizar a cesariana, já que a

sua eficácia, ou seja, a possibilidade de salvar a criança, estava dependente da

ocorrência de um curto intervalo de tempo entre a verificação da morte da mãe e a

realização da intervenção cirúrgica.

______________________________________________________________________________________________

Ora este último preceito não era fácil de cumprir, dado que os partos

difíceis se arrastavam por vários dias, até se esgotarem as forças e a vontade das

parturientes por entre sucessivos episódios de exaustão e perda da consciência,

sendo, portanto, complicado avaliar o exacto momento da morte da grávida. Por

isso, quando tardava uma tal verificação, as "comadres" corriam o risco de ver a

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

82

NASCER __________________________________________________________________________________________

criança regressar ao interior do útero materno e nele acabar sepultado sem que uma

cesariana pudesse vir a ser praticada, permitindo ao bebé viver o suficiente para ser

baptizado e enterrado em lugar sagrado, uma vez que se excluíam dos cemitérios

todos os que não tinham sido iniciados na vida e na crença cristãs.

No seu conjunto, as opções tomadas pelas parteiras no exercício do seu

ofício, podiam vir a ser matéria de acusação em justiça. Acabara por baptizar uma

criança já morta para lhe assegurar a sepultura em lugar sagrado ou, pelo contrário,

não lhe administrara esse sacramento a tempo? Pactuara em fraudes ao testemunhar

um nascimento proveniente de uma mãe infértil? Em suma, toda uma série de

questões bem justificativas do crescente interesse manifestado pelos letrados e pelos

clérigos no treino e instrução das parteiras.90

Os partos medievais, associados a sofrimento, morte e sequelas físicas ou

doenças crónicas, encontram-se bem presentes nas fontes narrativas disponíveis, em

grande parte de origem clerical. Contudo, as dores e as angústias que elas revelam,

sobretudo através dos relatos dos livros de milagres, não se limitam a registar meras

realidades sociais. Cumprem igualmente a função pedagógica e catequética de

instruir os crentes.

No fundo, todas essas histórias contribuíam para apresentar a maternidade

enquanto momento privilegiado para recordar aos fiéis, a quem a incerteza do

desfecho dos partos suspendia a manifestação das alegrias da procriação, a sua

condição terrena de pecadores condenados à expiação dos antigos erros, devendo

penar corporalmente para redimir e purificar as almas. Nesse sentido, a insistência

nos relatos sobre as dores e os tormentos dos partos também se destinava a lembrar

como a sobrevivência das mães e dos recém-nascidos dependia da fé e da devoção

penitenciais postas na misericordiosa intercessão dos santos, a eles se devendo a

graça da sua salvação corporal e espiritual.

A concepção de que os sofrimentos da maternidade simbolizavam um

sacrifício que redimia o gozo e o prazer corporais praticados pela Humanidade

procriadora, foi, sobretudo, desenvolvida nas tradições judaicas. De acordo com o

__________________________________________________________________________________________________ 83

90 Num manual inglês do século XV dedicado à instrução dos párocos, aconselhava-se o seguinte: And if the woman then should die/ Teach the midwife that she hurry/ For to undo her with a knife/ In order to save the child’s life/ And hurry that it christened be/ For that is a deed of charity: Henrietta Leyser, ob. cit., ed. cit., p. 127.

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

Levítico,91 o dar à luz, conotado com o corpo, o sangue e por vezes a própria morte,

remetia para um acto impuro que sujeitava as mulheres a um ritual de purificação no

período após o parto, não devendo entrar nos templos antes de decorrerem trinta e

três dias após o nascimento de um filho ou sessenta e seis, no caso de uma filha.

Entre os cristãos, sobretudo depois de Gregório Magno ter contribuído

doutrinariamente para a desvalorização do cumprimento dos interditos femininos do

pós-parto, uma tal concepção não conheceu a mesma aceitação, conforme o

testemunha o facto de o Decreto de Graciano silenciar qualquer referência a um

prazo a ser respeitado pelas novas mães para se integrarem plenamente nas

cerimónias eclesiásticas. Tal não implica, contudo, que se tenham perdido algumas

dessas tradições judaicas, já que o papa Inocêncio III produziu uma bula destinada a

permitir que as pós-parturientes pudessem não ser censuradas por não assistirem

durante algum tempo aos rituais litúrgicos praticados nas igrejas da Cristandade. 92

De resto, na versão portuguesa da hagiografia de Isabel da Hungria relatam-

-se algumas práticas que parecem decorrer das influências judaicas sobre a expiação

feminina das impurezas do parto, contando-se como a santa prescindia das jóias e

dos vestidos de tecidos luxuosos depois dos seus partos, sobretudo quando começava

a visitar as igrejas do reino para, humilde e modestamente, se purificar das suas

sucessivas maternidades.93 Para além disso, a própria comunidade cristã Ocidental

não deixava de comemorar anualmente a Apresentação de Jesus ao Templo,

recordando como aí fora conduzido pela mãe, quarenta dias após o seu nascimento.

É certo, no entanto, que a concepção sacrificial e penitencial da maternidade

começou a ser substituída por uma concepção redentoramente positiva a partir do

século XII, ao mesmo tempo que se difundia o culto da mãe de Cristo por via das

devoções às Virgens da Anunciação, Expectação, Leite e Natividade.94 De facto, ao

celebrarem as diversas fases da maternidade de Nossa Senhora, todas estas devoções

acabaram por consagrar a possibilidade da existência de uma gravidez concebida fora

______________________________________________________________________________________________

91 Levítico, 12:1-8 , Antigo Testamento in Bíblia Sagrada, em Português, ed. cit. 92 Consultem-se: Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe-XIIIe siècle), Paris, Aubier, 1997, p. 261, Ronald C. Finucane, The Rescue of the Innocents Endangered Children in Medieval Miracles, Nova Iorque, St. Martin's Press, 2000, p. 37. 93 'Da sancta e muy piedosa molher Elisabeth, filha d’el Rey de Ungria' in "Adições Portuguesas no Flos Sanctorum de 1513", ed. Cristina Sobral, ob. cit., ed. cit., p. 599, notas 106-107. 94 Mário Barroca, "A escultura gótica" e "Ourivesaria e Eborária" in Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Barroca, História da Arte em Portugal. O gótico, Lisboa, Presença, 2002, pp. 157--246, 247-275.

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de qualquer prazer carnal e de um parto isento de dores e sofrimentos expiatórios.

Neste sentido, as filhas medievais de Eva não só encontraram uma mais solidária e

eficaz intercessora para a obtenção de um nascimento feliz, como nela passaram a

projectar a imagem de uma menos angustiada e atribulada maternidade.

Os temas e os motivos utilizados nas representações das Natividades

portuguesas da Baixa Idade Média testemunham essa mutação.95 Por um lado, a

Virgem do Presépio reproduz a imagem de uma mãe serena e segura, sem qualquer

sinal de fadiga ou cansaço. Por outro, a paternidade de José ganha protagonismo

iconográfico, embora de acordo com o princípio que interditava aos homens a

presença no momento do parto. Com efeito, José, ora surge adormecido, ora se

apresenta como alguém que, com uma luz na mão, acaba de chegar para contemplar,

na noite do nascimento de Cristo, o filho e a mulher. Depois, quer a sumptuosidade

do cenário quer o valor real ou simbólico dos objectos e seres representados,

conjugam-se para fornecer ao momento as marcas de um acontecimento familiar,

cerimonialmente ordenado e jubiloso.

__________________________________________________________________________________________________ 85

95 Cf. Carlos Alberto Ferreira de Almeida, O Presépio na Arte Medieval, Porto, Instituto de História de Arte, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1983.

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Figura 16 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) O precioso leito da Virgem e o cenário que domina esta figuração do Presépio, contribuem paraque a cena se apresente como uma anacrónica imagem familiar urbana do nascimento de Cristo.

Figura 17 – Igreja da Nossa Senhora da Oliveira, Guimarães (Século XIV) As figurações pictóricas da Natividade eram muito frequentes na decoração dos Templos da Baixa Idade Média, embora hoje restem poucos exemplares.

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Figura 18 – Túmulo deInês de Castro (Século XIV) A recordação dos fe-lizes tempos familiaresde Pedro e Inêsencontra-se iconogra-ficamente inspirada nascenas da Natividade.

Figura 19 – Tríptico da Natividade da Colegiada de Guimarães - pormenor (Século XV) Colocado sobre o ventre da mãe, o sorridente Menino Jesus parece protagonizar um parto cujafacilidade e rapidez não perturbou o sono de José ou a espera sossegada de Maria.

__________________________________________________________________________________________________ 87

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5 – A CONTRACEPÇÃO

Segundo uma das hagiografias medievais de Senhorinha de Basto, uma mãe

e uma filha ter-se-iam dirigido ao templo onde repousava a Santa para obterem

distintos milagres. A filha, estéril, implorava fecundidade. A mãe, abalada por uma

multiplicidade de partos, rogava para não continuar a conceber.96 Um tal relato

coloca-nos perante a existência de duas atitudes femininas face à maternidade: as que

a concebiam como desejada ou indesejada, sendo a segunda bastante difícil de

avaliar em termos de representatividade, já que, para além de, tal como a primeira,

permanecer um assunto de mulheres numa sociedade em que eram maioritariamente

iletradas, era considerada negativa e criminosa pela moral judaico cristã dominante.

Antes dos anos sessenta, os próprios historiadores nem sequer colocavam a hipótese

de uma presença significativa de práticas contraceptivas na sociedade do Ocidente

medieval europeu, já que a ainda hoje unânime consideração da existência de muito

baixas taxas de reprodução, era quase sempre atribuída ao peso de uma elevada

mortalidade infantil. Normam Himes, por exemplo, na sua hoje já clássica obra A

Medical History of Contraception, nem chegou a deter-se no caso medieval porque

considerava a sociedade desse tempo totalmente avessa a uma prática descrita como

desnecessária, visto que a guerra, a fome e as grandes calamidades tanto tornariam

bem vindos os filhos a utilizar enquanto mão-de-obra barata como pouco incitariam a

que fossem favorecidas as necessidades ou os usos reivindicados pelas mulheres para

controlar a procriação.97

A questão revela-se, hoje, bem mais complexa. Antes de mais, porque os

próprios interditos sexuais consagrados pelos livros penitenciais medievos podem ser

considerados como prescrições morais que, na prática, favoreciam a contracepção.

Com efeito, quando se encontra na tradução portuguesa do Penitencial do canonista

leonês Martin Perez as recomendações, sob pena de pecado, de que os esposos se

devem abster de relações sexuais

desde XX dias ante de Natal adeante, atáa o cabo

del, domingos ou en nas festas dos apostolos ou em nas outras festas

______________________________________________________________________________________________

96 "Vida da Bem Aventurada Virgem Senhorinha", ed. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, in Vida e Milagres de S. Rosendo, Porto, 1970, p. 145. 97 Veja-se Philippe Ariès, "Interprétation pour une histoire des mentalités" in La Prévention des Naissances dans la Famille, Institut National d’Études Démographiques, Travaux et Documents 35, Paris, 1960, pp. 211-227.

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mayores ou en qual quer dia de jajuneum da eigreja ordenado

e ainda durante todo o período da Quaresma, não se trata apenas de aí verificar a

consagração, à semelhança do ocorrido em todos os penitenciais medievais europeus,

da vontade clerical de limitar a achegança entre esposos para lhes fazer evitar

práticas moralmente condenáveis.98 De facto, como reconheceu Jean-Louis

Flandrin,99 tais imperativos acabaram por funcionar como um dispositivo regulador

da natalidade, visto a sua maior ou menor aceitação, conforme estivessem, ou não,

individualmente presentes o medo e a angústia de cair em práticas consideradas

pecaminosas, lhes permitir actuar enquanto meio de contracepção natural. Uma

função semelhante podia ser percepcionada pelo respeito do interdito dos contactos

com o sangue menstrual, tendo em conta a enumeração dos muitos malefícios que

lhe haviam sido atribuídos desde a Antiguidade judaico-clássica, conforme foi depois

sistematizado pelo enciclopedista Isidoro de Sevilha e até mesmo acrescentado pelas

diversas tradições regionais do Ocidente medieval cristão. Com efeito, se se atribuía

ao sangue menstrual o azedar do vinho novo, a infertilidade dos campos, a queda

dos frutos das árvores, a não germinação dos cereais, a morte das abelhas nas

colmeias, o enferrujamento do ferro, o escurecimento dos objectos de bronze e até a

raiva nos cães que o lambiam, um tal conjunto de males seria certamente dissuasor

para a concretização de práticas sexuais nos dias em que as mulheres se encontravam

menstruadas, tanto mais quanto se defendia que elas podiam gerar crianças ruivas e

tendencialmente leprosas, dado o esforço desenvolvido pelos fetos para se purgarem

do sangue menstrual materno que estaria contido nos seus membros porosos.100

Assim, nos tratados de confissão era condenado como pecado de luxúria o marido

que cõcebera sua molher quando ela era mesturosa ciinte mẽte.101

Quanto a práticas contraceptivas mais directas, como o coitus interruptus ou

a ingestão de ervas espermicidas ou abortivas, conforme Le Roy Ladurie pode

referenciar na aldeia medieval pirenaica de Montaillou,102 ou que se indicavam

__________________________________________________________________________________________________ 89

98 O Penitencial de Martim Pérez em Medievo-Português, ed. cit., pp. 43-45. 99 Jean-Louis Flandrin, L'Eglise et le contrôle des naissances, Paris, Flammarion, 1970; Le sexe et l'Occident. Évolution des attitudes et des comportements, Paris, Seuil, 1981; Un Temps pour Embrasser: Aux Origines de la Morale Sexuelle Occidentale (VIe - XIe siècle), Paris, Seuil, 1983. 100 Consultem-se: Henrietta Leyser e Claude Thomasset, obs. cits., eds. cits., respectivamente p. 97 e pp. 92-93. 101 Tratado de Confissom (Chaves, 8 de Agosto de 1481), ed. cit., p. 204. 102 Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou Cátaros e católicos numa aldeia occitana 1294-1324, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 268.

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em vários tratados médicos hispano-árabes, como os de Avicena,103 as fontes

portuguesas permanecem silenciosas. A menos que a elas aluda a condenação

decretada no sínodo diocesano celebrado em Lisboa no ano de 1403, de todos

aquelles que fazem algua coussa pera a molher nom emprenhar.104 Restam, contudo,

as vinte e sete receitas indicadas pelo médico e papa português Pedro Hispano para a

sufocação do desejo erótico e as vinte e seis que permitiam impedir a concepção

quando a mulher não quiser conceber, talvez porque tema morrer ou por qualquer

outra razão. No seu conjunto, insistem nas virtudes terapêuticas, quer de produtos

animais, como refere a sugestão de comer uma abelha, trazer junto ao corpo bocados

de orelha ou pele de mula e excrementos de elefante, ou a de nele aplicar tentáculos

de lesma, quer vegetais, no caso das recomendações de atar ao corpo raiz de

pimpinela, beber folhas de choupo ou untar-se com suco de hortelã, e ainda minerais,

como trazer consigo uma pedra de azeviche, ou, simplesmente, beber ferrugem.105

Por seu lado, a cronística também se refere a práticas em que a farmacopeia

se alia à magia para dificultar ou impedir nascimentos. Nesse sentido, registam-se

feitiços conjurados nos aposentos femininos. É esse, com efeito, o significado da

menção ao episódio em que se conta como Leonor Nunes de Gusmão, a manceba de

Afonso XI de Castela, teria tentado provocar, através de feytiços e diabolyco

emcamtamento, a morte da soberana legítima, a portuguesa Maria Afonso, no

momento do respectivo parto, já que nom paryndo a Rainha, terya esperamça de

reynar cada hum de seus filhos.106

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103 No Canon de Avicena citam-se na qualidade de substâncias contraceptivas, o óleo de cedro, o mentol, a maçã reineta, o manjericão doce, a romã, o alúmen, o salgueiro, a pimenta e a couve, a tomar por ingestão, infusão ou supositórios vaginais: Angus Mclaren, "A procriação na Idade Média” in ob. cit., ed. cit., pp. 115-147. 104 Synodicon Hispanum,II – Portugal, ed. Francisco Cautelar Rodriguez, Avelino de Jesus da Costa, Antonio Garcia Y Garcia, Antonio Gutierrez Rodriguez, Isaías da Rocha Pereira, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1982, p. 321. 105 Pedro Hispano, Obras Médicas, ed. cit., respectivamente pp. 238-242 e 258-260. 106 Rui de Pina, “Chronica D’El-Rei D. Affonso IV” in Crónicas, ed. cit., pp. 347-348. Veja-se também a Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, II, ed. C. Silva Tarouca, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1952-1953, p. 158. Sobre o contexto histórico em que teriam decorrido estes feitiços, consulte-se Ana Rodrigues Oliveira, As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (sécs. XII a XIV), Patrimonia Histórica, Cascais, 2000, pp. 81-82 e 213-215.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

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6 - O ABORTO

Mais próximo de uma situação abortiva do que contraceptiva, o exemplo da

acção atribuída a Leonor Nunes de Gusmão, remete-nos para o certamente mais

frequente domínio das práticas de interrupção voluntária da gravidez, visto não ser

então fácil qualquer actuação impeditiva da procriação antes de uma adiantada fase

de gestação do feto. Com efeito, era bastante complicado obter um diagnóstico de

gravidez precoce minimamente seguro na sociedade medieval. De facto, uma tal

verificação ficava quase sempre confiada à própria grávida, que apenas a conseguia

diagnosticar quando o feto se mexia pela primeira vez, ou seja, quando a gestação já

se encontrava bastante adiantada. Por outro lado, mesmo que ela confiasse a uma

parteira ou a um médico o exame do colo do seu útero, só quando a barriga já se

encontrava proeminente é que o diagnóstico era seguro, embora já tardio para evitar

uma intervenção abortiva que, a concretizar-se, acrescia, certamente, o perigo em que

a grávida incorria ao provocar o aborto.107

Mesmo assim, o aborto não deixava de ser clinicamente recomendado e

decerto praticado quando a gravidez colocava a mãe em risco de vida.108 É, pelo

menos essa a situação referida por Frei João Álvares quando relata como a rainha

Filipa de Lencastre podia enfrentar a morte durante o parto do infante Fernando, o

Infante Santo. Segundo o seu testemunho,

ao tenpo do conçebimento deste Ifante, seendo a Rainha muito enferma de

febre e em desposiçom tam fraca que, per rega de fisica, nom foy achad

o remedio per que ela sem mortal periigo podese parir, ffoy acordado que

lhe desem beverajem pera mover, com a qual ainda sua salvaçom era

dovidosa. E ao tenpo que lhe avia de seer dada, declarando lhe todo esto

elrey seu marido, a muito vertuosa Rainha na morte do conçebido filho nom

quis outorgar, dizendo assy: “Senhor, nom queira Deus que, onde eu em

alguu caso nom consentira de seer omiçida, agora o queira seer de minha

propria carne. E mays vos digo que, por viver o filho, eu averia minha

morte por bem empregada. E quando a Deus aprouver, com o filho moura a

madre, moormente que Deus he poderoso pera anbos dar vida se sua

__________________________________________________________________________________________________ 91

107 Cf. Claudia Opitz, "O quotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500)" in ob. cit., ed. cit., p. 386. 108 A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, ed. cit., p. 101.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

merçee for, no qual eu tenho esperança per mereçimentos do lenho da santa

cruz em que ele padeçeu por nos remiir, que a sua redençom aproveitará a

esta criatura, que nom pereça ante de reçeber bautismo”. E entendeu elRey

ser bõo e santo proposito, lançou em tera o enxarope que na maõ tiinha

pera lhe dar a bever.109

No Tesouro dos Pobres Pedro Hispano não menciona receitas

explicitamente destinadas a provocar o aborto. Contudo, nas trinta poções que regista

para induzir ao aparecimento da menstruação, algumas não deixariam também de ser

aconselháveis para esse efeito, como a que aconselha a beberragem da semente da

açucena, ou da sua raiz, depois de triturada em azeite e cozida nas brasas, para

expelir sangue supostamente menstrual ou, mesmo, o feto morto.110

Porém, quer o teor da recusa que Frei João Álvares atribuía a Filipa de

Lencastre ao não aceitar um aborto terapêutico, tendo tido como consequência os já

referidos problemas de saúde padecidos por seu filho, o Infante Santo, quer o

silenciamento feito por Pedro Hispano a receitas especificamente destinadas a esse

efeito, testemunham como a interrupção voluntária da gravidez era condenada e

proscrita pela moral eclesiástica católica em nome da salvaguarda do direito à vida

consagrado no Quinto Mandamento do Decálogo. De facto, tanto os penitenciais

como os catecismos conhecidos ou redigidos no Portugal medieval manifestavam

grande severidade contra os

fisicos e cirujãos negrigentes, parteiras ou mulheres que tomam ou dam

alguua cousa pera lamçar a criança,

englobando nessa condenação quem quer

que fere ou faze alguua cousa per que as prenhes lance a criança,111

ao mesmo tempo que propunham aos que procuravam

mover e deitar o conçebimento, ante que seja vivo, ou que o fruyto nom seja

conçebido,

______________________________________________________________________________________________

109 Frei João Álvares, “Trautado da vida e feitos do muito vertuoso Sor Ifante D. Fernando” in Obras, ed. cit., pp. 6-7. 110 Pedro Hispano, Obras Médicas, ed. cit., p. 244. 111 O Cathecismo Pequeno de D. Diogo Ortiz Bispo de Viseu, ed. Elsa Maria Branco Silva, Lisboa, Ed. Colibri, 2001, pp. 188-189.

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a rigorosa pena de um a três anos de penitência.112 Também nos tratados de

confissão se condenavam aqueles que procuravam matar a criatura que ãda no

ventre e os que embargavam per algua maneira que a molher nom cõceba.113

De resto, desde cedo que as prescrições saídas dos concílios hispânicos

puniam os abortos, datando do IIº concílio de Braga, celebrado em 572, a primeira

desenvolvida condenação a qualquer mulher acusada de os praticar em filhos

legítimos ou adulterinos.114 Foi, no entanto, durante a Baixa Idade Média que o

assunto se tornou mais presente, sobretudo a partir do momento em que os tratados

médicos começaram a indicar o sexagésimo ou septagésimo dia após o da concepção

como aquele em que o feto adquiria a vitalidade suficiente para poder ser

considerado dotado de uma alma, levando, portanto, os canonistas a defender a tese

de que qualquer aborto praticado a partir dessa altura acarretava a prática, não só de

um homicídio mas também a da danação de uma alma a quem a impossibilidade de

um baptismo impediria a hipótese de uma salvação eterna.115

Neste contexto, torna-se muitas vezes complexo decidir em que medida as

notícias sobre a perda de fetos na sequência de agressões físicas ou emocionais feitas

a grávidas - tal como se encontram referidas por Luís Miguel Duarte no seu estudo

sobre as cartas portuguesas de perdão régio do século XV - são ou não testemunhos

da prossecução de práticas destinadas à interrupção voluntária de gravidezes.116

Também na Chancelaria de D. Duarte é referido o caso de uma mulher feita

prisioneira porque ouuera afeiçom com huu clerigo e que, pelo tormento e noJo da

prisão mouera hua criatura de que andaua prenhe.117 Com efeito, segundo Angus

Mclaren, na falta ou na impossibilidade de se aceder a mezinhas abortivas, a

sociedade do Ocidente medieval cristão também utilizou o recurso às pancadas como

meio de produzir abortos, ou até a danças, pulos ou vestuário apertado, não sendo de

__________________________________________________________________________________________________ 93

112 O Penitencial de Martim Pérez, , ed. cit., p. 42. 113 Tratado de Confissom, ed. cit., p. 234. 114 Concílios visigóticos e hispano romanos, ed. José Vives, Barcelona-Madrid, CSIC, 1963, p. 104. 115 Angus Mclaren, “A procriação na Idade Média”, in ob. cit., ed. cit., p. 142. De uma forma geral, o islamismo medieval foi muito mais tolerante em relação ao controlo voluntário da reprodução, sendo o coito interrompido tolerado por Maomé desde que utilizado para proteger a propriedade familiar ou a saúde da mãe, e o aborto defendido se realizado antes dos cem dias posteriores à concepção. Também os tratados médicos árabes consagram diversas poções contraceptivas, a utilizar sob a forma de tampões e supositórios - B. F. Musallem, Sex and Society in Islam: Birth Control before the Nineteenth Century, Cambridge, University Press, 1983. 116 Luís Miguel Duarte, Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pp. 315-316. 117 Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, III, ed. cit., p. 126.

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

excluir a intenção de assim procurarem apresentá-los como acidentes sobre os quais

não recairiam sanções morais, espirituais ou até sociais. 118

7 - O INFANTICÍDIO

A determinação da representatividade social do homicídio de recém-

-nascidos no Ocidente cristão da Baixa Idade Média tem suscitado apaixonados

debates historiográficos, parecendo indiciar a existência de significativas variantes

geográficas. Por um lado, no que diz respeito à Inglaterra, tanto Barbara Hanawalt

como Henrietta Leyser, tendem a negar que ele fosse uma realidade socialmente

generalizada, ironizando a primeira a atitude dos psicohistoriadores que se deliciam a

fazer dos camponeses medievais grandes praticantes do infanticídio dos recém-nas-

cidos,119 e explicando a segunda como a inexistência, em Inglaterra, de um estigma

de ilegitimidade tornava as mães solteiras ou viúvas das vilas e cidades inglesas

pouco pressionadas a desfazer-se dos filhos.120

Para a França, os estudos desenvolvidos por Brissaud e Sylvie Laurent

fornecem uma outra panorâmica. Embora enfatizando o facto de como se revela

difícil fornecer números e estatísticas, consideram o infanticídio dos recém-nascidos

como uma “triste realidade”121 cujas proporções foram crescendo ao longo do século

XV.122 Esta situação é corroborada relativamente à Itália, pela investigação feita para

Florença por Richard Trexler,123 enquanto para as cidades da Toscâna, Charles de la

Ronciére tenha concluído que, principalmente a partir do século XV, o infanticídio

por abafamento ou esmagamento dos recém-nascidos nos leitos familiares

aumentara.124

______________________________________________________________________________________________

118 Angus Mclaren, ob. cit., ed. cit., p. 142. 119 Barbara Hanawalt, The Ties that Bound. Peasent Families in Medieval England, Nova Iorque, Oxford University Press, 1986, p. 101. Consulte-se, também da autora, Growing up in Medieval London: The Experience of Childhood in History, Nova Iorque, Oxford University Press, 1993, sobretudo a p. 44. 120 Henrietta Leyser, Medieval Women. A Social History of Women in England 450-1500, ed. cit., p. 131. 121 Y.-B. Brissaud, « L’infanticide à la fin du Moyen Âge. Ses motivations psychologiques et sa répression », Revue historique du droit français et étranger, 2, 1972, pp. 232-250. 122 Sylvie Laurent, Naître au Moyen-Âge: De la conception à la naissance, la grossesse et l'accouchement (XIIe.- XVe. Siècle), ed. cit., p. 164. 123 Richard C. Trexler, " Infanticide in Florence : New Sources and First Results " in The Children of Renaissance Florence, I, Nova Iorque, 1993, pp. 51-52. 124 Charles de la Ronciére, "A vida privada dos notáveis toscanos no limiar do Renascimento" in Philippe Ariès e Georges Duby (dir.), História da Vida Privada, 2, ed. cit., p. 224.

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94

NASCER __________________________________________________________________________________________

Contudo, descontando a ênfase colocada por cada investigador numa ou

noutra perspectiva da análise, o que parece separar os seus estudos não é tanto a

verificação de uma mais ou menos generalizada representatividade social das

práticas de infanticídio dos recém-nascidos, mas antes a diferente natureza das fontes

por eles utilizadas privilegiando as francesas, e parte das italianas, as cidades,

enquanto as relativas à Inglaterra e à Toscana incidem mais sobre as vilas e a

ruralidade. Nestas, assistiu-se, a partir dos finais da Idade Média, a melhorias

significativas no que diz respeito à organização dos quotidianos familiares; nas

cidades, pelo contrário, cresciam as situações relativas à presença de muitas mães

solteiras e de piores condições de habitabilidade e subsistência material. De facto, no

seu conjunto, encontra-se veiculada por todas estas investigações, a evidência de que

as famílias da Europa de Trezentos e Quatrocentos recorriam ao infanticídio para

enfrentar problemas estruturais gerados por dificuldades de diversa ordem.

Com efeito, um nascimento indesejado tanto podia originar problemas

económicos decorrentes da existência de mais uma boca a alimentar num lar sem

grandes recursos, como sociais, em parte decorrentes da vontade de esconder as nem

sempre bem aceites bastardias, crianças adulterinas ou filhos de religiosos e

religiosas, para além de várias mães solteiras ou viúvas procurarem resolver desse

modo obstáculos colocados à obtenção de novas relações familiares. Em suma, tal

como nas modernas sociedades contemporâneas, eram as más condições materiais, as

pressões sociais ou os interesses individuais que podiam conduzir ao infanticídio ou

ao abandono da progenitura, gerando as circunstâncias e as atitudes que, por vezes,

se sobrepunham aos eventuais sentimentos maternos e paternos.

De uma forma geral, de acordo com os estudos citados, teria sido durante a

difícil crise sócio-económica do século XIV, aliada às desordens provocadas pelas

guerras, fomes e epidemias, que o infanticídio dos recém-nascidos terá conhecido

uma maior intensidade, correspondendo, portanto, a conjunturas em que uma

generalizada instabilidade emocional despoletou a potencialização dos medos e

terrores que, por sua vez, contribuíram para a afirmação social dos sentimentos de

culpa, pecado, medo, vergonha, ou, simplesmente, desespero, agressividade e

desnorte. Contudo, mesmo para o século XIV, torna-se difícil distinguir entre

infanticídio voluntário ou acidental, estando, sem dúvida, este último em grande

parte associado a muitos dos homicídios de recém-nascidos referidos ou aludidos nas

fontes medievais europeias. __________________________________________________________________________________________________ 95

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

Por um lado, a circunstância de as

crianças acabadas de nascer partilharem

frequentemente o único leito familiar existente

nos lares medievais tornava-as bastante

susceptíveis de poderem vir a ser acidentalmente

mortas pelo corpo dos pais adormecidos, ou até

de perecerem sufocadas pelas roupas das camas.

Por outro lado, os livros de milagres medievais

europeus insistem nas graças concedidas a

crianças recém-nascidas que tinham sido vítimas

de acidentes domésticos, seja porque haviam sido

deixadas sozinhas em casa, seja pelo

esquecimento materno de as depositar nos berços

durante a sua ausência. Berços, aliás, muitas

vezes improvisados, tendo em conta a menção a

acidentes motivados por estes haverem sido

confundidos com recipientes de água, fria ou

quente, onde, involuntariamente, as mães

acabavam por afogar ou queimar os filhos.

Como é evidente, tratava-se de acidentes

que atingiam, sobretudo, as famílias mais

humildes e desfavorecidas, no seio das quais os

recém-nascidos eram seres demasiado frágeis

para poderem resistir às graves consequências da

pobreza. Embora regulares, esses infanticídios

acidentais não deixavam de ser lamentados e cho- Figura 20 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) A representação de uminfanticídio .

rados, tal como Le Roy Ladurie pode testemu-

nhar no seu estudo sobre o quotidiano da aldeia

pirenaica de Montaillou, ao citar o grande desgos-

to de uma mãe que, ao acordar, encontrou morto

a seu lado um filho de tenra idade que dormia na sua cama.125

______________________________________________________________________________________________

125 - Emmanuel Le Roy Ladurie, ob. cit., ed. cit., p. 275.

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96

NASCER __________________________________________________________________________________________

Em Portugal, tal como por toda a Europa medieval, as autoridades

eclesiásticas procuraram responsabilizar moral e espiritualmente os pais

involuntariamente causadores dessas mortes, a fim de lhes incutir maiores cuidados e

vigilância preventiva. Já durante o Renascimento, em 1505, um Sínodo diocesano

reunido em Braga, sintetizou muitas das anteriores disposições tomadas por clérigos

reunidos ao longo da Baixa Idade Média em várias cidades episcopais portuguesas,

condenando os pais que sufocavam ou esmagavam um ou outro dos seus filhos

quando partilhavam o leito com eles e os afogavam com o peso da roupa ou

deytando os membros sobre el dormindo.126

Por seu lado, a versão portuguesa do Penitencial de Martim Pérez também

abordou o assunto, distinguindo, porém, as condenações reservadas aos infanticidas

de crianças que tinham, ou não, sido baptizadas, das aconselhadas aos progenitores

unidos, ou não, por laços matrimoniais. No referente à primeira distinção, se aos

responsáveis pela morte de um recém-nascido baptizado era recomendada a

penitência de quarenta dias en pam e agua e a hervilhas e apartados do leyto,

despoys tres annos por suas ferias ordenadas pague e, en no quarto anno, tres

quareesmas, aos dos que ainda não haviam recebido um tal sacramento

juntavam-se, aos mesmos quarenta dias, çinquo annos, devendo tais matadores nom

querentes e neglegentes cumprir dois anos de penitência, o huum en pan e augua e

que se guarde do ajuntamento carnal em estes tres annos.

Para a segunda distinção, por sua vez, a penitência enunciada era mais pesada

para os pais infanticidas que se encontravam unidos pelo sacramento do matrimónio

do que para os que não haviam assumido perante Deus e a Igreja a sua união, visto

aos primeiros, dadas as suas maiores responsabilidades religiosas, se atribuir a pena

de sete anos de penitência, enquanto para os segundos apenas era proposta a de

três. Por fim, se um recém-nascido aparecesse morto e houvesse dúvidas sobre a

causa do seu falecimento, o Penitencial registava a penitência de quarenta dias.127

__________________________________________________________________________________________________ 97

126 Synodicon Hispanum, I, ed. cit., p. 159. 127 O Penitencial de Martim Pérez, ed. cit., pp. 42-50. Os tratados de confissão não especificando a situação matrimonial dos progenitores, referiam unicamente como penitência para os que matassem os seus filhos e fossem bautizados, tres anos peedeça e huu a pam e augua. – Tratado de Confissom, ed. cit., p. 195.

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

Figura 21 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII). Várias formas de infanticídio.

Em grande parte acidentais, os infanticídios registados nas actas dos

concílios diocesanos lusos e na versão portuguesa do Penitencial de Martim Pérez

diferem do que se encontra poeticamente noticiado nas Cantigas de Santa Maria de

Afonso X de Castela e Leão. Neste caso, trata-se de um infanticídio voluntário

atribuído a uma mulher de Elvas, mui pobre, que um dia seend’enserrada em so

casa, foi cuidando como matass’o menino que há pouco lhe nascera, porque não

queria por ele perder a sua fremosura e o seu tempo. De acordo com o poema, a

malfadada teria começado por hesitar na forma de morte a dar à criança, pensando

primeiro em enforcá-la numa viga do tecto da casa ou em esmagá-lo com uma pedra.

Por fim, ter-se-ia decidido a deitá-lo eno seu regaço e fillore hua agulha longa

com’espiga que na testa lhe foi põe, dizendo "Oge festa será pera mi ta morte." Não

fosse então ter aparecido Nossa Senhora para defender a criança e condenar a

loucura da mãe, que logo teria aqui acabado a história. Segundo o poema, não foi

______________________________________________________________________________________________

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98

NASCER __________________________________________________________________________________________

esse o caso, já que a Virgem convenceu a fremosa a correr à igreja de Elvas com o

filho nos braços para obter, depois de se confessar, a milagrosa cura da criança, para

grande admiração de todos os vizinhos que depois souberam do feito.128

Na centúria de Quatrocentos encontramos um novo testemunho de

infanticídio voluntário, desta vez documental. Trata-se de uma das cartas de perdão

régio estudadas por Luís Miguel Duarte, ou seja, a súplica de uma mãe que pede ao

soberano o perdão para o seu marido que endoudecera e saira fora de todo seu

entendimento, porque, sendo um

homem de vertude que queria bautizar seu filho tomara o menino nos

braços e começara de fugir com elle pera hua ribeira honde de fecto o

lançara em huum pego que quamdo chegarom os que em pos elle hiam o

menino era ja afogado.

Sem o marido, diz-se no documento, era difícil zelar pelo bem-estar e

fazenda da família, sendo ainda muito novos os outros filhos do casal. Para responder

favoravelmente a este pedido de perdão, os funcionários da corte de Afonso V

elaboraram um complexo processo preparatório, tendo sido requerida a presença de

um ouvidor para interrogar diversas testemunhas e, considerados complexos

problemas jurídico-processuais, comprovar o perdão das diferentes partes. Como

reconhece Luís Miguel Duarte, o infanticídio era considerado um dos mais graves

homicídios que podiam ser praticados no reino, sendo bastante difícil vir a ser

perdoados pelo rei, ou até mesmo objecto de um pedido, já que, significativamente,

não se conhecem outras cartas de perdão relativas a infanticídio, concedidas pelo

monarca.129

__________________________________________________________________________________________________ 99

128 Alfonso X, o Sábio, Cantigas de Santa Maria, Edicion de Walter Mettmann, Clássicos Castália, Madrid, 1986-1988, cantiga 399. 129 Ob. cit., pp. 316-317. Também nos registos penais ingleses do século XIV, entre 2933 crimes cometidos por mulheres, só existe um caso de infanticídio. Igualmente em França, nas cartas de perdão deste período, só se registam três casos: Claude Gauvard, De grace especial: Crime, État et Société en France à la fin du Moyen Âge, Paris, 1991, pp. 651-662 e 822-826. Embora não tenhamos dados estatísticos para a Flandres medieval sabemos que, também aqui, a sociedade reagia fortemente contra o infanticídio. Após a descoberta do corpo do recém-nascido um inquérito era imediatamente instaurado. As portas da cidade eram fechadas para evitar que a culpada fugisse e a delação era encorajada. A criminosa era condenada à fogueira ou ao enterramento viva: M. Greilsammer, L'Envers du tableau. Mariage et maternité en Flandre médiévale, ed. cit., pp. 304-305.

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A CRIANÇA E A INFÂNCIA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________

De facto, fora do contexto de um milagre ou da excepcionalidade jurídica de

um processo de perdão régio, torna-se difícil encontrar testemunhos da prática de

infanticídios voluntários, já que, para as instâncias jurídicas e morais que ordenavam

a sociedade medieval portuguesa também resultava complicado conseguir apurar

actos e culpas relativos à esfera privada dos quotidianos familiares, só raramente se

conseguindo as informações necessárias à isenta determinação da verdadeira

natureza da morte de um recém-nascido, visto ser então muito difusa a fronteira

existente entre o acidente e o homicídio, até porque esta última forma de eliminação

voluntária de filhos acabados de nascer podia ser facilmente, conforme abordaremos,

conseguida e substituída através do seu simples abandono.

Neste contexto, não será talvez surpreendente o aproveitamento político de

rumores de infanticídio feito por Fernão Lopes, a propósito dos filhos tidos por

Leonor Teles, que as gentes sospeitavom que nom eram d’el-rrei. Com efeito, ao

registar como um deles morreo logo, e o outro, apesar de o rei Fernando lhe ter

demonstrado à partida mui gram prazer, ter falecido quatro dias depois, sob a

suspeita de que o monarca, ao sabê-lo ilegítimo, ho afogara no collo de sua ama, não

fez mais do que associar a memória da realeza, contra a qual se rebelara o mestre de

Avis, a atitudes e pecados moralmente condenáveis e desprestigiantes. 130

______________________________________________________________________________________________

130 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, ed. G. Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1975, respectivamente, pp. 523-524 e 591.

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100

3 CRESCER Childhood shows the man

As morning shows the day.

John Milton1

Nascer era apenas ultrapassar um primeiro obstáculo; o

espectro da morte continuava a rondar o pequeno ser acabado de

sair do aconchego do ventre materno, recém entrado na vida e

num mundo pleno de adversidades. O primeiro grito era

considerado o primeiro sinal de vitalidade, a primeira vitória de

um processo normalmente moroso, complicado e sofrido.

Completamente indefeso, ficava, agora, à mercê dos cuidados e

atenções que lhe pudessem dispensar. Porque, em regra, era o

mesmo grupo de mulheres que assistira ao parto que se ocuparia

da assistência ao novo ser, um pós-parto mais complicado ou

uma mãe que necessitava de mais cuidados podiam deixar

esquecido o recém-nascido.

1 - A FRAGILIDADE

Temendo-se que, durante os primeiros tempos de vida, a fragilidade da criança

não resistisse às alterações que o seu organismo inevitavelmente iria sofrer,2 os tratados

médicos recomendavam que ela deveria ser bem tratada, protegida e fortificada. Nos

livros médicos hispano-árabes aconselhava-se, logo à partida, o resguardo do frio,

explicando-se como o recém-nascido deveria ser suavemente recebido nas mãos da

parteira e imediatamente colocado sobre um pano seco e levemente aquecido.3

1 John Milton, "Paradise Regained" in L. Schener & S. Black, Developmental Juvenile Osteology, Londres, Academic Press, 2000, p. 12. 2 Esta fragilidade era frequentemente comparada à da velhice, já que a falta de dentes e de memória dos idosos a aproximariam das crianças da primeira infância, assim como a dependência em que frequentemente caía a terceira idade: Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe. – XIIIe. siècle), Paris, Aubier, 1997, pp. 58-59. 3 El libro de la generation del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Árib Ibn Sa’id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. Antonio Arjona Castro, Cordova, 1983, pp. 102-104.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

_____________________________________________________________________________________________

Prescrevia-se, depois, a prática de movimentos destinados a testar na criança o

funcionamento das articulações e a ossatura das clavículas. Para esse efeito, observava-

-se como a parteira lhe deveria dobrar e estender os membros, juntar os braços aos

joelhos e o tornozelo ao tornozelo. Pressionar a bexiga, verificar os reflexos do andar,

limpar as narinas e a boca com um pouco de mel para desencadear o apetite e o

consequente reflexo da mamada, devendo aproveitar-se o primeiro choro para observar

a abóbada palatina, eram os procedimentos a desenvolver posteriormente. Seguia-se

uma massagem no corpo, mais vigorosa nos rapazes do que nas raparigas, sendo, então,

o bebé lavado em água salgada uma hora antes do banho e devidamente perfumada

com plantas aromáticas. 4

Após a lavagem, que deveria poupar o nariz e a boca, referia-se a necessidade

de colocar um curativo sobre a ferida do umbigo, proceder ao corte das unhas e aplicar

gotas nos olhos. Tudo isto deveria ser executado de uma forma muito suave com grande

cuidado e doçura. A criança estava então preparada para que os seus membros fossem

envolvidos em

panos de tecido

leve, normalmente

uma faixa de li-

nho. Esta medida

era considerada de-

terminante para

precaver o recém-

-nascido de uma sem-

Figura 22 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII). O enfaixamento do Menino Jesus na iconografia da Natividade.

pre temida deformação involuntária do corpo, assim se explicando, quer o seu

enfaixamento, quer o uso de roupas apertadas e espessas durante os primeiros tempos de

vida das crianças. 5

______________________________________________________________________________________ 102

Na sequência das posições tomadas por Philippe Ariès, vários investigadores

têm considerado o enfaixamento infantil como uma confirmação da suposta indiferença

afectiva dos pais medievais pelos seus filhos. Nessa perspectiva, a tendência para

envolver as crianças pequenas ora em faixas apertadas, ora num vestuário rígido e

4 El libro de la generation del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos, ed. cit., p. 104. 5 Danièle Alexandre-Bidon, “Du drapeau à la cotte: vêtir l’enfant au Moyen Âge (XIIIe.et. XIVe. siècle)" in M. Pastoreau (dir.), Le Vêtement, histoire, archéologie et symbolique au Moyen Âge, Paris, Léopard d’Or, 1989, p. 126.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

pesado, testemunharia o facto de não serem consideradas merecedoras da atenção e dos

cuidados necessários a um saudável desenvolvimento, sendo antes tratadas na qualidade

de fardo ou incómodo de quem os pais se queriam defender e proteger.6 O enfaixamento

contemplaria, ainda, a conveniência dos adultos que, assim, raramente teriam de atender

às necessidades dos mais pequenos.

Uma tal leitura revela-se hoje demasiado preconceituada e apriorística. Segundo

Mireille Laget, o enfaixamento, por exemplo em meio rural, estaria longe de significar

qualquer desinteresse pelas crianças. Pelo contrário, independentemente dos maiores ou

menores malefícios que essa prática possa ter provocado no respectivo crescimento,

visava proporcionar o conforto e a segurança que impediria as crianças de poderem vir a

ser feridas ou mordidas pelos animais que partilhavam com os humanos as rudes

moradas camponesas. Pretendia-se, ainda,

ajudar os recém-nascidos a abandonar

rapidamente a posição fetal, a fim de

evitar o temido risco de poderem vir a

rastejar ou a movimentarem-se como

animais. 7 Figura 23 – Túmulo de D. Pedro I (Século XIV). O enfaixamento dos infantes na esculturafunerária Conforme salienta Danièle Alexan-

dre-Bidon, esta última razão para o enfaixa-

mento infantil era também comungada pelas famílias nobres medievais, já que os

perigos de uma deficiente aprendizagem da postura erecta por parte das suas crianças

significaria a perda simbólica da verticalidade que deveria orientar o crescimento dos

fidalgos e fidalgas. Acreditava-se que esta verticalidade física reflectir-se-ia na atitude

moral do futuro adulto, nos seus princípios de vida e na sua personalidade. De resto, as

preocupações com a prevenção de um correcto desenvolvimento da coluna e dos

membros das crianças nobres, chegaram a motivar a utilização de tecidos especialmente

ásperos e hirtos, com o fim de melhor evitar as malformações resultantes de excessivos

esperneares e bracejares, ou até o surgimento de hérnias provocadas pelos choros

_________________________________________________________________________________________________ 103

6 D. Hunt, Parents and Children in History: The Psychology of Family Life in Early Modern France, Nova Iorque, Harper Torchbooks, 1972; Lloyd DeMause, “The Evolution of Childhood” in Lloyd DeMause, (ed.), The History of Childhood. The Untold Story of Child Abuse, Nova Iorque, Harper Torchbooks, 1988. 7 Mireille Laget, Naissances. L’accouchement avant l’age de la clinique, Paris, 1982, p. 191.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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convulsivos, reservando-se o linho, fino e macio, para a confecção de uma roupa

interior especialmente destinada à protecção da pele dos bebés.8

Também o crânio e o rosto deveriam receber especiais cuidados. O

fortalecimento do primeiro aconselhava o seu envolvimento numa forte lã cardada a que

também se atribuía a função de protecção contra as doenças dos ouvidos. Para a face,

por sua vez, tanto se recomendava a utilização de um pano macio a colocar sobre os

olhos para os proteger da luz e das impurezas que geravam infecções, como, tendo em

conta a prevenção de malformações do nariz, se desaconselhava o serviço de amas de

leite com grandes seios, por se temer o perigo de poderem vir a contribuir para o

achatamento ou esmagamento das narinas das crianças.9

Por fim, a consciência da fragilidade dos recém-nascidos ainda motivava

diversos conselhos relacionados com o lugar onde deviam passar os seus primeiros

tempos. Nesse sentido, recomendavam-se aposentos sem demasiado calor, frio ou luz,

sugerindo-se uma atmosfera perfumada, capaz de afastar os cheiros reveladores da

presença de impurezas que podiam ameaçar a saúde das crianças, 10 se bem que os

objectivos deste último preceito fossem bastante difíceis de conseguir nas vilas e

cidades, onde a higiene e o saneamento públicos estavam ainda longe de ser eficientes e

generalizados. De facto, a limpeza das ruas das vilas e cidades deixava muito a desejar,

apesar dos esforços desenvolvidos para o seu melhoramento nos finais da Idade Média.

As próprias medidas promulgadas pelas Ordenações Afonsinas são em si elucidativas.

Com efeito, ao terem como objectivo fazer alimpar a cidade, cada um ante a sua porta

da rua, não deixam de referir como era comum acumular estercos e maus cheiros,

sendo pouco frequente existir em cada freguesia uma esterqueira cujo esterco fosse

periodicamente removido para lugares convenientes, visto se mencionar a acumulação

de esterco e outro lixo junto às muralhas, denunciando-se, também, como obstruía os

canos da cidade ou vila e as servidões das águas. É ainda referido o lançamento de

bestas, cães e outras coisas sujas e fedegosas na cidade ou vila. 11

______________________________________________________________________________________ 104

8 Danièle Alexandre-Bidon, “Du drapeau à la cotte: vêtir l’enfant au Moyen Âge (XIIIe.et XIVe. siècle)", ob. cit., ed. cit. 9 Cf. recomendava Aldebrandino de Siena : Le Régime du corps, ed. L. Landouzy et R. Pépin, Paris, 1911, p. 77. 10 El libro de la generation del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos, ed. cit., p. 103. 11 Ordenações Afonsinas, ed. M. J. Almeida Costa e E. Borges Nunes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, I, t. XXVIII, p. 185.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

A constante renovação das posturas municipais que interditavam um tal

conjunto de práticas faz supor que a população não seguia o que estava oficialmente

determinado. De resto, o costume da “água vai”, ou seja, o entornar dos camareiros,

isto é, os bacios, para as ruas, se bem que proibido em 1484, por uma lei de D. João II,

também não contribuía grandemente para a higiene pública, sendo ainda muito pouco

seguida a norma legislativa para que tôdalas ruas e travessas sejam mui limpas.12

Se as casas e as ruas das vilas e cidades medievais se apresentavam,

normalmente, húmidas e mal cheirosas, os aposentos onde a criança nascia, ou era

depois colocada, não ofereceriam melhores condições. Pouco ventiladas, comportariam

uma atmosfera não só contaminada pelos cheiros exteriores à casa, como também

saturada, sobretudo tratando-se do local onde ocorrera o parto, quer pelos fortes cheiros

das ervas, pós, unguentos, beberragens e emplastros antes utilizados na condição de

mezinhas, quer pelos odores provenientes do suor dos corpos e das respirações

ofegantes, ou seja, uma mistura muito pouco favorável para o frágil ser que acabara de

vir ao mundo.

2 - A HIGIENE

Tal não significa, porém, qualquer tipo de indiferença face à higiene pessoal do

recém-nascido. Com efeito, nos tratados de medicina hispano-árabes encontram-se

diversos conselhos sobre os banhos a dar aos bebés, primeiro com água quente, e,

depois, ao fim de alguns dias com fria, recomendando-se a utilização da água tépida

numa fase de transição para fazer subir o calor dos corpos das crianças e assim os

acostumar ao contacto com temperaturas inferiores.

Os mesmos textos contemplam também indicações sobre os preceitos a

cumprir durante o banho. Por um lado, explicam como a parteira devia acolher o bebé

no seu braço esquerdo e lavá-lo com a mão direita, sempre atenta a que não entrasse

água para os ouvidos da criança. Por outro lado, preconizam que a lavagem de todo o

corpo do bebé deveria compreender, numa fase final, a utilização do dedo da parteira

molhado em óleo aromático, para a limpeza da baba e do interior da boca, sobretudo a

língua e as gengivas. Por fim, também se aconselhava apenas retirar a criança do banho

_________________________________________________________________________________________________ 105

12 Cf. A.H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1974, p. 92. Consulte-se também Iria Gonçalves, "Posturas municipais e vida urbana na Baixa Idade Média: o exemplo de Lisboa" in Um olhar sobre a cidade medieval, Cascais, Patrimonia Histórica, 1996, pp. 77- -96.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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quando o seu corpo estivesse vermelho e quente, para depois, ao colo da parteira, ser

seca com um pano muito macio, sem esquecer os ouvidos e o nariz. Então, devidamente

refortificado, deveria depois o bebé ser massajado com óleo e deixado a repousar até se

ouvir o choro da lactância, considerado essencial para aumentar a precisão do ouvido, e

auxiliar a expulsão de secreções internas prejudiciais.13

Inspirados na medicina clássica de Hipócrates e Galeno, todos estes cuidados e

preceitos sobre a higiene infantil foram amplamente acolhidos pelos físicos cristãos dos

finais da Idade Média, chegando a recomendar-se o banho diário para as crianças com

menos de seis meses de vida, com água mais quente para as raparigas do que para os

rapazes.14 Nesse sentido torna-se necessário questionar o tão apriorístico estereótipo da

falta de higiene infantil durante toda a Idade Média.

______________________________________________________________________________________ 106

13 El libro de la generation del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos, ed. cit., pp. 111-112. 14 Ronald C. Finucane, The Rescue of the Innocents. Endangered Children in Medieval Miracles, Nova Iorque, St. Martin’s Press, 2000, p. 144.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

3 - A NUTRIÇÃO

No século XV, os tratados

cristãos de saúde infantil dão grande

relevo aos cuidados a ter com a

alimentação dos recém-nascidos. Por um

lado, recomendam que ela devia ter lugar

em aposentos protegidos das agressões do

mundo exterior, como a luz intensa, as

temperaturas extremas ou até os ventos

fortes.15 Por outro, repetindo preceitos

herdados da Antiguidade através da

medicina árabe, aconselham que ela devia

ser precedida pelo sugar infantil de um

dedo materno previamente embebido em

mel sem espuma, para limpar o estômago

dos bebés e abrir os seus canais de

absorção. Por fim, defendem que a mãe

deveria amamentar a criança nos seus pri-

meiros quatro dias, só depois podendo, se

necessário, ser substituída, por uma ama.16 Figura 24 – Virgem com o Menino (Século XIV).

A imagem de Maria onde o Menino procura tocar noseio da mãe é uma variante pudorosa darepresentação da Virgem do Leite.

De uma forma geral, a criança

medieval era amamentada até aos dois,

três ou quatro anos.17 Em Portugal, as

investigações paleoantropológicas e pa-

leobiológicas efectuadas em espólios provenientes de diversas necrópoles medievais,

testemunham um período de amamentação muito prolongado, já que os dados relativos

_________________________________________________________________________________________________ 107

15 E. Roy, «Un regime de santé du XV siècle pour les petits enfants et l’hygiène de Gargantua » in Mélanges offerts à E. Picot, Paris, 1913, t. 1, p. 153. 16 El libro de la generation del feto..., ed. cit., p. 103. 17 Perceval, por exemplo, ainda não tinha sido desmamado aos dois anos de idade: Micheline de Combarieu du Gres, “Les “apprentissages” de Perceval dans le Conte du Grall et de Lancelot dans le Lancelot en Prose” in Éducation, Apprentissages, Initiation au Moyen Age, Actes du Premier Colloque International de Montpellier, Université Paul Valéry, 1991, p. 131.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

_____________________________________________________________________________________________

às hipoplasias lineares do esmalte dentário18 dos

esqueletos analisados e a frequente debilitação física

das mulheres pelo desenvolvimento de patologias como

a osteoporose, apontam para que o desmame ocorresse

por volta dos quatro anos.19 Sendo assim, tratar-se-ia de

uma idade próxima à que Le Roy Ladurie encontrou

entre as crianças da aldeia transpirenaica de Montaillou,

durante o século XIV, tendo em conta a informação de

que traziam consigo uma pequena cadeira ou um banco a

que subiam para mamar nos seios da progenitora.20

À partida, o desmame tardio trazia vantagens

ao desenvolvimento infantil, visto o leite da mãe ou das

amas proteger melhor o bebé contra as doenças do que

qualquer outra forma de alimentação. Em meio rural,

a amamentação era sobretudo assegurada pelas

progenitoras, enquanto as famílias das elites fidalgas

ou citadinas se socorriam, maioritariamente, das amas de

leite, de acordo com um costume que tende a ser

contestado pelos médicos e pedagogos dos finais da

Idade Média.21 Figura 25 – Nossa Senhorae o Menino (Século XIV). A Virgem em pé segura oMenino no braço esquerdo.A face recebeu carnação eostenta uma expressãojovem. O Menino aponta,com a mão direita, umaportinhola que se rasga nopeito da Mãe.

Com efeito, segundo eles, seria pelo leite

materno que se transmitiam os carismas e as virtudes

da mãe e da respectiva linhagem, conforme a teoria que

o fazia resultar da pretensa transformação do sangue que

alimentara a criança durante a gestação. Sendo assim, era

______________________________________________________________________________________ 108

18 Redução da espessura do esmalte, na sequência de distúrbios que ocorreram durante o desenvolvimento dentário. Não tendo o esmalte capacidade de se remodelar, todos os episódios desfavoráveis ocorridos durante a sua formação (entre os seis meses uterinos e os doze anos de idade), ficam registados nos dentes: Cf. Eugénia Cunha, Cláudia Umbelino e Teresa Tavares, “A necrópole de S. Pedro de Marialva – Dados antropológicos” in Património Estudos, Instituto Português do Património Arqueológico, Lisboa, 2001, nº 1, p. 143 e Eugénia Cunha, "Paleobiologia, História e Quotidiano: critérios da transdisciplinaridade possível" in Amélia Aguiar Andrade e José Custódio Vieira da Silva (coord.), Estudos Medievais, Lisboa, Horizonte, 2004, p. 130. 19 Eugénia Cunha, “Populações medievais portuguesas (séculos XI-XV). A Perspectiva Paleobiológica” Arqueologia Medieval, 5, Mértola, ed. Afrontamento, 1997, p. 78. 20 Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou Cátaros e Católicos numa aldeia occitana 1294-1324, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 271. 21 Emmanuel Le Roy Ladurie, ob. cit., ed. cit., p. 270.

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lógico ser a mulher cuja gravidez

gerara o filho quem o deveria

continuar a alimentar através da

mesma substância.22

Uma tal convicção

encontra-se, aliás, consagrada em

diversas ficções literárias medievais,

justificando muitas vezes a

premonitória desventura de vários

cavaleiros fidalgos. Na refundição de

1380-1383 do Livro de Linhagens do

conde Pedro de Barcelos, esta

convicção aplica-se a Acaçat, um

gigantesco cavaleiro mouro que teria

sido desonrosamente vencido e

decapitado por um nobre cristão

galego, durante o cerco da conquista

Figura 26 – Virgem do Leite (Século XV). Maria, coroada, a amamentar o Menino. Para além da exaltação do prestígio do divino leite, sobressai arepresentação da dimensão humana dos gestos de ternuraesboçados. Nossa Senhora toca carinhosamente o pédescalço do Filho que a olha de forma enternecedora.

de Sevilha, já que para além de se re-

cordar como ele fora fruto de um in-

cesto praticado pelo rei da Tunísia

numa sua filha, também dele se lem-

bra a ignomínia de haver sido abando-

nado em criança pelos pais e apenas

ter subsistido a leite de camelas.23

Por outro lado, quer a fre-

quência com que, a partir do século XIII, se representava nas iluminuras o tema

iconográfico do seio de Abraão, pelo qual se evocava a genealogia materna de Cristo,24

_________________________________________________________________________________________________ 109

22 Danièle Alexandre-Bidon e Didier Lett, Les enfants au Moyen Âge (Ve. – XVe. siècles), Paris, Hachette Littératures, 1997, pp. 123 e 263. 23 Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, ed. José Mattoso, Lisboa, Academia das Ciências, 1981, 2169. 24 Jeróme Baschet, Le sein du père. Abraham et la paternité dans l'Occident médiéval, Paris, Gallimard, 2000. Sobre as representações do seio de Abraão, geralmente associadas à iconografia da Árvore de Jessé, na iluminura medieval produzida ou conservada no Portugal medieval, consulte-se Maria Adelaide Miranda, "A produção universitária e a iluminura em Portugal nos séculos XIII e XIV" in Idem (dir.), A Iluminura em Portugal. Identidade e influências, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1999, pp. 249-285.

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quer a proliferação desde a centúria de Trezentos, das imagens da Virgem do Leite,25

também contribuíram para a progressiva valorização social da importância do

aleitamento materno. As múltiplas esculturas onde se passou a representar a

amamentação do Menino Jesus pela sua

mãe, acabaram por permitir a gradual

sacralização desse acto, projectando na

Nossa Senhora o modelo das

progenitoras dignificadas e exaltadas

pela alimentação da sua estirpe.

Com efeito, as imagens das

Virgens do Leite, bastante presentes nos

altares de muitos templos e oratórios

familiares da Baixa Idade Média,

desempenharam um papel relevante para

a difusão social de um novo ideal de

maternidade, mais nutritivo e pro-

tector do que meramente reprodutor.

Por um lado, porque atribuíam um lugar

central aos seios da mãe do Menino

Jesus, seja por os apresentarem de

forma proeminente, ou mesmo realis-

ticamente expostos através de aberturas

______________________________________________________________________________________ 110

figuradas nas suas vestes, seja por ne-

les fazerem convergir a representação

das acções do aleitamento, como o tactear

Figura 27 – Nossa Senhora do Leite (Século XV). O tronco nu do Filho exalta a protecção dispensadapela mãe que lhe oferece o seio a tactear e a sugar.

ou o sugar infantis. Por outro lado, porque os passaram a associar à expressão de

diversificados gestos e sinais afectivos, tais como afagos, aconchegos ou rostos felizes e

radiosos.26

25 Mário Jorge Barroca, "Escultura gótica" in Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Jorge Barroca, História da Arte em Portugal. O Gótico, Lisboa, Presença, 2002, pp. 157-179. 26 Consulte-se Rui Maurício, "A escultura portuguesa (1350-1500). Cultos. A Virgem" in Sérgio Guimarães de Andrade (dir.), O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal [1300-1500]. Catálogo da Exposição, Lisboa, Ministério da Cultura, Instituto Português dos Museus, Museu Nacional de Arte Antiga, 2000, pp. 255-258.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

Neste contexto, justifica-se o

facto de alguns enciclopedistas da Baixa

Idade Média aproximarem os étimos de

mater e mamma, mãe e seio, propondo,

por vezes, a derivação do primeiro a partir

do segundo. Ao mesmo tempo, alguns

canonistas fazem figurar a recusa do

aleitamento materno na lista dos mais

graves pecados consagrados nos

Penitenciais, já que, ao privar os filhos da

substância que melhor podia contribuir

para o seu crescimento, as mães

comportar-se-iam como verdadeiras

assassinas, equiparando-se o seu desprezo

pela dádiva sagrada de um peito cheio de

leite a uma blasfémia merecedora de

severa punição. 27

Nos livros de milagres

medievais portugueses referem-se vários

casos de mães que recorreram aos bons

ofícios dos santos para poderem amamentar Figura 28 – Nossa Senhora do Leite (Século XV). A Virgem-Mãe aconchega o Filho ao colo,possibilitando à criança afagar-lhe os seios.

os seus filhos, ou até mesmo os netos. Em

Coimbra, por exemplo, contava-se como o

túmulo da rainha Isabel de Aragão atraía

tais peregrinas. A uma delas, seccando-se-lhe

os peitos por causa de uma grave enfermidade, teria aí sido restituído o leite necessário

para poder criar um filhinho de mui tenra edade. De outra, já com cinquenta anos,

_________________________________________________________________________________________________ 111

27 Henrietta Leyser, Medieval Women. A Social History of Women in England 450-1500, Londres, Phoenix, 1995, pp. 134-137.

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lembrava-se como,

havendo vinte e dois que não creava,

recorrendo à santa rainha, lhe acudiu leite,

com que pode crear um neto, que lhe tinha

ficado sem mãe, e ella sem posses para o dar

a crear.28

______________________________________________________________________________________ 112

Talvez as duas, e certamente muitas mais, se

tivessem socorrido de uma mezinha para

conseguir leite, que era dada como bebida

pelas freiras de Santa Clara em nome da

rainha Santa D. Isabel, como pelo de uma

gallinha branca. 29

No século XV, os cuidados postos

pelos leigos para que não faltasse às crianças o

valorizado leite materno encontram-se docu-

mentados nas receitas PerA as tetas das

molheres quando paryrem que o rei Duarte

incluiu no seu Livro dos Conselhos.

Destinadas, quer a aumentar a quantidade de

leite quer a tratar doenças do peito ocorridas

durante o período da amamentação, tanto

compreendem emplastros de mynhocas fritas Figura 29 – Virgem do Leite (Século XV) A abertura representada na veste daMãe descobre o seio ao Filho. em manteigua ou de semente d'algodom

amassada com vinagre, como beberagens

obtidas pela diluição de raizes d abroteas em olio de maçela ou semente d algodom

em agoa, também ainda se aconselhando, pera quando caem os mamilos, tomar as

galhas pisadas e poe las com o dedo nos mamylos.30

28 Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, Lisboa, 1869-1870, vol. 7, p. 57. 29 Id., ibidem, p. 58. 30 Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte, ed. J.J. Alves Dias e A.H. de Oliveira Marques, Lisboa, Estampa, 1982, respectivamente, pp. 257 e 264.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

Apesar da crescente valoriza-

ção letrada do aleitamento materno e

da sua efectiva presença entre a maior

parte das famílias camponesas

medievais, só muito lentamente foi

adoptado pelas elites aristocráticas

nobres ou urbanas. De facto, entre

estas continuava a dominar o recurso a

aias ou amas especializadas na

amamentação das crianças, sendo a sua

escolha efectuada segundo critérios

cada vez mais exigentes. A utilização

das amas de leite pela nobreza, tem

sido, por vezes, apontada como

consequência da suposta indiferença

medieval face à criança. Hunt chega

mesmo a mencionar, nesse sentido, a

hipotética relutância com que algumas

mães fidalgas se disporiam a

amamentar os filhos, visto os

considerarem pequenos seres ávidos

por sugar o fluido vital dos seus corpos, já de si muito enfraquecidos pelo parto,31

esquecendo-se, assim, de referir a já anteriormente desenvolvida situação de elevada

mortalidade feminina provocada pelos partos e suas directas maleitas.32 De facto,

frequentemente, o recurso às amas de leite revelou-se imprescindível para assegurar a

sobrevivência dos filhos da nobreza.

Figura 30 – Nossa Senhora do Leite (Século XV). A mãe majestática entrega o seio ao Filho para oamamentar.

_________________________________________________________________________________________________ 113

31 D. Hunt, ob. cit., ed. cit. 32 Vidé capítulo NASCER, em especial as pp. 67-83.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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Entre a fidalguia rural

minhota dos séculos XII e XIII,

era costume confiar o

aleitamento e a criação dos seus

filhos às mulheres das famílias

locais de camponeses livres, as

quais, ao amamentá-los em

conjunto com os seus próprios

bebés, no quadro de uma

irmandade de leite, passavam,

por via desse serviço, a isentar o

seu lar ao pagamento de tributos

régios. No Entre Cávado e Minho

de meados de Duzentos, era essa

a forma mais comum de

sonegação dos bens e direitos a

cobrar pela Coroa, corresponden-

do a cerca de 48% das usurpa-

ções aos interesses da realeza de-

tectadas pelos inquiridores de

1258, bem acima das obtidas por

via de compra e escambo (15,3%),

Figura 31 – Virgem com o Menino (Século XV). A imagem de Maria, premindo o seu peito num gesto deresposta ao anseio do Menino integra-se no tema daiconografia mariana da Virgem do Leite. Sobre o braçodireito da Mãe, segurando distraidamente a fímbria do seumanto, o Filho tacteia-lhe o peito com a sua mão esquerda.

incomuniação (9,6%), doações e

legados (4,4%) ou simples apro-

priação senhorial por recurso à

força (10,9%).33

Ora, ao confiar a sua estirpe aos cuidados das mães camponesas, a nobreza rural

minhota não fazia mais do que imitar uma prática já antes desenvolvida pelos próprios

reis portugueses, cujas proles, como já sucedera nos tempos dos condes portucalenses,

tinham sido aleitadas e criadas pelas famílias da fidalguia de Entre Douro e Minho, com

o intuito de lhes testemunhar uma superior confiança e protecção feudais. Permitia-lhes

ainda a vantajosa prerrogativa de poderem vir a relacionar e a aparentar, pela partilha

______________________________________________________________________________________ 114

33 Iria Gonçalves (dir.), "O Entre Cávado e Minho, cenário de expansão senhorial no século XIII" in Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2, 1978, pp. 399-440.

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do leite e por uma amizade comum de infância, os seus filhos aos futuros herdeiros dos

máximos poderes existentes na região.34 De facto, se bem que a prática do amádigo, tal

como era designada a isenção de tributação régia através da criação de crianças

fidalgas, fosse considerada, em meados de Duzentos, defraudadora dos interesses

centralizadores da Coroa portuguesa, dado contribuir para a anulação dos impostos a

solver por várias famílias de camponeses livres, ela permitia aos fidalgos minhotos fazê-

-los entrar na sua directa dependência feudal e senhorial e, assim, contribuir para a

elevação do respectivo estatuto social. Assim, em vez de se apresentarem sujeitos à

protecção de uma longínqua e por vezes contestada realeza, passavam a integrar o

círculo dos mais próximos e influentes senhores regionais, podendo contar com a

respectiva solidariedade e hipotético amparo. De resto, quando o rei Dinis começou a

contestar a legitimidade das honras fidalgas constituídas através da prática do amádigo,

pronunciou-se mais contra os abusos a que ela então dava lugar - como era o caso da

sua utilização por parte da pequena e numerosa nobreza dos cavaleiros para justificar a

apropriação senhorial dos bens de várias famílias de camponeses livres a quem

afirmavam haver confiado, durante breves períodos de tempo, o aleitamento e a criação

dos mesmos filhos - do que contra a sua total e universal utilização.

Durante a Baixa Idade Média, tornou-se mais comum confiar o aleitamento das

crianças nobres a aias ou amas residentes nos paços e cortes fidalgas, sendo escolhidas

de acordo com critérios semelhantes aos praticados entre as famílias das elites citadinas

que também necessitavam desses serviços. Em primeiro lugar, deviam cumprir

determinados requisitos físicos. Na opinião dos médicos e dos pedagogos, convinha

serem parecidas com a mãe biológica, suficientemente saudáveis e ter uma idade

situada entre os vinte e cinco e os trinta e cinco anos, próxima, portanto, da “idade

perfeita”. Atentas ao respeito das normas de higiene pessoal, as amas deveriam, ainda,

ser dotadas de seios nem gordos nem magros, nem duros nem moles, havendo

vantagem em terem já tido um ou mais filhos, visto tal situação ser considerada

propiciadora de um leite de boa qualidade, ou seja, branco, aromático, saboroso, nem

muito fluido, nem muito espesso ou gorduroso, conforme se poderia observar vertendo

_________________________________________________________________________________________________ 115

34 A. de Almeida Fernandes, "Proles régias criadas em meio rural nos séculos XII e XIII" in Esparsos de História, Porto, 1970, pp. 161-183.

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uma gota sobre a unha e examinando os respectivos aspecto e consistência.35 Como já

referimos, desaconselhava-se, também, o serviço de amas de leite com seios grandes

tendo em conta a prevenção de mal formações no rosto do bebé.36

Para além disso, a escolha da ama também aconselhava a avaliação de certas

qualidades comportamentais, não devendo, por exemplo, ser colérica, triste, medrosa ou

imbecil; não devia, ainda, ser excessivamente tagarela para que a criança a amamentar

não adquirisse tal hábito. Convinha, no entanto, saber cantar melodias capazes de

embalar e confortar os bebés, assim como conhecer o modo de lhes corrigir uma

eventual gaguez, bem como as técnicas recomendadas para lhes atenuar possíveis

deformações faciais, quer da boca ou do nariz, quer os muito frequentes estrabismos.37

Depois, já no exercício das suas funções, deveriam ser vigiadas para haver a

certeza de não prejudicarem as crianças a elas confiadas. Nesse sentido, era aconselhado

verificar se não comiam alimentos salgados, picantes ou ácidos, bem como pão de trigo,

arroz, carnes velhas e especiarias e se não bebiam vinho puro para não prejudicar o

cérebro da criança. Recomendava-se, pelo contrário, avaliar se consumiam suficiente

farinha de favas, arroz, pão de sêmola, peixe fresco, muito leite cru ou fervido, vinho

misturado com água e mel e, na quantidade certa, água que permitia não fluidificar ou

espessar demasiadamente o seu leite.

Por fim, ainda se lhes impunha evitarem as deslocações exteriores, para que o

cansaço não diminuísse a qualidade do alimento a fornecer e, sobretudo, a interdição

de relações sexuais, já que qualquer gravidez desviaria para o feto em gestação o sangue

destinado a fortalecer o leite da amamentação.38

______________________________________________________________________________________ 116

35 Também se atribuía a Hipócrates a comprovação da qualidade do leite através da sua observação depois de ter sido recolhido e guardado durante a noite num vaso de corno ou nácar; não seria bom se na manhã seguinte estivesse fluido ou sólido. Seria de óptima qualidade se aparentasse um estado intermédio.- Cf. El libro de la generatión del feto..., ed. cit., p . 115. 36 Vidé p. 104. 37 Cf. Charles de la Ronciére, « A vida privada dos notáveis toscanos no limiar do Renascimento » in Philippe Ariès e Georges Duby (dir.), História da Vida Privada, 2, Lisboa, Ed. Afrontamento, 1990, p. 281. 38 Danièle Alexandre-Bidon e Didier Lett, Les enfants au Moyen Âge, ed. cit., p. 124. Sobre a generalidade dos cuidados a ter com a escolha da ama, veja-se El libro de la generatión del feto..., ed. cit., pp. 114-116.

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Figura 32 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII). A visão celestial do aleitamento de Cristo.

Tentando fazer o desmame progressivo o bebé era, desde os primeiros dias,

alimentado também com papas de farinha e alimentos semi-líquidos esmagados.

Aldebrandino de Siena propunha que ele se iniciasse pela ingestão de pão previamente

mastigado pela ama e fosse depois gradualmente substituído por uma papa de migalhas

de pão, mel, leite e um pouco de vinho.39 A ingestão desta última bebida estava

relacionada com o pressuposto de que os resíduos vinícolas depositados após a

evaporação do álcool eram ideais para combater as diarreias infantis.40

No Al-Andaluz, por seu lado, aconselhava-se como um primeiro passo, fazer a

criança chuchar e mastigar bolas de farinha de sêmola com leite e açúcar, ao que se

39 Aldebrandino de Siena, Le Régime du corps, ed. cit., p. 78.

_________________________________________________________________________________________________ 117

40 Pierre Riché e Danièle Alexandre-Bidon, L'enfance au Moyen Âge, Paris, Ed. du Seuil, 1994, p. 76.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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devia seguir a ingestão de bocadinhos de peito de frango pequeno para que ela se

treinasse a deglutir; acrescentava-se, ainda, que tal regime alimentar devia começar por

volta dos dois anos de idade, e não ser iniciado nos meses quentes, particularmente no

Verão, a fim de evitar problemas gastrointestinais.41

De facto, a fase do desmame, durante a qual a criança abandonava a

amamentação, coincidia com um período de acentuada morbilidade, já que as alterações

alimentares que então ocorriam provocavam frequentes febres, infecções dentárias e

doenças gastrointestinais, em grande parte devido ao facto de a dentição, muito pouco

consolidada, tornar difícil a mastigação dos alimentos sólidos e a sua posterior absorção

por parte de um sistema digestivo ainda mal estruturado. As já mencionadas hipoplasias

lineares do esmalte dentário, presentes nos esqueletos de crianças exumados em várias

necrópoles medievais portuguesas,42 indiciam, no seu conjunto, as funestas

consequências de uma precipitada iniciação infantil aos hábitos alimentares comuns aos

restantes membros da família, ou seja, a uma dieta abrasiva onde predominavam os

cereais mal cozidos. 43

Entretanto, ao longo dos primeiros meses, o bebé crescia em tamanho e em

inteligência, reforçando o olhar nas coisas brilhantes e luminosas e a audição através da

distinção e imitação dos sons. Segundo Hipócrates, esse desenvolvimento, sendo

comum às crianças dos dois sexos, era mais lento entre os rapazes. Contudo, se as

raparigas os precediam no atingir da juventude e da puberdade, também mais depressa

chegavam à velhice e à decrepitude. Neste sentido, os meninos, a quem se atribuía uma

mais rápida evolução intra-uterina, eram comparados às plantas fortes, cujo lento

crescimento contrastava com a rapidez característica das mais fracas e débeis.44

______________________________________________________________________________________ 118

41 El libro de la generatión del feto..., ob. cit., p. 150. Para uma síntese do tipo de alimentação utilizado durante os primeiros anos de vida, consulte-se, Danièle Alexandre-Bidon e Monique Closson, L’enfant à l' ombre des cathédrales, Paris, Cahiers du Léopard d’Or, 1985, pp. 131-144. 42 Vidé nota 18. 43 Sobre as marcas deste tipo de alimentação na dentição infantil, veja-se, por exemplo para Serpa, Maria Teresa Ferreira, As crianças moçárabes de Serpa: análise paleobiológica de uma amostra de esqueletos exumados da necrópole do loteamento da zona poente de Serpa, Coimbra, Departamento de Antropologia, 2000 (Relatório de Investigação), p. 49 e Sónia C. F. Codinha, Uma necrópole medieval em Serpa: contribuição para o estudo de indivíduos não adultos, Coimbra, Departamento de Antropologia, 2001 (Relatório de Investigação), pp. 43 e 48. Para S. Pedro de Marialva, Eugénia Cunha, Cláudia Umbelino, Teresa Tavares, ob. cit.,ed. cit., p. 142. 44 El libro de la generatión del feto..., ed. cit., pp.121-122.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

4 - O SONO

Tido nos dias de hoje

como essencial ao crescimento

equilibrado de qualquer criança, o

sono reparador, diurno ou noc-

turno, encontra-se quase ausente

das preocupações dos pedagogos e

educadores medievais, talvez por-

que o seu transtorno ou dificuldade

pouco se fizesse então sentir. Com

efeito, o sono das crianças apenas

surge referenciado enquanto acti-

vidade infantil a proteger ou a

corrigir pelos adultos. A protecção

relaciona-se com a prática corrente

de deitar as crianças nas camas dos

adultos, sejam as mães, as amas, os

irmãos, os pais ou outros membros

da família. De facto, apesar dos

avisos relativos à temida ocor-

rência dos já atrás referidos infan-

ticídios por abafamento ou es-

magamento,45 não só é essa a si-

tuação mais frequente representada

na iconografia das iluminuras ga-

laico-portuguesas, como também a

_________________________________________________________________________________________________ 119

que surge recomendada na gene-

ralidade da tratadística médica,

para melhor fornecer o calor

necessário à sobrevivência dos recém-nascidos e ao bem-estar que o sono devia

proporcionar a todos os bebés.

Figura 33 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII). A partilha infantil do leite materno.

45 Vidé “O infanticídio” no capítulo NASCER.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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Para as cidades da Hispânia muçulmana menciona-se, no entanto, o uso de

uma cama infantil devidamente individualizada, quando se aconselha dever o respectivo

colchão encontrar-se nivelado para não

magoar a criança, e ser suficiente-

mente mole para não lhe deformar a

coluna. Recomendava-se, ainda, que a

cabeça do bebé deveria ficar, durante o

sono, um pouco mais alta que o seu

corpo.46 Mais tarde, nos paços da

nobreza portuguesa da Baixa Idade

Média, seriam visíveis os berços

situados nas câmaras das mães e amas Figura 34 – Túmulo de D. Pedro (Século XIV). Representação de um berço na tumulária medieval.

de leite, conforme se representa no

túmulo alcobacense do rei Pedro I.

Quanto às famílias não privilegiadas, apenas se alude aos berços nas

hagiografias, neles se identificando o lugar onde as mães das vilas e cidades punham os

filhos a repousar durante as suas ausências domésticas.47 Talvez não fossem muito

diferentes dos utilizados noutras regiões medievais europeias, podendo assemelhar-se,

no caso das moradas das famílias economicamente mais desfavorecidas, a uma caixa de

madeira muito pouco aparelhada que se encontrava suspensa por cordas nas traves dos

tectos das mais modestas casas da Toscâna, as quais, ao serem balançadas como redes,

permitiam facilmente embalar e adormecer as crianças. 48

______________________________________________________________________________________ 120

Seja no leito familiar ou no berço colocado perto dele, tanto o sono como o bem-

-estar dos bebés muito dependiam da presença e actuação das mulheres da casa, fosse a

mãe, a ama, ou qualquer parente mais ou menos próxima ou até conhecida, sendo nelas

que a literatura pediátrica produzida na Cristandade da Baixa Idade Média fazia recair

os cuidados a dispensar às crianças de tenra idade, enquanto reservava para os homens,

quer os pais, quer os seus possíveis substitutos, uma mais tardia formação moral e

intelectual.49 Na versão portuguesa do Foro Real de Afonso X, continha-se mesmo

uma disposição que obrigava a molher solteyra com filho dalguu ome solteyro a criá-lo

46 El libro de la generatión del feto..., ed. cit., p. 103. 47 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), I, ed. José Joaquim Nunes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, p. 247 . 48 Charles de la Roncière, ob. cit., ed. cit., p. 224. 49 Id., ibidem, p. 281.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

ata .III. anos mesmo que o ome solteyro o tivesse recebido por filho, só a partir de então

se admitindo que esse padre o criasse des ali adeante do seu e nõno tenha mays a

madre, senon quiser.50

5 - O ANDAR E O FALAR

Depressa chegava o tempo

em que a criança começava a querer

movimentar-se e a explorar o espaço

pelos seus próprios meios. Passados

os três anos iniciais, começava

progressivamente a autonomizar-se.

Entrava, então, numa nova fase da sua

jovem vida, já “muito grande” para

continuar a ser tratada como vinha

sendo, mas ainda pequena para

disciplinar os seus ímpetos e instintos.

A aquisição do andar repre-

sentava uma etapa importante desta

nova fase. Nos manuais médicos,

referia-se a idade de um ano ou pouco

mais, como aconselhável para a sua

iniciação, já que, conforme explica-

vam, antes seria difícil evitar que a

fraqueza do corpo infantil

ultrapassasse os acidentes próprios dos

perigos do andar muito cedo.51 Por vezes, chegava-se a recomendar não fazer andar

muito as crianças ou deixá-las permanecer muito tempo de pé antes dos sete anos, como

medida preventiva para o bem-estar dos seus membros, cuja fragilidade podia fazer

com que se torcessem ou partissem facilmente.52

Figura 35 – Iluminura (Século XV). O andador de madeira torna-se um auxiliarrecorrente na aprendizagem da deslocaçãoinfantil.

_________________________________________________________________________________________________ 121

50 Afonso X, Foro Real, ed. José de Azevedo Ferreira, Lisboa, I.N.C.M., 1987, p. 222. 51 Danièle Alexandre-Bidon e Monique Closson, ob. cit., ed. cit., p. 191. 52 Aldebrandino de Siena, Le Régime du corps, ed. cit. p. 78.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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Num tratado médico hispano-árabe peninsular sugeria-se que a vigilância sobre

a criança que começava a pôr-se em pé e a tentar andar fosse acompanhada pelo uso de

um andador de madeira, no qual a criança se deveria apoiar para se deslocar.53 Mais

tarde, um tal utensílio surge frequentemente referido nos textos pedagógicos cristãos da

Baixa Idade Média, neles se acrescentando dever ser respeitada a regra da utilização de

uma superfície lisa e homogénea durante os primeiros ensaios do andar da criança a fim

de evitar futuros coxeares.54

De uma forma geral, eram sobretudo temidos os acidentes incapacitadores de

um correcta postura, nomeadamente os que conduzissem a uma movimentação de tipo

animalesco, como a do vulgar “gatinhar”. Tratava-se, com efeito, de prevenir o andar

cuja deficiência ou irregularidade pudesse ser interpretada como incapacidade atribuível

a castigos divinos. Por isso, quer a angústia familiar por um tardio início da locomoção

dos filhos, quer a motivada por esta ter sido acompanhada por anomalias incapacitantes,

levavam muitas vezes os pais a solicitar a ajuda dos santos. 55 De facto, nos livros de

milagres medievais portugueses registam-se várias graças de cura ou correcção do andar

infantil, como o ocorrido a um rapaz de mais ou menos doze anos que desde o ventre de

sa madre era tão aleijado das pernas que se movia arrastando-se, ou o acontecido a

uma criança que não podia caminhar sem ser sobre as mãos e os joelhos.56 É também

desse tipo a graça que o cronista Duarte Galvão diz ter sido responsável pela cura do

aleijão com que Afonso Henriques nascera, quando, ao retomar anteriores escritos

lendários, refere o milagre pelo qual Nossa Senhora de Cárquere agraciara o rei menino,

que então seria de pernas tão encolheito que, a parecer dos Mestres e de todos,

julgavam que nunca poderia ser são delas.57

De resto, os cuidados a ter para a consolidação e desenvolvimento de um

correcto andar infantil, também foram objecto da atenção dos pedagogos. Conhecedores

da prática social de muitos jogos de destreza corporal, explicaram como deveriam ser

______________________________________________________________________________________ 122

53 El libro de la generatión del feto..., ed. cit., p. 150. 54 Pierre Riché e Danièle Alexandre-Bidon, L’enfance au Moyen Age, Paris, Ed. du Seuil, 1994, p. 78. 55 Na França medieval existiam santos especializados neste tipo de curas, como era o caso de S. Guinefort: Jean-Claude Schmitt, Le Saint Lévrier. Guinefort, guérisseur d’enfants depuis le XIIIe. siècle, Paris, Flammarion, 1979. 56 Vejam-se, respectivamente, “Vida de Santa Senhorinha” in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, IV, Lisboa, 1869/1870, p. 228, com passagem paralela em "Vida e Milagres de Santa Senhorinha", ed. Torquato Peixoto de Azevedo, Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, Guimarães, Gráfica Vimaranense, 2000, p. 470; Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ed. Aires Nascimento e Saul António Gomes in S. Vicente de Lisboa e seus Milagres Medievais, Lisboa, Didaskalia, 1988, p. 71. 57 Duarte Galvão, Chronica de El Rei D. Affonso Henriques, Lisboa, I.N.C.M., 1995, p. 22.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

frequentemente praticados pelas crianças, já que garantiam ser o continuado exercício

de levantar alto o corpo e os braços, a melhor forma de reforçar a musculatura das

pernas.58

Quanto à aprendizagem e desenvolvimento do falar infantil, os tratados

médicos medievais consideravam essencial os cuidados a ter com o surgimento dos

dentes, uma vez que deles faziam depender a correcta, deficiente ou incompreensível

articulação das primeiras palavras a pronunciar pelas crianças. Nesse sentido,

começavam por prescrever a massagem das gengivas com manteiga, gordura de galinha

ou, mesmo, mioleira de lebre assada, a fim de propiciar o aparecimento e

desenvolvimento de uma saudável dentição. Depois, mal a criança começasse a

balbuciar as primeiras palavras, aconselhava-se a esfregar-lhe a boca com sal gema e

mel, assim como a lavá-la com água de cevada, para fortalecer a dentição e preparar o

bom funcionamento das articulações ósseas e musculares da cavidade bucal. 59

Por fim, no que respeita à aprendizagem das palavras, sugeria-se começar pelas

mais fáceis de pronunciar, ou seja, aquelas em que não existiam os sons que exigiam

mexer muito a língua, sendo recomendados para tal efeito os vocábulos "mamã" e

"papá". De resto, os letrados não deixavam de alertar para a natureza necessariamente

desordenada e descontrolada das frases produzidas pela criança nesta sua primeira

linguagem, atribuindo-a ao facto de ela ainda não ter atingido a idade da razão. 60

Neste contexto, não surpreende a chamada de atenção para os perigos morais

trazidos pelo contacto com as crianças. Para muitos letrados eclesiásticos, a imperícia e

a forma por vezes provocatória com que se iniciavam ao andar e ao falar, eram, por

vezes, interpretadas como consequência das más influências dos demónios que as

rodeavam, levando-as a prestar juramentos falsos e a dizer asneiras. 61 Supostamente

desprovidas de razão, as crianças eram muitas vezes vistas como seres inconsequentes

que apenas sabiam proferir obscenidades e cantar durante todo o dia, conforme o

expressou, no século XIV, o bispo de Silves, Frei Álvaro Pais no seu Estado e Pranto

da Igreja. 62

_________________________________________________________________________________________________ 123

58 Pierre Riché e Danièle Alexandre-Bidon, L’enfance au Moyen Age, Paris, ed. cit., p. 78. 59 Id., ibidem, p. 81. 60 El libro de la generatión del feto..., ed. cit., p. 149. 61 Citado em Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe. – XIIIe. siècle), ed. cit., p. 104. 62 Álvaro Pais, Estado e Pranto da Igreja, (Status et Planctus Ecclesiae), V, ed. Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, J.N.I.C.T., 1994-95, pp. 439-441.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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6 – O JOGAR E O BRINCAR

A saída da primeira infância e a entrada na segunda,63 representava um período

complicado e difícil para a criança. Afastando-se, progressivamente, do meio fechado

em que vivera, ela tendia então a manifestar uma oposição sistemática às normas que

até aí a haviam orientado. Hoje conhecida como a idade da afirmação, essa fase do

crescimento infantil traduzia-se, sobretudo, no desejo de transgredir interditos e na

procura de uma individualidade autonomizadora. Era esse, com efeito, não só o tempo

em que os futuros santos começavam a evidenciar as suas opções espirituais, como

aquele em que a maior parte das crianças se associava em grupos para se entregar a

actividades lúdicas cada vez mais praticadas longe da sua casa. Em suma, quando os

campos e as ruas se transformavam no prolongamento das suas moradas,64 definindo

novos espaços de lazer, aventura, descoberta e também de perigo, tal como evocavam os

livros de milagres quando relatavam as graças concedidas às crianças acidentadas em

brincadeiras de rua.

Noutros casos, porém, estas mesmas fontes fornecem-nos preciosos elementos

sobre a forma como decorriam as actividades lúdicas a que as crianças se dedicavam.

Por um lado, informam-nos sobre os passatempos solitários, como aqueles a que um

menino de muito pouca idade se dedicava junto a um muro 65 ou outro que, ainda de

berço, brincava com huuas pedrinhas.66 Por outro, registam a presença dos bandos

infantis que nas aldeias, vilas e cidades se entregavam a brincadeiras em huum canall

de huum rio çarrado, 67 ou que jogavam ao salto num balneário de água quente,68

também podendo, nas povoações litorâneas, ir folgar com outros moços aa ribeira do

mar. 69

______________________________________________________________________________________ 124

63 Este período era considerado acontecer entre os três e os cinco anos: vidé capítulo DIFERENCIAR 64 Cf. Iria Gonçalves, "Posturas municipais e vida urbana na Baixa Idade Média: o exemplo de Lisboa", in Um olhar sobre a cidade medieval, ed. cit., p. 78. 65 Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas, da Antiga, e Regular Observancia nestes reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, I, Lisboa, 1745, p. 488. 66 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), I, ed. cit., p. 247. 67 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), I, ed. cit., pp. 272-273. 68 Frei Baltazar de S. João, A vida do bem aventurado Gil de Santarém, ed. Aires A. Nascimento, Lisboa, 1982, p. 106. 69 Cousas Notaveis e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. José Joaquim Nunes, Porto, 1912, pp. 30--31 e pp. 34-35.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

O crescer implica brincadeiras e brinquedos. Para ambos a informação

veiculada pelas fontes consultadas é escassa.70

Sabemos que em Lisboa, a principal cidade portuária do reino nos finais da

Idade Média, os jogos com a água envolviam o fabrico e a manipulação de objectos

miniatura, com os quais as crianças sonhavam futuras aventuras e vocações. Eram, por

exemplo, os barcos de cortiça que uma postura municipal de 1432, proibia aos moços

fazer navegar nas fontes públicas da cidade, o mesmo acontecendo, sob pena de

pagamento de uma comum multa de cinquenta reais, em relação às pedras que eles para

lá lançavam nas suas brincadeiras.71

No campo, por sua vez, a água servia como lugar de jogos relacionados com a

descoberta do corpo e dos seus prazeres, conforme o celebraram, em termos de forte

erotismo, muitas das cantigas de amigo dos cancioneiros galaico-portugueses. Com

efeito, os jograis e os trovadores de Duzentos e Trezentos consideraram a água das

fontes e dos rios, como cenário privilegiado para a exploração da temática dos jogos de

sedução, ao evocarem as muitas jovens donzelas que aí tomavam a consciência da sua

beleza e desejos.72 Ora, no motivo poético das amigas que iam lavar cabelos a la fonte

e lá descobriam a sua natureza louçãa e o desejo de agradar a um senhor d’eles,

podemos talvez detectar a realidade das moças que frequentavam a água dos rios e das

fontes em costumados jogos, brincadeiras e prazeres. 73

_________________________________________________________________________________________________ 125

70 Este facto foi também salientado por Piponnier: « L’activité ludique est une de celles qui sont susceptibles de laisser le moins de traces dans les archives comme sur le terrain”: F. Piponnier, « Les objects de l’enfance » in Annales de démographie historique, 1973, p. 71. 71 Cf. Iria Gonçalves, "Posturas municipais e vida urbana na Baixa Idade Média: o exemplo de Lisboa" in Um olhar sobre a cidade medieval , ed. cit., p. 95. 72 Maria do Rosário Ferreira, Águas doces, águas salgadas. Da funcionalidade dos motivos aquáticos na Cantiga de Amigo, Porto, Granito, 1999, pp. 83-150. 73 Cantigas d’Amigo dos Trovadores Galego-Portugueses, ed. José Joaquim Nunes, Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1973, cantiga CXXII, p. 112.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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Entre os rapazes, por outro lado, as actividades lúdicas incluíam, muitas vezes,

práticas de ar livre mais desportivas ou até agressivas.74 Com efeito, a partir da análise

das cartas de perdão régio quatrocentistas, Luís Miguel Duarte refere como nelas se

menciona que algumas crianças, quer fossem espectadoras quer fossem vítimas dos

crimes sobre os quais recaía a graça do soberano, se entregavam a brincadeiras com

huum mancebo de paao em que se poynha a cadea e lhe arremessava cada

huum per sua vez huum espeto de ferro na cabeça,

ou, para além do caso dos que se entretinham a atirar pedras a porcos, simplesmente

andando-se empuxando huuns aos outros e fazendo outras travessuras que

fazem meninos.75

Figura 36 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII). Um grupo de crianças iradas injuria e persegue um suposto louco.

74 Claude Gauvard, “Les Jeunes à la fin du Moyen Âge: Une classe d’âge?” in Les entrées dans la vie – - Initiations et apprentissages, XII congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l ‘Enseignement Supérieur Public, Nancy, 1981, pp. 225-244. 75 Luís Miguel Duarte, Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pp. 274, 275 e 277.

______________________________________________________________________________________ 126

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

De resto, as iluminuras das Cantigas de Santa Maria dão-nos a representação

de algumas destas explosões de energia e agressividade infantis e juvenis, como os

casos do bando de jovens urbanos que ajudam numa assuada destinada a expulsar da

cidade um suposto louco, ou como contribuíram, na primeira fila de uma multidão de

adultos para o apedrejamento de um homem, já fora das muralhas do povoado.76

Figura 37 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII). Crianças participando na cena de apedrejamento de um marginal urbano que foraexpulso da cidade.

Em suma, nos campos e nas cidades medievais, as crianças das famílias menos

abastadas e, por isso, menos vigiadas e tuteladas, cresciam ao ar livre a saltar, a correr, a

atirar pedras, a escorregar, ou a imitar os animais e os adultos em muito diversificados

jogos e brincadeiras, utilizando os recursos que a natureza lhes oferecia - a água, a terra,

as pedras, as penas de aves ou os simples paus, como objectos para que transferiam

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76 Afonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial, respectivamente, cantigas LXV e CXXIIII.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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ludicamente situações e personagens reais ou imaginárias, a partir das quais construíam

e exploravam diversificados contextos de experimentação e aprendizagem sociais.

Entre as actividades lúdicas a que constantemente se dedicavam, também

deveriam figurar os vários desportos de precisão e adestramento físico a que se

entregavam os adolescentes das vilas e cidades em campos muitas vezes destinados a

esse uso, e, em geral, situados em terrenos baldios localizados no exterior das muralhas

de algumas povoações.77

O jogo da péla seria um dos mais populares, especialmente aconselhado pelo

rei português João I para o treino físico dos jovens cavaleiros, porque lhes fazia tender

os membros,78 se bem que o filho, o monarca Duarte, pelo contrário, o viesse a

considerar pouco dignificante para a educação dos jovens fidalgos, já que apenas lhes

ensinaria manhas de pouco proveito.79

Contudo, seja na situação

de meros espectadores, seja na de

praticantes que nele se iniciavam

quando os campos de jogo não

estavam a ser utilizados pelos

rapazes mais velhos, certamente que

as crianças encontravam no desporto

da péla um fascinante passatempo.

Paralelamente, as brinca-

deiras infantis ainda conheciam

as actividades lúdicas despertadas

pela posse e manipulação de

brinquedos produzidos para as crianças, tal como o provam diversos achados

arqueológicos recolhidos em Loulé e, sobretudo, em Silves. Fabricados em cerâmica,

destinavam-se a permitir às crianças das vilas e cidades do Gharb-al-Andalus a prática

de jogos e passatempos, quer propícios ao treino lúdico de futuras ocupações adultas,

Figura 38 - Miniatura de bule (Séculos XII-XIII).

______________________________________________________________________________________ 128

77 A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, ed. cit., p. 193. Em Lisboa, os campos para o jogo da péla situavam-se nas actuais praças do Martim Moniz e do Rossio, na parte exterior do troço ocidental das muralhas fernandinas. – Cf. A. Vieira da Silva, A cerca fernandina de Lisboa, I, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1987, pp. 62-63, 111. 78 D. João I, “Livro de Montaria,” in Obras dos Príncipes de Avis, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1981, capítulo II, p. 9. 79 D. Duarte, Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, ed. Joseph, M. Piel, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986, capítulo XIII, p. 115.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

quer destinados a manter-lhes a curiosidade e a familiaridade com a forma e a natureza

dos quotidianos próximos ou longínquos, tal como ocorria através das brincadeiras

feitas com os cavalos, peixes ou girafas miniaturais encontrados nos espólios

arqueológicos recolhidos em diversas povoações da Hispânia muçulmana. 80

Figura 39 - Miniaturas de umapanela, um bule, uma jarra euma lamparina (Séculos XII-XIII).

Na sua totalidade, os arqueo-brinquedos medievais até agora encontrados no

Algarve destinavam-se a meninas. A maior parte consiste em miniaturas de louça

doméstica, incluindo bules, jarras, panelas e lamparinas. O facto da composição da sua

pasta cerâmica ser idêntica à utilizada no fabrico dos objectos que pretendem imitar,

parece indiciar, segundo Rosa Varela Gomes, tratar-se de uma produção

especificamente destinada às crianças, pouco se conhecendo, no entanto, sobre a

respectiva amplitude.

80 Rosa Varela Gomes, Silves – Uma cidade do Gharb Al-Andalus – Arqueologia e História (séculos VIII-XIII), Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1999 (Tese de Doutoramento), pp. 1670-1672. Na opinião da autora estes brinquedos zoomórficos estariam relacionados com as festas do Nayruz ou Naweuz, que comemoravam o primeiro dia do ano solar persa e coincidiam, na Península Ibérica, com o equinócio da Primavera, sendo, então, oferecidos às crianças.

_________________________________________________________________________________________________ 129

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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Sabemos, também, que entre os brinquedos algarvios de cerâmica destinados às

meninas, se encontravam pequenas bonecas, cujas barrigas proeminentes aludiam à

maternidade. Para as raparigas, constituiriam, decerto, um pretexto para o

desenvolvimento de jogos e brincadeiras relativos à aprendizagem das suas futuras

vidas de mulheres casadas e de mães, tal como as miniaturas de louça doméstica

serviriam de treino para posteriores funções culinárias. 81

Globalmente, a presença de tais brinquedos testemunha como a sociedade

hispano-muçulmana atribuiu uma especial atenção à

educação das crianças, continuando, nesse sentido,

as tradições urbanas que haviam sido herdadas da

Antiguidade Clássica. Com efeito, Platão

reconhecera que "aos três, quatro, cinco e mesmo

seis anos, a criança precisa de divertimento” e

Aristóteles defendera, ao referir-se ao valor

formativo dos jogos infantis, a "necessidade de

orientar e dirigir esta actividade para que ela

fosse educativa.” 82

A partir do renascimento intelectual do

século XII, a própria sociedade cristã medieval

deixou de permanecer indiferente ou reactiva a um

tal legado. Na centúria de Duzentos, por exemplo,

já vários dos seus letrados urbanos reassumiram a

ideia da necessidade de divertimento por parte das

crianças, recomendando e explicando, por um lado,

que era preciso deixar brincar a criança porque a

sua natureza assim o requeria, e aconselhando, por outro lado, o incentivo das

brincadeiras infantis, porque elas permitiam desenvolver as vantagens que até aí apenas

eram atribuídas à prática dos exercícios físicos, ou seja, o treino de um corpo

suficientemente ágil e forte.

Figura 40 - Boneca de cerâmica (Séculos XII-XIII).

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81 Rosa Varela Gomes, Palácio Almoada da Alcáçova de Silves. Catálogo da Exposição, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 2001, pp. 124-125. 82 Citado em Michel Manson, História do Brinquedo e dos Jogos, Lisboa, Teorema, 2002, pp. 123-124.

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CRESCER ______________________________________________________________________________________________

Contudo, estas posições não se sobrepuseram de imediato às que antes haviam

sido defendidas pelos letrados da Cristandade rural. De facto, continuavam presentes as

tradições que denunciavam as brincadeiras das crianças como sinais preocupantes de

um apego precoce aos malefícios espirituais do jogo, visto nele verem a origem da

aquisição de estratagemas destinados a enganar e a explorar o próximo.83 Por exemplo,

ainda no século XIV, Álvaro Pais exprimia essa posição, quando descrevia como

moralmente ociosos os meninos que brincam todo o dia e dedicam-se a maus jogos.84

Neste sentido, permaneciam activos os valores que as hagiografias haviam

consagrado, sobretudo quando associavam à infância dos santos vários episódios de

explícita recusa à participação em jogos e brincadeiras infantis. A S. Rosendo, por

exemplo, atribuía-se a atitude supostamente modelar de sempre haver recusado qualquer

interesse pelos brinquedos próprios das crianças85 e de Santa Isabel da Hungria

registava-se como, logo em sua meninice começou a fugir e desprezar todas as levezas

dos jogos, recordando-se que depois, se, algua vez jogava qualquer jogo que fosse,

tudo aquilo que ganhava dava-o aas mininas proves.86

Mesmo na Itália dos começos de Quatrocentos, continuavam as discordâncias

sobre o valor do brinquedo e do jogo para o crescimento e a educação das crianças. De

facto, no entender de um célebre pedagogo dominicano, se era de admitir serem os

jogos muito apreciados pelas crianças, porque “o seu sangue ferve e pede movimento”,

nunca os pais lhos deviam facultar, visto só lhes virem a ser prejudiciais. Na sua

opinião, nada havia a ganhar com cavalos de madeira, címbalos, passarinhos artificiais,

tamborins dourados e toda essa quantidade incrível de brinquedos diferentes, que só

alimentavam a vaidade. Tidos, portanto, como um luxo despertador de frivolidades, os

brinquedos deviam ser banidos de qualquer projecto educativo, dado o perigo de

poderem fazer despertar na criança vocações ou personalidades supostamente nocivas.

“Se lhe comprarmos uma pequena espada, ou mesmo uma adaga, faremos dela um

soldado nato,” dizia o referido dominicano, ao mesmo tempo que aconselhava os pais a

nunca brincarem com os seus filhos. 87

_________________________________________________________________________________________________ 131

83 Cf. J. M. Mehl, « Les jeux de l’enfance au Moyen-Âge » in R. Fossier (ed.), La petite enfance dans l’Europe médiévale et moderne, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 1997, p. 55. 84 Álvaro Pais, ob. cit., ed. cit., pp. 439-441. 85 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. Maria Helena da Rocha Pereira, Porto, 1970, p. 43. 86 'Da Sancta e muy piedosa Elisabeth, filha d’el Rey de Ungria', in "Adições Portuguesas no Flos Sanctorum de 1513", ed. Cristina Sobral, in Adições Portuguesas no Flos Sanctorum de 1513 (Estudo e Edição Crítica), Lisboa, Faculdade de Letras de Lisboa, 2000 (Tese de Doutoramento), p. 587. 87 Michel Manson, ob. cit., ed. cit., p. 52.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

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Porém, em meados do século XV, já a maioria dos pedagogos italianos mais

prestigiados defendiam ideias diferentes. Uns recomendavam dever as famílias

incentivar e observar os jogos preferidos pelos seus filhos, já que isso lhes permitiria

adivinhar o caminho que a criança iria adoptar e assim agir em conformidade. Outros,

baseados na crescente adesão aos valores renascentistas, aconselhavam a prática da

ginástica e dos jogos desportivos, como via complementar de uma educação até aí

extremamente centrada nos esforços tendentes à aquisição dos saberes letrados,

explicando como um harmonioso desenvolvimento do corpo e do espírito das crianças

desviava a juventude dos vícios relacionados com o ócio moral. Neste contexto, a

generalização da concordância com um discurso pedagógico atento ao valor educativo

dos jogos que não fossem, logo de início, demasiado grosseiros nem, depois,

excessivamente calmos ou agitados, conheceu um decisivo impulso quando os textos do

humanista Eneias Silvino se tornaram referência obrigatória em toda a Cristandade

católica. Com efeito, foi depois de haver defendido, em 1450, deverem os exercícios

físicos ser considerados como um recreio necessário à saúde das crianças, que ele foi

eleito bispo de Roma, sob o nome de Pio II (1458-1464), permitindo, assim, que as suas

ideias pedagógicas adquirissem uma outra autoridade e representatividade88

Pensada, sobretudo, em função dos rapazes, a progressiva aceitação do valor

formativo dos jogos e passatempos juvenis também fora motivada pela necessidade de

os legitimar enquanto meio destinado a disciplinar as actividades desordeiras

provocadas pelos bandos de adolescentes que vagabundeavam na maior parte das vilas e

cidades da Baixa Idade Média Ocidental. 89 De facto, tornava-se cada vez mais urgente

o enquadramento público ou familiar dos grupos de crianças e rapazes que nelas

circulavam, conforme sintetiza Charles de la Roncière, quer como assombrosas caixas

de ressonância das emoções dos adultos, quer na qualidade de um perigoso fermento de

instabilidade e contestação sociais. 90

______________________________________________________________________________________ 132

Na realidade, desde o século XII que os letrados vinham chamando a atenção

para os problemas de ordem pública causados pelos rapazes a partir do momento em

que se libertavam do mundo doméstico e feminino onde até então decorrera a sua

infância. Gilberto de Nogent, por exemplo, recordava como a idade em que se afirmava

88 Idem, ibidem, p. 53. 89 Elizabeth Crouzet-Pavan, "Une fleur du mal? Les jeunes dans l'Italie médiéval" in Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt (dir.), Histoire des jeunes en Occident, t. I, De L’Antiquité à l’époque moderne, Paris, 1996, pp. 199-254. 90 Charles de la Roncière, ob. cit.,ed. cit., p. 246.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

CRESCER ______________________________________________________________________________________________

a personalidade e por vezes se gerava a confiança e o reconhecimento por parte dos

adultos, era normalmente marcada pela imoderação,91 enquanto Julião de Vézelay

descrevia a adolescência como uma fase etária especialmente instável e indisciplinada,

já que os jovens tendiam a não se deixar guiar pela razão ou pelos conselhos dos mais

velhos, antes se abandonando aos prazeres e às paixões, ou seja, uma idade inconstante

e vagabunda em que, não só aquilo que hoje se amava era amanhã detestado, como o

que hoje se queria, logo se recusava no dia seguinte.92

Por seu lado, Filipe de Novara considera a adolescência como a mais perigosa

das quatro idades do homem, porque os jovens, desejosos de afirmação e de autonomia,

se tornavam audazes, imprudentes e desejosos de se expor.93 Era, em suma, a idade que

propiciava a reunião mais ou menos informal dos adolescentes, para, em conjunto,

provocarem os adultos e partilharem aventuras e gestos socialmente contestatórios ou

provocatórios, o que não os impedia de partilhar, por exemplo, devoções e

peregrinações, como se conta a propósito dos milagres de S. Frei Gil, quando se relata

haver um minino surdo ido com outros da mesma idade à sepultura do santo para

colocar um pouco desta terra nos ouvidos e assim obter a cura.94

Na Hispânia muçulmana do século XI, as energias e a natural rebeldia dos

adolescentes tiveram um privilegiado espaço de afirmação nas sociedades juvenis de

tipo iniciático, por elas se reconhecendo aos jovens uma mais ou menos regulamentada

liberdade de desenvolver actividades e comportamentos desviados dos padrões

dominantes, fosse o uso de cabelos compridos ou a utilização de um vestuário original e

pouco comum, ao mesmo tempo que também surgiam como um espaço propício à

afirmação de aptidões e gostos individualizados que, muitas vezes, se encontravam na

origem da adopção de alcunhas pelas quais os seus membros viriam a ser conhecidos

em adultos. Muito perto da cidade algarvia de Silves, terá sido essa a situação vivida por

Ibn Ammar, o futuro vizir do reino sevilhano dos Abábidas, conforme por ele foi depois

recordado ao lembrar como a sua entrada nesse tipo de grupo juvenil fora precedida

_________________________________________________________________________________________________ 133

91 Yves Ferroul, “Devenir adulte. L’exemple de Guibert de Nogent” in Éducation, Apprentissages, Initiation au Moyen Age, Actes du Premier Colloque International de Montpellier, Université Paul Valéry, 1991, p. 159. 92 Citado por Didier Lett, L’enfant des miracles, ed. cit., p. 120. 93 Filipe de Novara, Les Quatre Âges de l’homme, ed. M. De Fréville, Paris, 1888, Título 33, p. 21. 94 "S. Frei Gil" in Frei Luis de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, p. 242.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

_____________________________________________________________________________________________

pelo abandono ritual dos amuletos que lhe haviam sido oferecidos pelas mulheres do lar

familiar onde passara a sua infância. 95

Quanto às raparigas, a sua adolescência, mais vigiada e tutelada pelos pais, não

conheceu as mesmas liberdades e aventuras da vida levadas pelos rapazes fora do lar

familiar. Segundo o pedagogo Gil de Roma, as moças não deviam andar pelas ruas,

porque o lugar das mulheres e das donzelas era em casa, nada tendo a aprender fora

dela.96 Ora, esta dicotomia sexual de espaços não era, então, só teórica. De facto, todos

os acidentes fora de casa que encontrámos referidos nos livros de milagres medievais

portugueses, têm como protagonistas os rapazes, ocorrendo no interior do espaço

doméstico os dois únicos acidentes femininos referidos. De resto, uma tal diferenciação

permanecia ao longo da vida das mulheres, tal como reflecte a cronística medieval

portuguesa ao reservar quase sempre ao sexo feminino os espaços privados e

domésticos, enquanto associa a maioria dos homens aos espaços públicos e exteriores.97

No caso das hagiografias, são também notórias as diferenças existentes entre as

infâncias dos santos e das santas. De uma forma geral, nota-se a tendência para nestas se

exaltar uma infância dominada pelo respeito e observância das recatadas virtudes da

virgindade, do pudor e da castidade.98 Na Vida de Santa Senhorinha, por exemplo,

insiste-se numa educação modelarmente dominada pelo ideal de a castidade e a

virgindade do corpo ser uma cousa mui formosa, e santa, explicando-se como a alma

e o corpo virgem e casto a jovem dava a Deus.99 Por isso, não só resistira ao diabo que

lhe aparecera sob a forma de um belo homem, como recusara o casamento com um

mancebo mui louçaõ, filho de um conde mui rico que vinha de linhage dos Reis.100

______________________________________________________________________________________ 134

95 Stéphane Boisselier, Naissance d’une identité portugaise. La vie rurale entre Tage et Guadiana de L’Islam à la reconquête (Xe. – XIVe. Siècles), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999, p. 205. Sobre Ibn Ammar, consulte-se, Adalberto Alves e Hamdane Hadjadji, Ibn Ammar al-Andalusi. O drama de um poeta, Lisboa, Assírio e Alvim, 2000. 96 Gil de Roma, Le livre du gouvernement des Princes, (De regimine principum), ed. S. P. Molenaer, Paris, 1899, pp. 225 e 228. 97 Ana Rodrigues Oliveira, As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (sécs. XII a XIV), Patrimonia Histórica, Cascais, 2000, pp. 91-147. 98 Virtudes, aliás, exaltadas em todas as jovens: Ana Rodrigues Oliveira, ob. cit., ed. cit., pp. 65-69 e 77- -78. 99 "Vida e Milagres de Santa Senhorinha" in ob. cit., ed. cit., p. 446. 100 Id., ibidem, pp. 448-449.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

4 APRENDER Porque como naturalmente aquellas cousas, que os moços recebem na tenra hidade, se lhe emprantam no coraçam, e em sua memoria pera sempre.

Cortes de Lisboa, Dezembro de 14391

Contrariamente ao que defendeu Philippe Ariès, a

sociedade medieval não perdeu o sentido da educação,2 tendo

reflectido bastante sobre a necessidade de transmitir os seus

valores, ideais e saberes às novas gerações. Um importante

reflexo dessa preocupação encontra-se nos muitos tratados de

educação então produzidos por pais e preceptores letrados nas

mais diversificadas regiões do Ocidente medieval cristão, sendo

também frequente a elaboração de várias cartas e recomendações

escritas, em que pais e as próprias mães reflectiam sobre a

educação a fornecer aos seus descendentes.3

Gil de Roma, no De regimine principum, uma obra

dedicada ao rei Filipe, o Belo, lembra como entre as qualidades que um monarca

deveria possuir, se encontrava a do cuidado posto na educação dos príncipes. Nesse

sentido, dedica dois capítulos ao assunto, desde o nascimento até aos sete anos, onde

explica ser um dever dos pais para com os filhos não só cuidar da sua correcta

alimentação, como habituá-los a resistir ao frio, e ensinar-lhes, com eles praticando,

jogos, canções e outras actividades adaptadas às suas idades, nomeadamente as que

compreendiam a aprendizagem de palavras e cânticos honestos; deviam, ainda evitar

que chorassem para que se tornassem mais fortes e resistentes.4

1 "Chronica do Senhor Rey D. Affonso V" in Rui de Pina, Crónicas, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, p. 644. 2 “A civilização medieval esqueceu a Paideia dos Antigos e ignorava ainda a educação dos modernos. O facto essencial é esse: o conceito de educação não existia.” – Philippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Lisboa, Relógio d’Água, 1988, p. 320. 3 Consulte-se Pierre Riché, “Sources Pédagogiques et Traites d’Éducation” in Les entrées dans la vie – - Initiations et apprentissages, XII congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, Nancy, 1981, pp. 23-29. 4 Gil de Roma, Le Livre du gouvernement des Princes, ed. S.P. Molenaer, Paris, 1899, pp. 216-218.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ____________________________________________________________________________________________

1 - A EDUCAÇÃO

Para a sociedade medieval, a educação devia começar muito cedo, visto se

considerar que toda a criança, ao possuir uma espécie de memória inconsciente, seria

marcada por tudo o que visse ou ouvisse na mais tenra idade. A memória da criança era,

então, frequentemente comparada quer ao vidro ou à cera mole onde tudo se imprimia

de maneira indelével, quer a um frasco onde sempre permanecia o odor do que lá fora

colocado primeiro. 5 Segundo Afonso X, de Castela e Leão,

os mozos para aprender las cosas deviam ser pequeños, como la cera blanda

cuando la ponen el sello, que cuanto más tierna, tanto más pronto aprehende en

ella lo que está en el sello figurado. 6

Ao aprender-se muito cedo a virtude e a disciplina, as crianças sempre delas

guardariam a lembrança. Pelo contrário, se fossem mais crescidas depressa se

esqueceriam delas, voltando ao que já antes se haviam habituado.7

Segundo o pedagogo Gil de Roma, a educação das crianças destinava-se a

corrigir uma natural tendência para se portarem mal. A fim de a contrariar, os pais não

só deviam ensinar aos seus filhos a doutrina cristã, tanto mais assimilada quanto mais

precocemente iniciada, como evitar o seu contacto com as coisas feias e vilãs que logo

guardariam na memória. Nesse sentido, nunca deveriam ser colocados perante a estátua

ou a pintura de uma mulher nua, sob pena de poderem vir a desenvolver o apego aos

prazeres e às más tentações para que já estavam vocacionados.8

Na opinião do canonista Álvaro Pais, bispo de Silves, os progenitores deveriam

ter o máximo cuidado com a sua privacidade pois que, dormindo frequentemente no

mesmo quarto, e até na mesma cama, as crianças eram testemunhas da vida íntima do

casal. Esta intimidade convivida poderia vir a despertar-lhes desejos ilícitos para a sua

idade, ou seja, o pecaminoso prazer da imitação de hábitos carnais apenas legitimáveis

_______________________________________________________________________________________________ 136

5 Sobre este tema e respectiva bibliografia, consulte-se, Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe – XIIIe siècle), Paris, Aubier, 1997, p. 63. 6 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey cotejadas con vários códices antiguos, Partida Segunda, Título 7, Lei 4 Madrid, Real Academia de la Historia, 1807. Também segundo Aldebrandino de Siena, “Comme la cire quand elle est molle prend la forme qui l’ont veut lui donner, l’enfant prend la forme que la nourisse lui donne” - Le Régime du corps, ed. L. Landouzy et R. Pépin, Paris, 1911, p. 75. 7 Alfonso el Sabio, id., ibidem. 8 Gil de Roma, ob. cit., ed. cit., pp. 194, 196, 206 e 207. Aliás, mesmo a visão da nudez dos pais durante os banhos era desaconselhada às crianças: Didier Lett, ob. cit., ed. cit., p. 63.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

pela procriação.9 Em suma, conforme sintetizou Raimundo Lúlio, era necessário salva-

guardar as crianças das tentações que a vista gerava no corpo para atingir a alma.10 Na

opinião deste último letrado, cabia aos pais educar todos os sentidos dos filhos, a fim

de os defender dos ataques do mundo. Era assim conveniente fornecer-lhes lugares de

infância agradáveis e arejados e evitar-lhes não só a visão de belas e ricas roupas que

lhes podiam alimentar o orgulho ou a inveja, como também o excesso de doces que

gerava a gulodice. A criança devia então ser educada para aprender a ser moderada e

dotada de hábitos e costumes virtuosos, incluindo os corporais, visto a prática do

exercício físico estar indicada para a prevenção da gordura e da preguiça.11

Relativamente à aplicação destes princípios educativos, os pedagogos da Baixa

Idade Média não afastaram o uso dos castigos corporais, mesmo sendo conhecidos

casos em que a sua aplicação imoderada chegara a provocar o homicídio involuntário de

algumas crianças. Foi o que aconteceu, por exemplo, com uma criança que, sem querer,

partiu uma jarra de água que pertencia ao seu pai adoptivo. Este, enfurecido, deu com

hua corda com que andava a dita jarra atada ao moço com desprezo que ouvera pello

castigar cuydando que lhe dava nas costas. O menino, instintivamente, baixou-se, e a

corda atingiu-o na cabeça; como ficara uma asa da jarra presa à ponta da corda, este

fragmento causou-lhe uma ferida mortal.12

Filipe de Novara não hesitou recomendar que, uma vez esgotadas as

advertências, se vergastassem, ou até mesmo se aprisionassem, as crianças mal

comportadas.13 Se tivermos em conta as recordações de infância do Mestre Estevão, um

monge do mosteiro de Celanova, verificamos como era habitual punirem-se os

desregramentos das crianças oferecidas ao cenóbio com chicotadas ou cadeias,

destinadas a prender-lhes os movimentos, sendo esses os castigos que ele confessa ter

recebido em menino, por não se submeter à disciplina dos estudos e procurar escapar às

punições ao fugir e esconder-se na floresta. 14

_______________________________________________________________________________________________ 137

9 Cf. Álvaro Pais, Estado e Pranto da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae), V, ed. Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, J.N.I.C.T., 1994-95, p. 439. 10 Raimundo Lúlio, Doctrine d’enfant, ed. A. Llinares, Paris, 1969, Título 91. 11 Raimundo Lúlio, id., ibidem. Veja-se, também, Charles de la Ronciére, « A vida privada dos notáveis toscanos no limiar do Renascimento » in Philippe Ariès e Georges Duby (dir.), História da Vida Privada, 2, Lisboa, Ed. Afrontamento, 1990, p. 210. 12 Luís Miguel Duarte, Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 278. 13 Charles de la Ronciére, id., ibidem. 14 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Porto, 1970, pp. 69-71.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ____________________________________________________________________________________________

Contudo, nem sempre a pedagogia dos castigos corporais era tão taxativamente

recomendada, antes prevalecendo o aconselhamento de um seu uso excepcional e

moderado, de forma a que a punição física fosse compreendida pelas crianças a quem

era aplicada. De uma forma geral, os pedagogos apenas a sugeriam quando se

esgotavam as vias de repreensão por apelo à razão, submissão a ordens orais ou

obediência ao cumprimento de actos correctores.15 De facto, teria sido esse o caminho

utilizado pelo prior Teotónio em Santa Cruz de Coimbra, tendo em conta a informação

de como só depois de admoestar os seus cónegos em privado, os corrigia com

severidade, de forma a incutir nos mais novos o temor que depois os levava a

emendarem-se e a sempre seguirem uma recta conduta.16 Tais procedimentos, aliás,

também parecem deduzir-se da notícia hagiográfica de que S. Gonçalo de Amarante,

ainda menino, teria sido confiado pelo pai ao arcebispo de Braga para ser criado,

doutrinado e ensinado sob correiçom e castigo do mestre.17

Uma tal pedagogia encontra-se ainda expressa numa das histórias morais do

chamado Fabulário Português do século XV. Tendo como tema a situação de huu

ffilho de huu burgês que ssenpre fazia comtrayro do que lhe sseu padre emssynaua,

desenvolve-a do seguinte modo:

O padre nom ho podia castigar, e huu dia tomou huu paao ssem porquê, e

firiu huu sseu seruo na pressença de sseu filho. O ffilho, veendo tam seem

porquê espaancar este sseruo tam cruellmente, estaua com gram medo.

Depoys preguntarom ao burgês porque feria o seruo ssem seu mereçer; disse

o burgês (que era homem amtijguo e discreto) que o boy pequeno aprende

de arar do grande, e quem quer castigar o leom ffere o cam: - e portamto eu

nom quero fferir meu filho, porque je per feridas nom ho posso castiguar, mays

ffery o meu seruo, porque elle aja medo e tome emxemplo.

Ao comentar esta história, o texto do Fabulário Português conclui que a breve

narrativa

nos amostra e diz que nós deuemos auer maneira com discriçom nos nossos

_______________________________________________________________________________________________ 138

15 Didier Lett, ob. cit., ed. cit., p. 152. 16 "Vida de D. Teotónio," ed. Aires A. Nascimento, in Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra: Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio, Vida de S. Martinho de Soure, Lisboa, Ed. Colibri, 1998, p. 171. 17 Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. Maria Clara de Almeida Lucas,, Lisboa, I.N.I.C., 1988, p. 160.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

emssynos e castigamentos: e o padre deue castiguar sseus filhos com palauras e

boos emxemplos, quando vee que com fferidas ho nom pode castiguar, e que ho

pequeno deue tomar emxemplo do gramde. E elle foy d’elo louuado.18

Contudo, independentemente da maior ou menos divulgação dos conselhos

recomendados pelos manuais de pedagogia da Baixa Idade Média, a violência própria

de uma cidade maioritariamente rural e feudal continuava a permitir a existência de

muitos casos de uso e abuso de castigos corporais infantis, tal como, por vezes, surgem

referidos nos livros de milagres. Se bem que surjam muito pouco referenciados,19 não

seriam certamente raros os exemplos dos pais que davam com uma pedra num filho de

tal forma que este ficasse privado da acção dos seus membros,20 ou que os atingissem,

durante os castigos corporais, com uma meia de ilhoz pela cabeça ao qual se meteu uma

agulheta de ataca que na meia estava pegada,21 ferindo-lhe, deste modo, os olhos.

2 - A INSTRUÇÃO

Nos meios sociais privilegiados, os finais da Idade Média trouxeram, no entanto,

importantes inovações educativas. Uma das mais relevantes foi, sem dúvida, a defesa da

progressiva difusão da aprendizagem infantil da cultura letrada. Com efeito, muitos

pedagogos, fossem leigos ou eclesiásticos, começaram então a sugerir a generalização

do ensino infantil letrado, recomendando o seu começo desde os tempos da ama, já que

esperar pelos sete anos de idade para o seu início apenas contribuiria para alimentar nas

crianças a indisciplina e a preguiça intelectuais.22 No Cathecismo Pequeno do bispo

Diogo de Viseu, por exemplo, defendia-se como todas as crianças baptizadas deviam

_______________________________________________________________________________________________ 139

18 “Fabulário Português – manuscrito do século XV”, ed. J. Leite de Vasconcellos, Revista Lusitana, Lisboa, 1903, vol. 8, p. 129. 19 Com efeito, os estudos efectuados por Eleanora C. Gordon e Didier Lett sobre, respectivamente, os livros de milagres medievais ingleses e franceses, apontam para a escassa representatividade das curas das sevícias infantis: respectivamente, “Child Health in the Middle Ages as seen in the Miracles of Five English Saints A.D. 1150-1220” in Bulletin of the History of Medicine, 60, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1986, pp. 516-517; L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe – XIIIe siècle), ed. cit., p. 152. 20 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ed. Aires A. Nascimento e Saúl António Gomes, S. Vicente de Lisboa e seus Milagres Medievais, Lisboa, Didaskalia, 1988, p. 69. 21 Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, Lisboa, 1745, vol. I, p. 500. 22 Charles de la Ronciére, ob. cit.,ed. cit., p. 281.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ____________________________________________________________________________________________

ser calma e gradualmente introduzidas à literacia, per breves, chãas, palpavees e craros

principios, segudo a sua capacidade.23

De resto, nos começos do século XV, já o rei Duarte defendia que todos

os moços de boa lynhagem e criados em tal casa que se possa fazer, deviam

seer enssynados logo de começo a leer e a escrever e a fallar latym,

contynuando boos livros per latym e linguagem de boo encamynhamento per

vyda virtuosa.

Segundo ele, embora alguns opinassem que semelhante leitura não convinha a

homees de tal stado, todos eles deveriam ser instruídos no estudo e reflexão dos

livros da moral fillosofia, que som de muytas maneiras pera darem enssynança

de boos custumes e syguymento das virtudes, o mesmo ocorrendo sobre a

enssynança da guerra, nas cronycas aprovadas, de onde podiam extrair

os senhores e cavalleiros, e seus filhos, os grandes e boos exempros e sabedoria

que muyto prestam, com a graça do senhor, aos tempos da necessydade.24

Em suma, ainda que os letrados mais antigos e conservadores, como o

trecentista bispo Álvaro Pais de Silves, tivessem expresso a ideia de que a aprendiza-

gem da cultura letrada entre os meninos esbarrava com o seu manifesto desinteresse,

sendo essa a razão porque costumavam fugir das escolas,25 a maior parte dos

pedagogos da Baixa Idade Média considerava os sete anos como a idade aconselhável à

intensificação desse ensino, fosse através da frequência de uma escola, ou por via de um

preceptor privado, defendendo a superioridade desta última alternativa, visto ser

supostamente propícia a uma melhor difusão da palavra e do exemplo do mestre face

aos alunos. Nesse sentido, insistia-se na importância de uma correcta escolha do

preceptor, explicando-se como deveria estar isento de qualquer vício, já que lhe

competiria responder pelo seu aluno no Dia do Julgamento Final, tal como o prior ou o

abade o iriam fazer relativamente a cada um dos membros da sua comunidade.26

_______________________________________________________________________________________________ 140

23 O Cathecismo Pequeno de D. Diogo Ortiz Bispo de Viseu, ed. de Elsa Maria Branco Silva, Lisboa, Ed. Colibri, 2001, p. 133. 24 D. Duarte, Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, ed. Joseph M. Piel, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986, pp. 120-121. 25 Álvaro Pais, ob. cit., ed. cit., p. 441. 26 Consulte-se Didier Lett, ob. cit., ed. cit., p. 149.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

3 - RAPAZES E RAPARIGAS

Paralelamente, os pedagogos dos finais da Idade Média também começaram a

abordar o tema da educação das meninas, sobretudo as oriundas da nobreza, dedicando-

-lhes passagens ou até partes dos seus tratados, embora sem as inovações introduzidas

na matéria destinada aos rapazes.27 Com efeito, de uma forma geral, o seu discurso

sobre a educação das raparigas encontra-se bastante condicionado pelo facto de as

conceberem na qualidade de grupo que, não só partilhava com as mulheres a suposta

condição de um sexo dotado de fraca racionalidade, como também correspondia a uma

idade, a infantil, considerada naturalmente indisciplinada e moralmente débil.28

Assim, tendo em conta tais pressupostos, bastante devedores de Aristóteles, os

pedagogos defendiam para as raparigas uma disciplina ainda mais rígida e rigorosa do

que a reservada às mulheres, porque a débil racionalidade da sua natureza feminina se

aliava à ainda incompleta racionalidade da condição infantil. Segundo eles, os pais

deviam “guardar” bem as suas filhas e protegê-las de todos os perigos exteriores,

sobretudo desde os doze anos e até virem a casar ou a entrar numa casa religiosa. Para

Gil de Roma deviam então cessar os passeios, as brincadeiras fora do lar e até as

conversas privadas com as amigas, para que fosse protegido o pudor natural que

preservava a castidade das raparigas; perdida a timidez e o carácter bravio, elas

tornavam-se desses “animais selvagens que, habituados à companhia do homem, se

tornam domésticos e se deixam tocar e acariciar.”29

Mesmo a frequência das celebrações religiosas era considerada perigosa, visto

poder desencadear o encontro e a troca de olhares sensuais com os rapazes, conduzindo

a enamoramentos e até a mais profundas ligações sentimentais. De resto, esses receios

encontram plena confirmação em muitas cantigas de amigo dos cancioneiros galaico-

-portugueses, nas quais é frequente a alusão aos jogos amorosos proporcionados às

raparigas durante a frequência das festas de romaria. Lembre-se, por exemplo, a forma

como o jogral Pedro Vivialz recriou poeticamente essa situação:

_______________________________________________________________________________________________ 141

27 Pierre Riché, “Sources Pédagogiques et Traites d’Éducation” in ob. cit., ed. cit., pp. 28-29. 28 Carla Casagrande, “A mulher sob custódia” in Georges Duby e Michelle Perrot (dir.), História das Mulheres, 2, Porto, Afrontamento, 1993, pp. 105-106. 29 Gil de Roma, ob. cit., ed. cit., p. 342.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ____________________________________________________________________________________________

Pois nossas madres vam a San Simon Nossos amigos todos lá iram

de Val de Prados candeas queimar, por nos veer e andaremos nós

nós, as meninhas, punhemos d’andar bailand’ant’eles, fremosas, en cós,

com nossas madres, e elas enton e nossas madres, pois que alá van,

queimen candeas por nós e por si queimen candeas por nós e por si

e nós, meninhas, bailaremos i. e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos iran por cousir

como bailamos e podem veer

bailar moças de [mui] bom parecer,

e nossas madres, pois lá queren ir,

queimen candeas por nós e por si

e nós, meninhas, bailaremos i.30

No fundo, para os pedagogos, todas estas alegrias adolescentes eram objecto de

uma rígida censura moral. As raparigas deviam permanecer em casa, bem resguardadas

dos olhares masculinos. Debruçar-se da janela era já “sair”, pois reflectia a condenada

possibilidade de se abandonar ao impulso de vaguear pela sociedade e pelo mundo dos

homens, pondo em causa o pudor e a honra que deviam pautar o comportamento ideal

das jovens donzelas.31

Aos rapazes, pelo contrário, aconselhava-se uma educação mais atenta à

mobilidade do corpo e do espírito e às necessidades de uma intensa relação com o

mundo exterior. De facto, se aos futuros guerreiros, camponeses, artesãos ou

mercadores se recomendava olhar longe e direito, às raparigas sugeria-se baixar os

olhos ou levantá-los para o céu, opondo-se, portanto, os ideais varonis da coragem e da

franqueza, à modéstia, à doçura e à contenção dos gestos e dos movimentos

femininos.32

_______________________________________________________________________________________________ 142

30 Cantigas d’Amigo dos Trovadores Galego-Portugueses, ed. José Joaquim Nunes, Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1973, cantiga CLXIX, pp. 153-154. Sobre o assunto, consulte-se Custódia Luísa Gonçalves, A viagem na poesia trovadoresca galaico-portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta, 1999, (Tese de Mestrado), pp. 66-103. 31 Charles de la Ronciére, ob. cit., ed. cit., p. 288. 32 Paulette L’Hermite-Leclercq, “A ordem feudal (séculos XI-XII)” in Georges Duby e Michelle Perrot (dir.), História das Mulheres, 2, Porto, Afrontamento, 1993, p 284. O modelo proposto pelos pedagogos teve um amplo acolhimento nas memórias cronísticas medievais portuguesas: Ana Rodrigues Oliveira, “A imagem da mulher nas crónicas medievais”, in Faces de Eva, Lisboa, Ed. Colibri, 2001, nº 5, pp. 131-147.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

Neste contexto, não se insistia muito na educação letrada das raparigas. Filipe

de Novara, ressalvando o caso das que se destinavam à vida religiosa, desaconselhava

mesmo a aprendizagem do alfabeto e da escrita, para que as raparigas não se sentissem

estimuladas a dizer secretamente por escrito o que não ousariam dizer oralmente.33

Contudo, alguns pedagogos não lhes recusavam o direito de aprender a ler e a escrever,

porque, ao aplicarem-se assiduamente nessas honestas ocupações, afastavam os maus

pensamentos e os consequentes pecados da carne e da vaidade.34

É certo, no entanto, que os finais da Idade Média conheceram notórios

progressos na formação letrada das raparigas que não se integravam em qualquer

comunidade eclesiástica. Pertenciam, em geral, às aristocracias urbanas e fidalgas,

sendo esse, por exemplo, o caso de Cristina de Pisano, cujo tratado de educação

feminina, conhecido pelo nome de O Livro das Tres Vertudes, chegou a ser traduzido

em português, nos tempos do rei João II.35 Porém, era sobretudo em função da

aquisição dos conhecimentos relativos à doutrina cristã e à aprendizagem da sua futura

condição de esposas e de mães que as raparigas eram educadas.

4 - AS APRENDIZAGENS

Muitas raparigas, tal como se passava com a maioria das crianças medievais,

não chegavam a participar na cultura letrada que estava reservada aos filhos dos

privilegiados. Não faziam parte da sociedade da escrita, nem eram objecto das reflexões

contidas nos tratados didácticos, se bem que partilhassem parte dos seus valores e

princípios, quer através da assistência às cerimónias religiosas cristãs, quer por via dos

rituais e das imagens por que publicamente se transmitiam e difundiam.36

De uma forma geral, todas essas crianças recebiam dos pais uma educação oral,

já que os conhecimentos letrados não lhes eram acessíveis ou até considerados

necessários e vantajosos. Podiam, no entanto, em alguns casos, recebê-los dos clérigos,

sobretudo nas vilas e cidades, quando, por algum motivo, participavam da sua casa

_______________________________________________________________________________________________ 143

33 Consulte-se Didier Lett, ob. cit., ed. cit., p. 164. 34 Segundo Rui de Pina, a rainha Isabel de Aragão, mulher de D. Dinis, por nom estar ocioza lia livros de couzas espirituaes, e devotas : "Coronica DelRey Dom Diniz" in Rui de Pina, Crónicas, ed. cit., p. 230. 35 Cristina de Pisano, O Livro das tres Vertudes ou O Espelho de Cristina, ed. Maria de Lurdes Crispim, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1995 (Tese de Doutoramento). 36 Se bem que por vezes, como assinala Charles de la Ronciére, a defesa do recato das raparigas levasse as mães a proibir-lhes a assistência aos sermões demasiado concorridos: ob. cit., ed. cit., p. 288.

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ou parentesco. São esses os casos, por exemplo, de dois irmãos de dez e seis anos que

viviam em casa de um tio clérigo que os criara, e o do filho de um sapateiro, que, aos

nove anos, habitava na casa de um cónego que o ensinava a ler.37

Salvo tais excepções, cada vez mais frequentes nas vilas e cidades dos finais da

Idade Média, a educação das crianças, ainda maioritariamente camponesas, decorria no

contexto dos contactos quotidianos mantidos com a família e com os grupos de trabalho

rural etariamente compósitos em que se inseriam, sobretudo por via das incessantes

conversas que mantinham com os adultos mais velhos, conversas essas que se

prolongavam para a casa e a mesa familiares. Teorizado por Le Roy Ladurie, um tal

modelo educacional estaria na base do costume de as crianças serem muitas vezes

utilizadas como mensageiros, ou de até funcionarem para as instituições exteriores à

comunidade como fornecedoras de informações e mesmo na qualidade de delatores.38

Assim, quer no campo, quer em muitas vilas e cidades medievais, as crianças

inseriam-se desde cedo no mundo do trabalho rural, artesanal e dos serviços, fornecendo

um suplemento de mão de obra precioso à sua família de origem, e desenvolvendo a

aprendizagem das tarefas e ofícios a que, muitas vezes, se viriam a dedicar depois de

adultos; simultaneamente, a prática dos jogos de competição, de adestramento e de

imitação preparava-os física, social e profissionalmente. Tanto no campo como nas

praças e ruas das vilas e cidades, as crianças eram uma presença constante.

Compartilhavam os espaços em que os pais trabalhavam e eram por eles vigiadas e

iniciadas na aprendizagem de uma futura ocupação.

Numa primeira etapa, as crianças familiarizavam-se com os trabalhos dos pais,

observando-os e imitando-lhes certos gestos, atitudes e perícias. Numa segunda,

começavam a ajudá-los, conforme as suas forças e habilidade, ao mesmo tempo que

recebiam conselhos e demonstrações pedagógicas. Por fim, começavam a assumir a sua

parte de responsabilidade na produção final dos trabalhos e das tarefas parentais.39

Nos livros de milagres medievais portugueses é bem visível este tipo de

aprendizagens infantis. Relativamente ao mundo rural, por exemplo, referem-se os

_______________________________________________________________________________________________ 144

37 Luís Miguel Duarte, ob. cit., ed. cit., pp. 274-275. 38 Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou Cátaros e Católicos numa aldeia occitana 1294-1324, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 281. 39 Sobre este ciclo de iniciação ao mundo laboral, veja-se Danièle Alexandre-Bidon, « Grandeur et renaissance du sentiment de l’enfance au Moyen Âge » in Éducations médiévales, l’enfance, l’école, l’Église en Occident (VIe-XVe siècle), J. Verger (dir.), Histoire de l’éducation, 50, 1991, pp. 61-62.

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casos de várias crianças acidentadas com utensílios agrícolas normalmente utilizados

pelos adultos, como sejam o moço que, ao andar na malhada levou com um remo da

eschama que se quebrou, metendo-lhe o testo por dentro em tal gujsa que jouue mujtos

dias sem falla, 40 o rapaz que cayo quando leuaua hua cana na maão e chentousse-lhe a

cana polla uerilha E sayo lhe pollo embigo. E quando lhe tiraram a cana sayramlhe as

tripas fora 41 ou o menino, de onze ou doze anos, que morreu ao ser atingido por um

coice de mula quando lançava o trigo que estava numa alcofa na moega da sua atafona, 42 ainda com eles se relacionando a criança que, ao pastorear o gado, engoliu uma

serpente ao baixar-se para apanhar o bastão com que conduzia os animais.43 Por outro

lado, no que se refere à faina marítima, também se noticia a morte de um moço que se

afogou quando acompanhava o seu pai nas lides do mar.44

De uma forma geral, apesar da referência a todos estes acidentes, o trabalho

infantil tendia a confinar-se a tarefas necessariamente subsidiárias das actividades

quotidianas realizadas pelos adultos. Tal como se representa em muitas iluminuras do

Ocidente cristão medieval, tratava-se sobretudo do desempenho de tarefas que não

exigiam grandes esforços físicos ou que bem se adaptavam à natural agilidade infantil,

incluindo actividades tão diversificadas como buscar água, apanhar bolotas, juntar os

pedaços de madeira previamente cortados ou rachados pelo pai, caçar os pássaros na

altura das sementeiras, apanhar os insectos e animais nocivos das hortas e jardins, subir

às árvores para apanhar fruta ou azeitonas.45 Contudo, o facto dos tratados de educação

insistirem na necessidade de poupar as crianças com menos de sete anos a trabalhos

muito pesados para não prejudicar o seu crescimento, revela como algumas destas

tarefas seriam, por vezes, demasiado violentas e rudes para os mais pequenos.46 De

facto, entre as famílias não privilegiadas, a infância das crianças acabaria tão depressa

como logo começava uma vida precocemente adulta.

_______________________________________________________________________________________________ 145

40 Frei João da Póvoa, “Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes”, ed. F. Correia, in Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, 3, nº 1, 1988, p. 26. 41 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit, p. 26. 42 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 490-491. 43 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., p. 61. 44 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 17. Referiremos em pormenor todos estes acidentes no capítulo ADOECER. 45 Consulte-se, por exemplo, Pierre Riché e Danièle Alexandre-Bidon, L'enfance au Moyen Age, ed. cit., pp. 162-165. 46 Didier Lett, ob. cit., ed. cit., p. 282.

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_______________________________________________________________________________________________ 146

5 – A FUNÇÃO DAS

MÃES

No conjunto da

sociedade medieval, as

mães desempenhavam um

papel fundamental na

educação das crianças.47

Verdadeiras depositárias

dos valores e tradições

familiares, consagravam-se

inteira e convictamente à

sua defesa e transmissão

junto das novas gerações.

O ensino da fé

cristã era uma das suas

principais funções educati-

vas. Veiculado oralmente,

era acompanhado pelo inci-

tamento à aprendizagem

infantil dos gestos, orações

e rituais que contribuíam para

Figura 41 - Sant'Ana e a Virgem (século XIV) No século XIV difundiram-se por toda a Europa cristã representações de Sant' Ana ensinando a Virgem a ler. Nestaimagem, Sant' Ana abriga a Virgem no seu manto, enquanto estasegura um livro aberto.

inserir as crianças num espaço doméstico e comunitário devidamente sacralizado. Por

outro lado, também se atribui à mãe a introdução dos filhos na frequência dos templos,

o ensino da forma a como neles se comportar e a explicação do sentido das histórias e

das personagens sagradas cujos símbolos, estátuas e imagens se encontravam nas

igrejas.

47 Para Danièle Alexandre-Bidon, sem uma prévia história da mulher nunca se conseguirá elaborar uma história da infância, visto ser necessário conhecer o papel da mulher enquanto mãe para se ter um conhecimento perfeito da história da educação: “Grandeur et renaissance du sentiment de l’enfance au Moyen Âge” in ob. cit., ed. cit., pp. 53-54.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

O pedagogo Raimundo Lúlio

aconselhava mesmo as mães a aproveitar

todos os tempos e momentos das

ocupações domésticas para difundirem a

fé cristã junto dos seus filhos. Os

legumes a ferver na panela, por exemplo,

podiam fornecer a ocasião para lhes falar

do inferno e o tempo de cozedura de um

ovo, ou o da confecção de um doce de

noz, seriam, por seu lado, propícios a

fazer as crianças rezar, respectivamente,

uma Avé-Maria ou um Miserere.

Ensinar a fazer o sinal da cruz sobre o

pão que se ia comer, ou levar os filhos a

dizer uma oração quando fossem com a

mãe colher plantas medicinais ao

campo, ou a ajudassem a caçar os ratos

e ratazanas que, por vezes, invadiam os

lares, era um óptimo meio para que as

crianças compreendessem a importância Figura 42 – Sant'Ana e a Virgem (Século XV) Sant' Ana aponta para o Livro com o dedo indicador da mão direita, enquanto o seu braço esquerdo sustenta a Virgem que se apoia no códice.

dos favores divinos, já que os associariam

às graças de ter com que saciar a fome e a

sempre conseguirem executar com su-

cesso determinadas tarefas e acções.48

A primeira e principal oração ensinada pelas mães era o Pai-Nosso, conforme

recomendavam os sínodos diocesanos medievais portugueses.49

_______________________________________________________________________________________________ 147

48 Raimundo Lúlio, ob. cit, ed. cit., Título 99, p. 226. 49 Mário Martins, “O Pai-Nosso na Idade Média portuguesa até Gil Vicente” in Estudos de Cultura Medieval, III, Lisboa, Ed. Brotéria, 1983, p. 290.

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Contudo, à medida que progredia o culto mariano e se afirmava a devoção à avó

e à mãe de Cristo, ou seja, às Santas

Mães, depressa se lhe juntou a Avé

Maria e a Salvé Regina. Na tradução

medieval portuguesa da hagiografia de

Clara de Assis, todas essas orações já

se encontravam associadas num

mesmo e exemplar repertório,

contando-se como a Santa

_______________________________________________________________________________________________ 148

tãto que começou a falar

ensinou-lhe sua madre o Pater Noster,

a Ave Maria, o Credo e a Salve

Regina. E logo de pequena sempre hya

aa ygreja com sua madre.50

De resto, para além das

hagiografias, também os romances e as

novelas de cavalaria atribuem às mães

a iniciação religiosa dos filhos. Nos

textos da Bretanha, por exemplo,

refere-se como a mãe de Perceval lhe

fez aprender diversas orações e lhe falou

Figura 43 - Santas Mães (Século XV) A Virgem senta-se no joelho direito da mãe, Sant' Ana e Jesus ocupa o outro lado, voltando-se para o observador da escultura. A presença do livro sagrado, aqui fechado na mão de Sant' Ana, transmite a intimidade doméstica da imagem de uma mãe que comunica a sagrada sabedoria aos filhos.

sobre Deus, os Anjos e os demónios de

uma forma facilmente compreensível por uma criança nobre, explicando-lhe serem os

diabos as coisas mais feias do Mundo, os Anjos as mais belas e Deus o que ainda era

mais belo do que estes.51

50 'A vida da bemaventurada Sancta Crara' in "Adições portuguesas no Flos Sanctorum de 1513", ed. Cristina Sobral, Adições Portuguesas no Flos Sanctorum de 1513 (Estudo e Edição Crítica), Lisboa, Faculdade de Letras de Lisboa, 2000 (Tese de Doutoramento), p. 661. 51 Micheline de Combarieu du Gres, “Les “apprentissages” de Perceval dans le Conte du Grall et de Lancelot dans le Lancelot en Prose” in Éducation, Apprentissages, Initiation au Moyen Age, Actes du Premier Colloque International de Montpellier, Université Paul Valéry, 1991, pp. 134-135.

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No fundo, trata-se da representação literária de preceitos recomendados pelos

tratados de educação. Com efeito, muitos

deles aconselhavam as mães a começar por

ensinar aos filhos as noções elementares da

fé, sem grandes aprofundamentos e subtilezas

teológicas. O essencial seria transmitir as

certezas da existência de Deus, da Santíssima

Trindade e de Cristo, explicando-lhes como

Jesus tinha vindo resgatar a “linhagem

humana” e voltaria para a julgar.52

Contudo, nos finais da Idade Média

começa a ser frequente a recomendação para

que as próprias mães ensinassem as suas

crianças a ler,53 já que o binómio leitura-

-oração se começava a revelar fundamental

para desenvolver o diálogo a travar entre o

crente e a divindade, visto que, se as preces

permitiam falar com Deus, era pela leitura que

Ele comunicava com os fiéis. 54 Na prá-

tica, porém, um tal conselho tinha poucas

hipóteses de se concretizar; poderia apenas Figura 44 – Virgem com o Menino (Século XV) A Virgem ergue na sua mão direita uma romã, fruto simbólico alusivo à Ressurreição e, com o braço esquerdo, aconchega o Menino, sentado de perfil no seu colo, apresentando-se este com uma expressão concentrada, a redigir sobre um fólio.

ser seguido pelo muito escasso grupo das mães

que pertenciam aos mais altos escalões das

aristocracias urbanas e cortesãs, visto que só

entre algumas delas se encontrariam presen-

tes as capacidades letradas.

_______________________________________________________________________________________________ 149

52 Gil de Roma, ob. cit., ed. cit., p. 195. 53 Danièle Alexandre-Bidon, “Grandeur et renaissance du sentiment de l’enfance au Moyen Âge” in ob. cit., ed. cit., p. 58. 54 Sobre o tema da oração face à leitura, veja-se João Dionísio, “D. Duarte e a leitura” in Revista da Biblioteca Nacional, Lisboa, J.N.I.C.T., 1991, nº 2, pp. 7-17.

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No entanto, a progressiva difusão, através de frescos, pinturas, esculturas e

iluminuras, da imagem de Sant ' Ana, Maria, ou de ambas a desempenhar tais funções

educativas, contribuiu para prestigiar e consagrar o tema, antecipando-o

simbolicamente a uma prática social que se

viria a desenvolver durante o Renascimen-

to e a Reforma. Mesmo assim, foi ainda

nos finais da Idade Média que se

começaram a propor e a ensaiar

metodologias especificamente destinadas

ao ensino materno da leitura a desenvolver

pelas crianças. Uma delas sugeria que as

mães cortassem pedaços de fruta ou

fizessem pequenos bolos em forma de

letras, para dar a comer às crianças como

prémio sempre que elas as lessem

correctamente. Outra, atestada em França

nos finais do século XV, consistia no

fabrico de uma louça própria para a

criança que era ornamentada com o

abcedário, para lhe estimular e

desenvolver o gosto lúdico pela leitura.55

Figura 45 – Nossa Senhora com o Menino (Século XV) A Virgem, de pé, segura no seu braço direito o Menino Jesus que folheia o Livro que a Mãe segura na mão esquerda.

_______________________________________________________________________________________________ 150

55 Cf. Pierre Riché e Danièle Alexandre-Bidon, L’ enfance au Moyen Âge, ed. cit., p. 77.

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Figura 46 – Santas Mães (Século XV) As Santas Mães ensinam Jesus a ler através de um códice que ocupa ocentro da composição e onde se vêem nitidamente as letras que a criançaaponta numa postura própria de quem soletra.

Para além do ensino da fé e da leitura que a ampliava e aprofundava, competia

ainda à mãe medieval um papel importante na educação doméstica das filhas,

transmitindo-lhe as qualidades e os saberes necessários ao desempenho das suas futuras

funções de esposas e de mães. Uma tal tarefa teria como auxiliares os jogos e os

passatempos desenvolvidos pelas raparigas em torno dos brinquedos que reproduziam

bonecas ou miniaturas de louça de cozinha e de mesa, semelhantes ou iguais às já

referenciadas cerâmicas muçulmanas de uso infantil que foram ultimamente recolhidas

em intervenções arqueológicas efectuadas em Loulé e Silves. Nas louças, as meninas

_______________________________________________________________________________________________ 151

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certamente imitariam os gestos culinários das mães, ao mesmo tempo que receberiam

exemplos e hipotéticos conselhos. Com as bonecas, ensaiariam, à luz dos modelos

maternos familiarmente observados e comentados, os modos, atitudes e cuidados a ter

com os seus futuros filhos.

Paralelamente, a educação doméstica das filhas ainda compreenderia o ensino e

o treino das artes da costura e da tecelagem, envolvendo tanto a aprendizagem da

confecção e remendo do vestuário e outra roupa, como o fiar, o tecer ou o bordar. Nas

cantigas de escárnio dos cancioneiros galaico-portugueses, a sátira às soldadeiras que

não sabiam ensinar às filhas o lavor ou mester de tecer/ nem a cordas nen a coser, e

apenas as treinariam a mui bem ambrar, ou seja, a andar com um requebro de ancas, a

saracotear-se, revela bem o facto de o ensino de tais predicados ser considerado

essencial para uma boa e correcta educação materna das filhas.56

A educação moral das raparigas também tinha nas suas progenitoras uma

primeira e decisiva instância. Como testemunha o tratamento poético dado às mães nas

cantigas de amigo galaico-portuguesas, competia-lhes, para além da constante

vigilância sentimental das filhas, afastá-las das más companhias e proibir-lhes a

participação nas danças e folguedos das romarias, para que o seu corpo fosse preservado

da suspeita ou da mancha de qualquer quebra da castidade.57 De facto, a fiscalização

da sexualidade da filha apresenta-se como âmbito privilegiado da pedagogia materna, o

principal, senão o único, pelo qual a progenitora era completamente responsável,

independentemente até da sua própria moralidade. Segundo o moralista Filipe de

Novara, mesmo as mulheres más podiam ser melhores mães do que as boas, hábeis

como eram em reconhecer nas filhas os sinais de loucura que elas haviam directamente

experimentado.58

Por fim, tanto para as filhas como para os filhos, a educação materna ainda

compreendia a fundamental missão de introduzir as novas gerações no conhecimento e

respeito das tradições familiares e comunitárias, transmitindo-lhes, sob a forma de

sentenças, provérbios, adágios e até fábulas, os saberes, ditos procedimentos relativos

_______________________________________________________________________________________________ 152

56 Pero da Ponte, "Quem as filhas quiser dar" in Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses, ed. M. Rodrigues Lapa, Vigo, Ed. Galáxia, 1970, cantiga 367, pp. 543- -544. Consulte-se também Graça Videira Lopes, A sátira nos cancioneiros medievais galego-portu-portugueses, Lisboa, Estampa, 1994, pp. 221-229. 57 Veja-se Custódia Luisa Gonçalves, ob. cit., ed. cit., pp. 89-106. 58 Filipe de Novara, Les Quatre Âges de l’homme, ed. M. de Fréville, Paris, 1888, p. 20.

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ao espaço, ao tempo, à natureza, aos sentimentos, ao trabalho e às normas e conflitos

sociais, ou seja, uma cultura prática, muitas vezes oposta ou contestatária da cultura

oficial, produzida e transmitida pelos letrados.59 Auxiliadas pelas avós, as mães

contribuíam assim para a preservação e continuidade das memórias regionais,

comunitárias e familiares,60 sendo-lhes, por vezes, atribuídos os conhecimentos que

permitiam ultrapassar ameaças e catástrofes por elas previstas premonitoriamente, tal

como o expressa, entre outras figuras míticas, a Dama de Pé de Cabra, conforme surge

nos escritos compostos em função do prestígio da família dos senhores de Haro, na

Biscaia. De facto, seria a essa fundadora simbólica da linhagem, que os de Haro teriam

ficado a dever as protecções sobrenaturais que teriam preservado as suas primeiras

gerações e feito da família uma das mais valorosas e prestigiadas no mundo fidalgo

ibérico.61

Contudo, apesar da importância do papel desempenhado pelas mães na educação

das crianças, raramente foi reconhecida a realidade dessa intervenção nos textos e

tratados didácticos. De facto, em quase todos eles, mesmo no que diz respeito às

raparigas, tende a conceber-se a adolescência como uma idade que deveria decorrer sob

a supervisão paterna, cabendo aos pais começar então a impor alguma contenção ao

afecto e à condescendência feminina.

Neste sentido, aconselhava-se às mães mais responsáveis e sensatas a apenas se

preocuparem com o crescimento e a formação das crianças pequenas, confiando depois

a sua educação a uma tutela masculina, fosse a do marido, a de um aio, a de um mestre

ou, no caso das viúvas, à de um varão escolhido entre os parentes ou amigos do

falecido esposo.62 De acordo com S. Tomás de Aquino, cumprir-se-ia, assim, um

imperativo de ordem natural, já que só entre os animais era possível a fêmea criar o

filho sozinha. Ora entre os humanos, essa tarefa devia ser partilhada pelos dois cônjuges

em cujo matrimónio se geravam os filhos, corporalmente criados pela nutrição materna

e espiritualmente formados pela educação paterna.63

_______________________________________________________________________________________________ 153

59 José Mattoso, "O essencial sobre os provérbios medievais portugueses" in Obras Completas, VI, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, pp. 299-377. 60 José Mattoso, "Refranes que dizen las viejas tras el huego" in Obras Completas, VI, ed. cit., pp. 200-206. 61 Veja-se Luís Krus, "A morte das fadas: a lenda genealógica da Dama de Pé de Cabra" in Ler História, Lisboa, 6, 1985, pp. 3-34. 62 Claude Thomasset, “Da natureza feminina” in História das Mulheres, 2, Georges Duby e Michelle Perrot (dir.), Porto, Afrontamento, 1993, p. 167. 63 Veja-se Jean-Louis Flandrin, Familles, Parentés, Maison, Sexualité dans l’ancienne société, Paris, 1984, p. 171.

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A quase unânime aceitação letrada de uma tal orientação, mesmo entre os

tratados elaborados por mulheres – sendo essa a situação de vários textos produzidos

por Cristina de Pisano – não impediu, no entanto, o reconhecimento escrito de algumas

importantes competências educacionais maternas relativamente aos adolescentes, se

bem que, por vezes, surjam na qualidade de práticas recomendadas em complemento a

iniciativas paternas mais decisivas. Estão neste caso, por exemplo, os conselhos

fornecidos para que as mães vigiassem o ensino prestado aos seus filhos por parte dos

mestres e aios escolhidos pelo marido, implicando, desde a recomendação para que

fiscalizassem o comportamento moral desses homens, até sugestões relativas à

necessidade de verificarem os conteúdos a ensinar. Elas deviam confirmar se os mestres

estavam a educar os seus pupilos para aprenderem a servir a Deus, a progredirem no

conhecimento do latim e das ciências, a iniciarem-se nos saberes das artes laborais, a

praticarem a arte de viver no mundo e nos princípios da moral.

Outros conselhos, porém, chegavam a ultrapassar a área das competências

educativas tradicionalmente reservadas ao pai. Propunham, por exemplo, que as mães

zelassem pela educação letrada das filhas, e que, de acordo com a sua diferente

condição social, tanto procurassem instruir pessoalmente os filhos, devendo ser esse o

caso das burguesas, como diligenciassem, se fossem mulheres de artesãos, que a

educação dos filhos não ignorasse a aprendizagem do seu futuro ofício e a

aprendizagem das letras. Paralelamente, aconselhava as esposas dos serviçais e

trabalhadores a incutir nas suas crianças a moral disciplinadora dos comportamentos.64

No fundo, tratava-se de funções pouco reivindicadas pela educação paterna, não

colocando em questão o pressuposto de que o pai era o principal protagonista da obra

educativa. Não deixavam, contudo, de propor para as mães um inovador alargamento

das respectivas tarefas educativas, confiando-lhes o papel que, na prática, lhes era

reconhecido na esfera da educação moral e comportamental das filhas adolescentes.

Nesse sentido, a tratadística pedagógica dos finais da Idade Média contribuiu decisiva-

_______________________________________________________________________________________________ 154

64 Silvana Vecchio, “A boa esposa” in Georges Duby e Michelle Perrot, (dir.), História das Mulheres, 2, Porto, Afrontamento, 1993, pp.167-168.

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mente para que a generalidade dos educadores, mesmo os religiosos, passassem a

conceder uma maior atenção à função formativa das mães, sobretudo no tocante à

considerada necessária e quotidiana obra de correcção dos filhos.

Bernardino de Siena, por exemplo, incitava as mães a não só prestarem uma

atenção constante ao comportamento das filhas, de forma a mantê-las sempre ocupadas

e a puni-las devidamente se as vissem irrequietas ou frívolas, como também a

encarregarem-se da primeira instrução religiosa de toda a sua prole, ensinando-lhe as

orações fundamentais e reprimindo-lhe os pecados domésticos, blasfémias e mentiras.

“Quase fazendo da casa templo”, a mãe, sem sair do lar deveria assim moldar a alma

dos filhos, fazendo-lhes aprender, como um jogo, as práticas religiosas, ao mesmo

tempo que era solicitado o castigo das respectivas faltas com um misto de doçura e

rigor, para que as suas crianças gradualmente se transformassem em pequenos ministros

do culto doméstico.65

Contudo, permanecia ainda bastante activo o medo masculino de ver um rapaz

educado unicamente por uma mulher. Para a nobreza, a instrução materna dos filhos

nunca deixou de ser considerada centrada no lar e pouco aberta à aventura e ao

relacionamento exteriores. Para os religiosos, por outro lado, a “religião das mães”,

apresentava-se excessivamente secreta e individualista.66 De facto, nos finais da Idade

Média, a ficção cavaleiresca da infância problemática de Perceval ainda continuava a

representar a desconfiança com que a sociedade feudal encarava o excessivo

protagonismo materno na educação dos seus filhos. Com efeito, era à mãe de Perceval

que as novelas arturianas atribuíam a responsabilidade da sua educação fidalga

deficiente e escandalosa. Primeiro porque, ao apresentar-se na corte do rei Artur, o

jovem, que havia sido iniciado pela progenitora na oração e no conhecimento de Deus,

dos anjos e dos demónios, não sabia o que era uma igreja. Depois porque, ao contrário

do que acontecia com os seus pares, logo se revelou incapaz de ler, escrever ou sequer

apto para tocar um instrumento, ao mesmo tempo que também desconhecia a história e

o prestígio da sua linhagem. 67 Ora, conforme textualmente se afirma, nada disso se teria

passado se a formação de Perceval tivesse sido confinada a um experiente varão fidalgo.

_______________________________________________________________________________________________ 155

65 Silvana Vecchio, ob. cit., ed. cit., p. 178. 66 Cf. Nicole Bériou, « Femmes et Prédicateurs. La transmission de la foix aux XII et XIII.e siècles” in J. Delumeau (dir.), La Religion de ma mére, Paris, 1992, pp. 51-70. 67 Micheline de Combarieu du Gres, ob. cit., ed. cit., p. 146.

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Em suma, ao longo da Idade Média, a palavra feminina nunca deixou de ser

considerada perigosa e inconstante, justificando-se desse modo o facto de os clérigos

procurarem discipliná-la, ao mesmo tempo que alertavam os leigos para a necessidade

de vigiarem sempre a mensagem que a mãe transmitia aos seus filhos. Colocada sob a

autoridade do pater familias, a esposa, sobretudo a de origem fidalga, deveria ser

dirigida e corrigida pelo marido e respectiva linhagem. 68

6 - O MEIO NOBILIÁRQUICO

Entre a fidalguia, se era reconhecido ser a natureza das madres comunalmente

mais inclinada ao esguardo de seus filhos, devendo esse facto contribuir para que elas

desempenhassem um importante papel educativo durante os primeiros anos de vida da

criança, como a de primeiramente a ensinar a servir Deos, recomendava-se que mal os

filhos varões atingissem a puberdade logo fossem confiados a um mestre letrado, a

quem passaria a competir a tarefa de fazê-los

leer aas horas convinhavees de guisa que apraza a seu padre o saber de sua

ciencia, a qual cousa stá mui bem aos filhos dos grandes homeens.

Neste contexto normativo, enunciado entre outros pedagogos por Cristina de

Pisano, ainda que se defendesse dever competir à mãe zelar pela competência

do saber e dos costumes do mestre, e dos outros que seram a seu serviço e tirar

os que nom forem bõõs e poer outros em seu lugar,

era então pacificamente reconhecido dever a progenitora começar a ser

secundarizada na questão do estado e governança de seus filhos varões, limitando-se,

quanto muito, a vigiá-los e a repreendê-los asperamente no que for de repreender, para

que, ao temê-la, lhe hajam reverença e lhe façam honra.69

A tutela masculina da educação dos fidalgos adolescentes justificava-se pelo

lugar que nela desempenhava o adestramento físico e militar. Envolvendo a aprendiza-

gem da equitação, da caça e do manejamento das armas, ela remetia, logicamente, para

_______________________________________________________________________________________________ 156

68 Sobre o recomendável uso contido e controlado da palavra feminina e as consequências da mulher ousada e muito fallador, veja-se, Ana Rodrigues Oliveira, As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (sécs. XII a XIV), Patrimonia Histórica, Cascais, 2000, pp. 70-78. 69 Sobre estes conselhos, veja-se Cristina de Pisano, ob. cit., ed. cit., pp. 187-188.

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a presença formativa de varões adultos não só bem experimentados nas artes da

cavalaria, montaria, cetraria e guerra feudal, como superiormente representativos dos

valores ético-morais que orientavam a prática nobiliárquica de todas essas actividades.

Durante os séculos XII e XIII, a aprendizagem juvenil da condição fidalga

implicava, frequentemente, o abandono da casa paterna, por vezes logo após o

desmame. Separados da mãe e das irmãs, os filhos dos nobres passavam, então, a

participar no mundo viril das cavalgadas, caçadas, armas e jogos de destreza guerreira,

ao mesmo tempo que se incorporavam nos quotidianos próprios das famílias nobres

onde passavam a viver, contribuindo deste modo para o reforço dos laços de

dependência feudal que os uniam às suas linhagens de origem. Esta integração numa

nova família podia, inclusivamente, sobrepor-se à própria consanguinidade, reforçando-

-a ou mesmo substituindo-a como laço vinculador. A expressão "criado de" ou "da

criação" designando uma relação de especial proximidade estabelecida entre duas

pessoas durante uma parte inicial das suas existências, se não implicava uma condição

jurídica específica, implicava, no entanto, uma ligação social e afectiva muito forte.

Uma vez estabelecida, era um elo duradouro e estruturante mesmo depois de se terem

interrompido o convívio e a protecção económica ou educacional que a

materializaram.70 Esta proximidade entre parentesco e criação, esta mistura de

obrigações e afectos, conhecida como "amor de dívedo" e ao qual se refere, por

exemplo, o rei Duarte,71 é bem visível no seguinte texto atribuído a Sancho IV:

E para mientes quand muy fuerte cosa es la criança que el omne faze, que el fijo

que es ajeno por la criança que le faze aquel que le cria, le ama e lo tiene bien

asi commo si fuese su fijo.E muchas vegadas acesce que le quiere el omne mas

que sy fuese su fijo72

No caso de serem filhos secundogénitos ou bastardos, esta verdadeira forma de

pseudo-parentesco fazia-os, em muitos casos, perder a memória da sua filiação

biológica, neutralizando-se, desse modo, as temidas e frequentes revoltas dos jovens

fidalgos deserdados.73

_______________________________________________________________________________________________ 157

70 Sobre o conceito de "criação", veja-se Rita Costa Gomes, A corte dos reis de Portugal nos finais da Idade Média, Lisboa, Difel, 1995, pp.179-231 71 Obras dos Príncipes de Avis, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1981, p. 328. 72 Castigos e documentos para bien vivir ordenados por el Rey don Sancho, ed. Agapito Rey, Bloomington, Indiana University Press, 1952, p. 57. 73 Georges Duby, Guilherme, o Marechal, O Melhor Cavaleiro do Mundo, Lisboa, Gradiva, 1994, p. 59.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ____________________________________________________________________________________________

No seu conjunto, todas estas práticas de educação cavaleiresca encontram-se

bem documentadas para os filhos da realeza portuguesa. Com efeito, entre os primo-

génitos é bem conhecido como os ainda infantes Afonso Henriques, Sancho I ou Sancho

II foram confiados pelos pais à criação por famílias da grande nobreza nortenha. Nos

dois primeiros casos, trata-se de linhagens tradicionalmente consideradas como fun-

dadoras da fidalguia portuguesa, seja a dos senhores da Maia, onde foi educado o

primeiro rei de Portugal, tendo essa circunstância sido depois decisiva para a obtenção

dos apoios político-militares que lhe permitiram reivindicar e obter a chefia dos

territórios antes submetidos ao poder paterno, 74 seja a dos senhores de Riba Douro, na

qual se criou Sancho I, o monarca que mais tarde também lhes confiou a educação de

uma das filhas, a infanta Mafalda. Relativamente a Sancho II, sabe-se como foi entregue

pelo pai aos senhores de uma linhagem, a dos Riba de Vizela, que havia ascen-dido por

protecção régia na escala nobiliárquica lusa desde os finais do século XII. 75

Quanto aos filhos segundos e bastardos, se esta mesma prática régia de

delegação educativa e formativa também privilegiou a escolha das linhagens da alta

nobreza, como sucedeu, por exemplo, relativamente aos senhores de Baião por parte de

Sancho I, acabou sobretudo por recair em diversas famílias campesinas ou vilãs que

assim puderam adquirir protecção e privilégios régios, de acordo com um procedimento

largamente documentado entre os fidalgos minhotos, conforme já foi mencionado no

contexto das práticas sociais de aleitamento utilizadas para os respectivos filhos, a

propósito da chamada senhorialização por amádigo. 76 De facto, ainda em 1290, era um

dos principais objectivos da política centralizadora do rei Dinis a verificação de que em

nehuu logar hu criarem ffilho de baragaa nom seia onrrado per razom da criança.77

Aliás, o costume régio e fidalgo de confiar a educação cavaleiresca dos filhos

segundos e bastardos a famílias nobres feudalmente obrigadas e em condições de mais

tarde os virem a proteger e a favorecer, manteve-se activo durante os finais da Idade

_______________________________________________________________________________________________ 158

74 Vejam-se Torquato de Sousa Soares, “O governo de Portugal pela infanta-rainha D. Teresa (1112-1128)” in Colectânea de Estudos em honra do Prof. Doutor Damião Peres, Lisboa, 1974, p. 115 e José Mattoso, Ricos-homens, Infanções e Cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII, Lisboa, Guimarães, 1985, p. 164. 75 Consulte-se A. de Almeida Fernandes, " Proles régias criadas em meio rural nos séculos XII e XIII" in Esparsos de História, Porto, 1970, pp. 161-183. 76 Vidé capítulo CRESCER, pp. 114-115. Consulte-se, também, Valdevez Medieval, Documentos I. 950- -1299, Amélia Aguiar de Andrade e Luís Krus (coord.), Arcos de Valdevez, Câmara Municipal de Arcos de Valdevez, 2000, pp. 220-257. 77 Cf. Humberto Baquero Moreno, "Subsídios para o estudo da legitimação em Portugal na Idade Média (D. Afonso III a D. Duarte)" in Revista de Estudos Gerais Universitários de Moçambique, 4, Lourenço Marques, 1967, p. 219.

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Média. Com efeito, como esclarecem os cronistas, tanto o futuro rei João I como Nuno

Álvares Pereira, sendo ambos bastardos, foram criados fora da casa paterna. Sobre o

primeiro refere-se que o pai o entregou ao Mestre de Cristo, Nuno Freire, sublinhando-

-se como este o criou e teve em seu poder até que aos sete anos o fez entrar na cavalaria

da Ordem religiosa que chefiava.78 Quanto ao segundo, depois de se lembrar como

sem repugnancia às letras, sua particular inclinação era para as

armas,menciona-se como o seu pai, ao saber por huu gram leterado e mui

profumdo astrollogo, que o filho avia de seer veemçedor de batalhas pedira por

mercee ao rei Fernando I que tomasse NunAllvarez, moço de treze anos, que

ainda numca tomara armas, por seu morador, havendo sido a rainha Leonor

Teles quem o armara de sua mãao come seu escudeiro numa cerimónia em que,

porque NunAllvarez era de pouca hidade e não se podiã achar huu arnes tam

pequeno, lhe foi emprestado o do futuro rei João I, que o ouvera em seemdo

moço. Depois, por disposição régia, ainda se conta ter sido entregue a seu tio

Martim Gonçalves do Carvalhal, para que este cuidasse do necessário, em

benefício de sua pontual assistencia.79

A mesma situação ainda se encontra referida por Zurara para uma geração

posterior. De facto, a propósito de um outro bastardo fidalgo, Duarte de Meneses, o

cronista não deixa de mencionar como o pai, o senhor de Ceuta, entregara a sua

criaçom, quando ainda era mynyno de mama em ydade de noue meses, a João

Álvares Pereira, pela singullar amizade que auya com elle, possibilitando-lhe,

desse modo, uma adequada educação cavaleiresca já que, mal a criança

começou dandar logo teria mostrado sinaaes daquello que auya de seer ca

nunca podya fallar senom em cauallos e armas.80

Globalmente, uma tal educação fidalga procurava harmonizar um ensino de tipo

discursivo com uma disciplinada prática exemplificativa, ao mesmo tempo que visava

incutir nos jovens uma ética guerreira capaz de conciliar nos aprendizes de cavalaria

_______________________________________________________________________________________________ 159

78 Fernão Lopes, Crónica de D. Pedro, ed. A. Borges Coelho, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 163, capítulo XLIII. 79 Fernão Lopes, Crónica del Rei D. João I, ed. A. Braamcamp Freire e W. Entwistle, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1977, pp. 67-68; Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 289 - -290.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ____________________________________________________________________________________________

duas distintas atitudes, a da dureza e impiedade para com os inimigos ou para com os

que aviltassem ou desonrassem os valores da fidalguia, e a da mesura e

condescendência para com os seus pares, superiores ou protegidos desarmados,

conforme se encontrava amplamente referido na tradicional literatura cavaleiresca

feudal. 81 Ora, nas infâncias que Zurara cronisticamente compôs acerca do futuro conde

Duarte de Meneses existem vários apontamentos memorialísticos acerca das

consequências comportamentais de uma tal aprendizagem, sobretudo as relativas à

interiorização da primeira das atitudes referidas.

No fundo, dever-se-iam ao sucesso de tais práticas educativas muitas das

maravilhas que o cronista atribui ao moço Dom Duarte, como seja a circunstância de,

em Ceuta,

assy pequeno como era nunca se fazya nenhuum mouimento na cidade pera sayr

fora a alguma vista que auyam de mouros que logo nom fosse em Joelhos ante o

padre a pedyrlhe que o leixasse sayr com os outros.

Ou então as valorizadas

contenença e ardileza que mostraua no cometimento dos contrayros, a força

com que ferya, e a alegria manifestada por que achaua comprimento do que sua

voontade tanto desejava. Em suma, o comportamento de um pequeno homem

que nom passava dos XV annos, a quem o pai, o conde D. Pedro, leuantou a

mãao com a espada e fezeo caualleyro.82

Na verdade, a apologia cronística de uma educação juvenil de tipo guerreiro não

se limitou ao registo das façanhas praticadas pelos muito novos filhos dos nobres que

estavam empenhados na guerra contra o Islão africano. Num contexto marcado pelo

ressurgir dos ideais cavaleirescos da cruzada, ela também consagrou a lembrança de

como os príncipes a partilhavam e exerciam. Nesse sentido, Rui de Pina ainda recorda

como o futuro rei João II, então com dezasseis anos, fora um notável guerreiro nos

combates travados contra os mouros de Arzila, levando a que seu pai, o monarca

Afonso V, pelo contentamento da

_______________________________________________________________________________________________ 160

80 Gomes Eanes de Zurara, Crónica do conde D. Duarte de Meneses, ed. L. King, Lisboa, Universidade Nova, 1978, p. 51. 81 Micheline de Combarieu du Gres, ob. cit., ed. cit., pp. 140 e 147-148. 82 Gomes Eanes de Zurara, ob. cit., ed. cit., pp. 53-54.

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gloria de ver aquelle dia na maaõ do Pryncepe sua espada de bravos golpes

torcida, e de sangue de infyees em todo banhada, o tivesse armado por

cavaleiro, com pallavras de grandes louvores.83

7 - O MODELO CORTESÃO

Entretanto, desde a segunda metade do século XIII que a educação dos príncipes

passara a estar mais centrada na corte régia, à medida que as moradas dos reis tendiam a

fixar-se nas principais cidades do reino. De facto, é então que se começa a abandonar a

prática régia de entregar a criação dos príncipes às famílias da grande nobreza do reino.

Os jovens infantes passaram, assim, a ser criados junto das mães, sabendo-se que, por

exemplo, a rainha Beatriz de Castela, mulher do rei Afonso IV, teve junto de si, entre os

anos de 1313 e 1347 os seus sete filhos (dos quais apenas as infantas Maria e Leonor e

Pedro, o futuro herdeiro do trono, sobreviveram), bem como os dois netos, após a

morte, em 1349, da nora Constança Manuel. Também Leonor Teles manteve junto de si

a filha Beatriz até à sua entrega ao rei de Castela em 1383, com dez anos de idade. Dos

descendentes de Filipa de Lencastre, só a partir dos treze/catorze anos se conhece um

conjunto de servidores para os mais velhos, Duarte e Pedro. Ainda Leonor de Aragão

conservou consigo até ao exílio, em 1440, os seus cinco filhos sobreviventes, partindo

depois apenas com a pequena infanta Joana, de um ano de idade.

_______________________________________________________________________________________________ 161

83 Rui de Pina, “Chronica do Senhor Rey D. Affonso V” in Crónicas, ed. cit., p. 822.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ____________________________________________________________________________________________

A partir de Afonso III assiste-se, pelo contrário, através da institucionalização

das casas dos príncipes,84 à deslocação para os paços da coroa dos filhos das mais altas

linhagens fidalgas, que aí passavam a ser mantidos e educados.85

Assim, à medida que os reis iam dotando os seus herdeiros de

caza muy honrada, e de muitos vassallos, e de muy ricos homens, e de seu

asentamento grande contia de dinheyro, e muitos Lugares de sua jurdiçaõ,

conforme refere Rui de Pina a propósito da fundada pelo rei Dinis em intenção do

infante Afonso, então com sete anos de idade,86 tendia a inverter-se a primeira situação.

No século XV, por exemplo, já os procuradores às cortes do reino se queixavam dos

custos que acarretava a criação régia dos muitos filhos dos nobres que afluíam à corte,

criticando o monarca pela sobeja despesa e pejo de pousadas que provocava o facto de

o soberano dar cassa e moradia de homeens a tantos fidalgos de seyes ou sete annos,87

sobretudo após os tempos em que a menoridade de Afonso V, aclamado rei aos seis

anos de idade, 88 tornara a frequência juvenil da corte cada vez mais atractiva para os

vassalos da coroa aí colocarem os seus descendentes, em busca das vantagens que lhes

poderia trazer o desenvolvimento de uma amizade com o rei menino.

De uma forma geral, as alterações introduzidas pela sociabilização cortesã do

processo educativo dos príncipes e dos nobres que com ele partilhavam idade, casa e

quotidiano, possibilitaram a progressiva valorização do papel formativo a desempenhar

pelo pai, tal como, de resto, já antes se encontrava literariamente expresso no discurso

que a chamada Gesta de Afonso Henriques fizera o conde Henrique de Borgonha

pronunciar ao herdeiro pouco antes de morrer. Aí se encontra, com efeito, uma série de

conselhos e advertências sobre o futuro exercício do poder político que, no seu

conjunto, exaltam o dever paterno de zelar pelo futuro dos filhos.89

Será contudo em meados do século XIII que surge mais desenvolvido e

aprofundado um tal modelo formativo. Segundo Afonso X, o pai arquétipo, o rei, devia

criar os filhos con gran bondad y muy limpiamente. Primeiro, prodigalizando-lhes a

abundância de tudo o que necessitassem, pois assim crecerán por ello mas pronto y

_______________________________________________________________________________________________ 162

84 Leontina Ventura, A nobreza de corte de Afonso III, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992 (Tese de Doutoramento), pp. 538-540. 85 Rita Costa Gomes, ob. cit., ed. cit., pp. 197-205. 86 Rui de Pina, “Coronica DelRey Dom Diniz”, in Crónicas, ed. cit., p. 254. 87 Citado por Rita Costa Gomes, ob. cit., ed. cit., p. 198. 88 Rui de Pina, “Chronica do Senhor Rey D. Duarte” in Crónicas, ed. cit., p. 575.

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serán más sanos y más recios y tendrán más nobles corazones. Depois, zelando pelo

seu saber e entendimento, visto que, ao serem criados na pureza e na perfeição, para

além de se virem a tornar mais nobres, dariam bom exemplo aos outros. Paralelamente,

ainda lhes competiria, para além de assegurar que ninguém falasse contra os seus filhos,

nem que eles dissessem ou fizessem mal a alguém, escolher muito bem quem deles

tomaria conta e ensinaria.90 Nesse sentido, logo à nascença dos filhos, não deveria o

pai alhear-se da questão da escolha das amas, uma matéria tradicionalmente reservada

às mães. Com efeito, segundo Afonso X, competir-lhe-ia verificar se elas eram

bien cumplidas y sanas, y hermosas y de buen linaje y de buenas costumbres, y

señaladamente que no sean muy sañudas, pues si tuvieren abundancia de leche

y fueren bien cumplidas y sanas, criarón los niños sanos y recios; y si fueren

hermosas y apuestas, las amarán más los hijos que críen, y habrán mayor

placer cuando las vieren, y se dejarán mejor criar.91

Porém, mais decisiva do que a função de superintender na escolha das aias a

atribuir aos filhos era agora o dever paterno de evitar que essa tutela feminina se

prolongasse após a criança ter atingido a sua primeira infância, visto considerar-se,

conforme viria a expressar mais tarde o cronista Rui de Pina, ser a criaçam em poder

de molheres muy danosa, porque propícia a tornar o adolescente fraco e feminado,

sendo esse um perigo que se pera qualquer homem pryvado he aleijam sobre todos,

quanto mais pera Rey. Sendo assim, convinha então que o pai cedo se impusesse como

presença educativamente actuante e interventora, levando o filho

ao monte e aa caça e introduzindo-o no exercício das armas e nos enxemplos e

doutryna, e merecimentos da cavallaria. E assy as outras cirimonias, manhas e

cousas que ao Estado de hum tal Pryncipe convem, assy pera os tempos

publicos, como secretos. 92

Para tudo isto continuava, contudo, a ser necessário o apoio de aios e de mestres

letrados, não só escolhidos pelo monarca entre os seus grandes e fiéis vassalos, como

entre os fidalgos e os eclesiásticos representativos dos sectores que se encontravam

_______________________________________________________________________________________________ 163

89 Consulte-se António José Saraiva, A épica medieval portuguesa, Lisboa, I.C.A.L.P., 1991, pp.30-33. 90 Alfonso el Sabio, Partida Segunda, Título 7, Lei 2 in Las Siete Partidas del Rey ..., ed. cit., p. 154. 91 Alfonso X el Sabio, Partida Segunda, Título 7, Lei 3 in Las Siete Partidas del Rey..., ed. cit., p. 155. 92 Rui de Pina, “Chronica do Senhor Rey D. Affonso V” in Crónicas, ed. cit., pp. 643-645.

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sintonizados com as suas políticas e decisões governativas. Nesse sentido, a principal

inovação do modelo régio de educação do príncipe consistia na escolha de coadjuvantes

recrutados entre os nobres e os eclesiásticos que moravam ou frequentavam

assiduamente a corte do soberano, encontrando-se, portanto, nas condições ideais para

iniciar o herdeiro da coroa em atitudes, aprendizagens e ensinamentos minimamente

articulados com os princípios orientadores do governo do pai.

No contexto da progressiva afirmação do primado da centralização régia do

poder, a educação dos príncipes ultrapassou então os objectivos e conteúdos até aí

dominantes, passando a envolver a necessidade de que o futuro herdeiro da coroa

adquirisse, para além dos atributos exigíveis a qualquer jovem fidalgo, os que lhe

viriam a permitir posicionar-se como garante e continuador de uma específica cultura e

sociabilidade cortesãs, conforme um programa educativo que, elaborado a nível

peninsular por Afonso X de Castela e Leão, acabou por ser aplicado e continuado nas

cortes portuguesas do genro e do neto, os reis Afonso III e Dinis.93 De facto, foi na

segunda metade do século XIII que se iniciou o costume de ensinar aos príncipes as

normas e os comportamentos próprios da corte régia, de acordo com uma etiqueta e um

cerimonial que, rapidamente, acabaram por figurar entre a matéria a ser tida em conta

na educação dos jovens fidalgos presentes na casa do rei, e, por imitação,

progressivamente, na dos que iam crescendo nas principais moradas senhoriais da

nobreza do reino.

Tratava-se, em primeiro lugar, de ensinar aos filhos dos reis e dos nobres cómo

hablen bien y apuestamente, ou seja, treiná-los para que não falassem nem muito alto

nem muito baixo, ou se expressassem demasiado depressa ou devagar, e, sobretudo,

através de uma gesticulação exagerada, pela qual a língua tendia a ser substituída pelos

membros, así como moviéndolos muy a menudo, en manera que semejasem a los

hombres que más se atreven a mostrarlo por ellos que por palabra já que tal atitude

seria publicamente interpretada como gran falta de compostura y mengua de razón. De

resto, para afastar a possibilidade de fornecer uma tal imagem, também deveriam os

jovens aprender, quer a controlar a sua postura corporal, evitando estar nem muito

direitos, nem muito curvados, andar depressa, devagar, arrastar os pés, pular ou

levantar-se e sentar-se brusca e arrebatadamente, quer a sempre se vestirem de forma

_______________________________________________________________________________________________ 164

93 Consultem-se Leontina Ventura e Rita Costa Gomes, obs. cits., eds. cits.

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conveniente e distinta, trajando roupas muy apuestas y muy limpias, así como conviene

a hijos de reys e de nobres.

Depois, para além da necessidade de aprenderem a saber escutar quem se lhes

dirigia, sem abrir a boca ou saudar despropositadamente, recomendava-se um especial

cuidado no treino do comportamento a ter durante as refeições e os banquetes, já que

correspondiam aos principais momentos em que os jovens se expunham perante a corte

dos pais. Assim, antes94 e depois de comer, convinha então que soubessem que se

deveria lavar as mãos e depois limpá-las a toalhas e não à roupa, como faziam os que,

não vivendo na corte, nada sabiam nem de limpieza ni de apostura. À refeição, por sua

vez, exigia-se-lhes que colocassem em prática a aprendizagem dos preceitos de bem

comer e beber.

Relativamente ao primeiro aspecto, era necessário saber não dar mostras de

glutonice ou prazer excessivo, pelo que deviam praticar os interditos de não meter à

boca comida quando ainda a tinham cheia, manipular ou reter na mão pedaços de

alimentos com tamanho superior ao que podiam deglutir, abocanhá-los feamente com

toda la boca à manera de bestias más que de hombres, ou devorá-los rapidamente sem

sequer os mastigar.95 Pelo contrário, fazia parte da educação a exibirem, manterem-se

afastados do prato durante as refeições e não falarem ou cantarem enquanto comiam,

sob pena de virem a ser censurados pelo gran desaliño e pela sofreguidão próprias dos

comensais vilãos que escondiam a comida com o corpo debruçando-se sobre o prato, ou

que exteriorizavam uma animação desencadeada más con alegría de vino que por otra

cosa.

Quanto ao beber, tanto fazia parte da educação dos jovens príncipes e nobres

conhecer que só deviam ingerir vinho às refeições fazendo-o moderadamente e depois

de nele se verter água, como saber nunca procurar bebê-lo, quer ao despertar, porque

lesivo do cérebro, quer em jejum, visto assim retirar o sabor dos alimentos, fazer tremer

os membros e diminuir a capacidade e entendimento. Mesmo depois de comer, também

não era aconselhado fazê-lo, por ser considerado responsável pelo desejo de prazeres

que, a serem concretizados, enfraqueceriam o corpo e o predisporiam para a produção

_______________________________________________________________________________________________ 165

94 Por exemplo, a carne se fosse comida com as mãos limpas, para além de ser mais saborosa fazia maior proveito: Alfonso el Sabio, Partida Segunda, Título 7, Lei 5 in ob. cit., ed. cit., p. 157. 95 Para além de demonstrar grande falta de educação, também a comida mal mastigada estragava-se e dava origem a doenças: Alfonso el Sabio, Partida Segunda, Título 7, Lei 5 in Las Siete Partidas del Rey, ed. cit., p. 157.

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de filhos pequenos e fracos. Em suma, mostrarem-se informados de que o vinho lhes

podia incendiar

la sangre de manera que por fuerza han de ser sañudos y mal mandados. Y

después, cuando son grandes, han de ser follones y contrarios a los que con

ellos viven

e até desencadear doenças como a sonolência que trazia os pesadelos, as postemas na

cabeça ou frequentes constipações.96

No seu conjunto, a aprendizagem de todos estes preceitos e comportamentos,

vigiados e modelados pelos pais, não só contribuíram para disciplinar as energias

próprias dos jovens príncipes e fidalgos que, paralelamente, se iniciavam nos exercícios

bélicos e nos jogos e actividades palacianas, sendo esse o caso da música ou da dança,

como também para os formar nos hábitos, costumes e cerimoniais que exaltavam e

consolidavam os poderes da realeza e da nobreza cortesãs. De resto, a aquisição das

regras e da etiqueta da corte ainda era incentivada nas crianças e nos jovens que nela se

criavam através da difusão oral e festiva de uma cultura literária específica, muito atenta

à necessidade de lhes fornecer exemplos relativos aos comportamentos, vivências e

ideais a praticar pelos bons e fiéis vassalos, tanto no que respeita às modalidades do seu

relacionamento com os respectivos pares, como no concernente aos seus dependentes e

senhores, disso fazendo o objectivo principal do correcto uso das aptidões adquiridas

pelos pequenos príncipes e cavaleiros fidalgos.97

Progressivamente, este novo modelo de educação dos filhos das mais poderosas

elites políticas do reino, onde se articulavam e complementavam ensinamentos de tipo

físico, bélico, intelectual e comportamental, acabou por se afirmar como condição

necessária para os jovens poderem atingir, igualar ou suplantar o estatuto detido pelos

pais que neles investiam a preservação da sua continuidade linhagística ou dinástica

sem olhar a meios e gastos. Em 1481, nas cortes do reino celebradas em Évora e Viana

do Alentejo, os representantes dos concelhos chegaram mesmo a recomendar ao rei

João II algumas restrições a efectuar nas despesas feitas pela coroa para financiar a

_______________________________________________________________________________________________ 166

96 Para todas estas regras e normas de cortesia: Id., ibidem. 97 Veja-se a síntese de António Resende de Oliveira, "A cultura das cortes" in Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem (coord.), Portugal em Definição de Fronteiras (1096-1325). Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, Nova História de Portugal, III, Lisboa, Presença, 1996, pp. 660-692.

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educação cortesã dos filhos e muitas mais crianças fidalgas que eram criadas em sua

casa.98

Com efeito, sendo reconhecidas as vantagens trazidas à pacificação interna do

reino pela prática régia de fazer criar os filhos dos principais vassalos da coroa,

mandando-os no seu paço e em conjunto

ensinar gramática, a jogar a espada de ambas as mãos, a dançar e a bailar, e

todas as outras manhas e costumes que tiram os moços de vícios e os chegam a

virtudes,

recomendara-se então ao soberano restringir essa actividade aos primogénitos dos

nobres que eram educados com os infantes, para, ao excluírem-se os secundogénitos,

diminuir gastos e ostentação. Ao que o monarca centralizador, bem consciente do valor

político dessas despesas, logo respondeu não estar disposto a aceitar um tal pedido.99

Na verdade, o modelo cortesão de educar os jovens príncipes e fidalgos

dependia, em grande parte, do interesse e da vontade do rei ou do nobre que o promovia

ou aplicava em intenção dos filhos, resultando o seu funcionamento bem problemático

quando ele estava ausente, nomeadamente por morte. Segundo Armindo de Sousa,

teria sido determinante para o exercício da realeza por parte de D. Afonso V a sua

infância de órfão de pai aos seis anos e praticamente de mãe aos sete, vivendo separado

dos irmãos, e tendo sido educado por um tio “algoz” da mãe, o infante Pedro. Sem

sólidos referenciais familiares de nada lhe teria servido uma educação de tipo cortesão

em que faltara a experiência de uma iniciação paterna ao pragmatismo governativo.

Assim, educado no apreço retórico e literário dos grandes feitos e epopeias do passado,

ter-lhe-ia sido impossível “entender que entre o mundo" imaginado e aquele em que

realmente vivia "ia um abismo de séculos”.100

_______________________________________________________________________________________________ 167

98 Henrique da Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV, II, ed. Torquato Sousa Soares, Lisboa, Sá da Costa, 1945-54, p. 375. 99 Henrique da Gama Barros, ob. cit., ed. cit., p. 376. 100 Armindo de Sousa, “1325-1480” in José Mattoso (dir.), História de Portugal, 2, Lisboa, Estampa, pp. 505-508.

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8 - AS DONZELAS

Entretanto, embora também fossem, em princípio, criadas na corte paterna, as

pequenas princesas ou fidalgas recebiam uma educação relativamente diferenciada.

Mais confiadas à tutela materna do que à paterna, e naturalmente arredadas dos

exercícios físicos para adestramento cavaleiresco que eram reservados aos irmãos, tanto

desenvolviam, em contrapartida, uma aprendizagem aprofundada da gestão das tarefas

domésticas em que podiam, por vezes, chegar a ser iniciadas, sobretudo no que respeita

à costura ornamental, ou seja, ao bordado, como podiam aprofundar, numa perspectiva

tendencialmente pietista, os conhecimentos letrados indispensáveis ao desenvolvimento

das vivências religiosas. De facto, como salienta Costa Lobo, as duas irmãs do rei

Afonso V, as infantas Catarina e Joana, possuíam desde meninas, para lá de um comum

livro de orações, o seu próprio e indispensável “livro de grammatica de arte nova”.101

Traduzido para português nos finais da Idade Média, O Livro das Três Vertudes

de Cristina de Pisano continha algumas sugestões sobre o papel que a mãe deveria ter

na governança e doutrina de suas filhas, começando com a cuidadosa escolha de boas

e sajes mulheres para o exercício das funções de aia. A seleccionar entre fidalgas de bõõ

nome, devotas, honradas, prudentes e ajuizadas, competia-lhe ensinar as donzelas a

mostrar a contenença e o jeito que perteece aa filha do grande príncipe. Para isso

deveriam ter já alguma idade para que tivessem o siso mais maduro e inspirar o devido

respeito e temor, como sempre falarem às pupilas de bõõs costumes e nom de cousas

vããs nem dessalutas, ao mesmo tempo que as iam iniciando na leitura dos livros de

orações. Só assim, de facto, fariam adquirir às donzelas a maneira respeitosa, sisuda,

honesta e recatada que as faria enxempro de tomarem sua regra.102

Contudo, a frequente prática de um casamento muito precoce, por vezes

justificado pelo receio que os pais tinham de que a filha pudesse perder a virgindade

numa corte em que se encontravam presentes muitos rapazes,103 fazia com que esta

educação fosse frequentemente encurtada ou perturbada pela transferência das donzelas

para a casa de um futuro esposo ou do marido. Com efeito, era frequente o abandono da

casa paterna pelas raparigas fidalgas quando atingiam a idade requerida para o permitir,

_______________________________________________________________________________________________ 168

101 A. de Sousa Silva Costa Lobo, História da Sociedade em Portugal no século XV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1903, pp. 439-440. 102 Cristina de Pisano, ob. cit., ed. cit., p. 188. 103 Danièle Alexandre-Bidon e Didier Lett, Les enfants au Moyen Âge, ed. cit., p.84.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

ou seja, a partir dos sete anos para os prometimentos que o direito chama esposórios, ou

desde os doze para um já efectivo casamento.104

Sendo assim, nos finais da Idade Média não se investia grandemente na

formação das donzelas, já que a sua principal função familiar consistia na possibilidade

de propiciar alianças matrimoniais que implicavam, amiúde, uma sua transferência para

a corte marital. Nesse sentido, não se tornava especialmente vantajoso um grande

investimento na respectiva formação infantil e juvenil. Para os pais, elas representavam

um capital bruto destinado a obter genros ou a fortalecer alianças com linhagens de

idêntico ou superior prestígio. Para os rapazes solteiros, os juvenes, as donzelas das

famílias fidalgas, representavam um precioso bem a conquistar para um casamento que

lhes forneceria, não só os meios para adquirir terras e direitos, ou seja, a possibilidade

de constituir uma domus própria, como também uma forma de lhes assegurar

descendência e continuidade familiar. Em ambos os casos, eram relativamente

secundárias as questões de uma sua esmerada educação infantil ou juvenil. 105

Conforme recorda Fernão Lopes, a infanta Beatriz, filha e herdeira do rei

Fernando I, constituiu um notável exemplo desta situação. Até aos onze anos de idade,

sem que o cronista forneça quaisquer informações relativas à sua criação, formação ou

educação, ela surge nas crónicas como um disputado objecto contratual, mencionando-

-se, no ano do seu primeiro aniversário, como prometida esposa do infante Fradique de

Castela, por ocasião da narrativa dos acordos de paz luso-castelhanos celebrados em

Santarém em 1373 e, depois, a partir dos seus oito anos, na sequência de notícias

respeitantes a renovados contratos de promessas de casamento, reaparece,

sucessivamente, como futura mulher dos infantes Henrique de Castela (1380), Eduardo

de Cambridge (1381), Fernando de Castela (1382), sendo finalmente relatado o seu

efectivo casamento, em 1383, com o rei João I de Castela, já viúvo de Leonor de

Aragão.106

_______________________________________________________________________________________________ 169

104 Veja-se, por exemplo, Synodicon Hispanum,II – Portugal, ed. Francisco Cautelar Rodriguez, Avelino de Jesus da Costa, António Garcia Y Garcia, Antonio Gutierrez Rodriguez, Isaías da Rocha Pereira,, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1982, p. 236. 105 Ana Rodrigues Oliveira, As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (sécs. XII a XIV), ed. cit., pp. 31-62. 106 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, ed. G. Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1975, pp. 339-340, 405, 451, 460, 535, 545 e 549. Nos esponsórios celebrados entre a infanta e Eduardo de Cambridge, menciona-se a cerimónia durante a qual os moços muito pequenos forom ambos lançados em huua grande cama e bem corregida e os bispos e prelados rrezarom sobre elles, e os beenzerom: Id., ibidem, p. 460.

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De resto, Beatriz não figura isoladamente na cronística de Avis. Também nela se

mencionam outras meninas infantas que, muito novas, se viram obrigadas a abandonar a

corte paterna para cumprir um destino matrimonial que nada a tinha a ver com afectos

ou interesses despontados pela sua beleza, personalidade ou saber, mas que antes

implicaram forçadas e traumáticas rupturas com os quotidianos cortesãos em que

haviam crescido e se tinham educado. De facto, entre elas, tanto se mencionam infantas

castelhanas como portuguesas. No primeiro caso figuram uma criança de quatro anos de

idade, Beatriz Sanches de Castela, a futura rainha do monarca Afonso IV, que

seendo ainda muy moça, andou muy honradamente em caza delRey D. Diniz em

quanto ambos eraõ soomente cazados por palavras de futuro107

e Branca Peres de Castela, uma prometida esposa do ainda infante Pedro I, que

elRey Dom Afonso de Portugal, como propria filha trazia, & criava em sua

propria caza, pera que tanto que fosse em idade de cazar.108

No segundo, a infanta Isabel, uma filha bastarda do rei Fernando I, prometida

como esposa de um filho do rei Henrique de Castela, que andou em casa d’el-rrei, ataa

que cumprio os anos pera poder casar. 109 Desde cedo, todas estas jovens infantas,

assim como muitas outras fidalgas, eram objecto de uma cruel ruptura familiar. De

repente, as figuras familiares que as faziam saltar nos joelhos antes de as mandarem

brincar, transformavam-se em maridos exigentes, porque conscientes da necessidade de

possuir filhos legítimos a quem legar o seu património. Era, assim, bruscamente

interrompido o seu processo educativo, para logo dar lugar ao desempenho de uma

função materna a quem os interesses dinásticos ou linhagísticos exigiam a rápida

produção de filhos.

_______________________________________________________________________________________________ 170

107 Rui de Pina, “Coronica delRey Dom Diniz” in Crónicas., ed. cit., p. 254. Passagem paralela na Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, ed. C. Silva Tarouca, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1952-1953, p. 246. 108 Rui de Pina, “Chronica d’El- Rei D. Affonso IV” in Crónicas, ed. cit., p. 345. Passagem paralela na Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, II, ed. cit., p. 154. 109 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, ed. cit., p. 335.

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9 – O EXEMPLO DOS SANTOS

A partir do século XII, as hagiografias compostas no Ocidente medieval

começam a desenvolver o tema da infância dos santos, visando propor modelos de

vivência e espiritualidade a incutir desde cedo nos jovens cristãos e respectivos

educadores. De uma forma geral, tanto insistem no tópico do precoce apego infantil

pelos mistérios e dogmas da fé, como no das aprendizagens do valor e da prática da

renúncia juvenil aos prazeres e ideais profanos.110

O primeiro aspecto compreende a narrativa de acontecimentos e situações em

que os santos evidenciam desde os seus primeiros annos signaes de uma futura

santidade. No caso de S. Gonçalo de Amarante, conta-se, por exemplo, como o futuro

frade pregador começara por revelar desde o baptismo uma providencial apetência pelo

conforto das graças espirituais, já que, no decorrer da sua iniciação ao cristianismo

nunca teria afastado os olhos da imagem do Cristo crucificado que se encontrava no

templo, de modo que todos que o viam se espantavam de tal maravilha. Repetida a

ocorrência sempre que o levavam à igreja, a criança teria começado a estender os

braços em direcção à imagem, num gesto interpretado como desejo de a abraçar e

afagar, até que começara a chorar e a gritar sempre que a ama, antes de lhe facultar a

primeira mamada do dia, não o conduzia ao templo, como que prefigurando a norma de

que

nenhuu catolico christaão devia tomar mantiimento corporal ante de ir aa

celebraçom da solennidade das missas.111

Uma idêntica precoce predisposição para a santidade também era referida a

respeito de S. Geraldo de Braga, S. Frei Gil de Santarém e Santa Clara de Assis,

explicando-se como no primeiro reluzia desde criança ha graça devinal 112 e como o

segundo, sendo ainda menino de peito, caía com tanta frequência da cama e ficava a

dormir em terra, interpretando-se o que assim era havido por mysterior, como o indício

de huma certa inclinação, e princípio d’aquella rigorosa penitência que depois

_______________________________________________________________________________________________ 171

110 Consulte-se Maria de Lurdes Rosa, "A santidade no Portugal medieval: narrativas e trajectos de vida" in Lusitania Sacra, Lisboa, 13-14, 2002, pp. 369-450. 111 “S. Gonçalo de Amarante” in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, I, Lisboa, 1869/1870, pp. 269-270; Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. Maria Clara de Almeida Lucas, ed. cit., p. 159. 112 'A vida e fim do bemaveturado Sam Giraldo arcebispo de Braga' in "Adições Portuguesas no Flos Sanctorum", ed. Cristina Sobral, ob. cit., ed. cit., p. 615.

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por toda a vida abraçou.113

Quanto a Santa Clara, a tradução portuguesa da sua hagiografia não deixa de

referir como, logo de pequena, sempre que ia à igreja com a mãe, apanhava pedrezinhas

pequenas pelo caminho, para depois, colocada ante o crucifixo em geolhos e, dizendo

orações, as contar, assim evidenciando uma precoce e providencial devoção pelo culto

do rosário.114

No que diz respeito à aprendizagem da renúncia juvenil aos prazeres e ideais

profanos, as hagiografias relatam frequentemente como os santos, ao serem ainda

crianças, logo a teriam começado a desenvolver, aprendendo, à semelhança de Cristo, a

verem a sua fé ser posto à prova, a sofrerem as tentações demoníacas e a resistirem

heróica e estoicamente ao pecado. De facto, os hagiógrafos tanto procuram omitir nos

relatos das infâncias dos santos, a referência aos gestos e às acções próprias das crianças

- seja dormir, comer, mandar, brincar ou cavalgar -, como a menção a situações

reveladoras da habitual passividade infantil, nomeadamente as que evidenciam

submissão, respeito ou obediência face aos adultos, optando por apenas lembrar

exemplos de afirmação precoce de várias atitudes de abstenção, renúncia ou

coragem.115 Enunciadas de forma a contrastar com as que caracterizavam a maioria das

crianças, elas permitiam apresentar os futuros santos como jovens excepcionais que

não se comportavam conforme o padrão próprio da sua idade.

No fundo, as hagiografias retratavam a infância dos futuros santos à luz da razão

dos adultos e da sabedoria dos anciãos. Faziam, por exemplo, semelhar a precocidade

do Menino Jesus que discursara em Jerusalém perante os doutores do templo e os

primeiros santos que haviam abandonado os seus companheiros de infância para se

isolar a rezar ou a meditar.116

_______________________________________________________________________________________________ 172

113 “S. Frei Gil” in Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, p. 21. 114 'A vida da bemaventurada Sancta Crara' in "Adições Portuguesas no Flos Sanctorum", ed. Cristina Sobral, ob. cit.,ed. cit., pp. 661 e 668, nota 19-20. 115 Sobre o gesto nas hagiografias, veja-se Jacques Le Goff, "Os gestos de São Luís: Encontro com um modelo e uma personalidade" in O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval, Lisboa, Edições 70, 1990, pp. 74-78. 116 H. Marrou, Histoire de l’éducation dans l’Antiquité, Paris, 1948, p. 299.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

Assim, à partida, a santidade preparava-se através da aprendizagem do

menosprezo pelos prazeres infantis. Nas hagiografias do século XII tal implicava,

conforme se diz ter sucedido a Santa Senhorinha de Basto, começar de mui pequena

idade, a vestir roupas muito ásperas que lhe arranhavam o seu corpo e a só se alimentar

de pão e água às sextas feiras para depois, a partir dos doze e até aos quinze anos, não

só jejuar mais frequentemente, como começar a praticar exigentes exercícios de

mortificação corporal, contando-se como a futura santa, então muito dada a martyrios,

asoutava cada dia sua carne até sangrar,117 à semelhança, aliás, do que teria feito S.

Geraldo, o santo que desde pequeno fora sempre contra sua carne mui aspro.118

A partir do século XIII, os textos hagiográficos redigidos em português deixam

de mencionar tão correntemente este tipo de aprendizagem juvenil da santidade.

Continuam, no entanto, a apresentar os futuros santos enquanto adolescentes

determinados a conservar o tesouro da sua virgindade e limpeza, como se lembra a

propósito das infâncias do franciscano António de Lisboa, explicando-se que, aos

quinze anos refreara mui trigosamete o corpo mortal por que nom empeecesse alguū

pouco ao espirito.119

Contudo, apesar do combate pela castidade permanecer entre os

comportamentos juvenis mais seguros para o caminho da santidade, tendem então a

valorizar-se outras modalidades de renúncia aos valores e bens profanos. No caso de

Isabel da Hungria, por exemplo, exalta-se a circunstância de, sendo ainda menina, haver

ordenado a si mesma huu certo cõto de oraçoões, o qual jamais passava sem as

dizer, e se algua vez, por necessidade ou occupaçam, passava ho dia sem as

dizer, aa noyte no leyto se dava aa oraçõ e nom dormia atee que acabasse suas

orações.120

No de Clara de Assis, por outro lado, realça-se sobretudo o facto de, logo em

sua meninice, todo aquello que honestamente podia aver de seus padres e ainda

_______________________________________________________________________________________________ 173

117 "Vida e Milagres de Santa Senhorinha", ed. Torquato Peixoto de Azevedo, in Memórias Resuscitadas da Antiga Guimarães, Gráfica Vimaranense, 2000, pp. 454-457. 118 Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. cit., p. 169. Sobre o tema da ascese e santidade, consulte-se André Vauchez, La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Age, Roma, Escola Francesa de Roma, 1988, pp. 224-234. 119 Id., ibidem, pp.303-204. 120 'Da sancta e muy piedosa Elisabeth, filha d’el Rey de Ungria' in "Adições Portuguesas no Flos Sanctorum", ed. Cristina Sobral, ob. cit., ed. cit., p. 588.

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do que ella podia aver pera sua pessoa todo ella dava aos proves e orfaãos que

conhecia,121

enquanto a propósito do futuro dominicano Gonçalo de Amarante, se elogia uma

infância preocupada em banir

todallas pompas e deleitaçoões deste mundo menos presadas aa devoçom e

contemplaçom. 122

As perfeições das crianças e dos adolescentes que haviam adquirido a santidade

por desígnio divino são amplamente glosadas pelos hagiógrafos. Filhos dilectos do

Criador, apresentam-se como comprovativos das excelências de uma vida inspirada e

educada pela divina Providência, por ela crecēdo en corpo e em virtudes, sciencia,

disciplina,123 devoçom e boõs costumes.124 Em última análise fora assim que D. Telo

teria adquirido a formação espiritual que não só o tornara forte de corpo, formoso de

rosto e prendado no aspecto físico, como também lhe facultara a posse das qualidades

morais de contenção, compreensão para com os inferiores, compaixão para com os

necessitados, afabilidade, justiça, misericórdia, castidade, prudência, honestidade e

firmeza em humildade e em qualquer momento de perturbação,125 ou que S. Rosendo

depois de, em idade juvenil, haver mostrado o juízo de um ancião, ganhara modéstia,

ponderação, austeridade, castidade, misericórdia para com os pobres, piedade para

com Deus, caridade para com todos.126 O mesmo se podia dizer a propósito da forma

como Santa Clara de Assis se tornara

pessoa muy fermosa a maravilha, em tal maneira que soava a sua fama per

muytas partes,127

_______________________________________________________________________________________________ 174

121 'A vida da bemaventurada Sancta Crara' in ob. cit., ed. cit., p. 661. 122 Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. cit., p. 160. Também Santa Isabel da Hungria tirava de muytas vaaydades e acrecētava em virtudes: 'Da sancta e muy piedosa Elisabeth, filha d’el Rey de Ungria' in ob. cit., ed. cit., p. 588. 123 'A vida e fim do bemaveturado Sam Giraldo arcebispo de Braga' in ob. cit., ed. cit., p. 615. 124 'A vida da bemaventurada Sancta Crara' in ob. cit., ed. cit., p. 661. 125 "Vida de D. Telo", ed. Aires A. Nascimento, in Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, ed. cit., p. 57. 126 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., p. 43. 127 'A vida da bemaventurada Sancta Crara' in ob. cit., ed. cit., p. 661.

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ou acerca da razão pela qual S. Geraldo crescera em

todallas virtudes mui perfeito, em humildade comprido, paciencia, piedade e

mansidom.128

Para além disso, as hagiografias ainda distinguem a superioridade educacional

das crianças que depois se viriam a tornar santas no que se refere à respectiva educação

letrada. Por um lado, porque nela baseiam a origem da elogiada preparação intelectual

de vários santos, citando-se Telo, Teotónio e Martinho de Soure como jovens

envolvidos na aprendizagem das artes liberais junto dos mestres das escolas

eclesiásticas de Coimbra.129 Por outro lado, porque essa juvenil preparação letrada é

considerada essencial para o imprescindível domínio da leitura, comentário e reflexão

das verdades da fé contidas nos textos sagrados, conforme se encontra expresso quando

se refere a gram maravilha que era saber-se ter Santa Senhorinha de Basto aprendido

em pequena a ler e saber as Escrituras todas de cor, bem assim como o texto da Regra

de S. Bento.130 Por fim, em ambos os casos, porque o estudo das letras permitia

diferenciar a educação dos santos da das crianças que formavam as suas primeiras falas

com ninharias e brincadeiras como costuma suceder na infância,131 identificando-as,

portanto, como modelo a seguir para quem devia crescer, em idade e sabedoria,

conforme se cita a propósito de S. Gonçalo de Amarante. 132

No seu conjunto, as aprendizagens infantis de todos estes santos nunca decorrem

sob uma directa tutela paterna ou materna. Na sua maior parte, essa função é atribuída a

religiosos ou religiosas que, se por vezes integram a parentela dos jovens, quase sempre

se apresentam na qualidade de providenciais iniciadores de uma santidade preparada e

gerida pela própria divindade. No caso de Senhorinha de Basto conta-se como, depois

de ter sido criada por uma ama de leite e de ter assistido, ainda muito pequena, à morte

da mãe, fora entregue a uma tia que era Dona religiosa, e de boa vida.133

Relativamente a S. Geraldo de Braga, Santo António de Lisboa e S. Gonçalo de

Amarante refere-se, por sua vez, para além da informação de que todos eles, como

_______________________________________________________________________________________________ 175

128 “A vida e fim do Bem Aventurado Sam Giraldo Arcebispo de Braaga” in Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. cit., p. 169. 129 "Vida de D. Telo", "Vida de D. Teotónio", "Vida de S. Martinho de Soure", ed. Aires A Nascimento, in Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, ed. cit., respectivamente, pp. 57, 231 e 143. 130 "Vida e Milagres de Santa Senhorinha", ed. Torquato Peixoto de Azevedo, in ob. cit., ed. cit., p. 452. 131 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., p. 21. 132 “De Sam Gonçalo de Amarante” in Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. cit., p. 159;

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pertencia,134 haviam recebido educação da parte de religiosos, como o segundo, logo

em sua meninice e tenra idade, fora dado a criar e aprender na igreja lisboeta da Madre

de Deus,135 e como o terceiro, ainda menino de peito, havia sido encomendado a huu

devoto sacerdote que o enformasse em doctrina e honestos costumes,136 antes de, uma

vez crescido em hydade e sabedoria acerca de Deos e dos homes, vir a ser conduzido

pelo pai ao arcebispo de Braga. Explica-se, depois, como o progenitor, após uma

cõprida enformaçõ de todas as coisas que lhe aconteceram do nascimeto e baptismo,

pedira humildosamente ao prelado que

tevesse por be mãdá-lo notar ãtre os outros da hidade de seu filho e que fosse

criado, doctrinado e ensinado sob correiçõ e castigo do mestre dos outros

moços da sua hydade.137

De resto, se nos casos referidos ainda se recorda como eram os progenitores que

entregavam os filhos aos religiosos a quem abandonavam a respectiva educação e

instrução, algumas das hagiografias que haviam sido traduzidas para português durante

a Baixa Idade Média contribuíram para tornar presentes alguns exemplos de como essa

tutela eclesiástica chegara, por vezes, a ser obtida sem ou contra a própria vontade da

família das crianças. Um deles encontra-se na hagiografia do bispo S. Marçal, visto nela

se referir como ele, pelos quinze anos de idade,

nom se tornou mais a casa dos parentes mas, dando-se a verdadeiras obras e

encomendãdo-se a Nosso Senhor Jhesu Christo, se fez seu discipollo e passou a

viver com os eclesiásticos.138

Outro diz respeito a acontecimentos protagonizados por uma irmã mais nova de

Clara de Assis, a quem a santa, conhecendo-lhe a vontade de seguir a vida religiosa,

cortou os cabelos e vestiu o hábito quando ela a foi visitar ao onvento. Ao saber do

_______________________________________________________________________________________________ 176

133 "Vida e Milagres de Santa Senhorinha" in ob. cit., ed. cit., p. 446. 134 Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. cit., p. 169. 135 Id., ibidem, p. 203. 136 Id., ibidem, p. 159. 137 'A vida de Sam Gonçalo de Amarante' in "Adições Portuguesas no Flos Sanctorum", ob. cit.,ed. cit., p. 606 138 'A vida de Sam Marçal bispo' in "Adições Portuguesas no Flos Sanctorum", ob. cit., ed. cit., p. 635.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

sucedido, os pais e parentes

ouverõ grãde nojo e vierõ aaquelle logar e levarõ-na per força. Empero a

menina chorava muyto.

Uma oração de Clara resolveu então a situação, já que, miraculosamente, fez com que a

irmã se tornasse demasiado pesada para ser levada pelos revoltados parentes.

Enfadados leyxarõ-na e forõ-se. E ella cõ prazer tornou-se pera sua irmaã Crara.139

Independentemente da sua veracidade ou até verosimilhança, todas estas

histórias contribuem para reforçar a ideia de que a aprendizagem da santidade implica-

va um difícil abandono inicial das amarras profanas da vida terrena, funcionando a

família e os quotidianos sociais que envolviam a infância e a adolescência dos futuros

santos como uma alegoria dos obstáculos a ultrapassar para poder crescer no saber

da fé. Em certa medida, trata-se aqui de retomar as tradições que o texto sagrado dos

cristãos enunciara quando fizera dizer a Cristo que "Quem ama o pai ou mãe, mais do

que a mim, não é digno de mim; e quem ama o filho ou filha, mais do que a mim, não é

digno de mim",140 actualizando desse modo o sentido do episódio vetero-testamentário

em que Abraão se dispôs a sacrificar o seu filho primogénito a Deus. De resto, também

os Evangelhos apócrifos tinham contribuído para a crescente difusão medieval da

suposta tradição de que a Virgem Maria apenas permanecera junto dos pais atee tres

annos, sendo por eles depois levada ao Templo do Senhor para nele ser preparada e

educada até aos annos de descriçõ, e assim poder vir a desempenhar cabalmente a sua

função de mãe de Jesus. 141

As hagiografias não se limitam a refuncionalizar o tópico do abandono ou o da

ruptura com a família para melhor exaltar a superior qualidade da educação e instrução

proporcionada aos santos que, em criança, haviam sido confiados ao magistério dos

máximos representantes terrenos da divindade. Também desenvolvem o registo de

episódios em que os progressos na aprendizagem da santidade ocorrem através da fuga,

contestação ou acomodação às regras que organizavam a sociabilidade leiga e profana.

_______________________________________________________________________________________________ 177

139 'A vida da bemaventurada Sancta Crara' in ob. cit.,ed. cit., pp. 662-663. 140 Evangelho de S. Mateus: 10,37, in Novo Testamento, Bíblia Sagrada em Português, ed. e trad. de João Ferreira de Almeida, Lisboa, Sociedades Bíblicas Unidas, 1968. 141 'Da vida e linhagem de Sancta Anna, madre de Nossa Senhora' in ob. cit., ed. cit., p. 704.

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Por um lado, conta-se como a criança-santo desde cedo se afastava das festas,

jogos e brinquedos infantis, conforme aparece explicitamente citado a propósito de S.

Rosendo de Celanova, 142 ou se recusava a participar nos divertimentos dos irmãos ou

dos amigos, preferindo passar o seu tempo a orar e a visitar as igrejas. Santa Isabel da

Hungria, por exemplo, logo em

sua meninice começou de fugir e desprezar todas as levezas dos jogos e das

festas teporaes que a tal hidade sooe abraçar. Seendo ainda de cinco annos,

hya-se aa ygreja cõ suas donzellas e outras mininas e ally assy longamente se

punha e se perseverava em oraçõ que apenas a podiom os servidores e

companheiras tirar da oraçã e ygreja.143

Por vezes, como teria ocorrido a Gil de Santarém, esse isolamento geracional

correspondia a uma precoce entrega ao exercício das letras, preferindo o jovem

que crescia para a santidade, aprofundar o conhecimento das Sagradas Escrituras,

pondo de lado a luquacidade capciosa em que os outros adolescentes

encontravam particular deleite.144

Isabel da Hungria, por seu lado, não lhe havendo sido possível pela sua condição

fidalga, praticar uma tal deserção social, teria sempre tentado desviar as suas

companhias infantis para fins edificantes, explicando-se como,

muytas vezes, por levar suas companheiras aa ygreja, mostrava que queria hir

folgar e trebelhar e, entrando na ygreja, fazia que se escondia em algua

capella ou logar mais remoto e secret o e ally de verdade e fiuza se punha

em oraçã e cõvidava as outras que assi orassem. Quando algua vez por

affincados requerimetos jogava qualquer jogo que fosse - e sempre honesto e

asessegado - sempre punha sua esperãça em Deos. E aquello que ganhava

dava-o aas mininas proves, cõvidãdo-as e amoestãdo que dissessem o

Pater Noster e Ave Maria e que saudassem muytas vezes a ymage da Virgē

Maria.145

_______________________________________________________________________________________________ 178

142 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., p. 43. 143 'Da sancta e muy piedosa Elisabeth, filha d’el Rey de Ungria' in ob. cit., ed. cit., p. 587. 144 Frei Baltazar de S. João, A vida do bem aventurado Gil de Santarém, ed. Aires A. Nascimento, Lisboa, 1982, p. 26. 145 'Da sancta e muy piedosa Elisabeth, filha d’el Rey de Ungria' in ob. cit.,ed. cit., p. 587.

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Por outro lado, várias vidas de santos, sobretudo se oriundas da nobreza, dão um

grande relevo à questão do seu posicionamento face ao matrimónio, valorizando a

forma como, ainda adolescentes, contornaram ou recusaram um casamento que lhes

reforçava as ligações familiares e sociais ao mundo terreno de que tanto desejavam

afastar-se. No caso de Isabel da Hungria recorda-se então que ao ser costrãgida de seus

padres pera receber marido, acabara por obedecer e submeter-se

ao grãde carrego e ley do marido, nom tanto com desejo e

inclinaçã da carne mas soomete por nõ resistir aa obediencia dos padres e por

que Deos lhe desse fructo de que fosse servido.146

Nas hagiografias das santas Senhorinha de Basto e Clara de Assis, informa-se

haver a sua aprendizagem da santidade saído reforçada por uma sua recusa. Senhorinha

porque, ao ser, aos sete anos, pretendida por um mancebo mui louçaõ, filho de um conde

mui rico que vinha de linhage dos Reis, a ele se escusara, embora pressionada pelo pai,

por quanto seu talente era guardar a Deus o que lhe prometera e nom casar

assim como o padre lhe aconselhava.147

Clara de Assis porque, apesar de que tãto que foy em hidade, haver sido

requerida de muytos grãdes e nobres homes pera casamento, sempre o havia

negado para servir e esposar o Senhor Jhesu Christo, até que o pai, muito

devoto e amigo de Deos, nõ a forçou mais. 148

Um tal desfecho nem sempre seria tão pacífico e cordato, bastando lembrar

como a Infanta Joana, a filha do rei Afonso V, só em adulta viria a conseguir ver aceite

pela corte régia quer a sua recusa a qualquer matrimónio, quer o direito de passar a

viver num convento em cuja comunidade, aliás, nunca chegou a ingressar.149 Contudo,

nem a sua hagiografia, nem as que foram compostas nos finais da Idade Média em

louvor de Nuno Álvares Pereira ou do Infante Fernando, o Infante Santo, se detêm em

notícias sobre as respectivas infâncias e adolescências, já que todos eles haviam sido

_______________________________________________________________________________________________ 179

146 Id., ibidem, pp. 588-589. 147 "Vida e Milagres de Santa Senhorinha", in ob. cit., ed. cit., pp. 448-449. 148 'A vida da bemaventurada Sancta Crara' in ob. cit., ed. cit., p. 661. 149 João Gaspar, A princesa Santa Joana e a sua época (1452-1490), Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 1988.

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formados no quadro de um modelo educacional leigo e profano.150 De facto, durante a

centúria de Quatrocentos, até o próprio ensino ministrado nas escolas paroquiais,

catedrais e conventuais se havia aberto às solicitações e necessidades próprias da

sociedade leiga.

10 - A FORMAÇÃO CLERICAL

No século XII, o reanimar das cidades e da vida urbana no Ocidente cristão,

trouxe consigo o decisivo crescimento das instituições religiosas seculares. Detentora, a

partir do século VIII, de um quase monopólio do ensino e da aprendizagem da cultura

letrada, a Igreja viu então as suas estruturas paroquiais e diocesanas tornarem-se o

destino de muitos jovens que nelas procuravam vir a obter a preparação necessária ao

prestigiado e lucrativo desempenho de renovadas e cada vez mais extensas funções

religiosas.

Não estando canonicamente bem definida durante o século XII, a idade mínima

para o acesso às funções eclesiásticas situava-se na pré-puberdade, ou seja, antes dos

catorze anos, podendo à época qualquer varão aceder à clericatura através do ritual da

tonsura, o qual lhe possibilitava todas as vantagens e alguns dos inconvenientes de uma

entrada na ordem do clero. A partir do pontificado de Bonifácio VIII (1294-1303) a

idade mínima da tonsura foi definitivamente fixada nos sete anos, de acordo com o

princípio de ser então que os jovens atingiam a razão suficiente para a posse de um grau

aceitável de conhecimento e responsabilidade individuais. 151 Contudo, já antes Afonso

X lembrara, na Primeira Partida, como a criança

desque ouiere siete annos fasta a doze bien puede auer orden de corona e las

otras órdenes menores fasta aquella que llaman acólito,152

sendo frequente poder o papado autorizar, mesmo depois da fixação oficial da idade

mínima de acesso à clericatura, excepções a essa norma, permitindo assim que crianças

_______________________________________________________________________________________________ 180

150 Sobre o perfil histórico de todos estes santos consulte-se, Maria de Lurdes Rosa, "A religião no século: vivências e devoções dos leigos" in Ana Jorge e Ana Maria Rodrigues, História Religiosa de Portugal. I – - Formulação e limites da Cristandade, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 480-505. 151 Essa idade mínima manteve-se, aliás, vigente como regra geral até ao Código do Direito Canónico de 1917, sendo depois fixada, a partir de 1973, nos vinte e um anos. Consulte-se René Metz, "L'admission du mineur aux differents états de vie et aux actes religieux" in La femme et l’enfant dans le droit canonique médiéval, Londres, Variorum Reprints, 1985, p. 42. 152 Afonso X, Primeyra Partida, ed. José Azevedo Ferreira, Braga, I.N.I.C., 1980, Título VI, p. 152.

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mais jovens pudessem beneficiar dos rendimentos vinculados ao exercício da

clericatura.

Se a tonsura abria o acesso à vida eclesiástica, esta podia depois ser seguida no

sentido da obtenção de progressivos graus, desde o de porteiro até aos de, por ordem

hierárquica, leitor, exorcista, acólito, subdiácono, diácono, sacerdote e bispo, não sendo

possível aceder às duas últimas dignidades sem ultrapassar, em regra geral, as idades

mínimas de, respectivamente, vinte e cinco e trinta anos.153

Entretanto, antes de atingirem os catorze anos, a idade canónica considerada de

acesso à puberdade, já os jovens maiores de sete anos podiam receber os benefícios

eclesiásticos inerentes ao desempenho das funções clericais que não implicavam o

chamado encargo de almas, isto é, as relativas à distribuição de sacramentos aos fiéis

como o baptismo, a comunhão, a penitência ou a extrema-unção, podendo assim

dedicar-se, quer ao exercício da leitura ritual dos textos sagrados, quer a uma activa e já

especializada participação nos grupos corais que actuavam nos templos durante as

cerimónias litúrgicas. Contudo, conforme explicava Afonso X, mesmo antes dos sete

anos,

porque y ha algunos dellos que comiençan mas ayna a seer entendudos que

otros, a los que tales fueren e ouieren alguna orden, bien les pueden dar

benefícios menores de siete annos arriba porque aurán enetendimiento para

seruir.154

Por outro lado, era também frequente a ocorrência de diversos prelados

infringirem o preceito, estabelecido desde o pontificado de Alexandre III (1159-1181),

de não se dever confiar aos clérigos menores benefícios para os quais não estivessem

aptos, como, por exemplo, a jurisdição de igrejas a menores de dez anos. A esse respeito

a hagiografia de S. Gonçalo de Amarante resulta elucidativa, visto referir como, ao ter o

santo atingido a hydade pera tomar ordes de missa, logo o arcebispo de Braga,

veendo sua cõversaçom digna de louvor e castidade de sua vida, ho promoveo

ao grao sacerdocio e em hua abadia por emtõ o cõfirmou, dãdo-lhe auctoridade

de reger os parochianos da dita abadia.155

_______________________________________________________________________________________________ 181

153 Tal como se noticia na Primeira Partida de Afonso X, ed. cit., Título VI, p. 152. 154 Afonso X, Primeira Partida, ed. cit., Título XVI, p. 337. 155 “A vida de Sam Gonçalo de Amarante” in ob. cit., ed. cit., p. 606.

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No seu conjunto, o acesso e a progressão na carreira clerical implicavam a

aprendizagem de estudos letrados, nomeadamente os que funcionavam na sede das

dioceses, fosse numa dependência do paço episcopal, fosse num espaço situado na

própria catedral. Se podiam, por vezes, ser frequentadas por crianças que, à partida, não

estariam destinadas à vida clerical, eram sobretudo destinadas aos jovens a quem os pais

haviam determinado um futuro eclesiástico, ou então aos filhos dos serviçais ou

domésticos que prestavam serviços à Igreja, quando neles tivesse sido reconhecidas a

inteligência e as virtudes consideradas necessárias à preparação para o sacerdócio.156

Organizado por um dos cónegos do cabido das catedrais, o Mestre-escola, o

ensino diocesano começava pela aprendizagem da leitura e da escrita através do Livro

dos Salmos, devendo os seus cento e cinquenta poemas serem também decorados e

devidamente recitados. Para fixar os salmos, as crianças liam-nos em voz alta. Saber

ler, equivalia, assim, a conhecer o Livro dos Salmos. Seguia-se depois a aquisição dos

conhecimentos relativos ao Latim e respectiva Gramática, havendo também uma mais

ou menos desenvolvida iniciação à Dialéctica, quase resumida à Lógica, à Retórica, e,

por vezes, à Aritmética, à Geometria, à Astronomia e à Música teórica, já que o sempre

presente ensino diocesano da Música Coral, não só era muito mais desenvolvido, como

até confiado ao magistério de um outro dignitário do cabido, o Chantre.157

Completado depois pelo ocasional aprofundamento de conhecimentos jurídicos,

medicinais ou teológicos, este ensino primário e secundário era considerado

indispensável ao posterior exercício de funções eclesiásticas, encontrando-se

canonicamente consagrado desde o IIIº Concílio de Latrão no qual, em 1179, se legislou

no sentido de que "não só o bispo, no seu cabido, provesse ao ensino da Gramática e da

Teologia, mas que houvesse um mestre-escola em cada catedral para ensinar

gratuitamente os rapazes pobres."158 Este preceito estava assim de acordo com uma

norma que depois, em 1215, no IVº Concílio de Latrão se tornou extensiva às paróquias

servidas por uma comunidade de cónegos, as Colegiadas, visto se obrigar a que também

_______________________________________________________________________________________________ 182

156 Rómulo de Carvalho, História do Ensino em Portugal, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 15. 157 Para uma síntese geral, consulte-se Saúl António Gomes, "A religião dos clérigos: vivências espirituais, elaboração doutrinal e transmissão cultural" in Ana Jorge e Ana Maria Rodrigues, História Religiosa de Portugal. I – Formação e Limites da Cristandade, ed. cit., pp. 339-422, especialmente as pp. 400-413. Sobre os primórdios de um tal ensino, veja-se Francisco da Gama Caeiro, "As escolas capitulares no primeiro século da nacionalidade portuguesa" in Dispersos, III, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999, pp.25-65. 158 Citado por Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, I, Porto, Liv. Civilização-Ed., 1971, p. 491.

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elas assegurassem o funcionamento de uma escola. Na verdade, no que diz respeito à

Igreja hispânica, já muito antes, tanto o IVº Concílio de Toledo (633) como o de

Coiança (1051), haviam insistido na necessidade de todos os candidatos ao sacerdócio

deverem estar na posse dos conhecimentos letrados indispensáveis a um futuro clérigo.

Nos finais do século XIII, o ensino eclesiástico conheceu em Portugal a

especialização universitária, sendo a intenção dos seus promotores, o rei Dinis e vários

eclesiásticos do reino, permitir que o país fosse dotado de um Estudo Geral capaz de

assegurar o aprofundamento de saberes apenas iniciados nas escolas eclesiásticas

catedrais ou paroquiais, nomeadamente o Direito, a fim de evitar os custos inerentes ao

financiamento da ida de estudantes portugueses ao estrangeiro para nele adquirirem

uma formação jurídica superior.159 De facto, tanto o poder régio como o eclesiástico,

então em acentuado e conflitual processo de centralização de direitos e prerrogativas,

necessitavam de mais ou menos onerosos juristas, concertando-se, neste caso, para

limitar as despesas que levaram, por exemplo, em 1281, o sínodo diocesano de Braga a

ter de legislar no sentido de permitir aos clérigos beneficiados que se dispusessem a

prosseguir no exterior do reino os seus estudos letrados durante três anos, a

conservarem os benefícios e as rendas que lhes estavam atribuídas, desde que

deixassem no país alguém responsável pela cura das alma da sua paróquia.160

A falta de registos adequados não permite determinar a média etária com que se

iniciavam os estudos na universidade de Lisboa-Coimbra, sendo, no entanto,

conhecidos muitos casos de alunos com idades tão baixas que dificilmente lhes

permitiriam acompanhar o ritmo e o nível de um ensino superior, já que muitos deles,

sendo crianças de pouca idade, apenas deviam figurar como estudantes para poderem

vir a beneficiar das bolsas e rendimentos que permitiam, em geral, financiar os

respectivos estudos. No fundo, seria essa, por exemplo, a situação de Mendo Rodrigues

_______________________________________________________________________________________________ 183

159 Cf. Rómulo de Carvalho, ob. cit., ed. cit., p. 61. Veja-se também José Mattoso, "O suporte social da Universidade de Lisboa – Coimbra (1290-1537)" in Naquele tempo – Ensaios de História Medieval, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 395-420. 160 Synodicum Hispanum. II – Portugal, ed. cit., p. 13.

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de Magalhães, um clérigo da arquidiocese de Braga, que, em 1425, apenas com catorze

anos, foi autorizado a receber benefícios enquanto frequentasse o Estudo Geral, ou

então, com a mesma idade, a de Jorge da Costa, para quem o irmão, o arcebispo de

Lisboa, futuro cardeal Alpedrinha, pedira, em 1472, os rendimentos de uma paróquia da

cidade ou da diocese de Lisboa, a fim de prosseguir os estudos que já frequentava na

universidade portuguesa. Estes casos não deveriam ser muito diferentes quer do do

príncipe Afonso, para quem o pai, o rei Manuel I, solicitou a atribuição do priorado de

Santa Cruz de Coimbra para que ele se pudesse dedicar, aos oito anos de idade, aos

estudos superiores, quer ao de Francisco Lopes, um clérigo de Lisboa que, aos sete

anos, obteve do papa Leão X, para os mesmos fins e na sua diocese, um canonicato e a

respectiva prebenda.161

11 - A OPÇÃO MONÁSTICO-CONVENTUAL

A vida religiosa que exige a formulação de um acto individual de adesão, o

respeito por determinados interditos comportamentais e a partilha do regulamentado

quotidiano de uma comunidade separada da sociedade secular era acessível às crianças

de ambos os sexos. Muitas delas porém, embora vivessem num mosteiro ou num

convento por vontade própria, tinham sido entregues à comunidade de religiosos onde

moravam por exclusiva vontade dos pais, assim adquirindo a condição de oblatos, ou

seja, de crianças oferecidas a Deus nos seus primeiros anos de vida.

Por um lado, porque a sua educação religiosa para uma futura vivência exemplar

da espiritualidade era pensada como forma de propiciar à sua família especiais graças e

protecções celestes. Por outro, porque, frequentemente, era esse o processo mais

seguido por algumas famílias de fracos recursos para ultrapassar a angustiante falta de

meios destinados a criar um outro filho. Tanto num caso como no outro, a oblação

costumava efectuar-se durante os primeiros meses de vida, conforme teria sido o caso

de um dos filhos da rainha Isabel da Hungria, a infanta Gertrudes, a quem a mãe

entregara, antes de fazer um ano, ao mosteiro feminino de Altenberg, nele tendo mais

tarde vindo a exercer as funções de abadessa. 162

_______________________________________________________________________________________________ 184

161 Sobre este tema, consulte-se José Marques, "Os Corpos Académicos e os Servidores" in História da Universidade em Portugal, I, Universidade de Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 101- -106. 162 “Da sancta e muy piedosa Elisabeth, filha d’el Rey de Ungria” in ob. cit.,ed. cit., p. 600, nota 140.

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Contudo, a oferta familiar de filhos destinados a integrar uma comunidade

monástica ou conventual, também podia vir a ser decidida antes do nascimento ou já

depois de as crianças serem mais crescidas. A primeira situação surge referida na

hagiografia do bispo Geraldo de Braga, através da notícia de que os pais do santo,

antes que casassem, fezerom voto ao senhor Deos que o primeiro fruito do seu

matrimónio offerecessem a Deos pera sempre,163

sendo também mencionado numa passagem da vida de S. Frei Gil de Santarém, quando

se recorda como Maria Antioca, sendo casada há dez anos e sem filhos, obtivera a

intercessão do santo dominicano para obter a graça de poder conceber, mediante a

promessa de que se Deos lhe desse hum filho, ella lho tornaria, dando-o em oblação a

um dos seus conventos.164

A segunda situação, por sua vez, também surge registada nas hagiografias a

propósito dos pais que teriam decidido tornar oblatos os filhos miraculosamente salvos

pela acção dos santos. Na vida de S. Rosendo de Celanova, por exemplo, cita-se o caso

de um rapazinho endemoinhado que fora entregue ao mosteiro beneditino dirigido pelo

santo após o ter curado de seu mal.165 Em outros textos mais tardios, são sobretudo

frequentes as histórias de oblação feitas em intenção de comunidades carmelitas, tal

como se refere na menção ao rapaz de onze ou doze anos que teria sido ressuscitado

após morte causada pelo coice de uma mula,166 ou mendicantes, seja a do mocinho de

cinco anos que também teria recebido a graça de regressar à vida depois de perecer por

afogamento,167 seja a do minino que fora providencialmente curado das consequências

da queda num tanque de água quente.168

Quando oriundas da nobreza, as crianças oblatas identificavam muitas vezes

filhos segundos ou bastardos a quem os pais assim ofereciam uma alternativa à situação

de futuros marginalizados da fruição de uma herança familiar que tendia a ser

transmitida por via linhagística. De facto, se é certo que a nobreza procurava reservar

para os filhos primogénitos a sucessão no património familiar, assim como a

consequente perpetuação terrestre da linhagem, também o é a circunstância de permitir

_______________________________________________________________________________________________ 185

163 Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. cit., p.169. 164 “S. Frei Gil” in Frei Luis de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. cit., pp. 218-219. 165 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., pp. 71-73. 166 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 490-491. 167 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), I, ed. José Joaquim Nunes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, p. 271.

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que os filhos oblatos, para além de desempenharem a função de propiciadores das

graças celestes, capazes de favorecer a manutenção e o acrescento do poder da estirpe,

pudessem vir a ter acesso aos bens e aos direitos reservados ao exercício da direcção

das comunidades religiosas onde ingressavam em crianças, visto frequentemente

chegarem a exercê-la ou a partilhá-la uma vez adultos. Nesse sentido, Fernão Lopes

não se esquece de assinalar como o fundador da segunda dinastia dos reis de Portugal

ficara a dever à sua condição de filho do monarca Pedro I, o ter podido ingressar na

ordem religiosa militar de Avis, onde, apesar de bastardo e de ainda ser uma criança de

sete anos, lhe foram

tirados os vestidos sagrais e lançado o hábito da Ordem, após o que o

comendador-mor e os outros lhe beijaram a mão por seu mestre e senhor.169

As implicações da progressiva adopção do modelo linhagístico contribuíram

também para que as famílias fidalgas, no quadro geral de uma prática destinada a não

fragmentar excessivamente o seu património familiar, incentivassem o ingresso das

filhas nos mosteiros e conventos femininos que se começaram a multiplicar a partir do

século XIII, pretendendo assim evitar atribui-lhes as terras e os direitos que

constituiriam o dote a entregar a um eventual marido.170 De facto, se muitas das filhas

da nobreza começaram então a definir um grupo celibatário que permanecia na casa

dos pais ou dos irmãos primogénitos, várias outras tornaram-se oblatas logo em

criança, sendo até comum chegarem a partilhar a sua comunidade religiosa com tias,

irmãs ou primas, não sendo raro que as próprias mães, depois de enviuvar, se lhes

chegassem a juntar, embora quase sempre como devotas, não chegando, portanto, a

romper os laços que as ligavam aos interesses e assuntos profanos.171

Na cronística medieval portuguesa abundam, aliás, as notícias sobre a entrada

nos mosteiros e conventos de várias pequenas infantas e donzelas fidalgas.

Relativamente às primeiras, são assim recordadas duas filhas de Sancho I, Sancha e

_______________________________________________________________________________________________ 186

168 “S. Frei Gil” in Frei Luís de Sousa, ob. cit.,ed. cit., pp. 231-232. 169 Fernão Lopes, Crónica de D. Pedro, ed. cit., capítulo XLIII, p. 165. 170 Sobre as implicações da progressiva adopção da sucessão linhagística no desenvolvimento do monaquismo feminino, veja-se José Mattoso, "A nobreza medieval portuguesa e as correntes monásticas dos séculos XI e XII" in Portugal medieval. Novas interpretações, Lisboa, Imprensa Nacional. – Casa da Moeda, 1985, pp. 197-224. 171 Cf. Maria Helena da Cruz Coelho e Rui Cunha Martins, "O monaquismo feminino cisterciense e a nobreza medieval portuguesa (séculos XIII-XIV)" in Theologica, 28, 1993, pp. 481-508.

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Beringela,172 e, já numa época mais avançada, uma filha e uma neta de Afonso III,

respectivamente, Branca173 e Maria, uma bastarda do rei Dinis;174 são ainda lembradas

como oblatas duas Constanças, as homónimas filhas dos monarcas Afonso VIII de

Castela175 e Afonso IX de Leão.176 No que diz respeito às fidalgas, regista-se, por sua

vez, o caso de Joana Martins Teles, uma irmã da rainha Leonor Teles.177

Na verdade, todas estas crianças, fossem rapazes ou raparigas, de origem fidalga

ou plebeia, forçadas pelos pais ou por precoce decisão individual, actualizavam na

Idade Média antigas e prestigiadas tradições bíblicas. De facto, do mesmo modo que

Abraão demonstrara a sua fé ao dispor-se a sacrificar a Deus o seu único filho,178 ou

que Ana se sentira honrada por poder entregar o seu Samuel ao serviço do Senhor,179

também os pais medievais procuravam reforçar os laços que os uniam ao Criador

através da oferta das suas crianças a comunidades especialmente vocacionadas para as

educar a louvar o Deus que determinava o sentido das suas vidas, tanto mais quanto

para alguns, os mais humildes e carenciados, uma tal dádiva significava providenciar a

sobrevivência de descendentes que, por vezes, se sentiam forçados a abandonar ou a ver

definhar por falta de meios de sustento.180

No caso dos mosteiros beneditinos bastava aos pais mais pobres fazer

simprezmente a petiçom acompanhada da oferta do seu filho perante testemunhas, já

que os monges da comunidade de acolhimento podiam depois fazer beneficiar as suas

crianças dos muitos bens que recebiam dos progenitores dos oblatos oriundos das

poderosas famílias da nobreza. Com efeito, se per ventuira alguu dos nobres quisesse

offereçer a Deus no moesteiro seu filho, se o moço fosse de meyor ydade, seus parentes

_______________________________________________________________________________________________ 187

172 Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, ed. cit., vol. I, p. 144 e Rui de Pina, “Coronica DelRey D. Sancho I” in Crónicas, ed. cit., pp. 59-60. 173 Crónica Geral de Espanha de 1344, ed. L. Lindley Cintra, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983-1990, vol. IV, p. 242; Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, ed. cit., vol. I, p. 253; Crónica Breve do Arquivo Nacional, ed. Fernando Venâncio Peixoto Fonseca, Guimarães, 1986, p. 23; Rui de Pina, “Coronica DelRey D. Affonso III” in Crónicas, ed. cit., p. 175. 174 Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, ed. cit., vol. II, p. 19 e Rui de Pina, “Coronica DelRey Dom Diniz” in Crónicas, p. 234. 175 Rui de Pina, “Coronica DelRey D. Affonso II” in Crónicas, ed. cit., p. 84. 176 “IV Crónica Breve de Santa Cruz”, in Anais, Crónicas Breves e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, ed. António Cruz, Porto, 1968, p. 145, Crónica Geral de Espanha de 1344, ed. cit., p. 237. 177 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, ed. cit., p. 197. 178 Génesis: 22,12, Antigo Testamento Bíblia Sagrada, ed. cit. 179 O Primeiro Livro de Samuel: 1,22-24, Antigo Testamento, Bíblia Sagrada, , ed. cit. 180 Segundo John Boswell, terá havido um escoamento do abandono infantil através da oblação a mosteiros e conventos: Au bon cœur des inconnus: Les enfants abandonnés de l'Antiquité à la Renaissance, Paris, Gallimard, 1993, p. 210.

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deviam não só fazer a petiçom como uma ofereçam capaz de fazer esmolla ao

moesteiro por seu merecimento e do moço,181 sendo a partir destes bens que os monges

retiravam uma parte dos rendimentos que lhes permitia financiar a criação das crianças

filhas de pais mais humildes; por vezes beneficiavam também o mosteiro com

ocasionais azemelas carregadas de muytas e boas carnes e aves, assy domesticas como

mõtesinhas e outras, cõ trebolhas e cõ escolheitos vinhos, tal como procedera o

progenitor de S. Gonçalo de Amarante quando o entregara ao arcebispo de Braga para

ser educado. 182

De uma forma geral, tanto os oblatos dos mosteiros beneditinos como os de

outras ordens permaneciam sujeitos a um quotidiano bastante austero. No caso dos

rapazes era comum dormirem numa camarata, em leitos separados uns dos outros, sob a

vigilância de religiosos adultos cujas camas ocupavam um espaço à parte. O seu

quotidiano diurno era minuciosamente regulamentado e observado, de forma a serem

punidos quaisquer desregramentos ou desleixos praticados no estudo, na liturgia, na

meditação ou nos comportamentos e atitudes. De resto, devendo, em princípio, respeitar

a regra do silêncio, as crianças que viviam nos mosteiros e conventos, também eram

aconselhadas a vigiar-se mutuamente, sendo aplicado a quem escondesse a infracção de

um companheiro o mesmo correctivo que era reservado ao infractor ocasionalmente

descoberto.

Contudo, no seu conjunto, se os regulamentos monásticos ou conventuais, quase

sempre inspirados na Regra de S. Bento, insistiam na necessidade de os oblatos sempre

guardarem sua hordem com toda disciplina, sobretudo os moços mais pequenos e

mançebos que não sabiam comportar-se no oratorio e aa mêsa, também recomendavam

que deveria não só aver misericordia com a fraqueza das ydades mas também ser

evitada a aspereza excessiva de algumas correcções. Aconselhava-se, portanto, a

moderação que apenas preconizava açoutes aos moços de menor ydade que não

quisessem com homildade correger aquello em que tinham errado per negligencia, ou

disso se penitenciassem com jejuus grandes. Isto não significava, contudo, deixar de

castigar com diligencia as faltas e pecados cometidos pelos moços ataa ydade de XV

annos.183

_______________________________________________________________________________________________ 188

181 Frei João Álvares, "Carta aos monjes professos do Moesteiro de Sam Salvador de Paaçoo de Sousa e Regra do Muy Bem Aventurado sam Bēeto Abade" in Obras, II, ed. Adelino de Almeida Calado, Coimbra, 1960, p. 78. 182 “A vida de Sam Gonçalo de Amarante” in ob. cit.,ed. cit., p. 606. 183 Frei João Álvares, ob. cit., ed. cit., pp., respectivamente, 83, 55, 63 e 90.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

Particularmente vigiados e punidos deviam ser os comportamentos sexuais

derivados de uma excessiva manifestação de afeição ou de carinho da parte dos monges

mais velhos para com os oblatos, ou os que se viessem a desenvolver entre estes, ou

seja, a prática de relações homossexuais que seriam quase inevitáveis no seio de uma

comunidade masculina ou feminina de celibatários. Neste caso, porém, as regras não se

limitavam a consagrar o dever de uma severa punição, contendo também várias normas

dissuasoras.

No que se refere à prevenção da possibilidade do aparecimento de desenvolvidas

relações sensuais entre os jovens oblatos, exigia-se que lhes fosse vedada a prática do

beijo da paz que era trocado entre os monges adultos no decorrer da missa e que se

zelasse para que os mais mançebos non tivessem os leytos huus açerca dos outros mas

mesturados com os velhos, a fim de evitar as tentações de uma demasiada proximidade

física. Também a continuada observação quer do interdito de se tocarem, entre si, a

si próprios ou às suas vestes, quer o de se levantarem de noite para a satisfação das suas

necessidades fisiológicas sem a companhia de um adulto e de um companheiro munido

de uma luz, os prepararia para não sentirem ou cederem a desejos carnais. Para

dissuadir o seu envolvimento em práticas pedófilas era-lhes, por outro lado, proibido

permanecer afastados de um qualquer outro oblato sempre que fossem chamados ou

encontrados por um dos adultos da comunidade de religiosos onde moravam.184

Até aos começos do século XII, a oblação parental era irrevogável, devendo a

criança, independentemente da sua futura opção, passar a viver para sempre no mosteiro

ou no convento. A vontade dos pais substituía, assim, a vocação própria. Pelo contrário,

se a decisão de integrar uma comunidade religiosa tivesse partido do menor, teria

depois de obter o consentimento parental, podendo o pai, a mãe, ou o tutor revogar o

anterior voto, dispondo para o efeito do prazo de um ano para o retirar. Este prazo

poderia ser alargado, se a grande distância que separava a sua casa do mosteiro ou do

convento, não permitisse cumpri-lo. No fundo, tanto num caso como no outro, a

vontade parental sobrepunha-se à do oblato já que a sua liberdade de escolha era

completamente ignorada visto se entender que um menor ainda não tinha discernimento

suficiente para tomar uma opção definitiva sobre o seu futuro.185

_______________________________________________________________________________________________ 189

184 Id., ibidem, p. 44. 185 René Metz, "L'entrée des mineurs dans la vie religieuse et l'autorité des parents d'après le droit classique" in La femme et l'enfant dans le droit canonique médiéval", ed. cit., pp. 187-200. Veja-se também Afonso X, Primeyra Partida, ed. cit., Título VII, p. 198.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ____________________________________________________________________________________________

O reanimar das cidades e da vida urbana, com a consequente revalorização do

seguimento de uma vida de tipo sacerdotal, coincidiu com o surgir dos primeiros

escritos canónicos que contestavam a irrevogabilidade da oblação. De facto, em meados

do século XII, o canonista Graciano passou a defender que os jovens oferecidos em

pequenos aos mosteiros e conventos passassem a ter que ratificar pessoalmente o desejo

de prosseguir uma vida religiosa regular mal atingissem a maioridade, sendo

posteriormente essa medida confirmada pelo Papa Alexandre III (1151-1181) e, mais

tarde, tornada extensiva às raparigas pelo pontífice Clemente III (1187-1191).

Com efeito, é já com base nestas determinações que a tradução portuguesa da

Primeyra Partida de Afonso X refere as idades mínimas dos catorze e dos doze anos

como as que, respectivamente, deveriam permitir aos rapazes e às raparigas

ingressar definitivamente numa Ordem religiosa. Se tivessem ingressado antes, por

vontade própria ou parental, poderiam livremente sair, porque

no son de edad que deua ualer lo que fizieren; mas si después que llegassen a

esta edat fiziessen promissión o estudiessen y un anno demás deste tiempo dent

adelante no podríen ende salir.186

De facto, mesmo antes deste último texto, já o Papa Celestino III (1191-1198)

legislara, como medida tendente a desencorajar um considerado número excessivo de

oblatos, que fosse reconhecido às crianças em idade de poderem revogar o seu voto de

entrada na vida religiosa, o direito de virem a reivindicar a parte do património familiar

a que tinham direito. O Papa Inocêncio IV (1243-1254) acabou mesmo por estatuir o

dever de as crianças, de ambos os sexos, já confirmadas anteriormente, ao atingirem a

maioridade o fazerem novamente aos quinze anos. O concílio de Trento, mais restritivo,

exigiu a idade mínima de dezasseis anos para os rapazes e raparigas poderem ingressar

num mosteiro ou num convento. 187

Entretanto, quer o progressivo decréscimo do número de oblatos, quer a

crescente imposição de obstáculos a uma sua rápida entrada definitiva nas comunidades

regulares, fez com que várias ordens começassem a recusar a admissão de crianças no

seio dos seus mosteiros ou conventos, como foi o caso dos cluniacenses, cistercienses

ou templários, alegando para essa recusa as graves perturbações causadas pela presença

_______________________________________________________________________________________________ 190

186 Afonso X, Primeyra Partida, ed. cit., Título VII, p. 197. 187 Sobre o sentido destas várias disposições canónicas, veja-se John Boswell, "L'oblation à son zénith", in ob. cit., ed. cit., pp. 210-226.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

de muitas crianças turbulentas e indisciplinadas. Contudo, foi só em 1430 que o Papa

Martinho V aboliu definitivamente a existência de oblatos.188

Como já referimos, toda esta legislação canónica que, a partir do século XII, foi

colocando obstáculos à oblação como processo corrente de entrada nas ordens

religiosas, acabava por reflectir a progressiva emergência de uma nova consciência

sobre o valor e os direitos da criança, reconhecendo-a como idade a proteger e a

resguardar da exclusiva vontade dos adultos. No entanto, será talvez ingénuo sustentar

que o direito canónico foi necessariamente o factor determinante para que a maioria dos

oblatos passasse a poder conscenciosamente decidir sobre a sua anterior escolha

de uma adulta vida de religiosos. Por um lado, porque o sucessivo avanço da idade até

à qual o podiam fazer, nem sempre lhes permitiria efectuar uma livre e esclarecida

opção, já que decidir pelo regresso ao mundo profano, que só haviam conhecido numa

muito recuada infância, não seria fácil. Por outro, porque muitos não teriam os meios e

os apoios necessários a uma tal ruptura, continuando a ser, durante toda a Idade Média,

oriundos de famílias muitas vezes desfavorecidas, para quem a sua anterior entrega aos

mosteiros e aos conventos fora a única forma de assegurar a sua subsistência.

12 - COMPORTAMENTOS

De uma forma geral, a presença de muitos jovens e crianças nas comunidades

seculares ou regulares introduzia graves perturbações nos quotidianos dos adultos que

os criavam e educavam. O sínodo de Braga, celebrado em 1477, queixa-se, por

exemplo, do habitual mau comportamento dos moços que andam nas egrejas e

moesteiros que per minga de castigo arroidam e torvom os ofícios divinos, revelando-se

muito difícil fazê-los teer silencio e star honestos e assessegados em tal guisa que aas

Oras e ofícios divinos com grande assessego e honestidade stem, já para não referir a

grande destruiçom que faziam nos livros das egrejas e moesteiros por onde aprendiam

a ler e a escrever, assim como o facto de se apresentarem impropriamente vestidos no

desempenho da sua qualidade de moços que servem o altar, sem trazer muitas vezes

sobrepelizias.189 Nada disto, aliás, era novidade. Com efeito, mais de um século antes,

já o bispo de Silves, Álvaro Pais, denunciava, com o seu habitual excesso e azedume, o

_______________________________________________________________________________________________ 191

188 Sobre este tema, consulte-se René Metz, "L'enfant dans le droit canonique médiéval" in La femme et l'enfant dans le droit canonique médiéval", ed. cit., p. 51. 189 Synodicon Hispanum, ed. cit., pp. 85-87.

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mau comportamento dos meninos de mais de sete anos que não só batem nos clérigos,

como ainda batem e ferem outros meninos, muitas vezes até à morte.190

Os problemas causados pelo bulício e pela irreverência infantis também foram

abordados pelo rei Duarte no seu Leal Conselheiro, já que seriam frequentes entre as

crianças ao serviço da capela régia, atribuindo-se à sua natural indisciplina a

perturbação da seriedade e do esplendor das cerimónias aí realizadas. Segundo o

monarca, era difícil evitar que qualquer dos moços de idade de VII ou VIII annos, de

boa desposiçom em vozes, e entender, e

sotileza, e de boo assessego, estivesse

assessegado em seu logar, sem riir nem

scarnecer durante o ofício, ou andar

bulindo na estante ou coro, ou cantar com

desvairamento de boca. Para mais, se o

serviço requerido aos cachopos poderia

Figura 47 – O coro das crianças da catedral de

Braga

(Século XIV)

_______________________________________________________________________________________________ 192

190 Álvaro Pais, ob. cit., ed. cit., pp. 437-439.

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APRENDER ____________________________________________________________________________________________

ser feito por quatro deles, uus que hajam, sobre os outros, tres ou quatro annos, asi que

quando uuns forem d’oito que os outros sejam de doze, acabava por ser quase

necessário ter de contar com seis, porque aas vezes uu é doente ou torvado, e o outro

fica em seu logar. Definia-se, assim, um grupo cuja juventude e imprevisibilidade

tornavam bastante problemático, mais não seja devido ao facto de uma rápida mudança

de voz sempre provocar inevitáveis e frequentes substituições, em função das quais,

aliás, o soberano aconselhava que, enquanto servissem na capela régia, se lhes fizesse

leer e aprender latim para não lhes prejudicar a preparação numa futura carreira

eclesiástica. Entretanto, ao meestre que os no canto ensinasse competia, naturalmente,

ser boo em saber e jeito de cantar, e de boo entender e custumes, e zelar pela sua

disciplina, de forma a que nom tam soomente os castigue no canto, mes em toda outra

cousa que errem, e lhes dê sua boa ensinança pera seerem boos em sua vida e

custumes.191

Se as questões da pedagogia das crianças e dos jovens - aos quais era solicitado

um comportamento e uma postura cujos rigorosos contornos haviam sido enunciados a

partir de um modelo de vida, não só adulto, como também destinado a permitir uma

diferenciação face à gestualidade, às atitudes e aos valores profanos - eram

forçosamente complexas e problemáticas, ainda mais o eram as relativas à considerada

essencial renúncia adolescente do prazer do corpo e da sexualidade, tanto mais quanto

se apresentava como uma postura imprescindível à educação dos futuros clérigos,

religiosos e religiosas. Neste caso, tratava-se sobretudo da nunca totalmente conseguida

tarefa de reprimir e punir a homossexualidade masculina, considerando-a, apesar de as

condições em que decorria a educação dos jovens nas igrejas, mosteiros e conventos

muito a favorecer, como o mais nefando obstáculo à aprendizagem de uma vida a

dedicar ao serviço e ao louvor divinos.

Sendo particularmente reprimida e punida entre os jovens presentes nos

mosteiros e conventos, a homossexualidade masculina também era sentida como um

problema a enfrentar no ensino dos que viviam ou frequentavam as instituições

paroquiais e diocesanas durante a sua fase de formação eclesiástica. De uma forma

geral, procurava ser enfrentada através da permanente denúncia e punição das práticas

_______________________________________________________________________________________________ 193

191 D. Duarte, “Do regimento que se deve teer na capela pera seer bem regida”, in Leal Conselheiro, ed. Maria Helena Lopes de Castro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, pp. 342-345.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ____________________________________________________________________________________________

pederásticas, visando eliminar a circunstância de, como refere o franciscano Álvaro

Pais, ser frequente

dentro da santa Igreja muitos religiosos e clérigos em seus esconderijos e

conventículos abusaram dos adolescentes impudicamente.

Nesse sentido, recordava-se então como,

segundo os cânones, qualquer clérigo responsável por essa infâmia deveria ser

deposto e lançado num mosteiro rigoroso para fazer perpétua penitência, e o

religioso encarcerado segundo as constituições dos religiosos.

Ao mesmo tempo pretendia-se tornar bem presente, sempre dever ficar sujeito à

acção de injúrias quem atentasse contra o pudor dum menino, ou ser punido com a

pena capital quem dele abusasse.192

Contudo, embora sempre reiteradas e muitas vezes aplicadas, estas medidas

nunca chegaram a afastar a homossexualidade do quotidiano dos jovens educados nas

igrejas, mosteiros ou conventos, sendo mesmo reconhecida uma maior tolerância a

partir da Baixa Idade Média.193 De resto, segundo o Penitencial de Martim Pérez se a

homossexualidade masculina era geralmente mais penalizada entre os clérigos do que

entre os leigos, era menor no caso de pecado sodomitico comprido, por um jovem de

meores ordeens, taxado em VII annos de penitência, do que na de um homem casado,

que deveria fazer penitência de dez ou XII annos, conforme o tivesse praticado até duas

vezes ou o houvesse en uso, e até se se tratasse de um diacono ou sodiacano a quem se

deveria aplicar VIII annos. Seguia-se, portanto, uma casuística onde, pragmática e

realisticamente, os clérigos adolescentes chegavam a ser mais poupados do que os

leigos a quem sempre deveriam servir de exemplo, mesmo se mais jovens.194

_______________________________________________________________________________________________ 194

192 Álvaro Pais, ob. cit., ed. cit., pp. 35-37. 193 Cf. John Boswell, Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality. Gay People in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century, Chicago, University of Chicago Press, 1980, pp. 243-268. 194 O Penitencial de Martim Pérez em Medievo-Português, ed. Mário Martins, Lisboa, 1957, pp. 43-44.

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5 PROTEGER

Piedad y deudo natural debe mover a los padres para criar a sus hijos, dándoles y haciendóles lo que les es menester según su poder. Y otrosí los hijos obligados están naturalmente a amar y a temer a sus padres, y hacerles honra y servicio y ayuda en todas aquellas maneras que lo pudieren hacer.

Alfonso X El Sabio1

A preocupação medieval com um bem sucedido

crescimento infantil traduziu-se, também, pela progressiva

afirmação de diversas modalidades de protecção para as

crianças e adolescentes carentes de fortes e indispensáveis

apoios familiares. De facto, questões tão adversas como o

abandono por parte dos pais, a orfandade ou a bastardia

conheceram então diversas propostas de solução espiritual,

social ou jurídica.

1 - OS SACRAMENTOS

O baptismo à partida, era a rápida iniciação e integração das crianças na co-

munidade cristã, que lhes permitia desde logo passarem a usufruir, não só das protec-

ções espirituais consideradas necessárias à salvação da sua alma, como das destina-

das – no âmbito da solidariedade e da caridade que deveria unir os fiéis irmanados na

fé de Cristo - a poder remediar as dificuldades geradas pela ausência de efectivas ou

eficazes protecções familiares. Foi a partir do século XII que se começou a assistir a

um generalizado recuo da idade aconselhada para o baptismo,2 sobretudo no tocante

às crianças geradas em conjunturas marcadas pela ocorrência de fomes e pestes

ou provenientes de partos difíceis, começando a ser frequente realizar a

1 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey cotejadas con vários códices antiguos, Madrid, Real Academia de la Historia, 1807, Partida Cuarta, Título 19. 2 Sobre esta modificação, veja-se Peter Cramer, Baptism and Change in the Early Middle Ages c.200 - c.1150, Cambridge, Cambridge University Press, 1993.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

cerimónia no próprio dia do seu nascimento,3 ou, conforme passaram a determinar

vários textos canónicos dos começos do século XIII, durante as primeiras semanas

ou meses de vida. 4

Este último caso tornou-se corrente entre os filhos e as filhas das elites

sociais, já que o seu baptismo implicava a presença de parentes e convidados vindos

de longe, para além da necessidade de preparar alojamentos, refeições e cerimoniais

cuja complexidade e solenidade requeriam algum tempo de espera.5 No que respeita,

por exemplo, aos baptismos dos infantes Afonso e João, filhos, respectivamente, dos

reis João I e Afonso V, os cronistas referem apenas poderem ter ocorrido, por ordem

de referência, entre os dois e os três meses 6 e aos oito dias após o seu nascimento.7

Também a infanta Joana, primogénita do rei Afonso V, teria sido anteriormente

baptizada com oito dias de vida.8

No seu conjunto, porém, a Cristandade da Baixa Idade Média tendia a

promover o baptismo das suas crianças até aos oito dias decorridos sobre o

respectivo nascimento, considerando essa prática essencial para as livrar da má

morte que poderia ocorrer antes de receberem esse sacramento.9 Descrito pela

Primeyra Partida de Afonso X de Castela e Leão como a cosa que laua al omne de

_________________________________________________________________________________ 196

3 Em estudo realizado por Pierre Pegeot sobre as crianças da povoação francesa de Porrentruy, entre 1482-1500, calcula-se que 86% foi baptizada no próprio dia do nascimento, sendo o seu número muito próximo do das crianças então nascidas: Pierre Pegeot, “Un example de parenté baptismale à la fin du Moyen Âge” in Les entrés dans la vie - Initiations et apprentissages, XII congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, Nancy, 1981, p. 55. 4 Quer uma decretal do Papa Inocêncio III, datada de 1201, quer as actas do concílio de Latrão (1215), insistem na obrigação de baptizar as crianças o mais cedo possível: René Metz, La femme et l’enfant dans le droit canonique médiéval, Londres, Variorum Reprints, 1985, p. 59. 5 Veja-se, por exemplo, a notícia das medidas preparatórias para o baptismo do príncipe João, um filho do rei Manuel I, que foram tomadas nas Cortes de 1502: Cortes Portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1502), Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2001, pp. 11-34. 6 Fernão Lopes na Crónica de D. João I, (ed. M. Lopes de Almeida e A. de Magalhães Basto, Barcelos, Liv. Civilização, 1990 vol. II, p. 306), tanto indica como o infante nascera em Junho e fora baptizado em 3 de Outubro, como refere mais à frente (p. 320) ter o seu nascimento ocorrido em Julho. 7 Rui de Pina, Crónicas, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, p. 769. 8 João Gonçalves Gaspar, A princesa Santa Joana e a sua época (1452-1490), Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 1988, p. 34. 9 Em diversas regiões do Ocidente medieval encontra-se documentada a prática de vários rituais de protecção do recém-nascido tendentes a afastar das crianças ainda não baptizadas as ameaças de uma má morte, como, por exemplo, mantê-lo permanentemente em casa, desenhar um pentagrama à volta da sua habitação para impedir a entrada dos espíritos maléficos, esfregar-lhe o corpo com sal, um produto importante em muitas práticas exorcistas, ou manter junto dele uma vela sempre acesa: Jacques Gélis History of Childbirth: Fertility, Pregnancy and Birth in Early Modern Europe, Cambridge, Polity Press, 1991, pp. 194-196. Desconhecemos se estas práticas se realizavam em Portugal.

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PROTEGER ____________________________________________________________________________________________________

fuera e sennala el alma de dentro,10 o baptismo era então considerado como o ritual

iniciático que, ao libertar as crianças da mancha do pecado original, não só lhes

facultava o direito de vir a beneficiar de sepultura num lugar sagrado, como o de

poderem vir a usufruir de uma prometida salvação eterna, já que, ao falecerem

baptizados, os filhos e as filhas dos cristãos seriam portadores de um estado de

pureza e de inocência capaz de lhes permitir ascender ao Paraíso. Neste contexto, o

baptismo precoce das crianças depressa se veio a tornar um imperativo teológico-

moral exigível a qualquer cristão, até porque permitia a muitos pais a consolação de

tudo terem feito para proteger o destino das almas dos filhos a quem a morte tantas

vezes levava.

Contudo, nos finais da Idade Média, a efectiva concretização do baptismo

precoce das crianças era ainda objecto de reiteradas prescrições eclesiásticas; com

efeito, nos sínodos diocesanos portugueses celebrados em Braga, nos anos de 1477 e

1505, ainda se insistia na necessidade de cumprir um tal preceito, ordenando-se que

os párocos mantivessem activo um

avisamento que saiba quantas criaturas nascerem em sua freiguisia, a fim de

evitar muitas criaturas morrerem sem bauptismo e seerem dapnados nom

por culpa sua, mas polla negligencia dos mezquinhos padres e madres que se

nom doem dos filhos que geraram e os lançam em tanta perdiçam eternal,

merecendo, por isso, virem a ser excomungados e por taaes os evitem e

façam evitar da egreja e oficios divinos.11

Pelo seu teor e tardio carácter repetitivo, estas prescrições sinodais parecem

colocar algumas dúvidas sobre a efectiva generalização social da prática cristã do

baptismo precoce das crianças. Contudo, tal não significará que as famílias

portuguesas não tenham sentido a necessidade de recorrer a este sacramento como

forma de desencadear as protecções celestes necessárias à salvação da alma das

crianças que lhes morriam em tenra idade. Até porque, tanto em Portugal como na

restante Cristandade, fora essa preocupação que forçara a aceitação eclesiástica de,

em caso de perigo de morte da criança, se poder prescindir de um sacerdote para a

________________________________________________________________________________________________

197

10 Afonso X, Primeyra Partida, ed. José de Azevedo Ferreira, Braga, I.N.I.C., 1980, Título IV, p. 18. 11 Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. Francisco Cautelar Rodriguez, Avelino de Jesus da Costa, Antonio Garcia Y Garcia, Antonio Gutierrez Rodriguez, Isaías da Rocha Pereira, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1982, pp. 102-103 e 178.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

concretização do baptismo, autorizando-se, portanto, que um tal sacramento pudesse

ser então administrado por leigos conhecedores da forma de como efectuar tal ritual,

ou seja, de acordo com uma hierarquia que privilegiava o pai sobre a mãe e, na sua

falta ou impedimento, os homens sobre as mulheres,12 como era o já referido caso

das parteiras que muitas vezes se encarregavam de o pôr em prática. 13 Umas vezes

porque a criança se encontrava num estado de extrema debilidade e urgia permitir

que morresse cristã, outras porque, encravada no orifício uterino necessitava da

administração do sacramento, cabia também à parteira, por uma questão de pudor, a

respectiva aplicação.

Contudo, uma tal substituição no exercício dos poderes sacramentais, exigia,

no caso da criança escapar à morte, uma posterior intervenção eclesiástica, destinada

a certificar a validade do baptismo antes efectuado e, se necessário, o refazer de

gestos ou fórmulas rituais que haviam sido mal aplicados ou não efectuados,

devendo, para o efeito, dirigir-se a criança e o leigo que a baptizara a um credenciado

sacerdote.14 Em geral, essa posterior actuação clerical limitava-se a completar o que

faltava, ou seja, colocar sal na boca da criança e ungir-lhe as orelhas com saliva.

Havia, no entanto, o cuidado de não incorrer na falta de se rebaptizar a criança, já

que, conforme explicara Afonso X,

cuemo el omne de que es nascido no puede otra uez nascer naturalmientre,

assi el que es babtizado una uez, no se puede otra batear spiritalmientre.

Esta atitude deveria mesmo ser punida com a morte, tanto para o que administrasse o

sacramento como para aquele que o recebia, se fosse de edat complida.15 Por isso,

quando o sacerdote refazia ou completava o baptismo anteriormente feito por um

leigo, deveria pronunciar as seguintes palavras: “Se és baptizado, eu não te baptizo,

mas se não o és, eu te baptizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.16

_________________________________________________________________________________ 198

12 Afonso X, Prymeira Partida, ed. cit., Título IV, p. 22. 13 Veja-se, no capítulo NASCER, as pp. 80-83. 14 Afonso X, ob. cit., ed. cit., Título IV, p. 22. 15 Id., ibidem, pp. 21-22. 16 Synodicum Hispanum, ed. cit., p. 227 (Sínodo da Guarda, 1500). Consulte-se, sobre este tema, J. Corblet, Histoire dogmatique, liturgique et archéologique du sacrement du baptême, Paris, 1881, pp. 331-334 e 353-356.

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PROTEGER ____________________________________________________________________________________________________

De resto, a pressão dos leigos para dotar as crianças em perigo de vida das

protecções espirituais geradas pelo baptismo, também foi, em parte, responsável por

outras concessões eclesiásticas. Uma delas, consistiu na legitimação das cesarianas

praticadas em parturientes já mortas ou moribundas, com o fim de lhes retirar, para o

baptismo, o filho ou a filha ainda vivos.17 Outra, a de conceber a existência de um

limbus puerorum, o lugar teológico onde as crianças mortas sem baptismo seriam

poupadas aos sofrimentos infernais. 18

Nascido para responder à profunda angústia dos pais das crianças que haviam

morrido sem a graça do baptismo e que, por isso, tinham adquirido a dimensão de

almas errantes, para sempre excluídas da glória do Paraíso, a existência de um

limbus puerorum permitia não só desculpabilizá-los pelo facto de não terem

desencadeado o ritual que teria possibilitado libertar os filhos das consequências do

pecado original, como também ajudá-los a realizar um luto mais sereno e tranquilo.19

Da parte dos poderes eclesiásticos, tratava-se, assim, de promover a manutenção da

fidelidade dos fiéis que encontravam entre os heréticos numerosas críticas às virtudes

de uma exclusiva ou dominante mediação clerical das relações entre os vivos e os

mortos. A emergência deste conceito aparece, assim, como o resultado do encontro

entre a vontade parental de se libertar da imagem do recém-nascido eternamente

torturado e a ofensiva da Igreja por controlar o ritual da morte.20

Contudo, o baptismo das crianças não se limitava a apenas assegurar as

graças indispensáveis à salvação das almas das crianças que morriam muito jovens,

permitindo também às que iam crescendo poderem vir a contar com a protecção,

amparo e auxílio dos adultos que haviam apadrinhado o seu ritual de entrada na

comunidade cristã. Com efeito, ao acompanharem publicamente o baptismo da

criança, os adultos escolhidos para o testemunharem e nele intervirem, colocando,

nomeadamente, a cabeça dos rapazes e das raparigas sobre a pia baptismal onde viria

a ser imergida três vezes, uma de cada lado e outra com a cara para baixo,21

________________________________________________________________________________________________

199

17 J.-F. Puntel, Histoire de la césarienne, Bruxelas, 1969, capítulo IX. 18 Tal como se encontrava referido em várias descrições literárias medievais: Colin Heywood, A History of Childhood, Cambridge, Polity Press, 2001, p. 51. 19 M. Dehan, e R.Gilly, La mort subite du nourisson, Paris, 1989, p. 287. 20 Retomaremos o assunto no capítulo MORRER E RESSUSCITAR. 21 Rui de Pina refere, por exemplo, como o príncipe João, herdeiro do rei Afonso V, foi levado aa pia nos braços do Ifante Dom Fernando Irmaõ d’ElRey: Crónicas, ed. cit., p. 769.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

tornavam-se pais espirituais do seu nascer para a Cristandade, tal como o expressa

Afonso X de Castela e Leão quando afirma que

Padrino tomó el nombre de padre, ca assí cuemo el omne es padre de su fijo

por nascimiento natural, assí el padrino es padre de su afijado, por nasci-

miento spirital. Esso mismo dezimos de las madrinas. 22

Todos estes novos parentes, distintos dos pais biológicos cujos pecados

haviam marcado os filhos durante a concepção, tornavam-se os pais espirituais das

crianças que haviam nascido para a Cristandade, competindo-lhes assegurar a

respectiva formação moral e religiosa para lhes transmitir e consolidar a fé que os

haveria de proteger em vida e depois da morte.23 Eram, portanto, os progenitores da

nova família espiritual em que a criança entrara pelo baptismo, não devendo esse

novo parentesco ser confundido ou misturado com o que fora gerado pelo sangue, tal

como o exigiam as prescrições canónicas que interditavam, desde os tempos

carolíngeos,24 as relações carnais desenvolvidas entre afilhados e padrinhos e entre

os pais terrenos e os espirituais, ou seja, entre compadres e comadres.25

Do ponto de vista, quer dos pais naturais do jovem ser baptizado, quer, na sua

falta ou desconhecimento, do dos seus parentes biológicos ou, não o sendo, dos que

até aí haviam assegurado a sua criação, não era indiferente a escolha dos padrinhos e

madrinhas a dar à criança, sendo preferidos os que melhor se posicionassem em

posses e influência, para lhes assegurar futuros apoios, protecções e auxílios. Aliás,

quantos mais, diversificados e poderosos fossem os padrinhos, melhor sairia

publicamente reforçado o prestígio e o protagonismo político da família ou do grupo

que os escolhera para novos parentes e aliados.

No caso dos baptismos dos príncipes, por exemplo, seria mesmo difícil

determinar com rigor quais seriam todos os seus padrinhos e madrinhas. De facto,

relativamente ao baptismo do infante João, o herdeiro do rei Afonso V, enquanto Rui

de Pina cita nessa condição o Duque de Bragança, o prior do Crato e D. Beatriz de

_________________________________________________________________________________ 200

22 Afonso X, Primeyra Partida, ed. cit., Título IV, p. 21. 23 Álvaro Pais criticava asperamente os padrinhos que não ensinavam aos afilhados os princípios da doutrina cristã: Estado e Pranto da Igreja, (Status et Planctus Ecclesiae), V, ed. Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, J.N.I.C.T., 1994-5, p. 443. 24 Sobre o baptismo na época carolíngea, consulte-se Michel Rubellin, "Entrée dans la vie, entrée dans la chrétienté, entrée dans la société: Autour du baptême à l' époque carolingienne" in Les entrées dans la vie – Initiations et apprentissages, XII congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l'Enseignement Supérieur Public, Nancy, 1981, pp. 31-51.

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Vilhena,26 Damião de Góis, por seu lado, acrescenta à lista tanto os nomes dos

infantes Henrique e Catarina, como o da marquesa de Vila Viçosa, sendo certamente

difícil aos populares que assistiam à cerimónia, assinalá-los com muito rigor, uma

vez colocados perante um cortejo festivo de nobres que quase teriam integrado, para

além de outros, o

Infante D. Fernando, irmão del-Rei, que levou o Príncipe nos braços até à

Sé, coberto de um pálio de pano de ouro, o qual levavam D. Pedro de Mene-

ses, conde de Vila Real, e D. Vasco de Ataíde, prior do Crato, que iam

deante, e D. Fernando conde de Arraiolos, que dai a poucos dias el-rei fez

marquês de Vila Viçosa, e D. Fernando seu filho maior, que depois foi conde

de Arraiolos, que iam detrás. O saleiro levava D. Fernando de de Meneses, e

o gomil e bacio da oferta Leonel de Lima, que depois El-Rei D. Afonso fez

visconde de Vila Nova de Cerveira com título de dom para ele e para João

de Lima seu filho.27

Nos finais da Idade Média, os sínodos diocesanos portugueses denunciavam

o facto do

maao usu e abusu dos muitos padrinhos que os homens querem tomar, já

que os pais, por tomarem mais padrinhos e madrinhas des que o direito man-

da ou por aguardarem alguuns que venham de fora pera os tomarem por

compadres, muitas vezes acontece muitas criaturas morrerem sem bauptismo

e serem dapnados.28

Para contrariar e desencorajar essa prática, estipulam então pesadas penas aos

párocos que a autorizem, como seis meses de detenção na cadeia episcopal, e,

lembrando que o direito nom quer mais que huum padrinho, procuram obrigar os

________________________________________________________________________________________________

201

25 Pierre Pegeot, ob. cit., ed. cit., p. 55. 26 Rui de Pina, "Chronica do Senhor Rey D. Affonso V" in Crónicas, ed. cit., p. 769. 27 Damião de Góis, Chronica do Prinçipe Dom Ioam, Coimbra, ed. A.J. Gonçalves Guimarães, 1905, cap. II, pp. 4-5. Consulte-se, sobre a cerimónia referida, Ana Maria Alves, Entradas régias portuguesas. Uma visão de conjunto, Lisboa, Livros Horizonte, 1986, p. 20. 28 Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. cit., p. 103 (Sínodo de 1477).

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baptismos com gramdes comvites e solepnidades e multiplicaçom de padrinhos e

madrinhas, a respeitar o número máximo de três, ao homem dous homens e huua

molher e aa molher duas molheres e huum homem. 29

Contudo, tais medidas restritivas, que já haviam sido enunciadas na Prymeira

Partida de Afonso X, quando nela se explicou

porque el padre no puede seer naturalmientre sino uno, e otrossí la madre,

por ente touo por bien Sancta Eglesia que no ouiesse más de un padrino e de

una madrina a babtizar el afijado, 30

não teriam tido grande êxito. Terá sido talvez essa a razão pela qual o bispo da

Guarda decidiu aplicar, em 1500, a pena de quatrocentos reais, a metade para as

obras da Nossa Sé e a outra para o nosso meirinho,31 ou seja, capitalizar em função

do acréscimo dos rendimentos da diocese essa certamente infracção frequente.

Para os eclesiásticos, os apadrinhamentos múltiplos praticados com o intuito

de desenvolver e ampliar os laços de solidariedade parental com famílias de igual ou

superior estatuto social, contrariavam o princípio de fazer basear a unidade e a

coesão da Cristandade na justaposição relacional de células familiares biológicas e

espirituais, irmanando-as numa recíproca troca de bens e serviços enunciados e

disciplinados pelos clérigos. Nesse sentido, os eclesiásticos propunham que a

sociedade espiritual dos crentes contribuísse para atenuar as desigualdades e os

desníveis próprios da sociedade profana, em nome do modelo ideal de uma

comunidade de crentes onde, à semelhança da arquétipa Cidade de Deus, apenas

existisse a funcional hierarquia ético-moral que justificaria uma única distinção, a

que separava os clérigos dos leigos.32

Por isso, os eclesiásticos também combatiam a generalizada escolha de

clérigos e religiosos para padrinhos e madrinhas, por serem pessoas em direito

defesas para tal cognação espiritual, não devendo, portanto, tomarem-se por

compadres e comadres nem frade nem monge, nem monja, nem outro religioso, 33

sobretudo os sacerdotes, sob o nefasto perigo de se promover a abolição das

_________________________________________________________________________________ 202

29 Id., ibidem, p. 123. 30 Afonso X, Primeyra Partida, ed. cit., Título IV, p. 21. 31Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. cit., p. 227. Já o Sínodo de Braga, de 1505, permite os apadrinhamentos múltiplos através do pagamento de duzentos reais brancos para as obras da igreja: ob. cit., ed. cit., p. 178. 32 Michel Rubellin, ob. cit., ed. cit., p. 51.

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diferenças existentes entre clérigos e leigos. Enquanto, por outro lado, também se

tentava fazer respeitar o princípio de que o exercício leigo das funções de padrinho e

madrinha se restringisse aos cristãos que já haviam atingido a “idade da razão”, ou

seja, os catorze anos para os rapazes e os doze para as raparigas, chegando-se mesmo

a propor, como foi estipulado no sínodo diocesano celebrado na Guarda no ano de

1500, a idade mínima de dezoito anos para ambos os sexos.34 Ficava assim melhor

garantida a possibilidade de, em caso de necessidade, poderem vir a desempenhar

cabalmente a obrigação de amparar ou até criar os seus afilhados.

A escrupulosa legislação canónica sobre a escolha e as funções dos

padrinhos e das madrinhas, pouco a pouco acolhida pela legislação civil, tinha ainda

em conta a preocupação de salvaguardar os direitos sucessórios dos afilhados por

parte dos compadres e comadres dos seus pais. De facto, ser ou não baptizado

influenciava os direitos da criança à herança paterna, tal como estipula o Fuero Real

de Afonso X quando determina, por exemplo, que o baptizado aya todo o aver do

padre se este morrer e lexar a molher prenhe e dela depoys nascer filho ou filha,35

sendo esses bens herdados pelos parentes do pai se o não fosse.36

Contudo, sabemos muito pouco acerca do cumprimento de todos estes

preceitos por parte dos leigos, assim como sobre as estratégias por eles efectivamente

seguidas para escolher os padrinhos e as madrinhas dos filhos. Os dados apurados

por Pierre Pegeot sobre as práticas do baptismo ocorridas na povoação francesa de

Porrentruy, entre 1482 e 1500, atestam como toda a comunidade se encontrava

envolvida na rede de parentesco baptismal, já que, em média, cada um dos seus

moradores fora escolhido 2,3 vezes para padrinho ou madrinha, sendo maior a

percentagem dos que se incluíam nas idades situadas entre a velhice e a juventude,

das quais, por outro lado, surge a segunda como a mais representativa, 37 certamente

devido à razão de se temer que a provável morte próxima desses compadres e

comadres retirasse eficácia às protecções a fornecer aos afilhados.

Porém, se esta situação parece não se afastar demasiado das instruções

fornecidas pelos eclesiásticos, o mesmo não se passa relativamente à sociologia dos

________________________________________________________________________________________________

203

33 Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. cit., p. 227, (Sínodo da Guarda, 1500). 34 Id., ibidem. 35 Afonso X, Foro Real, ed. José de Azevedo Ferreira, Lisboa, I.N.C.M., 1987, p. 99. 36 Id., ibidem, p. 215 37 Pierre Pegeot, ob. cit., ed. cit., p. 61.

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padrinhos e madrinhas, visto os mais representados serem os clérigos, a quem se

atribuía uma média de quatro afilhados cada, talvez porque, para além dos pais os

poderem considerar como melhor qualificados para proteger económica e

espiritualmente os seus filhos, também figurarem como pais espirituais dos filhos e

filhas naturais que causavam a murmuraçam e escandalo do povo, conforme

denuncia e pune o sínodo diocesano celebrado em Braga, no ano de 1477.38

Por outro lado, se em Porrentruy não se encontra atestada a prática de tão

censurados apadrinhamentos múltiplos, são as famílias das elites fidalga e vilã que

figuram como as mais importantes dadoras de padrinhos e madrinhas, ao mesmo

tempo que se encontram entre os compadres e comadres dos seus filhos poucos

representantes dos grupos sociais mais desfavorecidos, contrariando, portanto, o

desígnio eclesiástico de encontrar no baptismo um processo atenuador das

desigualdades próprias da profana sociedade dos leigos, já que antes as consagram e

mantêm.

Nada nos garante que a prática baptismal referenciada para Porrentruy se

tenha verificado na sociedade medieval portuguesa. Contudo, se tivermos em conta

as já mencionadas censuras eclesiásticas aos compadrios múltiplos e ao hábito dos

clérigos apadrinharem os filhos e filhas bastardos, será talvez possível deduzir não

existirem grandes diferenças, nomeadamente no que diz respeito ao baptismo poder

ter sido utilizado como meio privilegiado para a obtenção de apoios e alianças entre

os representantes dos grupos sociais mais prósperos, prestigiados ou poderosos. O

que, na verdade, sendo assim, permitiria referenciar o baptismo como um forte

dispositivo social de protecção para as crianças oriundas das famílias mais carentes e

desfavorecidas.

Devido à progressiva generalização da prática do baptismo infantil, a

Cristandade medieval teve de introduzir preceitos específicos sobre a forma como as

crianças deviam receber e praticar os diversos sacramentos, porque deles dependia a

constante renovação das graças espirituais inerentes à sua condição de membros

efectivos da comunidade cristã.39 Logo à partida colocou-se a questão da idade

requerida para a confirmação, o ritual que permitia aos baptizados, através da

sua unção com os santos óleos, o crisma, receberem as protecções do Espírito Santo

_________________________________________________________________________________ 204

38 Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. cit., p. 123. 39 Consulte-se Eric Palazzo, Liturgie et Société au Moyen Age, Paris, Aubier, 2000, pp. 40-57.

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e assim reforçarem a capacidade de testemunharem a sua fé e melhor resistirem às

tentações diabólicas.40

Reservado, a partir do século V, à autoridade episcopal, o sacramento da

confirmação ou crisma implicava a presença dos bispos e, em geral, a deslocação dos

baptizados às igrejas catedrais, acabando por ser considerado como um ritual de

entrada numa comunidade cristã, a diocesana, mais ampla, poderosa e actuante do

que a paroquial, ou seja, aquela onde, pelo baptismo, principiava a vida espiritual de

qualquer cristão. Ora, conforme refere a legislação sinodal portuguesa, esse

acontecimento, considerado como um progresso no aperfeiçoamento de qualquer

cristão, apenas deveria ser protagonizado pela criança quando atingisse o uso da

razão para ter dele lembrança,41 isto é, os sete anos, porque só então teria plena

consciência do seu significado vivencial.

Nada impedia, no entanto, que este sacramento pudesse ser recebido mais

cedo. O rei Duarte, por exemplo, decidiu, em 1435, mandar poêr, com grande

solepnidade e manificencia, ho Santo Olio a seus filhos, quando a infanta Filipa

teria cerca de cinco anos, três o infante Afonso, o futuro rei Afonso V e dois o

Infante Fernando, contando-se como então haviam sido ordenadas grandes festas, e

fectas para ysso muytas despesas, já que nelas viria a participar a gente principal do

Regno. 42

Por ocasião da confirmação, o sacramento que, tal como o baptismo, apenas

deveria ser recebido uma única vez por cada cristão, a criança poderia então fazer

firme a fé que recebera durante o baptismo, no pressuposto da posse de melhores

condições para entender como agir ē este mūdo o melhor per que ouere enoutro grã

melhoria,43 e para se aperceber das vantagens da pertença a uma mais lata e

poderosa Cristandade, cujo favor e protecção eram realçados pelo facto de o crisma

dever ser acompanhado pela criação de novos laços de parentesco espiritual. Ou seja,

através das relações criadas com padrinhos diferentes dos do baptismo,

________________________________________________________________________________________________

205

40 Sobre a problemática medieval do sacramento da confirmação, veja-se Rinaldo Falsini, "Confirmación" in Domenico Sartori, Achille Triacca (dir.), Nuevo Diccionario de Liturgia, Madrid, Ediciones Paulinas, 1987, pp. 424-451. 41 Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. cit., p. 228 e p. 178, respectivamente, Sínodos da Guarda (1500) e de Braga (1505). 42 Rui de Pina, Crónicas, ed. cit., p. 509. Na verdade, a cerimónia acabou por não se realizar, porque o rei recebeu a notícia de que os irmãos da rainha Leonor, sua esposa, tinham sido presos pelos Genoveses. 43 Afonso X, Primeyra Partida, ed. cit., Título IV, pp. 114 e 116

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aconselhando, no entanto, a não serem mais do que dois, para evitar os perigos do

compadradgo, através do qual se enbargam los casamientos.44

Quanto à comunhão, um sacramento cuja iniciação se encontrava

tradicionalmente associada ao momento do baptismo, foi durante o século XI que se

começou a defender dever a sua administração ser adiada até as crianças baptizadas

atingirem a idade da razão, no quadro da reflexão teológica sobre a necessidade de os

cristãos deverem ter a plena consciência do significado dos principais actos da sua

vida religiosa. O mesmo, aliás, tendo ocorrido relativamente à prática da confissão.

Contudo, o facto de o concílio de Latrão, celebrado em 1215, ter tornado

obrigatória uma comunhão anual para todos os cristãos que tivessem atingido a idade

da discrição sem contudo precisar os anos a que ela corresponderia, introduziu

significativas divergências interpretativas entre os canonistas e entre as normas

sinodais regulamentadoras. Com efeito, se em certos casos prevaleceu a leitura de

que a idade da discrição, deveria corresponder à idade da razão, noutras vingou a

interpretação de que a plena responsabilização religiosa dos crentes apenas seria

adquirida ao atingir a idade da puberdade, isto é, os doze anos para as raparigas e os

catorze para os rapazes, mantendo-se também divergências relativamente aos anos

aconselhados para o início da prática da penitência.45

Em Portugal, parece ter prevalecido a segunda das interpretações, visto

vários sínodos dos finais da Idade Média consagrarem o princípio de que a

comunhão deveria ser iniciada aos catorze anos, se bem que antecipem os começos

da confissão, com grande contrição e arrependimento dos seus pecados, para os sete

anos.46 Esse costume não deve, no entanto, ter sido muito seguido pelas crianças

_________________________________________________________________________________ 206

44 Id., ibidem, pp. 21-24 45 René Metz, ob. cit. ed. cit., pp 62-63. 46Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. cit., pp. 103-105, p.375, p. 229 e pp. 158-159, respectivamente, Sínodos de Braga (1477), Porto (1496), Guarda (1500) e Braga (1505).

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portuguesas, tendo em conta o facto de o bispo de Silves, o franciscano Álvaro Pais,

ter apontado como um vício dos meninos de mais de sete anos o seu geral

incumprimento.47 De resto, a circunstância de o Sínodo de Braga, de 1500, insistir

na obrigação de as crianças assistirem às missas dos dias festivos, ao menos de dez

anos para cima, também parece significar um pouco escrupuloso cumprimento dos

deveres religiosos por parte dos rapazes e raparigas portugueses. 48

Fosse como fosse, o certo é que a legislação canónica sobre a especificidade

infantil do cumprimento dos sacramentos acabou por se traduzir em importantes

avanços na protecção social das crianças, sobretudo no que respeita à

regulamentação do casamento. De facto, ao considerá-lo desde o século XII como

um sacramento, a Igreja contribuiu decisivamente, através da regulamentação da

idade a partir da qual deveria ser permitido, para salvaguardar os rapazes e as

raparigas de uma até aí total submissão à vontade parental de lhes destinar um

destino matrimonial muito precoce, de acordo, aliás, com práticas herdadas do

direito romano.49 Na realidade, deve-se à legislação eclesiástica, conforme se

encontra consagrada no texto de vários sínodos medievais portugueses, a iniciativa,

logo depois acolhida pelos civilistas, de interditar o casamento aos jovens menores

de catorze anos para os rapazes e de doze para as meninas, assim como o

estabelecimento, para os prometimentos que o direito chama esposórios, da idade

mínima de sete anos para ambos os sexos,50 contrariando a até aí muito usual prática

de idades bem inferiores.

Com efeito, até ao século XI, eram os pais que negociavam as alianças

matrimoniais a protagonizar pelos filhos, decidindo o respectivo devir familiar desde

a sua meninice, uma vez que então o concertavam através da celebração de um

princípio de matrimónio (matrimonium initiatum), para o qual deveria ser obtido o

consentimento das crianças a que se aplicava, sendo, por isso, indispensável que

tivessem atingido a idade da razão, ou seja, os sete anos que lhes permitiriam,

supostamente, compreender e aceitar o alcance desse acto contratual.

________________________________________________________________________________________________

207

47 Álvaro Pais, Estado e Pranto da Igreja, V, ed. cit., p. 441. 48 Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. cit., p. 236. 49 Consultem-se Georges Duby, Le chevalier, la femme et le prêtre. Le mariage dans la France féodale, Paris, Hachette, 1981 e Jack Goody, The development of the family and marriage in Europe, Cambridge, Cambridge University Press, 1983. 50 Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. cit., p. 236, Sínodo da Guarda (1500).

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Acolhendo esta posição, diversos Papas dos séculos XII e XIII, de Alexandre

III (1159-1181) a Bonifácio VIII (1294-1303), propuseram, então, que o

consentimento dos noivos fosse de novo expresso antes da efectiva consumação do

casamento (commixtio sexus), a qual, podendo concretizar-se ao ser atingida a idade

da procriação, fez com que esta idade passasse a ser requerida para a celebração do

ritual de sacralização da união conjugal a assim iniciar de presente. Sobretudo

porque ela era considerada indissolúvel, apenas estando canonicamente prevista a

possibilidade da sua quebra por excepcional autorização papal, não podendo, por

outro lado, haver qualquer recusa ao casamento se antes de atingirem os doze ou os

catorze anos já tivessem os noivos protagonizado qualquer precoce união sexual. 51

Figura 48 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (século XIII) Um menino e uma menina prometidos em casamento.

Em suma, embora seja hoje difícil aceitar o princípio de que, tomando um dos

lados, aos doze anos fosse possível a uma rapariga expressar, racional e

conscenciosamente, o seu consentimento a uma união conjugal apresentada como

indissolúvel, foi por via do processo da sacralização do casamento que os jovens

_________________________________________________________________________________ 208

51 Sobre este tema, veja-se René Metz, ob cit., ed. cit., pp. 23-32. Consulte-se também Gianni Colombo, "Matrimonio" in D. Sartore e A. Triacca (dir.), Nuevo Diccionario de Liturgia, ed. cit., pp. 1240-1253.

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começaram a ser poupados a uma ainda mais precoce e forçada relação matrimonial.

Mesmo que, a nível das práticas sociais, fosse difícil a uma menina de doze anos

contrariar a vontade parental de vir a concretizar um qualquer prometido casamento,

sem ser deserdada ou até familiarmente repudiada por "vício da ingratidão".52

Por fim, entre os sacramentos, também o da Extrema-Unção teve de se

adaptar ao facto, cada vez mais generalizado, da existência de crianças baptizadas a

quem ainda não fora concedido o direito à comunhão.53 Neste caso, se os sínodos

medievais portugueses insistiam na recomendação de que nenhum corpo morto posto

que de minino pequeno seja, como for baptizado, fosse sepultado sem seer presente

sacerdote que lhe faça o officio do encomendamento e enterraçom,54

salvaguardando, portanto, as protecções sagradas que abriam o caminho à salvação

das almas das crianças mortas antes dos sete anos de idade, parecem não ter posto em

causa, por ausência de qualquer indicação em contrário, o uso canónico de não lhes

ter sido facultada a extrema-unção, a qual chegou até a ser negada, durante os

séculos XIV e XV, aos menores de catorze anos. O anterior mínimo de idade só foi

reposto entre 1910 e 1917, já que o código do Direito canónico publicado neste

último ano impôs de novo o patamar de idade fixado nas centúrias de Trezentos e

Quatrocentos.55

2 - AS DEVOÇÕES

Para além dos sacramentos, as protecções espirituais concedidas às crianças

também tiveram expressão privilegiada nas devoções especialmente vocacionadas a

proporcionar-lhes as ajudas e as graças facultadas pelos santos. Muitas vezes é o

próprio nome da criança que as testemunha, sobretudo entre as oriundas das camadas

sociais mais desfavorecidas da população medieval, já que entre os filhos das

aristocracias, nomeadamente a fidalga, era frequente atribuir aos recém-nascidos, não

________________________________________________________________________________________________

209

52 Paulette L'Hermite-Leclercq, "A ordem feudal (séculos XI-XII) in Georges Duby e Michelle Perrot (dir.), História das Mulheres, 2, Porto, Afrontamento, 1993, p. 293. 53 René Metz, ob. cit., ed. cit., pp. 66-67. 54 Synodicon Hispanum II - Portugal, ed. cit., p. 185, Sínodo de Braga (1505). 55 René Metz, ob. cit., ed. cit., pp. 66-67.

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o nome de um qualquer santo protector, mas o de um dos seus mais poderosos e

prestigiados antepassados. 56

Nesse sentido, revela-se significativo o exame do elenco dos nomes próprios

das crianças constantes das hagiografias e livros de milagres medievais portugueses

que temos vindo a considerar, os quais referenciam, na sua maioria, uma população

juvenil proveniente de humildes famílias de várias vilas e cidades do reino. Ora, mais

de 73% desses antropónimos correspondem a nomes de santos, sobretudo

evangélicos,57 remetendo os restantes para uma onomástica quase sempre respeitante

a filhos e filhas da nobreza ou das elites urbanas. Sendo assim, esta pequena

amostragem não faz mais do que confirmar uma tendência que, tendo tido origem na

cristandade mediterrânea, se foi depois difundindo pelo norte europeu durante a

Baixa Idade Média, ou seja, a de se atribuir às crianças nomes de santos capazes de

para elas atrair benesses especiais, sobretudo ansiadas e procuradas por parte das

famílias de fracas posses e rendimentos, 58 como seria o da pobre mosa

endemoinhada a quem os pais, com o fim de apelar aos favores da mais alta

hierarquia celeste, deram o programático nome de Deus a deu.59

_________________________________________________________________________________ 210

56 Cf. Iria Gonçalves, “Amostra da antroponímia alentejana do século XV” in Imagens do Mundo Medieval, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p. 78. 57 Vidé Quadro III. 58 Na Toscâna florentina, por exemplo, treze dos quinze nomes mais populares masculinos provinham de santos e, nas raparigas, quinze entre dezassete: Colin Heywood, A History of Childhood, ed. cit., p. 54. Didier Lett refere, no entanto, que tanto na França como na Inglaterra dos séculos XII e XIII, os nomes cristãos estavam muito longe de ser significativos : L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe – XIIIe siècle), Paris, Aubier, 1997, p. 52. 59 Afonso Peres, "O Livro dos Milagres de Nossa Senhora da Oliveira", ed. Mário Martins, in Revista de Guimarães, 63, 1953, p. 124.

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Quadro III – Onomástica Infantil das Hagiografias e Livros de Milagres

Masculina Número Hagio-

-antropónimos

Feminina Número Hagio-

-antropónimos

Abril

Afonso

Baltazar

Bento

Fernando

João

Julião

Lourenço

Martinho

Nicolau

Pedro

Rodrigo

Vicente

1

2

1

1

2

3

1

1

2

1

5

1

1

X

X

X

X

X

X

X

X

X

Aldonça

Briolanja

Constança

Deus a deu

Francisca

Margarida

Maria

Senhorinha

1

1

1

1

1

1

8

1

X

X

X

X

TOTAL 22 16 15 11

Às especiais protecções que a posse do nome de um santo poderia trazer às

crianças medievais, juntavam-se as graças que elas conseguiriam obter através da

participação nas festas e solenidades religiosas que, anualmente, comemoravam os

poderes espirituais dos seus celestiais homónimos, assim como os favores e as

benesses dispensadas pela devoção prestada a cultos directa ou indirectamente

associados a presenças infantis ou juvenis. Entre estes últimos, já nos referimos aos

que se relacionavam com a concepção e as infâncias de Maria e de Jesus,

amplamente desenvolvidos na Cristandade a partir do século XII, e bastante

representados na iconografia dos templos, seja através da estatuária, dos frescos ou

até de relíquias.

Comemorados ao longo de todo o ano litúrgico, eram sobretudo celebrados

durante o Advento, nomeadamente por ocasião das festividades natalícias. Com

efeito, as devoções destinadas a propiciar o bem estar e o desenvolvimento das

crianças tendiam a concentrar-se em torno das imagens relativas ao presépio onde se

________________________________________________________________________________________________

211

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evocava o nascimento de Cristo e a sua adoração pelos poderosos reis magos do

Oriente que não haviam hesitado em prestar homenagem a um menino desnudado na

palha de uma humilde manjedoura.60

Contudo, para além do nascimento de Cristo, o calendário cristão também

comemorava por alturas do Natal outros acontecimentos em que as crianças

medievais e as suas famílias podiam encontrar um meio privilegiado para a obtenção

de preciosas intercessões celestiais. Trata-se, em primeiro lugar, da celebração anual

do terrível episódio da Matança dos Inocentes que teria sido ordenada pelo rei

Herodes para garantir a eliminação do recém-nascido rei dos Judeus, ou seja, o dia da

festa dos Santos Inocentes. Celebrada a 28 de Dezembro, a Matança dos Inocentes

tornou-se uma festa bastante popular nos finais Idade Média, sendo então que a

devoção aos considerados primeiros mártires do Cristianismo passou a ter um amplo

acolhimento na iconografia dos templos, particularmente nas pias baptismais e na

tumulária infantil. De uma forma geral, o culto aos Inocentes, cuja veracidade

evangélica apenas se encontrava testemunhada entre os evangelistas canónicos, por

Mateus, acabou assim por representar um dos mais significativos testemunhos

da manifestação medieval da preocupação e da indignação para com o sofrimento

das crianças indefesas, sobretudo as mais pequenas, já que se atribui a Herodes a

ordem de mandar matar todas as crianças menores de dois anos que fossem

encontradas em Belém e nas suas proximidades.61

_________________________________________________________________________________ 212

60 Consulte-se Carlos Alberto Ferreira de Almeida, O Presépio na Arte Medieval, Porto, Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1983. 61 Sobre a importância que o culto dos Santos Inocentes teve na evolução da representação medieval da criança, veja-se, E. Berthon, "A l'origine de la spiritualité médiévale de l'enfance" in Robert Fossier, (ed.), La petite enfance dans l'Europe médiévale et moderne, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 1997, pp. 31-38.

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Também a Matança dos Inocentes

se encontra associada ao chamado

episódio da fuga para o Egipto, cuja

comemoração medieval, baseada em

Mateus e, sobretudo, nos evangelhos

apócrifos, assinalava como a viagem

durante a qual Nossa Senhora, ao

atravessar a Palestina de Herodes com o

filho ao colo e montada num pequeno

burro, teria passado por Jerusalém, sendo

aí festejada por muitas crianças que

aclamavam o Cristo do jumentinho.62 Ora,

um tal suposto acontecimento acabou

depois por ser simbolicamente integrado

pelos rituais medievais das entradas

régias, passando as crianças das vilas e

cidades a ser uma presença habitual nas

cerimónias dos cortejos destinados a

festejar as visitas locais feitas pelos

soberanos.63

Figura 49 - Livro de Horas de D. Duarte. (Século XV)

A Matança dos Inocentes encontra-se frequentemente representada nos Livros de Horas medievais.

________________________________________________________________________________________________

213

62 Lucette Valensi, La fuite en Égypte. Histoires d'Orient et d'Occident, Paris, Seuil, 2002, pp. 19-88. 63 Jacques Heers, Festas de Loucos e de Carnavais, Lisboa, D. Quixote, 1987, pp. 95-105. Sobre as entradas régias em Portugal, veja-se, Ana Maria Alves, Entradas régias portuguesas. Uma visão de conjunto, ed. cit.,

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Figura 50 – Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, Guimarães (século XIV) Nossa Senhora protege o Menino durante a fuga para o Egipto.

Relativamente ao monarca João I, os cronistas Fernão Lopes e Zurara

referem-se a um tal costume com o propósito de exaltar a suposta providencial

realeza do soberano. Segundo o primeiro, quando o ainda Mestre de Avis chegara a

Coimbra,

começarom muitos cachopos de sair fora da çidade sem lho mamdamdo

neguem, pello caminho per hu viinham o Meestre, com cavallinhos de canas

que cada huu fazia, e nas mãos canaveas com pemdoões, corremdo todos e

braadamdo. Portugall! Portugall! por elRei dom Joham! E assi forom per

mui gramde espaço açerca dhuua legoa.64

De acordo com o segundo, quando o rei João I, no ano de 1415, entrara em

Évora, vinham muitas crianças à sua frente

todas ante ele cantando, como se fora alguma coisa celestial enviada a eles

pela sua salvação.65

64 Fernão Lopes, Crónica de D. João I, I, ed. cit., cap. CLXXXI.

_________________________________________________________________________________ 214

65 Gomes Eanes de Zurara, Chronica de el Rei D. João I, Lisboa, Bibliotheca de Classicos Portugueses, 1899, cap. CII.

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Para além dos cultos evangélicos directa ou indirectamente associados às

infâncias de Maria e de Jesus, as famílias medievais ainda dispunham de outras

devoções capazes de propiciar graças e protecções aos seus filhos. De facto, muitos

dos santos lembrados e festejados ao longo

do ciclo litúrgico anual podiam

desempenhar essa função, sobretudo

quando associados às memórias de uma

vida ou de milagres especialmente

centrados nos problemas mais frequentes

dos difíceis quotidianos infantis.

Entre os santos cultuados no

Inverno, encontravam-se dois antigos

bispos orientais cuja devoção crescera na

Cristandade ocidental urbana da Baixa

Idade Média: Nicolau, com festa assinalada

a 6 de Dezembro, e Brás, celebrado a 3 de

Fevereiro. O primeiro, a quem se

encontravam dedicadas onze igrejas

portuguesas nos começos do século XIV, 66

encontrava-se hagiograficamente associado

à recordação de vários milagres produzidos

em crianças, como sejam, o de ter salvo

três Figura 51 – S. Nicolau (século XIV) A popularidade do culto ao bispo Nicolau relaciona-se com o facto de o santo ser considerado um protector das crianças.

raparigas da prostituição por lhes haver,

transcendentalmente, obtido os três sacos de

ouro necessários ao pagamento dos dotes

que lhes depois garantiram a concretização de um matrimónio, ou o de ter

conseguido ressuscitar, quer três rapazes a quem um talhante assassinara e escondera

numa cuba de farelo, quer um menino que teria caído ao mar quando, com o pai,

seguia numa viagem marítima de peregrinação para agradecer o cumprimento

da promessa feita pelo seu progenitor para a obtenção da graça de vir a ter um

________________________________________________________________________________________________

215

66 "Catálogo de Igrejas – 1320-1321" in Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, IV, Porto, Liv. Civilização, 1971, pp. 90-144.

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filho.67 O facto de a festa de S. Nicolau se encontrar muito próxima do

calendário das celebrações natalícias, também contribuiu para que a sua memória

e o seu culto se tendessem, desde cedo, a associar às devoções medievais prestadas

ao Menino Jesus e aos Santos Inocentes. 68

Quanto ao bispo Brás, a sua

condição de santo protector das crianças

encontra-se desde logo atestada pelo

facto de, iconograficamente, sempre se

associar à sua imagem devocional a

presença de um menino a quem, de uma

forma mais ou menos explícita, retira

uma espinha da garganta,69 aludindo

essa representação à passagem da sua

hagiografia onde se conta como assim

impedira a morte por sufocação a um

rapaz a quem a mãe lhe pedira para

salvar.70 O culto português de S. Brás

encontra-se amplamente difundido nos

finais da Idade Média, conforme o

atestam os muitos exemplares da sua ima- Figura 52- S. Brás observando a garganta de uma criança. (século XV)

gem devocional que chegaram até nós.

Basta referir que entre as várias dezenas de estatuetas de cerca de trinta santos que

foram produzidas, durante o século XV, na oficina do mestre escultor conimbricense

João Afonso, é ele o santo mais representado logo a seguir ao apóstolo Pedro.71

Depois, durante as primeiras semanas do Verão, o mês de Julho trazia as

festas celebradas em honra de Santa Margarida, também conhecida por Marinha, e S.

Cristóvão, dois antigos mártires orientais cujo culto recaía, respectivamente, a 20 e

a 25 de Julho, e cuja popularidade devocional, resultante, em grande parte, das

_________________________________________________________________________________ 216

67 Jacques de Voragine, La Légende Dorée, I, Paris, Garnier-Flammarion, 1967, pp. 47-54. 68 Sobre este tema, consulte-se Jacques Heers, ob. cit. ed. cit., p. 99. 69 Maria João Vilhena de Carvalho, "São Brás" in Sérgio Guimarães de Andrade (dir.), O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal, [1300-1500] Catálogo da Exposição, Lisboa, Ministério da Cultura, Instituto Português de Museus, Museu Nacional de Arte Antiga, 2000, p. 253. 70 Jacques de Voragine, ob. cit., pp. 196-199. 71 Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Jorge Barroca, História da Arte em Portugal. O Gótico, Lisboa, Presença, 2000, pp. 174-175.

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muitas graças e milagres que se dizia poderem propiciar às crianças, se encontra

traduzida pela circunstância de, nos começos do século XIV, serem os principais

patronos de, por ordem, trinta e sete e quinze igrejas paroquiais portuguesas. 72

No tocante a santa Margarida/Marinha, já nos referimos à sua qualidade de

santa advogada do sucesso dos partos difíceis.73 Contudo, para além disso, ela

também era invocada como uma genérica protectora sagrada das crianças

abandonadas, sobretudo após a grande difusão da versão da sua hagiografia que foi

feita no século XIII, pelo dominicano Jacques de Voragine, visto ter contribuído

decisivamente para associar a sua memória à prática de sacrifícios e bondades em

intenção dos mais pequenos. Nomeadamente, através da recordação de como ela,

depois de haver sido injustamente acusada de ter tido um filho quando vivia como

monja num mosteiro, fora

dele expulsa com a criança

que sempre então

procurara criar e proteger,

durante os três anos em

que permanecera na rua, à

porta do cenóbio, até vir de

novo a ser recolhida pelos

monges que, só à sua

morte, descobriram não ser

ela a mãe do menino.74

________________________________________________________________________________________________

217

Quanto a Cristóvão,

o santo cujo nome etimo-

logicamente significava o

que transportara Cristo, foi

também devido à revisão da

sua hagiografia por Jacques de Voragine que se começou a difundir, a partir do

Figura 53 – S. Cristovão transportando o Menino (século XV)

72 “Catálogo de Igrejas – 1320-1321” in ob. cit., ed, cit., pp. 90-144. 73 Vidé o capítulo NASCER, p. 70. 74 Jacques de Voragine, ob. cit., ed. cit., pp. 397-398.

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século XIII, a história de como havia carregado Jesus aos ombros, quando, vivendo

junto a um rio, ajudava todos os que eram demasiado frágeis para o atravessarem a

vau. 75 Nesse sentido, contava-se então como, numa noite de tempestade, esse

auxílio aos viajantes mais necessitados ocorreu relativamente a uma criança cujo

transporte teria sido muito difícil, visto o menino ter parecido tão pesado como o

próprio mundo, conforme o santo acabaria por lhe confessar. Veio, então, a saber

pela boca da criança que não carregara o mundo aos ombros mas sim aquele que o

criara.76

As devoções aos santos protectores das crianças implicavam, frequentemente,

para além da utilização de um idêntico nome de baptismo, uma assídua participação

nas respectivas festas litúrgicas, ou a realização de mais ou menos frequentes

peregrinações aos lugares onde deles havia relíquias ou fama de um culto

particularmente milagroso, o hábito de lhes pedir auxílio através de orações próprias

para o efeito e a posse privada de medalhas, insígnias e até objectos e matérias que

tivessem estado em contacto com o seu túmulo ou imagens. Trazidos muitas vezes

em pequenos sacos de pano transportados junto ao corpo das crianças, esses

materiais funcionavam então como autênticos amuletos, tal como se noticia a

propósito de vários milagres relativamente a um rapaz endemoinhado, que, depois de

curado, passou a usar ao pescoço terra da sepultura do santo que o salvara para se

proteger.77 Também um

moçozinho que sendo muito amiude acometido e maltratado do demónio,

lançou-lhe a mãi ao pescoço huma nomina com terra do Santo: foi defensivo

com que ficou de todo livre. A cabo de hum anno torna o maldito a fazer-lhe

guerra. Sentidos os pais buscarão-lhe o pescoço; confessou, que dando-se

por são, largara a nomina. Armarão-no com outra e bastou pera ficar toda a

vida em paz. 78

_________________________________________________________________________________ 218

75 Id., ibidem, pp. 7-11. 76 Sobre o culto medieval a S. Cristóvão, veja-se, Dominique Rigaux, "Une image pour la route" in Voyages et Voyageurs au Moyen Age, Paris, Publications de la Sorbonne, 1996, pp. 235-266. 77 Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga e regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, Lisboa, 1645, p. 494. 78 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, pp. 235.

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3 - A ASSISTÊNCIA

Um dos mais graves problemas sociais que atingiam as crianças medievais

era o seu frequente abandono. Conforme sublinha o principal investigador desta

questão, o medievalista John Boswell, não se tratava, porém, da simples renúncia

voluntária a uma tutela dos pais sobre os filhos, desde confiarem-nos a terceiros para

aleitamento ou aprendizagem profissional, até à sua possível venda ou colocação

numa instituição, como era o caso dos oblatos. Esta situação não punha fim à relação

oficial com os pais biológicos, conservando as crianças todos os seus direitos

patrimoniais. Com efeito, o abandono medieval das crianças também se verificava

sob a forma de uma total ruptura dos pais em relação aos filhos, feita através da sua

expulsão do lar de origem mediante a exposição num espaço público, ou seja, um

abandono que implicava para os assim expostos a perda de qualquer possibilidade de

virem a conhecer a identidade dos seus progenitores.79

Durante toda a Idade Média o abandono por exposição foi considerado uma

prática familiar e tolerável, de âmbito e responsabilidade privada, até que o seu

rápido crescimento nas vilas e cidades do Ocidente europeu suscitou apreensões e

censuras sociais. De facto, foi na centúria de Duzentos que a cada vez mais ampla

realidade das crianças expostas começou a conhecer diversas propostas de

enquadramento assistencial por parte da Cristandade. 80

Entretanto, entre as causas motivadoras do recrudescimento da exposição

pública das crianças encontra-se a rápida acentuação de antigos problemas sociais,

como sejam a pobreza dos pais e a saúde débil de muitos recém-nascidos, agora

potencializados entre a muito numerosa população rural que migrara para as vilas e

cidades sem aí encontrar significativas melhoras nas condições de vida. Com efeito,

tende a ser entre os muitos mendigos e vagabundos urbanos que um deficiente

sustento e alojamento faziam multiplicar as deformidades e as anomalias físicas

________________________________________________________________________________________________

219

79 John Boswell, Au bon cœur des inconnus : Les enfants abandonnés de l’Antiquité à la Renaissance, Paris, Gallimard, 1993, p. 29. 80 John Boswell, “Expositio and Oblatio: the Abandonment of Children and the Ancient Medieval Family”, in American Historical Review, 89, 1984, pp. 10-33.

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infantis que promoviam o recurso familiar ao abandono público das crianças81 à,

como refere Boswell, "bondade de estranhos".82 Por outro lado, a falta de recursos e

até uma verdadeira luta pela sobrevivência por parte dos pais mais pobres também

faziam com que mesmo os filhos saudáveis passassem a conhecer um destino

idêntico.

Na tradução portuguesa da hagiografia de Santa Isabel da Hungria,

menciona-se neste contexto o caso de uma mulher de grande proveza que paryo hua

filha, tendo depois, passando poucos dias, fugido com o seu marido

escondidamente e leyxando a menina abandonada. Esta só não teria tido o difícil

destino das crianças expostas, porque Isabel, conhecendo a situação, e já depois de

haver tentado assistir a mãe e a menina com has suas joyas e qualquer outro

ornamento e das suas hirmaãs, fez com grande nojo sua horaçam contra o casal,

que, milagrosamente arrependido, voltou à cidade e aceitou a santa para madrinha da

filha.83

Por outro lado, a pobreza associada às crescentes assimetrias sociais que se

faziam sentir nas vilas e cidades de Duzentos, também faziam com que as mães mais

carenciadas se sentissem coagidas a abandonar os seus filhos mais pequenos à

exposição pública, para poderem vir a ser contratadas como amas para o aleitamento

das crianças das famílias mais abastadas. Na verdade, os rendimentos obtidos no

exercício dessas funções revelavam-se muitas vezes essenciais para o sustento dos

filhos que ainda permaneciam a seu cargo, para além de lhes permitir beneficiar de

_________________________________________________________________________________ 220

81 Em meio rural, eram os rituais religiosos que permitiam legitimar o enjeitamento das crianças como ocorria, por exemplo, no culto prestado ao santo Guinefort, na França do século XIII. Considerado como detentor dos poderes que permitiam trocar as crianças deficientes por crianças saudáveis, as primeiras eram mergulhadas nas águas geladas de um rio que corria próximo do templo onde se situava o túmulo do santo e depois abandonadas à escuridão nocturna, confiando-se ao arbítrio de Guinefort a possibilidade de virem a ser substituídas pelas segundas. Nadeije Laneyrie – Dagen (dir.), Les grands événements de l’histoire des enfants, Paris, Larousse, 1995, pp. 86-87. Veja-se tambéem Jean-Claude Schmitt, Le Saint Lévrier. Guinefort, guérisseur d’enfants depuis le XIIIe. Siècle, Paris, Flammarion, 1979, onde, no entanto, não se refere como o ritual referido podia legitimar a prática do enjeitamento infantil 82 Expressão frequentemente utilizada por John Boswell, na sua obra Au bon cœur des inconnus: Les enfants abandonnés de l' Antiquité à la Renaissance, ed. cit. 83 'Da sancta e muy piedosa molher Elisabeth, filha d’el Rey de Ungria', in "Adições Portuguesas no Flos Sanctorum de 1513", ed. Cristina Sobral, Adições Portuguesas no Flos Sanctorum de 1513 (Estudo e Edição Crítica), Lisboa, Faculdade de Letras de Lisboa, 2000 (Tese de Doutoramento), p. 595.

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um efeito anticoncepcional favoravelmente acolhido por quem assim se veria

protegida das dificuldades a suportar por uma nova gravidez.84

Contudo, para lá das cidades do Ocidente de Duzentos terem potencializado

os factores tradicionalmente responsáveis pela realidade social das crianças expostas,

também contribuíram para o seu rápido crescimento pelo facto de nelas se ter

assistido a um novo e exponencial aumento de filhos ilegítimos ou bastardos cuja

existência se tornava especialmente problemática para os pais. Um primeiro caso tem

a ver com a afirmação urbana da prostituição e de relacionamentos sexuais mais

livres do que os praticados entre os adultos das pequenas comunidades rurais, visto

conduzirem à multiplicação dos casos de mães solteiras, a quem as dificuldades

financeiras e a vergonha nascida da hostilização por parte da moral cristã tradicional

conduzirem ao frequente abandono dos filhos por exposição pública.85

Uma outra razão relaciona-se com as consequências sociais do

endurecimento dos interditos eclesiásticos lançados sobre o casamento e o celibato

dos sacerdotes, conduzindo-os, paralelamente, à sua cada vez maior presença na vida

religiosa das cidades e à produção das múltiplas barreganias e bastardias que faziam

crescer desmesuradamente o número das crianças expostas. De facto, apesar dos

muitos castigos e proibições presentes na legislação canónica, o certo é que o seu

reiterado enunciado deixa bem perceber como os clérigos continuavam a procriar

abundantes filhos e filhas. No Sínodo de Braga de 1477, por exemplo, apelava-se a

que os sacerdotes mostrassem vergonha dos seus pecados, encobrissem os filhos e

não lhes chamassem

filhos nem filhas, mas per seus proprios nomes ou criados ou sobrinhos ou

parentes, fazendo-os bauptizar ou criar honestamente e emcubertamento.86

Procura-se, sobretudo, punir e interditar o caso dos clérigos que levam os filhos

conssiguo aa egreja e consentem que os ajudem aa missa ou que emtrem e cantem

________________________________________________________________________________________________

221

84 Danièle Alexandre-Bidon e Didier Lett, Les enfants au Moyen Age (Ve-XVe siécles), Paris, Hachette, 1997, pp. 173-188. 85 Veja-se J. Rossiaud, "Prostitution, jeunesse et société dans les villes du Sud-Est au XVe. siécle" in Annalles, Esc., 31, 1972, pp. 289-305. 86 Este criar "encoberto" é visível, por exemplo, nas várias situações de casais que no meio rural criavam filhos de clérigos. Entre muitos outros, veja-se, Valdevez Medieval, I. e II., Amélia Aguiar de Andrade e Luís Krus (coord.), Arcos de Valdevez, Câmara Municipal de Arcos de Valdevez, 2000- -2001, pp. 263 e 20, respectivamente.

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com elles no coro e em outros divinos oficios na egreja e fora della. Explica-se

depois como não os deviam mandar

fazer baptizar com grandes comvites e solepnidades e multiplicaçom de

padrinhos e madrinhas, nem trazer consiguo pellas vilas e pellas praças

como se fossem filhos legitimos, ou arranjar-lhes altos casamentos e taaes

pessoas que a poder de dinheiro se contentem pera com elles casarem no

meio de grandes festas e convites. 87

Ou seja, salvo a situação de filhos gerados antes do sacerdócio e de matrimónio

legítimo,88 nunca devessem os clérigos assumir publicamente a paternidade das suas

crianças.

É certo, como se depreende dos textos antes citados, que nem sempre os

filhos dos clérigos seriam publicamente abandonados pelas mães à "bondade dos

estranhos". Muitos deles, sobretudo os rapazes, acabaram mesmo por ver

reivindicada e até exercida uma sua responsável paternidade,89 ou então, no caso de

serem filhos de religiosos ou religiosas, virem a ser criados junto aos pais como

oblatos. Contudo, esta situação pressupunha que o pai ou a mãe fossem detentores de

um estatuto eclesiástico suficientemente forte para impor o reconhecimento dos

filhos, sendo mais comum que a maioria dessas crianças acabasse por alimentar a

multidão de jovens abandonados que mendigavam, roubavam, sofriam e morriam pe-

las ruas e praças das principais cidades da Cristandade dos finais da Idade Média.90

Ora nessa situação também acabavam por conviver com as crianças

enjeitadas na sequência das inúmeras bastardias originadas pelos leigos que

frequentavam ou moravam nos grandes núcleos urbanos, e até com os filhos e filhas

que haviam sido abandonados na sequência de casamentos anulados ou desfeitos. De

facto, a progressiva adopção, desde o século XII, de um modelo sacramental de

matrimónio consensual e indissolúvel, fora acompanhada pela proliferação não só de

inúmeros bastardos, muitas vezes repudiados pelas mães, sobretudo as solteiras, mas

também dos que adquiriam a condição de ilegítimos após a separação dos pais,

nomeadamente por via de uma assumida ou denunciada situação de existência de

_________________________________________________________________________________ 222

87 Antonio Garcia Y Garcia (dir.), Synodicon Hispanum. II – Portugal, ed. cit., pp.123-126. 88 Sínodo da Guarda de 1500 in Synodicon Hispanum. II – Portugal, ed. cit., p. 251. 89 Em meio rural essa situação era mais frequente, havendo ampla referência à criação campesina de muitos filhos de clérigos: vidé nota 86.

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impedimentos de parentesco entre os cônjuges. A fim de os evitar, tornou-se

obrigatória, desde o IVº Concílio de Latrão (1215), a prévia divulgação pública das

núpcias, os chamados banhos, para que então se pudessem obter informações

preventivas acerca da presença de eventuais relações de consanguinidade entre os

futuros esposos. No mesmo sentido se regulamentou a custódia desses filhos, assim

tornados bastardos, de forma a atribuir à mãe a sua criação até aos três anos de idade,

e ao pai a partir de então, salvo em casos de grande disparidade de meios financeiros

ou de confissão religiosa inadequada, como, de resto, também deveria suceder

relativamente à geração das mães solteiras.91

De facto, segundo Boswell, as grandes cidades da Cristandade dos finais da

Idade Média compreendiam uma numerosa população infantil de crianças enjeitadas

pelos pais, sobretudo lactantes do sexo feminino, cujo número subia em conjunturas

de guerra, fome ou pobreza. Em Florença, por exemplo, cerca de metade das crianças

abandonadas na primeira metade do século XV, encontram-se registadas como

bastardas, embora entre elas se contassem muitos filhos que haviam nascido,

sobretudo nas camadas mais populares, de uniões familiares não consagradas

matrimonialmente. 92

De uma forma geral, a preocupante realidade urbana das crianças

abandonadas não era especialmente condenada e punida pela legislação canónica e

civil da Cristandade da Baixa Idade Média, sendo mesmo admitida, directa ou

indirectamente a sua legalidade, salvo o caso de envolver a venda de filhos e filhas a

quem os maltratasse até à morte ou, no segundo caso, os entregasse à prostituição.93

Na Hispânia de Duzentos, porém, conforme testemunha o foro de Teruel, tanto o

abandono por exposição, como a venda de filhos eram severamente punidos,

reservando-se o açoitamento público para toda muger que su fijo en algún lugar

echará et provado, e a morte na fogueira para a venda paterna de meninos,94 a fim de

evitar os perigos de uma temida regressão demográfica nas comunidades cristãs

estabelecidas na fronteira contra o Islão.

________________________________________________________________________________________________

223

90 John Boswell, Au bon cœur des inconnus..., ed. cit., p. 240. 91 Didier Lett, Famille et parenté dans l' Occident médiéval, Ve.-XVe. siècle, Paris, Hachette, 2000, pp. 117-132. 92 Cf. John Boswell, Au bon cœur des inconnus…., ed. cit., p. 285. 93 Sobre esta legislação, veja-se, John Boswell, ob. cit., ed. cit., p. 229. 94 "El Fuero de Teruel", éd. Max Gorosch, in Leges Hispanicae Medii Aevi, I, Estocolmo, 1950, pp. 297-298, citado por John Boswell in ob. cit., ed. cit., p. 230.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

Em meados do século XIII, o Foro Real de Afonso X de Castela e Leão,

generalizava essa legislação e propunha a pena de morte para

tod' omen que enjectar alguu menio e nõ ouuer que lho tome e morreu,

porque poys que el fez cousa per que morresse, tanto e como se o matasse. 95

Por outro lado, com o objectivo de desencorajar a prática dos expostos, também se

determinava, quer a perda do poder paternal quando

alguu menio ou outro de mayor ydade for enjectado de seu padre ou per

outri sabendo el e cusentindo, explicitando-se que o meesmo seya da madre

ou doutra qualquer que o aya en poder,

quer, no caso de se tratar de uma criança de condição servil, que o

senhor perca todo o dereyto que enel auya se o enyectou ou mãdou ou

consentio, e que aquel que o criou, pero que fez merçee eno criar, nõ aya

nenhuu poder sobre'el ne de nenhua seruidoe.

Tudo isto, no entanto, apenas se o

menio liure ou seruo for enjectado se sabedoria do padre ou doutro que o

aya de teer en poder ou do senhor, não perdendo nenhuu delles o dereyto que

en el aya ou en seu auer se jurar que nõ o soube.96

No posterior código das Siete Partidas, onde se retoma, de uma forma geral,

a legislação do Foro Real, Afonso X de Castela e Leão introduz, contudo, atenuantes

significativas às censuras jurídico-morais lançadas contra um imoderado exercício

do poder paternal, visto reconhecer aos pais o direito de abandonar ou vender os

filhos no caso de lhes faltar os indispensáveis meios de sustento familiar,97 e, na

situação em que,

seyendo el padre cercado en algun Castillo que touiesse de Señor, si fuesse

tan cuytado de fambre que non ouiesse al que comer, puede comer al fijo, sin

mala estança, ante que diesse el Castillo sin mandado de su Señor. 98

_________________________________________________________________________________ 224

95 Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro IV, Título XXII. 96 Afonso X, ob. cit., ed. cit., Livro IV, Título XXII. 97 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey..., ed. cit., Partida Cuarta, Título, 17, Ley 8. 98 Id., ibidem, Partida Cuarta, Título 18, Ley 18.

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Ora, embora não seja historicamente conhecido qualquer exemplo de uma tão terrível

morte, ela não deixa de reflectir como o exercício da patria potestas num contexto

feudal poderia incluir a legitimação do assassinato das suas crianças por parte dos

pais fidalgos. Uma destas situações encontra-se indirectamente referida por Fernão

Lopes na Crónica de D. Fernando, a propósito da forma como o alcaide de Zamora,

Afonso Lopes de Texeda, sacrificara os filhos, durante a guerra luso-castelhana de

1369-71, para não entregar a praça que defendia em nome do rei português, às forças

castelhanas que então a cercavam, sob a chefia da rainha Joana, a mulher do monarca

Henrique de Trastâmara. 99

Na verdade, segundo o cronista, Afonso Lopes, na espera de um hipotético

auxílio militar, teria combinado com as forças sitiantes um prazo para a eventual

rendição de Zamora, a qual fora aceite depois da entrega dos seus dois filhos como

reféns. Esgotado esse tempo, a rainha acabara por mandar recado ao alcaide de que

se ele

nom desse o logar como ficara com ella, pois o termo já era passado, que lhe

mandaria degollar os filhos ante seus olhos, se os ell oolhar quisesse.

Conta-se depois como Afonso Lopes nada fizera para o evitar, mesmo que entre os

castelhanos a muitos custasse acreditar que

dous seus filhos assi aazados pera amar leixasse morrer d’aquella maneira,

como assi seja que na morte do filho nehuu pode sentir moor dor que o

padre.100

Em suma, ainda que a legislação peninsular de Duzentos condenasse

globalmente os pais que, ao abandonarem os filhos, lhes provocavam a morte, não

deixava de referir excepções que heroicizavam essa realidade em nome dos

sacrifícios a exigir pela honra feudal da linhagem. Aliás, na literatura cavaleiresca,

essa situação acabara por se tornar num tópico literário correntemente utilizado nas

________________________________________________________________________________________________

225

99 Sobre este conflito, veja-se A.H. de Oliveira Marques, Portugal na crise dos séculos XIV e XV, Nova História de Portugal, vol. IV, Lisboa, Presença, 1987, pp. 511-513. Relativamente à forma como Fernão Lopes desenvolve o episódio, consulte-se Ana Rodrigues Oliveira, As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (séculos XII a XIV), Patrimónia Histórica, Cascais, 2000, pp. 292-294. 100 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, ed. G. Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1975, pp. 133-135.

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narrativas sobre as infâncias de muitos heróis fidalgos, como Artur, o Pequeno, o

filho do rei Artur que sobrevivera à morte por abandono, que lhe teria sido destinado

pelo avô, quando o levara a uu monte esquivo u avia uu lago e leixou-o na Riba da

auga pollo comerem bestas feras. 101

De resto, se a legislação canónica, como a civil, também responsabilizara

genericamente os pais pela morte acidental de filhos enjeitados, não contempla

qualquer específica sanção relativamente aos progenitores de crianças cujo abandono

fora bem sucedido, ou seja, os meninos e as meninas que haviam sido recolhidos e

criados por cristãos piedosos, apenas se preocupando em enunciar as medidas que

lhes pudessem fazer evitar um pecaminoso segundo baptismo. Entre elas, conforme o

repetiram várias normas sinodais, chegava-se a encontrar-se a recomendação para

que os pais ou as amas das crianças expostas diligenciassem colocar entre as suas

roupas um pouco de sal, se já fossem baptizadas, para que assim pudessem ser

sepultadas no cemitério se encontradas mortas, ou então preservadas das

consequências de um indevido segundo baptismo.102

Independentemente da maior ou menor tolerância legislativa para com os

responsáveis directos do problema social dos expostos, a Cristandade da Baixa Idade

Média depressa promoveu o desenvolvimento de instituições reservadas à respectiva

guarda e sustento, sobretudo no âmbito da assistência urbana protagonizada, quer

pelas comunidades religiosas vocacionadas para a pastoral das populações mais

carenciadas das cidades, como eram as mendicantes, quer por grupos de leigos

associados em confrarias de ajuda mútua, quer ainda por destacados membros das

elites do reino que, para esse efeito, providenciavam vários bens e legados pios.103

Entre estes últimos contavam-se, desde o século XIII, as rainhas.

Senhoras de algumas das principais vilas e cidades do reino, onde moravam,

sustentavam uma corte e exerciam funções de caridade, misericórdia e assistência

para com os mais pobres e necessitados. Foram as rainhas de Duzentos que

_________________________________________________________________________________ 226

101 A demanda do Santo Graal, ed. Joseph-Maria Piel, I.N.C.M., 1988, capítulo CCCLXI . 102 John Boswell, Au bom coeur des inconnus..., ed. cit., pp.227-228. 103 Veja-se a síntese de Maria José Ferro Tavares, "Assistência. I – Época medieval" in Carlos Moreira de Azevedo (dir.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 136-140. Consulte-se também, da mesma autora, "A assistência na Idade Média" in António Banha de Andrade (dir.), Dicionário de História da Igreja em Portugal, I, Lisboa, 1980, pp. 635-640.

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tomaram a iniciativa da fundação de instituições urbanas especialmente dedicadas a

recolher crianças que não tinham onde se abrigar, ou seja, os chamados Hospitais dos

Meninos, entendendo-se por hospital, de acordo com o seu sentido medieval, um

lugar destinado a albergar, sustentar e tratar populações carenciadas.104 O mais

antigo foi criado em Lisboa, a então principal cidade do reino, pela mulher do rei

Afonso III, a rainha Beatriz, sendo o primeiro hospital especialmente reservado à

assistência de meninos enjeitados ou expostos, que assim deixavam de se misturar –

conforme ocorria até aí noutras instituições de caridade existentes na cidade – com

pobres, mendigos, peregrinos, incapazes e doentes adultos.105

Protegido pela coroa, o Hospital dos Meninos de Lisboa passou a ser

largamente beneficiado pela realeza de Trezentos. Com efeito, tanto o rei Dinis como

a mulher, a rainha Isabel, legaram-lhe importantes quantias nos seus testamentos,

sendo as 300 libras que o soberano lhe testamentou em 1322 destinadas aos

esforços para criarem hi meninos engeytados e pera lhis manteer amas ata que

sejam despesas.106

De resto, em 1321, a rainha Isabel, em conjunto com o bispo Martinho, da

Guarda, fundava em Santarém um outro Hospital dos Meninos, o Hospital de Santa

Maria dos Inocentes, já documentado em 1280, 107 especificamente destinado a

receber as crianças

que alguuas molheres comceberam E tamto que os parem com medo e com

vergomça ou outros seos grandes pecados queremdo ante perder as almas

que lhi eo saberem e mandan nos deitar pellas augoas e pellas carreiras e

pellas carcouas e pollos Rios e em outros lugares hu os nam possam achar

senam de uentura,

________________________________________________________________________________________________

227

104 Fernando da Silva Correia, "Hospitais pré quinhentistas portugueses. A lição da História" in Imprensa Médica, 23-24, 1943, pp. 15-40. 105 Abílio e Anastácia Mestrinho Salgado, “Hospitais Medievais”, in Francisco Santana e Eduardo Sucena (dir.), Dicionário de História de Lisboa, Lisboa, 1994, pp. 442-446 106 Maria José Pimenta Ferro Tavares, Pobreza e Morte em Portugal na Idade Média, Lisboa, Ed. Presença, 1989, p. 92. Sobre os hospitais medievais de Lisboa, consulte-se, Abílio e Anastácia Mestrinho Salgado, “Hospitais Medievais”, in ob. cit., ed. cit., pp. 442-446. 107 Luís António Santos Nunes Mata, Ser, ter e poder. O Hospital do Espírito Santo de Santarém nos finais da Idade Média, Leiria, Magno, 2000, p. 37. Sobre a fundação dos hospitais medievais de Santarém, veja-se Jorge Custódio, "Cronologia dos hospitais e albergarias de Santarém" in João Afonso de Santarém e a assistência hospitalar escalabitana durante o Antigo Regime, Santarém, Câmara Municipal de Santarém, 2000, pp. 206-229.

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ou seja, uma instituição de assistência social integralmente dedicada à protecção dos

expostos, devendo

os filhos dos outros pobres que sas madres amdam per as portas e pellas

albergarias e os outros pobres cauooes que criam com sasa molheres por sa

lazeira

não ser aí recebidos mas antes enviados para outros centros de acolhimento social

existentes na cidade.108

De acordo com o regulamento de 1321, o Hospital de Santa Maria dos

Inocentes passava então a contar com a presença de várias amas de leite,

responsáveis pelas crianças de colo, e de dois capelães que nele asseguravam uma

missa diária, devendo os enjeitados permanecer na instituição até aos catorze anos de

idade, pelo que antes lhes era facultado o começo da aprendizagem de uma qualquer

profissão.

Após a morte da rainha Isabel, os administradores obtiveram do filho, o rei

Afonso IV, privilégios adicionais para a salvaguarda da autonomia económica da

instituição, comprometendo-se estes a utilizar, se necessário, os bens e os

rendimentos do hospital para nele albergarem de seis a doze pobres envergonhados

que comeriam e beberiam em comum.

Durante os séculos XIV e XV, o Hospital dos Inocentes viu aumentar os seus

bens urbanos e rurais através de várias doações feitas em vida ou por testamento,

continuando, portanto, a ser socialmente reconhecida e apoiada a missão assistencial

que desempenhava na cidade. Contudo, as dificuldades inerentes à gestão pública de

uma complexa rede de hospitais urbanos fizeram com que, à semelhança do que

aconteceu a outras unidades escalabitanas de assistência pública, viesse a ser

integrado, nos finais do século XV, no Hospital de Jesus Cristo, que então passou a

centralizar todos os cuidados de saúde e protecção prestados na cidade aos mais

desfavorecidos, perdendo-se, desde esse momento, o registo de uma específica

instituição de apoio às crianças expostas em Santarém.109

_________________________________________________________________________________ 228

108 Documento transcrito por Maria Ângela V. da Rocha Beirante, Santarém Medieval, Lisboa, Universidade Nova, 1980, p. 253. 109 Manuela Santos Silva, "A assistência social na Idade Média. Estudo comparativo de algumas instituições de beneficência de Santarém" in Estudos Medievais, 8, 1987, pp. 175-242.

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Entretanto em Lisboa, também os esforços realizados nos finais da Idade

Média para racionalizar e centralizar o fornecimento público de uma eficaz

assistência hospitalar, levaram à extinção do Hospital dos Meninos que fora fundado

na segunda metade de Duzentos, procedendo-se à sua incorporação no Hospital-de-

-Todos-os- Santos criado, em 1504, pelo rei Manuel I.110 De facto, segundo o seu

Regimento, passou então a ser na Casa dos Meninos ou Criandário do Hospital-de-

-Todos-os-Santos, que se começaram a receber todos os meninos emjeitados na

cidade, aí sendo acolhidos e tratados de acordo com os procedimentos antes

existentes no Hospital dos Meninos.

Em primeiro lugar, convinha imediatamente tentar saber se eram christãos e

nam o sendo os mandar loguo bautizar, só depois de bautizados se devendo loguo

buscar as hamas, para os amamentar, sendo eles criados por tempo de tres annos em

que se costuma os menynos serem criados das suas hamas. Estas convinha bem

remunerar para que andassem comtemtes e tivessem rezam de com amoor e boa

vomtade cryarem os taes emgeytados. Depois de decorridos os três anos iniciais,

passavam então a ser mamteudos de seu comer e vestiir atee que fossem de ydade

de sete annos pera deverem de ser dados a solldada ou os poerem a apremder

allguuns oficios segumdo a abellidade de cada huum moço. Deveriam sempre vestir

roupa de pano azull daquella sorte e preço que fosse conveniente e trazer nos peitos

huum .S. por synall que eram do dito estpritall. 111 Durante o período de

permanência no hospital, o provedor teria muy gramde cuydado d’ollhar por elles e

de os fazer curar e repairar como pudessem ser bem criados e provydos.

Paralelamente, a frequência infantil do Hospital-de-Todos-os-Santos ainda

era objecto de um rigoroso registo contabilístico. De facto, tanto se exigia o

assentamento num livro em cada huum anno, de todos os emgeitados com

decraraçam de seus nomes, bem como do dia mês e anno em que se ejeitaram as

crianças e asy o em que foram dados a criar às amas. Relativamente a estas últimas,

deveriam ainda ficar registadas indicações precisas sobre homde vivem e se forem

casados os nomes de seus maridos. Recomendava-se, também, anotar a identidade

dos adultos que resolvessem adoptar um dos enjeitados, devendo ser respeitada a

________________________________________________________________________________________________

229

110 Irisalva Moita, V Centenário do Hospital Real de Todos os Santos, Lisboa, Correios de Portugal, 1992. 111 Esta mesma obrigação de roupa azul com a respectiva letra era extensiva aos escravos e a todas as pessoas a quem, pelo regimento se ouver de dar o referido vestuário.

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condição de que, mesmo tratando-se dos seus pais biológicos, só o pudessem fazer

no caso de serem pesoa comvertida a fee de Nosso Sennhor, a fim de evitar a sua

possível inclusão em famílias de origem mourisca ou judaica.112

Tal como ocorria noutras regiões da Cristandade, as crianças expostas

passavam então a viver em grandes instituições de caridade pública, entregues ao

cuidado de funcionários cujos magros salários não promoviam a existência de uma

eficaz assistência sanitária e educacional. Por um lado, porque a nutrição fornecida

por amas mal pagas e frequentemente subalimentadas não favorecia um saudável

crescimento das crianças guardadas nos hospitais, mesmo tendo em conta a afeição

naturalmente transmitida aos pequenos seres a que davam o peito, e os cuidados

desenvolvidos para a sobrevivência dos meninos e meninas cuja morte significaria

uma preocupante perda de rendimentos, já que muitas das mulheres responsáveis

pelo aleitamento dos expostos assistidos nas instituições de caridade pública

amamentavam em simultâneo vários enjeitados, para conseguirem mais algum

dinheiro. 113

Por outro lado, porque uma grande concentração de crianças as tornava fáceis

vítimas das frequentes doenças contagiosas e endémicas que rapidamente se

propagavam tanto no hospício onde viviam, como nas próprias moradas das amas,

dadas as deficientes condições de higiene e a falta de medicamentos eficazes. De

facto, as taxas de mortalidade infantil revelavam-se extremamente elevadas em todos

os hospitais da Cristandade dos finais da Idade Média, sobretudo no que respeita às

crianças lactantes.114

É certo, no entanto, que a assistência hospitalar conseguia minimizar algumas

das terríveis consequências do abandono de crianças por exposição pública,

aumentando-lhe muitas vezes a esperança de vida e até permitindo-lhes virem a ser

mais facilmente procuradas e adoptadas por famílias abastadas e sem filhos,

conforme se encontrava juridicamente estabelecido.115 Foi esse, por exemplo, o

_________________________________________________________________________________ 230

112 Abílio e Anastácia Mestrinho Salgado (ed.), Regimento do Hospital de Todos-os-Santos, Lisboa, Comissão Organizadora do V Centenário da Fundação do Hospital Real de Todos-os-Santos, 1992. 113 Sobre os quotidianos das instituições urbanas de assistência social infantil, vejam-se Colin Heywood, ob. cit., ed. cit., p. 79 e Jacques Heers, ob. cit., ed. cit., pp. 88-91. 114 Nos hospitais medievais de Florença, por exemplo, cerca de 20% dos lactantes morriam menos de um mês após a sua chegada, 30% no espaço de um ano e só cerca de 32% chegava à idade de cinco anos : John Boswell, Au bon cœur des inconnus …, ed. cit., p. 287. 115 Sobre a jurisdição da adopção e perfilhação, consulte-se, Humberto Baquero Moreno, "Subsídios para o estudo da adopção em Portugal na Idade Média (D. Afonso IV a D. Duarte)", in Revista de Estudos Gerais Universitários de Moçambique, 3, Lourenço Marques, 1966, pp. 67-79.

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caso da menina de seis meses que o cidadão eborense Afonso Peres Cabelos,

resgatou de um hospital público durante o reinado de Afonso V, para a tornar sua

filha e herdeira.116

Porém, conforme salientaram Boswell e de la Roncière, a assistência

hospitalar urbana da Baixa Idade Média não conseguiu, nem impedir que muitas

das crianças por ela assistidas viessem a morrer como inocentes vítimas das

condições em que funcionavam essas instituições, nem sequer evitar o exponencial

aumento dos meninos e meninas abandonados à nascença pelos pais. Na realidade, o

facto da existência dos hospitais tornar-lhes-ia mais suportável e menos trágica a

decisão de entregar os filhos à “bondade dos estranhos”, desculpabilizando-os peran-

te a sociedade para quem uma tal prática não deixava de desempenhar uma impor-

tante função regularizadora do funcionamento dos quotidianos familiares. Com

efeito, o generalizado enjeitamento urbano das crianças cumpria medidas socialmen-

te estabilizadoras: permitia atenuar o insustentável crescimento demográfico das

populações citadinas, ao limitar as hipóteses dos expostos virem a casar e a repro-

duzir-se; contribuía para evitar o empobrecimento de várias famílias cujo património

deixava de vir a ser fraccionado por um muito elevado número de filhos herdeiros;

facultava aos pais guardar unicamente as crianças do sexo desejado ou, até oferecer-

lhes, quer a possibilidade de os outros acabarem por vir a ser adoptados por famílias

abastadas, quer a de poderem chegar a desempenhar prestigiadas e lucrativas funções

religiosas ou clericais nas instituições onde eram, por vezes, acolhidos. 117

A sociedade remetia-se, pois, à “bondade dos estranhos” para proteger as

suas crianças supranumerárias. Mas, como tal era o seu destino, estranhos

continuavam; criados por trás dos muros, afastados da sociedade e da família, sem

linhagem nem natural nem adoptiva, as crianças morriam entre estranhos ou

entravam na sociedade como estranhos.

No fundo, face à grande proveza que nas cidades europeias da Baixa Idade

Média conduzia a um crescente abandono infantil por exposição pública, a

________________________________________________________________________________________________

231

116 Maria José Tavares, Pobreza e Morte em Portugal na Idade Média, ed. cit., p. 52. 117 John Boswell, ob. cit., ed. cit., pp. 284-285. Referindo-se à Toscâna quatrocentista, Charles de la Roncière refere como o aumento dos abandonos infantis conduziu à criação de novos hospícios que, em pouco tempo, deixaram de poder acolher todos os enjeitados da cidade, sobretudo as muitas meninas, segundo este autor, as mais abandonadas, visto serem consideradas mais frágeis e menos desejadas: “A vida privada dos notáveis toscanos no limiar do Renascimento” in Philippe Ariès e Georges Duby (dir.), História da Vida Privada, 2, Lisboa, Ed. Afrontamento, 1990, p. 224.

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assistência hospitalar aos enjeitados conseguia evitar que os pais recorressem ao

aborto ou ao infanticídio dos filhos, oferecendo-lhes a hipótese de as crianças

poderem vir a sobreviver e até a crescer no seio de prósperas famílias de adopção.

Nesse sentido, as crianças expostas não só evitavam aos pais que as abandonavam a

culpa inerente à responsabilidade de haverem contribuído para a danação eterna das

respectivas almas,118 como lhes fazia protagonizar um gesto de amor parental, já que

implicava a renúncia aos filhos em nome da oferta de um possível melhor futuro.

No Antigo Testamento, o episódio do Julgamento de Salomão fornecia um

exemplo doutrinário. Perante duas mulheres que disputavam a maternidade de uma

criança, sendo uma delas a mãe natural e a outra a mãe adoptiva, a sentença

pronunciada pelo monarca no sentido de a criança vir a ser cortada os meio por uma

espada para que cada uma das suas metades fosse entregue às duas mães em litígio,

acabou por revelar a superioridade do amor reservado pela progenitora biológica ao

seu menino, já que, ao contrário da outra, logo se dispôs a abandonar o pleito em

nome da salvaguarda da vida do petiz.119 Neste sentido, também as mães medievais

que abandonavam os filhos para lhes assegurar a sobrevivência que não era possível

se recorressem ao aborto ou ao infanticídio, acabavam por protagonizar um acto de

amor maternal em que se começava a exprimir o respeito social pela vida e pelos

direitos das crianças, sobretudo durante a sua mais tenra e frágil infância.

4 – AS SALVAGUARDAS

Do ponto de vista das protecções jurídicas reservadas às crianças, a sociedade

medieval desenvolveu uma abundante legislação canónica e civil sobre a salvaguarda

dos seus direitos na sucessão do património familiar, nomeadamente no que diz

respeito às formas e às condições por que podiam herdar os bens e os direitos antes

detidos pelos pais. No entanto, à partida, essas protecções apenas se aplicavam aos

chamados filhos legítimos.

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118 Pierrette Paravy, “Angoisse collective et miracles au seuil de la mort: réssurections et baptêmes d’enfants mort-nés en Dauphine au XVe siècle”, in La Mort au Moyen Âge, Estrasburgo, Universidade de Estrasburgo, 1977, pp. 87-102. 119 Primeiro Livro dos Reis: 3, 16-28 in Antigo Testamento, Bíblia Sagrada em Português, ed. e trad. de João Ferreira de Almeida, Lisboa, Sociedade Bíblicas Unidas, 1968.

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Com efeito, desde o século XII, por influência do direito canónico, era apenas

neles que, em princípio, recaía o direito a sucederem, por morte dos pais nos bens e

privilégios que definiam o património familiar. Entendidos como gerados de acordo

com as leis divina e humana, já que correspondiam a filhos nascidos no seio de uma

sacramentada relação matrimonial, tendiam a ser vistos na qualidade de produto de

uma procriação legitimada por Deus, sendo entre eles que devia recair, quer a

titularidade do património detido pelos pais, quer o exercício de funções e cargos

religiosos e eclesiásticos.

Quanto aos filhos ilegítimos, oriundos de relações sexuais mantidas fora do

matrimónio sacralizado, ou seja, longe da lei divina, deveriam ser, à partida,

excluídos, com maiores ou menores excepções, da herança dos pais, a quem, aliás,

nem sequer se exigia a obrigação de os criar e manter. De acordo com Afonso X de

Castela e Leão incluíam várias modalidades, desde os filhos naturales, que eram

gerados pelas barregãs, aos fornecidos contra a lei divina e contra a razón natural,

como seria o caso das crianças tidas pelas religiosas ou havidas de relações

incestuosas, também se referindo os filhos mánceres, provenientes de mulheres que

están en la putería, y danse a todos cuantos a ellas vienen, os spuri, caracterizados

por não conhecerem o pai, visto as mães serem barregãs de vários homens, e os

bastardos, tidos pela esposa del marido que la tiene em casa, y no lo son. Nesta

sistematização, feita através do critério das diferentes condições da mãe, não se

mencionam os mais numerosos bastardos dos homens casados ou solteiros.120

De resto, na legislação europeia da Baixa Idade Média chegava a prever-se a

condição de ilegítimo para filhos de um matrimónio devidamente sacralizado, desde

que gerados antes do casamento dos pais ou após a sua dissolução. Seria esse, na

verdade, o caso das crianças nascidas antes do sétimo mês após a realização do

casamento ou depois de um divórcio, o mesmo sucedendo aos filhos concebidos

trinta e nove semanas e um dia depois da morte do marido.121

Na Hispânia medieval, a legislação revela-se menos rígida, chegando Afonso

X a recomendar que

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233

120 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey..., ed. cit., Partida Cuarta, Títulos 13, 14 e 15. Relativamente aos mánceres, saliente-se como a etimologia do vocábulo remete, quer para o termo latino que significa pecado infernal, quer para a palavra, em língua vulgar, romance, designativa de mancha, associando-os a uma procriação conotada com a maldade e com origens vis.

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se ome solteyro cõ molher solteyra fezer filhos e depoys casar cu elha, estes

fillos seyã herdeyros122

Mantinha-se, contudo, o princípio de ilegitimar, e assim excluir da herança

familiar, os filhos gerados por incesto, adultério ou cujos pais fossem sacerdotes, tal

não impedindo, conforme já antes referimos,123 que esta última situação, fortemente

condenada pelos Sínodos diocesanos, fosse bastante comum e muitas vezes

ultrapassada.124

Entre os filhos legítimos, procurava-se assegurar que os bens a herdar por

morte de um dos pais de um matrimónio devidamente sacralizado, respeitassem as

regras de um regime sucessório baseado no direito de troncalidade.125 Segundo o

princípio paterna, paternis, materna, maternis, competia então ao cônjuge

sobrevivente dar a partição per meo aos filhos do que havia falecido, quer fossem de

ambos, ou só do que tinha morrido, se forem lidimos, devendo sempre ser

salvaguardado que os bens a herdar fossem devidamente repartidos. 126 No Foro

Real, por exemplo, estipulava-se que

se a molher ouuer fillos de dox maridos ou de mays, cada huu dos fillos

herdense enas arras que su de seu padre de guysa que os fillos duu padre nõ

partã enas arras conos que fore doutro padre.127

O caso específico da defesa jurídica dos direitos à herança familiar por parte

dos filhos legítimos de pais que se voltaram a casar, figura nos costumes locais

da região de Cima Coa, outorgados nos começos do século XIII.128 De facto, quer

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121 Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe.- XIIIe. siècle),Paris, Aubier, 1997, pp. 247-248. 122 Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro III, Título das heranças. 123 Vidé pp. 221-222. 124 No século XV, a legislação régia passou a prever que o filho do clérigo podia herdar do pai e do avô se tivesse nascido de casamento legítimo antes de o progenitor ter entrado em religião: Ordenações del-Rei Dom Duarte, ed. M. Albuquerque e E. Borges Nunes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 588-589. 125Guilherme Braga da Cruz, O Direito de Troncalidade e o Regime Jurídico do Património Familiar, vol. I, Braga, Livraria Cruz, 1941, pp. 19-20 e 81-136. 126 Ordenações Del-Rei Dom Duarte, ed. cit., Constituçom.Liiij, p. 89. 127 Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro III, Título das arras, p. 201. 128 Sobre este grupo de foros e costumes vejam-se: "Foros de Castelo Rodrigo", ed. Luís Filipe Lindley Cintra in A Linguagem dos foros de Castelo Rodrigo, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da

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nos foros de Castelo Melhor, quer nos de Castelo Rodrigo, encontra-se a

recomendação de que

ningun ome que morriere ó moler ó fillos ou fillas ouieren, e el baron tomar

muller, ó la moller marido, e non ouieren partido con suos fillos, e depoys

otros fillos fezieren, e despues moriere el ó ella, con los fijos primeros partan

la erencia e mueble que les pertenesce: e despues partan con los otros fijos:

e si alguna cosa mentire padre ó madre de auer de aquellos que son sin

padre ó sin madre que ouo mester de sua herencia e foren adelante partan

fillos ó fillas con padre ó con madre aquel auer que fue de suyo, ó parientes

a que pertenesçe: E despues partan su erencia e su mueble que ganarom

ambos, los otros fijos ó fillas partam, e de todo su auer otrosy partan. 129

Muito próximos, no seu teor, dos costumes locais da região de Riba Coa, os

foros da Guarda insistem, por outro lado, na exclusão dos filhos ilegítimos à herança

paterna, promulgando que filho de barragaa non herde sua madre en boa de seu

padre.130 No entanto, os costumes locais derivados do foral outorgado em 1179

a

Santarém, Coimbra e Lisboa revelam alguma abertura em relação à possibilidade de

os filhos bastardos poderem vir a partilhar com os legítimos a herança dos bens do

pai.131 Com efeito, tanto os forais de Santarém como os de Beja abriam uma

excepção relativamente aos bastardos dos peões, ao estipular ser

custume que peom possa seos filhos de barrega que aia rreceber por filhos e

partirem con os filhos liidimos da molher que ouuer de beeyçom

________________________________________________________________________________________________

235

Moeda, 1984; Gonzalo Martinez Díez, "Los fueros de la familia Coria Cima-Coa" in Revista Portuguesa de História, 13, 1971, pp. 343-375; José Mattoso, "Notas sobre a estrutura da família medieval portuguesa" in A nobreza medieval portuguesa. A família e o poder, Lisboa, Estampa, 1981, pp. 387-415. 129 "Costumes e Foros de Castelo-Rodrigo" in Portvgaliae Monvmenta Historiae, Leges et Consuetudines, vol. IV, Lisboa, 1868, p. 868. Vejam-se também, "Costumes e Foros de Castello- -Melhor", ibidem, p. 914. 130 "Costumes e Foros da Guarda" in Portvgaliae Monvmenta Historiae, Leges et Consuetudines, vol. II, ed. cit., p. 4. Sobre a proximidade tipológica dos foros da Guarda com os costumes locais da região de Cima Coa, veja-se José Mattoso, "Notas sobre a estrutura da família medieval portuguesa" in ob. cit., ed. cit., p. 392. 131 Relativamente à família dos forais derivados dos costumes de Santarém, Coimbra e Lisboa, consulte-se António Matos Reis, Origens dos municípios portugueses, Lisboa, Livros Horizonte, 1991, pp. 205-221.

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Ygualmente,132

sendo essa situação extensível aos cavaleiros vilãos que descessem de categoria

sócio-jurídica por falta de recursos económicos, conforme se encontra estabelecido

na norma de que

se alguu homem dementre que he solteyro, tem barragaa, e á dela faz filhos,

e está em onrra de cavaleyro; e depçois cazase com outra mulher e faz en ela

filhos, e morre em onrra de peon, os filhos que nom sum lydimos devem vijir

a partiçom com os filhos lijdimos.133

Durante o reinado de Afonso III, tal disposição jurídica começa a adquirir a

feição de lei geral do reino. De facto, os juristas do monarca legislaram no sentido de

os bastardos de piam solteiro poderem vir a herdar yrmaanmente com os posteriores

filhos lidimos do pai, no caso do progenitor os ter procriado na uergindade da mãe

ou se, posteriormente, com ela se tivesse vindo a casar. 134 O rei Dinis simplificou a

questão, ao fazer uma lei segundo a qual os filhos nascidos de peão solteiro e de

manceba também solteira, poderiam herdar e partilhar com os legítimos do pai a

respectiva herança, ao mesmo tempo que também lhes era atribuída a possibilidade

de, à falta de filhos legítimos, virem a herdar os bens paternos, salvo a terça parte

que o progenitor sempre poderia dispor conforme bem entendesse.135

Restrita ao caso dos peões concelhios, toda esta legislação ficava muito

aquém da que havia sido defendida por Afonso X no Foro Real, já que aí se

estabelecia que todos os bastardos podiam herdar por morte dos pais os respectivos

bens sempre que não existissem filhos legítimos,136 estando-lhes, no entanto,

interdita essa possibilidade no caso da sua existência.137 Contudo, em Portugal, a

_________________________________________________________________________________ 236

132 "Costumes e Foros de Santarém" in Portvgaliae Monvmenta Historiae, Leges et Consuetudines, ed. cit., p. 30. Vejam-se também os "Costumes e Foros de Beja", ibidem, p. 69. 133 Citado por Henrique da Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV, vol. VI, dir. Torquato S. Soares, Lisboa, Sá da Costa, 1945-54, p. 477. 134 Ordenações Del-Rei Dom Duarte, ed. cit., Constituçom.Cx, p. 109. Contudo, tais bastardos, embora herdando os bens do pai, nunca o poderiam fazer em relação aos bens avoengos, caso houvesse netos legítimos. 135 Citado por Henrique da Gama Barros, ob. cit., ed. cit., p. 474. 136 Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro III, Título das heranças, pp. 214-216 e Livro IV, Título XXI, p. 306. 137 Tod’ome que ouuer filhos ou netos ou - desende a iuso de molher de beeyçon, nom possam erdar cu elles outros fillos nenhuus que aya de barragaa. – Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro III, Título das heranças, p. 214.

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situação não se resumiria apenas aos bastardos dos peões. Com efeito, a

circunstância de Afonso III, em resposta a agravos que o clero lhe apresentava nas

cortes de Guimarães de 1250, ter ressalvado a existência de uma expressa vontade

paterna como suficiente para os bastardos fidalgos puderem reivindicar direitos de

herança relativamente ao padroado que fora exercido pelo pai numa, ou em várias

fundações eclesiásticas, 138 parece demonstrar como também entre os nobres se

praticava a infracção à regra de que os filhos ilegítimos careciam de direitos

sucessórios relativamente ao património paterno.

Durante o século XV, o rei Duarte forneceu um novo enquadramento

legislativo à questão. Determinou que os filhos bastardos tanto poderiam herdar os

bens paternos quando à morte do progenitor não existissem filhos legítimos, como os

possuídos pela mãe que não fosse nobre ou religiosa, o que assim lhes permitia

reivindicar a posse dos bens de avoenga.139

Uma vez resolvida a complexa questão da legitimidade dos candidatos à

sucessão da herança familiar que se encontrava disponível por morte do anterior

titular, procedia-se à sua divisão equitativa pelos respectivos descendentes directos

(Ygaes su en grao, ygaes son na partiçõ140), havendo que ressalvar o caso da

nobreza, já que, sobretudo a partir da centúria de Trezentos, se tende a generalizar no

seu seio a prática de privilegiar os filhos primogénitos, segundo os princípios

próprios da família linhagística. Contudo, mesmo entre os fidalgos, essa situação

sempre conheceu excepções decorrentes da adopção do princípio de uma partilha

mais ou menos equitativa da herança da família por todos os seus descendentes

directos, incluindo, por vezes, os filhos bastardos.141

Um tal princípio geral encontra-se presente na legislação do rei Afonso III

através da promulgação de diversos expedientes jurídicos destinados a evitar a

desintegração do património a herdar à morte dos pais, por todos os respectivos

filhos. Por um lado, o monarca determinou que qualquer filho que tivesse recebido

________________________________________________________________________________________________

237

138 Citado por Henrique da Gama Barros, ob. cit., ed. cit., p. 476. 139 Ordenações del-Rei D. Duarte, ed. cit., p. 586. 140 Foro Real, ed. cit., Livro III, Título das heranças, pp. 216-218: Se o morto leyxar netos que an dereyto d’erdar {...} e ouuer mays netos duu fillo herde aquella parte que seu padre erdaria se uiuo fosse e nõ mays, e os outros netos da parte do outro fillo, pero que seyã mays poucos, erde o que seu padre herdaria, o mesmo se aplicando a sobrinhos, primos ou outros parentes em igualdade de circunstâncias. 141 Veja-se José Augusto Pizarro, Linhagens medievais portuguesas. Geneaologias e estratégias (1279-1325), Porto, Universidade Moderna, 1999, pp. 565-591.

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bens familiares em vida dos pais, os viesse a aduzir despois morte delles a partiçam

com Seus yrmaãos.142 Por outro, como forma de garantir o direito dos netos aos bens

de avoenga, estabeleceu que qualquer minino ou a minina podia demandar uma

compensação aos pais que haviam vendido, no todo ou em parte, a herança que foy

de saa avoenga até huum ano E huum dia des que forem de rreuora, ou seja, os

catorze anos para o rapaz e os doze para a rapariga, não se prevendo, contudo, a

possibilidade de contestarem, quer a alienação paterna de património feita antes de

terem nascido, quer a relativa a bens que não tinham pertencido aos avós.143

Mais tarde, a questão da contagem do prazo para que os netos pudessem

contestar, ou ver recompensada, qualquer alienação paterna ou materna dos bens de

avoenga sofreu alterações, de forma a evitar que fosse feita sem o seu conhecimento.

Com efeito, o prazo passou a contar desde o dia da venda dos bens quando esta

tivesse sido feita por pregão e o neto estivesse na terra, ou então, no caso de se

encontrar ausente, a partir da altura em que dela tomasse conhecimento.144 No caso

de haver mais do que um neto, a parte do património de avoenga alienado, deveria

ser repartida

pello Juiz antre os netos per tal guisa scilicet que o juiz estime a parte

quanto pode valler o dereito que cada huum dos netos ha da cousa auoenga,

ou no caso de o bem não ser passível de divisão, entregue ao neto que primeiro o

demandasse, com a condição de depois recompensar os restantes pela respectiva

parte. Previa-se, ainda, que se este neto viesse a falecer após ter sido iniciado o

processo da demanda da herança, deveria o pai herdar sua posição.145 Em todas

estas modalidades, se o neto herdador quisesse vender ou penhorar qualquer bem de

avoenga, só o poderia fazer a algum estranho ou parente mais afastado quando não

existisse qualquer irmão ou parente próximo que cobrisse o preço pedido.146 Por

fim, a legislação do rei Duarte ainda confirma a lei em que o rei Afonso III

estabelecera não poderem os

ffilhos de barregaam que o piam fezer em ssolteiria tirar nem auer os beens

_________________________________________________________________________________ 238

142 Ordenações Del-Rei Dom Duarte, ed. cit., Constituçom Clbiij, p. 121. 143 Ordenações Del-Rei Dom Duarte, ed. cit., Constituçom Lbj, p. 95 e pp. 556-557. 144 Id., ibidem, p. 561. 145 Id., ibidem pp. 594-597. 146 Id., ibidem, p. 559.

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da auoenga de tanto por tanto se hj outros filhos ou netos lidemos ouuer,147

a não ser se habilitados por legitimação régia, já que assim teria sido purgado o

uiçio de nom poder soçeder.148

De uma forma geral, todas estas disposições jurídicas remetem para uma forte

tradição cognática, visto não só contemplarem o direito de tanto as mulheres como

os homens poderem fiscalizar e reivindicar a posse de bens de avoenga, como

estipularem não deverem eles ser alienados ou trocados, ao mesmo tempo que negam

aos pais a possibilidade de testarem livremente os seus bens ou privilegiarem

qualquer filho ou filha na herança. Contudo, conforme tem vindo a salientar José

Mattoso, esta tradição tendia a esbater-se, por influência das dinastias régias, no seio

da nobreza desde a centúria de Duzentos, sendo aí visíveis os progressos de

agnatismo quando os pais decidem “melhorar” um dos filhos ou netos, na sucessão à

sua herança, e dispõem de uma parte significativa dos seus bens para legados

pios,149 encontrando-se essas duas modalidades muitas vezes associadas na

instituição dos morgadios.150

Porém, a legislação geral do reino só muito secundariamente consagra esta

última opção, ao contrário, por exemplo, da mais romanista legislação castelhano- -

leonesa, tal como é visível nos costumes jurídicos locais derivados do foral de Soria,

ou nos códigos promulgados por Afonso X.151 Com efeito, nestes últimos atribui-se

um grande relevo a todos os procedimentos destinados a salvaguardar uma

transmissão agnática do património familiar, nomeadamente os relativos à

legitimação jurídica dos filhos únicos nascidos de uma mãe já viúva, a fim de evitar

qualquer tentativa de apropriação bastarda da herança do defunto pai.

Segundo o Foro Real, competia à viúva de um marido falecido antes do

nascimento do filho logo se dirigir com os parentes mays prouincos do morto

________________________________________________________________________________________________

239

147 Id., ibidem, Constituçom Cxj, p. 109. 148 Id., ibidem, p. 589. 149 Consulte-se, como síntese, José Mattoso, “Notas sobre a estrutura da família medieval portuguesa” in ob. cit., ed. cit., p. 387-415. 150 Maria de Lurdes Rosa, O morgadio em Portugal. Séculos XIV-XV, Lisboa, Presença, 1995. 151 José Mattoso, ob. cit., ed. cit., p. 386.

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dant’os alcaydes da vila ou cidade em que morava, para que publicamente se

registasse o auer do morto e fossem nomeadas,

per que sse nom possa fazer engano ena nacença do fillo ou da filla, duas

molheres que esten cu lume deante ena nacença e nõ entre y outra molher

aaquella ora que ouuer a parir, foras ende aquella que deue seruir a pariçõ.

E seya ben catada que nõ possa fazer y outro engano.152

O posterior código das Siete Partidas regista um procedimento mais

complexo e desenvolvido, multiplicando as acções destinadas a evitar a simulação de

uma gravidez por parte da viúva ou a possibilidade da ocorrência de uma qualquer

substituição de crianças. Por um lado, estipula-se deverem os parentes mais

próximos do falecido esposo recorrer a cinco buenas mujeres que sean libres, quer

para observarem a barriga da viúva logo após a declaração de gravidez e novamente

um mês antes do seu suposto termo, quer para entre elas ser escolhida a que,

vigilantemente, passaria a morar em casa da grávida até ao parto. Por outro,

determinam-se especiais cuidados a ter durante o nascimento da criança, ou seja,

verificar se a casa escolhida para a ocasião só tinha acesso livre por uma entrada,

colocar à sua porta três homens e três mulheres livres, assegurar-se de que em

nenhum dos seus compartimentos se encontrava qualquer grávida ou bebé escondido,

certificar-se que no momento do nascimento só aí estavam presentes até dez boas

e livres mulheres e até seis criadas, não podendo nenhuma delas estar grávida, e mais

duas outras mulheres sabedoras que sean usadas de ayudar a las mujeres cuando

paren. Para além de tudo isto, providenciar para que nessa noite sempre estivessem

três luzes acesas.153

Mais preocupadas com a questão de prevenir atentados aos direitos

sucessórios detidos pelos filhos e netos legítimos na herança dos bens familiares, a

legislação e a jurisprudência portuguesas procuravam sobretudo assegurar o

cumprimento das normas que os defendiam e promoviam, tanto dificultando o seu

deserdamento como evitando que pudessem vir a ser prejudicados quando adoptados

_________________________________________________________________________________ 240

152 Afonso X, Foro Real, ed. cit., p. 215. 153 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey..., ed. cit., Título 6, Ley 17.

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em criança após a morte de um ou dos dois pais.154 Neste último caso, parece

significativo o deferimento por parte dos juristas da corte do rei Duarte de um pedido

apresentado ao monarca por Rui Gonçalves, um ferrador de Setúbal, solicitando a

confirmação régia da perfilhação de uma menina que a sua mulher ouera doutro

marido com que dantes delle fora casada, para que, por amor da dicta sua madre a

tomasse por sua filha adoutiva, e fizesse herdeira em seus beens asy como se fosse

sua filha carnal. Segundo o documento que se encontra transcrito na chancelaria do

soberano, foi necessário sobre ello tirar enquyriçam para saber se essa adopção era

em proueito da dicta moça e não em seu perJujzo. Tendo sido averiguada a

existência de consentimento da mãe e dos parentes do já defunto pai da criança,

nomeadamente o avô, um morador de Azeitão que exercia as funções de respectivo

tutor, e atestado que o ferrador agira sem nenhua prema nem endizimento nem per

outro nenhuu engano salvo por seer asy sua bontade e desejo, visto haver sido

apurado ter ele majs beens e ser maJs Rico que a dicta moça, foi, de facto

confirmado pelo rei o referido perfillamento.155

Contudo, se a legislação civil e canónica se revela bastante preocupada em

desenvolver a casuística das salvaguardas jurídicas destinadas a proteger os direitos

dos filhos e netos legítimos à herança familiar, mostra-se bastante indiferente à

solução dos problemas causados pelo deserdamento dos filhos bastardos, havendo

mesmo contribuído - ao sempre reiterar o seu destino de crianças estranhas aos

apoios a fornecer por uma família - para a sua progressiva exclusão e marginalidade

sociais. Com efeito, foi essa a progressiva consequência da legislação que passou a

proibir aos filhos ilegítimos o acesso aos cargos e funções civis e eclesiásticos, só

podendo os bastardos vir a ser alcaides ou juizes das vilas e cidades do reino por

dispensa régia e vir a receber ordens sagradas mediante autorização dos bispos ou do

Papa conforme se tratasse de Ordens Menores ou Maiores.156

Menos presentes ou melhor contornadas entre os filhos ilegítimos da nobreza,

as restrições públicas e familiares feitas aos bastardos acentuaram-se na segunda

________________________________________________________________________________________________

241

154 Consulte-se o Foro Real, ed. cit., Livro III, Títulos VI e IX e Livro IV, Título XXI, respecti-vamente pp. 214-219, 223-224 e 304-306. 155 Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, vol. III, ed. Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2002, pp. 181-182. 156 Consulte-se Humberto Baquero Moreno, "Subsídios para o estudo da legitimação em Portugal na Idade Média" in Revista dos Estudos Gerais Universitários de Moçambique, 4, Lourenço Marques, 1967, pp. 209-237.

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metade do século XIII, no contexto das queixas feitas ao rei pelos eclesiásticos

acerca da impossibilidade de continuarem a satisfazer os direitos de padroado

exigidos pelo sempre crescente número dos descendentes das suas antigas famílias

patronais. De facto, em 1261, ao responder às sugestões apresentadas pelo clero, o

rei Afonso III legislou a exclusão dos filhos das barregãs dos fidalgos, da herança

dos direitos de padroado paterno, nomeadamente os de aposentadoria, ao mesmo

tempo que os obrigava a indemnizar as igrejas e mosteiros por todas as coisas que

lhes tirassem ou danificassem.157

Mais tarde, em 1297, o filho, o rei Dinis, reiterou as proibições feitas pelo

pai, explicitando que nehuum homem nem nehua molher que non forem lidimos que

nom poussem nem comam nos moesteiros ne'nas Jgreias. Ressalvava, contudo, o

caso de todos os bastardos fidalgos a quem a merçee de uma legitimaçom régia

tornava pessoas come os outros filhos d'algo lidimos.158 Referia-se, então, o

monarca a um expediente jurídico que permitia afastar os impedimentos familiares e

sociais que se aplicavam a um grande número de filhos ilegítimos, ou seja, a outorga

régia de uma legitimação feita a pedido do pai, da mãe ou dos avós da criança

bastarda, e também por qualquer outra pessoa interessada ou pelo próprio no caso de

já ter atingido a maioridade. Cada vez mais frequente a partir do século XIV, a

prática das legitimações régias ou papais de bastardos, passou então a resolver o

_________________________________________________________________________________ 242

157 Ordenações Del-Rei Dom Duarte , ed. cit., pp. 62 e 64. 158 Id., ibidem, Ley bij, p. 166.

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problema social que implicava a dificuldade em prevenir e evitar as desordens e

violências praticadas no reino por um excessivo contingente de bastardos

marginalizados, sobretudo os de origem fidalga.

Conforme salienta Fernão Lopes, o próprio rei João I fora um bastardo

legitimado, recordando como chegara ao mestrado de Avis, apesar da sua não

legitima nascença, se bem que logo acrescente que o mereceu plenamente pelos seus

bons costumes e honroso proveito que dele vinha à ordem.159 Talvez por isso, haja

sido um monarca bastante generoso na concessão de legitimações, tendo deferido ao

longo do seu reinado uma média de quarenta e quatro pedidos anuais, sobretudo

respeitantes a varões e endereçados por eclesiásticos.160

Durante o governo do filho, o rei Duarte, manteve-se e até aumentou a

concessão de cartas de legitimação, tendo então atingido uma média anual de

quarenta e sete. A sua maior parte continua a responder a pedidos feitos pelos

próprios pais, relativamente a varões, talvez devido ao facto de se referirem a filhos e

filhas menores à data da legitimação, apenas surgindo um caso solicitado por um

avô e dois casos remetidos pessoalmente pelos indivíduos a agraciar, sendo ainda

única a situação de um Joane, cuja mãe se chamava Constança Vasques e a quem

nom lhe sabem pay.161.

Muito parcas quanto a informações sobre as funções, ocupações ou

profissões dos legitimados, talvez devido à sua provável menoridade, as cartas de

legitimação do rei Duarte registam, contudo, a presença de cavaleiros, escudeiros,

criados, tabeliães, corregedores e ouvidores. Mais abundantes, as notícias sobre as

ocupações dos familiares, sobretudo as dos pais, remetem, quer para o mundo dos

religiosos e dos clérigos, quer para actividades próprias da sociedade dos leigos.

Entre os primeiros, figuram comendadores e freires das ordens religiosas

militares, abades, priores, e, relativamente ao clero secular, sacerdotes e vários

cónegos, incluindo chantres e diversos tipos de raçoeiros. A sua presença entre os

pais de bastardos legitimados revela, em última análise, a preocupação sentida por

muitos clérigos e religiosos em tentar encontrar para os filhos uma alternativa à sua

________________________________________________________________________________________________

243

159 Fernão Lopes, Crónica de D. Pedro, ed. António Borges Coelho, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, cap. XLIII. 160 Valentino Viegas, Subsídios para o estudo das Legitimações Joaninas (1383-1412), Póvoa de Santo Adrião, Heuris, 1984.

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mais que provável marginalização social, mais não seja porque globalmente

apontados como "fruto nascido do pecado, do erro e da luxúria".162 De facto, se a

legitimação permitia frequentemente aos varões vir a abraçar uma vida religiosa ou

eclesiástica bem apoiada e preparada pelos pais, facultava às raparigas, através da

promoção de casamentos com prósperos artesãos ou funcionários da administração

local e central, a possibilidade de passarem a integrar o grupo das elites das vilas e

cidades do reino.163

Quanto aos progenitores leigos, encontram-se representados, para além de

alguns cavaleiros, escudeiros e um ou outro prestigiado profissional urbano, como

sucede relativamente aos físicos, muitas funções e ocupações próprias do

funcionalismo régio ou concelhio, sendo esse o caso dos procuradores, corregedores,

tesoureiros, tabeliães, porteiros, contadores ou ouvidores. Na sua maior parte

registam-se na condição de solteiros, entre os quais se contam pais de mais de um

filho tido numa164 ou em duas mulheres,165 sendo também esse o estado civil

referenciado, embora numa muito mais alta percentagem, para as mães dos

legitimados. Já no que diz respeito aos pais e mães mencionados como sendo

casados, existe uma grande diferença, visto que se entre os homens se encontra nessa

situação um razoável grupo (42% dos pais para quem é assinalado o respectivo

estado civil), entre as mulheres não existe um único exemplo, apenas havendo o

registo, para além das solteiras a que se pode associar a referência, a três freiras e a

uma viúva.

Fazendo uma análise global, geral e numérica dos legitimados e respectivos

pais, podemos estabelecer os seguintes quadros e gráficos:

_________________________________________________________________________________ 244

161 Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, vol. I, tomo 2, (1435-1438), ed. Centro de Estudos His-tóricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1998, p. 445. 162 Sónia Maria Teixeira, A Vida Privada entre Douro e Tejo: Estudo das Legitimações (1433-1521), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1996 (Tese de Mestrado), p. 260. 163 Isabel Queirós, Theudas e Mantheudas A criminalidade feminina no reinado de D. João II através das cartas de perdão (1481-1485), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999 (Tese de Mestrado), p. 42. 164 Vejam-se as cartas de legitimação de Pero Vaasquez e Catelina Vaasquez, ambos filhos de Joham Vaasquez, tesoureiro da moeda, e de Aldonça Gomez: Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, vol. I, Tomo 2, ed. cit., pp. 52 e 53. 165 Nas cartas de legitimação de Gill e Diego, menciona-se serem filhos do procurador da corte, Gill Gomcaluez e de, respectivamente, Catelina Esteuez e Briatiz Annes : Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, vol. III, ed. Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2002, pp. 315-316.

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QUADRO IV : ESTADO E SITUAÇÃO FAMILIAR DOS BASTARDOS LEGITIMADOS PELO REI DUARTE 166

SEXO PAI MÃE

Ano M F Total Clero Leigos Não espec.

Soltei-ro

Casa-do

Não espec.

Soltei-ra

Não espec.

Viúva

1433 20 9 29 21 5 3 2 3 28 1 1434 28 11 39 33 3 3 1 2 34 5 1435 34 25 59 37 22 18 2 2 56 2 1 1436 21 16 37 22 12 3 5 7 36 1 1437 24 16 40 33 7 2 4 1 38 2 1438 23 9 32 21 7 4 2 4 1 31 1 Total 150 86 236 167 56 13 30 22 4 223

________________________________________________________________________________________________

245

12 1

GRÁFICO Nº 1 : SEXO DOS BASTARDOS LEGITIMADOS PELO REI DUARTE

20

9

28

11

34

2521

16

24

16

23

9

0

5

10

15

20

25

30

35

1433 1434 1435 1436 1437 1438

sexo masc. sexo fem.

150

86

sexo masc. sexo fem.

GRÁFICO Nº 2: ESTADO E SITUAÇÃO FAMILIAR DOS PAIS DOS BASTARDOS LEGITIMADOS PELO REI DUARTE

71%

24%

5%

CleroLeigosNão espec.

54%39%

7%

SolteirosCasadosNão espec

166 Estudo feito com base nas Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, ed. Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1998-2002.

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No seu conjunto, os legitimados por agraciamento do rei Duarte apontam

para bastardos cujos pais pertenciam em grande parte ao mundo letrado das vilas e

cidades do reino, quer por serem clérigos, quer por maioritariamente integrarem os

quadros do funcionalismo régio ou concelhio. Bem familiarizados com os meandros

jurídicos e detentores de razoáveis bens patrimoniais, eram eles, afinal, os principais

progenitores dos beneficiados pelas legitimações régias, nomeadamente os rapazes,

que assim lhes viam ser abertas as portas de acesso à herança familiar dos seus pais

visto que, no caso das raparigas, muito menos contempladas, nem sempre os valores

masculinos que dominavam a sociedade e a mentalidade medievais, facilmente

moviam o interesse paterno capaz de as libertar das amarras da condição de

bastardas.

Sendo assim, perante a globalidade dos filhos que eram juridicamente

deserdados por ilegitimidade, dos quais se excluíam, como já referimos, os bastardos

das muitas vilas e cidades estremenhas, alentejanas e algarvias que se regiam por

costumes derivados dos forais de Coimbra, Lisboa e Santarém, poucos seriam, na

verdade, os beneficiados pelas legitimações régias. Com efeito, a maioria dos filhos

espúrios do reino não deve ter beneficiado dos favores do rei nem do empenho dos

pais para a sua legitimação. Muitos, certamente, permaneceriam bastardos, para não

manchar o bom nome e a reputação familiar dos pais, continuando, por isso, a viver

até à morte sob o estigma da bastardia.

Paralelamente ao enunciado das condições e das vias processuais pelas quais

as crianças podiam ou deviam aceder à herança familiar, a lei e a jurisprudência

medievais portuguesas também se preocuparam com o caso concreto do salvaguardar

do património a receber pelos filhos menores a quem falecera um ou os dois

progenitores, isto é, pelos órfãos. Nos costumes locais de Riba Coa, considerados por

José Mattoso como exemplo da manutenção de um direito familiar tradicionalmente

cognático,167 conserva-se o princípio de que a protecção e gestão dos bens a herdar

pelos órfãos menores deveria ser partilhada pelo conjunto dos parentes

consanguíneos e a fins, escolhendo-se entre eles o que mais ferecesse quando esse

património, devidamente arrolado, fosse posto em almoeda pelo representante local

do monarca, o alcaide da povoação.

_________________________________________________________________________________ 246

167 José Mattoso, "Notas sobre a estrutura da família medieval portuguesa" in ob. cit., ed. cit., pp. 395-398.

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PROTEGER ____________________________________________________________________________________________________

De facto, mesmo que um dos progenitores da criança permanecesse vivo não

lhe era imediatamente reconhecido o direito a exercer as funções de gestor e

protector dos bens a herdar pelo filho, só o podendo fazer se oferecesse tanto como

o que fora avançado pelo parente que antes arrematara essa posição.168 De resto,

mesmo nesse caso, previa-se uma nova intervenção do colectivo dos parentes se a

gestão dos bens da criança tivesse ficado nas mãos de uma mãe viúva que se voltasse

a casar, devendo ser então repetida a almoeda do património do órfão de pai para se

poder encontrar um novo gestor familiar para a sua herança, no pressuposto da

necessidade de salvaguardar os direitos da criança perante os interesses de um

padrasto estranho à respectiva parentela.169

Nos costumes e foros da Guarda, textualmente próximos, como já

mencionámos, dos das povoações de Riba Coa, embora mais tardios e, por isso,

melhor adaptados à progressiva afirmação da autoridade pública na gestão concelhia,

já não se prevê uma tão forte tutela familiar sobre a gestão dos bens dos órfãos,

atribuindo-se ao alcaide local a defesa de qualquer molher uiuua ou de orphao que

non á V anos,170 pelo que se considera caber ao representante local do poder régio a

vigilância e a protecção dos direitos dos órfãos de pai que antes haviam tido nos

parentes familiares a sua principal salvaguarda, sendo, por outro lado, omissa a

referência a uma necessária interrupção materna da custódia dos filhos órfãos de pai

por ocasião de um seu novo casamento. Na verdade, progressivamente, a legislação e

a jurisprudência do reino acabaram por quase inverter o sentido das normas previstas

nos foros e costumes locais de Riba Coa.

________________________________________________________________________________________________

247

168 Fillos ó fillas que orfanos remansieren que non han XV annos, suos parientes metan sua bona en almoneda com padre ó con madre, e quien mas bien les fesiere esse los tome: e tanto por tanto padre ó madre los tenga si quesiere, e moble estê en moble e eredat en eredat:."Costumes e Foros de Castelo-Melhor" in Portvgaliae Monvmenta Historiae, ed. cit., p. 914. Passagem paralela nos Foros de Alfaiates e de Castelo Bom: ibidem, p. 799 e 754. 169 Neste caso, torna-se nítida, tanto a aplicação do princípio da troncalidade como também a norma de se reservar aos dois grupos de parentes do órfão o exercício de uma vigilância permanentemente exercida para garantir os direitos dos seus sucessores comuns, conforme também se manifesta em outros foros e costumes locais de Riba Coa quando se determina que à manceba orphana los parentes de ambas partes la cassen: "Foros de Castelo Bom" in Portvgaliae Monvmenta Historiae, Leges et Consuetudines, ed. cit., p. 752, com passagem paralela nos "Foros de Castelo Melhor" in ibidem, p. 912. 170 "Costumes e Foros da Guarda" in Portvgaliae Monvmenta Historiae, Leges et Consuetudines, ed. cit., p. 13.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

Nos tempos de Afonso V, por exemplo, os juristas da corte justificaram a

decisão régia de confirmar a entrega da custódia da herança de seis enteados ao

cavaleiro Álvaro de Penedo, um escudeiro do herdeiro da coroa, em nome do amor

que ele tiinha aa dicta sua molher e pello conseguinte aos dictos horfãaos,

considerando, nesse sentido, que eles assim seriam melhor criados e repairados de

todo o que lhes mester fezesse do que no caso de virem a ser colocados em poder

doutra pessoa alguua, 171 ou seja, mesmo que tal função viesse a recair nalguns dos

seus parentes paternos ou maternos.

Entretanto, também a autoridade pública começava a sobrepor-se à familiar

no caso da vigilância do respeito pelo património a herdar pelos órfãos de mãe,

quando era o pai a exercer a respectiva guarda e gestão, mesmo que uma tal actuação

parental fosse pouco reivindicada, não existindo, na verdade, qualquer norma

jurídica que previsse a intervenção dos familiares por ocasião de um novo casamento

do pai.172 Deste modo, conforme se depreende do texto de uma recomendação feita

pelo rei Pedro I aos alvazis dos ovençais de Lisboa, tratava-se sobretudo de intervir

publicamente para que fossem respeitados os direitos dos órfãos menores à herança

materna, sendo então denunciada a situação de que pais não davam a esses filhos

partiçom dos beens que ficarom per mortes das dictas suas madres e conto e recado

delles em cada anno, recusando-se a admitir que eram theudos de o fazer e

reivindicando poderem comer e danjficar esses beens se o quisessem. Ora, segundo a

decisão atribuída ao soberano, não só deveriam ser obrigados pelos seus funcionários

concelhios a logo partir os beens que aujam com as madres dos órfãos mal elas

morressem, como a fazê-los anotar em liuro de tabeliom, de forma a que se saybham

quantos e quaaes são, para assim evitar que os danjfiquem nem straguem emquanto

em seu poder estiverem os filhos menores. Recomendava ainda o monarca deverem

ser esses bens apregoados de forma a prevenir que ninguém comprasse os beens de

raiz que assy ficarem aos meores sem mandado das Justiças.173

Contudo, ainda que a intervenção dos familiares tendesse cada vez mais a ser

substituída pela acção reguladora da autoridade pública, é certo que em ambos os

_________________________________________________________________________________ 248

171 Citado por Luís Miguel Duarte, Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 612. 172 Veja-se, por exemplo: Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro III, Título da guarda dos orphãos e de seus aueres, p. 221. 173 Chancelarias Portuguesas. D. Pedro I, ed. Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, I.N.I.C., 1984, pp. 211-212.

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casos predominava o princípio de confiar a guarda dos bens dos órfãos menores de

pai ou de mãe ao progenitor vivo, sem que, sobretudo no primeiro caso fosse muito

contestada a permanência dessa função, em virtude da ocorrência de um posterior

casamento. De facto, conforme salienta Stéphane Boisselier, são muito raros os casos

em que alguém se identifica documentalmente como enteado de outrém.174

No entanto, a situação é diferente no que respeita a órfãos menores de pai e

de mãe, crescendo então o protagonismo das autoridades públicas em ordem à

salvaguarda dos direitos das crianças à herança familiar, nomeadamente quando não

existissem parentes próximos que estivessem interessados ou fossem capazes de

exercer uma tutoria, assumindo-se, portanto, como responsáveis pela família jurídica

em que passariam a ser criados os pequenos, até que a maioridade lhes permitisse

administrar os bens a herdar, uma vez deduzidas as despesas gastas com o seu

sustento e formação. À partida, o problema encontrava-se automaticamente resolvido

se as funções de tutor fossem assumidas perante os juizes locais por quem fora

nomeado para tal no testamento do pai ou da mãe dos órfãos. Porém, na falta de um

tutor testamentarius, haveria que seguir dois caminhos: ou instituir oficialmente um

parente mais próximo como o tutor legitimus, ou proceder-se à nomeação de um

tutor dativus, expressamente designado pelo juiz local.175

Em todos os casos deveria o tutor ser de XX anos almeos, creodo e cordo e

de boo testimonho e auerudo, 176 especificando as Ordenações Del-Rei Dom Duarte

que, para além de assesegado E de boa fama ainda possuísse algo em tall guissa que

seja pera jsso. Exigia-se-lhe, também, Jurar primeiramente cumprir as obrigações

inerentes a essa função e apenas receber os bens do órfão depois de os haver

discriminado per escripto. Esse documento deveria ser depois entregue aos órfãos

quando atingissem a maioridade, deãte o alcayde e os omees boos, junto com o conto

dos fruytos que ende recebeo o tutor.177

No seu conjunto, todos estes procedimentos e decisões promoveram a

necessidade de existência de um funcionalismo jurídico-administrativo especializado

e conhecedor dos respectivos meandros legislativos, processuais e contenciosos.

________________________________________________________________________________________________

249

174 Stéphane Boisselier, Naissance d'une identité portugaise. La vie rurale entre Tage et Guadiana de L'Islam à la reconquête (Xe. – XIVe. Siècles), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999, p. 246. 175 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey..., ed. cit., Partida Sexta, Título 16, Ley 2. 176 Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro IV, Título XXI.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

Assim, nos grandes concelhos urbanos foram então surgindo os chamados juizes dos

órfãos cujo exemplo mais precoce são os que se documentam para Lisboa a partir de

1299.178

Paralelamente, a legislação concelhia passou a conceder um maior relevo ao

exercício das funções dos juizes dos órfãos. Nos costumes e foros de Beja, por

exemplo, fixa-se como sua principal obrigação

fazer uiir os tetores perdante sy e rreceberem lho conto e rrecado do auer

que teuerem dos horffaoos, para que huum tabalyam ou huum escripuam

jurado dado pello conçelho fizesse escrepuer toda a rreçepta e a despeza

pollo meudo por tall que os horffaoos nom aiam erro.

Por outro lado, para além da tarefa de

dar tetores aos orffaoos que os nom teem, também lhes são assinaladas as

funções de dar quitaçoees aos que derem boom conto e meter outros tetores e

tyrar os que o forem sse mester fezer, devendo para tudo isso, o escripuam ou

tabalyam organizar anualmente huum liuro onde se registe todo esto

estremado dos horphaoos. 179

Face à complexidade de todo este processo, nem sempre os tutores

designados pelos juizes dos órfãos assumiam de bom grado o exercício das suas

funções. Nos tempos do rei Duarte, por exemplo, Pedro Anes, caramixeiro da

cidade de Évora, obteve do monarca, por intermédio do escrivão da puridade do

soberano, o privilégio de vir a ser escusado de um tal cargo, mesmo sendo o

parente mais achegado do órfão a tutorar.180

De acordo com as actas das vereações concelhias medievais hoje

conservadas, os juizes dos órfãos, a quem se exigia bomdade e boãa discriçam,

_________________________________________________________________________________ 250

177 Ordenações Del-Rei Dom Duarte, ed. cit., Constituçom.xxijj, pp. 138-139. 178 Marcelo Caetano, A administração municipal de Lisboa durante a 1ª dinastia, Lisboa, Horizonte, 1990, p. 39. Veja-se também, do mesmo autor, História do direito português (1140-1495), Lisboa, Verbo, 1981, p. 321. 179 "Costumes e Foros de Beja" in Portvgaliae Monvmenta Historiae, Leges et Consuetudines, ed. cit., p. 73. 180 Chancelaria Portuguesas. D. Duarte, vol. III, ed. cit., p. 30. O mesmo soberano, aliás, chegou a promulgar privilégios colectivos onde explicitamente se concedia a isenção de tutorias, como sucedeu relativamente aos Privjlegios dos reguengueyros da terra de Refoyos ou aos Priujllegios dos lauradores e caseiros do conde d aRayollos: Chancelaria Portuguesas. D. Duarte, vol. I, Tomo I, ed. cit., pp. 90 e 116, respectivamente.

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iniciavam as suas funções após jurarem sobre os Santos evangelhos ir cumprir o seu

cargo bem e derreytamente como compre a servjço de Deus,181 sendo o seu ofício

considerado suficientemente importante para que, relativamente ao Porto, se

nomeasse um juiz provisório até que o efectivo se encontrasse em condições de o

poder vir a desempenhar,182 talvez devido ao facto de nessa cidade se considerar

possível o exercício vitalício de um tal cargo.183 Pelo contrário, em concelhos

urbanos de muito mais reduzidas dimensões, como o do Funchal, o juiz dos órfãos

exercia um mandato trienal,184 ou o de Loulé, para o qual se documenta a eleição

anual de um tal magistrado.185

Contudo, apesar de tais diferenças, os juizes dos órfãos dos três concelhos

apresentam-se socialmente próximos, remetendo, de uma forma global, para

representantes das elites locais, sejam económicas, como a que corresponde ao

mercador que exerceu o cargo em Loulé,186 sejam de serviço, como teria ocorrido

relativamente ao tabelião, ao escrivão e ao vereador a quem tal ofício competira no

Porto187 e no Funchal,188 ou de função, no caso dos cavaleiros que o desempenharam

em todos estes concelhos,189 registando-se para a cidade portuense a ocupação do

ofício por parte de um escudeiro do rei.190 Neste sentido, talvez se possa então

concluir que o exercício concelhio do cargo de juiz dos órfãos era suficientemente

prestigiado e lucrativo para não só ser pretendido e disputado ao mais alto nível

social local, como até sujeito a pressões ou intervenções da coroa no sentido de vir a

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251

181 Vereações da Câmara Municipal do Funchal (século XV), ed. José Pereira da Costa, Centro de Estudos de História do Atlântico, Região Autónoma da Madeira, 1995, pp. 101 e 237. 182 "Vereaçoens", anos de 1401-1449 in O segundo Livro de Vereações do Município do Porto, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1980, pp. 392-393. 183 Rui Vasquez, juiz dos órfãos, aja o Regimento do dito oficio per a cidade e que vago o dito oficio per morte do dicto Rui Vasques que fique aa cidade como dantes avia: "Vereaçoens", Anos de 1431- -1432, XLIV, ed. João Alberto Machado e Luis Miguel Duarte, Porto, Câmara Municipal do Porto, 1985, p. 129. 184 Vereações da Câmara Municipal do Funchal (século XV), ed. cit., p. 101. 185 "Actas da vereação de Loulé (séculos XIV-XV)", ed. Luís Miguel Duarte, Separata da Revista al'-ulyã, nº 7, Loulé, 1999/2000, pp. 80, 116 e 174. 186 "Actas da vereação de Loulé (séculos XIV-XV)", ed. cit., p. 80. 187 Sobre o escrivão e o vereador do Porto que exerceram tal função: "Vereaçoens", Anos de 1401- -1449 in O segundo Livro de Vereações do Município do Porto, ed. cit., p. 393 e "Vereaçoens", Anos de 1431-1432, ed. cit., p. 42. 188 Vereações da Câmara Municipal do Funchal (século XV), ed. cit., p. 101. 189 Para Loulé e Funchal, respectivamente, "Actas da vereação de Loulé (séculos XIV-XV), ed. cit., p. 174 e Vereaçoens da Câmara Municipal do Funchal (século XV), ed. cit., p. 237. 190 "Vereaçoens", Anos de 1401-1449, O segundo Livro de Vereações do Município do Porto, ed. cit., p. 392.

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ser desempenhado, a título compensatório ou promocional, por homens da criação ou

da confiança política do monarca.

De facto, parece ser esse o sentido das várias confirmações feitas pelo rei

Duarte à manutenção das funções de juizes dos órfãos, quer por parte de cavaleiros

criados em sua casa, como sucedia ao de Avis, que acumulava esse ofício com o

desempenho local das funções de scpriuam de todollos fectos dos Judeus e mouros

que som auudos por orfaãos,191 quer por parte dos que já as exerciam nos tempos do

pai, o monarca João I, compreendendo, para além de um mercador que as assegurava

em Melgaço,192 o caso de dois cavaleiros que haviam sido criados pelo anterior

soberano, relativamente a, em simultâneo, Almada e Viana do Alentejo e, do mesmo

modo, a Alcáçovas e Alvito, ambos em acumulação com os também lucrativos

cargos de juizes locais dos judeus e das sisas.193 Também como escrivão dos órfãos

em Montemor-o-Novo, se conhece a nomeação de um "criado" do rei Duarte que,

durante o período em que ocupou o cargo, adquiriu várias propriedades agrícolas no

termo da vila.194

Assim sendo, tanto o conhecimento de situações relacionadas com o

exercício fraudulento do cargo, conforme teria ocorrido no Porto, quando a vereação

concelhia se viu obrigada a substituir o juiz João Anes por culpas em algumas

cousas nos dictos ofiçios por que os devia perder,195 como o facto de a coroa haver

sido várias vezes forçada a reiterar e a especificar os procedimentos jurídicos

destinados à salvaguarda judicial dos bens a herdar pelos órfãos, seriam reveladoras

da circunstância de um tal cargo tender a ser disputado e exercido mais pelas

vantagens económicas a retirar de um desempenho tendencioso e corrupto do que

para assegurar o cumprimento correcto das normas relativas à prestação de tutorias.

A denúncia social de uma tal realidade levou o rei Duarte, pese embora a sua

quota de responsabilidade na mesma, a promulgar tanto a hordenaçom que obrigava

os Juízes E escprivaaes dos horfoons a mostrar os seus Livros e a dar boa

emformaçom do que lhes fosse requerido pelos contadores das comarcas do reino,196

_________________________________________________________________________________ 252

191 Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, vol. III, ed. cit., p. 147. 192 Id., ibidem, respectivamente, pp. 135, 168 e 342. 193 Id., ibidem, pp. 168 e 342. 194 Jorge Fonseca, Montemor-o-Novo no século XV, Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, 1998, p. 87. 195 "Vereaçoens", Anos de 1401-1449 in ob. cit., ed. cit., pp. 392-393. 196 Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, vol. II, "Livro da Casa dos Contos", ed. Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1999, p. 176.

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como a que encarregava os corregedores das comarcas de fiscalizar o correcto

cumprimento dos actos e dos preços fixados nos Regimentos régios que regulavam o

exercício das suas funções, respondendo, neste último caso, a queixas expressas

pelos procuradores dos concelhos nas cortes celebradas em Évora, no ano de 1436,

sobre o arbitrário aumento dos emolumentos pedidos pelos juizes dos órfãos, assy

dos auentairos como das contas das almoedas. 197 Desconhecemos o resultado

prático de tais medidas.

Entretanto, desde os tempos do rei Dinis, avançava a legislação relativa ao

exercício das tutorias, fixando-lhe deveres, responsabilidades e prazos. Entre os

primeiros, salientava como competia aos tutores, em paralelo com as obrigações

de alimentar, vestir e proteger os órfãos, zelar para que eles adquirissem os

fundamentos de uma cultura letrada, ou seja, as capacidades de ler, escrever e contar,

e fossem iniciados na aprendizagem de qualquer ofício.198 Entre as

responsabilidades, enunciava-se como função dos tutores, responder judicialmente

pelo não pagamento da tributação devida pelos rendimentos obtidos com a gestão

dos bens dos órfãos, nomeadamente o dyzymo de quanto elles ouuere per razõ de seu

trabalho,199 e pelas consequências criminais de uma gestão danosa ou fraudulenta,200

assim como sempre diligenciar para a anulação de qualquer sentença injustamente

proferida contra os menores a seu cargo. 201

Quanto à questão da duração das tutorias, se sempre foi mantida a norma de

deverem cessar quando os órfãos atingissem os catorze anos para os rapazes e os

doze para as raparigas, ou seja, a maioridade, assistiu-se a alguma variabilidade

legislativa no que se refere ao momento em que poderiam tomar posse efectiva do

património sob tutoria. Com efeito, nos tempos de Afonso IV alterou-se o costume

de os órfãos apenas entrarem na posse plena dos bens tutorados aos vinte e cinco

anos, baixando-se para os vinte a idade em que podiam prescindir de um curador que

________________________________________________________________________________________________

253

197 Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, vol. I, Tomo 2, ed. Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1998, p. 393. 198 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey..., ed. cit., Partida Sexta, Título 16, Ley 16. 199 "Costumes e Foros de Santarém" in Portvgaliae Monvmenta Historiae, Leges et Consuetudines, ed. cit., p. 38. 200 Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro IV, Título XXI. 201 Ordenações Afonsinas, ed. M. J. Almeida Costa e E. Borges Nunes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, Livro IV, Título CXXVI, pp. 451-455.

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lhes guarde E procure os sseus beens E faça as outras cousas que a elles conprir,

salvo em aquelles casos que de direjto podem E deuem d’auer.202

Mais tarde, os juristas do rei Afonso V introduziram novas alterações.

Fixaram os vinte e os dezoito anos para, respectivamente, os rapazes e as raparigas

poderem solicitar a entrega dos bens tutorados e estabeleceram como condição para

essa transferência serem eles achados de boo cizo e descriçaõ, em tal guiza que

rezoadamente os possam bem reger e ministrar, conforme seria atestado pelos juizes

dos locais onde moravam e detinham os bens. Contudo, mesmo assim, mantinham-

se os vinte e cinco anos para o órfão poder dispor livremente dos bens herdados de

raiz, visto só então poderem por ele ser vendidos ou empenhados, no todo ou em

parte, sob pena de o contrato vir a ser objecto de anulação jurídica.203

A minuciosa regulamentação da questão da salvaguarda do património

familiar a herdar e a preservar pelas crianças mereceu ainda especiais atenções

processuais no âmbito da legislação relativa ao adultério e à adopção. No primeiro

caso, houve a preocupação de regulamentar, relativamente à situação da molher

casada cu marido alheo, não poder o marido da molher vir a deserdar os filhos

legítimos que dela tivera, sendo eles os verdadeiros garantes da continuidade do

património familiar a defender.204

Quanto à adopção, o enunciado dos direitos a garantir às crianças perfilhadas

surge no contexto de nelas poder vir a recair a transmissão de bens familiares

carentes de qualquer sucessão legítima. Com efeito, estando vedado à mulher o

direito de perfilhar, salvo no caso de ter perdido algum filho em batalha ao serviço

do rei, ou por expressa autorização do monarca,205 tratava-se de uma matéria jurídica

quase só regulamentada na qualidade de processo destinado a validar a transmissão

de um património sem herdeiro, permitindo ao varão que o possuía receber e herdar

por filho quem bem entendesse, desde que haya poder naturalmente de engendrar,

habiendo sus miembros para ello, y no siendo tan de fria naturaleza por la que se lo

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202 Ordenações Del-Rei Dom Duarte, ed. cit., pp. 421-422. 203 Ordenações Afonsinas, ed. cit., Livro III, Título CXX, pp. 431-433. 204 Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro IV, Título dos adultérios, p. 277. Sobre a problemática jurídica do adultério na Idade Média, veja-se Amélia Andrade, Teresa Teixeira, Olga Magalhães, "Subsídios para o estudo do adultério em Portugal no século XV" in Revista de História, Porto, 5, 1984, pp. 93- -129. 205 Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro IV, Título XXI e Las Siete Partidas del Rey, ed. cit., Partida Cuarta, Título 16, Ley 2.

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impida. Teria ainda de escolher para adoptado alguém de cuja idade podesse auer

por filho, dado se conceber o recebemeto do filho semelhauil aa natura. 206

Neste contexto, a antiga e conservadora legislação local da região de Riba

Coa apenas se limitava a exigir que a perfilhação fosse conhecida e testemunhada

pela comunidade, bastando que qualquer ome qui quisier fazer fillo ou filla ou fillos

ou fillas o declarasse pos exida de missa matinal en domingo ou en sabado a las

uiesperas en collacion de uilla.207 Mais preocupada em prevenir conflitos e litígios, a

lei geral do reino acabou, no entanto, por regulamentar a crise de transmissão do

património familiar que poderia ser aberta pela morte do adoptado ou do adoptando,

impondo as normas de que a morte de cada um deles implicaria, respectivamente, o

direito à sua herança por parte dos parentes biológicos mais próximos e a sua

partilha entre a família natural, a quem ficaria reservada a quarta parte da herança, e

o perfilhado.208

Em suma, se a criança surge mencionada em muitas das leis e sentenças

produzidas pelo direito medieval português, apresenta-se quase sempre na qualidade

de perturbadora ou de garante de um património familiar mais valorizado e protegido

do que ela própria. Com efeito, enquanto elemento de um grupo de parentesco cuja

coesão se pretende proteger e salvaguardar na e pela herança, a criança tende a

diluir--se como pessoa jurídica, sendo remetida para um colectivo geracional de

filhos a quem a lei declarava obligados a amar e a temer os pais.209

No entanto, por vezes, sobretudo no campo do direito penal canónico ou

civil, a criança merece um tratamento diferenciado. De facto, Luís Miguel Duarte ao

investigar a criminalidade infantil no Portugal do século XV, menciona que a

pequena hidade das crianças, embora não as impedindo de ser judicialmente

declaradas culpadas, e como tal punidas, funciona muitas vezes na condição de

atenuante em relação às penas a que são condenadas. É esse, por exemplo, o caso de

um menino de sete ou oito anos, a quem o rei livrou da prisão, que numa das suas

brincadeiras acertou acidentalmente com uma pedra num primo da mesma idade,210

________________________________________________________________________________________________

255

206 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey..., ed. cit., Partida Cuarta,Título 16, Ley 2. 207 "Costumes e Foros de Castelo-Rodrigo" in Portvgaliae Monvmenta Historiae, Leges et Comsue-tudines, ed. cit., Livro IV, p. 868. Passagem paralela nos "Costumes e Foros de Castello-Melhor": ibidem, p. 914. 208 Afonso X, Foro Real, ed. cit., Livro IV, Título XXII, p. 305. 209 Alfonso el Sabio, Las Siete Partidas del Rey..., IV, ed. cit., Título 19, Leis 1 e 2. 210 Luís Miguel Duarte, ob. cit., ed. cit., p. 277.

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ou, já no campo dos manuais de confessores, a circunstância de a penitência

recomendada por furto para os moços menores, ser de V dias en pan e augua, uma

pena bastante inferior à sugerida para os adultos culpados de idêntico pecado.211

Noutros casos referidos por Luís Miguel Duarte, as penas aplicadas aos

delinquentes infantis não tiveram em conta quaisquer atenuantes etárias. De facto,

nem uma criança de nove anos que, também por acidente ocorrido em jogos infantis,

provocara a morte de uma de seis, deixou de ser condenada ao degredo por dois anos

para terra estranha, nem houve qualquer hesitação em decretar cinco anos de

trabalhos forçados em Ceuta para um jovem que, após ter provocado a morte do

irmão no decorrer de uma nova brincadeira, já estivera fugido em Castela por quatro

anos, sendo estas duas crianças órfãs de pai por altura do acidente. 212

De resto, no âmbito de uma discutível pedagogia criminal preventiva, até se

aplicavam às crianças penas superiores às sentenciadas para os adultos julgados

culpados por idênticos delitos. Na legislação concelhia de Lisboa, por exemplo, se se

reservava aos ladrões menores de idade a pena de vir a ser meetido no collar e

preguado pellas orelhas durante huua ora pera o verem os outros pelo simples roubo

de uuas ou fruyta, estipulava-se que aos adultos culpados pelo mesmo crime se

aplicasse uma multa acompanhada ou não pela exposição no colar, conforme a sua

menor ou maior condição social.213

_________________________________________________________________________________ 256

211 O Penitencial de Martim Pérez em Medievo-Português, ed. Mário Martins, Lisboa, 1957, p. 46. 212 Luís Miguel Duarte, ob. cit., ed. cit., pp. 276-278. 213 Livro das Posturas Antigas, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1974, p. 94. Citado e comen-tado por Iria Gonçalves, “Na Ribeira de Lisboa, em finais da Idade Média” in Um olhar sobre a cidade medieval, Cascais, Patrimonia Histórica, 1996, p. 74.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

6 ADOECER Desear los fijos parescen engaños

Porque sus dolores son nuestro dolor, E todos sus daños nuestro mesmo daño. Mirad, pues, que gozo nos da su amor, Mirad que plazer, mirad que dulçor Es tener com muchos muy grandes amores, Porque nos den vida com muy más sudo Y los sus delictos immensos dolores.

Garcia de Resende1

As doenças marcaram decisivamente os quotidianos das

crianças medievais, tal como o revelam os estudos

paleobiológicos feitos com base na análise de esqueletos

arqueologicamente recuperados em vários cemitérios dessa

época, ou as menções contidas em muitos tratados médicos e

textos hagiográficos então redigidos.

1 – TESTEMUNHOS

De entre todas estas referências, as mais objectivas são as fornecidas pelos

paleobiólogos, visto se basearem na identificação das doenças evidenciadas pelos

esqueletos das crianças que delas padeceram e cujos ossos conservaram os respectivos

efeitos.2 A utilização histórica dos dados facultados pela paleobiologia tem, no entan-

to, algumas limitações, sobretudo no que respeita à avaliação da mortalidade infantil.

Por um lado, porque nos informam sobre um número relativamente reduzido de não

sobreviventes a determinada doença. Por outro, porque a análise osteológica não

permite detectar todas as doenças, nomeadamente as de evolução fulminante e

1 Garcia de Resende, Cancioneiro Geral, I, ed. A. J. Costa Pimpão e A. Fernandes Dias, Coimbra, Universidade, 1973, p. 100. 2 Partindo do princípio que o osso encerra em si a memória dos acontecimentos passados e do comportamento das suas células até ao momento da morte, o esqueleto constitui, assim, a ponte entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos : Eugénia Cunha, “Contribuição da Paleobiologia para o Conhecimento dos Habitantes da zona de Corroios (Seixal) nos séculos XV e XVI" in Al-madan, IIª série, 4, Almada, 1995, pp. 34 e 39.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

as contagiosas que não chegam a afectar e marcar os ossos do esqueleto, sendo essa,

de resto, a situação de muitas mortes acidentais que carecem de qualquer registo

osteológico.3

Mesmo assim, tendo em conta a progressiva quantidade dos vestígios

osteológicos analisados e as suas mais comuns patologias, os estudos

paleobiológicos começam a permitir formular algumas conclusões seguras sobre as

doenças infantis no período medieval. Uma delas diz respeito à frequência das

anemias durante a infância e a adolescência.4 Outra, a elas associada e decorrente

das inúmeras hipoplasias lineares do esmalte dentário verificadas em muitos dos

esqueletos analisados, tem a ver com a frequente existência, entre os dois e os seis

anos de idade, de doenças provenientes de subnutrição geradas por fomes, afecções

ou agressões ambientais, doenças infecciosas ou mudanças alimentares inadequadas

durante a fase do desmame.5 As também muito presentes reacções periósteas,

resultantes da presença de membranas fibrosas que revestem a superfície externa dos

ossos, 6 revelam ainda a comum ocorrência de múltiplas infecções não específicas

que podem também ter contribuído para a morte de crianças muito novas,7 seja a

partir de lesões nos tecidos moles adjacentes ao osso, implicando a prévia existência

de traumas e úlceras na pele, tanto hemorrágicas como crónicas, seja pela acção da

osteomielite, ou ainda pela manifestação de uma qualquer doença generalizada.

De uma forma geral, a ocorrência de elevados índices de mortalidade entre a

população infantil de idades compreendidas entre os dois e os quatro anos - sendo

__________________________________________________________________________________ 258

3 Sobre estas limitações e respectiva bibliografia, consulte-se Sónia Codinha, Uma necrópole medieval em Serpa: contribuição para o estudo de indivíduos não adultos, Coimbra, Departamento de Antropologia, 2001 (Relatório de Investigação), pp. 20-21 e Eugénia Cunha, "Paleobiologia, História e Quotidiano: critérios da transdisciplinaridade possível" in Amélia Aguiar Andrade e José Custódio Vieira da Silva (coord.), Estudos Medievais, Lisboa, Horizonte, 2004, pp. 132-134. 4 Cf. Eugénia Cunha, “Contribuição da Paleobiologia para o Conhecimento dos Habitantes da zona de Corroios (Seixal) nos séculos XV e XVI", ed. cit., p. 39 e “Populações medievais portuguesas (séculos XI-XV). A Perspectiva Paleobiológica", in Arqueologia Medieval, 5, Mértola, ed. Afrontamento, 1997, pp. 71 e 77. 5 Veja-se, por exemplo: Eugénia Cunha, Cláudia Umbelino e Teresa Tavares, "A necrópole de S. Pedro de Marialva – Dados antropológicos" in Património. Estudos, Instituto Português do Património Arqueológico, Lisboa, 2001, nº 1, p. 143; Marta Reis, Sónia Codinha, Ferreira et al, Un necrópolis medieval en Serpa: analisis paleobiológico, Póster apresentado no XII Congreso de la Sociedad Española de Antropologia Biológica, Universidade Autónoma de Barcelona, 2001. 6 Eugénia Cunha, Cláudia Umbelino e Teresa Tavares, ob. cit., ed. cit., p. 143. 7 Na necrópole de Corroios, por exemplo, foi exumada uma criança que terá morrido entre os seis e os doze meses de idade apresentando reacções periósteas a nível das mastóides: Eugénia Cunha, “Contribuição da Paleobiologia para o Conhecimento dos Habitantes da zona de Corroios (Seixal) nos séculos XV e XVI", ed. cit., p. 39.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

esse o caso, por exemplo, de 70% das crianças exumadas na necrópole medieval de

Serpa8 - coloca o fim da amamentação como um período particularmente ameaçador

para a saúde dos meninos e meninas, visto coincidir com o desencadear de infecções

gastrointestinais e respiratórias próprias de organismos cujos sistemas digestivos

revelariam grandes dificuldades para a adaptação a um novo, e muitas vezes mal

preparado, regime alimentar. De resto, a má nutrição, associada a febres e diarreias,

seria, por certo, uma das principais responsáveis pelas doenças infantis. Por um lado,

porque a sua insuficiência qualitativa e, sobretudo, quantitativa conduzia ao

enfraquecimento e à debilitação do sistema imunitário que, por sua vez, tornava a

criança mais susceptível ao desencadear de infecções; por outro, porque estas, ao

dificultarem a ingestão e a reabsorção dos nutrientes e minerais essenciais ao

desenvolvimento da criança, ainda mais lhe diminuíam as suas já reduzidas

capacidades de sobrevivência.9

No seu conjunto, todos estes e outros graves problemas de saúde infantil, não

deixam de figurar na tratadística médica medieval peninsular, como ocorreu,

exaustivamente, nos manuais de pediatria e obstetrícia hispano-árabes. Com efeito,

neles se contêm vários conselhos e terapêuticas destinadas a evitar as então

consideradas mais frequentes doenças das sucessivas etapas do desenvolvimento

infantil, desde o nascimento até ao aparecimento da dentição definitiva.

No que respeita aos primeiros tempos de vida da criança, durante os seus

quarenta dias após o nascimento, alerta-se para os perigos das aftas na boca ou na

língua, dos vómitos e da tosse. As aftas e os vómitos atribuem-se a problemas de

nutrição, surgindo explicados pelo facto de a criança ter passado a ser alimentada

pela boca em vez de o ser através do cordão umbilical, sendo esta nova porta de

entrada dos alimentos mais frágil e mais dificilmente controlada do que a primeira.

Quanto à tosse, chama-se a atenção para a necessidade de conservar o bebé num

ambiente pouco seco e de temperatura amena, elucidando-se como ele, ao nascer,

havia perdido o calor e a humidade do ventre materno, não tendo a sua língua ainda

________________________________________________________________________________________________ 259

8 Maria Teresa Ferreira e Eugénia Cunha, Les enfants médiavaux de Serpa, Comunicação apresentada na 1827.e Réunion Scientifique de la Société d'Antropologie de Paris, Paris, Museu Nacional de Historia Natural, 2002. 9 Maria Teresa Ferreira, As crianças moçárabes de Serpa: análise paleobiológica de uma amostra de esqueletos exumados da necrópole do loteamento da zona poente de Serpa, Coimbra, Departamento de Antropologia, 2000 (Relatório de Investigação), p. 13; Sónia Codinha, ob. cit., ed. cit., pp. 25-26.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

atingido a força capaz de proteger a garganta contra o ar frio que lhe entrava até aos

pulmões e lhe provocava a tosse.

Para além destas perturbações, também se relacionava o começo da vida das

crianças com uma temível propensão para a insónia e para os terrores nocturnos,

duplamente atribuídos à influência de um estômago pesado por uma amamentação

excessiva. Nesse sentido, não só era aconselhada a diminuição da quantidade de leite

a ingerir pelo lactante, como era sugerido à ama tudo fazer para melhorar a

respectiva qualidade, nomeadamente a prática de passeios destinados a fazer baixar

os humores corrompidos que havia no leite por ela produzido. Recomendava-se,

também, dever sempre manter-se junto da criança água com violetas cozidas para

que, ao respirar o seu aroma, se sentisse tranquila, ou, ainda, untar-lhe o nariz com

azeite de violetas misturado com um pouco de açafrão.

Preocupantes nesses primeiros meses de vida eram ainda as doenças

originadas por diversas infecções, como as do umbigo, agravadas com os gritos e o

choro dos recém-nascidos, e tratadas através de pensos de clara de ovo sobre ele

colocados durante três dias, ou as dos ouvidos, as dolorosas otites, atribuídas ao

excesso de humores existente no cérebro da criança desta idade, e cuja cura

implicaria colocar, sobre as orelhas, uma esponja de lã embebida em água e mel.

Também as inflamações provocadas pela comichão e pelo ardor das pústulas e

erupções surgidas na cabeça do bebé eram temidas. Para este caso, receitava-se uma

papa feita da mistura de vários produtos naturais a colocar sobre a cabeça rapada do

bebé. Ordenava-se, ainda, a quem o amamentava, abster-se dos alimentos quentes

que queimavam o sangue e amareleciam o leite.

Por fim, entre as deformações físicas que também então podiam ocorrer na

criança, chamava-se a especial atenção para o perigo de se vir a manifestar a

hidrocefalia, considerada como provocada pela acumulação de ar espesso entre a

membrana da cabeça e o crânio. Para a tratar, receitava-se a administração, por via

nasal, de um azeite de jasmim, nardo ou amêndoas. Após o enunciado da

sintomatologia, etiologia e até terapêutica de todas estas primeiras doenças, os

obstetras e pediatras hispano-árabes passavam a centrar-se nas perturbações de

saúde correspondentes a uma segunda etapa do crescimento infantil, ou seja, a que

terminava cerca dos sete meses de idade, com o aparecimento e consolidação da

primeira dentição. Aliás, é sobretudo a propósito do desencadear e da consolidação

__________________________________________________________________________________ 260

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

ADOECER _________________________________________________________________________________________

desta última ocorrência que eles desenvolveram a análise das doenças a então

prevenir e combater, antes de mais porque todas elas teriam origem no inchaço das

gengivas, nomeadamente as febres e as convulsões decorrentes das infecções das

feridas abertas pelo constante coçar dos respectivos pruridos e comichões. Ora, como

medida preventiva a utilizar, aconselhava-se, então, uma rápida propiciação do

romper dos dentes. Por um lado, aliviando a pressão provocada pelas mamadas sobre

as gengivas, devendo aquelas ser mais espaçadas e rápidas. Por outro, fornecendo ao

corpo maior energia e vitalidade, quer através de frequentes banhos quentes, quer por

via da utilização de unguentos destinados a massajar as gengivas. Caso, entretanto, já

se tivessem manifestado dores, infecções e febres, haveria que lhe reduzir a

alimentação, para além de manter sempre junto da criança murtas regadas com água,

para que lhe chegasse a respectiva frescura e perfume. Aconselhava-se, ainda, a

quem lhe dava o peito, prescindir de comer carne, beber vinho, tomar banhos quentes

ou fazer esforços que produzissem demasiado calor. Quanto às infecções

desencadeadas pela ulceração das feridas, muitas vezes acompanhadas por cólicas e

diarreias, e quase sempre conducentes à progressiva debilitação da criança,

aconselhava-se uma multiplicidade de mezinhas, desde emplastros, beberagens,

pílulas e pós a tomar tanto pelo lactente como pela mulher que o amamentava.

Paralelamente, também se atribui às sequelas do aparecimento da primeira

dentição, a possibilidade de se virem a produzir lesões no cérebro ou nos órgãos dos

sentidos, alertando-se, então, para o despiste da epilepsia e do estrabismo. Este

último, uma vez confirmado, implicava desde logo uma intervenção correctora,

sugerindo-se manter todas as noites diante dos olhos da criança, uma lamparina

acesa, um pouco desviada para o lado esquerdo se o estrabismo fosse do lado direito

e vice-versa.

Passados os tempos da primeira dentição, os pediatras hispano-árabes

consideravam que a saúde das crianças podia vir a ser gravemente ameaçada quando

elas começavam a falar ou deixavam a amamentação. O primeiro caso era por eles

associado à possibilidade do aparecimento de tumores na garganta ou deformações

ósseas produzidos pelo recuo das vértebras occipitais, arrastando consigo os

músculos inflamados para a parte anterior do pescoço. De acordo com a medicina

antiga, pensava-se que esta deformação era produzida pelo início da fala, visto que

esta, dada a suposta necessidade de um aumento da cavidade bucal para permitir uma

________________________________________________________________________________________________ 261

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

mais ampla movimentação da língua, implicava a deslocação das amígdalas em

direcção à nuca, deixando, assim, de exercer a sua função de filtrar os humores dos

resíduos de sangue existentes na cabeça.10

Menos teóricas e especulativas, as doenças relacionadas com um deficiente

desmame infantil referem-se, sobretudo, a patologias dos sistemas urinário e

digestivo. Os problemas renais encontram-se mencionados a propósito dos cálculos

obstrutivos, para cuja eliminação se aconselha, entre outras terapêuticas, banhos de

água quente duas vezes por dia. Relativamente ao aparelho digestivo citam-se as

parasitoses intestinais a propósito do aparecimento de lombrigas, supostamente

originadas pela putrefacção dos alimentos no estômago, e as alergias, descritas por

via das borbulhas, úlceras, verrugas e furúnculos que se espalhavam pelo corpo, e

que seriam devidas ao roçar da roupa e à corrupção do leite que tardaria a ser

abandonado como nutriente das crianças.

De resto, passada a etapa da aquisição de uma dentição definitiva, os tratados

de pediatria hispano-árabes tornam-se muito lacunares e evasivos, apenas registando

a possibilidade de as crianças poderem vir a ser perturbadas por asma, conjuntivites,

febres agudas, varíola ou sarampo, para cuja terapia aconselham o exame e a

consulta de um clinico geral. Entramos, assim, rapidamente nos domínios da

medicina para adultos, defrontando-nos com manuais e tratados que deixam de se

interessar pelas crianças.11

__________________________________________________________________________________ 262

10 Sobre a herança greco-latina da medicina hispano-árabe, bem assim como os seus progressos e inovações, veja-se Julio Samsé, Las ciencias de los antiguos en Al-Andalus, Madrid, MAPFRE, 1972, especialmente as pp. 110-124. 11 Sobre a etiologia e a terapêutica das doenças infantis referenciadas pela medicina pediátrica hispano-árabe, consulte-se o enciclopédico El libro de la generation del feto, el tratamiento de las mujeres embarazadas y de los recien nacidos de Árib Ibn As'id (Tratado de Obstetricia Y Pediatria hispano árabe del siglo X), ed. Antonio Arjona de Castro, Córdova, 1983, pp. 119-165.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

2 – MILAGRES

Para de novo nos situarmos no campo das doenças infantis temos então que

abandonar as certezas dos paleobiólogos e as referências contidas nos textos dos

médicos letrados hispano-árabes. Passaremos, de facto, a inquirir o difícil mundo dos

livros de milagres medievais portugueses, onde, entre os séculos XII e XV, se

compilaram várias dezenas de registos relativos às crianças doentes a quem os santos

teriam devolvido a saúde.

Muito atentos à recolha de testemunhos reveladores dos poderes

taumatúrgicos dos santos, os livros de milagres medievais portugueses reflectem, no

seu conjunto, uma sociedade para a qual a saúde e a doença se equacionavam em

termos de graça ou punição divinas, concebendo-se o corpo são ou enfermo na

qualidade de espelho de uma boa ou má alma. Neste contexto, dado que os males do

corpo traduziriam os efeitos de um castigo lançado pela divindade aos pecados

individuais ou sociais cometidos pelos crentes, as respectivas terapêutica e cura

implicavam o exercício de uma medicina simultaneamente física e espiritual, tal

como era de facto praticada pelos médicos-sacerdotes presentes nas comunidades das

grandes instituições eclesiásticas, sobretudo entre as que atraíam um grande número

de devotos em busca das protecções dispensadas pelas relíquias aí conservadas.12

Ora, sendo duplamente formados na aprendizagem escolar letrada dos saberes

medicinais herdados da Antiguidade e no conhecimento das práticas litúrgicas

destinadas à salvação e purificação penitencial das almas, eram os próprios médicos-

sacerdotes que atribuíam a reposição da saúde num corpo doente a uma medicina

miraculosa, feita através de votos, orações, promessas e rituais dirigidos aos santos e

às suas relíquias pelos peregrinos que, discretamente, assistiam nos hospitais e

albergarias existentes junto aos santuários de romaria.13 Numa sociedade marcada

por uma alimentação desequilibrada e frequentemente escassa, por deficientes

práticas higiénicas, pela ignorância de preceitos e regras rudimentares e por um

generalizado imaginário de culpa e de angústia face ao desencadear das doenças, os

santuários funcionavam então como os lugares onde mais facilmente se poderiam

encontrar os remédios e as intervenções que a medicina doméstica tradicional não

________________________________________________________________________________________________ 263

12 Jean-Claude Schmitt, "Corps malade, corps possédé" in Le corps, les rites, les rêves, le temps. Essais d' anthropologie médiévale. Paris, Gallimard, 2001, pp. 319-343.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

permitia resolver,14 já que o recurso aos físicos e boticários profissionais, que apenas

se encontravam disponíveis nas grandes cidades da Baixa Idade Média, era uma

solução difícil e dispendiosa. A sua relativa escassez fazia mesmo com que o rei e os

grandes senhores tendessem a fixá-los ao serviço das suas cortes.15

Conscientes então que a fama das curas milagrosas constituía um meio

bastante eficaz para captar devotos, os livros de milagres dão um grande relevo ao

respectivo registo, embora a sua frequência e desenvolvimento textuais variem em

função da maior ou menor antiguidade do culto que procuravam difundir e das

capacidades letradas dos seus redactores para expressarem por escrito o resultado de

uma eventual observação presencial ou os pormenores das circunstâncias da

respectiva ocorrência, quando provenientes de informações transmitidas oralmente

pelos romeiros e peregrinos dos santos. Conforme salienta Pierre-André Sigal, são

sobretudo os livros de milagres relativos a cultos então bastante activos e em expan-

são que concedem um maior relevo aos milagres de cura, já que se podem socorrer

mais facilmente das notícias veiculadas pelos agraciados vindos aos santuários em

cumprimento das promessas devidas pela recuperação da saúde, ou para

simplesmente testemunhar gratidão pelo desaparecimento de algum mal corporal.16

Contudo, mesmo assim, nem sempre as doenças das crianças miraculadas

surgem bem individualizadas ou descritas. Por um lado, nota-se a tendência para

apenas desenvolver as informações relativas a doenças pouco frequentes e que, por

isso, melhor podiam prestigiar os poderes taumatúrgicos dos santos. Por outro, os

males dos miraculados surgem quase sempre referenciados mais em função das suas

consequências físicas, sobretudo as corporalmente deformantes, do que da sua

precisa etiologia ou até sintomatologia, sendo frequente o uso de expressões do tipo

não poder caminhar sem ser sobre as mãos e os joelhos 17 ou encontrar-se tão

__________________________________________________________________________________ 264

13 Marie-Christine Pouchelle, Corps et chirurgie à l' apogée du Moyen Age. Savoir et imaginaire du corps, Paris, Flammarion, 1983. 14 Sobre este tema, consultem-se: A. H. de Oliveira Marques, “A Higiene e a Saúde” in A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1974, pp. 87-104; José Mattoso, “Saúde corporal e saúde mental na Idade Média” in Fragmentos de uma Composição Medieval, Lisboa, Ed. Estampa, 1993, pp. 233-252. 15 Sobre o exercício profissional da medicina, veja-se Iria Gonçalves, "Físicos e Cirurgiões quatrocentistas. As cartas de exame" in Imagens do Mundo Medieval, Lisboa, Horizonte, 1988, pp. 9--52. 16 Pierre-André Sigal, L'homme et le Miracle dans la France médiévale (XIe – XIIe siécle), Paris, Les Éditions du CERF, 1985, pp. 311-312. 17 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ed. Aires Nascimento e Saúl António Gomes, S. Vicente de Lisboa e seus Milagres Medievais, Lisboa, Didaskalia, 1988, p.71.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

enfermo da boca que não comia.18 De facto, entre os milagres infantis

considerados, apenas no relativo a huma grande inchação na cabeça de um menino,

para a qual se informa não haver remedio que lha modificasse ou resolvesse,

aparece referenciada uma possível causa, citando-se, na opinião dos medicos, dever

proceder de figado abrazado e corrupto.19

De uma forma geral, confirmando o apreço dos livros de milagres pelas

doenças infantis corporalmente deformantes e de difícil solução clínica, as maleitas

referenciadas tendem a identificar-se com enfermidades de longa duração, presentes

desde o nascimento, facto que poderia estar relacionado com as difíceis e demoradas

situações do parto,20 ou a partir dos primeiros meses de vida da criança. De facto,

quando se encontra expressa a antiguidade da doença (Gráfico nº 3), a maioria das

notícias referencia males originados antes dos dois anos de idade, sendo provável

que essa primeira infância também situe as doenças ditas padecidas há muito tempo.

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GRÁFICO Nº 3 - ANTIGUIDADE DAS DOENÇAS DOS MIRACULADOS

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TEMPO

Contudo, se as curas infantis se encontram presentes em praticamente todos

os registos de milagres medievais portugueses, nem sempre figuram com a mesma

intensidade. Com efeito, se tivermos em conta a cartografia dos valores referenciados 18 Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, I, Lisboa, 1745, p. 512. 19 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, p. 238. ________________________________________________________________________________________________ 265

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

para os principais centros de peregrinação do reino (Mapa 1 – Milagres de Cura de

Crianças), ressalta a tendência para um seu maior protagonismo nos santuários da

Baixa Idade Média onde então se afirmaram cultos que disputavam devotos aos que

já antes se haviam confirmado local ou regionalmente.

Para Lisboa, por exemplo, é essa a situação do culto prestado a Nuno Álvares

Pereira no convento de Nossa Senhora do Carmo relativamente aos que há muito

eram reservados a S. Vicente e a S. Veríssimo na Sé catedral e no mosteiro de

Santos.21 Em Coimbra, por sua vez, as curas infantis obtidas por intercessão dos

Mártires de Marrocos, cujas relíquias se conservavam no convento de Santa Cruz,

começaram a suplantar, desde o reactivar quatrocentista do seu culto, as antes

credenciadas à rainha Santa Isabel, sepultada no muito próximo mosteiro de Santa

Clara.22 Por fim, no Entre Douro e Minho, se, durante o século XII e os começos do

XIII, eram as curas obtidas através do culto a S. Rosendo que suplantavam em

número as atribuídas aos santos minhotos de devoção mais antiga, nota-se, a partir

do século XIV, a progressiva afirmação dos milagres em crianças que seriam devidos

à intercessão de Nossa Senhora da Oliveira, o santuário que, em Guimarães,

começava a disputar a Celanova a fama e o prestígio da produção de tais graças.23

__________________________________________________________________________________ 266

20 Vidé capítulo NASCER. 21 Gilberto Moiteiro, "Da Lisboa de Nun' Álvares à Lisboa do Santo Condestável. Uma nova devoção na cidade dos reis de Avis" in A Nova Lisboa Medieval, Lisboa, Núcleo Científico de Estudos Medievais, (no prelo). 22 Luís Krus, "Celeiro e relíquias – o culto quatrocentista dos mártires de Marrocos e a Devoção dos Nús" in Passado, Memória e Poder na sociedade medieval portuguesa. Estudos, Redondo, Patrimónia, 1994, pp. 149-170. 23 Cristina Célia Oliveira Fernandes, "O Livro dos Milagres de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães" in Lusitânia Sacra, Lisboa, 13-14, 2002, pp. 597-608.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

MAPA 1 - MILAGRES DE CURA DE CRIANÇAS

Rates (São Pedro) Guimarães (N. Sª da Oliveira)

Amarante (S. Gonçalo)

Coimbra (Santa Isabel)

Basto (Santa Senhorinha)

Santarém (S. Frei Gil)

Aveiras (N. Sª das Virtudes)

Lisboa (Nuno Álvares Pereira)

Terena (Nossa Senhora)

Braga (S. Geraldo)

Celanova (S. Rosendo)

Rio Mondego

Rio Douro

Rio Tejo

1 - 56 - 9

10 - 20+ 20

Lisboa (S. Vicente)Lisboa (S. Veríssimo)Lisboa (Bom Jesus)

Coimbra (Mártires de Marrocos)

________________________________________________________________________________________________ 267

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

De resto, tanto nos mais recentes como nos mais antigos livros de milagres

medievais portugueses, a geografia da morada das crianças miraculadas também

funciona como meio destinado a celebrar o poder taumatúrgico dos santos e cultos

propagandeados. Alguns desses textos mostram-se sobretudo interessados em

registar as curas das crianças que moravam em povoações situadas perto ou nas

cercanias do santuário a celebrar, definindo, portanto, uma estratégia de desvio dos

peregrinos frequentadores dos templos situados numa mesma disputada área

populacional, já que a notícia da ocorrência de muitos desses milagres de cura

infantil permitia captar a devoção das várias famílias frequentemente atingidas pela

doença de algum dos seus mais jovens membros. A maior parte dos livros de

milagres mostra-se, no entanto, mais interessada em registar a memória de como a fé

nas virtudes taumatúrgicas dos seus santos, relíquias ou cultos motivara a

organização de longas e dispendiosas viagens dos acompanhantes das crianças que

só nesses santuários haviam encontrado remédio para os seus males. Nesse sentido,

conforme revela o Mapa 2 (Geografia da Morada das Crianças Miraculadas),

distinguem-se sobretudo os cultos a S. Vicente e a Santa Senhorinha de Basto, já que

a fama dos milagres por eles obtidos a favor das crianças doentes teriam motivado a

organização familiar de viagens extremamente longas e morosas, como as que se

conta haverem sido efectuadas pelos acompanhantes de, respectivamente, o menino

que, proveniente de Guimarães, só se curara de febres em Lisboa,24 e os de uma

criança natural de Zamora, a quem os pais tiveram de transportar até às terras de

Basto para a livrar de uma paralisia,25 tendo ambas as deslocações implicado um

percurso de 5 ou 6 dias de jornada.26

__________________________________________________________________________________ 268

24 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente" in ob. cit., ed. cit., p. 53. 25 "Vida da Bem Aventurada Virgem Senhorinha", ed. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, in Vida e Milagres de S. Rosendo, Porto, 1970, p. 143. 26 O cálculo dos dias de jornada necessários ao cumprimento das deslocações mencionadas é meramente aproximativo, tendo como base a média diária de 40 Km (cf. Iria Gonçalves, "Viajar na Idade Média: de e para Alcobaça na primeira metade do século XV" in Imagens do Mundo Medieval, ed. cit., p. 194) e um cômputo de distâncias apenas feito a partir da escala do mapa 2, sem ter em conta, portanto, a histórica realidade da rede dos caminhos medievais.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

ADOECER _________________________________________________________________________________________

MAPA 2 - GEOGRAFIA DA MORADA DAS CRIANÇAS MIRACULADAS

________________________________________________________________________________________________ 269

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

Noutros livros de milagres, a referência a tais percursos situa-se, porém, num

contexto de cumprimento de promessas e acções gratulatórias, ou seja, mencionando

viagens efectuadas aos santuários dos santos e das devoções por cujas intercessões se

havia desencadeado a cura das crianças. Assim, por exemplo, tanto os milagres

atribuídos ao conimbricense culto da rainha Santa Isabel, como os relativos à lisboeta

devoção de Nuno Álvares Pereira, reivindicam curas que haviam sucedido em Évora,

respectivamente, a um moço a quem uma sanguessuga entrara pelo nariz,27 e a uma

menina cega,28 ambas tendo sido obtidas através de promessas feitas pelos

respectivos pais. Aliás, num outro contexto geográfico, o mesmo teria ocorrido, desta

vez por intercessão de Nossa Senhora das Virtudes e de S. Frei Gil de Santarém,

relativamente a, por ordem de referência, uma criança cega que vivia na

transmontana povoação de Murça, curada através de uma graça obtida por promessa

feita pelo pai,29 e a um minino de Vouzela, a quem uma sua tia encomendara ao

santo escalabitano, para o salvar de morrer afogado num tanque.30

Em suma, conforme observa Finucane, cada santuário desenhava a sua

própria mistura de peregrinos, recorrendo, para esse efeito, à redacção dos livros de

milagres.31 Assim, se estas fontes nos podem fornecer importantes informações

sobre a natureza e a frequência das doenças infantis mais temidas pela sociedade

medieval portuguesa, torna-se necessário ter em conta como veiculam dados a

contextualizar em função dos objectivos da sua escrita, partindo do princípio de que,

por um lado, tendem a privilegiar a memória das doenças cuja cura se revelava mais

difícil e menos esperada, e que, por outro, raramente racionalizam as respectivas

origens e sintomatologias. Como salienta André Vauchez, “[...] nous ne saisissons

jamais les miracles à l’état brut" visto apenas termos acesso a "ceux que les clercs

ont jugés dignes d’être notés par écrit."32 Mesmo desses, de resto, pouco sabemos do

que teria acontecido à saúde das crianças que haviam beneficiado de um milagre, já

__________________________________________________________________________________ 270

27 Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, Lisboa, 1869/70, vol. 7, p. 57. 28 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 502. 29 Frei João da Póvoa, "Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes", ed. F. Correia, in Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, 3, nº 1, 1988, pp. 7-42. 30 Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit, pp. 231-232. Todos estes milagres serão referidos mais pormenorizadamente no decurso deste capítulo. 31 Ronald C. Finucane, Miracles and Pilgrims. Popular Beliefs in Medieval England, Totowa, Nova Jersey, Rowman and Littlefield, 1977, pp. 142-143. 32 André Vauchez, La Sainteté en Occident aux Derniers Siècles du Moyen Age, Roma, Escola Francesa de Roma, 1988, p. 545.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

que os autores das fontes hagiográficas nada mais contam do que histórias bem

sucedidas e, de certo modo, exemplares.

3 – AS CRIANÇAS MIRACULADAS

A idade das crianças agraciadas com a cura dos seus males só muito

raramente surge minimamente precisada nos livros de milagres medievais

portugueses - apenas em 12% dos 146 casos registados – prevalecendo, portanto, a

sua menção através de um léxico cujo elenco e dificuldades semânticas já atrás

referimos.33 Quando expressamente mencionada, essa idade revela-se bastante

diversificada (Gráfico nº 4 - Idade em que as Crianças Miraculadas Adoeceram), ao

contrário, aliás, do que se verifica através da análise do mesmo tipo de fontes, para

outras regiões da Cristandade medieval, onde, de acordo com Finucane, se observa a

prevalência da menção de crianças com menos de 4 anos. 34

0

1

2

MER

O D

E C

RIA

AS

-1 1 2 3 4 5 6 7 8 11 12 13 14IDADE

GRÁFICO Nº 4 - IDADE EM QUE AS CRIANÇAS MIRACULADAS ADOECERAM

RapazesRaparigas

33 Vidé capítulo DIFERENCIAR.

________________________________________________________________________________________________ 271

34 Ronald C. Finucane, The Rescue of the Innocents Endangered Children in Medieval Miracles, Nova Iorque, St. Martin's Press, 2000, p. 97. Sabemos, no entanto, e conforme já foi referido anteriormente serem os primeiros anos de vida os mais perigosos. O gráfico não inclui os casos de complicações no parto nem os nados mortos referidos no capítulo NASCER. Se isso acontecesse, a percentagem de crianças com idade inferior a um ano aumentaria significativamente.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

Se considerarmos o conjunto das idades de –1 a 14 anos, verificamos como

no caso português só não se registam situações para os 9 e para os 10 anos, estando

todas as outras idades presentes sem grandes variantes de montante. Nesse sentido,

parece que os livros de milagres medievais portugueses transmitem a preocupação de

recordar como os santos e os cultos que enaltecem se revelariam eficazes para a cura

das doenças das crianças de qualquer idade, reflectindo, desse modo, um contexto de

ampla rivalidade entre vários centros de peregrinação no que respeita à disputa de

devotos.

Na sua totalidade, o processo conducente à cura dos moços, moças, jovens,

crianças ou filhos e filhas de alguém que se encontram referidos nos livros de

milagres medievais portugueses é atribuído à iniciativa dos respectivos pais e

parentes próximos, fosse porque se lhes credita a decisão de os levar até aos

santuários onde eles teriam recuperado a saúde, fosse porque, para a obter, haviam

invocado a especial protecção de um santo ou culto taumatúrgico, conforme se pode

observar no Quadro V - Contexto Familiar dos Milagres de Cura das Crianças.35 De

facto, só em muito poucos casos, e sempre após um prévio pedido feito por

intervenção dos pais, é que se noticia terem as crianças solicitado elas próprias a

graça da sua cura.36

__________________________________________________________________________________ 272

35 Para a elaboração deste Quadro considerou-se um conjunto de 166 registos de milagres, dos quais se excluíram, à partida, os relativos a ressurreições. Devido à imprecisão da linguagem utilizada no texto dos livros de milagres, nem sempre é possível determinar com rigor se o milagre envolveu ou não a peregrinação das crianças a um santuário. Nos casos em que se utilizam para os terceiros, as expressões encomendou, ofereceu e pôs na criança qualquer substância ou objecto a funcionar como relíquia, optou-se por excluir a possibilidade de uma romagem directa; esta hipótese foi considerada quando, a propósito da produção do milagre, se noticia como alguém prometeu levar o agraciado a um santuário ou se informa haver sido desencadeada a cura a partir de algo que, devidamente acompanhado, o miraculado foi buscar ou trouxe de um templo. 36 Referem-se os casos de um menino de três anos de idade e de uma menina de sete, com os rostos deformados, que foram colocados pelos pais junto às relíquias de S. Vicente e ensinados a rezar e a pedir saúde: Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ob. cit., ed. cit., respectivamente, pp. 45 e 49.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

QUADRO V - CONTEXTO FAMILIAR DOS MILAGRES DE CURA DAS

CRIANÇAS

ACOMPANHAMENTO DAS CRIANÇAS PEREGRINAS

PEDIDO DE INTERVENÇÃO MIRACULOSA

TOTAIS

PAI

MÃE

PAIS

32

21

12

30

25

4

62

46

16

65 59 124

AVÔ

AVÓ

TIO

TIA

IRMÃO

2

2

2

_

1

__

1

__

1

__

2

3

2

1

1

7 2 9

MULHER

AMA

VIZINHA

1

__

__

2

1

1

3

1

1

1 4 5

TOTAIS 73 65 138

No caso das deslocações aos santuários, a companhia e as iniciativas

atribuídas aos adultos resultam naturais, visto qualquer viagem medieval que

envolvesse um percurso a fazer em mais de uma jornada quase sempre implicar uma

protectora caminhada em grupo. Na verdade, sempre que os livros de milagres

relatam a deslocação a qualquer santuário de uma criança depois miraculada,

referenciam como aí fora conduzida quer pelos progenitores, nomeadamente o pai,

dada a menor mobilidade materna existente na sociedade medieval, quer, muito

secundariamente, por parentes próximos, como os avós, tios ou irmãos, neles talvez

se incluindo a rara referência às mulheres com quem, casualmente, também teriam

peregrinado, conforme se encontra expresso no Gráfico nº 5 - Acompanhantes das

Crianças Peregrinas.

________________________________________________________________________________________________ 273

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

GRÁFICO Nº 5 - ACOMPANHANTES DAS CRIANÇAS PEREGRINAS

44%

29%

16%

10% 1%

Pai Mãe Pais Parentes Outros

Contudo, mesmo no que respeita às curas milagrosas obtidas para as crianças

a pedido de outrém, regista-se um idêntico contexto devocional familiar, tal como se

representa no Gráfico nº 6 - Iniciativa dos Pedidos para a Produção dos Milagres das

Crianças. As frequências das iniciativas atribuídas ao pai e à mãe aparecem agora

mais equilibradas, visto, neste caso, o protagonismo materno não implicar a prática

de uma qualquer difícil ausência doméstica. O mesmo acontece com a presença de

outras mulheres próximas da criança miraculada, sejam suas parentes próximas,

como as avós ou as tias, sejam da sua criação ou convívio, sendo esses os casos das

amas e vizinhas, as quais, no seu conjunto, apenas se encontram referenciadas nesta

modalidade de registo do desencadear da acção miraculosa.

__________________________________________________________________________________ 274

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

GRÁFICO Nº 6 - INICIATIVA DOS PEDIDOS PARA A PRODUÇÃO DOS MILAGRES DAS CRIANÇAS

46%

38%

6%3% 7%

Pai Mãe Pais Parentes Outros

A valorização textual do contexto familiar das crianças agraciadas permite

ainda utilizar os livros de milagres como fontes susceptíveis de caracterizar

sociologicamente os jovens miraculados, visto consignarem várias informações sobre

a condição, ocupação ou profissão dos respectivos pais e parentes próximos, o que,

no entanto, apenas ocorre em cerca de 28% dos casos em análise. De acordo com os

dados constantes no Quadro VI - Condição e Profissão dos Familiares das Crianças

Miraculadas, ressaltam, desde logo, as origens vilã e urbana da maioria das famílias

das crianças miraculadas, dado a elas corresponderem, em geral, quer os diversos

níveis das funções jurídico-administrativas exercidas pelo funcionalismo referido

através dos almoxarifes, contadores, escrivães, licenciados, procuradores, tabeliães

ou tesoureiros (24% das referências), quer a prática dos ofícios relacionados com o

vestuário (alfaiates, sapateiros), comércio e transportes (mercadores, marinheiros),

serviços (estalajadeiros, coveiros), construção (mestres de obras), alimentação

(vendedor de fruta, carniceiros, hortelãos) e actividades artesanais transformadoras

(ourives, carpinteiros, tanoeiros, cordoeiros e cardadores), num total de 52% de todas

as ocorrências.

Para além disso, se a representatividade das elites político-sociais se revela

claramente minoritária (24%), nela também se incluem, para lá da referência a

elementos oriundos dos grupos senhoriais dominantes (reis, cavaleiros, escudeiros e

vassalos), outros que igualmente remetem para o mundo concelhio, como sejam os

homens bons e os lavradores. Assim sendo, as origens sociais das crianças

________________________________________________________________________________________________ 275

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

miraculadas acabam por apontar, quando expressas, e numa elevada percentagem de

casos, para famílias de devotos urbanos, tal como, na verdade, já testemunhava a

cartografia das povoações localizadas nos antes referidos e comentados Mapas nº 1 e

nº 2, onde surge visível, sobretudo a Sul do Douro e a Norte do Tejo, o protagonismo

das vilas e cidades que uniam os caminhos situados ao longo da faixa sub-litoral

atlântica, ou seja, a rede viária em torno da qual se estruturou e desenvolveu o reino

medieval de Portugal.37

QUADRO VI – CONDIÇÃO E PROFISSÕES DOS FAMILIARES DAS CRIANÇAS

MIRACULADAS

Alfaiate 2 Escudeiro 3 Procurador 1 Almoxarife 1 Estalajadeiro 2 Rainha 1 Carniceiro 2 Homem Bom 2 Rei 1 Cardador 1 Hortelão 1 Sapateiro 3 Carpinteiro 2 Lavrador 1 Tabelião 3 Cavaleiro 1 Licenciado 1 Tanoeiro 2 Contador 1 Marinheiro 1 Tesoureiro 1 Cordoeiro 3 Mercador 1 Vassalo 2 Coveiro 1 Mestre de obras 1 Vendedor de fruta 1 Escrivão 3 Ourives 1 TOTAL

46

Contudo, se todas estas circunstâncias permitem situar entre as comunidades

urbanas da Beira litoral e da Estremadura concelhias uma parte significativa dos

potenciais usufrutuários das curas de crianças fornecidas pelos santuários de

peregrinação, convém salientar como tal imagem pode em grande parte derivar do

tipo de informações prestadas pelos livros de milagres da Baixa Idade Média. Na

realidade, tendo sido efectivamente elaborados em meios sintonizados com a cultura

letrada das vilas e cidades do reino, revelam-se muito mais atentos à necessidade de

registar dados e elementos que apoiem e documentem a credibilidade e exemplar

vocação assistencial das graças apregoadas, até porque disso dependia o sucesso da

disputa de devotos feita entre os muitos templos de romagem, rivais e concorrentes

__________________________________________________________________________________ 27637 Suzanne Daveau, Portugal geográfico, Lisboa, João Sá da Costa, 1995, pp. 102-103.

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entre si, que se iam afirmando nas mais prósperas e povoadas povoações portugue-

sas. De facto, a maior parte dos registos de milagres considerados, cerca de 72%,

tendo sido redigidos em santuários cujos cultos e devoções eram mais antigos ou

rurais, carece de informações relativas à sociologia das crianças agraciadas. Tal, no

entanto, não constitui um obstáculo à consideração de que, progressivamente, fosse

entre a população dos mais dinâmicos e expansivos concelhos urbanos do centro do

país que se tendesse a encontrar os principais utilizadores da medicina miraculosa

fornecida pelos santuários onde actuavam os sacerdotes-médicos.

4 – AS CURAS MIRACULOSAS

De acordo com os livros de milagres, as curas obtidas por intercessão dos

cultos e dos santos caracterizavam-se pelas respectivas rapidez e eficácia, as quais se

opunham à morosidade e às recidivas que eram próprias das obtidas pelo recurso às

medicinas doméstica ou profissional. No fundo, era nisso que residia a

espectacularidade dos milagres. De facto, só por eles se poderia passar, quer pela

experiência de ver uma criança doente logo se transformar numa sã e salva38 e lympa

de tudo,39 recuperando o aspecto de quem, porque recebeo saude,40 de forma inteira

e perfeita,41 adquiriu a graça de um corpo saão,42 quer pelo júbilo de poder

observar como algum pequeno e infeliz paralítico ergueu-se sobre os pés e começou

a caminhar por seu pé, recuperando a vitalidade de antes43 ou como outro voltou

para casa muito alegre e encheu de gosto e prazer toda a sua gente,44 ou ainda a

maravilha de vir a presenciar como as faces deformadas de uma criança de três anos

retomaram a saúde e a formusura de tal modo que nunca depois a delicadeza do

rosto ficou maculado por qualquer traço de doença.45

________________________________________________________________________________________________ 277

38 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ob. cit., ed. cit., p. 47 39 "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa", ed. Mário Martins, in Lavdes & Cantigas Espiritvais de Mestre André Dias, Lisboa, 1955, p. 294. 40 "Milagres de S. Veríssimo", ed. Mário Martins in "A Legenda dos Santos Mártires, Veríssimo, Máxima e Júlia do cod.CV/I – 23 d., da Biblioteca de Évora", in Revista Portuguesa de História, 6, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1964, p.45. 41 "S. Gonçalo de Amarante" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, I, Lisboa, 1869-1870, p. 280. 42 "Livro dos Milagres dos Santos Mártires", ed. Maria Alice Fernandes in Livro dos Milagres dos Santos Mártires. Edição e Estudo, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1988 (Tese de Mestrado), p. 125. 43 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ob. cit., ed. cit., pp. 71 e 69. 44 "S. Pedro de Rates" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, IV, ed. cit., p. 271. 45 Mestre Estevão, "Livro dos Milagres de S. Vicente", ob. cit., ed. cit., p. 45.

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A prodigiosa rapidez com que os milagres permitiriam às crianças doentes

recuperar a saúde encontra-se expressa nos cerca de 70% dos registos em que essa

informação é fornecida, pela majoritária utilização textual (81% dos casos expressos)

do advérbio logo, enfatizando-se, desse modo, como as graças dos santos, desde que

devidamente solicitadas, desencadeariam a cura instantânea dos males corporais. De

resto, conforme se pode observar através do Gráfico nº 7 - Tempo de Manifestação

de um Milagre de Cura, se nem sempre se credencia a produção imediata dos

milagres de cura, apenas se refere haver um deles levado cerca de duas semanas a

manifestar-se,46 já que, para todos os restantes, teria bastado o cumprimento do

prazo máximo de três dias após o respectivo pedido.

Logo

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1 a

3 di

as

1 a

3 di

as

+ de

15

dias

0%

10%

20%

30%

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50%

60%

70%

PER

CEN

TAG

EM

GRÁFICO Nº 7 - TEMPO DE MANIFESTAÇÃO DE UM MILAGRE DE CURA

RapazesRaparigas

TEMPO

A superioridade da medicina miraculosa relativamente a todas as outras, tam-

bém se apresenta sugerida pelo prático silenciamento de qualquer caso de recaída na

doença curada. De facto, nas raras situações em que esta se encontra presente, tratar-

-se-ia de um castigo lançado pelos próprios santos aos que os tinham desrespeitado

ou desconsiderado. Num caso, o de um moçozinho, conta-se como fora por

incumprimento do preceito de sempre trazer ao pescoço huma nomina com terra do

Santo Frei Gil de Santarém, havendo por ele sido curado e protegido das possessões

__________________________________________________________________________________ 27846 "Vida da Bem Aventurada Virgem Senhorinha" in ob. cit., ed. cit., p. 143.

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demoníacas que, ao cabo de hum anno foi novamente atacado pelo maldito.47 Em

dois outros, tanto se relata ser da responsabilidade da mãe de um moço que nom teue

cujdado de comprir o que prometera a Nossa Senhora das Virtudes pela cura do

filho, o facto de este ter tornado a adoecer pior que da primeyra vez, 48 como se

informa haver uma outra mãe cegado novamente por não ter cumprido a vigília que

prometera a S. Rosendo, aquando da cura da endemoinhação do seu filho.49 A maior

parte das curas de crianças mencionadas nos livros de milagres pressupõe um prévio

pedido de auxílio, sendo muito raros os casos em que se refere ter a saúde sido

restabelecida através de um contacto directo com os santos, visto quase todas as

graças por eles obtidas serem realizadas já depois das respectivas mortes. As

excepções dizem respeito à Rainha Santa Isabel e a S. Frei Gil de Santarém, para os

quais se noticia haverem presencialmente curado, respectivamente, a cegueira de

uma criança50 e, entre outros males, os dolorosos inchaços ganglionares do pescoço

de um menino que veio à cela do Santo dizendo a doença que tinha e pedindo para

ele lhe fazer o sinal da Cruz na garganta.51

Contudo, num cenário post mortem, os escritos hagiográficos também

mencionam a presença sobrenatural dos santos por intermédio das visões, em que,

transcendentemente, são referidos a praticar milagres de cura ou a aconselhar algum

familiar das crianças doentes a conduzi-las aos seus santuários. Para a primeira

situação, tanto se refere, entre outros casos, quer ter S. Vicente assim curado uma

menina paralítica de sete anos, que, ao ficar sozinha na Igreja a rezar, teve a visão do

Santo52 quer como Santa Senhorinha o fizera quando aparecera a dois rapazes,

também paralíticos, a quem mandara levantar e andar,53 ou haver S. Rosendo

escolhido essa via para dar a vista a um menino cego.54

Muitas destas aparições visionárias surgem situadas durante o sono dos

doentes. São esses os casos, por exemplo, dos Santos Mártires de Marrocos, quando

________________________________________________________________________________________________ 279

47 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. cit., p. 235. 48 Frei João da Póvoa, " Livro dos milagres de Nossa Senhora das Virtudes", ob. cit., ed. cit., p. 27. 49 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Porto, 1970, pp. 57- - 59. 50 Vida e milagres de D. Isabel, ed. J.J. Nunes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921, p. 32. 51 "S. Frei Gil" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, V, ed. cit., p. 184. 52 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ob. cit., ed. cit., p. 49. 53 "Santa Senhorinha" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, IV, ed. cit., pp. 228-229. 54 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., pp. 95-97.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

teriam curado um moço doente das orelhas ao rodear-lhe o leito em que dormia55 e

de Nossa Senhora das Virtudes, quer ao fazer desaparecer huua aapostemaçom em

hum braço de uma menina de Évora quando esta repousava na sua cama,56 quer ao

escolher o sono de uma criança a quem o braço apodreceo, para, em visão, a socorrer

e sarar.57

Não propriamente como aparição, mas durante o período do sono, ocorreram

ainda os casos de um moço paralítico que a mãe ouviu falar durante a noite em que

foi curado,58 de uma criança endemoinhada que, após se ter deitado sobre o túmulo

do Santo adormeceu suavemente num doce sono, durante o qual o espírito imundo

lhe saiu do corpo59 e de dois rapazes com inchaços que durante a noite colocaram um

pano molhado em água santa sobre o mal e no outro dia estavam curados.60

De facto, mesmo que não sejam textualmente declaradas, as nocturnas e

visionárias intervenções curativas dos santos parecem ser um pressuposto de muitos

milagres, nomeadamente quando estes são referidos como tendo-se manifestado no

outro dia ou na outra manhã, tal como é frequente ocorrer nas narrativas relativas

às curas produzidas por intermédio de Nossa Senhora da Oliveira ou do Santo

Condestável.61 Também tende a ser durante o sono dos familiares das crianças

doentes que se localizam muitas das visões em que os santos teriam aconselhado

uma romaria ou uma peregrinação para a respectiva cura. Entre outros, são esses os

exemplos das mães a quem S. Veríssimo e Nossa Senhora recomendaram,

respectivamente, levar uma filha, doente de uma fístula, ao santuário lisboeta de

Santos62 e acompanhar um filho que estava em coma, devido a uma grande ferida na

cabeça, ao templo mariano das Virtudes.63

Apresentados como ajudas disponíveis, solícitas e infalíveis, os santos

acabam assim por ser uma presença assídua nas narrativas das curas de doenças

__________________________________________________________________________________ 280

55 "Livro dos Milagres dos Santos Mártires", ed. Maria Alice Fernandes, Livro dos Milagres dos Santos Mártires, ed. cit., p. 145; Tratado da vida e martírio dos Santos Mártires de Marrocos, ed. A. Rocha Madahil, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928, p. 74. 56 Frei João da Póvoa, Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes, ed. cit , p. 31. 57 Id., ibidem, p. 31. 58 Id., ibidem, pp. 26-27. 59 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., p. 95. 60 "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa" in ob. cit., ed. cit., pp. 294-295 e "Livro dos Milagres dos Santos Mártires" in ob. cit., ed. cit., p. 159. 61 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 125; Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 515, 524 e 548. 62 "Milagres de S. Veríssimo", ed. Mário Martins, ob. cit., ed. cit., p. 48. 63 Frei João da Póvoa, " Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes" in ob. cit., ed. cit., p. 19.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

infantis dos livros de milagres medievais portugueses, contrastando em atitude e

segurança com os físicos e cirurgiões profissionais, frequentemente apresentados

como um recurso duvidoso e até dispensável. São frequentes, nos livros de milagres,

expressões como despois de tempo, e muito gasto perdido com médicos, ou

desconfiado dos cirurgioes, de poder ter vida, pelo mal naõ obedecer aos remedios,

que se lhe faziaõ ou ainda muitos remedios lhe fizeraõ sem nenhum lhe aproveitar.64

Nos milagres do condestável Nuno Álvares Pereira, por exemplo, a medicina leiga é

apenas referida como anunciadora de que o mal de qualquer jovem doente, depois

miraculado, não tinha cura e que em breves dias morreria,65 chegando mesmo a ser

registado o facto de que todos os médicos de Lisboa haviam confessado desconhecer

qual a doença de tão fatal prognóstico padecida por uma criança que logo se viu

curada pelo simples apelo à intercessão do santo carmelita.66

Mesmo sem qualquer intervenção presencial ou visionária, os santos

continuavam a considerar-se terrenamente presentes e actuantes através das relí-

quias que lhes conservavam e transmitiam os poderes taumatúrgicos, nomeadamente

os despojos corporais cultuados nos santuários de sepultura, os quais, por sua vez,

podiam reproduzir, através da água ou da terra que com eles tivesse sido posta em

contacto, as respectivas virtudes terapêuticas. Aliás, conforme se pode observar no

Gráfico nº 8 - Formas de Desencadeamento das Curas Milagrosas, onde se

encontram explicitados os meios utilizados para activar a produção de milagres de

cura de crianças, o que ocorre relativamente a 135 milagres, a terra e a água que

teriam estado em contacto com a sepultura dos santos, têm um peso muito

significativo nestas curas milagrosas. Se à água e à terra acrescentarmos outro tipo

de relíquias, mais propriamente uma peça de roupa que vestiu o corpo do santo,

________________________________________________________________________________________________ 281

64 Respectivamente:"S. Frei Gil" in Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., p. 221; Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 531-532 e 549 . 65 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 544. 66 Id., ibidem, p. 555.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

constatamos que, no seu conjunto, trazidas ou colocadas directamente no santuário,

definem o mais citado processo de terapêutica miraculosa dos males infantis, ou seja,

35% dos casos referidos.

De facto, em muitos templos de peregrinação do Ocidente medieval,

recomendava-se a aplicação de terra e de água a dispensar pelos guardiães do

santuário, informando-se dever-se a sua eficácia curativa a um prévio contacto com

as relíquias dos santos. Nesse sentido, era especialmente valorizada a água que

supostamente faria parte da utilizada para lavar o cadáver dos corpos santificados,

visto nela se encontrarem dissolvidas as partículas dos respectivos despojos mortais.

A ingerir, a friccionar ou a aplicar sob a forma de emplastros, a água, e também, uma

vez diluída ou directamente espalhada sobre os corpos das crianças doentes, a terra

dos santos, poderiam então ser utilizadas como processo terapêutico feito à distância;

bastava, para o efeito, haverem sido obtidas nos templos por algum dos familiares

dos jovens de saúde abalada, não sendo de excluir que nela encontrassem dissolvidas

ou misturadas outras substâncias de tipo medicinal ou farmacológico, sobretudo no

caso de se tratar de uma água termal.67

No entanto, se a utilização da água e da terra dos santos se encontra registada

nos livros de milagres como terapêutica miraculosa a prosseguir dentro ou fora dos

santuários, a ida directa ao templo em romaria ou, nessa exacta condição, o contacto

físico com a sepultura ou o túmulo do santo não deixam de estar mencionadas em

32% dos casos registados. Pressupondo mais ou menos curtas estadas das crianças

doentes nos santuários, essas deslocações poderiam então beneficiar dos cuidados

discretamente dispensados pelos sacerdotes-físicos ou boticários estabelecidos nos

grandes centros de peregrinações.68

__________________________________________________________________________________ 282

67 Pierre-André Sigal, L’homme et le miracle dans la France médiévale (XIe. et XIIIe. siécles), Paris, Les Éditions du CERF, 1985, pp. 45-67. Sobre as origens cristãs de uma tal prática, consulte-se Aline Roussele, Croire et guérir. La foi en Gaule dans l' Antiquité tardive, Paris, Fayard, 1990. 68 Jean Verdon, Voyager au Moyen Age, Paris, Perrin, 1998, pp. 256-261. Veja-se também Mário Martins, Peregrinações e Livros de Milagres da Nossa Idade Média, Coimbra, Instituto de Estudos Históricos Doutor António de Vasconcelos, 1951.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

ADOECER _________________________________________________________________________________________

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GRÁFICO Nº 8 - FORMAS DE DESENCADEAMENTO DAS CURAS MILAGROSAS

Masculino Feminino

Por fim, refira-se que a encomendação69 das crianças doentes à protecção e às

graças dos santos também ocupa um importante lugar entre as formas de

desencadeamento das curas milagrosas (33% dos casos). Podendo ser feita fora do

santuário, no contexto de uma promessa que, ao ser cumprida, implicava, em geral, o

pagamento de um voto feito em romaria, encontra-se sobretudo referida nos livros de

milagres mais tardios. De facto, o aumento das crianças miraculadas a partir do

século XIV encontra-se bastante relacionado com a circunstância de deixar de ser

necessário visitar o templo do santo para invocar uma cura. Nados mortos, crianças

tolhidas, acamadas ou familiarmente incapazes de se deslocarem puderam, assim,

através de um voto pessoal ou parental, invocar a graça do fim de uma doença e do

seu sofrimento. Os poderes dos santos ganham então universalidade porque menos

ligados a um local único, aquele onde repousam os seus restos mortais.70

69 Devido à imprecisão das fontes foram aqui incluídas as situações referidas como "oferecer", "encomendar", "invocar", "prometer" e "fazer voto".

________________________________________________________________________________________________ 283

70Sobre as origens históricas desta mutação, veja-se André Vauchez, La Sainteté en Occident aux Derniers Siècles du Moyen Age, ed. cit., pp. 519-529. Como diz o autor “Le geste subsiste, mais il ne s’agit plus que d’un rite de satisfaction, nom d’un acte indispensable à la réalisation du miracle”.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

Conforme refere Finucane, numa época de forte mortalidade infantil e de

generalizada crença na ajuda prestada pela divindade aos pecadores, salvar a vida de

uma criança era considerada uma dádiva divina, sendo a fé posta pelos pais nos

poderes intercessores dos santos a quem solicitavam protecção um verdadeiro

princípio de cura, ou mesmo, uma específica terapêutica.71 De facto, quem clamava o

milagre acreditava na sua concretização e interpretava-o como um sinal da acção

divina. A percepção de que ele tinha efectivamente acontecido reforçava a crença

universal no poder curativo dos santos, o que não é de estranhar numa época em que

a medicina profissional ainda pouco tinha para oferecer.72 O milagre integra-se,

assim, na história social, económica, intelectual e literária da sua época, constituindo

um aspecto de uma história mais geral que é a das mentalidades.

Contudo, os livros de milagres medievais portugueses não deixam de

constituir uma fonte preciosa para melhor conhecer as doenças e os males que faziam

parte dos quotidianos infantis desse tempo, tanto no que diz respeito à sua tipologia

como à respectiva prevalência. Tendo como horizonte metodológico as tipologias

desenvolvidas por Pierre-André Sigal e José Mattoso, 73 passaremos então a analisar

as principais doenças que os clérigos letrados clamavam poderem vir a ser curadas

pelos seus santos.

__________________________________________________________________________________ 284

71 Ronald C. Finucane, Miracles and Pilgrims. Popular Beliefs in Medieval England, ed. cit., p. 81. 72O que não impede, na verdade, que os estudos paleobiológicos realizados em esqueletos exumados em várias necrópoles medievais portuguesas deixem de assinalar, com base na análise do sucesso com que foram feitas no reino diversas trepanações na sequência de traumas cranianos, a existência no Portugal dos finais da Idade Média de competentes e esclarecidos cirurgiões: Eugénia Cunha, Paleobiologia, História e Quotidiano ..., ed. cit., p. 128. 73 Pierre-André Sigal, L’homme et le miracle dans la France médiévale (XIe. et XIIIe. siécles), ed. cit.; José Mattoso, "Saúde Corporal e Saúde Mental na Idade Média Portuguesa" in ob. cit., ed. cit., pp. 233-252.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

ADOECER _________________________________________________________________________________________

GRÁFICO Nº 9 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS

14%

14%

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10%

8%

8%

5%4%

13%

Paralisias Hem. e Feridas Ceg. e M. Ocul.Páp. e Inchaços D. Mentais S. MudezQuebraduras D. Gr. Inespecíficas Febres e PesteDoenças Diversas

A ordem seguida na enumeração das doenças está relacionada com o maior

número de casos relatados.

5 - PARALISIAS

Representadas por 21 casos, ou

seja, 14% das curas das crianças mira-

culadas, as paralisias constituíam doen-

ças bem visíveis e corporalmente iden-

tificáveis, fazendo-se os hagiógrafos,

muitas vezes, eco dos sentimentos de

medo e de horror despertados em quem

as via. Nesse sentido, parece

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Masc. Fem.

GRÁFICO Nº 10 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS -

- PARALISIAS

________________________________________________________________________________________________ 285

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

representativa a notícia de que a paralisia facial de um menino de três anos, ao qual

a doença provocara no rosto tal deformação que os próprios pais se sentiam

horrorizados. 74

A utilização dos termos paralisia ou paralítico surge, no entanto, raramente.

Com efeito, as descrições da doença referem-se, sobretudo, às suas consequências,

mencionando-se como uma menina ficara doente da boca que não comia 75 ou como

um menino se apresentava coxo e aleijado das pernas,76 o que, na verdade, poderá

apenas indicar a mais simples presença de uma luxação ou de uma ciática, conforme

é explicitamente registado num caso.77 No entanto, numa significativa parte das

vezes, é possível reconhecer tratarem-se de verdadeiros distúrbios de paralisia. Entre

eles, contam-se várias situações de paralisia parcial da face e dos membros. As

incapacidades do primeiro tipo descrevem-se de forma pormenorizada, como sucede

quando se noticia apresentar-se uma criança com um

rosto de tal maneira contorcido e deformado que ficara incapaz de respirar

pelas vias naturais, e por força da enfermidade a boca se retorcera para uma

das orelhas e a custo e quase a intervalos executava a respiração,78

ou mais sinteticamente, registando-se os quadros clínicos de uma boca torcida e

voltada à orelha,79 ou ainda a boca na orelha e a lingoa fora, conforme seria o

aspecto de um menino de seis anos assim punido por Nossa Senhora das Virtudes,

porque a mãe não cumprira a promessa de ir em romaria até à santa para lhe

agradecer uma anterior cura feita ao filho. O moço tornou então a adoecer pior que

da primeyra. 80

Quanto aos casos de paralisia parcial dos membros, tanto se referencia a dos

superiores - conforme teria sucedido, por exemplo, a Pedro, um moço tolheito da

mão direita ou a Joane, moso piqueno com mão e dedos encolheitos81 - como a dos

inferiores. Para estes noticia-se, entre outras, a situação de um menino de um ano

__________________________________________________________________________________ 286

74 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente" in ob. cit., ed. cit., p. 45. 75 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 512. 76 "Santa Senhorinha" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, IV, ed. cit., p. 228. 77 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 532. 78 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ob. cit., ed. cit., p. 49. 79 "S. Pedro de Rates" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, IV, ed. cit., p. 271. 80 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 27. 81 Afonso Peres, "O Livro dos Milagres de Nossa Senhora da Oliveira", ed. Mário Martins, in Revista de Guimarães, 63, 1953, pp. 111 e 115.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

ADOECER _________________________________________________________________________________________

tolhido das pernas,82 ou a de uma criança que durante três anos estivera de tal

maneira sem andar que não podia caminhar sem ser sobre as mãos e os joelhos83 ou

ainda as das crianças que apresentavam os joelhos pegados ao peito84 ou a perna

deestra com ho calcanhar no pousadeyro.85

Por fim, para além da menção à paralisia parcial de um rapaz que ficou

tolhido de um dos lados do corpo,86 ainda se registam curas feitas a tetraplégicos que

apresentavam a paralisia total dos respectivos membros. São os casos de um menino

de seis anos que tolheosse dos pees E das maãos E de todo o corpo,87 de um rapaz

de catorze a quem deu o ar no corpo todo,88 ou ainda daquele a quem mãe deu

certa vez com uma pedra e, acto contínuo, ficou ele privado da acção dos seus

membros.89

Salvo este último caso e a possibilidade de várias destas paralisias

remontarem ao ventre de sa madre, ou de serem consequência de traumatismos e

sequelas do parto,90 não se registam considerações sobre as origens da doença,

podendo ser o reflexo de outras condicionantes. Uma delas, por exemplo, poderia ser

o reumatismo gerado por mais ou menos longas exposições ao frio, visto serem

susceptíveis de provocar uma progressiva imobilidade reactiva à flexão dolorosa das

articulações e dos músculos, e assim tornar “tolhidas” as crianças.

De uma forma geral, a cura das paralisias, uma doença que se apresenta

maioritariamente masculina, associa-se à produção de milagres imediatos, ou seja,

acontecidos logo ou muito pouco tempo depois de haver sido pedida ou invocada a

protecção de um santo. De facto, uma grande parte destas curas diz-se logo se ter

seguido a orações proferidas junto às relíquias ou ao túmulo dos santos, podendo

mesmo acontecer durante o sono feito pelas crianças doentes sobre a sepultura do

seu protector celeste. Contudo, também se menciona o uso de panos, água e terra que

previamente tivessem estado em contacto com o corpo e as relíquias dos santos.

________________________________________________________________________________________________ 287

82 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 509. 83 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ob. cit.,ed. cit., p. 71. 84 "Santa Senhorinha" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, IV, ed. cit., p. 229. 85 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 25. 86 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 508. 87 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 26. 88 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 504-505. 89 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente", ob. cit., ed. cit.,, p. 69. 90 Vidé capítulo NASCER.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

6 – HEMORRAGIAS E FERIDAS

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GRÁFICO Nº 11 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - - HEMORRAGIAS E FERIDASCom 20 ocorrências, correspon-

dentes a 14% das curas de crianças refe-

ridas nos livros de milagres medievais

portugueses, estancar o sangue e sarar

as feridas das hemorragias causadas por

diversas lesões internas e externas, tam-

bém figuram entre os mais frequentes

poderes taumatúrgicos atribuídos aos santos. Como seria de esperar, dada a normal

urgência com que deve ser iniciada qualquer terapêutica hemorrágica, a maioria dos

milagres que a referem insere-se na categoria das curas imediatas.91 Contudo, dez

deles não deixam de ser desencadeados a partir de substâncias santificadas, como foi

o caso da terra da sepultura de S. Frei Gil de Santarém colocada no aposthema que

um menino, já prestes a ser enterrado, tinha na cabeça, contando-se depois como

ele logo espertou gritando que hum Frade de S. Domingos lhe abrira a cabeça,

enquanto os presentes virão logo correr-lhe d’ella hum rio de materia como de

postema madura, e em poucos dias convaleceo de todo.92

Entre as hemorragias externas figuram as provenientes de maus tratos físicos,

como teria ocorrido a um rapaz a quem deram huua tal ferida na cabeça que logo

cayo em terra e durante tres dias ho teuerom como morto93 e, sobretudo, as

adquiridas em diversos acidentes quotidianos, desde o caso da menina de dois anos

que caiu pelas escadas e ficou quase morta,94 ao sucedido a uma criança de

Santarém que partiu um braço por ter ficado debaixo de um macho95 ou ainda o

acontecido a um moço, igualmente escalabitano, que quebrou um braço, desta vez

por atropelamento.96 Contudo, nesta última categoria também figuram curas

milagrosas de mais graves e complicadas hemorragias, referindo-se, por exemplo, a

ferida originada a um moço que leuaua huua cana na maão E cayo E chentousse-lhe

__________________________________________________________________________________ 288

91 Apenas se referenciam três situações em que a cura demorou três dias: Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 26; Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 526-527; "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa" in ob. cit., ed. cit., p. 293. 92 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. cit., p. 238. 93 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 19. 94 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 554-555. 95 Frei Baltazar de S. João, A vida do Bem-Aventurado Gil de Santarém, ed. cit., pp. 106-108.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

a cana polla uerilha E sayo lhe pollo embigo. E quando lhe o caso de tiraram a cana

sayramlhe as tripas fora,97 as lesões que vitimaram um rapaz a quem deram hua tal

ferida na cabeça que logo cayo em terra ou as que atingiram um outro que andando

na malhada levou tam grande golpe na trincheyra que lhe meteeo ho testo por

dentro.98

Por vezes, a origem das lesões que teriam sido miraculosamente curadas não

se apresenta muito clara, sendo esse, por exemplo, o caso do moço de Vila Franca de

Xira que tinha um buraco muito grande nos ombros.99 Noutros, a intervenção

taumatúrgica já só teria actuado perante feridas associadas a muito mais complexas

doenças infecciosas, como a de uma menina de Évora aaqual naceo huua

aapostemaçom em huu braço tam grande que lhe apodreceo o braço todo,100 ou a de

um rapaz a quem naçera hua trama so o braço dereyto.101

A cura de hemorragias internas encontra-se representada desde a simples

interrupção de um corrimento sanguíneo do nariz102 até a feridas localizadas no

aparelho digestivo. Com efeito, parece ter sido esse o caso da origem dos

padecimentos de uma menina com dor de estomago que vomitava tudo, os de um

menino com dor de estomago que quase morria,103 os de um outro moço que muito

doente de door d’estamago não comeu durante quinze dias e estava quase morto104 e

os do menino que avya muyto grande door en no ventre, em tal guysa que pereçia

que o queria matar.105

Por fim, ressalte-se, como já ocorrera relativamente às paralisias, o

predomínio masculino das crianças miraculadas, devido, certamente, ao facto de as

presentes doenças se encontrarem, em grande parte, associadas a acidentes ocorridos

na rua, ou seja, fora de um mais feminino espaço doméstico e/ou familiar.

________________________________________________________________________________________________ 289

96 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. cit., p. 240, enquanto milagre atribuído a S. Frei Gil de Santarém. 97 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 26. 98 Id., ibidem, pp. 19 e 26. 99 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 526-527. 100 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 31. 101 "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa" in ob. cit., ed. cit., p. 293. 102 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 550. 103 Id. ibidem, pp. 522 e 523. 104 Maria Alice Fernandes, Livro dos Milagres dos Santos Martires, ed. cit., p. 141. 105 "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa" in ob. cit., ed. cit., p. 293.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

7 - CEGUEIRA E MALES

__________________________________________________________________________________ 290

OCULARES

Os problemas oftálmicos es-

tão representados nas curas mila-

grosas, com um total de 19 casos,

ou seja, 13 % do conjunto dos mila-

gres considerados. Contudo, sobre a

cegueira ou afecções relativas à

vista, não abundam descrições. De facto, só quando ela surgia marcada

118

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Masc. Fem.

GRÁFICO Nº 12 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - CEGUEIRA E MALES

OCULARES

por sinais exteriores bem visíveis é que se registam alguns pormenores, como é o

caso da referência a uma criança cega dambollos olhos assi çarrados e pegados que

lhos nom podiom abrir.106

Existem, porém, algumas informações sobre a origem da doença, explicando-

-se, ocasionalmente, como ela estaria relacionada com uma ferida, com a presença

ocular de um corpo estranho ou com as consequências de algum traumatismo. A

primeira situação, está patente nas notícias relativas a um menino de Setúbal que

nasceu com uma belida no olho e não via nada 107 e a uma moça de Évora que

perdeu a vista por causa de uma belida. 108 A segunda, por sua vez, parece deduzir-

se da apresentação do caso de um moço de Lisboa a quem o pai deu com uma meia

de ilhoz pela cabeça ao qual se meteu uma agulheta de ataca que na meia estava

pegada, 109 enquanto a terceira, tanto se encontra enunciada no registo do milagre de

um moço de Santarém que cegou com uma pancada,110 como no de outro rapaz que,

para além de se apresentar como cego, se encontrava tolhido de um estupor.111

Tratando-se de um tipo de cura taumatúrgica bastante prestigiada, dado

remontar a um arquétipo explicitamente evangélico, e, por outro lado, assinalando

uma doença difícil de então combater através do recurso à medicina profissional, os

milagres oftálmicos surgem relativamente partilhados entre crianças de ambos os

sexos e correspondem à tipologia das curas imediatas, obtidas por via de romarias e

106 Afonso Peres, "O Livro dos Milagres de Nossa Senhora da Oliveira" in ob. cit., ed. cit., p. 125. 107 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 501-502. 108 Id. ibidem, p. 502. 109 Id. ibidem, p. 500. 110 Id. Ibidem, pp. 502-503.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

de orações proferidas nos santuários, apenas se mencionando o caso de um milagre

desencadeado pelo recurso à terra santa.112 Por outro lado, sempre que declarada, a

origem da doença surge registada como sendo de nascença em cerca de 64% dos

casos.

8 - PÁPULAS E INCHAÇOS

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GRÁFICO Nº 13 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - PÁPULAS E

INCHAÇOSNa sociedade medieval, o

doente identificava-se muitas vezes

através da presença de distúrbios

dermatológicos, nomeadamente os

provocados pelos diversos tipos de

pápulas e inchaços que maculavam

e deformavam o corpo, tornando-o espelho dos males que atormentavam a alma.

Nesse sentido, a respectiva cura, independentemente das suas diversas origens, figura

num razoável número de milagres medievais portugueses, ou seja, nos 13% dos

casos que correspondem a dezanove das graças registadas, identificando, portanto,

um importante testemunho para a credibilitação dos poderes taumatúrgicos dos

santos.

Alguns desses sintomas não se apresentam especialmente localizados. No

caso de um minino com sarna 113 espalhar-se-iam por diversas partes do corpo,

assim como teria acontecido a duas meninas a quem o Santo Condestável fizera

desaparecer, à vez, grandes empolas que se viam por todo o corpo,114 e uma

explícita hidropisia;115 também uma terceira, por graça do Bom Jesus do Convento

de S. Domingos de Benfica, antes que fosse quarta ora passada desde o pedido da

cura, ficou sã e lympa das muytas boboas per o rostro e per a garganta e per os

braços cujas dores lhe abafavam o coraçom muyto fortemente de tal forma que

estava em ponto de sse finar.116 Nos dois últimos registos, a generalização corporal

das pápulas pode ser interpretada de diferentes maneiras: desde estar-se perante uma

________________________________________________________________________________________________ 291

111 "S. Gonçalo de Amarante" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, I, ed. cit., pp. 279-280. 112 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 502. 113 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. cit., pp. 248-249, relativamente a um milagre de S. Frei Gil de Santarém. 114 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 555. 115 Id., ibidem, pp. 527-528. 116 "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa" in ob. cit., ed. cit., p. 294.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

dermite de contacto, facilmente provocada, para além dos problemas decorrentes de

uma deficiente higiene pessoal que também decerto haveria colaborado para o

aparecimento da sarna atrás referida, pelo constante roçar da pele da criança com o

áspero material utilizado no vestuário infantil, nomeadamente a lã, até à evidência de

uma sintomatologia própria de qualquer doença infecciosa sistémica, como as actuais

varíola, varicela ou sarampo.

Ao contrário das pápulas, os inchaços referem-se de forma mais circunscrita,

parecendo derivar, seja de luxações ou contusões osteo-musculares, como a da

rapariga a quem inchou o braço e depois o corpo e a do rapaz com a perna muito

inchada,117 seja do ingurgitamento da cadeia ganglionar linfática do pescoço, devido

a hipotéticas anginas ou males dentários, conforme seria o caso de um menino cuja

garganta muito inchada não o deixava comer nem beber,118 de um outro com a

garganta inchada que sufocava119 ou ainda de outro com uma landoa no pescoço

devido a hua grande door em huum dente.120

Por seu lado, a referência a três meninos que sofriam de alporcas,121 isto é,

de escrófulas no pescoço, deve antes relacionar-se com o avolumar dos gânglios por

reacção à propagação de uma doença sistémica, talvez a tuberculose.

Preponderantemente masculinas, as curas das pápulas e inchaços quase

sempre imediatas, ou demorando, no máximo quatro dias a manifestar-se,122

registam-se como sendo maioritariamente desencadeadas a partir da utilização da

terra e água santas (72%), apenas se referindo os casos de um uso de relíquias

propriamente ditas123 e, excepcionalmente, o de uma directa intervenção de um

santo. Conta-se, então, para esta única situação, como um menino cujo pescoço

estava tão afeado de landoas grossas e escaras, e vermelhidões, que não se atrevia

a aparecer em público, fora procurar a cura à cela conventual onde se encontraria

S. Frei Gil de Santarém, explicando-se depois que do contacto com as mãos do

Santo,124

__________________________________________________________________________________ 292

117 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., respectivamente, pp. 524 e 536. 118 "S. Frei Gil" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, V, ed. cit., p. 194. 119 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 513. 120 "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa" in ob. cit., ed. cit, pp. 294-295. 121 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 517; "S. Gonçalo de Amarante" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, I, ed. cit., p. 280; "S. Frei Gil" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, V, ed. cit., p. 184 e Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, p. 221. 122 "S. Gonçalo de Amarante" in Frei Diogo do Rosário, ob. cit., ed. cit., p. 194. 123 "S. Frei Gil" in Frei Diogo do Rosário, ob. cit., ed. cit., p. 194. 124 Feito através do sinal da cruz: "S. Frei Gil" in Frei Diogo do Rosário, ob. cit., ed. cit., p. 184.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

em poucos dias se lhe veio a juntar todo o humor venenoso em hum lugar,

onde suporando, e saindo em matéria podre deixou o pescoço enxuto, e sem

grossura nem pejo, ficando só algumas costuras leves como em memória do

milagre.125

9 - DOENÇAS MENTAIS

Num total de 16 casos, equi-

valentes a 11 % do conjunto das cu-

ras consideradas, as doenças mentais

englobam os casos de possessão

demoníaca. Compreendem, portan-

to, a situação dos jovens doentes

refe-

ridos como endemoinhados,126

tolhidos de um estupor,127 ou tomados/atormentados pelo demónio128 ou pelo

inimigo.129

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Masc. Fem.

GRÁFICO Nº 14 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - DOENÇAS

MENTAIS

De uma forma geral, os sintomas descritos para os seus males incluem a

referência a uma agitação extrema, com paroxismos de agressividade dirigida contra

si ou contra os outros. Na sociedade medieval, o comportamento do possesso ou do

demente, tal como, aliás, o do deformado ou paralítico despertava reacções distintas

e até contraditórias, indo da repulsa e do pavor, à curiosidade, divertimento, respeito

ou compaixão. Se, por um lado, o possesso era considerado como um ser marcado

por um sinal sobrenatural, parecendo não pertencer a este mundo e sendo capaz de

penetrar na obscuridade do Além, por outro, ele inspirava uma grande e colectiva

animosidade e desprezo.

________________________________________________________________________________________________ 293

125 "S. Frei Gil" in Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. cit., p. 221. 126 Afonso Peres, "Livro dos Milagres da Senhora da Oliveira" in ob. cit., ed. cit., pp. 108 e 124. 127 "S. Gonçalo de Amarante" in Flos Sanctorum, I, ed. cit., p. 279. 128 Vida e milagres de S. Rosendo, ed. cit., pp. 57, 71 e 95, e Frei Baltazar de S. João, ob. cit., ed. cit., p. 102. 129 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 29.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

De facto, frequentemente, o possesso manifestava comportamentos

perigosos, marcados por um excesso de brutalidade e violência, ou seja, os

considerados sinais da loucura que se desencadeava através de ataques repentinos e

incontroláveis.130 Era esse, por exemplo, o caso de um mancebo que tinha um

mal repentino e não entendido dos médicos: o qual lhe dava com uma dor de

coração, e das entranhas tão desmedida, que arrebentava em fúria, e

fernesis: e de maneira forcejava que muitos homens juntos o não podião ter,

nem tolher-se desfazer, e espedaçar quanto podia alcançar com os dentes,

tanto em si, como em outrem. E não havia remédio pera lhe defenderem

comer-se aos bocados, se não era tendo-o atado em aspa de pés, e mãos e

amarrando-lhe até a cabeça. Neste martyrio vivia o pobre, e confessava já

que era espírito mao, não humor, quem lh’o causava.131

A extrema agressividade da loucura das crianças possessas era atribuída às

forças demoníacas que nelas tinham entrado para as fazer porta-vozes da destruição

da ordem e dos poderes sagrados que regiam a sociedade dos crentes. Habitados por

Satanás, os rapazes e as raparigas possessos funcionavam assim como um veículo do

mal e do caos, particularmente angustiante para a presença terrena que exibia e

padecia dos efeitos dessa situação. A sua doença seria assim visível através de um

corpo exausto, no qual a dor era tão grande que o desacordava,132 e deformado,

porque contorcido pelo espírito imundo133 e deitando muitas escumas pela boca.134

A propósito de uma menina de oito anos, conta-se então como nela entrara

um inimigo tão molesto e ruim que de tal maneira a tormentava com suas

investidas três ou quatro vezes ao dia que a custo o seu espírito conseguia

aguentar os membros doloridos.135

Em vários registos de milagres, a loucura das crianças possessas tanto se

inicia durante o dormir, dado considerar-se o sono como susceptível de oferecer

menores resistências às forças do mal ou, mais genericamente, durante a noite, na

__________________________________________________________________________________ 294

130 Cf. Jacques Heers, Festas de Loucos e de Carnavais, Lisboa, D. Quixote, 1987, pp. 110-111. 131 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, ed. cit., p. 234, relativamente a um milagre atribuído a S. Frei Gil de Santarém. 132 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 495. 133 Vida e Milagres de S. Rosendo , ed. cit., p. 95. 134 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 495.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

altura em que as trevas escondiam os contornos e as realidades das coisas terrenas.136

Contudo, por vezes, a possessão infantil também se diz ter ocorrido num cenário

diurno. Nesse caso, as crianças aterrorizadas, como um menino que avia spanto em

tal guisa que quando lhe vinha este espanto cuidava que morresse,137 viam

anunciada a sua temida endemoinhação quando, ou se deparavam com o Maligno

indo hum dia pera entrar em casa, o qual as esperava da banda de dentro cercado

de hum numero infinito de Demónios, que lhe tinhão a porta tomada,138 ou

encontravam os omes negros que eram diabos e os queriam levar, conforme se

informa ter ocorrido ao filho de uma mulher que apenas fora então salvo porque um

homem branco, que depois se apresentara como sendo S. Veríssimo, o disputara aos

negros.139

Relativamente à terapêutica miraculosa, a loucura dos possessos era sarada

pelos santos nom sem pequeno tormento, conforme teria sido o caso de uma moça

Demonjnhada a quem lhe prometeera ho demo que nom se partiria senam em sancta

maria das virtudes.140 A cura apresentava-se, por vezes, acompanhada pela expulsão

de objectos e seres serpentiformes que tendiam a simbolizar a expulsão corporal do

mal provocado por forças maléficas exteriores.141 Aliás, num caso em que a criança

doente se cura pelo contacto com terra santificada, teria sido o próprio diabo a dela

ser desalojado gritando,142 também se assinalando, tanto a situação de o maligno

prometer pela voz de um rapaz miraculado que se saya del pera sempre,143 como a

circunstância de, antes de o fazer relativamente a uma moça endemoinhada, se ter

identificado e dito a razão pela qual a possuía.144

________________________________________________________________________________________________ 295

135 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente" in ob. cit., ed. cit., p. 47. 136 O pensamento e o comportamento do homem medieval eram dominados por um maniqueísmo mais ou menos consciente – de um lado Deus, do outro, o Diabo. Esta grande divisão dominava a vida, e a luta entre ambos explicava todos os acontecimentos. A realidade era preta (cor do Diabo) ou branca (cor dos Anjos, fiéis servidores de Deus), sem meio-termo: Jacques Le Goff, A Civilização no Ocidente Medieval, I, Lisboa, Estampa, 1990, pp. 200-201. Sobre a noite enquanto tempo satânico, veja-se Jean Verdon, La nuit du Moyen Age, Paris, Perrin, 1994. 137 "Milagres de S. Veríssimo", ed. Mário Martins, in ob. cit., ed. cit., p. 49. 138 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. cit., p. 234, relativamente a um milagre de S. Frei Gil de Santarém. 139 "Milagres de S. Veríssimo", ed. Mário Martins, ob. cit., ed. cit., p. 49. 140 Frei João da Póvoa, "O Livro dos milagres de Nossa Senhora das Virtudes" in ob. cit., ed. cit., pp. 29-30. 141Sobre este tema consulte-se José Mattoso, “Saúde corporal e saúde mental na Idade Média Portuguesa” in Fragmentos de uma Composição Medieval, Lisboa, Estampa, 1993, pp. 240-241. 142 Frei Baltazar de S. João, A vida do Bem-Aventurado Gil de Santarém, ed. cit., p. 102. 143 Afonso Peres, "Livro dos Milagres da Senhora da Oliveira" in ob. cit., ed. cit., p. 108. 144 Id. ibidem, p. 124.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

Entre as crianças possessas objecto de um milagre de cura, salienta-se a

preponderância do sexo masculino, invertendo-se, portanto, o princípio de se

considerar a mulher, porque mais frágil, como a vítima preferencial do império dos

demónios. Talvez porque os demónios possuidores de rapazes fossem considerados

mais temíveis e aguerridos dos que se alojavam nas raparigas, melhor assim

prestigiando os poderes dos santos capazes de os domar e vencer.

10 - SURDEZ E MUDEZ

Tal como as curas

milagrosas da cegueira e das

possessões demoníacas, também

as relativas à surdez e à mudez se

inserem numa longa tradição

hagiográfica de origem

evangélica. Nos livros de milagres

medievais portugueses contam-se catorze registos, quase todos a respeito da mudez.

Com efeito, a surdez apenas se apresenta no caso de um menino de cinco anos que

era surdo-mudo porque a mãe não cumpriu a promessa de o oferecer à Santa

Senhorinha de Basto,145 surgindo aqui a doença como uma forma de castigo divino.

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Masc. Fem.

GRÁFICO Nº 15 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - SURDEZ E MUDEZ

No seu conjunto, os milagres de cura da mudez não são objecto de grandes

descrições, já que se reportam a uma doença fácil de identificar e caracterizar. Em

geral, surgem associados a crianças vítimas de outros males, conforme seria a

situação de uma moça de Santarém, que, para além de muda padecia de outras

enfermidades146 ou mais especificamente às paralisias, nos casos de um moço com a

boca torcida e voltada à orelha147 e de um rapaz de seis anos que tolheosse dos pees

E das maãos E de todo o corpo E da falla, 148 ou também a possessões, explicitando-

-se, nesse sentido, as histórias de Maria, uma rapariga de Santarém que perdeu a

__________________________________________________________________________________ 296

145 Santa Senhorinha in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, IV, ed. cit., p. 228. 146 "S. Frei Gil" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, vol. V, ed. cit., pp. 194-195. 147 "S. Pedro de Rates" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, IV, ed. cit., p. 271. 148 Frei João da Póvoa, "O Livro dos milagres de Nossa Senhora das Virtudes" in ob. cit., ed. cit., p. 26.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

fala num ataque qualquer do maligno149 e de uma menina muda e sujeita a ataques

do demónio.150

As informações relativas à antiguidade das lesões são escassas, existindo três

casos de mudez desde o nascimento e uma referência a outra criança que por muitos

anos não falou. O desencadear da cura milagrosa da mudez remete, à excepção de

quatro casos resolvidos através do recurso à terra sagrada das relíquias, para uma

prévia, ou posterior romagem aos santuários. A propósito de uma delas, conta-se

então como uma moça muda que ía em romaria, se teria perdido dos seus

acompanhantes, acabando por recuperar a voz, livre já do impedimento da fala,

quando eles, ao darem pela sua ausência, a chamaram e ela lhes respondeu.151

Numa época marcada por frequentes conjunturas de violência e de conflitos

sociais, tanto a mudez como a gaguez poderiam significar uma resposta infantil a

traumatismos existenciais. Por outro lado, conforme observa Eleanora Gordon, a

frequência com que figuram nos livros de milagres medievais também possibilita a

interpretação de uma então forte presença de crianças que só muito tardiamente

teriam aprendido a expressar-se através de uma linguagem oral, pelo que o

respectivo mutismo não derivaria tanto de uma privação sensorial mas antes de um

simples atraso na aprendizagem da fala.152

________________________________________________________________________________________________ 297

149 Frei Baltazar de S. João, A vida do Bem-Aventurado Gil de Santarém, ed. cit., p. 100. 150 Mestre Estevão, "Milagres de S. Vicente" in ob. cit., ed. cit., p. 65. 151 "S. Gonçalo de Amarante" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, I, ed. cit., pp. 280-281. 152 Eleanora C.Gordon, "Child Health in the Middle Ages as seen in the Miracles of Five English Saints. A.D. 1150-1220" in Bulletin of the History of Medicine, 60, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1986, p. 518.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

11 - QUEBRADURAS

__________________________________________________________________________________ 298

A etiologia das deforma-

ções da postura e da locomoção

infantis provocadas pelo surgi-

mento de hérnias de esforço,

sobretudo inguinais, era bem

conhecida pelos médicos da

medievalidade. Segundo Finucane, eram por eles atribuídas a rupturas provocadas,

quer por choro excessivo, por descaída do estômago, por flatulência contida nos

intestinos, ou imoderado consumo de leite, quer por gritar ou tossir fortemente.153

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Masc.

GRÁFICO Nº 16 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - QUEBRADURAS

Exclusivamente masculinas, as quebraduras infantis dos livros de milagres

medievais portugueses apresentavam-se como afectando desde os recém nascidos

aos rapazes já crescidos, implicando quase sempre a sua cura uma ida em romaria ao

templo protector de algum santo, precedida ou não pela utilização da respectiva terra

santa. Salvo uma excepção,154 todas as curas referenciadas são atribuídas aos cultos

lisboetas do santo condestável e ao dos Mártires de Marrocos no mosteiro de Santa

Cruz de Coimbra.

Relativamente ao culto ministrado pelos crúzios, as quebraduras associam-se

a graças dispensadas durante a chamada Procissão dos Nus, anualmente organizada

no Inverno, em torno da propiciação da protecção de tipo viril e fecundante.155 De

facto, a miraculosa obtenção de uma cura de quebradura tende a ser interpretada

como a dádiva da restauração das capacidades reprodutivas dos rapazes que

padeciam da doença.156

153 Ronald C. Finucane, The Rescue of the Innocents. Endangered Children in Medieval Miracles, ed. cit., p. 63. 154 “S. Gonçalo de Amarante” in Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, ed. cit., p. 279. 155 A procissão iniciou-se por alturas da peste de 1423, quando Vicente Martins, um camponês que trabalhava numa das granjas de Santa Cruz de Coimbra, fez voto de visitar todos os anos o sepulcro dos Mártires de Marrocos na companhia dos filhos, todos nus das pernas e da cintura para cima. Progressivamente, a procissão começou a tornar-se famosa e a congregar inúmeros aderentes. Realizando-se a 16 de Janeiro, compreendia um cada vez maior cortejo masculino, de homens e jovens vestidos apenas com um calção ou com uma toalha até aos joelhos, implorando aos Santos Mártires a preservação da sua força e identidade varonis, até que foi extinta, por demasiado escandalosa, nos finais do século XVIII. Consulte-se Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, II, Porto, Civilização-Ed., 1971, p. 479. 156 Luís Krus, "Celeiro e relíquias", ob. cit., ed. cit.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

12 - DOENÇAS GRAVES

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INESPECÍFICAS

Entre as enfermidades

das crianças agraciadas nos

livros de milagres medievais

portugueses figuram em onze

casos (cerca de 8% do total)

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GRÁFICO Nº 17 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - DOENÇAS GRAVES

INESPECÍFICAS

doenças que, embora não especificadas, são referidas como sendo graves, visto se

registarem na qualidade de maleita prolongada,157 longa,158grande159 ou

trabalhosa,160 por vezes acompanhada de uma dor de quebranto.161

Muito laconicamente referidas, correspondem a registos carentes de dados e

informações complementares, talvez porque a falta de sintomatologias de exuberante

expressão corporal não as tornasse muito atractivas para o alarde dos poderes

taumatúrgicos dos santos. Por vezes, porém, descrevem-se as crianças doentes como

se estivessem num estado terminal de existência. De facto, é essa a impressão que

parece querer sugerir-se quando se menciona o caso de um menino que estava muito

doente quase a morrer162 ou se lembra como a pequena Maria Godinha sofrera uma

longa doença que a tornara seca e mirrada das carnes,163 talvez em consequência do

padecimento de raquitismo.

157 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 549; Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., p. 232, relativamente a um milagre atribuído a S. Frei Gil de Santarém. 158 Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., p. 221, relativamente a um milagre de S. Frei Gil de Santarém. 159 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), ed. José Joaquim Nunes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, p. 271, relativamente a um milagre de Santo António; Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 487. 160 Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., p. 233, relativamente a um milagre de S. Frei Gil de Santarém. 161 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 553. 162 Id., ibidem, p. 555. 163 Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., p. 221, relativamente a um milagre de S. Frei Gil.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

13 - FEBRES E PESTE

__________________________________________________________________________________ 300

Por vezes, tal como

sucede relativamente às pápulas

e inchaços, os hagiógrafos

classificam as doenças infantis

saradas pelos santos através de

sintomas que, hoje em dia,

se

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Masc. Fem.

GRÁFICO Nº 18 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - FEBRES E PESTE

revelam insuficientes para as identificar, já que são consideradas comuns a variados

tipos de enfermidades. É o casa das febres que podem acompanhar um muito

diversificado leque de doenças, desde simples infecções locais, externas ou internas,

até muito graves enfermidades de tipo sistémico, como são as virais ou

epidémicas.164

Do mesmo modo que as doenças graves inespecíficas, e com elas

comungando de uma nítida prevalência masculina, as febres também não mereceram

aos hagiógrafos grandes desenvolvimentos, talvez porque os seus registos, pelas

mesmas razões, dificilmente pudessem vir a oferecer matéria para o relato de um

glorioso e dramatizado milagre. Com efeito, os dados disponíveis quase só se

limitam a noticiar como as crianças doentes de febres poderiam recuperar a saúde,

quer através das relíquias presentes nos templos, quer das substâncias sagradas neles

fornecidos, ou, em alternativa, mediante uma devida recompensa após a obtenção da

graça por directa encomendação aos santos, nada se adiantando, nem sobre a

antiguidade, nem sobre a gravidade do mal miraculado, talvez porque correspondesse

a enfermidades víricas de tipo sazonal.

Existe, contudo, uma importante excepção: a da menina que se afirma ter

sido ressuscitada através de um milagre atribuído ao Santo Condestável, após ter

morrido de grande dor e febre e depois de morta ter ficado toda negra.165 De facto,

neste caso a febre associa-se a um quadro típico de peste negra, como, aliás, também

o poderá indiciar, relativamente à peste bubónica, a utilização no registo de vários

164 A. H. de Oliveira Marques, por exemplo, sugere que a menção às febres poderia referenciar, muitas vezes, tuberculoses de fácil progresso: A Sociedade Medieval Portuguesa, ed. cit., p. 211. 165 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 490.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

milagres atrás referenciados a propósito, quer das hemorragias e feridas, quer das

pápulas e inchaços, dos termos aposthema,166 boboa,167 landoa168 ou trama,169 visto

terem muito tempo funcionado na qualidade de sinónimos dos bubões pestíferos, um

vocábulo que só tardiamente entrou na terminologia clínica corrente da Idade Média.

Com efeito, segundo Mário da Costa Roque, não só os termos “apostema,”

“inchaço”, “landoa”, “nascença” ou até “levação,” foram usados durante muito

tempo para referir o bubão pestoso, como se chegou mesmo a denominar a doença

por "trama", tomando de tal forma o sintoma pela enfermidade que era comum

referir-se o finar-se de tramas ou morrer de tramas.170 Assim sendo, as referências à

peste, bastante presente no Portugal da Idade Média,171 não se encontram

isoladamente referidas nos livros de milagres analisados, antes atingindo um total de

pelo menos sete referências. Na cronística medieval portuguesa, pelo contrário,

embora a febre contynua seja referida como a causa da morte de um neto muy moço

do monarca João I,172 a peste surge referenciada como a causa explícita da morte da

infanta Filipa, filha do rei Duarte, com onze anos de idade.173

De resto, a própria tratadística médica redigida em português durante os

finais da Idade Média, não só descreveu cuidadosamente os sintomas da temida peste

bubónica, como até teorizou sobre o sentido de se ser ou não atingido pela doença.

De facto, no Regimento proueytoso contra ha pestenença defende-se a tese de que

________________________________________________________________________________________________ 301

166 Vejam-se os casos da menina que nasceu com huua aapostemaçom em huu braço tam grande que lhe apodreceo o braço todo, e o do menino ao qual nasceu um aposthema na cabeça mui duro: Frei João da Póvoa, "O Livro dos milagres de Nossa Senhora das Virtudes", ob. cit., ed. cit., p. 31; "S. Frei Gil" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, V, ed. cit., p. 192. 167 Refira-se a menina que tinha boboas no corpo que lhe apertavam o coração : "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa" in ob. cit., ed. cit., p. 294. 168 Uma landoa no pescoço é referida no "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa" in ob. cit., ed. cit., pp. 294/295. 169 Consultem-se as referências ao menino a quem naçera hua trama so o braço dereyto e à menina que teue cinquo tramas E steve tres dias que pareçia finada que nom respiraua nenhua cousa.: "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa" in ob. cit., ed. cit., p. 293; Frei João da Póvoa, "O Livro dos milagres de Nossa Senhora das Virtudes" in ob. cit., ed. cit., p. 29. 170 Sobre a Peste Negra e respectivos sintomas e variações, consulte-se, Mário da Costa Roque, As Pestes Medievais Europeias e o "Regimento proueytoso contra ha pestenença", Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. 171 Sobre a história da Peste Negra no Portugal medieval, consulte-se a síntese de A.H. de Oliveira Marques, Portugal na crise dos séculos XIV e XV, Nova História de Portugal, IV, Lisboa, Presença, 1987, pp. 20-22. 172 Rui de Pina, "Chronica do Senhor Rey D. Affonso V" in Crónicas, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, pp. 688-689. 173 Id., ibidem, pp. 607-608.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

os corpos mais dispostos à enfermidade e à morte são os corpos quentes e

que têm os poros mais largos, e os corpos peçonhentos que têm os poros

opilados e cerrados de muitos humores. E portanto os corpos nos quais se

faz a grande resolução, assim como são os corpos desordenados em luxúria

e coito e os que vão a miúdo aos banhos.174

14 - DOENÇAS DIVERSAS

Nas doenças diversas

agrupam-se vários tipos de

enfermidades infantis que teriam

sido objecto de uma cura

milagrosa. Algumas registam-se a

propósito da morte de crianças que

teriam depois sido ressuscitadas,

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GRÁFICO Nº 19 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - DOENÇAS

DIVERSAS

sendo esses os casos da cardiopatia responsável pela morte de uma menina falecida

por dor no coração175 e o das convulsões, talvez epilépticas, de um moço que

morrera quando lhe tremia o corpo todo.176

Nas restantes, incluem-se disfunções reumatológicas, sendo esse o caso da

gota que o Santo Condestável teria curado a uma menina177 e diversificadas

perturbações do funcionamento do aparelho respiratório, digestivo e urinário, como

sejam, respectivamente, a asma que atingira um moço que quase morria,178 a crise

hemorroidal que atormentava um outro,179 e os cálculos renais que, sob o nome de

pedra, adoentavam um terceiro.180 Esta última enfermidade era descrita pela

tratadística médica medieval na qualidade de maleita comum às crianças de idade

situada entre a fase do desmame e os começos da puberdade.

De facto, de acordo com os princípios hipocráticos, os médicos letrados da

Baixa Idade Média consideravam os cálculos renais como a doença que nas crianças

__________________________________________________________________________________ 302

174 "Regimento proueytoso contra ha pestenença", ed. Mário da Costa Roque in As Pestes Medievais Europeias, ed. cit., p. 321. 175 Frei José de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 521. 176 "S. Frei Gil" in Flos Sanctorum, V, ed. cit., p. 195. 177 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 542. 178 Id., ibidem, pp. 519-520. 179 Id., ibidem, p. 533.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

resultava de um rápido aquecimento do corpo, em particular a zona da bexiga, a

partir do momento em que se iniciavam num regime alimentar próximo do dos

adultos, os quais, por sua vez, não sofriam tanto essa doença porque já tinham um

corpo mais frio. Nesse sentido, a tratadística médica dos finais da medievalidade,

recomendava, como profilaxia dos cálculos renais infantis uma dieta isenta, a partir

dos sete anos de idade, de leite, fruta e queijo, aconselhando-se, inclusive, que as

mães se abstivessem de comer este último.

Na análise feita por Eleanora C. Gordon, o facto de os cálculos renais se

encontrarem muito presentes entre as curas registadas nos livros de milagres

medievais ingleses, dever-se-ia certamente, como ainda era comum na Inglaterra

oitocentista, a uma dieta excessivamente rica em hidratos de carbono após o

desmame.181 Ora, na verdade, os estudos paleobiológicos desenvolvidos por

Eugénia Cunha e seus colaboradores em espólios osteológicos recolhidos nos

cemitérios medievais portugueses, como os de Fão e de S. Jorge de Almedina,

testemunham uma alimentação muito rica em alimentos abrasivos, nomeadamente

grandes quantidades de cereais,182 o mesmo sucedendo em relação ao estudo de

esqueletos provenientes dos cemitérios de crianças localizados em S. Pedro de

Marialva e em Serpa, 183 encontrando-se, portanto, reunidas as circunstâncias para o

aparecimento de cálculos renais entre a mais jovem população do Portugal medieval.

Aliás, se uma tal doença deixou de apresentar uma apreciável incidência nas

crianças da Europa Ocidental e da América do Norte, a partir dos finais do século

XIX, é ainda hoje uma enfermidade endémica infantil no Noroeste da Índia, Sul da

China, Tailândia, Japão e outras regiões asiáticas. Existirá, então, conforme

preconizavam os médicos medievais, uma ligação entre a alimentação materna e

a predisposição infantil para contrair cálculo renais, ou estará a tendência relaciona-

________________________________________________________________________________________________ 303

180 Id., ibidem, p. 533. 181 Eleanora C. Gordon, ob. cit., ed. cit., pp. 512-513. 182 Eugénia Cunha, “Populações medievais portuguesas (séculos XI-XV). A Perspectiva Paleo-biológica”, Arqueologia Medieval, 5, Mértola, Ed. Afrontamento, 1997, pp. 71 e 79. 183 Eugénia Cunha, Cláudia Umbelino e Teresa Tavares, "A necrópole de S. Pedro de Marialva - Dados Antropológicos", in Património Estudos,1, Instituto Português do Património Arqueológico, Lisboa, 2001, p. 142; Maria Teresa Ferreira, As crianças moçárabes de Serpa: análise paleobiológica de uma amostra de esqueletos exumados da necrópole do loteamento da zona poente de Serpa, Coimbra, Departamento de Antropologia, 2000 (Relatório de Investigação), p. 49.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

da com uma precoce e deficiente alimentação infantil? Com efeito, nos locais onde a

doença ainda se encontra disseminada, aparece frequentemente declarada em

crianças de fracas condições económicas, normalmente oriundas de comunidades

rurais e com prevalência nos rapazes pré-púberes.184

15 - PREVALÊNCIAS

A evolução dos registos das curas infantis presentes nos livros de milagres

medievais portugueses encontra-se sistematizada, no que respeita às diferentes

doenças, ao sexo da criança agraciada e a uma cronologia ampla, onde se

distinguem dois grandes períodos balizados pelo século XIII,185 no Quadro VII -

- Tipologia, Cronologia e Género das Curas dos Miraculados.

Ao longo dos séculos XII a XV, encontra-se registada a totalidade dos tipos

de doença referenciados para os jovens miraculados. Existem, no entanto,

importantes diferenças no que respeita à evolução da respectiva representatividade.

De facto, enquanto nos séculos XII e XIII prevalecem as menções às curas de

crianças possessas (23%), paralíticas (18%) e mudas (16%), na Baixa Idade Média

são sobretudo as vítimas de hemorragias e feridas (17%), cegueira (16%) e pápulas e

inchaços (15%), as mais registadas, ao mesmo tempo que o número de milagres

recenseados aumenta para mais do dobro relativamente ao período anterior (de 44

para 102).

__________________________________________________________________________________ 304

184 Num simpósio celebrado pela Organização Mundial de Saúde, em Bangkok no ano de 1972, foi focada a correlação existente entre a incidência da doença nas crianças e o grau sócio económico (e consequentemente alimentar) das respectivas famílias e regiões, não ficando ainda bem esclarecido o facto de serem os rapazes o alvo principal da doença. De qualquer forma, e com base em dados publicados, entre 1960 e 1962, num hospital da Tailândia, foram removidas 506 pedras de adultos, 161 de meninas e 1.113 de rapazes antes dos nove anos, ocorrendo a mais alta incidência entre o ano e meio e os dois anos. Sobre estes dados, veja-se Ronald C. Finucane, The Rescue of the Innocents. Endangered Children in Medieval Miracles, ed. cit., pp. 66-67. 185 Foram considerados como milagres registados durante os séculos XII e XIII, independentemente de, em alguns casos, se encontrarem disponíveis através de posteriores tradições manuscritas, os relativos a S. Geraldo, S. Rosendo, Santa Senhorinha de Basto, S. Vicente, Santo António, S. Frei Paio e Nossa Senhora de Terena. No que respeita aos séculos XIV e XV, não obstante referenciarem, por vezes, santos anteriores, incluíram-se os relativos a S. Frei Gil de Santarém, S. Gonçalo de Amarante, Nossa Senhora de Oliveira, Santa Isabel, Mártires de Marrocos, Nossa Senhora das Virtudes, Bom Jesus de S. Domingos, S. Veríssimo, Santo Condestável e S. Pedro de Rates. Sobre as cronologias destes milagres, veja-se o capítulo FONTES UTILIZADAS.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

ADOECER _________________________________________________________________________________________

QUADRO VII - TIPOLOGIA, CRONOLOGIA E GÉNERO DAS CURAS DOS

MIRACULADOS

TIPOLOGIA

DAS DOENÇAS

VALOR GÉNERO SÉCULOS

Nº % M F XII-XIII XIV-XV

PARALISIAS 21 14 14 7 8 13

HEMORRAGIAS

E FERIDAS

20 14 15 5 3 17

CEGUEIRA E

MALES OCULARES

19 13 11 8 3 16

PÁPULAS E INCHAÇOS 19 13 13 6 4 15

DOENÇAS MENTAIS 16 11 11 5 10 6

SURDEZ E MUDEZ 14 10 9 5 7 7

QUEBRADURAS 12 8 12 ___ 1 11

DOENÇAS GRAVES

INESPECÍFICAS

11 8 8 3 5 6

FEBRES E PESTE 8 5 6 2 2 6

DOENÇAS DIVERSAS 6 4 4 2 1 5

146 100% 103 43 44 102

71% 29% 30% 70%

Mais raros, os milagres dos séculos XII e XIII parecem privilegiar a memória

de curas próprias da tradição evangélica, como aliás também ocorre, de acordo com

os estudos efectuados por Didier Lett, nos textos hagiográficos contemporaneamente

produzidos na França medieval. 186 Nesse sentido, os milagres portugueses parecem

reflectir uma época em que os santuários de peregrinação tendiam a ser sobretudo

frequentados para a obtenção da cura de doenças mentais, como o seriam, em última

análise, para além das endemoinhações, muitas das paralisias e das mudezes,

conforme assinala Pierre-André Sigal,187 dada a sua forte componente psico-so-

mática. Sendo assim, durante os séculos XII e XIII, os santuários dispensadores de

curas milagrosas para as crianças acabariam por funcionar, numa época em que a 186 Didier Lett, L' enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe – XIIIe siècle), Paris, Aubier, 1997, p. 59, nota 18.

________________________________________________________________________________________________ 305

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

saúde mental não seria, como sublinha José Mattoso, tão firme quanto se poderia

pensar,188 na qualidade de espaços sagrados onde a fé das crianças e dos seus

parentes próximos encontrava as condições ritualmente eficazes, para, em nome da

reactualização do passado de triunfalismo cristão contra o mal, apaziguar e

neutralizar os desequilíbrios emocionais e afectivos sofridos pelas crianças e pelas

suas famílias.

A partir da Baixa Idade Média, a progressiva afirmação de santuários de

romaria frequentados pelas populações das vilas e cidades do reino fez com que eles

passassem a procurar responder a outras solicitações de terapêutica miraculosa,

menos centradas na cura dos males do espírito e mais na das enfermidades do corpo,

sobretudo o sofrimento trazido pelas pestes que protagonizaram as maiores ameaças

feitas à saúde pública da Cristandade dos finais do período medieval.

Mais abertas a estes anseios, as instituições eclesiásticas do Portugal de

Trezentos e Quatrocentos, já de si sensibilizadas, desde Duzentos, para o

desenvolvimento de actividades de tipo assistencial e caritativo, nomeadamente o

auxílio aos pobres e doentes urbanos que por vezes acolhiam nos albergues e nos

hospitais anexos, souberam então adaptar-se a tais solicitações. Sem deixar de

recolher a memória da ocorrência de milagres sucedidos a crianças possessas,

surdas ou paralíticas, passaram a dar maior relevo às notícias testemunhatórias de

como os poderes taumatúrgicos dos santos também curavam, para além de cegueiras,

igualmente inseridas na longa tradição dos milagres evangélicos, quer hemorragias e

feridas, quer pápulas e inchaços, ou seja, as doenças cujas sintomatologias incluíam

os distúrbios corporais provocados pelos efeitos e consequências das pestes.

Especialmente desejadas e solicitadas, todas estas últimas curas milagrosas

acabaram por inflacionar o registo dos milagres medievais portugueses dos séculos

XIV e XV, contribuindo, por um lado, para a rápida subida do seu montante

relativamente ao período anterior, e por outro, para uma maior representatividade das

crianças do sexo feminino, conforme evidencia o Gráfico nº 20 – Evolução da

__________________________________________________________________________________ 306

187 Pierre-André Sigal, L’homme et le miracle dans la France médiévale (XIe - XIIe siécle), ed. cit., p. 257. 188 José Mattoso, “Saúde corporal e saúde mental na Idade Média portuguesa”, ob. cit., ed. cit., p. 243.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

Representatividade do Sexo das Crianças Miraculadas. De facto, embora seja duran-

te os séculos XIV e XV que os valores relativos às quebraduras, uma enfermidade

exclusivamente masculina,189 alcançam a sua maior expressão, a circunstância de os

homens que redigiram os livros de milagres dos finais da Idade Média se revelarem

mais próximos das angústias e enfermidades terrenas da generalidade das crianças,

fez com que os seus textos passassem a dar uma nova atenção às doenças das

meninas e das raparigas,190 no quadro geral da crescente visibilidade social

alcançada pela mulher das vilas e cidades do Portugal de Trezentos e

Quatrocentos.191

Mas

culin

o

Mas

culin

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Fem

inin

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Fem

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0%

20%

40%

60%

80%

100%

PER

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TAG

EM

GRÁFICO Nº 20 -EVOLUÇÃO DA REPRESENTATIVIDADE DO SEXO DAS CRIANÇAS MIRACULADAS

Até ao séc. XIIISécs. XIV e XV

SEXO

189 Como se passa, aliás, na generalidade dos livros de milagres medievais: Ronald C. Finucane, The rescue of the Innocents. Endangered Children in Medieval Miracles, ed. cit., p. 96. 190 Segundo Robert Fossier, citado por Didier Lett, a própria sociedade medieval teria globalmente conhecido uma taxa de feminilidade menor do que a da masculinidade devido, em grande parte, à maior mortalidade infantil feminina que fora gerada pela sistemática desvalorização da menina em relação ao rapaz, tornando-a mais frequentemente abandonada, mais tardiamente alimentada e criada com menos cuidados: Didier Lett, L’enfant des miracles, Enfance et société au Moyen Âge (XIIe – XIIIe siécle), ed. cit., p. 161. De resto, conforme defende Susan Scrimshaw, o maior cuidado dispensado aos rapazes pode ser encarado, segundo alguns autores, como uma forma passiva, indirecta ou atenuada, de infanticídio feminino ou de negligência selectiva: "Infanticide in Human Populations: Society and Individual Concerns", in Infanticide: Comparative and Evolutionary Perspectives, Glenn Hausfater and Sarah Hrdy (eds.), Nova Iorque, 1984.

________________________________________________________________________________________________ 307

191 O mesmo se passa relativamente à cronística dos finais da Idade Média: Ana Rodrigues Oliveira, As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (sécs. XII a XIV), Patrimonia Histórica, Cascais, 2000, pp. 30-62.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

16 - ACIDENTES

__________________________________________________________________________________ 308

Para além da menção à

cura de várias doenças orgânicas

ou epidémicas, os livros de

milagres medievais portugueses

também referem vários

acidentes infantis que teriam sido ultrapassados graças aos poderes dos santos e dos

cultos disponíveis nos santuários de peregrinação existentes no reino. Num total de

26, neles se incluem quer seis milagres já antes referenciados na abordagem das

curas de hemorragias e feridas,192 dada a sua posterior evolução para graves

enfermidades quer outros dez cujo desfecho letal teria sido depois contrariado

através da graça de uma ressurreição.193

24

205

10152025

Masc. Fem.

GRÁFICO Nº 21 - TOTAL DE CASOS REFERIDOS NOS LIVROS DE MILAGRES

Na sua grande maioria, em 75% dos casos, os milagres relativos a acidentes

infantis registam-se em textos hagiográficos compostos nas duas últimas centúrias

medievais, reportando-se quase sempre a situações ocorridas nas vilas e cidades do

reino.194 De facto, mesmo as notícias datáveis dos séculos XII e XIII apenas num

caso, o do milagre pelo qual S. Rosendo teria feito sair do corpo do filho de um

camponês servil do seu mosteiro a serpente não muito grande que lhe saltara para a

boca e se alojara no estômago, se evoca de forma explícita um contexto rural,195 já

que, tanto a intervenção através da qual S. Geraldo teria contribuído para soltar da

garganta de um menino de Braga o osso que o estava a sufocar,196 como as que se

atribuem a Santo António, em várias cidades, no sentido de ter salvo a vida de

192 Veja-se o ponto 6 do presente capítulo. Trata-se de milagres atribuídos a S. Frei Gil de Santarém (Frei Baltazar de S. João, A vida do Bem-Aventurado Gil de Santarém, ed. cit., p. 106; Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, ed. cit., p. 240), Nossa Senhora das Virtudes (Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 26) ao Santo Condestável (Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 544,554). 193 Veja-se o capítulo seguinte. Compreendem milagres credenciados a Santo António (Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), ed. cit., pp. 265, 271, 272-273), S. Frei Gil de Santarém (Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., pp. 231-232) e ao Santo Condestável (Frei José de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 488, 490-491). 194 Sobre a cronologia seguida para datar os livros de milagres em análise, veja-se, neste capítulo, a nota 185. 195 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., p. 61. 196 "S. Geraldo" in Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. Maria Clara Almeida Lucas, Lisboa, I.N.I.C., 1988, p. 178.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

crianças afogadas ou queimadas,197 também ocorrem em cenários urbanos. Aliás,

quando explicitada, a condição social dos pais dos pequenos acidentados acaba

sempre por remeter, à excepção do já referido camponês de Celanova, para

residência ou ocupação citadinas, sendo esses os casos de um nobre morador em

Santarém, a quem S. Frei Gil teria miraculado um filho,198 ou os dos lisboetas

escrivão dos órfãos do concelho, tanoeiro e sapateiro cujas crianças haviam sido

salvas por intercessão do Santo Condestável.199

Como seria de esperar relativamente a graças concedidas a crianças

acidentadas, os milagres que a elas respeitam são quase sempre apresentados como

de ocorrência imediata, conforme se sintetiza no Gráfico Nº 22 - Tempo de

Manifestação dos Milagres Feitos a Crianças Acidentadas. Contudo, se essa regra

surge em 88% das ocorrências, também se noticiam situações em que o milagre se

apresenta como tendo demorado o muy largo tempo necessário para que se

descobrisse o corpo de uma criança soterrada sob os escombros de um muro,200 ou

apenas se havendo manifestado em três201 ou antes que fossem três dias.202 Nestes

casos, trata-se de milagres em que o acidente só surge superado após uma

ressurreição feita por intercessão dos santos, remetendo as referências aos prazos

citados para o prestígio de poderes taumatúrgicos exercidos em tempos directa ou

indirectamente aproximados aos que teriam ocorrido entre a morte e a ressurreição

de Cristo.

________________________________________________________________________________________________ 309

197 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), ed. cit., pp. 247, 265, 271, 272-273. 198 Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., p. 240. 199 Frei José de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., respectivamente, pp. 512 e 554-555. 200 Id., ibidem, p. 488. 201 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), ed. cit., p. 265. 202 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 26.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

13

2 1 10

4

8

12

16

Nº D

E C

ASO

S

Logo 1 a 3 dias Outro

TEMPO

GRÁFICO Nº 22 - TEMPO DE MANIFESTAÇÃO DOS MILAGRES FEITOS A CRIANÇAS ACIDENTADAS

MasculinoFeminino

Por outro lado, se a natural urgência da obtenção de ajudas sagradas para as

crianças acidentadas fazia quase sempre incluir a sua salvação na categoria dos

milagres imediatos, também propiciava o seu registo enquanto objecto de uma

intervenção taumatúrgica maioritariamente desencadeada pela simples e rápida

invocação de um santo protector, conforme se pode observar através da consulta do

Gráfico Nº 23 - Forma de Desencadeamento dos Milagres a Crianças Acidentadas.

FORMAS

17

6

3

0

4

8

12

16

20

Nº D

E C

ASO

S

GRÁFICO Nº 23 - FORMAS DE DESENCADEAMENTO DOS MILAGRES A CRIANÇAS ACIDENTADAS

EncomendaçãoIda ao santuárioÁgua e Terra santas

Com efeito, quando mencionado o processo de desencadeamento do milagre,

só em 25% das ocorrências (6 casos), é que ele teria resultado do transporte do

acidentado até ao templo de um santo, como sucede relativamente a intervenções

__________________________________________________________________________________ 310

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

taumatúrgicas atribuídas a S. Geraldo,203 S. Rosendo,204 Santo Condestável,205 Santa

Isabel206 e S. Frei Gil, contando-se para este último, como a sua intercessão fora

desencadeada através da utilização de terra santa que estivera em contacto com a

respectiva sepultura.207

De facto, em 75% das situações registadas (18 casos), os milagres das

crianças acidentadas não teriam implicado uma prévia e directa relação dos

agraciados com os templos dos santos e devoções que os teriam salvado, figurando,

quanto muito, essa presença através da água e da terra sagradas rapidamente obtidas

para desencadear uma cura à distância, como se informa ter ocorrido quando o pai de

um moço mordido por um furão danado fora buscar ao convento de Santa Cruz de

Coimbra a água santa dos Mártires de Marrocos para socorrer o filho.208 À excepção

deste caso, todos os outros milagres são noticiados como havendo sido produzidos

após se ter invocado o auxílio do santo através de uma oração, quase sempre

acompanhada pelo voto de, se concretizada a graça, vir a ser depois seguida por uma

ida ao seu templo em pagamento de uma promessa, a qual tanto poderia incluir a

dádiva simbólica de bens, surgindo citado o exemplo da oferta de pão cozido com o

peso equivalente ao da criança miraculada,209 como a própria oferta dos moços

agraciados, na condição de oblatos a integrar em alguma comunidade religiosa

relacionada com o santo.210

Conforme se encontra representado no Gráfico Nº 24 - Idade dos Miracula-

dos por Acidente, 70% dos milagres de acidentados teria ocorrido, de acordo com os

dados registados, antes dos quatro anos de idade, sendo essa, com efeito, uma

característica comum à revelada através da análise dos livros medievais de milagres

________________________________________________________________________________________________ 311

203 "S. Geraldo" in Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. cit., p. 178. 204 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., p. 61. 205 Frei José de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 554-555. 206 Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, Lisboa, 1869/1870,vol. 7, p. 57. 207 Frei Baltazar de S. João, A Vida do bem aventurado Gil de Santarém, ed. Aires A. Nascimento, Lisboa, 1982, pp. 106 e 240. 208 Tratado da vida e martírio dos 5 Mártires de Marrocos, ed. A. Rocha Madahil, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928, p. 71; "Livro dos Milagres dos Santos Mártires", ed. Maria Alice Fernandes, in Livro dos Milagres dos Santos Mártires, Edição e estudo, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1988 (Tese de Mestrado), p. 133. 209 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 26. 210 Cousas Notaveis e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. José Joaquim Nunes, Porto, 1912, pp.30-31, com passagem paralela na Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), ed. cit., pp. 265 e 271; Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., pp. 231-232, num milagre atribuído a S. Frei Gil; Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 490-491.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

produzidos em outras regiões da Cristandade ocidental.211 De facto, as crianças que

conseguiam sobreviver aos acidentes do parto e aos primeiros meses de vida

enfrentavam ainda múltiplos perigos conhecendo durante os seus primeiros anos de

vida um sério risco de virem a ser vítimas de sinistralidade, sobretudo doméstica. Na

realidade era esse o período em que se aventuravam, iludindo a vigilância dos

adultos, pelos espaços menos seguros das casas, fosse a cozinha, o pátio ou o quintal,

como se dedicavam a, inadvertidamente, introduzir substâncias ou objectos nocivos

na boca ou no nariz. Quedas, asfixias ou queimaduras eram, assim, entre outros

acidentes, naturalmente numerosas e preocupantes.

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5-9

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1

2

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4

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GRÁFICO Nº 24 - IDADE DOS MIRACULADOS POR ACIDENTE

Ac. DomésticoAc. Não Doméstico

IDADE

Passada esta primeira fase, os acidentes domésticos tendiam a ser

ultrapassados pela sinistralidade ocorrida no exterior da casa, já que as crianças se

iam autonomizando das casas familiares e passavam a integrar-se em grupos infantis

ou juvenis, cujos quotidianos decorriam em espaços públicos susceptíveis de lhes

proporcionar brincadeiras, jogos, actividades e aventuras colectivas que, por sua

vez, geravam novos e não menos graves riscos. Afogamentos, ataques de animais,

traumatismos e pancadas provenientes de actividades lúdicas, lutas ou participações

__________________________________________________________________________________ 312

211 Vejam-se: Ronald C. Finucane, The Rescue of the Innocents. Endangered Children in Medieval Miracles, ed. cit., p. 142; Barbara Hanawalt, The Ties That Bound.,Peasent Families in Medieval England, Nova Iorque, Oxford University Press, 1986, p. 182; Eleanora C. Gordon, “Accidents Among Medieval Children as seen From the Miracles of Six English Saints and Martyrs", in Medical History, 35, 1991, p. 149.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

precoces nas ocupações e trabalhos dos adultos representavam, então, os principais

perigos da sinistralidade.212

No que respeita aos dados relativos à idade dos miraculados, este segundo

grupo de acidentes revela-se minoritário, dado apenas corresponder a 30% dos

milagres que apresentam uma tal informação. Contudo, se tivermos em conta os

valores relativos à tipologia dos acidentes dos miraculados, conforme se apresenta no

Gráfico Nº 25 alteram-se as posições, já que os sinistros ocorridos fora de casa (69%

do total) suplantam em muito os sucedidos no espaço doméstico (31%), talvez

porque os hagiógrafos considerassem ser sobretudo prestigiante para os cultos e

santos que pretendiam promover, salientar as idades das crianças sobre que incidia

uma maior taxa de mortalidade infantil, ou seja, as mais novas, frágeis e

desprotegidas.

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GRÁFICO Nº 25 - TIPOLOGIA DOS ACIDENTES DOS MIRACULADOS

Ac. fora de casa

Ac. domésticos masculinos

Ac. domésticos femininos

________________________________________________________________________________________________ 313

212 Consulte-se Shulamith Shahar, Childhood in the Middle Ages, Londres, Routledge, 1990, em particular a p. 26.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

De resto, sendo estatisticamente a representação dos acidentes fora de casa

mais do dobro da reservada aos domésticos, justifica-se o tão baixo montante das

crianças do sexo feminino presentes na totalidade dos milagres, apenas duas em 26

ocorrências. Com efeito, o facto de não ser muito comum figurarem entre os grupos

infantis e juvenis, tendencialmente masculinos, que passavam uma grande parte do

seu tempo no exterior do lar, faz com que a presença das raparigas se encontre

apenas assinalada entre as vítimas dos acidentes domésticos típicos de uma primeira

infância, com um déficit semelhante, e pelas mesmas razões, ao referido a propósito

dos milagres de cura das doenças.

17 – SINISTRALIDADE DOMÉSTICA

Correspondentes a 31% dos acidentes miraculados nos livros de milagres

medievais portugueses, as asfixias, quedas e queimaduras representam o conjunto da

sinistralidade doméstica infantil e juvenil. Ao comparar os tipos de acidentes de

crianças registados em escritos hagiográficos procedentes de diversas regiões

medievais europeias, Pierre-André Sigal define como padrão tipicamente

mediterrâneo o predomínio de uma sinistralidade doméstica, representada sobretudo,

de acordo com um modelo italiano, pelas quedas ocorridas nas escadas dos prédios

com vários andares, quando os pais se ausentavam para trabalhar.213 Sendo assim, os

dados relativos ao caso português não o parecem permitir integrar neste contexto, já

que os milagres por acidente doméstico não só se revelam muito inferiores aos

acontecidos fora de casa, como, entre eles, não predominam as quedas, se bem que

duas delas figurem na qualidade de graças concedidas em Lisboa por intercessão do

Santo Condestável, sendo esses os casos de uma menina de dois anos, filha de um

tanoeiro da cidade, que caiu pelas escadas e ficou quase morta,214 e de um menino

de muito pouca idade, a quem a também queda por uma escada fizera ficar logo

morto de todo.215

__________________________________________________________________________________ 314

213 Pierre-André Sigal, ob. cit., ed. cit, pp. 62-63. 214 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 554-555. 215 Id., ibidem, p. 488.

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ADOECER _________________________________________________________________________________________

Contudo, no que diz respeito às queimaduras, os acidentes domésticos

recordados nos livros de milagres medievais portugueses não desmentem uma

proximidade a um claro perfil mediterrânico. De facto, se Barbara Hanawalt

considera as queimaduras provocadas pelos incêndios das casas ou por quedas nas

lareiras domésticas como um acidente infantil típico das crianças agraciadas nos

livros de milagres redigidos no Ocidente medieval nórdico e atlântico, sobretudo

inglês, onde se chegam a mencionar fogos provocados pelas galinhas que, ao

debicarem restos de comida em redor do lume doméstico, espalhavam pela casa

brasas incendiárias, 216 nada de semelhante aparece registado nos livros portugueses.

De facto, o único exemplo da ocorrência de queimaduras infantis apenas se noticia a

propósito da graça concedida por Santo António, numa cidade mediterrânica não

portuguesa, a um menino de berço, para o livrar das consequências de a mãe o ter

acidentalmente colocado em cima de uma caldeira com água a ferver.217

No entanto, mais do que o reflexo cruzado dos contextos civilizacionais

atlântico e mediterrânico, sobre os quais, aliás se afirmou e estruturou o reino de

Portugal, a tipologia dos acidentes domésticos infantis registada nos livros de

milagres produzidos no País parece sobretudo remeter para o desenvolvimento de

estratégias elaboradas pelos santuários urbanos no sentido de melhor captarem os

devotos das cada vez mais povoadas vilas e cidades. De facto, parece ser esse o

objectivo pelo qual os acidentes infantis devidos a quedas domésticas começam a

ganhar algum protagonismo nos mais recentes livros de milagres, e que neles passe a

figurar a notícia de várias intervenções taumatúrgicas destinadas a salvar as crianças

das frequentes mortes por asfixia. Esse tipo de sinistralidade, provocada pela

presença na faringe ou na traqueia de substâncias ou objectos de efeito inflamatório

e/ou simplesmente obstrutivo de uma normal respiração pulmonar, não é, no entanto,

apontado como específico dos escritos hagiográficos mediterrâneos ou atlânticos.

Sendo esse o mais corrente tipo de acidente doméstico presente nos livros de

milagres medievais portugueses, ele tende a figurar em textos hagiográficos

relativamente recentes, salvo a excepção do registo que, no século XII, atribui ao

bispo S. Geraldo a salvação de um menino de Braga que asfixiava com um osso

________________________________________________________________________________________________ 315

216 Barbara Hanawalt, The Ties That Bound. Peasent Families in Medieval England, ed. cit., p. 175. 217 Crónica da Ordem dos Frades Menores, I, ed. cit., p. 247 e Cousas Notaveis e Milagres de Santo Antonio de Lisboa, ed. cit., p.17.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

atravessado na garganta,218 ao mesmo tempo que por ele se visa assinalar a

superioridade dos poderes taumatúrgicos de santos de culto ou devoção urbanos,

como, aliás, já era o caso do prelado bracarense antes referido. De facto, é

neste contexto que, por um lado, se atribuem aos santos mendicantes S. Frei

Gil de Santarém e S. Gonçalo de Amarante, os socorros prestados, respectivamente,

a um minino de peito asfixiado por engolir um anel,219 e de um menino de sete ou

oito meses que engoliu um ceitil que se lhe atravessou na garganta, e começou a

lançar sangue pela bocca e estava quasi expirando,220 e que, por outro, se credencia

ao Santo Condestável as intercessões que teriam aliviado o filho de pouca idade do

escrivão dos órfãos de Lisboa, que, com uma espinha encravada na garganta sufocou

e estava negro e uma menina de muy tenra idade, asfixiada por ter engolido um

outro anel.221

18 – OS ACIDENTES NO EXTERIOR DA CASA

Fora do lar familiar, as proverbiais curiosidade, indisciplina e agressividade

das crianças, quase sempre agrupadas em ruidosos e desordeiros grupos juvenis,

enfrentavam os riscos e os obstáculos colocados pela natureza, pelo mundo dos

adultos e pela própria violência com que, por vezes, desenvolviam os seus jogos e

actividades lúdico-desportivas. Na tipologia dos acidentes registados nos livros de

milagres medievais portugueses, são sobretudo os contactos com as águas e com os

animais que se associam a um maior número de acidentes, motivando 78% da

sinistralidade registada para o exterior da casa familiar.

Nos textos hagiográficos da Cristandade nórdica e atlântica, bastante

devedora de um clima particularmente húmido e chuvoso, onde os cursos de água, as

lagoas e os pântanos se afirmavam como grandes obstáculos ao deambular e à

aventura infantis e juvenis, são os afogamentos que figuram na qualidade de

acidentes mais representados entre as crianças miraculadas.222 No Portugal medieval

a situação é idêntica, se bem que equiparável à sinistralidade provocada pelos

__________________________________________________________________________________ 316

218 “Sam Giraldo” in Ho Flos Sanctorum em Linguagē: Os Santos Extravagantes, ed. cit., p. 178. 219 "S. Frei Gil" in História de S. Domingos, ed. cit., p. 240. 220 "S. Gonçalo de Amarante" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, I, ed. cit., p. 282. 221 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 512 e 514. 222 Barbara Hanawalt, "Chilrearing Among the Lower Classes of Late Medieval England" in Journal of Interdisciplinary History, t. VIII, 1, 1977, pp. 11-13; Pierre-André Sigal, "Les accidents de la petite

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acidentes ocorridos com animais. De facto, em muitos dos livros de milagres

medievais portugueses, o cenário formado pelas praias, rios, ribeiras, canais ou

mesmo tanques de água corrente ou parada configura uma paisagem associada a

numerosos e quase sempre letais acidentes infantis.

Num país oceânico como o português, o mar surge citado como fonte de

inúmeros perigos. Nele, por exemplo, se noticia o caso de um rapaz que cayo ao

mar, quando, ao viajar com o pai, deu huu grande rebolaais na barca que navegava

junto à costa. 223 Noutros casos, as águas marítimas apresentam-se associadas a

trágicas brincadeiras, como se diz ter sucedido ao rapaz menor de idade que se

afogara ao ir andar de barco com os seus amigos para se divertir,224 ou, com a

mesma fatal consequência, quer o menino de cinco anos que as ondas levaram

quando se encontrava a folgar com outros à ribeira do mar,225 quer ao moço

sumido nas vagas por ter ido brincar com outros à praia.226

Contudo, não são apenas as águas salgadas que sinalizam o afogamento de

crianças que teriam sido depois salvas pela fé nos poderes dos santos. Também as

águas doces e termais situam idênticos perigos e acidentes. As primeiras figuram

num milagre atribuído a Santo António para o caso de um rapaz de sete anos que

andava

jugando com outros nove moços em no canall de huum rio, e as agoas de

aquele ryo estavam reteudas em huum canall çarrado pera regar as meses,

assy que o lugar omde os moços andavam estava sequo, (e) acomteçeo que

sse abrio o canall, donde as aguas estavam represadas, e correrom as

agoas com arrevatamento e tomarom todos os dez moços e forom ally

afogados.227

________________________________________________________________________________________________ 317

enfance à la fin du Moyen Age" in Robert Fossier (ed.), La petite enfance dans l'Europe médiévale et moderne, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 1997, p. 62. 223 Frei João da Póvoa, "Livro dos milagres de Nossa Senhora das Virtudes" in ob. cit., ed. cit., p. 17. 224 Crónica da Ordem dos Frades Menores, I, ed. cit., p. 271 e Cousas Notaveis e Milagres de Santo Antonio de Lisboa, ed. cit., pp. 34/35. 225 Crónica da Ordem dos Frades Menores, I, ed. cit., p. 265; Cousas Notaveis e Milagres de Santo Antonio de Lisboa, pp. 30-31. 226 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 490. 227 Crónica da Ordem dos Frades Menores, I, ed. cit., pp. 272-273.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

As segundas, tanto localizam uma piscina balneária onde uma criança que

jogava ao salto com outra escorregou e mergulhou tragicamente228 como o tanque de

águas quentes termais por cujas escadas caíram em tombos à agoa dois meninos que

brincavam na sua borda, havendo um deles, depois de trazido do fundo já morto e

meio cozido, com a tez do rosto denegrida, e todo o corpo inchado e azulado, sido

ressuscitado e salvo por um milagre atribuído a S. Frei Gil de Santarém. No entanto,

o minino enquanto viveu ficou sempre amarelo e sem cor de rosto. 229

__________________________________________________________________________________ 318

228 Frei Baltazar de S. João, A vida do bem aventurado Gil de Santarém, ed. cit., p. 106. 229 "S. Frei Gil" in Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, I, ed. cit., pp. 231-232.

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Figura 54 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (século XIII). Entre os milagres hispânicos atribuídos nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X a Nossa Senhora, conta-se o do salvamento de uma menina afogada quando fora beber água a um canal de rega urbano.

________________________________________________________________________________________________ 319

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

Para além dos perigos das águas, a natureza também se encontra

equitativamente presente enquanto factor desencadeador de acidentes acontecidos a

crianças miraculadas, através dos desastres provocados por animais. Em alguns

textos hagiográficos essa presença evoca, sobretudo, um meio rural, quer ligado à

pastorícia, quer ligado à caça. No primeiro caso, conta-se como S. Rosendo fizera o

milagre de retirar uma serpente que se alojara no estômago do filho de um camponês

do seu mosteiro que andava a guardar gado, e que, ao ver o réptil lhe atirou com o

bastão. Ao inclinar-se para apanhar o pau que caíra no meio de uns espinhos, o

animal saltou-lhe para a boca e desceu-lhe até ao ventre.230 O segundo caso ocorre

no registo onde se lembra terem os Mártires de Marrocos salvo um moço mordido

por um furão danado.231 Também aponta para uma cena campestre o caso da

sanguexuga que teria sido expulsa da garganta de um menino por graça da rainha

Santa Isabel.232

Noutros textos, os acidentes provocados por animais de montada ou de carga,

parecem antes situar-se num contexto urbano, sendo corrente verificarem-se muitos

sinistros desse tipo, nas vilas e cidades do reino onde o transporte era assegurado por

cavalos, mulas e jumentos. 233 De facto, teria sido essa a situação, tanto do menino de

Lisboa que andava brincando junto à porta da sua casa, quando foi trilhado por uma

cavalgadura desenfreada,234 como a do moço de Santarém que se encontrava na rua

com outros rapazes quando um macho, cujo dono é referido como sendo mais bruto

que o animal e sem cuidado com as criançinhas, o atropelou e fez partir um braço.235

Ainda se aproximam deste mesmo tipo de sinistralidade urbana quer um outro

atropelamento noticiado em Santarém para mais um jovem vitimado com um braço

partido,236 quer a referência à criança lisboeta que levara o mortal coice de uma

mula, apenas lhe valendo uma ressurreição atribuída aos poderes taumatúrgicos do

Santo Condestável.237

__________________________________________________________________________________ 320

230 Vida e Milagres de S. Rosendo, ed. cit., p. 61. 231 Tratado da Vida e Martírio dos 5 Mártires de Marrocos, ed. cit., p. 71. 232 "Santa Isabel" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, VII, ed. cit., p. 57 233 Iria Gonçalves, Um olhar sobre a cidade medieval, ed. cit., p. 86. 234 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 554. 235 Frei Baltazar de S. João, A vida do bem-aventurado Gil de Santarém, ed. cit., p. 106. 236 "S. Frei Gil" in Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, ed. cit., p. 240. 237 Frei José de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 490-491

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Por fim, vários outros acidentes infantis inserem-se em contextos sociais

relacionados com a participação das crianças em actividades ou trabalhos de adultos,

seja por obrigação, seja por aprendizagem ou simples desejo de imitação, saldando-

-se, em geral, por mais ou menos graves traumatismos. Dois deles encontram-se

referidos com algum pormenor, sem que contudo sejam fornecidos dados específicos

sobre a idade exacta das crianças ou sobre uma sua possível condição de

envolvimento num trabalho infantil de gestão familiar e/ou patronal. Ambos relativos

a milagres dispensados por graça de Nossa Senhora das Virtudes, surgem

referenciados como acidentes respeitantes a uma cabeça amassada e a um

esbarrigado. O primeiro teria ocorrido a um moço pequeno que andava na malhada,

quando um mancebo que com ele se encontrava,

tirando huu remo da eschama quebrou per meo E ha meetade do remo deu

ao moço na trincheyra tam grande golpe que lhe meteo o testo por dentro em

tal gujsa que jouue mujtos dias sem falla, de modo que todos ho julgauam

por morto.238

O segundo refere como um rapaz, a quem os pais haviam enviado

por huu asno, leuaua hua cana na maão E cayo E chentousse-lhe a

cana polla uerilha E sayo lhe pollo embigo. E quando lhe tiraram a cana

sayramlhe as tripas fora.239

Também enquadrável num acidente por traumatismo teria sido a circunstân-

cia que levara um moço com a perna partida em dois sítios a ser miraculado pelo

Santo Condestável, apesar de os cirurgioes haverem dito logo que não tinha cura e

que em breves dias morreria.240 Não existem, contudo, indicações sobre o modo

como teria ocorrido o sinistro, bem como as exactas condições em que teria sido

subterrado, devido à derrocada de um muro, o menino de muito pouca idade que o

mesmo santo salvara de uma morte certa, após muy largo tempo para tirar as pedras

que o cobriam. De facto, apenas nos é fornecida a informação de que andava a

brincar junto ao muro quando tal acontecera.241

________________________________________________________________________________________________ 321

238 Frei João da Póvoa, "Livro dos milagres de Nossa Senhora das Virtudes" in ob. cit., ed. cit., p. 26. 239 Id., ibidem, p. 26. 240 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 544. 241 Id., ibidem, p. 488.

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Neste caso, tal como já referimos a propósito de alguns afogamentos, a

sinistralidade infantil fora de casa teria sido originada pelos perigos decorrentes do

exercício de actividades lúdicas e desportivas pouco vigiadas pelos adultos e

comportando riscos dificilmente previsíveis pelas crianças cujos jogos, competições

e passatempos conheciam escassas regras e limites de risco. Aliás, não são só os

registos dos livros de milagres que nos dão a conhecer essa realidade neles bem

presente pelo facto de 35% das graças outorgadas a crianças acidentadas figurarem

como tendo ocorrido quando elas brincavam na rua sozinhas ou em grupo. Também

a própria documentação régia, como é o caso das cartas de perdão estudadas por

Luís Miguel Duarte nos oferece abundantes testemunhos. Assim, João, menino com

menos de dez anos, andava a brincar com o seu irmão, Diogo, de seis, com um

boneco descrito como

huum mancebo de paao em que se poynha a cadea e lhe arremessava cada

huum per sua vez huum espeto de ferro aa cabeça do dito mancebo a quem

lhe primeiro daria.

Ora quando foi a vez de João lançar o espeto, este ricocheteou na cabeça do boneco e

penetrou, pela ponta, na vista do irmão, provocando-lhe a morte. Por sua vez, um

outro João, criança de nove anos que era filho de um sapateiro, também andava um

dia folgando com outros, quando chegou um moço a

verter augoa, e se afastara dos outros e acabando de fazer seus fectos

mostrara o cuu aos outros moços, os quaees por ello lhe começarom de

deitar pedras.

João atirou-lhe também uma, causando-lhe uma pequena ferida que mais tarde

acabaria por o vitimar.242

Outro caso conhecido é o de Estevão, de sete ou oito anos de idade, filho de

um lavrador, o qual andava brincando e trebelhando com outros moços,

andando-se empuxando huuns aos outros e fazendo outras travesuras que

fazem meninos. E amdando asi todos folgando e tirando a porcos com pedras

__________________________________________________________________________________ 322

242 Luís Miguel Duarte, Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pp. 274-275.

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aconteceu que Estevão atirou com hua pedra a huum porco e em atravessando um

seu primo da mesma idade per diamte lhe dera com a dicta pedra na testa e lhe

fezera com ella hua belizcadura pequena da qual acabou por morrer.

Também dois irmãos, Afonso e Fernando, órfãos de pai, que andavam

joguetando (...) sobre hua violla que Afonso estava tamjendo por lhe elle

lançar mão por ella o dicto Fernando lhe dera huum enpuxom e por seu

pecado o dicto seu irmãao fora cayr sobre elle e fora dar com os peitos na

pomta de huum punhall que elle trazia na mãao que era do dicto seu irmãao

que lhe emprestara pera fazer hua choça a huum perdigam que fora chamar.

Como consequência, Fernando morreu.

Um último caso refere Diogo que andava, como de costume, jogando a besta

em uns cortinhais e atirando à barreira; então

sobrelevara a dicta besta e fora dar o virotam em hua pedra chãa e

barafustara per cima de huas sebes e fora dar na cabeça a huum moço que

estava detras de huum adro de hua igreja com hum menyno no collo o quall

moço seria de hidade de sete ou oyto anos,

e que acabou por falecer.243

19 - RESPONSABILIZAÇÕES

O pedagogo Filipe de Novara assinalava, no século XIII, que os três

principais perigos que corria uma criança mal vigiada, eram o fogo, a água e as

quedas, recomendando a necessidade de uma vigilância por parte dos adultos até à

idade dos sete anos, ou mesmo até aos dez.244 Contudo, se mesmo entre os

pensadores medievais se condenava algum desleixo e negligência para com as

crianças, sobretudo as da segunda infância,245 eles seriam quase inevitáveis por pais

e sobretudo mães muito jovens, por vezes em plena adolescência, e com filhos

________________________________________________________________________________________________ 323

243 Id, ibidem, pp. 227 e 278. 244 Filipe de Novara, Les Quatre Âges de l'homme, ed. M. de Fréville, Paris, 1888, p. 103. 245 Danièle Alexandre-Bidon e Monique Closson opõem a sobreprotecção da criança pequena ao laxismo verificado em relação à criança um pouco maior, correspondendo a um risco conscientemente aceite: L’enfant à l’ombre des cathédrales, Paris, Cahiers du Léopard d’Or, 1985, pp. 229-232.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________

consecutivos. A pouca maturidade e experiência destas jovens podiam, concerteza,

originar situações como estas.

De facto, pesem embora as críticas que os pedagogos medievais lançavam

às mães que deixavam os filhos sozinhos em casa quando tinham de se ausentar, 246

tal não se verifica nos livros de milagres medievais portugueses, chegando-se mesmo

a desculpar as progenitoras que, para ir ouvir a pregaçam de um santo chagavam a

provocar acidentes infantis tão graves como colocar, por engano, a sua criança numa

caldeira de água a ferver, julgando tratar-se de um berço, 247 ou demorar-se tanto

que, ao chegar, encontravam o filho morto e jazendo papariba.248 Com efeito, em

ambos os casos, quando as mães lembraram ao santo as boas razões que tinham

estado na origem dos acidentes dos filhos, logo dele teriam alcançado um milagre de

salvação, tendo bastado a sua condição de progenitoras dorossas pela morte dos

seus meninos, para as suas lágrimas alcançarem a ressurreição das crianças.

Na verdade, o amor e o arrependimento eram factores de grande peso para os

crentes. No Penitencial de Martin Perez, a grande contriçon, grande ffe, grande

amor e corrigimento de vyda definiam cousas muito importantes para Deus, que as

reçebe de melhor mente por emenda que aa pena de fora. Para isso, funcionariam,

então, as penitençias em alvidro dos confessores que deviam ter ainda em

consideração

as compreisoões, as idades, as forças, as condiçõoes, as conversaçoões, as

companhias, as moradas, as terras, as qualidades dos pecadores.

Referindo-se a Deus o Penitencial refere que

se Ele é tão largo, nom deve o despenseiro seer escaso. Se Deus he benino e

manso, porque quer o seu sacerdote seer cruel e bravo? Mays val’ dar a

Deus conta da grande misericordia que da grande justiça.249

__________________________________________________________________________________ 324

246 Raimundo Lúlio, Doctrine d' enfant, ed. A. Llinares, Paris, 1969, p. 207. 247 Crónica dos Frades Menores, I, ed. cit., p. 247 e Cousas Notaveis e Milagres de Santo Antonio de Lisboa, ed. cit., p.17. 248 Crónica dos Frades Menores, I, ed. cit., p. 247 e Cousas Notaveis e Milagres de Santo Antonio de Lisboa, ed. cit., p.18.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

ADOECER _________________________________________________________________________________________

De uma maneira geral, a grande maioria dos acidentes relatados reflectem

situações comuns a todas as épocas. Em relação à contemporaneidade, um ponto

comum se salienta: o peso dos acidentes domésticos, sobretudo entre os mais

pequenos. Ontem como hoje, as crianças muito activas ou curiosas que ficam por

alguns momentos sem atenção por parte dos adultos, continuam a ser vítimas de

muitos acidentes ocasionais.

É também sintomático que as mesmas percentagens de acidentes por sexo se

mantenham na actualidade. Estudos recentes salientam como, na globalidade, tanto

nos países desenvolvidos como nos em vias de desenvolvimento, a ratio de acidentes

masculinos e femininos (excluindo os acidentes com armas de fogo e os rodoviários)

é de cerca de dois para um. De resto, ainda no campo estatístico, é também um facto

comprovado que, entre o nascimento e os nove meses/um ano de idade, o período em

que a criança está completamente dependente dos outros, a taxa de acidentes para

ambos os sexos é semelhante. A partir de um ano, altura em que a criança começa a

desenvolver maior mobilidade, curiosidade e independência, os acidentes masculinos

ultrapassam largamente os femininos. Se para alguns investigadores a razão

predominante se prende com a tradicional tendência de os rapazes se exporem mais

frequentemente ao perigo do que as meninas, para outros a situação é vista não tanto

como o resultado de tradições culturais mas sim de ordem genética; assim, uma

maior actividade física e um mais alto nível de agressividade entre os rapazes será

biológico e propiciará uma infância de maiores riscos.250

________________________________________________________________________________________________ 325

249 O Penitencial de Martim Pérez em Medievo-Português, ed. Mário Martins, Lisboa, 1957, pp. 53- -55. 250 Ronald C. Finucane, The Rescue of the Innocents. Endangered Children in Medieval Miracles, ed. cit., pp. 141-142.

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MR7 ORRER E ESSUSCITAR

O passado nunca morre completamente para o homem. O homem pode esquecê-lo, Mas deste passado guardará sempre a recordação.

Fustel de Coulanges 1

A morte das crianças encontrava-se inscrita nos quotidianos

sociais da Idade Média. Com efeito, raras eram então as famílias,

mesmo as das elites, que desconheciam a perda de um ou mais filhos

antes da adolescência. Os próprios reis portugueses, à excepção de

Afonso II, passaram por essa experiência. Segundo Oliveira

Marques, o número de filhos sobreviventes de uma família

portuguesa dos séculos XII a XIV rondaria, em média, os dois,

sendo muito frequentes os lares em que só um filho ultrapassava a

maioridade.2 Conhecedores desta realidade, os pedagogos medievais

salientavam como as crianças corriam sempre um grande perigo de

morte até atingirem os dez anos.3

1 – AS VIDAS BREVES

Na iconografia medieval da morte, a brevidade da vida dos meninos e das

meninas encontra expressão na tendência para figurar a alma que abandona um corpo

defunto através de uma criança nua, exalada pelo último suspiro do moribundo em

direcção ao Além, conforme surge representada numa cena do túmulo de Egas Moniz

de Riba Douro (fig. nº 55), elaborada no mosteiro de Paço de Sousa nos finais do

século XIII,4 ou na iluminura do missal cisterciense de Alcobaça,5 (fig. nº 56)

1 Fustel de Coulanges, A cidade antiga, Porto, Clássica Editora, 1988, p. 8. 2 A. H. de Oliveira Marques, "A morte" in A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1974, p. 210. 3 Filipe de Novara, Les Quatre Âges de l'homme, ed. M. de Fréville, Paris, 1888, p. 103. 4 Carlos Alberto Ferreira de Almeida, História da Arte em Portugal. O Românico, Lisboa, Ed. Presença, 2001, p. 166. 5 José Mattoso, "Mutações" in José Mattoso (coord.), A Monarquia Feudal, História de Portugal, 2, Lisboa, Estampa, 1993, p. 258.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

Figura 55 - Túmulo de Egas Moniz, Mosteiro de Paço de Sousa (2ª metade do século XIII). No seu leito de morte, o nobre portucalense Egas Moniz de Riba Douro, liberta, num últimosuspiro, a sua alma, que, ao ser acolhida por dois anjos, figura a certeza de uma subida até aoParaíso.

Figura 56 – Iluminura de um missal cisterciense de Alcobaça (Século XIII) Deus recebe a alma de um moribundo sob a forma de uma criança que sai da boca do defunto.

_________________________________________________________________________________ ANA RODRIGUES OLIVEIRA

328

MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

Esta forma de representação da alma estará relacionada, por um lado, com a

simbologia da criança como o renascer para uma outra e superior vida, a celestial, de

acordo com tradições neoplatónicas herdadas da Antiguidade.6 Por outro, porque, tal

como a criança acabada de nascer, ou pelo menos ainda não protegida pelo ritual

purificador do baptismo, se encontrava à mercê de um combate travado entre as

forças demoníacas e as angélicas, mantendo-se então indecisa a questão da sua

salvação eterna, também a alma dos mortos só atingiria a sua possível morada

celestial, depois de ver avaliado e sentenciado o sentido da sua existência terrena,

visto que a morte do corpo apenas sinalizava um compasso de espera no caminho do

espírito para o Além, fosse o desejado Paraíso, o condenatório Inferno ou o

transitório Purgatório.

Figura 57 - Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) Os diabos tentam apoderar-se da alma de um romeiro que acabou de falecer.

_____________________________________________________________________________________

3296 Jean-Pierre Nérandan, Être enfant à Rome, Paris, Payot, 1996, pp. 223-250.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

Contudo, se a angústia e a dor pelo destino da alma de uma criança morta e

não baptizada a tornava imagem e metáfora da Humanidade terrena que ansiava pela

prometida eternidade celestial, a sociedade medieval não deixava de tentar assegurar-

lhe garantias susceptíveis de permitir a salvação espiritual. Já nos referimos aos

sacramentos possibilitados pelo baptismo e à procura de protectores celestiais, como

os Santos, a Virgem ou o Menino Jesus.7 Existiam, no entanto, outras práticas

religiosas relacionadas com a iniciação social à aprendizagem infantil da morte e da

sua preparação.

De facto, à partida, as crianças eram levadas a participar nas cerimónias

relativas à agonia e à morte dos seus próximos, fossem irmãos, pais, parentes ou

vizinhos. Com efeito, existem múltiplos testemunhos escritos e iconográficos sobre a

efectiva presença de crianças nos cerimoniais que acompanhavam as vigílias da

agonia dos moribundos e os seus posteriores velórios e funerais, conforme se

encontra exemplificado através da figura seguinte.

Figura 58 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII)

A participação das crianças nas cerimónias da morte dos adultos encontra-sefrequentemente representada na iconografia hispânica medieval.

7 Cf. Capítulo 5 – PROTEGER.

_________________________________________________________________________________ ANA RODRIGUES OLIVEIRA

330

MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

Uma tal participação, aliás, era mesmo um dever social imposto aos

pequenos órfãos ou estudantes, acreditando-se que a sua condição de jovens

baptizados e inocentes de graves pecados reflectiria a presença de forças espirituais,

não só capazes de afastar os diabos que lutavam pela posse das almas dos defuntos,

como também de atrair para os mortos a misericórdia divina. 8

Segundo Le Roy Ladurie, os camponeses medievais da aldeia pirenaica de

Montaillou consideravam ser a presença das crianças no passamento e nos funerais

dos seus familiares por eles depois recompensada, atribuindo-se aos mortos mais

idosos, os avós, o posterior exercício da actividade de guardiães nocturnos dos seus

mais jovens descendentes, nomeadamente as protecções destinadas a que os netos

fossem salvos de muitos perigos, doenças e acidentes a que sempre estavam sujeitos.

De resto, para os aldeões de Montaillou, a morte de um dos membros adultos da

comunidade seria acompanhada pela libertação de uma alma que daria, depois,

entrada na primeira criança a nascer na sua família. Acreditava-se, ainda, serem os

respectivos choros nocturnos da primeira infância uma manifestação da vontade de

os antepassados mortos despertarem a ternura e os carinhos a exercer pelos seus

descendentes vivos .9

Indo no sentido da defesa da generalização medieval das crenças descritas

por Le Roy Ladurie, Françoise Loux aponta outros exemplos de comunidades onde,

do mesmo modo que em Montaillou, vigorava a ideia de que os defuntos adultos

reencarnariam nas primeiras crianças nascidas dos seus descendentes, ao mesmo

tempo que também refere o uso terapêutico de embrulhar os meninos e meninas

doentes nos lençóis que haviam coberto algum dos seus antepassados mortos durante

o velório.10 Por seu lado, Christiane Klapisch-Zuber ressalta dever-se ao hábito

medieval florentino de atribuir a um recém-nascido o nome próprio de algum

antepassado recentemente falecido, a consideração de se estar perante uma sociedade

que, ao contrário de fazer luto pelos mortos, os procurava conservar entre os vivos,

_____________________________________________________________________________________

331

8 J. Delumeau, La Religion de ma mére, le rôle des femmes dans la transmission de la foi, Paris, Fayard, 1992, pp. 118-119 e 419-420. 9 Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou Cátaros e Católicos numa aldeia occitana, 1294-1324, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 269. 10 Françoise Loux, Le Jeune Enfant e son corps dans la médecine traditionnelle, Paris, 1978, p. 252.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

fazendo com que, ao pronunciar-se o nome de um dos seus jovens membros, sempre

se reactivasse a lembrança de algum defunto, discreta maneira de o fazer regressar.11

A assistência infantil e juvenil à morte e ao enterro dos adultos e de outros

jovens, era também recomendada como decisiva contribuição para a aprendizagem

de uma boa morte, nomeadamente por permitir o conhecimento dos gestos e das

orações que a deviam propiciar, visto que o estado da infância não os dispensava dos

últimos sacramentos. De facto, muitos pedagogos da Baixa Idade Média

consideravam essencial que a doutrinação cristã das crianças incluísse saber de cor

as orações próprias dos agonizantes, referindo os trecentistas Contos de Cantuária o

exemplo de um menino de oito anos que sabia muito bem cantar de cor a Alma

Redemptoris Mater, uma oração em que se pedia a intercessão de Nossa Senhora

para a salvação da alma à hora da morte.12

Mesmo aos jogos e aos passatempos era atribuída uma idêntica função. De

facto, entre os jovens da nobreza Ocidental dos séculos XII e XIII, jogar xadrez

permitia-lhes reflectir sobre os meios e as estratégias capazes de enganar ou deter o

maior dos seus adversários, ou seja, a Morte que jogava nas casas pretas, opondo-se

à vida que era simbolizada pelas brancas.13

11 Citado por Didier Lett, L'enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe – XIIIe siècle), Paris, Aubier, 1997, p. 217. 12 Daniéle Alexandre-Bidon, "Apprendre à vivre; l 'enseignement de la mort aux enfants", in Danièle Alexandre-Bidon e C. Treffort, (dir.), À reveiller les morts. La mort au quotidien dans l'Occident médiéval, Lyon, 1993, pp. 39-40. 13 Danièle Alexandre-Bidon, La mort au Moyen Âge (XIIIe. – XVIe. siècle), Paris Hachette, 1998, pp. 45-51. Sobre a recepção medieval do jogo indiano do xadrez e das transformações que então sofreu na Cristandade Ocidental, consulte-se Titus Burokhardt, La civilización hispano-árabe, Madrid, Alianza, 1977, pp. 131-158.

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2 – AS SEPULTURAS

Nas várias necrópoles medievais recentemente estudadas por arqueólogos e

antropólogos,14 verifica-se não só uma notória sub-representação dos menores de

dezoito anos entre os cadáveres exumados, já que oscilam entre os 12% e os 25% do

respectivo total, como de recém nascidos e de lactantes.15 Ora, atendendo a que a

mortalidade infantil e juvenil era muito elevada na Idade Média, parece difícil

considerar estes dados como representativos da respectiva morbilidade. Importa, no

entanto, realçar quer o facto de terem sido encontrados cadáveres de crianças muito

novas em várias necrópoles, sendo isso uma prova de que elas eram inumadas no

mesmo local reservado aos adultos, quer o de existirem importantes excepções à sua

fraca representatividade, nomeadamente no que respeita às necrópoles da Quinta de

S. Pedro (Corroios, Seixal), S. Saturnino (Sintra), S. Pedro de Marialva e Serpa.

De facto, nestas necrópoles a representatividade das sepulturas infantis

oscila entre os 38% relativos à segunda fase da intervenção arqueológica do

cemitério da Quinta de S. Pedro, ocorrida em 1996, tendo-se dois anos antes, durante

a primeira fase, obtido o valor de 48%,16 e os 74% encontrados em Serpa.17 Entre

estes valores situam-se, então, os 57% não adultos, incluindo oito (68%) que

morreram antes da primeira infância, facultados pela intervenção arqueológica

desenvolvida no cemitério medieval de S. Saturnino, uma necrópole utilizada entre

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14 Veja-se a relação apresentada em Eugénia Cunha, "Paleobiologia, História e Quotidiano: critérios da transdisciplinaridade possível", in Amélia Aguiar Andrade e José Custódio Vieira da Silva (coord.), Estudos Medievais, Lisboa, Horizonte, 2004, p. 121. 15 Na necrópole de S. João de Almedina a percentagem infantil é de 12% (catorze crianças para cento e um adultos) - três com idades entre os quinze e os dezanove anos; quatro terão morrido entre os dez e os catorze; um morreu entre os cinco e os nove anos; cinco, mais cedo, entre o primeiro e o quarto ano e um terá perecido antes de completar um ano: Eugénia Cunha, “Populações medievais portuguesas (séculos XI-XV). A Perspectiva Paleobiológica", Arqueologia Medieval, 5, Mértola, Ed. Afrontamento, 1997, p. 72. Em Barreiras de Fão foram localizados 24% de indivíduos não adultos, destacando-se a existência de algumas crianças muito novas, num total de sete com menos de doze anos.- Ibidem, p. 68. Também na necrópole islâmica de Rossio do Carmo, em Mértola, que funcionou até ao século XIII, se encontrou a pequena representação infantil de 25% (dezoito num total de setenta e um) : Candón Morales, "La colección antropológica del campo arqueológico de Mértola (s. II-XVI)" Arqueologia Medieval, 6, Mértola, Ed. Afrontamento, 1999, p. 287. 16 Eugénia Cunha e Célia Lopes, "Necrópole da Quinta de S. Pedro: análise antropológica de uma série do século XV", Al-madam, 7, Almada, IIª série, 1998, p. 43. 17 Maria Teresa Ferreira e Eugénia Cunha, Les enfants médiavaux de Serpa, Comunicação apresentada na 1827.e Réunion Scientifique de la Société d'Anthropologie de Paris, Paris, Museu Nacional de História Natural, 2002.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

os finais do século XII e os finais do século XV,18 e os 40% dos corpos exumados na

necrópole de S. Pedro de Marialva, uma percentagem que não tem em conta as cerca

de 31% de sepulturas vazias que, pela sua dimensão inferior a 100 cm, e por

inferência feita a partir de outras com idêntica medida onde se encontraram

vestígios osteológicos de não adultos, corresponderiam a crianças de pouca idade, os

quais, contudo, por impossibilidade de saber quantas crianças nelas teriam sido

enterradas conjuntamente, não chegaram a ser contabilizadas. 19

No seu conjunto, a maioria das crianças recenseadas nas várias necrópoles

atrás mencionadas corresponde à segunda infância.20 No entanto, também se

registam vestígios osteológicos de crianças muito novas, incluindo bebés que teriam

morrido durante o primeiro ano de vida,21 tal como, aliás, o fazia prever a forte

mortalidade infantil existente durante todo o período medieval.22

18 Sete séculos (séc. XII-XVII) da ermida de S. Saturnino estudados através dos seus enterramentos, Coimbra, Departamento de Antropologia, Laboratório de Paleodemografia e Paleopatologia, 1996, (Relatório antropológico da 2ª campanha de escavação), pp. 46-47. 19 Eugénia Cunha, C. Umbelino, e Teresa Tavares, "A necrópole de S. Pedro de Marialva – Dados antropológicos" in Património Estudos, Instituto Português do Património Arqueológico, 1, Lisboa, 2001, pp. 139-141. 20 A estimativa da idade à data da morte é calculada pela paleobiologia através da determinação dos estados maturacionais dos ossos e dentes recuperados, obtendo-se, assim, não uma verdadeira idade cronológica, mas antes uma idade biológica. Sabe-se, por exemplo, que a má nutrição pode atrasar a maturação em cerca de dois anos, porque, durante os períodos de deficiência nutricional, os ossos continuam a crescer numa razão inversamente proporcional à severidade e duração da deficiência nutricional. Assim, numa população bem nutrida, um determinado grau de maturidade esquelética pode indicar uma idade cronológica de cinco anos, enquanto que uma população mal nutrida poderá não atingir o mesmo grau antes dos sete anos de idade. A idade biológica atribuída a um esqueleto não é, assim, o mesmo que a sua idade cronológica, podendo indivíduos com a mesma idade cronológica apresentar diferentes graus de desenvolvimento. Sobre este tema e respectiva bibliografia, consulte-se Sónia Codinha, Uma necrópole medieval em Serpa: contribuição para o estudo de indivíduos não adultos, Coimbra, Departamento de Antropologia, 2001 (Relatório de Investigação), p. 23. 21 No âmbito dos estudos paleobiológicos, considera-se a primeira infância como o período que vai do nascimento até aos três anos, sendo caracterizado por uma dieta baseada no leite materno, por uma dentição decidual, por um sistema imunitário imaturo e pelo crescimento rápido do encéfalo. Este período é crucial para um bom crescimento, sendo também o mais crítico. A segunda infância é, por sua vez, definida como o período que começa com o fim da amamentação e que dura enquanto a criança continuar a depender dos adultos para a alimentação e protecção. Situando-se entre os três e os sete anos, é o período em que se inicia a mudança de dentição e se produz uma alteração da dieta, já que as crianças começam, então, a ingerir alimentos próprios dos adultos, apesar do seu sistema digestivo ainda não se apresentar suficientemente maduro. Sobre tudo isto consulte-se, Maria Teresa Ferreira, As crianças moçárabes de Serpa: análise paleobiológica de uma amostra de esqueletos exumados da necrópole do loteamento da zona poente de Serpa, Coimbra, Departamento de Antropologia, 2000 (Relatório de Investigação), p. 12. 22 Segundo Eugénia Cunha, a mortalidade durante o primeiro ano de vida rondaria os 30%: Eugénia Cunha & E. Crubézy, "Comparative biology of the medieval populations (IX-XV centuries) of the Iberian Peninsula and Southwest of France; problematics and perspectives", in Journal of Iberian Archaeology, 2, Porto, ADECAP, 2000, p. 146.

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MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

A presença de fetos é uma constante em várias das necrópoles medievais

recentemente estudadas. No cemitério do Rossio do Carmo, em Mértola, exumou-se,

por exemplo, um feto já plenamente formado, cuja estrutura leva a pressupor uma

morte ainda ocorrida no ventre da mãe.23 Nas necrópoles da Quinta de S. Pedro e de

S. Pedro de Caneferrim, em Sintra, foram encontrados, por sua vez, fetos de oito,

nove e dez meses lunares, os chamados fetos de fim de tempo.24 Ora, de uma forma

geral, todos eles devem corresponder, dada a sua sepultura num espaço sacralizado, a

fetos que, retirados por cesariana dos corpos mortos de suas mães, teriam sido

rapidamente baptizados antes de falecerem.

De facto, segundo as normas eclesiásticas, tanto as crianças retiradas já

mortas do ventre materno, como as que não chegavam a ser separadas do corpo de

uma mãe falecida durante o parto, não tinham direito a uma sepultura individualizada

num cemitério, as primeiras porque não eram baptizadas, e as segundas porque,

como o "fruto" fazia parte das entranhas da mãe, esta se era baptizada, seria então

enterrada com o ser que dela não chegara a autonomizar-se.25 Sendo assim, os fetos

de Mértola, Corroios e Sintra teriam protagonizado e testemunhado um intenso

drama familiar.

Face à já de si angustiante e dolorosa experiência da morte de uma

parturiente, a sua família tivera que decidir arriscar a prática de uma cesariana para

tentar salvar a vida do feto que ela transportava, pesando o dilema, ou de não o fazer

para que a criança pudesse ir repousar num lugar santo, embora sem lhe dar qualquer

hipótese de sobreviver à mãe, ou o de o consentir, pese embora o risco de ela vir a

morrer à nascença, e que, sem ser baptizada, fosse banida do cemitério onde poderia

aguardar a ressurreição propiciada pelo Juízo Final.26 A menos que, e talvez tivesse

sido esse o caso dos fetos de Mértola, Corroios e Silves, houvesse sido baptizada, em

risco de vida, por algum leigo, ou que então os seus parentes mais próximos tivessem

falsamente testemunhado a existência de um baptismo capaz de vir a abrir a um

nado-morto o direito ao repouso no cemitério e à salvação da alma, já que então

podiam vir a assegurar a inumação da criança em terra consagrada. Contudo, neste

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23 Candón Morales, ob. cit., ed. cit., p. 288. 24 Eugénia Cunha, "Paleobiologia, História e Quotidiano: critérios de transdisciplinaridade possível" in ob. cit., ed. cit., p. 123. 25 Sobre estas normas eclesiásticas, vejam-se Didier Lett, L'enfant des miracles, ed. cit., p. 211 e Danièle Alexandre-Bidon, La mort au Moyen Âge (XIIIe. – XVIe. siècle), ed. cit., p. 261.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

último caso, os seus parentes próximos sabiam que se o corpo da criança repousava

em terra bendita, não era certo ter a sua alma voado até ao Paraíso.

Quanto à questão da sub-representação dos restos mortais infantis

encontrados nos cemitérios medievais recentemente investigados, os arqueólogos e

paleobiólogos avançam várias explicações. Por um lado, lembram como o actual

conhecimento científico dos cemitérios medievais é ainda escasso e lacunar, nem

sempre tendo existido a preocupação de distinguir e classificar os corpos exumados

por classes de idade, conforme o revela o facto de, em alguns casos, como o relativo

ao estudo da conimbricence necrópole de S. João de Almedina, não se encontrar

marcado qualquer osso infantil.27 Por outro, salientam a possibilidade de virem a

encontrar necrópoles especificamente destinadas à sepultura de crianças, tendo em

conta o facto de já se conhecerem cemitérios destinados a populações

seleccionadas,28 como parece ser a situação de S. João de Almedina, para o qual

Eugénia Cunha concluiu dever ter sido o local de enterramento de uma população

relativamente idosa e privilegiada,29 ou, de uma forma mais evidente, os casos das

necrópoles de Santa Clara-a-Velha, constituída exclusivamente por mulheres

religiosas e a do campo de Aljubarrota, onde apenas se exumaram ossos masculinos

de antigos combatentes.30

Não se deve, contudo, incluir nesta hipótese o cemitério medieval de Serpa,

já que, apesar de nele se terem identificado 74% de sepulturas infantis, não deixam

de se referenciar várias outras destinadas a adultos, sendo também de excluir, dado o

tipo de enterramento presente, sem reutilização dos sepulcros e com abundante

espólio funerário, pensar-se poder uma tão grande percentagem de crianças mortas

ter-se ficado a dever aos efeitos de alguma grave epidemia infantil. 26 Já nos referimos a esta situação no capítulo NASCER, pp. 80-83. 27 Eugénia Cunha, “Populações medievais portuguesas (séculos XI-XV). A Perspectiva Paleobiológica", ed. cit., p. 72. 28 No âmbito da paleodemografia, entende-se por população seleccionada a que inclui um forte desvio ao padrão regular, sendo, por exemplo, constituída, total ou maioritariamente, por indivíduos de apenas um dos sexos ou indiciando uma distribuição estatística anormal no que se refere aos grupos etários representados. Pelo contrário, uma população natural será a constituída por uma série de esqueletos de indivíduos de ambos os sexos e de vários grupos etários, perfazendo, no todo, um efectivo numérico que se possa considerar representativo da população em causa. - Cf. Eugénia Cunha, "Paleobiologia, História e Quotidiano: critérios de transdisciplinaridade possível" in ob. cit., ed. cit., pp. 118-119. 29 Eugénia Cunha, “Populações medievais portuguesas (séculos XI-XV). A Perspectiva Paleobiológica", ed. cit., pp. 72 e 78. 30 Eugénia Cunha, "Paleobiologia, História e Quotidiano: critérios de transdisciplinaridade possível" in ob. cit., , ed. cit., p. 118.

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MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

Por fim, os estudiosos das necrópoles medievais portuguesas também

relacionam a sub-representação infantil com factores de ordem tafonómica31 e

cultural. Os primeiros derivam do facto de o esqueleto de uma criança, por ser mais

pequeno, menos denso e mineralizado do que o de um adulto, ser de difícil

preservação. De facto, a grande fragilidade dos ossos imaturos faz com que estes se

fragmentem e/ou se desintegrem facilmente, sendo de realçar como essa

fragmentação atingiu os 93% dos cadáveres infantis exumados na necrópole de

Serpa.32 Os segundos têm a ver com os interditos respeitantes à sepultura de crianças

baptizadas nos cemitérios. Com efeito, pensa-se poder dever-se ao seu respeito os

inúmeros vestígios arqueológicos da sepultura de crianças muito pequenas fora dos

cemitérios medievais, nomeadamente nos chãos e entradas das casas familiares.33

Aliás, a própria Igreja procurou solucionar teologicamente, desde os finais

do século XII, a angústia dos pais que não podiam baptizar os filhos antes de

morrerem, os quais não só se sentiam culpabilizados por não terem permitido a

salvação das respectivas almas, como por elas não conseguirem interceder num lugar

sacralizado para o culto da memória dos mortos. Assim, para atenuar o peso da

lembrança dos filhos banidos dos rituais relativos aos mortos e condenados a uma

perpétua errância, na qualidade de almas penadas que, para sempre excluídos do

Paraíso, assombravam os vivos nos momentos da passagem da manhã à tarde e do

dia à noite,34 criou-se o Limbus Puerorum, uma espécie de Purgatório onde as

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31 A tafonomia remete para o processo de transformação que o corpo sofre desde a altura da morte, nele intervindo factores endógenos como o tipo de osso, e factores exógenos, como o tipo de solo em que o osso está enterrado, contribuindo a sua acidez para o desaparecimento dos ossos, e as raízes das plantas não só para lhes provocar fracturas, como, através dos ácidos que segregam, para uma grande corrosão da superfície óssea. De resto, também a microfauna pode levar à formação de pequenos orifícios arredondados nos ossos que, à primeira vista, podem ser confundidos com patologias. Os fenómenos tafonómicos resultam, assim, quer das condições diversas da decomposição do corpo, quer da intervenção de agentes naturais na sepultura, como sejam a erosão, a concreção, as alterações físico-químicas, ou, entre outros, a actividade de microorganismos: Maria Teresa Ferreira, As crianças moçárabes de Serpa: análise paleobiológica de uma amostra de esqueletos exumados da necrópole do loteamento da zona poente de Serpa, ed. cit., p. 9; Eugénia Cunha, C. Umbelino e Teresa Tavares, "A necrópole de S. Pedro de Marialva – Dados antropológicos", ed. cit., p. 140. 32 Sónia Codinha, Uma necrópole medieval em Serpa: contribuição para o estudo de indivíduos não adultos, ed. cit., p. 11. 33 Shelley Saunders, "Subadult Skeletons and Growth Related Studies" in Saunders, S. and Katzenberg, M.A. (ed.), Skeletal Biology of Past Peoples: Research Methods, Wiley, Liss, 1992, p. 2. 34 Id. ibidem. De facto, já os Gregos concebiam que as pessoas mortas acidentalmente ou os nados- -mortos erravam sem fim. Eneias, ao descer aos infernos, encontrou uma multidão de mortos que

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

crianças podiam esperar a definição do seu destino no Além. Para esse efeito, seriam

ajudadas pelas orações e obras pias feitas em sua intenção pelos seus mais próximos

entes terrenos. 35

Ora, ao mesmo tempo que o Limbus Puerorum permitiu, conforme salienta

Jean-Claude Schmitt, pacificar as relações que os vivos mantinham com as crianças

que haviam morrido sem esperança de salvação, exorcizando os medos e os temores

relativos à sua vingança,36 também deu origem a que os pequenos não baptizados

começassem a ter um lugar em muitos cemitérios do Ocidente medieval, sendo-lhes,

por vezes, destinada uma área contígua à respectiva terra sagrada, ou seja, uma terra

religiosa onde podiam vir a ser lembrados e cultuados. Contudo, só com o concílio

de Trento foi essa solução devidamente consagrada.37

Até lá, durante a Baixa Idade Média, a Igreja preocupou-se sobretudo em

pregar a necessidade de um rápido baptismo para as crianças pequenas, facilitando

ou simplificando, como já antes referimos,38 a administração de um tal sacramento

no caso de se encontrarem gravemente doentes, acidentadas ou em perigo de vida.

Quanto muito, foram incentivados os chamados santuários de espera, onde,

nomeadamente a partir do século XIV, podiam ser conduzidas as crianças mortas

sem baptismo, para que, em contacto com as relíquias dos santos, fossem por eles

ressuscitadas durante o tempo necessário à recepção do sacramento de iniciação à

vida cristã que depois lhe abriria os cemitérios e a salvação das suas almas. 39

Ora, na Hispânia cristã medieval pareceu poder associar-se ao desempenho

dessa função o santuário aragonês de Salas e os templos portugueses dedicados aos

tentava convencer Caronte a deixá-los passar o rio na sua barca e assim conseguir escapar. Caronte recusava alguns porque deveriam errar durante cem anos antes de ser autorizados a passar o rio. Eneias, ao encontrar-se na outra margem, ouviu, então, o choro e os queixumes das crianças mortas ao nascer. - Eneida (1, VI, 426-429). 35 Didier Lett, “De l’errance au deuil. Les enfants morts sans baptême et la naissance du limbus puerorum aux XIIe et XIIIe siècles" in Robert Fossier (ed.), La petite enfance dans l'Europe médiévale et moderne, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 1997, pp. 77-92. 36 Jean-Claude Schmitt, Les revenants, les vivants et les morts dans la société médiévale, Paris, Bibliothèques des histoires, Gallimard, 1994. 37 Danièle Alexandre-Bidon, La mort au Moyen Âge (XIIIe. – XVIe. siècle), ed. cit., pp. 261-262. 38 Vidé "Os Sacramentos" no capítulo PROTEGER, pp. 195-200. 39 Étienne de La Vaissière, “Les sanctuaires à répit” in Nadeije Laneyrie-Dagen (dir.), Les grands événements de l’histoire des enfants, Paris, Larousse, 1995, pp. 114-115.

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cultos do Santo Condestável e de Nossa Senhora das Virtudes. O primeiro aparece,

de facto, conotado com a ressurreição de crianças de pouca idade em dois milagres

das cantigas que Afonso X compôs nos finais do século XIII, se bem que nelas não

se mencione a realização de um posterior baptismo seguido por uma segunda morte.

Contudo, ambos os cantares atribuem a duas sofredoras mães a quem haviam

morrido os filhos únicos, longas viagens até ao santuário de Salas, para que às

crianças já defuntas pudesse acontecer a graça de virem a ser ressuscitadas por Nossa

Senhora e assim voltarem a uma vida que os libertava dos efeitos de uma má e

impreparada morte.40

Figura 59 - Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) Os ressuscitados de Salas. No santuário aragonês de Nossa Senhora de Salas as crianças mortas ganhavam uma nova vida, capaz de lhes proporcionar uma futura boa morte.

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40 Alfonso X, o Sábio, Cantigas de Santa Maria, ed. Walter Mettman, Madrid, Castália, 1986-1988, cantigas nºs. 43 e 168.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

No caso dos templos portugueses, os livros de milagres compostos no

século XV em louvor dos poderes taumatúrgicos do Condestável e de Nossa Senhora

das Virtudes noticiam, por seu lado, como nas mesmas circunstâncias e com

idênticos efeitos, Nuno Álvares Pereira agraciou uma nova vida a três meninos

mortos, um à nascença, outro ainda de leite e um terceiro com a idade de cinco anos,

sem que actuasse para os livrar da doença, acidente ou outro qualquer referido mal,41

tendo o mesmo sido atribuído à Virgem dos arredores de Santarém, relativamente a

outros dois moços, um deles que queriam Já leuar a enterrar e outro que foy passado

desta ujda per hua hora toda.42

Entretanto, as crianças que puderam ter lugar nas necrópoles medievais

portuguesas recentemente intervencionadas, encontram-se dotadas de sepulturas

feitas com tanto cuidado como as dos adultos. As covas foram abertas de acordo com

o seu tamanho43 e apresentam-se, quase sempre, cuidadosamente cercadas por

aprimoradas “cofragens” de pedras. Nelas, os corpos também se encontram

regularmente posicionados em decúbito dorsal, com a cabeça inclinada na direcção

dos pés ou então virada para o alto, estando os braços estendidos ao longo do corpo

ou cruzados sobre ele, sendo a única excepção encontrada, a de uma criança

sepultada na necrópole da Quinta de S. Pedro, no Seixal, visto se encontrar deposta

sobre o seu lado direito.44 Verifica-se, ainda, a maioritária orientação O-E, das

sepulturas, de acordo com as normas relacionadas com a crença na Ressurreição,45

ou, menos significativamente, na direcção SO-NE.46 Contudo, nos cemitérios do

41 Frei José de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, Lisboa, 1745, respectivamente, pp. 489, 491 e 488- 489. 42 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 22. 43 Na necrópole de Fão o nível etário dos primitivos ocupantes de sepulturas encontradas vazias foi mesmo avaliado com base nas dimensões dos sepulcros, partindo-se do princípio arqueologicamente verificável em outros cemitérios medievais intervencionados, de que as covas com menos de 100 cm de altura correspondiam a enterramentos de crianças. A maior facilidade de degradação dos ossos infantis é uma das explicações para o facto de haver maior quantidade de sepulturas de crianças vazias do que de adultos: Eugénia Cunha, “Populações medievais portuguesas (séculos XI-XV). A Perspectiva Paleobiológica", ed. cit., p. 68. 44 Eugénia Cunha e Célia Lopes, "Necrópole da Quinta de S. Pedro: análise antropológica de uma série do século XV", ed. cit., p. 39. 45 Maria Teresa Ferreira, As crianças moçárabes de Serpa: análise paleobiológica de uma amostra de esqueletos exumados da necrópole do loteamento da zona poente de Serpa, ed. cit., p. 6 e Sónia Codinha, Uma necrópole medieval em Serpa: contribuição para o estudo de indivíduos não adultos, ed. cit., p. 5. 46 Jorge Raposo e Ana Luisa Duarte, "Intervenção arqueológica na Quinta de S. Pedro (Corroios)", Al-madan, 4, Almada, IIª série, 1995, p. 29; Eugénia Cunha e Célia Lopes, "Necrópole da Quinta de S. Pedro: análise antropológica de uma série do século XV", ed. cit., p. 39.

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Rossio do Carmo, em Mértola, e no de Serpa referenciam-se sepulturas infantis

orientadas na direcção S-N,47 seguindo, portanto, uma característica própria das

inumações muçulmanas, segundo as quais o corpo era normalmente colocado em

decúbito lateral, com as pernas ligeiramente flectidas e as mãos sobre a zona púbica.

Nesse sentido, o facto de os cadáveres de Mértola e de Serpa apenas apresentarem a

mão direita sobre a zona púbica e se posicionarem em decúbito dorsal, tem sido

interpretado como não se tratando de crianças muçulmanas, mas antes cristãs que

não teriam recebido o baptismo à data da morte, até porque se tratavam de crianças

ainda muito jovens.48 A ser assim, estaríamos perante uma infracção às normas

canónicas respeitantes ao interdito da sepultura de não baptizados numa necrópole

cristã.

Figura 60 - Sepulturas individuais de crianças na necrópole medieval de Serpa.

47 Candon Morales, ob. cit., ed. cit., p. 289.

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48 Sónia Codinha, Uma necrópole medieval em Serpa: contribuição para o estudo de indivíduos não adultos, ed. cit., pp. 5-6.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

Por fim, tanto o facto de ser muito rara a reutilização de sepulturas ocupadas

por crianças, como o de os seus sepulcros serem, em geral, individuais ou duplos, 49

testemunham, mais uma vez, a tendência para se reservar aos mais pequenos uma

atenção funerária semelhante à dispensada para a maior parte dos adultos que

repousavam nas necrópoles medievais lusas. Aliás, quer a circunstância de as

sepulturas individuais infantis se encontrarem frequentemente na proximidade de um

sepulcro feminino,50 quer a de que, quando as crianças partilham uma sepultura

dupla o fazerem em companhia de um adulto masculino ou feminino,51 parece

referenciar também a vontade de dotar os jovens mortos de particulares protecções e

afectos familiares, seja para os acompanhar durante o tempo de espera para o Juízo

Final, seja para lhes propiciar a futura felicidade de com eles poderem contar quando

reencarnassem para o gozo de uma eterna e celestial existência.52

Um idêntico cuidado posto pelos vivos relativamente a intervenções

destinadas a apoiar e suavizar o tempo que os seus jovens mortos deveriam passar

nas respectivas sepulturas até à prometida ressurreição dos seus corpos, ainda se

pode deduzir pelo facto de algumas sepulturas de crianças revelarem que os corpos

foram nelas enterrados com os seus adornos próprios, sejam as três pulseiras feitas

com vidro verde escuro, encontradas numa sepultura infantil da necrópole da Quinta

de S. Pedro, em Corroios, no Seixal, devidamente acompanhadas, na qualidade de

viático, por um pequeno fragmento metálico de moeda ou de medalha,53 sejam as

missangas e os pendentes de metal e de vidro oxidado que acompanhavam o espólio

funerário de outros jovens cadáveres exumados em Serpa.54 Entendíveis como

objectos destinados a acompanhar as crianças mortas cujos sepulcros eram

49 Eugénia Cunha, “Populações medievais portuguesas (séculos XI-XV). A Perspectiva Pa-leobiológica", ed. cit., p. 68; Maria Teresa Ferreira, As crianças moçárabes de Serpa: análise paleobiológica de uma amostra de esqueletos exumados da necrópole do loteamento da zona poente de Serpa, ed. cit., p. 6; Sónia Codinha, Uma necrópole medieval em Serpa: contribuição para o estudo de indivíduos não adultos, ed. cit., p. 27. 50 Candon Morales, ob. cit., ed. cit., p. 288. 51 Eugénia Cunha, C. Umbelino e T. Tavares, "A necrópole de S. Pedro de Marialva – Dados antropológicos" in ob. cit., ed. cit., p. 140. 52 Eugénia Cunha, "Populações medievais portuguesas (séculos XI-XV). A Perspectiva Paleo-biológica", ob. cit., ed. cit., p. 67. 53 Jorge Raposo e Ana Luisa Duarte, "Quinta de S. Pedro: breves notas sobre a segunda campanha de trabalhos arqueológicos", Al-madan, 7, Almada, IIª série, 1998, p. 32. 54 Maria Teresa Ferreira, As crianças moçárabes de Serpa: análise paleobiológica de uma amostra de esqueletos exumados da necrópole do loteamento da zona poente de Serpa, ed. cit., p. 7.

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MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

considerados como um lugar provisório na vida do Além, 55 representam, em última

análise, uma forma de afeição familiar ou social prestado à memória dos pequenos

mortos. Conforme expressa Morales, seria muito difícil para os pais desligar um

filho morto em tão tenra idade dos objectos de que se tinha rodeado nos seus

primeiros anos de vida.56

3 - OS TÚMULOS

A partir da Baixa Idade Média as crianças passaram a ser consideradas

como tendo direito a uma sepultura privilegiada, reflectindo os seus túmulos a

vontade dos vivos em lhes perpetuar e cultuar a memória. Os custos de um tal

empreendimento fizeram, contudo, que estes túmulos se restringissem às crianças

dos grupos sociais privilegiados. De facto, de todos esses monumentos funerários

apenas chegaram até nós os que os reis mandaram construir para os seus filhos.57

Ausentes do primeiro panteão dos monarcas lusos, o existente nos séculos

XII e XIII no convento de Santa Cruz de Coimbra, os túmulos dos infantes

encontram um primeiro testemunho conservado no mosteiro de Santa Maria de

Alcobaça, em cujo galilé se fizeram sepultar os vários soberanos portugueses das

centúrias de Duzentos e Trezentos. Transferidos nos finais do século XVIII para o

actual panteão régio, os túmulos infantis alcobacences compreendem duas arcas

funerárias expostas em arcossólios abertos nas respectivas paredes laterais e três

outras assentes em colunelos, dispostos em diferentes pontos da sala funerária.58

As arcas das paredes laterais referem-se aos túmulos de dois filhos do rei

Afonso III, os infantes Fernando, falecido por volta de 1269, com cerca de um ano de

idade, e Vicente morto, ainda muito jovem, entre 1268 e 1271. Extremamente

austeras, sem qualquer decoração para além de uma tardia inscrição epigráfica,

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55 Veja-se Isabel Castro Pina, "Ritos e imaginário da morte em testamentos dos séculos XIV e XV" in José Mattoso (dir.), O reino dos mortos na Idade Média Peninsular, Lisboa, Ed. João Sá da Costa, 1996, pp. 125-140. 56 Citado por Boiça, J. & Lopes, V., A necrópole e a ermida da achada de S. Sebastião, Mértola, Museu de Mértola, 1999. 57 Sobre as necrópoles régias medievais portuguesas, veja-se Saul António Gomes, "Os panteões régios monásticos portugueses nos séculos XII e XIII" in IIº Congresso Histórico de Guimarães. Actas, vol. 4, Guimarães, Câmara Municipal de Guimarães / Universidade do Minho, 1996, pp. 280-295. 58 José Custódio Vieira da Silva, O panteão régio do mosteiro de Alcobaça, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico, 2003.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

reproduzindo, pelo menos no caso do infante Vicente, um original medieval, as duas

arcas apenas diferem daquela em que repousa uma das irmãs dos referidos príncipes,

a infanta Sancha, falecida em 1264, aos 37 anos de idade, pelas suas menores

dimensões.59

Quanto às arcas assentes cobre colonelos, a ausência de inscrições

epigráficas não permite identificar os infantes cujos corpos primitivamente

guardaram, sendo em geral referenciadas, pelo seu reduzido tamanho, como as "arcas

dos príncipes". Do ponto de vista escultórico e iconográfico revelam-se muito mais

elaboradas e complexas do que as anteriores. Duas delas, as mais antigas, combinam

uma exuberante decoração vegetalista com a figuração dos escudos das armas régias

portuguesas, encontrando-se reproduzida numa das faces menores da mais recente,

dois altos relevos sobrepostos, tendo no plano inferior a imagem de um paço

estilizado e no superior as muralhas de um grande castelo, de acordo com uma

simbologia interpretada como a vontade de inscrever na pedra o sentido da

existência do infante tumulado, ou seja, a passagem de uma palaciana vida terrena à

eternidade da Jerusalém celeste.60

Figura 61 - Arca tumular, Mosteirode Alcobaça (Século XIII). Na arca tumular de um dos infantessepultados em Alcobaça figura o temada morte como passagem da vidaterrena palaciana para uma eterna eprotegida morada na cidade celestepara onde são conduzidas as almas dosjustos.

59 Mário Jorge Barroca, Epigrafia medieval portuguesa, Lisboa, Fundação Gulbenkian, 1999, respectivamente, pp. 965-966, 951-953 e 1273-1274. 60 José Custódio Vieira, ob. cit., ed. cit., pp. 45-50.

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MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

Por fim, numa terceira arca, certamente a mais recente, as respectivas faces

laterais apresentam a figuração de um Apostelado, enquanto numa das menores se

encontra reproduzida uma Anunciação, intensificando-se, portanto, a vontade de

dotar os túmulos dos infantes de uma explícita iconografia relativa à propiciação de

uma vida paradisíaca no Além.61 Em suma, no seu conjunto, os túmulos

alcobacenses dos infantes exaltam a memória dinástica das crianças mortas e o

desejo de lhes assegurar um culto capaz de as fazer encontrar a salvação eterna das

almas.

Figura 62 - Arca tumular, Mosteiro de Alcobaça (Século XIII) Figuração de um Apostolado(face lateral) e de umaAnunciação (dianteira) numa das"arcas de infantes" do panteãorégio de Alcobaça.

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34561 Id., ibidem, pp. 50-55.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

No século XIV, com a desactivação momentânea do panteão régio de

Alcobaça, os túmulos de infantes apenas voltaram a associar-se a necrópoles régias

no convento conimbricense de Santa Clara-a-Velha, onde se fez sepultar a rainha

Isabel de Aragão e na Sé de Lisboa, em cuja capela-mor mandou Afonso IV construir

o seu túmulo e o da mulher, a rainha Beatriz. No primeiro dos santuários, figura o

túmulo da infanta Isabel, uma neta homónima da rainha santa, falecida em 1326, aos

dois anos de idade,62 para quem a avó encomendou, cerca de 1330, uma condigna

sepultura ao escultor aragonês, Mestre Pêro.63

Reproduzindo, a uma muito menor escala, o túmulo mais tarde executado

também por Mestre Pêro para a própria rainha Isabel, o monumento funerário da

infanta apresenta um jacente particularmente cuidado, onde se figura, idealmente,

uma jovem de longo manto que ergue os braços em tranquila e devota oração, com a

cabeça coroada repousando sobre uma dupla almofada, enquadrada por um

baldaquino e por quatro anjos. Aos pés, três leões simbolizam a esperança na

ressurreição.64 Bordejado por escudos heráldicos com as armas de Portugal, Aragão,

Leão e Castela, o jacente, em cuja arca se representam, lateralmente, freiras clarissas,

e, no facial, uma Virgem com o Menino, testemunha o desejo de conservar a

memória salvífica e dinástica de uma pequena criança a quem a morte teria

encontrado orante e bem preparada para o caminho da eternidade.65

62 Cf. A.H. de Oliveira Marques, Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, Nova História de Portugal, IV, Lisboa, Presença, 1987, genealogia da dinastia de Borgonha, inserida entre as pp. 240-241. 63 Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Jorge Barroca, História da Arte em Portugal. O Gótico, Lisboa, Ed. Presença, 2002, pp. 225-226. 64 Sobre o simbolismo do leão, consulte-se Pedro Chambel, A simbologia dos animais n'A Demanda do Santo Graal, Cascais, Patrimónia, 2000, pp. 26-42. 65 Relativamente às características formais do túmulo, consulte-se Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Jorge Barroca, ob. cit., ed. cit., p. 226.

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MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

Figura 63 – Monumento funerário da Infanta Isabel, convento de SantaClara-a-Velha (Século XIV). Quatro anjos amparam e incensam a cabeça coroada de uma princesa mortaainda muito menina. Lateralmente, podem observar-se os escudos heráldicosdas dinastias régias que lhe reivindicam e cultuam a memória.

Por último, os túmulos medievais de crianças ainda compreendem o

monumento funerário que, na Sé de Lisboa, foi dedicado, em meados do século XIV,

a uma infanta cuja identidade tem permanecido problemática, embora, na sequência

de investigações desenvolvidas por Luís Gonzaga de Lencastre e Távora,66 tenda a

ser hoje aceite tratar-se de Constança Afonso, uma filha de um tio do rei Afonso IV,

o monarca que decidira sepultar-se com a mulher, a rainha Beatriz na catedral

lisboeta, para aí fundar uma nova necrópole régia.67 De facto, parecem hoje afastadas

as hipóteses de se tratar, quer do túmulo da infanta Branca, uma filha do rei João I,

66 Luís Gonzaga de Lencastre e Távora, A heráldica medieval na Sé de Lisboa, Lisboa, Ramos Afonso e Moita, 1984. 67 Vejam-se: Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Jorge Barroca, ob. cit., ed. cit., p. 232; Carla Varela Fernandes, Memórias de Pedra Escultura Tumular Medieval da Sé de Lisboa, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico, 2001, pp. 61-72.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

quer do da princesa Beatriz, uma também neta de Afonso IV, tida pelo rei Pedro de

Aragão da sua rainha portuguesa Leonor Afonso.

A primeira, referida no século XV pelo cronista Rui de Pina, 68 porque o

facto de a filha do rei João I ter morrido com cerca de um ano de idade69 dificilmente

pode corresponder à idade estimada para a criança sepultada no túmulo em questão,

ou seja, uns aproximados oito anos, conforme determina o estudo feito ao espólio

encontrado no túmulo quando foi aberto nos começos do século XX. 70

A segunda, porque, se é verdade que o testamento da mulher de Afonso IV,

a rainha Beatriz, contém uma cláusula em que se determina dever enterrar-se no

moimento funerário que ela mandara construir na Sé de Lisboa, a ossada da infanta

D. Beatriz, uma neta criada pela avó na corte lusa, após a morte prematura da mãe,

carece de sentido, visto implicar o desrespeito pelas ordens da soberana sem que seja

perceptível a quem se teria devido a decisão de dotar a criança de um túmulo

autónomo.71

Aliás, se a destruição dos túmulos dos reis Afonso IV e Beatriz, durante o

terramoto de 1755, torna hoje impossível confirmar a presença do corpo da neta no

túmulo da soberana, não deixa de ser significativo o facto de ela ter pelo menos sido

prevista e ordenada. À semelhança do que se passava, como vimos, em vários

cemitérios medievais portugueses, onde a sepultura de crianças era colocada junto ou

em companhia das de adultos que assim lhe garantiriam o afecto e a protecção na

vida do Além, também o mesmo se passava no que diz respeito aos túmulos

mandados erigir pelos grupos privilegiados.

Em relação ao monumento funerário de Leonor Afonso, cujas reduzidas

dimensões logo permitiram identificar como pertencente a uma criança, mantêm-se

algumas das características já presentes no anterior túmulo gótico da neta da rainha

Isabel de Aragão, se bem que surja mais acentuada a vontade de lhe associar uma

memória dinástica e socialmente privilegiada. Primeiro, porque as paredes da arca

funerária prescindem da representação de uma iconografia especificamente religiosa,

68 "Chronica D' El-Rei D. Affonso IV" in Rui de Pina, Crónicas, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, pp. 462-463. 69 Cf. A. H. de Oliveira Marques, ob. cit., ed. cit., genealogia da dinastia de Avis inserida entre as pp. 528-529. 70 Carla Varela Fernandes, ob. cit., ed. cit., p. 65. 71 Id., ibidem, p. 63.

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MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

preferindo-se apenas exibir mais nítidos e trabalhados símbolos heráldicos. Em

segundo lugar, porque o respectivo jacente, embora continue a acentuar o carácter

devoto da jovem sepultada, figurando-a a ler e a meditar um livro onde se reproduz

uma passagem do Miserere, não prescinde da figuração de adornos profanos e de

marcas de um elevado estatuto social, como o são o cinto com pequenas flores em

relevo que cinge o precioso vestido exibido pela imagem da morta, ou os dois anéis

que lhe ornamentam os dedos das mãos que seguram o códice.

Figura 64 - Monumento funerário da infanta Leonor Afonso, na Sé de Lisboa (Século XIV). A arca e o jacente sublinham a memória dinástica e socialmente privilegiadade uma princesa morta ainda menina.

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

Para além disso, não surgem representados quaisquer anjos propiciatórios

ou anunciadores da salvação eterna da alma da defunta, sendo essa ideia sugerida

pela representação, junto aos pés da imagem do jacente, de dois pequenos cães que

prendem com as patas a cabeça de um galináceo. Aludindo às virtudes da fidelidade

e da vigilância, os canídeos sugerem a convicção de que a vida depois da morte seria

sempre acompanhada por guias que reproduziriam no Além os hábitos e os valores

próprios da vida terrena dos mortos, enquanto o galo, celebrado por sempre saudar,

pelo canto, o começo de um novo dia, simbolizaria a quase certeza de que a alma do

defunto atingiria a meta de uma certa e feliz eternidade. De olhos abertos, a imagem

da criança defunta evoca assim uma tranquila e serena espera da ressurreição que lhe

assegurará e prolongará o lugar privilegiado que ocupara na transitória sociedade

terrena. Em termos de memória, Leonor é então evocada e apresentada sob o signo

da certeza de uma nova e perene vida.72

A semelhança destes dois túmulos de infantas com outros de mulheres

adultas remete-nos para a ideia de que, também na morte, a criança era tratada com o

cuidado e a preocupação de um adulto, merecendo também ela um lugar próprio

junto das memórias familiares.

4 - UMA SEGUNDA VIDA

Na literatura hagiográfica do Ocidente medieval não são muito frequentes

os santos celebrados pelos poderes de anulação das mortes físicas e consequente

outorga de uma segunda vida terrena, tendo como principal arquétipo bíblico a

própria ressurreição de Cristo. Com efeito, é apenas a partir da Baixa Idade Média

que tais milagres começam a adquirir alguma representatividade, nomeadamente

quando desencadeados a favor de crianças dramaticamente falecidas.73

Os escritos hagiográficos medievais portugueses confirmam estas

tendências. Por um lado, os vinte e cinco milagres de ressurreição de crianças que se

encontram registados nas fontes consultadas74 só surgem associados a santos

72 Sobre a iconografia e simbolismo do túmulo em questão, veja-se Carla Varela Fernandes, ob. cit., ed. cit., pp. 67-72. 73 Pierre-André Sigal, L'homme et le Miracle dans la France médiévale (XIe.-XIIe. siècle), Paris, Les Éditions du CERF, 1985, pp. 253-255. 74 Nestes vinte e cinco milagres incluem-se oito já referenciados a propósito da cura de doenças infantis e outros oito mencionados no contexto de acidentes ocorridos a crianças.

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cultuados a partir do século XIII, como são os casos de Santo António, S. Frei Gil e

Nossa Senhora de Terena, correspondendo a sua maioria a devoções apenas

difundidas durante o século XV, ou seja, os do Santo Condestável e de Nossa

Senhora das Virtudes.75 Por outro lado, os poucos santos credenciados com poderes

de dar vida aos mortos apenas tendem a manifestá-los relativamente a crianças, as

quais, de resto, representam o único grupo etário agraciado pelo santo mais prolixo

em tais milagres, o condestável Nuno Álvares Pereira. 76

Conforme se pode observar no Gráfico Nº 26 – Idades à Morte dos

Miraculados por Ressurreição, quando mencionada, a idade dos jovens miraculados

remete, à excepção do caso de dois moços de cinco anos,77 um de sete78 e outro de

onze ou doze anos,79 para crianças muito jovens, compreendendo desde um nado

morto,80 três recém-nascidos81 ou bebés de berço,82 entre os quais se incluiriam duas

meninas falecidas porque não mamavam, 83 uma outra que encontrara a morte ao ano

e tal,84 até aos dois pequenos de muito pouca idade a quem Nuno Álvares Pereira,

mais uma vez, teria agraciado com uma segunda vida. 85 Ora, no seu conjunto, todas

estas crianças tendem assim a identificar a fragilidade de seres situados numa

imprecisa fronteira entre a vida e a morte, a Terra e o Além, sendo o seu falecimento

sentido como particularmente doloroso, tanto a nível familiar como social.

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351

75 São atribuídos ao Santo Condestável e a Nossa Senhora das Virtudes, respectivamente, 12 e 4 milagres de ressurreição de crianças, os quais correspondem, no seu conjunto, a 64% do respectivo total. 76Consulte-se Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, Lisboa, 1745. 77 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 488-489; Cousas Notáveis e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. José Joaquim Nunes, Porto, 1912, pp. 34-35, com passagem paralela em Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), I, ed. José Joaquim Nunes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, p. 271. 78 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), I, ed. cit., pp. 272-273. 79 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 490-491. 80 Id., ibidem, p. 489. 81 Id., ibidem, pp.489 e 491. 82 Cousas Notáveis e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. cit., p. 18, com passagem paralela em Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), I, ed. cit., p. 247. 83 Frei João da Póvoa, " Livro dos milagres de Nossa Senhora das Virtudes", ob. cit., ed. cit., pp. 24- -25 e Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 489. 84 Alfonso X, o Sábio, Cantigas de Santa Maria, ed. cit., p. 224. 85 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 488.

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GRÁFICO Nº 26 - IDADES À MORTE DOS MIRACULADOS POR RESSURREIÇÃO

Masculino FemininoIDAD

Perante o sofrimento e o desalento manifestados pelos vivos face à morte de

crianças para quem não tinham conseguido mobilizar as ajudas capazes de anular as

doenças que as haviam feito morrer, os milagres de ressurreição apresentavam-se

como uma derradeira esperança. Sobretudo quando a morte das suas crianças

ocorrera de forma repentina ou inesperada, fosse por acidente, fosse por causa

indeterminada, angustiando-os pela culpabilização de nada terem feito para lhes

proporcionar a salvação das almas.

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GRÁFICO Nº 27 - CAUSAS DA MORTE DOS MIRACULADOS POR RESSURREIÇÃO

Masculino FemininoCAUSA

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MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

Nestes tempos, a dificuldade em distinguir cabalmente uma morte de uma

síncope ou de um coma, tornava por vezes possível identificar uma reanimação com

uma ressurreição feita pela especial intercessão de algum santo.86 Por um lado,

porque a aflição dos familiares levava a que a rapidez ocasionalmente posta na

preparação dos funerais das suas crianças nem sempre permitia confirmar uma morte

com segurança, servindo de exemplo o caso da notícia de um menino morto há três

horas a quem o pai logo procurara enterrar. 87 Por outro, porque certos acidentes

indutores de síncopes ou de comas, como sucede com uma grande parte dos

traumatismos obstétricos e dos afogamentos, estando muitas vezes associados a

paralisias, a paragens respiratórias, a quebras de pulsação, a rigidez ou a uma pele

fria e pálida, eram frequentemente interpretados como meros sintomas de morte, não

sendo raros os casos de enterramentos de crianças ou de adultos simplesmente

desmaiados ou desfalecidos. 88

Assim, poderiam ter sido atribuídos aos poderes dos santos cuja invocação

possibilitara adiar um apressado funeral, várias reanimações a médio ou a longo

prazo. Talvez, na verdade, tenham sido esses os casos de um moço de Lisboa

falecido com uma grande dor, cuja mãe já tinha tudo preparado para o enterrar

quando se lembrou dos milagres,89 o de uma recém nascida que esteve quatro dias

sem mamar e morreu, quando o pai, que já tinha a oferta preparada e tudo prestes

para a levar a enterrar, invocou o auxílio do Santo Condestável, 90 o de uma moça

que steve tres dias que pareçia finada que nom respiraua nenhua cousa e tinha a

coua feita pera a enterrarem, antes de ser salva por Nossa Senhora das Virtudes, 91

ou de um outro rapaz a quem a mesma Virgem ressuscitou ao estar ja encomendado

e a ser levado a enterrar, e que depois tornou a abrjr os olhos, a falar e a levantar-

-se.92

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353

86 Eleanora C.Gordon, "Child Health in the Middle Ages as seen in the Miracles of Five English Saints. A.D. 1150-1220", in Bulletin of the History of Medicine, 60, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1986, p. 510. 87 Cousas Notaveis e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. cit., p. 35. 88 Consulte-se Isabel M.R.M. Drumond Braga, Milagres de Nossa Senhora de Monserrat num Códice da Biblioteca Nacional de Lisboa, Braga, 1995 p. 675. 89 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 487. 90 Id., ibidem, p. 489. 91 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 29. 92 Id., ibidem, p. 22.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

Segundo Didier Lett, os hagiógrafos medievais franceses estavam bem

conscientes da possibilidade de alguns dos seus milagres de ressurreição poderem vir

a ser desacreditados como sendo meras reanimações, havendo sempre o cuidado de

referir a ocorrência de um alargado prazo de tempo entre a morte do miraculado e o

seu despertar para uma nova vida terrena.93 No que respeita aos escritos

hagiográficos portugueses, essa cautela parece não ter sido considerada essencial,

utilizando-se o vocábulo “logo” em 77 % dos casos para que se menciona o tempo

decorrido entre a morte de uma criança e a sua posterior ressurreição miraculosa.

Contudo, mesmo assim, não deixam de ser utilizadas, para o mesmo efeito, as

expressões muy largo tempo,94 duas largas horas,95 alguus96 ou mesmo os

simbólicos três dias97 que evangelicamente separavam a morte e a ressurreição de

Cristo.

Mais próxima do exemplo francês revela-se a circunstância de os pedidos

para a graça de uma ressurreição serem, em geral, proferidos longe dos santuários

onde se cultuavam os santos credenciados pelo exercício de um tal milagre,98

conforme se encontra representado no Gráfico Nº 28 - Formas de Desencadeamento

dos Milagres de Ressurreição. Com efeito, as ressurreições portuguesas também se

tendem a concretizar na periferia da sacralidade dos templos onde se encontravam as

relíquias dos santos, as quais, no entanto, deles poderiam ser transportadas, directa

ou indirectamente, até ao local onde jazia a criança a miracular.99

Ora, segundo André Vauchez, teriam sido os milagres de ressurreição de

crianças os primeiros a promover os cultos à distância, depois largamente

generalizados nos finais da Idade Média no que respeita à cura das doenças infantis

ou à anulação entre os jovens dos efeitos gerados por graves acidentes.100

93 Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe – XIIIe siècle), ed. cit., p. 195. 94 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 488. 95 Id., ibidem., pp. 488-489. 96 Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 29. 97 Cousas Notaveis e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. cit., pp. 30-31; Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), I, ed. cit., p. 265. 98 Pierre Sigal, ob. cit., p. 61. 99 São esses os casos da terra santa obtida no convento lisboeta de Nossa Senhora do Carmo e o das relíquias de S. Frei Gil trazidas de S. Domingos de Santarém: Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 487-488; "S. Frei Gil" in Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., pp. 232-233. 100 André Vauchez, La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Age, Roma, Escola Francesa de Roma, 1988, p. 522.

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MORRER E RESSUSCITAR _________________________________________________________________________________________

Corroborando essa opinião Didier Lett, defende, aliás, ter sido essa a via

seguida para acrescente “deslocação” da devoção local e regional dos santos

taumatúrgicos.101

0

1

2

3

4

5

6

7

8

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Encomendação Ida ao Santuário Transporte derelíquias

GRÁFICO Nº 28 - FORMAS DE DESENCADEAMENTO DOS MILAGRES DE RESSURREIÇÃO

PaiMãePaisOutros

De facto, como referem os livros de milagres medievais portugueses, a

morte das crianças era especialmente sentida pelas famílias, sendo frequente o

registo da angústia de mães e pais apresentados em grandes choros e prantos,102

sobretudo no caso de os filhos defuntos serem muito jovens, dilectos ou únicos.103

Sem dúvida não se vivia a morte - e não só a das crianças - como se vive hoje. A

101 Didier Lett, L'enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe – XIIIe siècle), ed. cit., pp. 76-77. 102 Entre outros exemplos, citem-se as muitas lágrimas do pai e dos vizinhos de um rapaz afogado que foi depois ressuscitado pelo Santo Condestável (Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 490), os brados lançados por uma mãe que pos os giolhos em terra nuos para que Nossa Senhora das Virtudes desse uma nova vida ao filho (Frei João da Póvoa, ob. cit., ed. cit., p. 22) e o pranto dos pais, e parentes, e sobre todos huma avó relativamente `a morte de um moço a quem S. Frei Gil depois miraculou, noticiando-se como toda essa família antes acompanhara o defunto toda a noite carpindo ("S. Frei Gil" in Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., p. 232). Sobre os usos funerários do pranto e das lágrimas, vejam-se: José Mattoso, "O pranto fúnebre na poesia trovadora galego-portuguesa" in José Mattoso (dir.), O reino dos mortos na Idade Média Peninsular, ed. cit., pp. 201-216; Piroska Nagy, Le don des larmes au Moyen Age, Paris, A. Michel, 2000, pp. 387-412.

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355

103 Como teriam sido, entre outros, os casos de uma criança miraculada por Nossa Senhora de Terena a quem o pai amava muito (Alfonso X, o Sábio, Cantigas de Santa Maria, ed. cit., p. 197), o neto miraculado por S. Frei Gil a quem a avó tinha por lume dos seus olhos ("S. Frei Gil" in Frei Luís de Sousa, ob. cit., ed. cit., p. 232), ou o moço salvo pelo mesmo santo de uma morte por afogamento, explicando-se como tinha sido criado por uma tia com amor de filho próprio e como adoptivo, por carecer dos naturais (Id., ibidem, pp. 232-232).

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA _________________________________________________________________________________________

morte, inevitável, fazia parte das estruturas da vida e a sua presença, quase

quotidiana, deveria implicar uma maior aceitação do que hoje desta situação. Talvez

até custasse menos enterrar uma criança mais pequena do que um dos seus irmãos

mais velhos. Possivelmente chorar-se-ia de forma diferente as crianças conforme a

sua idade. Por certo chorar-se-ia mais, e por mais tempo, o filho preferido, fosse ele

o mais velho ou o mais novo. No entanto, ao contrário das teses defendidas por

Philippe Ariès, as famílias medievais parecem longe de ter resignadamente aceite a

existência de um Deus todo poderoso que dava e retirava os filhos conforme a Sua

vontade.104 Não se teriam também limitado a enterrar os seus cadáveres em qualquer

lugar,105 já que, como vimos, quando morriam, mesmo se fetos, procuravam

propiciar-lhes a sepultura nos espaços ritualmente destinados ao culto dos mortos,

escolhendo, muitas vezes, os mais disputados, fossem as fundações de uma igreja, os

seus coros, capelas ou átrios, fossem os espaços adjacentes aos muros, para que, sob

as goteiras, ficassem simbolicamente protegidos pela água lustral do baptismo, 106 ou

até num túmulo individualizado em função de uma memória a preservar e a cultuar.

Sendo assim, não surpreende como o júbilo familiar e social pela

manifestação da graça de uma ressurreição infantil, constituía um dos mais eficazes

meios para angariar devotos, dádivas e peregrinos a um santuário de milagres.

Citando Didier Lett, eram as crianças presentes nas romarias dos finais da Idade

Média que acabavam por fornecer aos santuários de peregrinação o mais importante

certificado de eficácia e sacralidade dos cultos neles assegurados.107

104 Tal como, aliás, se encontrava expresso no Antigo Testamento, quando se atribuía a Job, após ter tido conhecimento da morte dos filhos, a seguinte reflexão: “Nu saí do ventre de minha mãe, e nu tornarei para lá; o Senhor o deu, e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor". Job: I. 21 in Antigo Testamento, Biblia Sagrada, em Português, ed. e trad. de João Ferreira de Almeida, Lisboa, Soc. Bíblicas Unidas, 1968. 105 Philippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Lisboa, Relógio d' Água, 1988, p. 66. 106 Pierre Riché e Danièle Alexandre-Bidon, "L'enfant au Moyen Âge: état de la question", in Robert Fossier, (ed.), La petite enfance dans l'Europe médiévale et moderne, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 1997, p.19. 107 Didier Lett, L'enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe – XIIIe siècle), ed. cit., pp. 76-77.

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356

8 AMAR

Regista a história o que se veste, onde se vive, às vezes o que se come. Mais dificilmente narra como se ama. A intensidade e a forma do afecto só aqui e além, a muito custo, se vislumbram, num levantar fortuito da cortina do pudor ou da muralha do natural.

A. H. de Oliveira Marques1

Ainda nos seus primórdios, a história medieval dos

afectos apenas tem privilegiado a família como rede social

significante no que diz respeito ao amor conjugal.2 De facto, os

afectos que uniam entre si os pais e os filhos e estes aos restantes

parentes e agentes educativos só muito raramente merecem a

atenção dos medievalistas, prevalecendo, neste campo, a tese de

que o amor pela infância seria uma realidade histórica posterior.

Iniciada na época moderna a partir das elites sociais, ou seja, da

nobreza e da burguesia, ela só se teria mais tarde expandido entre

as classes populares, para as quais, antes disso, a morte de uma

criança pouco significaria, visto que, em breve, uma outra viria

substituir a que não chegara a sair de uma espécie de anonimato.3

1 – OS CONTEXTOS FAMILIARES

Na sociedade medieval da Cristandade ocidental, uma parte significativa das

crianças vivia numa família recomposta, sobretudo devido à frequente morte de um ou

de ambos os pais biológicos. Entre a nobreza da Baixa Idade Média, por exemplo, a

média de duração de um matrimónio extinto pela morte de um dos cônjuges rondava os

dez ou quinze anos.4 Em Portugal, por sua vez, a prática de um segundo casamento

1 A.H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1974, p. 105. 2 José Mattoso, "Sobre a história da sexualidade e da afectividade" in Naquele tempo. Ensaios de história medieval, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 39-44. Sobre as problemáticas e as dificuldades de uma história medieval do amor e dos afectos, veja-se C. Stephen Jaeger, Enabling love. In search of a lost sensibility, Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 1999. 3 Philippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Lisboa, Relógio d' Água, 1988, p. 10. 4 Claudia Opitz, , "O quotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500)" in Georges Duby e Michelle Perrot (org.), História das Mulheres, 2, Porto, Afrontamento, 1993, p. 374.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

entre a fidalguia dos séculos XII e XIII encontra-se assinalada em cerca de 12% dos

matrimónios documentados.5

De resto, tanto entre a nobreza como entre os grupos sociais não privilegiados,

quer o direito processual familiar, quer as práticas sociais de abandono ou de entrega

dos filhos a terceiros para criação ou educação implicavam, frequentemente, como já

referimos, a transferência familiar de muitas crianças.6 A título exemplificativo, citem-

-se as situações de um pescador lisboeta que criava como próprio um filho

anteriormente tido pela sua mulher, com sete ou oito anos de idade, ou a de um

escudeiro que igualmente trazia como suas as seis crianças menores tidas pela esposa de

um anterior casamento.7

A frequência das famílias recompostas também se encontra, muitas vezes

testemunhada nos livros de milagres medievais portugueses, quando neles se referem

vários casos de crianças que, por motivo de doença ou de acidente, haviam sido levados

aos santuários pelos tios, sendo essa a situação, por exemplo, quer de um moço de onze

anos, quebrado, assim conduzido até às relíquias dos Santos Mártires de Marrocos,8

quer a do rapaz que vira terminado o sofrimento provocado por um inchaço na garganta,

quando também um tio o transportara até à campa do santo Condestável.9 Mais

explícita aparece, contudo, a notícia de como um minino, a quem a tia que por filho

criava, e como filho amava, teria ficado a dever às muitas lastimas e lágrimas por ela

endereçadas a S. Frei Gil o milagre de uma ressurreição. Na realidade, a criança que

caíra e se afogara num tanque de águas quentes fora por ela transportada, já morta, ao

templo onde jazia o corpo do santo.10

O desempenho de funções paternais e maternais por parte dos tios também se

encontra recordado na cronística dos finais da Idade Média. Rui de Pina, por exemplo,

não deixa de referir, quer como o Infante Fernando, filho do rei Duarte, fora adotado

5 José Augusto de Sotto Mayor Pizarro, Linhagens medievais portugesas. Genealogias e estratégias (1279-1325), Porto, Universidade Moderna, 1999, p. 485. 6 Vidé capítulos CRESCER, e APRENDER, respectivamente pp.114-115 e 157-160. 7 Luís Miguel Duarte, Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, respectivamente, p. 278 e p. 612. 8 Tratado da vida e martírio dos Santos Mártires de Marrocos, ed. A. Rocha Madahil, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928, p. 74, com passagem paralela em "Livro dos Milagres dos Santos Mártires", ed. Maria Alice Fernandes, in Livro dos Milagres dos Santos Mártires, Edição e Estudo, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1988 (Tese de Mestrado), p. 147. 9 Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, I, Lisboa, 1745, pp. 515-516. 10 Frei Luís de Sousa, “S. Frei Gil” in História de S. Domingos, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, pp. 231-232.

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358

AMAR __________________________________________________________________________________________________________

por fylho pelo tio, o também infante Henrique,11 quer a circunstância do monarca João

II haver recolhido em sua casa o primo Duarte, filho do tio Fernando, e, mais tarde, o

também primo e depois seu sucessor, Manuel, ainda muy moço, explicando-se como o

criara

em sua cama, e mesa, e nos conselhos, e boas doctrinas com mostranças, e

obras de verdadeiro amor, nam como a primo que era, mas como a proprio

filho que gerara.12

Aliás, no contexto do destino familiar dos filhos ilegítimos, o mesmo cronista

também lembra como o futuro rei João I, fora entregue pelo pai, o monarca Pedro,

desde muito moço, aos cuidados do então mestre da Ordem de Cristo, Nuno Freire de

Andrade, o qual o teria tratado como filho.13

Para a generalidade da sociedade medieval, a circulação familiar das crianças

funcionava quase sempre como um importante factor de promoção político-social. Por

um lado, a circulação descendente, feita, por exemplo, através do amádigo ou da

colocação de uma criança em aleitamento, permitia-lhes reforçar os laços de

dependência devidos ou aceites por elementos familiares menos abastados ou

poderosos. Por outro, a circulação ascendente, possibilitada pela entrega de crianças

para aprendizagem, abria-lhes a possibilidade de poderem vir a beneficiar do estatuto e

da influência detidos por parentes social e politicamente mais bem colocados, tal como

seriam os casos, quer dos dois meninos, de seis e nove anos, que sabemos terem vivido

com cónegos de Santa Cruz que lhes ensinaram a leer14 ou o dos rapazes nobres

entregues à guarda e criação dos tios, de acordo, como o dá a entender Rui de Pina, com

uma prática que visava reforçar o poder da sua linhagem através da amizade a

desenvolver entre primos.

No âmbito das elites aristocráticas, sobretudo fidalgas, as crianças ainda podiam

ser conduzidas a integrar uma nova família por outros motivos. Quando raparigas

prometidas muito novas em casamento, era frequente passarem a ser criadas por

familiares ligados a instituições religiosas, nelas aguardando a idade convencionada

para a concretização dos matrimónios previamente negociados, ou até, por vezes, na

11 Rui de Pina, "Chronica do Senhor Rey D. Affonso V" in Crónicas, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1977, p. 791. 12 Id., ibidem, respectivamente, pp. 817 e 924. 13 Rui de Pina, "Chronica d'El-Rei D. Affonso IV" in ob. cit., ed. cit., p. 462. 14 Luís Miguel Duarte, ob. cit., ed. cit., pp. 274-275.

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359

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

própria casa dos futuros sogros, onde passavam a integrar uma nova família que as

tratava como filhas. 15

Quando rapazes, embora, ao contrário das raparigas, mantivessem a

patrilocalidade familiar quando prometidos em esponsórios, podiam, também ser

entregues como arrefees a uma outra família para salvaguardar tratados de tréguas ou

promessas de casamento. Fernão Lopes, por exemplo, refere o caso do iffante dom

Fernando, um moço pequeno pouco mais de dous annos, que era filho do rei João I de

Castela, noticiando como fora entregue à criação de Leonor Teles porque nos trautos

do casamento da filha desta, a infanta Beatriz, com o rei de Castela

era contheudo que el-rrei dom Fernando tevesse consigo ataa que a iffante sa

filha ouvesse hidade d’onze anos compridos e entrasse por os doze em que o

casamento podia seer firme, e que entonce fosse aquele iffante entregue em

Castella.16

Aliás, mais tarde, Rui de Pina volta a recordar uma situação paralela, acontecida

ao infante Afonso, o filho do rei João II, contando como ele passara à criação da rainha

do reino vizinho, a sua tia Beatriz, como penhor para o cumprimento de um acordo de

pazes luso-castelhanas.17

Em suma, mesmo nos casos extremos, em que os interesses familiares,

sobretudo os das linhagens régias, promoviam a deslocação das crianças do lar de

origem, sem terem em conta as perturbações psíquicas e afectivas que esse corte

vivencial lhes poderia acarretar, prevalecia o princípio de as procurarem confiar aos

cuidados de mulheres de uma mais ou menos próxima parentela, ao mesmo tempo que

as faziam acompanhar, na sua transferência familiar, por muitos daqueles que lhes

haviam seguido os primeiros tempos, como amas, aias, aios ou serviçais domésticos.

Ora, uma tal situação não difere muito da que na legislação medieval regulamentava a

entrega em tutoria ou guarda das crianças a quem passara a faltar a protecção das

respectivas famílias de origem. Com efeito, nesses casos verifica-se a tendência para

15 Veja-se o capítulo APRENDER, pp. 168-170 onde foram referidos alguns exemplos destas situações. Sobre a sua contextualização, consulte-se, Ana Rodrigues Oliveira, As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (sécs. XII a XIV), Cascais, Patrimónia Histórica, 2000, pp. 138-140. 16 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, ed. G. Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995, p. 567. 17 "Chronica do Senhor Rey D. Affonso V" in Rui de Pina, ob. cit., ed. cit., p. 875. Sobre a conjuntura deste conflito com Castela, veja-se João José Alves Dias, "A conjuntura" in Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, Nova História de Portugal, Lisboa, Presença, 1998, pp. 689-700.

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AMAR __________________________________________________________________________________________________________

promover um novo enquadramento familiar da criança entre os agregados domésticos

constituídos por parentes mais ou menos próximos.18

Durante o século XV, de acordo com as

investigações prosseguidas por Pierre Charbonnier, essa

mesma prática também se aplicava relativamente aos

órfãos de várias regiões do Ocidente medieval, já que

eram cada vez mais acolhidos por tios, tias, ou irmãos

mais velhos.19 Esta prática de preservação dos laços de

proximidade com a família, este compromisso entre a lei

do sangue e a lei da adopção, evidencia uma crescente

sensibilidade face às necessidades afectivas e

educacionais das crianças que haviam ficado

familiarmente desprotegidas. Nestes casos, conforme

sublinha Didier Lett, os múltiplos afectos documentados

no que respeita às crianças órfãs resultariam, na verdade,

de naturais prolongamentos familiares de um amor

originariamente parental.20

Neste sentido, quando as fontes portuguesas

noticiam vários e inequívocos testemunhos de afectos

reservados às crianças por parte das famílias que os

haviam adoptado, talvez se refiram a sentimentos

manifestados por membros onde se incluiriam parentes

mais ou menos próximos dos respectivos pais entretanto

falecidos. Como, por exemplo, se poderia ter passado

relativamente ao menino afogado num tanque de águas

quentes que, havendo sido criado como adoptivo por

carecer dos naturais, vira a sua morte provocar pranto, lastimas e lágrimas mais que de

mãi por parte de quem como filho o amava.21

Figura 65 – A protecçãofeminina às crianças semfamília. A solidariedade feminina pa-ra com as viúvas e as crian-ças órfãs e abandonadasconstitui um dos temas maisiluminados das Bíblias me-dievais, sobretudo no querespeita à ilustração do livrovetero-testamentário deRute.

18 Vidé capítulo PROTEGER. pp. 246-250. 19 Pierre Charbonnier, "L' entrée dans la vie au XVe. siècle, d'après les lettres de rémission" in Les entrées dans la vie – Initiations et apprentissages, XII congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l'Enseignement Supérieur Public, Nancy, 1981, p. 78. 20 Didier Lett, L’enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Âge (XIIe –XIIIe siècle), Paris, Aubier, 1997, p. 285. 21 Frei Luís de Sousa, "S. Frei Gil" in História de S. Domingos,I, ed. cit., pp. 231-232

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

2 - AMOR MATERNAL

O amor maternal

durante a Idade Média

continua a ser pouco

conhecido, dado que a maior

parte das fontes disponíveis,

quase sempre escritas por

homens, não lhe atribui muito

relevo. A este propósito, um

estudo sobre a história da

maternidade refere-se ao

período medieval como um

"tempo do silêncio,"22 ressal- Figura 66 - Afonso X, Cantigas de Santa Maria (século XIII) A iconografia do amor maternal encontra-se abundantemente representada nas iluminuras das Cantigas de Santa Maria.

tando, comparativamente a

outras épocas históricas, as

dificuldades em encontrar tes-

temunhos sobre a afectividade expressa pelas mães em relação às suas crianças.

No entanto, embora dispersas e lacunares, essas informações não deixam de se

encontrar presentes em várias fontes. Nos livros de milagres, por exemplo, surgem

muito evidentes as expressões de um visível amor maternal, sobretudo quando noticiam

a dor e o sofrimento manifestados pelos acidentes ou doenças sofridas pelos filhos.

Neste contexto, referem-se, com efeito, vários casos em que a visão de um corpo

doente, deformado ou acidentado suscita grandes aflições e desesperos. Mencionam-se,

a título exemplificativo, os casos de uma mãe, que dando grandes vozes e chorando,

pedia aos pescadores para retirarem do mar o seu filho afogado,23 o grande pranto feito

por uma outra ao ver o filho sufocar com um osso na garganta,24 a grande afflicção

expressa por uma terceira quando o filho, de sete ou oito meses, deixara de respirar ao

22 Yvonne Knibiehler e Catherine Fourquet, L'Histoire des mères du moyen-âge à nos jours, Paris, Éditions Montalba, 1980, p. 8. 23 Cousas Notaveis e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. José Joaquim Nunes, Porto, 1912, p. 30. 24 Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, XII, Lisboa, 1869-1870, p. 60, com passagem paralela em Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. Maria Clara de Almeida Lucas, Lisboa, I.N.I.C., 1988, p. 178.

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AMAR __________________________________________________________________________________________________________

engolir uma moeda,25 ou a grande magoa que uma quarta havia de seu filho muito

doente de door d’estamago.26

Por vezes, o registo destas reacções inclui a referência a angustiadas

manifestações rituais de dor, como as relatadas a propósito de uma mãe que, tendo ido

ouvir um sermão de Santo António, deixara o seu filho em casa, çerca da caldeira a

cabo do fogo que o queria lavar e correger e que, ao lembrar-se onde tinha deixado o

petiz, e avendo medo que seria queimado, começou de arrancar os cabellos da cabeça

e de sse carpir.27 Noutros casos, prevalece a apresentação de um quadro de profunda

angústia materna provocada pela morte dos filhos, levando as progenitoras a desejar

associar-se ao respectivo falecimento, conforme se conta acerca de uma mãe que, ao ter

conhecimento de como o seu menino de cinco anos morrera afogado, se teria recusado

a deixá-lo enterrar, se não fosse com ele sepultada. 28

Também na cronística se alude a tais reacções. É, por exemplo, o caso da rainha

Leonor, mulher do monarca João II, que ao ter conhecimento da morte do filho, o

infante Afonso, teria considerado ter perdido o nome de May, pelo qual se avia por

mais bemaventurada, expressando depois a vontade de morrer no quarto onde ele

nascera, quando nele entrou após o falecimento do príncipe.29

No fundo, seriam estas dores maternais que teriam dado a força e o ânimo

necessários às mães que, nos livros de milagres, pedem aos santos ou à Virgem a

ressurreição dos filhos, chegando a permanecer nos respectivos santuários vários dias e

noites em oração, conforme se noticia ter ocorrido à progenitora de um menino de cinco

anos que lhe caiu morto aos pés e que logo fora por ela levado ao templo onde jazia o

santo condestável, para ser deitado sobre a respectiva campa. 30 Por outro lado, também

se podem considerar como expressões de um mesmo emotivo sentimento maternal, as

notícias sobre o entusiasmo e o júbilo com que as mães festejavam os milagres de cura

feitos aos filhos, servindo de exemplo os muitos louvores feitos por uma mãe a S.

Gonçalo de Amarante por este haver curado o seu menino de quatro anos que sofria de

25 “S. Gonçalo de Amarante” in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, I, ed. cit., p. 282. 26 "Livro dos Milagres dos Santos Mártires", ed. Maria Alice Fernandes, in Livro dos Milagres dos Santos Mártires. Edição e Estudo, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1988 (Tese de Mestrado), p. 141. 27 Cousas Notaveis e Milagres de Santo António de Lisboa, ed. cit., p. 17. 28 Id., ibidem, pp. 34-35. 29 Rui de Pina, "Chronica D'ElRey D. Joaõ II" in Crónicas, ed. cit., p. 991. 30 Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, I, ed. cit., pp. 488-489

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A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

dolorosas alporcas, indo depois acordar o marido para, em conjunto, continuarem a dar

graças a Deus e ao santo.31

A expressão emocional deste amor tende, em geral, a ser retoricamente

exacerbada pelos homens que redigem as fontes. Nos livros de milagres, apresenta-se

semelhante a uma paixão descontrolada, como teria sido a aflição demonstrada pela mãe

de uma criança de dois anos que padecia de um inchaço muito grande no pescoço,32 ou

a um sentimento de incontrolável intensidade, sendo esse o caso do sofrimento

vivenciado pela progenitora que teria ficado casy morta, ao deparar-se com as feridas de

uma sua criança.33 Em Rui de Pina essa retórica também é utilizada, novamente a

propósito da rainha Leonor, referindo-a o cronista ao noticiar como tomara

conhecimento do acidente do filho, na condição de mãe ferida de mortal door, com

grande desacordo, e sem ho resguardo exigível a uma personagem régia, já que logo

correra para o lugar onde o infante jazia, nas margens do Tejo, montada, sem qualquer

aparato, numa mula que encontrara pelo caminho. Depois, junto ao seu cadáver, com

muita door, e amor lhe descobriu os peitos, e sobre o coraçam, o beijou muitas vezes.34

Em todas estas descrições, a mãe apresenta-se como o elemento familiar que

melhor protagonizava o afecto devido pelos progenitores às suas crianças, conforme

decorria, aliás, das funções maternais que lhe eram socialmente atribuídas, ou seja, as

relativas a uma permanente e protectora presença na criação e educação dos filhos mais

pequenos.35 Contudo, se a mãe, pela relação física e quotidiana que a ligava às suas

crianças, nelas deveria reencontrar a parte de si mesma pela qual se deveria afadigar e

sofrer, não raro era também vista como agente de uma protecção que, por vezes,

funcionava de forma excessiva e contraproducente.

Sendo assim, o amor por ela demonstrado aos filhos era ocasionalmente

denunciado pela predominante moral masculina como negativo ou prejudicial à

respectiva educação, apresentando-se a intensidade dos seus afectos como

perturbadoramente nociva, se incontrolada ou desmesurada. Então, em vez de uma

virtude louvável, tornava-se uma fraqueza condenável, sobretudo se comparada ao amor

paternal, sempre firme e constante, menos visível e emotivo, porque mais ponderado e

31 "S. Gonçalo de Amarante" in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, ed. cit., p. 280. 32 "Livro dos Milagres dos Santos Mártires" in ob. cit., ed. cit., p. 159. 33 Frei João da Póvoa, "Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes", ed. F. Correia, in Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, 3, nº1, 1988, p. 26. 34 Rui de Pina, "Chronica D'ElRey D. Joaõ II" in Crónicas, ed. cit., respectivamente, p. 983 e p. 984. 35 Sobre este tema já nos debruçámos no capítulo APRENDER, "A função das mães", pp. 146-156.

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AMAR __________________________________________________________________________________________________________

racional. Nestes casos tendia-se, então, a registar os afectos maternais como

prolongamentos negativos de um amor carnal e passional, que, privilegiando os corpos,

ou seja, a saúde e o bem estar dos filhos, arriscava-se a fazer perder as respectivas

almas. A sua intensidade era, afinal, a sua fraqueza.36

No entanto, na perspectiva dos cronistas, o registo de desmesuradas

manifestações de amor maternal também permitia politizar, pela sua dramatização, a

narrativa dos acontecimentos. Em Fernão Lopes, por exemplo, a referência feita às mães

que, durante o cerco de Lisboa de 1384, veemdo lazerar seus filhos a que acorrer nom

podiam, choravam ameude sobrelles a morte amte que os a morte privasse da vida,37

consegue suscitar entre o auditório das suas crónicas o procurado efeito de um

emocional discurso anti-castelhano. Em Rui de Pina, por outro lado, o relato de como a

rainha Leonor, à morte do marido, o rei Duarte, se despedira dos filhos que passaram a

estar confiados à guarda do tio regente, o infante Pedro, pondo em destaque o grande

amor que lhes tinha, os receos manifestados por deles se vir a separar e o tamanho

pranto que teria feito ao despedir-se, como se os leixaram soterrados pera os nunca

mais ver, servem como matéria destinada a preludiar os posteriores dramas político-

-familiares que conduziriam à batalha de Alfarrobeira.38

De uma forma geral, as personagens femininas recordadas nas crónicas

medievais do passado do Reino são quase sempre valorizadas ou depreciadas em função

dos respectivos desempenhos maternais, já que as memórias da história dinástica

relatada pelos cronistas marginaliza sistematicamente o relato das vidas de mulheres

solteiras, mesmo sendo virgens dedicadas a opções religiosas. Foi o que sucedeu, por

exemplo, a Senhorinha de Basto, a santa cuja hagiografia exaltava uma educação

decorrida sob o lema de que

o parto e o emprenhar enche o mundo e a castidade enche o Paraízo, e a

castidade ha por parceiro os Anjos, e o parir, e emprenhar filhos é com

trabalho, e com dor, e com tristeza. 39

36 Claude Thomasset, "Da natureza feminina", in Georges Duby e Michelle Perrot, (dir.), História das Mulheres, 2, ed. cit., pp. 164-165. 37 Fernão Lopes, Crónica del Rei D. João I, I, ed. M. Lopes de Almeida e A. de Magalhães Basto, Barcelos, Liv. Civilização, 1990, p. 307. 38 Rui de Pina, "Chronica do Senhor Rey D. Affonso V" in Crónicas, ed. cit., p. 647. 39"Vida e Milagres de Santa Senhorinha", ed. Torquato Peixoto de Azevedo, in Memórias Resuscitadas da Antiga Guimarães, Guimarães, Gráfica Vimaranense, 2000, pp. 446-447.

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Ao sonegarem qualquer significativo protagonismo histórico às mulheres para as

quais a renúncia à maternidade se poderia apresentar como meritória ou edificante, as

narrativas das efemérides dinásticas da linhagem dos reis de Portugal, tanto

desvalorizam a memória das viúvas a quem os afectos reservados a um segundo marido

faziam descurar o amor devido aos filhos, como exaltam o comportamento das que

renunciavam a um novo matrimónio ou que, mesmo em vida do primeiro esposo,

acolhiam como seus os bastardos régios.

O primeiro caso aplica-se à forma como os cronistas recordam a condessa

portucalense Teresa, a quem Duarte Galvão acusa de um peccado próprio de mãis com

novos esposos se tornarem madrasta,40 referindo-se, concretamente, ao de, em nome do

amor prestado ao seu terceiro marido, o conde galego Fernão Peres de Trava, haver

recusado ao filho, Afonso Henriques, a herança devida por morte do pai, o conde

Henrique da Borgonha.

Contudo, no caso das viúvas imunes ao amor terreno e carnal que as fazia

procurar um outro marido, a sua memória surge cronisticamente valorizada, como foi o

caso, por exemplo, da rainha Isabel de Aragão que, à morte do marido, o rei Dinis, ficou

tanto como morta passando a viver com doo e tristeza pera sempre.41

Também como madrasta de bastardos antes havidos pelo marido, o compor-

tamento de algumas rainhas é enaltecido, visto que nesse contexto, se exalta a sua

capacidade de ultrapassar os condicionalismos físicos e biológicos da normal

manifestação de um sempre louvável amor maternal. Assim, por um lado, tanto se

elogia Isabel de Aragão por sempre dar de vestir às amas, que criavam os filhos

ilegítimos do rei Dinis, e fazer, e procurar merces ahos ayos, que hos ensinavam,42

como, por outro, se mencionam as perfectas bondades e grandes vertudes manifestadas

pela rainha Leonor quando, ao ser-lhe pedido pelo marido, o rei João II, para que, sem

algua paixam das muitas que em seu nacimento recebera, quisesse consentir que viesse

e se criasse na Corte o seu bastardo Jorge, devido à morte da tia, a infanta Joana, que

até então o criara em Aveiro, publica e honradamente como pertencia a filho d’El Rey.

Ou seja, quer o seu consentimento, quer a formulação de um pedido feito ao rei para que

40 Duarte Galvão, Chronica de El Rei D. Affonso Henriques, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995, p. 51. Sobre as circunstâncias e o significado político deste comportamento da rainha Teresa, veja-se Ana Rodrigues Oliveira, ob. cit., ed. cit., pp. 151-157. 41 Rui de Pina, "Coronica DelRey Dom Diniz" in Crónicas, ed. cit., p. 311. 42 Id., ibidem, p. 235.

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AMAR __________________________________________________________________________________________________________

ele lhe entregasse o bastardo, a fim de ela o trazer, e criar em sua casa, como por ser

seu filho merecia, são exemplos dignos de realce pelo cronista. 43

No fundo, os juízos de valor expressos pelos cronistas relativamente ao

verdadeiro exercício de um amor maternal exemplar, parecem inspirar-se no sentido

moral tradicionalmente atribuído ao episódio bíblico em que o rei Salomão teria

sentenciado o pleito posto à sua consideração por duas mães que reivindicavam a tutela

maternal de uma mesma criança. De acordo com a história contada no Antigo

Testamento, o rei teria começado por ouvir as alegações por que uma das mulheres

acusava a outra, não só de haver morto acidentalmente o verdadeiro filho, como de se

ter depois apropriado da sua criança, sendo tudo isto declarado falso pela outra

contendedora. Então, sem poder contar com testemunhas independentes, Salomão teria

decidido pô-las à prova, propondo-lhes, de espada em riste, matar a criança para a

dividir pelas duas. A primeira mulher, porque as suas entrannhas se enterneceram por

seu filho, teria respondido preferir que o monarca entregasse a criança viva à outra,

ficando assim evidente qual era a verdadeira mãe e como decidir o pleito. 44

Uma tal história encerrava em si o exemplo do que seria uma boa e uma má

mãe, correspondendo o primeiro modelo às progenitoras capazes de prescindir das

alegrias da maternidade para manter os filhos vivos e saudáveis. Assim, por extensão,

qualquer mãe, mesmo adoptiva, que assim procedesse, seria digna de ser considerada

uma boa e justa mãe.

No imaginário feudal, a história de Salomão encontra paralelo nas circunstâncias

relativas às "aprendizagens" de Perceval e de Lancelot. De facto, nas histórias do Graal

tende a considerar-se mais acertada a forma como a mãe adoptiva de Lancelot o teria

educado, tudo fazendo para que, ao abandonar o lar, fosse capaz de seguir o seu destino

cavaleiresco, do que os procedimentos utilizados para idênticos fins, pela mãe biológica

de Perceval, bastante censurada por sempre ter procurado mantê-lo junto de si,

chegando a ocultar-lhe a identidade da sua linhagem e as obrigações por ela exigidas,

nomeadamente o abandono do lar familiar, para se devotar ao serviço cortesão a prestar

ao rei Artur e à sua demanda.45

43 Rui de Pina, "Chronica D'ElRey D. João II" in id., ibidem, p. 965. 44 I, Reis, 3:26, Antigo Testamento in Bíblia Sagrada em Português, ed. e trad. de João Ferreira de Almeida, Llisboa, Sociedades Bíblicas Unidas, 1968. 45 Micheline de Combarieu du Gres, "Les "aprentissages" de Perceval dans le Conte du Grall et de Lancelot dans le Lancelot en Prose", in Éducation, Apprentissages, Initiation au Moyen Age, Actes du Premier Colloque International de Montpellier, Université Paul Valéry, 1991, p. 138.

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Entretanto, paralelamente à progressiva formulação cortesã dos valores inerentes

ao exercício de uma benéfica prática do amor maternal, também a arte gótica começava

a procurar fornecer-lhe modelos e posturas exemplares, sobretudo através da estatuária

respeitante aos cultos de Nossa Senhora e do Menino Jesus. Com efeito, é a partir dos

séculos XII e XIII que se começa a abandonar a representação hierática e majestática do

tema, para se adoptar uma imagem mais humanizada e afectiva da maternidade sagrada.

Na escultura românica, muito fiel a padrões conceptuais herdados da

Cristandade bizantina, a mãe de Deus simbolizava o poder da Igreja-instituição.

Majestaticamente exposta num trono e ostentando na cabeça uma coroa, a imagem da

Nossa Senhora, sem traços faciais ou corporais individualizantes, deveria sugerir a

solidez, a segurança e a eternidade da Igreja que oferecia o Cristo a todos os pecadores,

abençoando-os com uma mão e expondo-lhes com a outra o Filho que, por sua vez, com

um olhar fixo e adulto, também reproduzia um mesmo gesto ritual de benção.46

Expostas quase sempre em altura e em espaços difíceis à aproximação dos fiéis,

as imagens românicas da mãe de Deus pouco diferiam de templo para templo. Formal e

conceptualmente abstractas, reproduziam arquétipos próprios de uma Cristandade rural,

pouco receptiva às inovações que pudessem desvirtuar ou atraiçoar as devoções e os

cultos tradicionais. Em grande parte encomendadas ou até produzidas pelas

comunidades de religiosos, quase sempre monásticas e masculinas, reproduziam a

imagem de um sagrado distante que apenas era acessível pela liturgia e pelo ritual.47

46 Sobre a iconografia da Maternidade sagrada no românico, consultem-se Andreas Petzold, Romanesque Art, Londres, Calmann, 1995, pp. 123-160; Maria Adelaide Miranda e José Custódio Vieira da Silva, História da Arte Portuguesa. Época medieval, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 79-90; Carlos Alberto Ferreira de Almeida, História da Arte em Portugal. O Românico, Lisboa, Presença, 2001, pp. 154-167. 47 Georges Duby, O tempo das catedrais. A arte e a sociedade (980-1420), Lisboa, Estampa, 1978, pp. 83-96.

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Figuras 67 e 68 - Nossas Senhoras de tradição românica. As Nossas Senhoras românicas apresentam uma maternidade majestática e hierática,exibindo a frontalidade e a verticalidade própria dos símbolos iconológicos do dogma e da fé.

Este modo românico de celebrar a maternidade divina começa progressivamen-

te a ser posto em causa entre os religiosos e os crentes a quem os progressos

demográficos e civilizacionais dos séculos XII e XIII geravam a vontade da vivência de

um sagrado mais próximo e individualizado, não apenas protector e ordenador, mas

também propiciador de abundância, crescimento e prosperidade. Assim, as imagens da

maternidade sagrada começam a abandonar as composições solenes e hieráticas

presididas pela procura de simetria, volumetria e frontalidade. A arte gótica introduz,

então, decisivas inovações formais e conceptuais. As esculturas da Senhora e do

Menino abandonam as até aí preponderantes funções de símbolo da fé e do dogma,

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ganhando a naturalidade, o movimento e a diversidade formal que melhor as podiam

aproximar dos crentes. 48

Figura 69 - Nossa Senhora gótica O Menino Jesus olha sorridente ebrincalhão para Nossa Senhora, segurandocom as suas mãos uma pomba que simbolizao Espírito Santo.

Figura 70 - Nossa Senhora gótica

A divina mãe apresenta a cabeça inclinada,aproximando-se do Menino que, ternamente,estende a mão direita para lhe afagar oscabelos. Jovem, doce e serena, NossaSenhora envolve carinhosamente o Menino noseu manto.

48 Henri Focillon, Arte do Ocidente. A Idade Média românica e gótica, Lisboa, Estampa, 1978, pp. 241- -275.

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O Menino Jesus adquire gestos e posturas infantis à medida que o seu rosto é

esculpido à semelhança do de uma criança, e que a diminuição da volumetria do seu

vestuário paralelamente à utilização de vestes pregueadas permitem visualizar-lhe a

presença de formas e atitudes próprias de um menino. Nossa Senhora, por seu lado,

adquire a postura de uma Virgem cuja beleza e juvenil serenidade remetem para a

graciosidade de uma mãe adolescente, delicada, doce, feliz e fecunda.49

A acentuação da feminilidade mariana e das expressões de afecto por Ela

dedicadas a Cristo, conferem então às

representações góticas da maternidade

divina uma superior e superlativa eficácia

devocional. No fundo, transpõem para as

manifestações artísticas do tema a

progressiva valorização social, presente,

sobretudo, entre as famílias das vilas e

cidades da Baixa Idade Média, das funções

maternais e educativas reservadas às

mães.50

Em termos iconográficos, torna-se

cada vez mais frequente a vontade de

traduzir por imagens os afectos maternais,

multiplicando-se a introdução de objectos,

gestualidades e atitudes capazes de

despontar a adesão emotiva dos crentes,

como sejam os sorrisos trocados entre mãe e Figura 71 - Virgem e o Menino (Século XV) A pintura dos finais da Idade Médiarepresenta frequentemente o contacto entreNossa Senhora e o Menino Jesus através dafiguração do manuseamento de objectossimbólicos como a maçã que remete para atemática da Redenção.

filho, o tocar ou entrelaçar das respectivas

mãos ou a expressão de lúdicas e afectivas

intimidades, muitas vezes através da simbó-

lica troca de objectos.

O par divino, cada vez mais inspirado

nas mães e filhos terrenos, anima-se então com gestos e atitudes que espelham os 49 Maria Adelaide Miranda e José Custódio Vieira da Silva, ob. cit., ed. cit., pp. 163-165. Consulte-se também Sérgio Guimarães de Andrade (dir.), O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal [1300-1500]. Catálogo da Exposição, Lisboa, Ministério da Cultura, Institurto Português dos Museus, Museu Nacional de Arte Antiga, 2000. 50 Sobre a inovação da iconografia gótica da Maternidade divina, veja-se Émile Mâle, L'art religieux du XIIIe. siècle en France, Paris, A. Colin, 1993, pp. 424-467.

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afectos próprios dos quotidianos da maternidade. Nossa Senhora passa a afagar os pés

nus do Menino Jesus e a brincar com o Filho que lhe estende os braços, tocando-lhe o

corpo ou acariciando-lhe as vestes. O Menino, por sua vez, passa a sentar-se

lateralmente no regaço materno, e, cada vez mais, deixa de ostentar a Esfera do Mundo

e o Livro Sagrado, os símbolos do Poder e da Sabedoria da Igreja, para surgir figurado a

brincar com flores, frutos ou pequenas aves.51

Paralelamente, também a iconografia do Presépio sofre notáveis transformações

formais e conceptuais. 52 Antes da difusão do estilo gótico, o Menino Jesus costumava

ser figurado na manjedoura/altar, completamente enfaixado ou vestido, abençoando

com um olhar adulto e sapiente, os crentes que se aproximavam da imagem, enquanto a

sua relação com Nossa Senhora carecia de qualquer referência a afectos maternais, já

que a Virgem, deitada num leito espacialmente separado do lugar onde se figurava o

filho, tendia a ser representada mais como espectadora de um mistério sagrado do que

como sua decisiva protagonista. Ora, a partir dos séculos XII e XIII, o modo gótico de

representar o presépio começa a alterar radicalmente a representação da relação

existente entre a mãe e o filho. Por um lado, o Menino Jesus abandona a manjedoura e

passa quase sempre a figurar no leito onde a mãe o toma nos braços, acariciando-o,

aleitando-o ou aconchegando-o. Por outro, a criança assemelha-se cada vez mais a um

recém-nascido, perdendo as faixas ou as vestes, à medida que se vai progressivamente

acentuando a representação de um corpo infantil, no todo ou em parte, associado a uma

nudez que o torna frágil e necessitado de uma forte protecção materna.

Em suma, tanto as imagens da Maternidade da Virgem como as da Natividade

de Cristo perdem, durante a Baixa Idade Média, a função de símbolos dogmáticos e

teológicos, para adquirirem a finalidade de evocarem, naturalmente, a humanidade de

Cristo, aproximando o seu nascimento do que era terrenamente comum ou desejável. De

resto, terá sido essa renovação da iconografia dos temas da Maternidade e da Natividade

de Jesus que motivaram a proliferação de tais imagens nos finais da medievalidade.53

51 Sobre a nova iconografia das Virgens de Ternura, consulte-se, Mário Jorge Barroca, "Escultura gótica" in Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Jorge Barroca, História da Arte em Portugal. O Gótico, Lisboa, Ed. Presença, 2002, pp. 157-176. 52 Carlos Alberto Ferreira de Almeida, O Presépio na Arte Medieval, Instituto de História de Arte, Faculdade de Letras do Porto, 1983, pp. 12-13. 53 Michael Camille, Gothic art. Visions and revelations of the medieval world, Londres, Calmann, 1996, pp. 163-183.

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3 - AMOR PATERNAL

Ao contrário do amor manifestado pelas mães, os afectos paternos eram, em

geral, considerados como devendo ser pouco emotivos mas intrinsecamente virtuosos,

já que se destinariam a viabilizar não tanto o crescimento e o bem-estar físico das

crianças, mas antes os progressos a atingir no aperfeiçoamento das respectivas almas.54

Nesse sentido, competir-lhes-ia expressarem-se de uma forma mais contida, discreta e

privada. Contudo, tanto os livros de milagres medievais portugueses como a cronística

lusa fornecem vários exemplos de como os pais acabavam por exteriorizar publicamente

e sentimentalmente o amor dedicado aos seus filhos.55

Nos livros de milagres essa atitude revela-se bastante comum. Por um lado,

como se noticia a propósito de Afonso X de Castela e Leão numa das suas Cantigas de

Santa Maria, ser socialmente credível un ome de paz apregoar em alta voz que amava

mui mais d’al ou mais d’outra ren o seu filho.56 Por outro, porque se menciona várias

vezes como os pais se juntavam, ou até se substituíam às mães, seja para expressarem as

dores e as angústias provocadas pela notícia de doenças ou acidentes sofridos pelas suas

crianças, seja para exteriorizarem as alegrias proporcionadas pelos milagres que lhes

teriam devolvido a saúde ou até uma nova vida.

A primeira situação apresenta-se claramente visível em notícias relativas a

vários pais. Uma delas, referindo como um progenitor andava mui cuitado por seu filho

sofrer de uma repentina surdez; 57 outra, ao relatar como um pay se partyo chorando de

uma sua criança, quando ela, devido a uma ferida, fora dada por morta em tres dias.58

Por fim, uma terceira, onde se refere o caso de outro que encomendou com lágrimas e

amor de pai um filho ao qual tinha nascido na cabeça um aposthema mui duro.59

54 Cf. Claude Thomasset, ob. cit., ed. cit., pp. 165-166. 55 Situação semelhante encontrou Finucane no seu estudo sobre os milagres medievais europeus. – Ronald C. Finucane, The Rescue os the Innocents. Endangered Children in Medieval Miracles, Nova Iorque, St. Martin's Press, 2000, p. 155. 56 Alfonso X, o Sábio, Cantigas de Santa Maria, ed. Walter Mettmann, Madrid, Castália, 1986-1988, p. 197. 57 'Milagres de S. Veríssimo', ed. Mário Martins, in "A Legenda dos Santos Mártires, Veríssimo, Máxima e Júlia do cod. CV/1 – 23 d., da Biblioteca de Évora", Revista Portuguesa de História, 6, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1964, p. 45. 58 Frei João da Póvoa, “Livro dos Milagres de Nossa Senhora das Virtudes”, ed. cit., p. 19. 59 Frei Luís de Sousa, "S. Frei Gil" in História de S. Domingos, I, ed. cit., p. 238.

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Tal como as mães, também os pais dos livros de milagres se apresentam

especialmente tristes e combalidos ao saberem da morte acidental dos filhos. No caso de

afogamentos, por exemplo, recorda-se como um pai cheio de dor acorreu de imediato

ao local do acidente, para, após levar o filho para casa, ter ficado a chorar sem nada

lhe poder valer60 e lembra-se como um outro, com muitas lagrimas logo começou a

bradar de dor.61

De resto, todas estas expressões públicas de desespero sentido pela doença ou a

morte dos filhos, ainda constitui matéria hagiográfica quando se refere dever-se a essa

angústia o desenvolvimento de iniciativas destinadas a procurar a ajuda dos santos. De

facto, é neste contexto que tanto se menciona haver um progenitor procurado muitas

mezinhas e romarias para conseguir curar o filho endemoinhado,62 como se refere ter

um outro, apesar de desenganado pelos cirurgiões que diziam que o filho morria,

insistido em transportá-lo até ao túmulo do santo, onde acabaria por ser miraculado.63

Encontram-se, ainda, os registos de um pai que veio dormir uma noite na Igreja do

Santo Condestável para lhe implorar a cura de um filho que padecia de uma dor numa

perna,64 e o de um outro que, depois de ter estado na igreja com o filho cerca de 16

dias para obter um milagre de cura para uma sua criança coxa desde o nascimento, foi

ainda trabalhar para as vinhas da Santa Senhorinha.65

Quanto à expressão paternal de regozijo pela cura ou salvação dos filhos, ela

surge referida várias vezes na sequência de notícias relativas à ocorrência de milagres

restituidores da saúde ou até da vida infantis. A título exemplificativo, cite-se o caso do

pai que, mal se produzira o milagre que permitiu a ressurreição do filho, logo exprimiu

uma tão gramde alegria e prazer que sse nom podia comtar.66

Em suma, contrariamente ao que se poderia pensar e mesmo chegar a defender-

-se, o pai não figura nos livros de milagres como um grande ausente na questão dos

afectos familiares dispensados às crianças, antes se apresentando como uma

personagem bastante presente junto dos filhos, pequenos ou grandes, rapazes ou

60 Frei Baltazar de S. João, A vida do bem aventurado Gil de Santarém, ed. Aires, A. Nascimento, Lisboa, 1982, p. 106. 61 Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, I, ed. cit., p. 490. 62 Id., ibidem, p. 494. 63 Id., ibidem, p. 544. 64 Id., ibidem, p. 536. 65 "Vida da Bem Aventurada Virgem Senhorinha", ed. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, in Vida e Milagres de S. Rosendo, Porto, 1970, p. 143. 66 Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285), I, ed. cit., p. 273.

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raparigas. Com efeito, conforme se pode observar através da análise do Quadro VIII -

- Invocantes e Acompanhantes dos Milagres feitos a Crianças, sozinhos, os pais

totalizam 42% das referências feitas aos responsáveis pela invocação dos santos a que

se atribuem milagres infantis, e 44% dos respeitantes aos adultos por cuja iniciativa

foram as crianças conduzidas aos templos onde teriam sido miraculadas, aparecendo

isolada ou globalmente mencionados numa destas funções em 43% dos casos em que

surgem referenciadas, enquanto a mãe apenas se referencia em 34% das vezes. Este é,

sem dúvida, um sinal de que as decisões familiares relativas à saúde ou à vida das

crianças tenderiam a ser praticamente repartidas entre ambos os progenitores, pelo

menos no que respeita às famílias vilãs e urbanas da Baixa Idade Média portuguesa a

que se referem grande parte dos milagres recenseados.

QUADRO VIII - INVOCANTES E ACOMPANHANTES DOS MILAGRES FEITOS A

CRIANÇAS

PEDIDO POR (73) LEVADO POR (76)

PAI MÃE PAIS OUTROS PAI MÃE PAIS OUTROS

31 29 7 6 33 22 13 8

Aliás, nos escritos hagiográficos, o amor dedicado pelo pai e pela mãe às suas

crianças surge frequentemente indiscriminado como sucede, nas vidas de santos

propriamente ditas. A propósito, por exemplo, de S. Frei Gil de Santarém, noticia-se

como ambos os progenitores lhe haviam dedicado mais predilecção, carinho e afeição

que aos outros filhos anteriores,67 sendo essa informação semelhante à que antes já

havia sido relatada para S. Martinho de Soure, apresentado como uma criança a quem os

pais teriam criado com um afecto muito particular.68 Contudo, quando os santos depois

se associam ao exercício de funções de direcção de comunidades religiosas, é ao pai a

quem se faz assemelhar a boa prática do cargo, como se afirma, por exemplo,

67 Frei Baltazar de S. João, A vida do bem aventurado Gil de Santarém, ed. cit., p. 26. 68 "Vida de S. Martinho de Soure", ed Aires A., Nascimento, in Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra: Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio, Vida de S. Martinho de Soure, Lisboa, Ed. Colibri, 1998, p. 229.

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relativamente a S. Teotónio, o prior de Santa Cruz de Coimbra, para o qual é lembrado

ter dirigido os seus cónegos com dedicação e afecto de pai.69

No que respeita aos livros de milagres, é a notícia da doença ou da morte dos

filhos que nos permite aproximar-nos à realidade do que seria o funcionamento efectivo

de uma célula familiar, já que o dramatismo próprio dessas circunstâncias nos

possibilita vislumbrar como ela funcionaria num momento privilegiado para a afirmação

da coesão do grupo dos parentes cuja missão seria a de preservar ou atenuar as trágicas

consequências de uma ruptura ou desequilíbrio geracional. Nesses momentos, o pai e a

mãe revelam-se equitativamente intervenientes, encontrando-se igualmente presentes

em todas as fases do processo miraculoso e na origem do desencadear de iniciativas

promotoras do auxílio a buscar entre os médicos, boticários ou em romagens a realizar

aos santuários.

Quanto à cronística, embora escassas e breves, não deixam de ser significativas

muitas das notícias referenciadoras dos afectos paternais dedicados pelos reis e grandes

senhores aos seus filhos. Relativamente aos primeiros, conservava-se a memória da

profunda afeição sentida pelas filhas, contando-se, por um lado, considerar o rei Afonso

X de Castela e Leão, a rainha Beatriz, a mulher de Afonso III de Portugal, como filha a

quem

mostrou elle querer moor bem, e ha que mais se devia por serviço e benefícios,

e socorros que della em suas tribulações mais que doutro algum tinha

recebidos, e ha que mais desejou gualardoar, e dar muito do seu se pudera, 70

e, por outro lado, sempre haver o Infante Pedro, o regente do reino, na menoridade de

Afonso V, recordado ao seu soberano ter-lhe entregue por esposa a fylha que tanto

amava. 71

Relativamente à alta nobreza, distingue-se, sobretudo, a forma como o cronista

Gomes Eanes de Zurara noticia os afectos paternais manifestados pelo conde Pedro de

Meneses, ao seu herdeiro, o bastardo Duarte. Com efeito, Zurara atribui ao pai a

confissão de o filho ser a cousa que ele neste mundo mais amava, afora a filha Beatriz,

porque a amava como a sua alma, não só pelo amor que tinha tido por ssua madre, mas

69 "Vida de D. Teotónio", ed. Aires A. Nascimento, in Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, ed. cit., p. 171. 70 Rui de Pina, "Coronica DelRey D. Affonso III" in Crónicas, ed. cit., p. 171. 71 Rui de Pina, "Chronica do Senhor Rey D. Affonso V", id., ibidem p. 710.

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também por ela lhe ter ficado no berço e a ter criado ao seu bafo. De resto, o cronista

acaba por depois desenvolver como o velho conde sentiria um profundo orgulho

paternal pelos feitos militares que o ainda muito jovem Duarte começara a praticar

contra os mouros, referindo-se-lhe como expressão do natural prazer que a natureza

geera nos padres contra os filhos quando lhe ueem obrar o que desejam.72

Para além disto, os cronistas ainda ocasionalmente referem como os monarcas se

condoíam com a ausência ou com a morte dos filhos, conforme se informa

relativamente a João II. Por um lado, noticiando que a partida do filho, o infante

Afonso, para a corte castelhana, aos cinco anos, a fim de nela permanecer até ter idade

para desposar a herdeira do reino vizinho e assim tirar a guerra e a morte dos Reynos

73 provocara em João II e na sua mulher intensas dor e saudade, como se a sua

ausência lhes levara os coracoões d’ambos, e o arrancassem da sua propria carne. 74

Por outro, quando, após a prematura morte do príncipe, aos dezasseis anos, se conta

como o seu régio pai se trosquiou em sinal de doo pela perda do filho, e como ele e a

rainha vestiram os corpos de negro luto, e os corações de mortal door e tristura. 75

É certo, no entanto que, relativamente a algumas das famílias das elites do reino,

sobretudo as da nobreza, existem memórias cronísticas pouco abonatórias da

generalização de profundos e desenvolvidos afectos paternos para com os filhos,

conforme parece deduzir-se da já anteriormente mencionada narrativa sobre a forma

como o alcaide de Zamora, Afonso Lopes de Texeda, então ao serviço do rei português

Fernando I, decidiu nada fazer pela salvação dos filhos, quando o exército castelhano

que o cercava o ameaçou de os vir a degollar ante seus olhos, se os ell oolhar quisesse,

porque ele não cumprira a prometida entrega da praça que defendia, conforme antes

acordara, ao mesmo tempo que entregara aos sitiantes as crianças em penhor da sua

palavra. 76

De facto, segundo Fernão Lopes, não só o alcaide teria então provocado as

hostes castelhanas ao responder que, se matassem os filhos ainda ell tiinha a forja e o

72 Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, ed. L. King, Lisboa, Universidade Nova, 1978, pp. 54 e 66. 73 Sobre esta conjuntura, veja-se João José Alves Dias, Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, ed. cit., pp. 689-700. 74 Rui de Pina, "Chronica do Senhor Rey D. Affonso V" in Crónicas, ed. cit., p. 875. 75 "Chronica D'EdlRey D. João II" in id., ibidem, p. 986. 76 Sobre este conflito, veja-se A.H. de Oliveira Marques, Portugal na crise dos séculos XIV e XV, Nova História de Portugal, IV, Lisboa, Presença, 1987, pp. 511-513. Consulte-se, também, Ana Rodrigues Oliveira, ob. cit., ed. cit., pp. 292-294.

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ANA RODRIGUES OLIVEIRA

377

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

martello com que fezera aquelles, e que assi faria outros, como nem sequer se teria

condoído pelos braados dos filhos quando forom mortos aaquella ora por ele fallecer

d’o que prometido tiinha.77

Ora, de uma forma geral, todo este episódio parece levantar dúvidas sobre a

existência de sólidos afectos paternais entre algumas das famílias da nobreza guerreira

do reino, antes parecendo evidenciar como algumas delas acabavam por se subordinar a

mais valorizados valores feudais, talvez porque o constante exercício de funções

político-militares por parte dos pais não permitisse, pelas suas longas ausências,

aprofundar as relações afectivas que os deviam ligar aos filhos, ou que as práticas

matrimoniais de tipo linhagístico, ao não estimularem a consolidação do amor conjugal,

também acabassem por não favorecer uma nítida afirmação dos afectos paternais.

Tal não significa, porém, que mesmo entre as famílias das elites do reino,

sobretudo as correspondentes à nobreza guerreira e feudal, deixasse de se afirmar o

valor pedagógico e formativo do amor paternal a dedicar aos filhos. Conforme salientou

o rei Duarte no seu Leal Conselheiro, tais afectos seriam mesmo considerados

politicamente essenciais, recordando como ele e todos os seus irmãos sempre tinham

sabido como o pai, o rei João I, os considerara e prezara muito, sendo bem firme em esta

boa voontade e havendo segura sperança que nunca jamais antre eles houvesse

mudamento de todo boo amor,78 ao mesmo tempo que, por outro lado, refere a própria

dor de perder um filho na qualidade de um sacrifício ante Deos, apenas comparável aa

door do Deus Padre enquanto orfam do seu filho Cristo.79

77 Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, ed. cit., pp. 133-135. 78 D., Duarte, “Da pratica que tinhamos com El Rei, meu Senhor e Padre, cuja alma Deos haja”, in Leal Conselheiro, ed. Maria Helena Lopes de Castro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, pp. 350-351. 79 D. Duarte, “Do dicto livro sobre a dicta virtude de liberaleza”, in Leal Conselheiro,ed. cit., pp. 327- -328.

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378

AMAR __________________________________________________________________________________________________________

Durante a Baixa Idade

Média, a crescente valorização

social e doutrinal dos afectos

paternos também se reflecte na

evolução apresentada pela figura

de S. José na iconografia da

Natividade. Durante muito

tempo surgiu, em geral,

representado sentado e muitas

vezes dormitando, assumindo a

simbologia de um pai adoptivo.

A partir de Quatrocentos

apresenta-se muito interveniente

e activo, figurando alguém que

entra e, com uma luz na mão, ou

com uma postura protectora,

ilumina ou desvenda o sentido da

maternidade sagrada. Figura 72 – Presépio (Séculos XIV-XV) Dominando centralmente o plano superior de umaNatividade, S. José, encostado a um bastão de poder,assume a postura de um guardião seguro e protector damaternidade sagrada.

4 - AMOR FILIAL

Entre os pedagogos dos finais da medievalidade, os afectos filiais identificavam

sentimentos menos fortes que os parentais. Segundo Gil de Roma, o amor dos pais

pelas suas crianças era superior porque baseado no conhecimento e na certeza de que o

ente amado era seu filho. Pelo contrário, os afectos filiais, incapazes de discernir a

identidade parental, apenas se expressavam natural e instintivamente.80

Complementando este pensamento, Filipe de Novara explica que os primeiros afectos

manifestados pelas crianças provinham da sua própria percepção, afeiçoando-se elas a

quem as alimentava ou com elas brincava, acarinhava ou erguia ao colo, sendo tais

80 Gil de Roma, Le Livre du gouvernement des Princes, (De regimine principum), ed. S.P. Molenaer, Paris, 1899, p. 192.

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ANA RODRIGUES OLIVEIRA

379

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

sentimentos progressivamente atenuados, ou até substituídos, à medida que progredia o

crescimento e o desenvolvimento infantis. 81 Então, os afectos das crianças tornavam-se

menos sensitivos e corporais, abandonando as referências maternas e matrimoniais para

se centrarem nos afectos próprios do mundo paterno ou patrimonial, permitindo-lhes

nele reconhecer o princípio activo da geração e a fonte dos bens e das honras que lhes

estavam hereditariamente reservados.82

Contudo, se os pedago-

gos e pensadores da Baixa

Idade Média Ocidental atri-

buem uma reduzida importância

à expressão dos afectos infantis,

desvalorizando-os como estru-

turalmente imperfeitos, confu-

sos e volúveis, eles não deixam

de se encontrar referidos ou

aludidos nas fontes medievais

portuguesa, sejam iconográfi-

cas, cronísticas ou tratadísticas.

Entre as primeiras,

encontr

i já viúvo, todas

encontram-se representadas de forma a transparecer

a-se a imagem que

figura prantos infantis numa das

faces da arca tumular de uma

rainha portuguesa do século

XIII, cuja identidade perma-

nece controversa.83 Apresenta-

das a rodear um adulto

coroado, o re

Figura 73 - Túmulo de rainha, Mosteiro de Alcobaça. (Século XIII) O pranto dos infantes pela morte da mãe.

as crianças, certamente infantes,

uma grande dor e sofrimento, conforme sugerem os gestos de puxar os cabelos, bater na

cabeça ou arranhar as faces. Ora, todas estas manifestações de descontrolo emocional,

81 Filipe de Novara, Les Quatre Âges de l'homme, ed. M. de Fréville, Paris, 1888, artºs 2 e 3, pp. 2 e 3. 82 Sobre estas formulações teóricas, veja-se, Claude Thomasset, ob. cit., ed. cit., p. 166. 83 De facto, segundo os investigadores que ultimamente referiram o túmulo em questão, tanto poderá ser o da rainha Urraca, esposa de Afonso II (Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Mário Jorge Barroca, ob. cit., ed. cit., pp. 216-217), como o da rainha Beatriz, a mulher de Afonso III (José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, Lisboa, IPPAR, 2003, pp. 57-65).

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380

AMAR __________________________________________________________________________________________________________

provocadas pela morte de um progenitor, foram consideradas suficientemente dignas

para se esculpirem num túmulo do panteão régio de Alcobaça, destinado a prestigiar a

memória de uma rainha a cultuar e a recordar enquanto merecido alvo de tão pungentes

afectos filiais.

No que diz respeito às crónicas, por seu lado, nelas também se registam vários

casos d

nd, e

uanto à tratadística, a prática e os objectivos de um perfeito amor filial,

merece

eer mostrado a poucas e certas pessoas, ca se os virem os que som fora de tal

e um amor filial exemplarmente valorizado e elogiado, servindo de exemplo o

que a rainha Beatriz, a esposa de Afonso III de Portugal, sempre teria reservado a seu

pai, o rei Afonso X de Castela e Leão. Com efeito, para Rui de Pina, foi sobretudo a

lembrança desse permanente afecto que o levou a conceder-lhe um breve momento na

sua história dos senhores reis de Portugal. Ou seja, o episódio onde se narra como, já

viúva, rumara até Sevilha para acompanhar os últimos dois anos de vida de Afonso X,

que então enfrentava a rebelião do filho herdeiro, dispondo-se, generosamente, a

socorrer, e confortar, e aconselhar o pai, com todo ho dinheyro de sua faze

com todalas joyas de sua pessoa, e com todalas rendas, e gentes, que tinha, e

podia aver de Portugual. 84

Q

ram ao rei Duarte um capítulo do seu livro Leal Conselheiro,85 pensado em

função da educação dos príncipes e baseado em lembranças pessoais e familiares de

como ele e os irmãos haviam amado e respeitado o pai, o monarca João I, cuja alma

Deos haja. No seu conjunto, as reflexões assim desenvolvidas foram redigidas num

tempo já marcado pelas tensões e conflitos existentes entre os filhos do já defunto

fundador da nova dinastia de Avis, encontrando-se, portanto, muito marcadas pela

nostalgia de uma perdida concórdia familiar. Aliás, o próprio rei Duarte dá-se conta

desse facto, quando, no final do seu capítulo confessava parecer-lhe que o mesmo

deveria

s

proposito e pratica, mais querrám prasmar e contradizer-me, que filhar delo,

pera senhor ou amigos proveitosa ensinança.

84 Rui de Pina, “Coronica DelRey Dom Diniz”, in Crónicas,, ed. cit., p.p. 232-233. 85 D. Duarte, Leal Conselheiro, ed. cit., pp. 349-361.

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ANA RODRIGUES OLIVEIRA

381

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

Tal não significa, no entanto, que o rei eloquente não reconhecesse alguma

utilidad

efeito, é neste contexto que o rei Duarte insiste na necessidade de os filhos

sempre

modelo de amor filial, que ordena e reflecte o amor pelo rei e pelo

reino, n

do pai, visto que nos olhos seus, e de todos cada vêz mais lagrimas se renovavam.87

e às suas reflexões e tenha deixado de considerar os afectos filiais como uma

decisiva questão de ética política e de exercício do poder dinástico. De facto, no seu

texto, o pai encontra-se projectado num monarca e os filhos em vassalos, abordando o

monarca a questão do amor filial como uma disciplina e um imperativo a seguir por

todos os súbditos, ou seja, na qualidade de um dispositivo político-afectivo destinado a

que o amor ao dicto Senhor rei, se traduza no temor de fazer cousa errada ou

desonesta.

Com

respeitarem o que o pai mais queria, sabendo que melhor era obediencia que

sacrificio e recordando como ele e os seus irmãos, nas cousas que falavamos ou

trautavamos, não levavam a sua teençom em diante sem a sua autorização, antes, nas

cousas que nos mandava ou viamos que lhe prazia de fazermos, com grande deligencia

simprezmente obedecendo as compriamos, sem nunca lhe mostrar per jeito, dicto ou

mostrança que nos esfingiamos ou arrufavamos. Por fim, o exemplo supostamente

vivenciado pelos filhos do monarca da Boa Memória, ainda fez com que o rei Duarte

incluísse entre as qualidades próprias de um forte amor filial, o constante louvor,

quando aazo se dava, das muitas virtudes e grandes feitos paternos, o cuidado de em

jogos, perfias e openiões, não ir contra o dicto senhore a atenção de nunca lhe motivar

desprazer em monte e caça, tudo fazendo para que as suas folganças sempre fossem

acrescentadas.

Ora este

ão deixou de ter consequências na escrita da história cronística. Fernão Lopes,

por exemplo, caracteriza como antídoto à maa e peçonhenta desobediencia dos infantes

rebeldes contra a realeza paterna, 86 o amor e a lealdade sempre testemunhados ao pai

pelos filhos de João I. Rui de Pina, por seu lado, exalta no colectivo dos filhos do rei da

Boa Memória a mágoa e a dor por eles reveladas no officio de tristeza que fora o funeral

86 Continuando a enaltecer a obediência e humildade destes infantes, o cronista passa depois a citar uma

de Pina, "Chronica do senhor Rey D. Duarte" in Crónicas, ed. cit., p. 491.

epístola sobre um infante herdeiro de Inglaterra muito rebelde contra o seu pai: Sae da geraçaom e nam com verdade della o que per seu grado desobedece a seu pai, porque tira o raio ao ssoll e loguo nã he soll nem luz. Estrema o rio da fomte e loguo deixa de ser rio. Talha o ramo da arvore e muito cedo se faaz seco. Aparte o filho da obediencia do padre, e loguo nam parece filho. – Fernão Lopes, Crónica de D. João I, II, ed. M. Lopes de Almeida e A. de Magalhães Basto, Barcelos, Liv. Civilização, 1990, p. 322. 87 Rui

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382

AMAR __________________________________________________________________________________________________________

Anos mais tarde não deixa o mesmo cronista de utilizar este tema na narrativa do

reinado de Afonso V. Por um lado, mencionando o tanto amor e affeiçam que o

monarc

a existência na tratadística médica medieval de

diversos procedimentos para adivinhar, induzir ou provocar a concepção de um filho ou

de uma

oesão e a reprodução do grupo familiar, enquanto as

filhas contribuíam pelo dote, para a respectiva fragmentação patrimonial, e, pela

a, ainda de tam pequena hydade, dedicava à mãe.88 Depois, quando se agudiza

o conflito entre o rei Afonso V e seu tio, conta como a rainha, filha de D. Pedro, porque

nella o amor e piadade pera elle lhe nom faleceo bem como a natural divida de sangue,

ajoelhou em frente ao marido e lhe pediu compaixão e tréguas para com seu pai. Mais

tarde, ao saber da triste certydam da morte de seu padre, com pubrycos synaaes de

mortal dor muito sentio e chorou, e nom como alhea mas como sua propria morte. 89

5 - RAPAZES OU RAPARIGAS

Como já atrás mencionámos,

filha, tende a testemunhar como não era então indiferente o sexo das crianças,

sobretudo a vontade de conceber varões. Com efeito, essa preferência parece deduzir-se

da forma como os preceitos destinados a prever o sexo de um filho, valorizavam a

esperança de um rapaz, já que só as respectivas grávidas gozavam de uma grande

alegria, de boas cores, de uma maior agilidade e serenidade, ao mesmo tempo que,

apenas nelas, se notaria a proeminência do ventre à direita e um menor volume do seio

esquerdo.90 Num mundo de preponderância masculina,91 numa sociedade rural e

guerreira que valorizava a resistência e a força físicas no quadro de uma economia de

guerra, o princípio do domínio masculino era inquestionável, fosse qual fosse o real

peso demográfico das mulheres.

Entre as elites, no seio das linhagens, competia aos filhos varões, pelo mando e

pela descendência, assegurar a c

88 Rui de Pina, "Chronica do senhor Rey D. Affonso V" in Crónicas, ed. cit., p. 648. 89 Id., ibidem, respectivamente p. 734 e p. 754. 90 Vidé capítulo NASCER. 91 Segundo Fossier, no século XII e durante uma parte do XIII, o número de mulheres adolescentes e adultas era inferior ao dos homens (90-95 contra 100-110), enquanto a mortalidade da primeira infância se revelava, de um modo geral, mais elevada no sexo masculino, nitidamente menos resistente. Na opinião deste medievalista, estes valores tanto podiam resultar de uma flagrante diferença de tratamento entre os dois sexos, como de uma grande mortalidade feminina de origem puerperal. Veja-se Robert Fossier, “A Era Feudal (séculos XI a XIII)” in História da Família, Lisboa, Terramar, 1989, p. 104 e também Henri Bresc, "A Europa das cidades e dos campos (séculos XII a XV), in História da Família, ed. cit., p. 131.

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ANA RODRIGUES OLIVEIRA

383

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

matern

, se limita a fornecer o

pretext

exemplo, o que se

tendia

stência

físicas

preocupações e atenções prestados pelos pais tanto aos filhos como às filhas, gerando as

idade, para o crescimento de famílias concernentes ou rivais. Como sublinha

Henri Bresc, neste contexto, a criança representava “o habitáculo, perecível e

transitório, do património simbólico da linhagem, sobretudo o paterno, tudo conduzindo

o indivíduo para um parentesco exclusivamente masculino”. 92

Na cronística de Avis, as informações respeitantes ao nascimento régio de

infantes variam conforme o seu sexo. Em Fernão Lopes, por exemplo, se a notícia do

nascimento da primeira filha do rei João I, a infanta Branca

o para a indicação genealógica das datas dos respectivos nascimento, morte e

local de sepultura, já a relativa ao nascimento do infante Afonso é seguida pela menção

às justas reaes e as outras alegrias que o monarca então ordenara.93

Na sociedade cavaleiresca e feudal do Ocidente medieval, a discriminação

afectiva e educativa das filhas relativamente aos filhos ocorria, sobretudo, durante os

primeiros anos de vida, reservando-se, em geral, aos varões, por

a recusar às meninas. De facto, estas só começavam a ser alvo de maiores

atenções familiares à saída da primeira infância, quando adquiriam para a linhagem o

valor estratégico de potenciais promotoras de decisivas alianças de parentesco.94

Entre os camponeses, no entanto, as filhas forneciam, desde a sua infância, um

valorizado suplemento de mão-de-obra familiar. Contudo, quer o trabalho da terra, quer

o da maior parte das actividades artesanais domésticas exigiam a força e a resi

que justificavam a valorização dos filhos varões. Nesse sentido, no seu conjunto,

tanto a sociedade cavaleiresca como a camponesa surgem dominadas por uma

hierarquia masculina de funções e de valores. No fundo, as raparigas eram pensadas

mais como fonte de encargos do que de proventos. Só durante a Baixa Idade Média, no

quadro das vilas e cidades, é que as filhas começaram, decisivamente, a merecer uma

crescente consideração social, à medida que se iam complexificando e atenuando as

hierarquias baseadas na divisão sexual do trabalho e do mando.

Nos livros de milagres evidencia-se, no entanto, os mesmos cuidados,

92 Henri Bresc, ob. cit., ed. cit., pp. 117-118. 93 Fernão Lopes, Crónica de D. João I, ed. cit., vol. II, p. 320. De acordo com Henri Bresc, as notícias cronísticas relativas à diversidade das manifestações pelo nascimento de um filho ou de uma filha na corte de Borgonha, testemunham uma muito maior discriminação sexual, contando-se como o duque Filipe o Bom, se recusara a assistir ao baptismo da primogénita do seu filho e sucessor “porque não era senão uma rapariga, mas se aprouvera a Deus enviar-lhe um filho, teria feito uma grande festa”. - Henri Bresc, ob. cit., ed. cit., p. 131. 94 Robert Fossier, ob. cit., ed. cit., p. 97.

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384

AMAR __________________________________________________________________________________________________________

suas doenças ou acidentes idênticas iniciativas parentais. Com efeito, conforme se pode

observar nos Gráficos Nº 29 - Invocações Parentais para Milagres Infantis e

Nº 30 - Acompanhamento Parental das Crianças Miraculadas aos Santuários), os pais

não parecem discriminar sexualmente as suas crianças no que diz respeito à procura de

meios sagrados capazes de lhes atenuar o sofrimento e devolver a saúde.

0%2%4%6%8%

10%12%14%16%18%20%

PER

CEN

TAG

EM

Pai Mãe Pais

GRÁFICO Nº 29 - INVOCAÇÕES PARENTAIS PARA MILAGRES INFANTIS

Rapaz Rapariga

Num corpus de cento e quarenta e nove referências aos

invocantes/acompanhantes parentais das crianças miraculadas, cento e catorze referem-

-se aos rapazes e trinta e cinco às meninas. Para os primeiros, surgem referidos os pais

em 46 casos (40%), as mães em 41 (36%), e ambos em 14 (12%); para as raparigas

contabi se tiv

lizam- , respec amente, 18 (51%) menções feitas pelo pai, 10 (29%) feitas

pela mãe e 6 (17%) por ambos, ou seja, uma proporção praticamente idêntica, conforme

se pode visualizar no Gráfico Nº 31 – Total de Invocações e Acompanhamentos

Parentais nos Milagres de Crianças.

0%

2%

4%

6%

8%

10%

12%

14%

16%

PER

CEN

TAG

EM

Pai Mãe Pais

MENTO RACULADAS

AOS SANTUÁRIOS

GRÁFICO Nº 30 - ACOMPANHAPARENTAL DAS CRIANÇAS MI

Rapaz Rapariga

_____________________________________________________________________________________________________

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

385

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%PE

RC

ENTA

GEM

Pai Mãe Pais

GRÁFICO Nº 31 - TOTAL DE INVOCAÇÕES E ACOMPANHAMENTOS PARENTAIS NOS MILAGRES DE CRIANÇAS

Rapaz Rapariga

Para além do sexo, também a idade das crianças não parece ter pesado nas

preferências maternas ou paternas. De facto, tanto o pai como a mãe surgem igualmente

preocupados com crianças de todas as idades. Entre as mais pequenas, por exemplo,

tanto se inclui a recém nascida que esteve quatro dias sem mamar e morreu vindo a ser

ressuscitada através de uma invocação do pai, contando-se depois como este fez uma

romaria gratulatória à sepultura do santo que a salvara, como a menina de dois anos cuja

mãe, ao ver a filha quase morta por ter caído pelas escadas, a foi oferecer à sepultura do

santo condestável.95 Entre as mais velhas, por seu lado, contam-se, quer a rapariga de

catorze anos à qual deo o ar no corpo todo e que o pai prometeu levar até à sepultura de

Nuno Álvares Pereira, quer o de um moço cego e tolhido de um estupor, então com

quinze anos, a quem a mãe levou, por duas vezes, ao santuário de Gonçalo de Amarante

para o curar.96

Não podemos, no entanto, deixar de referir que, se nos casos mencionados, o

interesse e a atenção demonstrados pela progenitura masculina ou feminina se apresenta

proporcionalmente semelhante, existe uma enorme disparidade numérica entre as

95 Respectivamente: Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, I, ed. cit., pp. 489 e 554-555. 96 Respectivamente: Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., pp. 504-505 e "S. Gonçalo de Amarante", in Frei Diogo do Rosário, Flos Sanctorum, I, ed. cit., pp. 279-280.

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386

AMAR __________________________________________________________________________________________________________

referências feitas aos dois sexos,97 podendo esta disparidade sugerir uma maior atenção

ou preocupação para com o sexo masculino por parte da própria mãe.

6 - AMOR DE IRMÃOS E DE AVÓS

Na sociedade medieval, marcada por baixas taxas de esperança de vida, a

coabitação entre irmãos era, por vezes, mais frequente do que a existente entre filhos e

pais. Com efeito, visto a diferença de idades entre irmãos ser normalmente muito

pequena, abundam os exemplos de uma grande convivência fraternal nos jogos e nas

brincadeiras de rua, sendo, portanto, frequente uma grande ligação afectiva entre os

irmãos. No seu Leal Conselheiro, o rei Duarte reflecte essa realidade, ao recordar como

ele e os seus irmãos nunca haviam sentido entre eles enveja, desordenada cobiiça,

avareza, desejo ou mostrança de sobrançaria.98

Também a cronística de Avis sublinha a existência desses afectos fraternais. Por

um lado, noticiando como o infante Pedro sempre demonstrara obediência e amor ao

seu irmão primogénito, o rei Duarte, conforme devia e tynha.99 Por outro,

relativamente ao infante João, referindo como ele sentira a morte do irmão e rei Duarte,

com contynuas lagrimas, e dorosas palavras que testemunhavam o sentymento de seu

coraçam, e como, quando ele próprio falecera, provocara um grande desgosto ao infante

Pedro porque eram Irmãos, que sem cautella e muy verdadeiramente se amaram, e

foram sempre em todo muy conformes. 100

Mesmo entre os grupos não privilegiados, sentir-se-ia o mesmo tipo de afecto.

Nos milagres que Afonso X de Castela e Leão compilou relativamente a Nossa Senhora

de Terena, conta-se, por exemplo, como a Virgem aconselhara o irmão de um seu

miraculado a acompanhá-lo ao templo de Terena ou aí o levar em romaria, o que, tendo

sido feito, devolvera a saúde e a razão ao pobre endemoinhado.101

Entre os irmãos de sexo diferente a proximidade afectiva não seria tão notória,

já que a maturação e crescimento das raparigas, sendo mais precoce e doméstica,

implica aprendizagens e quotidianos separados dos dos rapazes. No seio da nobreza, as

irmãs tendiam a casar-se muito novas, após uma breve educação para irem desempenhar

97 Sobre esta disparidade veja-se o capítulo ADOECER. 98 D. Duarte, Leal Conselheiro, ed. cit., p. 358. 99 Rui de Pina, "Chronica do Senhor Rey D. Duarte" in Crónicas, ed. cit., p. 495. 100 Id., ibidem, respectivamente, p. 605 e p. 688. 101 Alfonso X, Cantigas de Santa Maria, ed. cit., p. 197.

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387

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

as funções de mães e gestoras domésticas do lar, educação que era, por vezes,

completada em casa da futura sogra. Precocemente separadas da sua família e da sua

linhagem, as jovens perdiam, frequentemente, os laços afectivos que as tinham unido

aos irmãos.

Essa situação não seria tão frequente nas famílias dos grupos sociais não

privilegiados. De facto, para os camponeses e para os artesãos, o crescimento e a

formação dos filhos não envolveria uma tão nítida separação sexual, podendo supor-se a

existência de uma maior solidariedade geracional entre os rapazes e as raparigas e,

consequentemente, uma mais sólida presença dos afectos existentes entre ambos.

Já no que diz respeito aos afectos que eram testemunhados às crianças pelos

avós, a situação seria diferente. É certo que os livros de milagres medievais portugueses

citam, por vezes, o desespero e a aflição sentidos pelos avós perante as doenças ou os

acidentes sofridos pelos netos, referindo-se, por exemplo, quer como uma avó chorou o

neto falecido que era o lume dos seus olhos,102 quer como um avô fora buscar terra

sagrada ao mosteiro lisboeta de Nossa Senhora do Carmo, quando os seus dois netos

tinham muita febre.103 São também citados os casos de avós que, ou tomaram uma

idêntica iniciativa para curar a quebradura104 ou o espanto dos netos,105 ou tentaram

aliviar-lhes a dor ao lavar-lhes, com água santa, as boboas do corpo.106

Contudo, todos estes exemplos referem-se a situações familiares ocorridas em

vilas e cidades, sendo nulas as que registam contextos familiares rurais, já que aí, os

baixos índices de esperança de vida terão, certamente, condicionado a possibilidade do

desenvolvimento de duradouras ou frequentes relações quotidianas entre netos e avós.

Ora, num contexto feudal e cortesão marcado pela plausibilidade de se alcançarem

idades mais avançadas e pelo culto das protecções a desenvolver entre as gerações de

uma mesma linhagem, essas relações e afectos seriam certamente mais possíveis e

incentivados.

Nesse sentido, parece significativo o facto de os cronistas os considerarem

matéria histórica e exemplarmente relevante, noticiando, por um lado, como o rei

Afonso X de Castela e Leão, recebeu em Sevilha, com sinaes de grande amor, o neto, o

futuro rei Dinis de Portugal, para lhe outorgar, posto que fosse moço mas jáa em idade 102 Frei Luís de Sousa, “S. Frei Gil” in História de S. Domingos, ed. cit., p. 232. 103 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., p. 548. 104 Id., ibidem, pp. 531-532. 105 "Milagres de S. Veríssimo", ed. Mário Martins, in ob. cit., ed. cit., pp. 49-50 106 "Livro dos Milagres do Bom Jesus de S. Domingos de Lisboa", ed. Mário Martins, in Lavdes & Cantigas Espiritvais de Mestre André Dias, Lisboa, 1955, p. 294

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388

AMAR __________________________________________________________________________________________________________

para poder caminhar, parte dos direitos de soberania sobre o reino de Algarve107 e, por

outro, salientando ter a rainha Beatriz, a esposa do rei Afonso IV de Portugal, decidido

em testamento, ordenar o depósito dos restos mortais de uma sua neta homónima morta

muy moça, a filha da infanta Leonor e do rei de Aragão, no mesmo túmulo que lhe

estava destinado na catedral de Lisboa, porque, sendo por ela criada na corte

portuguesa, em menina faleceo.108

7 – OUTROS AFECTOS

Por fim, as fontes medievais portuguesas também registam o amor e os cuidados

dispensados às crianças pelos respectivos aios e amas. No primeiro caso, a progressiva

historização da chamada Gesta de Egas Moniz fez com que a cronística de Avis

pudesse referir a mui grão dó sentida pelo fictício aio de Afonso Henriques, ao receber

para criar uma criança que, embora muito fremosa tinha um aleijão nas pernas,

dizendo-se que o senhor de Riba Douro, confiando em Deus, que lhe poderia dar

saude, a teria educado não com menos amor e cuidados como se fora muito sã.109

Quanto às amas de leite, bastante utilizadas pelas elites fidalgas e urbanas, os

afectos direccionados às crianças que amamentavam surgem especialmente

referenciados na literatura hagiográfica. Em certas vidas de santos, são recordadas como

responsáveis pelo respectivo crescimento, contando-se haver S. Gonçalo recebido

mantiimento das tetas da ama110 ou então na qualidade de dispensadoras de especiais

carinhos e aconchegos, conforme se lembra a propósito de S. Frei Gil que, ainda de

peito, dormia na cama da ama.111

Nos livros de milagres, por seu lado, menciona-se, por exemplo, o sofrimento

sentido por uma ama a quem o menino que aleitava ficou com a garganta muito

inchada, sem conseguir comer ou beber. De facto, é a ela que se atribui a iniciativa da

respectiva cura, ao invocar o auxílio de S. Frei Gil de Santarém, ao mesmo tempo que

107 Rui de Pina, "Coronica DelRey D. Affonso III" in Crónicas, ed. cit., pp. 195-196 108 Rui de Pina, "Chronica D'El-Rei D. Affonso IV" in Crónicas, ed. cit., p. 462. 109 Duarte Galvão, Chronica de El Rei D. Affonso Henriques, ed. cit., p. 22. Sobre as origens e transmissão textual da Gesta, veja-se José Mattoso, "João Soares Coelho e a gesta de Egas Moniz" in Portugal medieval. Novas interpretações, Lisboa, I.N.C.M., 1985, pp. 409-435. 110 Ho Flos Sanctorum em Linguagē: os Santos Extravagantes, ed. cit., p. 159. 111 Frei Luís de Sousa, ob. cit.,ed. cit., p. 21, num milagre atribuído a S. Frei Gil de Santarém.

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ANA RODRIGUES OLIVEIRA

389

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

colocava sobre a garganta da criança enferma um pedaço de roupa que fora usada pelo

santo. 112

De resto, nos tratados pedagógicos dos finais da Idade Média, o tópico dos

carinhos e dos afectos a dispensar às crianças pelas suas amas de leite está quase sempre

presente. Para Bartolomeu, o Inglês, por exemplo, nada as devia distinguir das mães no

tocante ao carinho e ternura a dispensar aos mais pequenos. Tal como verdadeiras

progenitoras, competir-lhes-ia ficar feliz se a criança o estava ou sofrer quando ela

sofria. Para além disso, também lhes competiria, à semelhança de uma mãe, levantar a

criança se ela caía, dar-lhe de mamar se ela chorava, beijá-la e mimá-la se estava

doente, limpá-la se se sujava, alimentá-la enquanto ela brincava, ensinar-lhe a falar

sempre que a criança não o conseguia, tagarelando e não hesitando em magoar a sua

própria língua para exemplificar a linguagem, procurar remédios para a curar, aliviar-

-lhe o choro pegando-lhe ao colo, esmagar primeiro a comida que a criança iria engolir

para que ela não se engasgasse, cantar e acariciá-la para adormecer e ainda atar-lhe os

membros infantis com ligaduras de linho para evitar curvaturas deformantes no

corpo.113

De uma forma geral, a companhia e os afectos dispensados pelas amas de leite

geravam a formação de sólidas e duradouras irmandades de leite, nomeadamente entre

os colaços cujo relacionamento se mantinha após o desmame. Nesse sentido, os livros

de linhagens medievais portuguesas conservam a prestigiada memória fidalga desse

parentesco artificial, sobretudo se desenvolvido durante uma infância comum a futuros

reis e rainhas. Assim, por exemplo, consagram a recordação de como Miguel Fernandes

de Lisboa,114 ou as mulheres de Lourenço Martins de Avelal115 e de Vasco Fernandes

Leitão,116 haviam sido, respectivamente, colaço de Afonso III de Portugal e colaças da

rainha Beatriz, a esposa de Afonso IV de Portugal e do rei Dinis.

112 “S. Frei Gil” in Flos Sanctorum, V, ed. cit., p. 194. 113 Citado por Henrietta Leyser, Medieval Women. A Social History of Women in England 450-1500, Londres, Phoenix Press, 1995, p. 135. 114 Consultem:se: "Livro do Deão" in Livros Velhos de Linhagens, ed. Joseph Piel, José Mattoso, Lisboa, Academia das Ciências, 1980, 6AU10; Livro de Linhagens do conde D. Pedro, I, ed. José Mattoso, Lisboa, Academia das Ciências, 1981, 38510. 115 Livro de Linhagens do conde D. Pedro, ed. cit., 14U7. 116 Id., ibidem, 44U56.

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390

AMAR __________________________________________________________________________________________________________

Por último, saliente-se como os livros de milagres medievais portugueses

também registam os afectos dedicados às crianças pelos vizinhos das suas famílias,

mencionando como também se angustiavam pelas suas doenças ou pelos acidentes que

as atingiam, ou se alegravam pelas respectivas cura ou ressurreição. Entre outros, citam-

-se os casos da vizinha de um minino de peito que fez uma promessa a S. Frei Gil

quando a criança asfixiou ao engolir um anel,117 de outras que fizeram deprecação para

que uma criança fosse ressuscitada pelo santo condestável e ainda dos vizinhos que,

com a aflição de saber que a criança se tinha afogado quando andava a brincar, com

muitas lagrimas começaram a bradar. 118

117 Frei Luís de Sousa, “S. Frei Gil” em História de S. Domingos, ed. cit., p. 240. 118 Frei José Pereira de Santa Anna, ob. cit., ed. cit., respectivamente, pp. 490 e 491.

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ANA RODRIGUES OLIVEIRA

391

CONCLUSÃO

A escrita da história deve conservar o gosto do inacabado, recusando-se a encerrar seja o que for, evitando qualquer forma soberana de saberes adquiridos.

Arlette Farge 1

Durante muito tempo pensou-se que, num mundo onde a morte levava uma em

cada três crianças de pouca idade, estas apenas seriam consideradas como vidas em

suspenso, ou mortes anunciadas, a que não se reservariam grandes dedicações e afectos.

Para além disso, também a raridade da presença infantil nos textos ou nas representações

artísticas, confirmaria o desinteresse medieval pelas crianças. Estas teriam vivido, então,

na opinião de muitos, uma longa noite a que Santo Agostinho parecia referir-se quando

dizia que as crianças prefeririam morrer a recomeçar a sua infância, se tal escolha lhes

fosse proposta.

Presente à partida do nosso trabalho, esta imagem foi-se desvanecendo à medida

que a investigação progredia. Nos últimos anos, a consulta de múltiplas e variadas fontes,

fez com que as crianças medievais passassem a surgir-nos de forma muito diferente.

Depois de as começarmos a situar nos respectivos contextos familiares e sociais, e após

as percepcionarmos no campo, nas vilas e cidades, no trabalho, na escola, no mosteiro ou

no castelo, em sucessivas conjunturas de carência e abundância, de guerra e de paz, elas

começaram a ganhar nitidez e realidade, apresentando-se bastante longe da sua pretensa

identificação com um grupo etário, social e civilizacionalmente ignorado, desprezado e

oprimido.

Nesse sentido, começámos, então, a pôr em causa, ou a relativizar, conclusões e

interpretações demasiado apriorísticas ou estereotipadas. Um primeiro aspecto tem a ver

com a consideração de que as altas taxas de mortalidade infantil existentes na Idade

Média testemunhariam a incúria e a indiferença que as crianças teriam então merecido

aos adultos, esquecendo-se como também estes se encontravam globalmente

confrontados com grandes índices de mortalidade, sobretudo em conjunturas de guerra ou

de peste.

1 Arlette Farge, Le Goût de l'Archive, Paris, Seuil, 1989, p. 146.

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ______________________________________________________________________________________________

Depois, a leitura de que as altas taxas de natalidade próprias da sociedade

medieval traduziriam, paralelamente aos elevados índices de mortalidade infantil, a

prática inexistência de gravidezes desejadas, o que, por sua vez, explicaria o corrente

recurso à contracepção, ao aborto e, sobretudo, ao infanticídio.

Ora, por um lado, as atestadas variações da taxa de natalidade de acordo com o

meio ou com os grupos sociais, implicando diferenças relativas ao rural, ao urbano e aos

distintos níveis de riqueza ou de poder, mostram como a reprodução medieval esteve

longe de ser totalmente condicionada por meros factores biológicos ou ético-religiosos.

Por outro lado, considerar que as mortes infantis por aborto ou infanticídio reflectiriam

uma demonstrada indiferença social pelo destino das crianças, revela-se, quanto a nós,

bastante problemático e duvidoso. Com efeito, essa leitura terá que ser pelo menos

matizada, ao considerarmos, quer que todo o aborto tendia a ser considerado como um

infanticídio, visto o feto ser entendido como criança desde o 40º dia de gravidez, quer

que então eram muito frequentes as mortes acidentais infantis, sendo extremamente

ténue a fronteira existente entre um infanticídio e uma morte por negligência ou

homicídio voluntário praticado pelos pais. Deve ainda também ser tido em conta como a

elevada mortalidade e a frequência dos abortos espontâneos seriam suficientes para que a

sociedade medieval não tivesse sentido a necessidade de recorrer com tanta frequência, e

a todo o custo, ao aborto voluntário e, ainda menos, ao infanticídio na qualidade de meios

de controlo dos nascimentos. Na realidade, o verdadeiro problema seria, sem dúvida, o de

gerar e de manter crianças suficientes para assegurar a renovação das gerações.

Todas estas considerações parecem, assim, inviabilizar a tese, exposta por Phillipe

Ariès, de que “a vida da criança era, então, considerada com a mesma ambiguidade que a

do feto hoje”,2 mais não seja porque o feto era considerado na Idade Média não só uma

criança, mas também uma pessoa. De facto, mesmo no ventre materno ele dispunha de

um estatuto jurídico e legal idêntico ao dos seus irmãos e irmãs vivos, visto serem-lhe já

atribuídos direitos à herança dos pais. Aliás, para além dos legistas, também os médicos

consideravam o feto como um ser a proteger. Com efeito, a tratadística médica medieval

desenvolveu numerosos cuidados destinados a preservá-lo, recomendando às

grávidas uma correcta alimentação, evitarem trabalhos pesados, sofrerem pancadas

e darem saltos, ao mesmo tempo que deveriam sempre mostrar-se alegres e bem

dispostas, no pressuposto de que tudo o que afectava a mãe afectava o feto.

_________________________________________________________________________________________________ 394

2 Philippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Lisboa, Relógio d' Água, 1988, p. 20.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

CONCLUSÃO ______________________________________________________________________________________________

De resto, a consideração do discurso médico, simultaneamente normativo e

sensível, revela-se imprescindível para melhor compreender a forma como a sociedade

medieval considerava a infância, mais não seja porque nos seus tratados, ao definirem a

especificidade das idades da vida, melhor desenvolveram e divulgaram os conselhos

destinados a proteger e a assegurar a sobrevivência das crianças. Desempenharam, por

isso, um importante papel no reconhecimento medieval da infância multiplicando e

disponibilizando recomendações relativas ao aleitamento e à melhor maneira de vestir,

deitar e alimentar as crianças.

Também os escritos dos teólogos e canonistas constituíram fontes indispensáveis

para o conhecimento aprofundado do lugar reservado à criança pela sociedade medieval.

É neles, com efeito, que se encontram decisivos esforços para assegurar os meios

destinados a uma sua crescente protecção espiritual, seja através da preocupação em

efectivamente assegurar a administração do sacramento do baptismo pouco depois do

nascimento, na tentativa de evitar aos pequenos seres uma morte "impura", seja através

da vontade em lhes fornecer, por via da teorização, desde o século XII, o conceito de

Limbus Puerorum, um lugar teológico onde as suas almas pudessem vir a alcançar a

salvação eterna

Tudo isto, enquanto progrediam as normas destinadas a disponibilizar às crianças

que morriam sem baptismo condignos espaço e culto funerários e se incentivava a prática

onomástica de colocar os recém-nascidos sob a especial protecção dos santos

homónimos.

Contudo, embora a leitura atenta da tratadística civilista, médica, teológica e

canonista tenha contribuído para atenuar a convicção de que a sociedade medieval

desconheceria uma sólida e fundamentada percepção da especificidade da criança, o que,

na verdade, se apresentou como consolidado nos finais da medievalidade, através da

consulta de vários textos didáctico-morais especialmente centrados em problemáticas

pedagógicas, permaneceram as interrogações motivadas pela raridade da presença infantil

nos textos literários propriamente ditos, sendo essa carência, em geral, interpretada como

convincente testemunho do pouco interesse que ela despertaria social e culturalmente. É

certo, na verdade, que se confirma essa ausência, sobretudo no âmbito da poética e da

ficção cortesãs. Contudo, essa situação não se verifica nos casos da cronística e,

sobretudo, no dos escritos hagiográficos, nomeadamente no que respeita aos livros de

milagres, onde as crianças figuram com o mesmo peso e relevância reservados aos

__________________________________________________________________________________________ 395

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ______________________________________________________________________________________________

adultos. Aliás, de uma forma geral, a escrita permaneceu muito tempo como uma

actividade culturalmente minoritária na sociedade medieval, tendo-se quase sempre

confinado a um universo masculino, clerical ou cortesão, para quem os quotidianos e as

emoções, em cujo âmbito poderia inserir-se a referência às crianças, contavam pouco.

Mas, se é verdade que a Cristandade medieval não foi uma civilização da escrita e

que antes teve na oralidade, na imagem e no ritual o seu principal meio de comunicação

social e cultural, que dizer das imagens, onde, durante muitos séculos figuravam poucas

crianças, quase sempre inexpressivas e sem quaisquer marcas de emoção ou específica

infância? Não será tudo isto, afinal, o reflexo de como a medievalidade permanecera

insensível às crianças e aos seus valores?

Também aqui, o longo contacto com as imagens medievais, ajudou a relativizar e

problematizar a questão. Com efeito, por um lado, permitiu-nos verificar que se as

imagens das crianças, sobretudo as românicas, se revelavam inexpressivas e pouco

apostadas numa figuração naturalista, o mesmo se passava com as relativas às mães, ou

seja, as que representavam Nossa Senhora. Por outro lado, verificámos também que essas

características formais não se mantinham uniformes ao longo de toda a Idade Média,

surgindo as figurações do Menino Jesus como uma criança frágil e emotiva no âmbito da

arte gótica, ou seja, quando Ele e a mãe perderam as referências teológicas de uma

iconografia dogmática, para passarem a espelhar as vivências e as atitudes terrenas.

De facto, foi a partir da Baixa Idade Média que a iconografia da Natividade e da

Maternidade sagradas começou a ser transmitida através de imagens atentas à

representação dos temas da ternura face aos recém-nascidos e da aflição perante a

fragilidade das crianças, conforme a sensibilidade dos crentes a uma figuração emotiva

da infância, ao mesmo tempo, aliás, que também se multiplicavam as imagens

devocionais dos santos protectores de crianças.

À partida, a emergência de uma iconografia relativa à infância na arte gótica

urbana de finais da Idade Média, assim como a afirmação de um certo naturalismo na

figuração das crianças, parece apontar para uma tardia descoberta medieval da identidade

infantil. É essa, de facto, a leitura proposta por Philippe Ariès, quando, ao afirmar que, “a

arte medieval até ao século XIII não conhecia a infância, ou não se esforçava por a

representar”,3 depois de comparar todos estes novos testemunhos com a pintura

renascentista das Nossas Senhoras e o Menino, conclui estar-se então perante os

_________________________________________________________________________________________________ 396

3 - Philippe Ariès, ob. cit., ed. cit., pp. 58-59.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

CONCLUSÃO ______________________________________________________________________________________________

primórdios de uma descoberta europeia da criança que depois seria desenvolvida e

acentuada durante a Idade Moderna.

Contudo, se se tiver em conta a existência de uma continuidade entre a arte

românica e a gótica, no que diz respeito à iconografia dos temas da infância, apenas

variando por aspectos relacionados com diferentes modelos de produção e função de

imagens devocionais, tais conclusões têm necessariamente que ser matizadas no

concernente à tese da inexistência de um sentimento de infância na medievalidade

anterior ao século XIII. Com efeito, foi sobretudo devido ao facto de as representações da

Natividade e da Maternidade divinas deixarem de ser produzidas em meios religiosos,

onde a arte, num contexto rural e monástico, era tradicionalmente pensada enquanto meio

de difusão ritual e dogmático da crença, para passarem, na transição do românico para o

gótico, a definir objectos devocionais encomendados por comunidades religiosas e

patronos muito sintonizados com os quotidianos e os valores urbanos, que se assistiu à

necessidade de proceder a inovações estético-formais destinadas a melhor reflectirem os

gostos e a espiritualidade próprios de uma Cristandade tendencialmente leiga e profana.

Ora, foi exactamente no âmbito dos contactos então ocorridos entre os artistas e

os crentes urbanos, que a iconografia da Natividade e da Maternidade divinas passou a

dar maior relevo a temas e motivos susceptíveis de melhor aproximar o sagrado cristão

aos crentes que então reivindicavam um maior protagonismo religioso no seio da Igreja,

conforme testemunham os inúmeros saltérios, livros de horas e imagens devotas que as

elites urbanas da Baixa Idade Média possuíam ou cultuavam privadamente. Assim, ao

tornar-se mais atenta às marcas e aos valores urbanos, a arte gótica começou a incorporar

uma parte significativa dos quotidianos leigos e profanos, para melhor os educar e

doutrinar.

No entanto, se os artistas começaram a moldar a arte sacra aos comportamentos e

hábitos dos leigos, humanizando a iconografia do sagrado para mais facilmente captarem

a devoção dos crentes urbanos, continuam a revelar-se extremamente selectivos. Por um

lado, raramente figuram cenários ou atitudes rurais, a não ser a propósito de imagens

evocativas da mística da sucessão das estações ou dos meses do ano. Por outro, só muito

ocasionalmente retratam o viver do povo miúdo das vilas e cidades, ignorando a

realidade do trabalho, das ruas ou das feiras. De facto, a sua arte, revela-se longe de

poder reflectir ou espelhar a realidade social situada para além do mundo que envolve e

emociona as elites urbanas e cortesãs que a patrocinam e consomem. As lacunas e os

__________________________________________________________________________________________ 397

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ______________________________________________________________________________________________

silêncios da iconografia são também documentos históricos, pois a selecção feita nas

imagens não é neutra nem ocasional.

Em suma, o modo gótico de representar a infância não se apresenta tanto como o

reflexo artístico de uma mutação histórica que teria conduzido à posterior descoberta e

valorização da identidade infantil mas mais como uma estética desenvolvida pela arte

sacra medieval para responder e disciplinar as aspirações e inquietações espirituais

próprias das elites leigas urbanas da Baixa Idade Média. Nesse sentido, em vez da sua

iconografia da infância se poder exclusivamente interpretar, como defende Ariès, na

qualidade de "prova pela arte" de um até aí inexistente "sentimento sobre a especificidade

da infância", pode antes ser lido como testemunho de uma sua prévia e consolidada

existência. Artisticamente ausente, porque alheio à estética e funções da arte sacra

românica. Arqueologicamente presente através dos bonecos, jogos e miniaturas de louça

encontrados em vários sítios intervencionados nos últimos anos e pelos cuidados

evidenciados nas sepulturas infantis estudadas em muitas necrópoles medievais.

De facto, se uma análise mais simples da arte prova efectivamente que na pintura

e na escultura, a criança é representada diferentemente, nada prova que na realidade ela

seja tratada diferentemente. É a passagem da arte à realidade que é preciso considerar

com maior prudência e rigor, assim como a diferença entre “sentimento de infância” e

“sentimento pela criança”.

De um modo geral, a investigação e a redacção da dissertação que agora termina

decorreram sob o signo destas problemáticas e controvérsias, procurando responder à

questão de saber se as crianças medievais seriam ou não amadas, protegidas e cuidadas.

Nesse sentido, começámos por assistir às invocações, promessas, romarias e mezinhas

utilizadas por muitas mulheres para que Deus lhes desse alguu fruyto de geraçõ; umas,

porque consideradas maninhas, outras porque, embora parindo muytos filhos, lhes

morriam todos.

_________________________________________________________________________________________________ 398

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

CONCLUSÃO ______________________________________________________________________________________________

Depois, após a alegria do cõcebimento, acompanhámos os cuidados médicos e

alimentares seguidos pelas grávidas até chegarmos ao tão temido e ansiado momento do

parto. Assistimos, então, às suas dores e medos, ouvimos os seus gritos lastimosos, e

participámos do júbilo de ver nascer sem nenhuu perijgo os filhos tão desejados.

Seguidamente, fomos observando o crescimento das crianças, os cuidados postos na sua

higiene e alimentação e novamente a angústia de muitas mães que, seccando-se-lhe os

peitos, tiveram de recorrer aos santuários para procurar algo que lhes fizesse outra vez

acudir o leite. Entretanto, também fomos vendo surgir os primeiros dentes e os primeiros

passos das crianças, ouvindo as suas primeiras palavras e observando os seus primeiros

jogos, brinquedos e também as suas primeiras travessuras. Assistimos ainda à aflição e

ao choro dos pais quando os seus filhos adoeciam e com eles deambulámos por diversos

santuários ouvindo-os implorar a cura ou até a ressurreição dos filhos, e constatando

como os pais e as mães se uniam, acreditando, talvez, que a sua união multiplicaria as

possibilidades de obtenção das graças divinas.

É certo que em toda esta longa caminhada nos fomos, por vezes, deparando com

vários sinais de uma aparente indiferença maternal para com os filhos, patente em

algumas situações de aborto, infanticídio ou abandono. Terão sido, no entanto, suficientes

para que se possa falar de uma ausência de amor parental durante a Idade Média? Será

que ao caminharmos por esta via não estamos a esquecer (voluntária ou

involuntariamente), que muitas coisas podem dificultar ou entravar o amor parental, a

começar pelo próprio nível de vida? Quando a miséria económica, física ou psicológica

surge demasiado grave, o coração pode esfriar ou secar e, até cantar uma simples canção

de embalar pode exigir um clarão de esperança. Não diminuirá o instinto maternal de

uma mãe sobrecarregada pelo trabalho e por consecutivas gravidezes?

De facto, parece difícil comparar e generalizar os comportamentos e as emoções

das “boas" e das "más" mães, se conhecemos melhor as primeiras e consideramos

estranhas e indignas as de que só sabemos terem abandonado ou morto as suas crianças.

Antes disso, na verdade, torna-se necessário ter em conta a forma como a sociedade da

época esperava que as mães se comportassem e tentar identificar os sentimentos então

reconhecidos como “maternais”.

__________________________________________________________________________________________ 399

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ______________________________________________________________________________________________

De uma forma geral, existem abundantes testemunhos sobre os mimos e afectos

dedicados às crianças durante toda a Idade Média,4 se bem que a tratadística didáctico-

-moral visse numa excessiva demonstração desses carinhos e ternuras algo de nocivo

porque contribuiriam para envaidecer os jovens e para os tornar indisciplinados e

rebeldes.5 Contudo, como vimos nas fontes menos normativas e eruditas e, portanto, mais

próximas dos hábitos e comportamentos sociais, as demonstrações de afectividade dos

adultos para com as crianças revelam-se uma constante.

No entanto, essa atestada valorização sentimental e emotiva dos mais pequenos,

tende a expressar-se num quadro diferente do actual, visto que se repartia por uma muito

mais numerosa progenitura e exercia-se num contexto familiar correntemente

confrontado com a dor pela morte de vários filhos. Por um lado, os fracos recursos

materiais implicavam a impossibilidade de alimentar convenientemente todos os filhos

gerados. Por outro, porque a frequência das concepções e dos partos impedia as mães de

cumprir cabalmente os cuidados materno-infantis, conduzindo ao desmame prematuro e

à incapacidade de dedicar a cada um dos filhos toda a vigilância e atenção minimamente

requeridas. Sendo assim, muitos pais eram levados a atitudes de um certo distanciamento

e até afastamento relativamente aos filhos, disso dependendo a necessidade de

salvaguardarem a estabilidade emocional posta muitas vezes em causa pela morte de um

filho, e assim continuarem a dispensar os cuidados devidos à sua restante prole.

Neste contexto, marcado pela dolorosa presunção da morte prematura dos filhos,6

torna-se difícil aceitar o severo juízo de uma total ausência de afectos parentais ou o

grande desinteresse que os pais e as mães manifestariam pelos seus filhos, tanto mais

quanto os múltiplos registos referidos ao longo deste estudo patenteiam a ternura

reservada às crianças e o desgosto e a angústia provocadas nos adultos pelas suas dores e

mortes, 7 sobretudo quando esta, se ocorrida antes do baptismo, lançava dúvidas e

receios pela salvação das respectivas almas.

_________________________________________________________________________________________________ 400

4 Sobre a sua frequência e função social, veja-se Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou Cátaros e Católicos numa aldeia occitana 1294-1324, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 275. 5 Conforme era defendido por Filipe de Novara, Les Quatre Âges de l'homme, ed. M. de Fréville, Paris, 1888, p. 6, artº 8. 6 Em Portugal, a mortalidade infantil rondava os 24,4% do total das mortes, avultando neste conjunto as crianças entre um e dois anos, e entre os dois e os seis, portanto na infância: Maria Helena da Cruz Coelho, "Os Homens ao longo do Tempo e do Espaço" in Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem (coord.), Portugal em Definição de Fronteiras (1096-1325). Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV, Nova História de Portugal, III, Lisboa, Presença, 1996, p. 180. 7 Vejam-se os casos referidos nos capítulos ADOECER e MORRER E RESSUSCITAR.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

CONCLUSÃO ______________________________________________________________________________________________

Sem dúvida que muitas crianças foram negligenciadas, abandonadas, rejeitadas e

abusadas na sociedade medieval, tal como ainda hoje continuam a ser. Contudo, as fontes

disponíveis também nos relatam como muitos pais e mães logo se mobilizavam para

encontrar ajudas destinadas a curar ou a assistir os filhos doentes ou acidentados. Muitos

deles, sacrificando, generosamente, o seu tempo, o seu trabalho e os seus bens, amiúde

acompanhados e ajudados pelos parentes e pelos próprios vizinhos.

Para além disso, os dados respeitantes aos afectos profundos e continuados

dedicados pelos adultos às crianças, desde os seu nascimento, encontram-se presentes

em todos os grupos sociais e não apenas, conforme defendeu Philippe Ariès, nas famílias

das elites citadinas e cortesãs que depois os teriam difundido, por imitação social, entre

os sectores mais desfavorecidos da sociedade.8 Com efeito, mesmo entre os camponeses,

se encontram notícias sobre a dor e a tristeza manifestadas em relação aos filhos doentes

ou falecidos, os quais não seriam afinal assim tão sentidos como um encargo ou um

fardo, podendo mesmo ser considerados como uma valorizada ajuda e mais-valia

familiares. De facto, no mundo rural, onde as crianças eram precocemente introduzidas

nos labores familiares, tanto os braços infantis de hoje seriam amanhã os braços de

trabalho de um jovem adulto,9 como constituiriam uma garantia futura para o sustento da

velhice dos pais. Poderá considerar-se uma forma egoísta de colocar o problema mas,

também por este facto, pensamos que as crianças não seriam tão facilmente vítimas de

infanticídio ou de abandono.

Haverá, certamente, importantes diferenças entre os sentimentos, afectos e

atitudes reservados hoje às crianças e os que os homens e as mulheres medievais lhes

dedicavam. No entanto, os laços de dependência das crianças mais pequenas para com os

pais, particularmente para com as mães ou as amas, eram muito maiores, pois passavam

mais tempo em conjunto e tinham maiores contactos físico-afectivos, quer através da

amamentação, quer do hábito de andar ao colo ou do facto de, sendo o berço um luxo,

partilharem o calor do mesmo leito.

__________________________________________________________________________________________ 401

8 Le Roy Ladurie, no seu estudo sobre a aldeia occitana de Montaillou conclui que o afecto dos camponeses pelos filhos é “de fundação”, nada sugerindo que se “deva ver neles o produto de uma enxertia afectiva, de origem externa, elitista e da época baixa” : Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou Cátaros e Católicos numa aldeia occitana 1294-1324, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 273. 9 Refira-se, por exemplo, o caso de um moço quebrado para quem o pai pediu um milagre porque o moço lhe podia ainda fazer muitos serviços: Frei José Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, I, ed. cit., p. 529.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ______________________________________________________________________________________________

Quanto aos tão apregoados maus tratos a que as crianças medievais estariam

sujeitas, indo desde o espancamento até ao infanticídio, convém salientar-se que as

sociedades contemporâneas pós-industriais se distinguem por um muito maior recurso às

sevícias físicas no relacionamento das crianças com os adultos, sobretudo se, para além

de serem filhos provenientes de uma gravidez não desejada ou problemática, se incluírem

nos grupos ligados ao desenraizamento geo-cultural ou à exclusão social, ou seja, a

realidades e a comportamentos cuja dimensão actual está longe de ter qualquer

equivalente na civilização medieval.10

Por outro lado, mesmo que as crianças medievais partilhassem com os adultos da

sua família difíceis condições materiais de existência, quase sempre conseguiam

encontrar na Cristandade em que se integravam protecções e cuidados de parentesco e/ou

vizinhança bem como institucionais. Nesse sentido, quando se viam privadas, conforme

frequentemente acontecia, do pai ou da mãe, eram muitas vezes acolhidas por parentes ou

por comunidades que assumiam as funções e as competências maternais ou paternais,

desempenhando, por substituição, o papel de uma família de acolhimento capaz de zelar

pelos respectivos crescimento, aleitamento, aprendizagem, educação e formação afectiva

e sentimental.

É certo, porém, que ao serem entregues ou confiados, mesmo pelos próprios pais,

a certas instituições eclesiásticas de tipo comunitário, muitas crianças perdiam autonomia

e liberdade, tendo de se sujeitar, conforme ocorria com as crianças oblatas, a rígidas e

duras normas de comportamento. Contudo, mesmo neste caso, a Idade Média foi

conhecendo nítidos progressos no respeito pela liberdade das decisões a tomar por esses

jovens. Assim, por exemplo, os oblatos viram ser-lhes progressivamente adiada a idade

da expressão da vontade de virem a abandonar ou a ingressar na vida das comunidades

onde haviam crescido, num espaço tendente a reconhecer-lhes o direito a uma escolha

ponderada e pensada, paralelo, aliás, à discussão feita pelos teólogos e canonistas sobre a

necessidade de adaptar às crianças o cumprimento de certas obrigações religiosas.

Com efeito, foi a partir do século XIII que os canonistas, tendo como exemplo

casuístico as crianças oblatos, fizeram depender do atingir da puberdade a liberdade de

todos os jovens confirmarem ou renunciarem a decisões tomadas na infância sobre o seu

futuro, de acordo com uma medida que tendia, com efeitos protectores, a adiar para a

_________________________________________________________________________________________________ 402

10 Sobre a situação actual vejam-se, entre outros, o relatório elaborado por Ana Nunes de Almeida, Isabel André e Helena Nunes de Almeida, Famílias e maus tratos às crianças em Portugal, Lisboa, Assembleia da República, 2001.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

CONCLUSÃO ______________________________________________________________________________________________

adolescência os actos decisivos para opções individuais irrevogáveis. Para além do

ingresso na vida religiosa também a proibição não só de contrair casamento aos jovens

menores de catorze anos, no caso dos rapazes e doze para as meninas, mas também o

estabelecimento dos esponsórios, cuja idade mínima foi fixada nos sete anos para ambos

os sexos, foram outras deliberações protectoras da liberdade individual dos mais

pequenos. A Igreja colocava-se, assim, na vanguarda jurídica que pretendia adaptar o

rigorismo das leis à defesa dos direitos das crianças.

Em suma, integradas em famílias biológicas ou de acolhimento, as crianças

medievais tendiam a ser encaradas como grupo etário a proteger, respeitar e educar em

função de uma especificidade própria, pela qual se lhes reconhecia o direito de virem a

ser acompanhadas e amparadas pelos adultos. Neste sentido, parece descabida a tese,

defendida por Ariès, de que a criança medieval cedo se afastava dos pais e da família

para se sociabilizar e adquirir os valores e os saberes necessários ao seu crescimento.11

Por um lado, porque eram as próprias famílias que assumiam essas preocupações, sendo

essa uma característica particular da educação medieval, devendo, por isso, ser vista e

considerada de acordo com a mentalidade da época; por outro, porque, tal como

observámos através dos livros de milagres, seria relativamente frequente a permanência

dos filhos jovens junto dos pais que com eles acorriam aos santuários em busca de um

remédio espiritual capaz de os curar ou recuperar de doenças e de acidentes.12

Ao longo do nosso estudo sobre a história medieval da criança deparámo-nos com

várias infâncias cronológicas, geográficas, sociais e até etárias, visto as diversas fontes

consultadas apenas nos elucidarem sobre específicos fragmentos da realidade a

reconstruir. De uma forma geral, muita da informação disponível tende sobretudo a

esclarecer os condicionalismos que rodearam a vida dos mais pequenos, desde o

nascimento até aos três anos de idade. Esse período tanto prendeu a atenção dos

médicos, pedagogos, civilistas e canonistas, a propósito dos cuidados materno-infantis e

__________________________________________________________________________________________ 403

11 Philippe Ariès, ob. cit., ed. cit., p. 10. 12 Também Pierre Charbonnier no seu estudo sobre as cartas de perdão do século XV, confirmou a larga integração dos jovens na família, verificando ser esse a situação ocorrida para dois terços dos casos estudados entre os dez e os dezanove anos. Este autor reforça mesmo a ideia contrária, salientando a prolongada integração da maioria dos jovens em contraste com a actualidade. Veja-se "L'entrée dans la vie au XVe. siècle, d'après les lettres de rémission" in Les entrées dans la vie – Initiations et apprentissages, XII congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l'Enseignement Supérieur Public, Nancy, 1981, p. 80.

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA ______________________________________________________________________________________________

dos direitos materiais e espirituais a ter ou a atribuir às crianças, como a dos teólogos, a

propósito do respectivo posicionamento relativamente às vivências da vida religiosa e

eclesiástica. São também esses os tempos infantis mais presentes nas fontes

iconográficas. Ora, esta fase da vida das crianças, que tende a representá-la e a referi-la

como um ser amado e protegido, necessita ser confrontada com a história familiar e

socialmente menos testemunhada e esclarecida das infâncias mais tardias. Mais não seja,

porque será nelas que, tal como hoje, se encontrarão os exemplos mais significativos das

crianças mal-amadas, abandonadas, espancadas, ou até escravizadas e abusadas, ou seja,

as que consubstanciam a imagem que Ariès forneceu acerca da infância medieval.

De facto, será esse estudo, a realizar futuramente em torno das fontes

documentais, que permitirá a construção de uma história da criança medieval mais

completa e matizada. Contudo, parece-nos que ele não alterará demasiado o sentido do

passado infantil apresentado neste trabalho. Primeiro, porque o lado negro da infância

medieval será sempre menos trágico do que é maioritariamente vivido na

contemporaneidade. Depois, porque se é verdade que os actuais adultos souberam

reconhecer e enunciar os direitos a respeitar nas crianças, ao contrário de uma

medievalidade em que todos os crentes, independentemente da idade, tendiam a ser

unilateralmente considerados, também é importante salientar como o direito e as práticas

sociais então reconheciam nos mais jovens um grupo etário que, por ainda não ser adulto,

recebia um tratamento diferenciado, tornando a infância uma condição ou um "estado"

protegido e amparado.

Como afirma Pierre Riché, a criança constitui a grande esquecida dos

historiadores medievais, se bem que sempre presente nas fontes escritas e

iconográficas.13 Neste contexto, à semelhança de Danièle Alexandre-Bidon, procuramos

poder ter contribuído para reabilitar o homem e a mulher da Idade Média nas suas

capacidades de amar e educar as suas crianças.14

_________________________________________________________________________________________________ 404

13 Pierre Riché, “Réflexions sur l’histoire de l’éducation dans le Haut Moyen Âge (Ve-XIe siècles)” in J. Verger (dir.), Éducations médiévales, l' enfance, l'école, l' Église en Occident (VIe - XVe siècle), Histoire de l'éducation, 50, 1991, p. 38. 14 Danièle Alexandre-Bidon, “Grandeur et renaissance du sentiment de l’enfance au Moyen Âge” in J. Verger (dir.), ob. cit., ed. cit., p. 63.

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ANA RODRIGUES OLIVEIRA

ÍNDICE DE GRAVURAS

CAPíTULO 2 – NASCER

• Fig. 1 - Santas Mães (Século XIV-XV) ...................................................................... Escultura. Madeira policromada. Alt.90 x Larg.38 x Prof. 26cm Col. Comandante Ernesto Vilhena.Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa ( Inv. 1394 Esc.)

•Pg. 44

• Fig. 2 – Santas Mães (Século XV) ............................................................................... Escultura. Calcário policromado. Alt. 73 x Larg. 37 x Prof. 28cm Col. Comandante Ernesto Vilhena. Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa ( Inv. 1045 Esc.)

•Pg. 44

• Fig. 3 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) .................................... Iluminura. Cantiga XXI Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 50

• Fig. 4 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) .................................... Iluminura. Cantiga CXVIII Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 62

• Figura 5 – Virgem do Ó (Séc. XIV) ............................................................................ Escultura. Pedra policromada. Alt.91 x Larg. 25,5 x Prof. 6cm Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 1226 Esc.)

•Pg. 63

• Fig. 6 – Nossa Senhora do Ó (século XIV) ............................................................... Escultura. Calcário policromado. Alt.130 x Larg. 44 x Prof. 34cm Museu Nacional Machado de Castro - Coimbra ( Inv. 645; E20)

•Pg. 64

• Fig. 7 – Virgem da Expectação (Século XIV) ........................................................... Escultura. Calcário policromado Alt. 111 x Larg. 35 x Prof. 31cm Col. Comandante Ernesto Vilhena. Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 1090 Esc.)

•Pg. 66

• Fig. 8 – Virgem do Ó (Séc. XIV) ................................................................................ Escultura. Calcário branco e policromado. Alt. 134 x Larg. 33cm Museu de Lamego (Inv. 130)

•Pg. 67

• Fig. 9 – Nossa Senhora do Ó (Séc. XV) ...................................................................... Escultura. Calcário. Alt. 104 x Larg.31 x Prof. 37cm Museu de Grão Vasco – Viseu (Inv. 881; 6 Esc.)

•Pg. 67

•Fig. 10 – Santa Marinha ou Santa Margarida (Século XV) .................................. Escultura. Calcário policromado. Alt. 68,5 x Larg. 44,5 x Prof. 20cm Col. Comandante Ernesto Vilhena. Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa ( Inv. 2351 Esc.)

•Fig. 11 – Igreja Paroquial de Adeganha (Século XIII) ........................................... Baixo – relevo. Fachada da Igreja paroquial de Adeganha, concelho de Mirandela.

•Pg. 70

•Pg. 72

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

• Fig. 12.- Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................. Iluminura. Cantiga XVII. Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 73

• Fig. 13 - Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) .................................. Iluminura Cantiga LXXXIX Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 74

• Fig. 14 – Iluminuras (Século XIII) .............................................................................. Iluminura. Colecção de tratados médicos, França, Paris, BNF, ms. latin 7056, fº 88 vº 89. Reproduzidas a partir de Pierre Riché e Danièle Alexandre-Bidon, L'enfance au Moyen Age, Paris, Seuil, 1994, pp. 42-43.

•Pg. 76

• Fig. 15 - Afonso X, Cantigas de Santa Maria, (Século XIII) ................................. Iluminura. Cantiga CLXXXIIII Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 82

• Fig. 16 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) .................................. Iluminura. Cantiga I Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 86

• Fig. 17 – Igreja de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães (Século XIV) .. Pintura. Pormenor do tecto reproduzido a partir de Horácio Pereira Bonifácio, Luís Manuel Teixeira e Pedro Gomes Barbosa, "Da Temática da Decoração" in Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, Guimarães, Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1981, pp. 49-74.

•Pg. 86

•Fig. 18 – Túmulo de D. Inês de Castro (Século XIV) – Mosteiro de Alcobaça. Tumulária. Pormenor do túmulo de Inês de Castro no braço esquerdo do transepto da Igreja.

•Pg. 87

•Fig. 19 - Tríptico da Natividade da Colegiada de Guimarães - Século XV ....... Retábulo. Pormenor do retábulo de prata dourada. Alt. 135 x Larg. 175cm Museu Alberto Sampaio – Guimarães

•Pg. 87

•Fig. 20 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantiga XVII Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 96

• Fig. 21 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) .................................. Iluminura. Cantiga não numerada. Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice B.R. 20 de la Biblioteca Nazionale Centrale de Florencia.

•Pg. 98

CAPÍTULO 3 – CRESCER

•Fig. 22 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) .................................. Iluminura. Cantiga I Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 102

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442

FONTES ICONOGRÁFICAS __________________________________________________________________________________________________________

•Fig. 23 – Túmulo de D. Pedro I (Século XIV) - Mosteiro de Alcobaça ............... Tumulária. Pormenor do túmulo do rei Pedro I no braço direito do transepto da Igreja.

•Pg. 103

•Fig. 24 – Virgem com o Menino (Século XIV) ......................................................... Escultura. Calcário policromado. Alt. 68,5 x Larg. 26 x Prof. 16cm Col. Comandante Ernesto Vilhena. Museu Nacional de Arte Antiga - Lisboa (Inv. 967 Esc)

•Pg. 107

•Fig. 25 – Nossa Senhora e o Menino (Século XIV) .................................................. Ourivesaria. Prata branca e dourada com pedras preciosas Tesouro da Rainha D. Isabel. Alt. 61,5 Museu Nacional Machado de Castro - Coimbra (Inv. Our. 6034)

•Pg. 108

•Fig. 26 – Virgem do Leite (Século XV) ....................................................................... Escultura. Calcário policromado Alt. 75,7 x Larg. 30 x Prof. 21cm. Col. Comandante Ernesto Vilhena. Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 980 Esc)

•Pg. 109

•Fig. 27 – Nossa Senhora do Leite (Século XV) .......................................................... Escultura. Alt. 70 x Larg. 18,5 x Prof. 27cm Museu de Grão Vasco – Viseu (Inv. 882;7 Esc)

•Pg. 110

•Fig. 28 – Nossa Senhora do Leite (Século XV) .......................................................... Escultura. Madeira dourada e policromada. Alt. 79 x Larg. 31 x Prof. 14cm. Museu Nacional Soares dos Reis – Porto (Inv. 53 Esc.)

•Pg. 111

•Fig. 29 – Virgem do Leite (Século XV) ....................................................................... Escultura. Alt. 62,5 x Larg. 26,5 x Prof. 19cm Museu Nacional Machado de Castro – Coimbra (Inv. 4030; E 29)

•Pg. 112

•Fig. 30 – Nossa Senhora do Leite (Século XV) .......................................................... Escultura. Calcário. Alt. 38 x Larg. 21 x Prof. 15,5cm Museu de Alberto Sampaio – Guimarães (Inv. E 27)

•Pg. 113

•Fig. 31 – Virgem com o Menino (Século XV) ............................................................ Escultura. Calcário policromado. Alt. 10,5 x Larg. 37,5 x Prof. 37,5cm Col. Comandante Ernesto Vilhena. Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 1782 Esc)

•Pg. 114

•Fig. 32 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantiga XXVI Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 117

•Fig. 33 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantigas XXI e XLIII Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 119

•Fig. 34 – Túmulo de D. Pedro (Século XIV) - Mosteiro de Alcobaça ..................... Tumulária. Pormenor do túmulo do rei Pedro I no braço direito do transepto da Igreja.

•Pg. 120

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443

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

•Fig. 35 – Pormenor de uma miniatura (Século XV) ................................................ Iluminura. Bartolomeu, o Inglês, Livre des Propriétés des Choses Paris, BNF, ms. Francês 218, fº 95 Reproduzido a partir de Nadeije Laneyrie-Dagen (dir.), Les grands événements de l' histoire des enfants, Paris, Larousse, 1995, p. 89

•Pg. 121

•Fig. 36 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantiga LXV Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 126

•Fig. 37 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantiga CXXIIII Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 127

•Fig. 38 – Miniatura de bule (Séculos XII-XIII) ........................................................ Cerâmica. Miniatura de bule. Época islâmica. Museu de Loulé.

•Pg. 128

•Fig. 39 - Miniaturas de panela, bule, jarra e lamparina (Séculos XII--XIII) ... Cerâmica. Miniaturas. Panela – Alt. 4,3 x Diâm. 7cm; Bule – Alt. 7,5 x Diâm. 10cm; Jarra – Alt. 9 x Diâm. 7,6cm; Lamparina – Alt. 1,9 x Larg. 4,5cm Museu Nacional de Arqueologia de Silves. Reproduzido a partir de Rosa Varela Gomes, Palácio Almoada da Alcáçova de Silves. Catálogo da Exposição, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 2001.

•Pg. 129

•Fig. 40 – Boneca de cerâmica (Séculos XII-XIII) ..................................................... Cerâmica. Alt. 7,9 x Larg. 3cm Museu Nacional de Arqueologia de Silves. Reproduzido a partir de Rosa Varela Gomes, Palácio Almoada da Alcáçova de Silves. Catálogo da Exposição, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 2001.

•Pg. 130

CAPÍTULO 4 – APRENDER

•Fig. 41 – Sant'Ana e a Virgem) .................................................................................... •Pg. 146 Pintura. Alt. 156 x Larg. 12cm Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 1643 Pint.)

•Fig. 42 – Sant'Ana e a Virgem (Século XV) ............................................................... Escultura. Alabastro. Alt. 91 x Larg. 35 x Prof. 14cm Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 654 Esc.)

•Pg. 147

•Fig. 43 – Santas Mães (Século XV) ............................................................................. Escultura. Calcário policromado. Alt. 109 x Larg. 60 x Prof. 45cm Museu Nacional Machado de Castro – Coimbra (Inv. 2622 E41)

•Pg. 148

•Fig. 44 – Virgem com o Menino (Século XV) ............................................................ Escultura. Calcário policromado. Alt. 92,5 x Larg. 46,5 x 31cm Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 1001 Esc.)

•Pg. 149

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444

FONTES ICONOGRÁFICAS __________________________________________________________________________________________________________

•Fig. 45 – Nossa Senhora com o Menino (Século XV) .............................................. Escultura. Madeira policromada. Alt. 29 x Larg. 10,5 x Prof. 5,7cm Museu Nacional Soares dos Reis (Inv. 51 Esc.)

•Pg. 150

•Fig. 46 – Santas Mães (Século XV) .............................................................................. Iluminura. Livro de Horas de D. Duarte, Fl. 32 v. Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Lisboa

•Pg. 151

•Fig. 47 – Túmulo do arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira (Século XIV) .... Tumulária. Capela da Glória da Sé de Braga.

•Pg. 192

CAPÍTULO 5 – PROTEGER

•Fig. 48 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantiga CXXXV Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 208

•Fig. 49 – Matança dos Inocentes (Século XV) ........................................................... Iluminura. Livro de Horas de D. Duarte, Fl. 134 v. Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Lisboa

•Pg. 213

•Fig. 50 – Igreja de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães (Século XIV) ..... Pintura. Pormenor do tecto reproduzido a partir de Horácio Pereira Bonifácio, Luís Manuel Teixeira e Pedro Gomes Barbosa, "Da Temática da Decoração" in Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, Guimarães, Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1981, pp. 49-74.

•Pg. 214

•Fig. 51 – S. Nicolau (Século XIV) ................................................................................ Ourivesaria. Prata dourada e branca. Alt. 59cm Museu Nacional Machado de Castro – Coimbra (Inv. 6034 Our.)

•Pg. 215

•Fig. 52 – S. Brás (Século XV) ........................................................................................ Escultura. Calcário policromado. Alt. 67 x Larg. 25 x Prof. 17,5cm Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 2341 Esc.)

•Pg. 216

•Fig. 53 – S. Cristovão (Século XV) ............................................................................... Iluminura. Livro de Horas, Fl. 172. Évora, Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora.

•Pg. 217

CAPÍTULO 6 – ADOECER

• Fig. 54 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) .................................. Iluminura. Cantiga CXXXIII Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 319

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445

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

CAPÍTULO 7 – MORRER E RESSUSCITAR

•Fig. 55 – Túmulo de Egas Moniz (Século XIII) ........................................................ Tumulária. Cabeceira do túmulo de Egas Moniz - Mosteiro do Paço de Sousa (Penafiel)

•Pg. 328

•Fig. 56 – Missal cisterciense de Alcobaça (Século XIII) ......................................... Iluminura. Lisboa, Biblioteca Nacional, Alcob. 26, fol. 5r

•Pg. 328

•Fig. 57 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantiga XXVI Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 329

•Fig. 58 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantiga XLI Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 330

•Fig. 59 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantigas CLXVIII e XLIII Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 339

•Fig. 60 – Sepulturas individuais de crianças na necrópole medieval de Serpa. Tumulária. Foto gentilmente cedida pela Prof. Doutora Eugénia Cunha.

•Pg. 341

•Fig. 61 – Arca tumular (Século XIII) - Mosteiro de Alcobaça ............................ Tumulária. Arca de infante no Panteão do Mosteiro. Pormenor da face dos pés. Foto reproduzida a partir de José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, Lisboa, IPPAR, 2003, p. 49.

•Pg. 344

•Fig. 62 – Arca tumular (Século XIII) - Mosteiro de Alcobaça ............................ Tumulária. Arca de infante no Panteão do Mosteiro. Foto reproduzida a partir de José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, Lisboa, IPPAR, 2003, p. 51.

•Pg. 345

•Fig. 63 – Monumento funerário da Infanta Isabel (Século XIV) - Convento de Santa-Clara-a-Velha ................................................................................................... Tumulária. Foto gentilmente cedida pelo Prof. Doutor José Custódio Vieira da Silva.

•Pg. 347

•Fig. 64– Monumento funerário da Infanta Leonor Afonso (Século XIV) - Sé de Lisboa ............................................................................................................................. Tumulária. Foto reproduzida a partir de Carla Varela Fernandes, Memórias de Pedra. Escultura Tumular Medieval da Sé de Lisboa, Lisboa, IPPAR, 2001, p. 62.

•Pg. 349

CAPÍTULO 8 – AMAR

•Fig. 65 – Bíblia Sagrada (Século XIII) ......................................................................... Iluminura. Biblioteca Nacional de Lisboa, Bíblia Sagrada, Iluminados, 51, Fl. 67 v.

•Pg. 361

•Fig. 66 – Afonso X, Cantigas de Santa Maria (Século XIII) ................................... Iluminura. Cantiga CXXXIX Reproduzida a partir de Alfonso X El Sabio, Cantigas de Santa Maria, Edición Facsímil del Códice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo el Real de el Escorial.

•Pg. 362

_____________________________________________________________________________ ANA RODRIGUES OLIVEIRA

446

FONTES ICONOGRÁFICAS __________________________________________________________________________________________________________

•Fig. 67 – Virgem coroada (Século XIII) ..................................................................... Escultura. Madeira policromada. Alt. 69 x Larg. 27 x Prof. 26cm Col. Comandante Ernesto Vilhena. Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 1290 Esc.)

•Pg. 369

•Fig. 68 – Nossa Senhora com o Menino (Século XIV) ........................................... Escultura. Madeira policromada. Alt. 56,5 x Larg. 22 x Prof. 11,7cm Museu Nacional Soares dos Reis – Porto (Inv. 54 Esc.)

•Pg. 369

•Fig. 69 – Virgem com o Menino (Século XIV) .......................................................... Escultura. Pedra calcária. Alt. 130 x Larg. 43,5 x Prof. 27 cm Col. Comandante Ernesto Vilhena. Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 1087 Esc.)

•Pg. 370

•Fig. 70 – Virgem com o Menino (Século XV) ............................................................ Escultura. Madeira policromada. Alt. 83,5 x Larg. 29 x Prof. 20cm Col. Comandante Ernesto Vilhena. Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa (Inv. 2398 Esc.)

•Pg. 370

•Fig. 71 – Vigem com o Menino (Século XV) .............................................................. Pintura a óleo sobre madeira. Alt. 44 x Larg. 32cm Museu Nacional de Arte Antiga - Lisboa (Inv. 1065 Pint.)

•Pg. 371

•Fig. 72 – Presépio (Século XIV-XV) ............................................................................ Baixo-relevo. Alabastro. Alt. 43 x Espes. 5,2 x Comp. 29,7cm Museu Nacional Machado de Castro – Coimbra (Inv, 8028; E78)

•Pg. 379

•Fig. 73– Túmulo de Rainha (Século XIII) – Mosteiro de Alcobaça .................... Tumulária. Face dos pés do túmulo localizado no Panteão do Mosteiro.

•Pg. 380

_____________________________________________________________________________ ANA RODRIGUES OLIVEIRA

447

ÍNDICE DE QUADROS __________________________________________________________________________________________________________

INDICE DE QUADROS

CAPÍTULO 1 – DIFERENCIAR

QUADRO I – O LÉXICO SOBRE A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA NOS LIVROS DE MILAGRES MEDIEVAIS PORTUGUESES ................................

Pg. 38

CAPÍTULO 2 – NASCER

QUADRO II – A VIRGEM-MÃE NA ESTATUTÁRIA MEDIEVAL DO MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA. DIMENSÕES E TIPOLOGIAS .............................

Pg. 45

CAPÍTULO 5 – PROTEGER

QUADRO III – ONOMÁSTICA INFANTIL DAS HAGIOGRAFIAS E LIVROS DE MILAGRES ..........................................................................................

Pg. 211

QUADRO IV – ESTADO E SITUAÇÃO FAMILIAR DOS BASTARDOS LEGITIMADOS PELO REI DUARTE ......................................................................

Pg. 244

CAPÍTULO 6 – ADOECER

QUADRO V – CONTEXTO FAMILIAR DOS MILAGRES DE CURA DAS CRIANÇAS ...................................................................................................................

Pg. 273

QUADRO VI – CONDIÇÃO E PROFISSÕES DOS FAMILIARES DAS CRIANÇAS MIRACULADAS .......................................................................................................

Pg. 276

QUADRO VII – TIPOLOGIA, CRONOLOGIA E GÉNERO DAS CURAS DOS MIRACULADOS ......................................................................................................

Pg. 305

CAPÍTULO 8 – AMAR

QUADRO VIII – INVOCANTES E ACOMPANHANTES DOS MILAGRES FEITOS A CRIANÇAS .............................................................................................................

Pg. 375

________________________________________________________________

ANA RODRIGUES OLIVEIRA

448

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA __________________________________________________________________________________________________________

INDICE DE GRÁFICOS

CAPÍTULO 5 – PROTEGER

GRÁFICO Nº 1 – SEXO DOS BASTARDOS LEGITIMADOS PELO REI DUARTE ...................

Pg. 245

GRÁFICO Nº 2 – ESTADO E SITUAÇÃO FAMILIAR DOS PAIS DOS BASTARDOS LEGITIMADOS PELO REI DUARTE .................................................................

Pg. 245

CAPÍTULO 6 – ADOECER

GRÁFICO Nº 3 - ANTIGUIDADE DAS DOENÇAS DOS MIRACULADOS .................................

Pg. 265

GRÁFICO Nº 4 - IDADE EM QUE AS CRIANÇAS MIRACULADAS ADOECERAM ................

Pg. 271

GRÁFICO Nº 5 – ACOMPANHANTES DAS CRIANÇAS PEREGRINAS .....................................

Pg. 274

GRÁFICO Nº 6 – INICIATIVA DOS PEDIDOS PARA A PRODUÇÃO DOS MILAGRES DAS CRIANÇAS .............................................................................

Pg. 275

GRÁFICO Nº 7 – TEMPO DE MANIFESTAÇÃO DE UM MILAGRE DE CURA .........................

Pg. 278

GRÁFICO Nº 8 – FORMAS DE DESENCADEAMENTO DAS CURAS MILAGROSAS ......................................................................................................

Pg. 283

GRÁFICO Nº 9 – DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS .................................................

Pg. 285

GRÁFICO Nº 10 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - PARALISIAS ......................

Pg. 285

GRÁFICO Nº 11 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - HEMORRAGIAS E FERIDAS ............................................................................................................

Pg. 288

GRÁFICO Nº12 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - CEGUEIRA E MALES OCULARES .............................................................................................

Pg. 290

GRÁFICO Nº 13 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - PÁPULAS E INCHAÇOS ...........................................................................................................

Pg. 291

GRÁFICO Nº 14 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - DOENÇAS MENTAIS ..............................................................................................................

Pg. 293

GRÁFICO Nº 15 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS -SURDEZ E MUDEZ ..................................................................................................................

Pg. 296

GRÁFICO Nº 16 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS – QUEBRADURAS ...............

Pg. 298

GRÁFICO Nº 17 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS – DOENÇAS GRAVES INESPECÍFICAS ..................................................................................

Pg. 299

GRÁFICO Nº 18 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - FEBRES E PESTE ...............

Pg. 300

GRÁFICO Nº 19 - DOENÇAS DAS CRIANÇAS MIRACULADAS - DOENÇAS DIVERSAS ............................................................................................................

Pg. 302

GRÁFICO Nº 20 – EVOLUÇÃO DA REPRESENTATIVIDADE DO SEXO DAS CRIANÇAS MIRACULADAS ...................................................................

Pg. 307

GRÁFICO Nº 21 – TOTAL DE CASOS DE ACIDENTE REFERIDOS NOS LIVROS DE MILAGRES .....................................................................................

Pg. 308

_________________________________________________________________________________________________ ANA RODRIGUES OLIVEIRA

449

ÍNDICE DE GRÁFICOS E MAPAS __________________________________________________________________________________________________________

GRÁFICO Nº 22 – TEMPO DE MANIFESTAÇÃO DOS MILAGRES FEITOS A CRIANÇAS ACIDENTADAS .........................................................................

Pg. 310

GRÁFICO Nº 23 – FORMAS DE DESENCADEAMENTO DOS MILAGRES A CRIANÇAS ACIDENTADAS .............................................................................

Pg. 310

GRÁFICO Nº 24 – IDADE DOS MIRACULADOS POR ACIDENTE ..............................................

Pg. 312

GRÁFICO Nº 25 – TIPOLOGIA DOS ACIDENTES DOS MIRACULADOS ...................................

Pg. 313

CAPÍTULO 7 – MORRER E RESSUSCITAR

GRÁFICO Nº 26 – IDADE S À MORTE DOS MIRACULADOS POR RESSURREIÇÃO ..............

Pg. 352

GRÁFICO Nº 27 – CAUSA DA MORTE DOS MIRACULADOS POR RESSURREIÇÃO .................................................................................................

Pg. 352

GRÁFICO Nº 28 – FORMAS DE DESENCADEAMENTO DOS MILAGRES POR RESSURREIÇÃO .................................................................................................

Pg. 355

CAPITULO 8 – AMAR

GRÁFICO Nº 29 – INVOCAÇÕES PARENTAIS PARA MILAGRES INFANTIS ...........................

Pg. 385

GRÁFICO Nº 30 – ACOMPANHAMENTO PARENTAL DAS CRIANÇAS MIRACULADAS AOS SANTUÁRIOS ..............................................................

Pg. 385

GRÁFICO Nº 31 – TOTAL DE INVOCAÇÕES E ACOMPANHAMENTOS PARENTAIS NOS MILAGRES DE CRIANÇAS ...............................................

Pg. 386

INDICE DE MAPAS

CAPÍTULO 6 – ADOECER

MAPA 1 – MILAGRES DE CURA DE CRIANÇAS ..........................................................................

Pg. 267

MAPA 2 – GEOGRAFIA DA MORADA DAS CRIANÇAS MIRACULADAS ................................

Pg. 269

_________________________________________________________________________________________________ ANA RODRIGUES OLIVEIRA

450

A CRIANÇA NA SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA

MODELOS E COMPORTAMENTOS

- INTRODUÇÃO ......................................................................................................

• Pg. 1

- FONTES .......................................................................….......................................

• Pg. 9

1 – DIFERENCIAR .................................................

• Pg. 27

2 – NASCER .............................................................

• Pg. 41

1 . A MATERNIDADE SAGRADA ............................................................................................ • Pg. 41 2 . A ESTERILIDADE E A CONCEPÇÃO............................................................................... • Pg. 46 3 . A GRAVIDEZ ......................................................................................................................... • Pg. 57 4 . O PARTO................................................................................................................................. • Pg. 67 5 . A CONTRACEPÇÃO............................................................................................................. • Pg. 88 6 . O ABORTO ............................................................................................................................. • Pg. 91 7 . O INFANTICÍDIO ................................................................................................................. • Pg. 94

3 – CRESCER ............................................................

• Pg. 101

1 . A FRAGILIDADE ................................................................................................................. • Pg. 101 2 . A HIGIENE ........................................................................................................................... • Pg. 105 3 . A NUTRIÇÃO ........................................................................................................................ • Pg. 107 4 . O SONO .................................................................................................................................. • Pg. 119 5 . O ANDAR E O FALAR ....................................................................................................... • Pg. 121 6 . O JOGAR E O BRINCAR .................................................................................................. • Pg. 124

4 – APRENDER .......................................................

• Pg. 135

1 . A EDUCAÇÃO...................................................................................................................... • Pg. 136 2 . A INSTRUÇÃO .................................................................................................................... • Pg. 139 3 . RAPAZES E RAPARIGAS ................................................................................................ • Pg. 141 4 . AS APRENDIZAGENS ....................................................................................................... • Pg. 143 5 . A FUNÇÃO DAS MÃES ...................................................................................................... • Pg. 146 6 . O MEIO NOBILIÁRQUICO .............................................................................................. • Pg. 156 7 . O MODELO CORTESÃO .................................................................................................. • Pg. 161 8 . AS DONZELAS .................................................................................................................... • Pg. 167 9 . O EXEMPLO DOS SANTOS .............................................................................................. • Pg. 170 10 . A FORMAÇÃO CLERICAL ............................................................................................. • Pg. 179 11 . A OPÇÃO MONÁSTICO-CONVENTUAL. .................................................................... • Pg. 184 12 . COMPORTAMENTOS ...................................................................................................... • Pg. 191

5 – PROTEGER ....................................................

• Pg. 195

1 . OS SACRAMENTOS ........................................................................................................... 2 . AS DEVOÇÕES ....................................................................................................................

• Pg. 195 • Pg. 209

3 . A ASSISTÊNCIA .................................................................................................................. • Pg. 219 4 . AS SALVAGUARDAS ......................................................................................................... • Pg. 232

451

6 – ADOECER .................................................................

• Pg. 257

1 . TESTEMUNHOS............................................................................................................... • Pg. 257 2 . MILAGRES ....................................................................................................................... • Pg. 263 3 . AS CRIANÇAS MIRACULADAS ................................................................................... • Pg. 271 4 . AS CURAS MIRACULOSAS ........................................................................................... • Pg. 277 5 . PARALISIAS ...................................................................................................................... • Pg. 285 6 . HEMORRAGIAS E FERIDAS ........................................................................................ • Pg. 288 7 . CEGUEIRA E MALES OCULARES .............................................................................. • Pg. 290 8 . PÁPULAS E INCHAÇOS ................................................................................................. • Pg. 291 9 . DOENÇAS MENTAIS ...................................................................................................... • Pg. 293 10 . SURDEZ E MUDEZ .......................................................................................................... • Pg. 296 11 . QUEBRADURAS ............................................................................................................... • Pg. 298 12 . DOENÇAS GRAVES INESPECÍFICAS ......................................................................... • Pg. 299 13 . FEBRES E PESTE ............................................................................................................. • Pg. 300 14 . DOENÇAS DIVERSAS ..................................................................................................... • Pg. 302 15 . PREVALÊNCIAS .............................................................................................................. • Pg. 304 16 . ACIDENTES ...................................................................................................................... • Pg. 308 17. SINISTRALIDADE DOMÉS.TICA .................................................................................. • Pg. 314 18 . ACIDENTES NO EXTERIOR DA CAS.A ...................................................................... • Pg. 316 19 . RESPONSABILIZAÇÕES ................................................................................................ • Pg. 323 7 - MORRER E RESSUSCITAR .....................................

• Pg. 327

1 . AS VIDAS BREVES ........................................................................................................... • Pg. 327 2 . AS SEPULTURAS .............................................................................................................. • Pg. 333 3 . OS TÚMULOS .................................................................................................................... • Pg. 343 4 . UMA SEGUNDA VIDA ..................................................................................................... • Pg. 350

8 – AMAR ............................................................

• Pg. 357

1 . OS CONTEXTOS FAMILIARES ...................................................................................... • Pg. 357 2 . AMOR MATERNAL ........................................................................................................... • Pg. 362 3 . AMOR PATERNAL ............................................................................................................ • Pg. 373 4 . AMOR FILIAL .................................................................................................................... • Pg. 379 5 . RAPAZES E RAPARIGAS ...................................................................................... .......... • Pg. 383 6 . AMOR DE IRMÃOS E DE AVÓS ..................................................................................... • Pg. 387 7 . OUTROS AFECTOS ........................................................................................................... • Pg. 389 - CONCLUSÃO .........................................................................................................

• Pg. 393

- BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................

• Pg. 405

- FONTES ICONOGRÁFICAS ............................................................................... • Pg. 441 - ÍNDICE DE QUADROS ......................................................................................... • Pg. 448 - ÍNDICE DE GRÁFICOS E MAPAS ..................................................................... • Pg. 449 - ÍNDICE GERAL .....................................................................................................

• Pg. 451

452