Corrupção como instituição e como entretenimento: Entre ruptura e continuidade depois da ação...

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Navigation Corrupção como instituição e como entretenimento: Entre ruptura e continuidade depois da ação penal 470 by Crítica Constitucional on 5 de Dezembro de 2013 in Blog Pablo Holmes[1] As prisões efetuadas de alguns dos envolvidos na ação penal 470 do Supremo Tribunal Federal há algumas semanas causaram grande comoção e polarizaram os ânimos políticos, em todo o país. Aqueles que se identificam como oposição ao governo do Partido dos Trabalhadores viram na prisão dos petistas ocasião para criticar a conduta do partido no governo, sua prática política e sua adaptação a formas corruptas de manutenção do poder. Alguns, de modo mais emocionalizado, procuraram identificar toda a legenda com os fatos que aconteceram, acusandoa de consistir, ela mesma, em uma organização criminosa. E, claro, os que se identificam com o partido tentaram realizar a sua defesa, em grande parte apontando o fato de que o processo no STF teria sido político, e não jurídico: o resultado de pressões de setores da elite, por meio dos grandes meios de comunicação. A politização do processo, na opinião pública, foi constante, desde o seu começo. E isso é natural, pois ele envolvia figuras importantes do partido que está situação há quase onze anos. Em qualquer democracia, a politização de um evento como esse é algo natural e, até mesmo, desejável: é do conflito entre governo e oposição que se alimenta a capacidade de instituições democráticas em se adaptar a demandas e necessidades da população de eleitores. I. Simbolismos republicanos Algo foi, contudo, especialmente marcante no debate sobre esse processo. Sobretudo a oposição política, mas também observadores que procuravam maior neutralidade na disputa

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21/04/2015 Corrupção como instituição e como entretenimento: Entre ruptura e continuidade depois da ação penal 470 |

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Corrupção como instituição e comoentretenimento: Entre ruptura e continuidadedepois da ação penal 470by Crítica Constitucional on 5 de Dezembro de 2013 in Blog

Pablo Holmes[1]

As prisões efetuadas de alguns dos envolvidos na ação penal 470 do Supremo Tribunal Federalhá algumas semanas causaram grande comoção e polarizaram os ânimos políticos, em todo opaís.

Aqueles que se identificam como oposição ao governo do Partido dos Trabalhadores viram naprisão dos petistas ocasião para criticar a conduta do partido no governo, sua prática política esua adaptação a formas corruptas de manutenção do poder. Alguns, de modo maisemocionalizado, procuraram identificar toda a legenda com os fatos que aconteceram,acusando­a de consistir, ela mesma, em uma organização criminosa.

E, claro, os que se identificam com o partido tentaram realizar a sua defesa, em grande parteapontando o fato de que o processo no STF teria sido político, e não jurídico: o resultado depressões de setores da elite, por meio dos grandes meios de comunicação.

A politização do processo, na opinião pública, foi constante, desde o seu começo. E isso énatural, pois ele envolvia figuras importantes do partido que está situação há quase onze anos.Em qualquer democracia, a politização de um evento como esse é algo natural e, até mesmo,desejável: é do conflito entre governo e oposição que se alimenta a capacidade de instituiçõesdemocráticas em se adaptar a demandas e necessidades da população de eleitores.

I. Simbolismos republicanos

Algo foi, contudo, especialmente marcante no debate sobre esse processo. Sobretudo aoposição política, mas também observadores que procuravam maior neutralidade na disputa

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partidária frisavam que os acontecimentos do fim de semana representavam um marco nahistória brasileira, um evento repleto de simbolismo.

Afinal, no dia da Proclamação da República, teríamos testemunhado, pela primeira vez, ofuncionamento de instituições jurídicas punitivas contra elites políticas, em um caso decorrupção. Não era pouco.

Num país que se acostumou a conviver com casos frequentes de uso privado de coisaspúblicas, um evento como esse representaria, afinal, uma ruptura histórica com certo padrão decomportamento. O fato de que um ex­ministro, presidentes de partido, executivos financeiros efiguras importantes da classe política haviam respondido a um processo judicial até o final, tendosido condenados e encaminhados ao cumprimento da pena poderia representar,simbolicamente, um exemplo de que as instituições não mais tratariam com leniência ospoderosos. Para além da politização natural do caso por parte da oposição, o entusiasmoparece ter endereço certo: esse seria um possível começo para uma república que, segundoessa narrativa, nunca conseguiu se realizar propriamente entre nós.

II. A corrupção no imaginário brasileiro

Se, do ponto de vista jurídico, a corrupção é muito bem delimitada, dirigindo­se àquele queoferece ou promete vantagem a funcionário público, para que esse realize algum ato de ofício(corrupção ativa), assim como ao funcionário público que recebe tal vantagem (corrupçãopassiva), do ponto de vista da linguagem ordinária, a corrupção se refere a diversas práticascorriqueiras que confundem o público e o privado. E foi esse sentido – comum, por assim dizer –ganhou status teórico, no pensamento social brasileiro, por meio do conceito de patrimonialismo.

O patrimonialismo seria, segundo uma tradição bem conhecida do nosso pensamento social epolítico, algo que marcaria nossas práticas institucionais e sociais, e que teria a ver com umacerta cultura, herdada do período de colonização. Com algumas diferenças, partia­se dainterpretação de que o Brasil teria um processo apenas parcial de modernização, guardandotraços pré­modernos típicos de uma cultura política resistente à impessoalidade, moralidade eneutralidade de procedimentos jurídicos, fundamentos da modernidade racional. Seríamos,talvez graças à religião dos nossos colonizadores e dos povos originários, um povo com umapersonalidade “personalista”, “cordial”, “carnavalesca”: um tanto “malandra”, enfim, e que porisso tenderíamos a confundir o público e o privado, a casa e a rua: teríamos um padrão cultural,essencialmente, corrupto, no sentido moderno que a palavra tem, no senso comum.

Nas últimas duas décadas, essa interpretação foi objeto de severas críticas e foi, ao menos nodiscurso teórico, cada vez mais abandonada – embora ainda permaneça em grande parte vivaem nosso imaginário cultural. Seus críticos argumentavam, primeiramente, que não faria sentidoalgum identificar no Brasil um processo parcial de modernização. A própria formação socialbrasileira teria sido, desde o início, resultado de um processo radicalmente moderno: aimplantação de uma indústria exportadora, com mão de obra estrangeira (escrava), financiada

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por capital privado muitas vezes por meio de mecanismos sofisticados de associaçãocapitalista, cuja produção era voltada ao mercado global de commodities. Nada mais moderno, ecapitalista, do que a empresa colonial ela mesma.[2]

Por outro lado, insistiam eles, seria um enorme equívoco aceitar concepções monolíticas decultura que identificassem na tradição católica dos países ibéricos limites essenciais aquaisquer tipos de arranjos institucionais. O exemplo da França, ou tantos outros exemplos depaíses não protestantes que alcançaram altos níveis de renda desmentiriam empiricamente talhipótese. E do ponto de vista teórico não faria qualquer sentido imaginar que uma cultura setransporta e se impõe, de modo unilateral, a todas as instituições e dimensões da vida social.

Nesse contexto, alguns passaram a insistir que uma leitura precisa das condições dereprodução da sociedade, no Brasil, deveria não apenas abandonar a noção de patrimonialismo,como a própria ideia de que, entre nós, haveria mecanismos que pudessem ser descritos comocorruptos.

Segundo esse ponto de vista, o discurso anticorrupção seria, ele mesmo, parte apenas daretórica política conservadora, servindo a um uso tático por movimentos de reação contraquaisquer possibilidades de mudanças estruturais na sociedade.

III. Corrupção como instituição

Embora a assim chamada sociologia do patrimonialismo tenha perdido plausibilidade teórica, nãome parece contraintuitivo nem do ponto de vista empírico, nem do ponto de vista teórico suporque práticas corruptas podem ganhar dimensões sistêmicas sob determinadas condiçõessociais.

Em sociedades pré­modernas, a corrupção não era vista como um problema, pois os detentoresdo poder tinham a prerrogativa, legítima, de usá­lo em proveito próprio: para isso estavamautorizados pela sua própria condição de nascimento, determinada por narrativas metafísicas oureligiosas. Aliás, do ponto de vista teórico, o conceito de patrimonialismo, tal qual cunhado porMax Weber, referia­se apenas a esses contextos. E exatamente por isso usá­lo para descrevero Brasil seria apenas produto de anacronismo e imprecisão teórica.

Na sociedade moderna, por sua vez, a corrupção ganha, gradativamente, outro significado.Nesse contexto, a prática de influenciar decisões públicas em favor próprio, ignorando seusprocedimentos autônomos, passa a ser vista como problemática e, em grande medida, tratadacomo um ato desprezível desde o ponto de vista moral e, simultaneamente, criminalizável desdeo ponto de vista jurídico.

Nem por isso a sociedade moderna esteve sequer próxima de abolir a corrupção. Pelo contrário,práticas corruptas se tornaram, na modernidade, pela primeira vez visíveis, passíveis de seremrealizadas por quaisquer pessoas com dinheiro ou contatos suficientes para praticá­las. O usoprivado de instituições não era mais privilégio de um soberano ou estamento social, cujo poder

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era legitimado religiosamente.

E, de fato, em todo o mundo, empresários e agentes privados passaram a tentar influenciarnormas jurídicas e a ação do Estado em proveito próprio e, na ausência deste último, impor aosoutros agentes privados seus interesses, de modo a que possam acumular mais recursos. Jápor isso, aliás, seria extremamente problemática qualquer descrição da corrupção como umfenômeno essencialmente brasileiro.

Basta olhar, porém, para a diversidade de formas de organização política da sociedade mundialmoderna, para constatarmos que existem diferentes formas de estruturar as relações entre opoder privado e o poder público. Do ponto de vista teórico, não seria difícil imaginar apossibilidade de que pode ser mais barato e proveitoso comprar um governante, um juiz ou umlegislador, sob alguns arranjos institucionais, do que sob outros.

Dizendo de outro modo: se é possível a um agente social tentar influenciar e – por que não –comprar decisões políticas ou jurídicas em qualquer parte do mundo, é igualmente possívelimaginar estruturas sociais que tornam os custos dessa tentativa tão caros e seus resultadostão imprevisíveis, que as chances de obter sucesso não compensam os riscos de seuinsucesso.

Igualmente seria possível imaginar que, em determinadas circunstâncias, a existência de umarranjo institucional no qual os custos da tentativa de “comprar”, ilicitamente, decisões jurídicasou políticas seriam tão baixos, e a possibilidade de ter sucesso na empreitada tão alta, que seabster de tal tentativa seria simplesmente irracional. Apenas o “otário” ou o “moralista” o fariam.

Tal descrição em nada teria a ver com a velha sociologia do patrimonialismo. Apoiando­seunicamente na descrição de estruturas sociais, ela seria resultado de cálculo econômico: típicode uma sociedade moderna que tende, gradativamente, a “comoditizar” as relações sociais.

Ainda assim, ela chegaria a conclusões que não reduziriam a existência de estruturassistêmicas de corrupção à mera retórica política. A corrupção sistêmica corresponderia àexistência de práticas estabilizadas de sobreposição de interesses econômicos às instituiçõesformais do direito e da política ou mesmo à pura e simples imposição de interesses particulares,na esfera política, com vistas à sua universalização para o conjunto da população.

IV. Corrupção sistêmica e sociologia política

Mas quais seriam, então, os elementos institucionais que favoreceriam a corrupção sistêmica?Bastaria argumentar que são necessárias instituições formais que tornem a corrupção menoslucrativa, para solucionar o problema?

Afinal de contas, também no Brasil há penas severas para atos ilícitos contra a administraçãopública. Argumentar que essas punições não são cumpridas, porque as instituições sãocorruptas não seria de certa forma uma tautologia? Isso não significaria o mesmo que dizer:”as

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instituições são corruptas, porque as instituições são corruptas”? Não era a esse paradoxo quea sociologia do patrimonialismo parecia querer dar uma resposta, por meio de conceitosculturalistas de “malandragem”, “cordialidade” etc? Esse não seria o ponto em que entrariam emjogo ideologias do “subdesenvolvimento”, da “cultura não europeia”?

Sem dúvida alguma, esse é um ponto do elo perdido, no qual tampouco teorias institucionalistase econômicas parecem dar respostas satisfatórias. Dizer que o problema é a ausência deinstituições punitivas ou a falta de estabilidade de direitos de propriedade é não só uma respostasuperficial, como insuficiente.

Talvez uma sociologia política das instituições, em diálogo com a teoria social e a teoriaeconômica, fosse capaz de identificar possíveis razões, testáveis empiricamente, para falhassistemáticas das instituições. A questão fundamental seria: Por que, sob certas circunstânciassociais, instituições formais convergem com instituições informais, gerando expectativasgeneralizadas de preferência por certo nível de confiança interpessoal e institucional que,embora possam ser frustradas, conseguem algum nível de estabilização?

Ou, de modo contrário: Por que, sob certas circunstâncias sociais, instituições formais einstituições informais divergem a tal ponto que as primeiras se tornam não mais que fachadasnormativas retóricas, enquanto as expectativas difundidas socialmente se estruturam por meiode relações precárias de confiança, que ignoram os procedimentos formais? Como explicar quea probabilidade de algum grupo de pessoas ser processada, julgada e condenada éestatisticamente desprezível em comparação com a de que outros grupos sejam objeto deviolência policial ou de julgamentos arbitrários, tendo direitos fundamentais ignorados?

Nesse ponto, uma hipótese teórica sem dúvida interessante é a que aponta para determinadosmecanismos de inclusão e exclusão de sistemas sociais e organizações (instituições formais dosistema político, jurídico, educacional, científico, de saúde etc) como uma possível determinantedo nível de confiança institucional e dos custos de práticas contrárias àquelas que sãoprescritas formalmente.[3] Uma formulação atualizada desse argumento, em diálogo teórico comelementos de teorias institucionais, poderia nos indicar que a exclusão de indivíduos e gruposde indivíduos, em determinadas circunstâncias, pode alcançar tal grau de relevância, que suasconsequências podem se generalizar no modo como as instituições se relacionam entre si.

Desse modo, a exclusão de largos contingentes populacionais dos mecanismos decisórios dapolítica; a exclusão ampla do acesso a instituições formais e às formas organizacionais daeconomia (trabalho formal e mesmo renda), do direito (devido processo legal etc), da política(participação decisória nas organizações do sistema político) tornaria claramente menoscustoso recorrer a práticas informais estruturalmente “corruptas” por parte dos agentesprivados.

Numa realidade em que altos contingentes populacionais não contam como agentes racionaiscom poder de barganha, até mesmo por razões concorrenciais, torna­se mais barato o acessodireto ao poder político, por meio de capturas formais ou informais, por parte daqueles que seencontram em posição de inclusão. Ou, dito de outro modo, os retornos de optar por

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mecanismos informais de transação com o poder público podem funcionar como incentivosgeneralizados para aqueles que estão em condição de burlar procedimentos formais. E quantomenos agentes estiverem em condições de fazê­lo, menos custoso isto se torna para os queestão nessa posição.

Se a possibilidade de agir de acordo com conjunturas particularistas, em benefício do própriointeresse de grupo, tem um custo tão baixo, instituições informais tendem a surgir para darestabilidade a essa prática, estruturando expectativas convergentes de confiança “para­institucional”. Esse processo reforçaria a tendência inicial, gerando um ciclo de convergência deexpectativas por parte dos agentes privados e suas organizações, assim como da parte dosagentes públicos, de que se torna mais barato agir de acordo com esses mecanismos do que searriscar a abrir mão deles em favor das instituições formais, com incentivos duvidosos. Aomesmo tempo, esse processo de reforço (path dependence) tende a reproduzir o ciclo deexclusão que favorece a existência desse padrão de comportamento: o que gera um equilíbriosocial difícil de ser rompido.

A crítica, um tanto superficial, de que essa forma de reprodução é típica de todas as sociedadescapitalistas ignora elementos, inclusive empíricos, que indicam uma relação direta entrefenômenos de exclusão ou desigualdade social e ineficiência econômica. Em outras palavras:estruturas sociais baseadas em mecanismos de exclusão tenderiam a estruturar práticasinformais baseadas em baixo nível de confiança interpessoal e a cristalização dessas práticasem instituições informais que retroalimentariam os processos de exclusão.

Amplos estudos no campo da economia institucional foram capazes de indicar evidênciasrelevantes de que há relação direta entre mecanismos de inclusão e ganhos continuados deeficiência econômica, assim como o contrário: instituições excludentes tenderiam a gerar baixopadrão de confiança interpessoal e institucional, cuja consequência seria a formação demecanismos informais para­legais de estruturação de expectativas.[4] E a psicologia social temoferecido interessantes evidências, apoiadas experimentalmente, de que a desigualdade socialpode dar lugar a expectativas normativas de superioridade que levam indivíduos em posiçãoeconômica muito superior aos demais a se sentir autorizados a agir de acordo com padrõeséticos especiais, dissonantes dos socialmente aceitos.[5]

V. Inclusão/exclusão e corrupção sistêmica:O mensalão como ruptura ou “mais do mesmo”?

A sociologia da exclusão lança, por sua vez, argumentos teóricos convincentes de queprocessos de exclusão podem tomar forma cumulativa, ou seja, de que processos de exclusãopodem se acumular de modo auto­reprodutivo, no nível estrutural da sociedade.

Aquele que não tem documentos de identificação, não pode ir à escola, nem pode ser vacinado;se não pode ir à escola, não pode aprender a ler; se não sabe ler, não terá emprego; se não tememprego, não terá dinheiro; se não tem dinheiro, não pode consumir; se não pode consumir, nãopode adquirir nem mesmo informação; e se não adquire informação, não pode participar

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minimamente do sistema político. Pesquisas diversas apontam, inclusive, que, em todo omundo, os mais pobres são exatamente aqueles que menos se interessam e participam dosprocessos eleitorais e democráticos (o que apenas fortalece os ciclos de exclusão). E, claro,uma vez excluídos do sistema político, indivíduos reduzidos a seus corpos tornam­se tãofrágeis socialmente que sua exclusão do sistema de direitos não é mais objeto de qualquerescandalização.

As características de nossas instituições formais só tendem a fortalecer o argumento de que oBrasil foi construído historicamente sobre as bases de mecanismos radicais de exclusão social.As condições carcerárias completamente ilegais a que são submetidos detentos, ainda hoje, aprática naturalizada da violência policial, as práticas normalizadas de exclusão do espaçopúblico por meio da apropriação privada de espaços; diversos são os fenômenos que poderiamser enumerados. Os sintomas desses processos são tão evidentes quanto o baixíssimo nívelde confiança interpessoal difundido na sociedade e a baixa crença nas instituições formais, oque, por consequência, leva a uma alta consequente dos custos de transação ao longo de todaa economia. Nesse sentido, formas sistêmicas de corrupção podem ser teórica e empiricamenteremetidas a mecanismos de exclusão social que se reforçam e estruturam um equilíbrio socialextremamente problemático.

O caso do, assim chamado, “mensalão”, com todos os simbolismos apontados nos jornais,parece ter se tornado o maior entretenimento nacional dos últimos anos. O processo que julgoue condenou os membros do partido do governo foi identificado como o sintoma de quepoderíamos viver uma ruptura institucional importante, uma verdadeira revolução que nos levariaa novos padrões de funcionamento das organizações políticas.

Mas casos excepcionais podem servir, apenas, para confirmar a regra. A ideia de que um casopode reestruturar todo um equilíbrio institucional é não só contraintuitiva, como extremamenteproblemática do ponto de vista teórico. Não são casos isolados que alteram um balançoinstitucional estabilizado. Esses casos servem, no mais das vezes, apenas como forma deescandalização, útil politicamente e capazes de legitimar a corrupção que se manifesta nasestruturas mais gerais de reprodução da sociedade. Diante da difusão de privilégiosnaturalizados por parte de setores sociais capazes de utilizar o poder político e jurídico a seufavor, um caso isolado pode significar não mais do que um show de entretenimento.

Os mecanismos de reprodução de formas extremas de exclusão social são o problema doBrasil: elas são um importante elemento na reprodução sistêmica de ineficiências econômicas einstitucionais, no direito e na política. Qualquer tipo de reforma que fosse capaz de alterar ospadrões institucionais brasileiros seria insuficiente se não se dirigisse, de modo central, aosmecanismos de exclusão social que favorecem, no mais das vezes, exatamente aqueles quemais se entretém com a escandalização de casos isolados de corrupção.

[1] Professor de Teoria Política na Universidade de Brasília/UnB. Bacharel e mestre em direitopela UFPE, doutor em sociologia pela Universidade de Flensburg, Alemanha. Texto publicado noBlog do Programa de Educação Tutorial em Ciência Política da Universidade de Brasília (PET­

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POL UnB). <http://petpol.org/2013/11/25/corrupcao­instituicao­entretenimento/>

[2] Não deixa de ser irônico lembrar que o nordeste brasileiro, apontado muitas vezes comoainda mais pré­moderno, foi colonizado por décadas por uma sociedade de ações, a Companhiadas Índias Ocidentais, cujos acionistas indicavam, inclusive, o governante político.

[3] Esse argumento foi formulado, inicialmente, por Marcelo Neves, com referência ao que oautor chamava de “modernidade periférica”. Ver: “Verfassung und Positivitaet des Rechts in derperipheren Moderne”, Baden­Baden, 1992. Em trabalho recente formulei esse argumento comoproblema da sociedade mundial, sobretudo no nível transnacional: Verfassungsevolution in derWeltgesellschaft, Berlim, 2013.

[4] Daron Acemoglu & James Robinson, Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity,and Poverty, New York, 2012.

[5]Paul K. Piff, Daniel M. Stancatoa, Stéphane Côtéb, Rodolfo Mendoza­Dentona, and DacherKeltnera. Higher social class predicts increased unethicalbehavior. http://redaccion.nexos.com.mx/wp­content/uploads/2012/02/1118373109.full_.pdf

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