capa arteecidades 2edfinal.cdr - Repositório Institucional da ...

434

Transcript of capa arteecidades 2edfinal.cdr - Repositório Institucional da ...

arte e cidades 2ed.indd 1 04/11/15 18:07

editora da universidade federal da bahia

Diretora

flávia Goullart Mota Garcia rosa

Conselho eDitorial

alberto brum novaesangelo szaniecki Perret serpaCaiuby Álves da CostaCharbel niño el haniCleise furtado Mendesdante eustachio lucchesi ramacciottievelina de Carvalho sá hoiselJosé teixeira Cavalcante filhoMaria vidal de negreiros Camargo

UniversiDaDe FeDeral Da Bahia

reitor

João Carlos salles Pires da silva

viCe-reitor

luiz rogério bastos leal

assessor Do reitor

Paulo Costa lima

CoMissão orGanizadora do i seMinÁrio arte e Cidade / 2006

selma Passos Cardoso Professora do colegiado de arqueologia e Preservação Patrimonial - univast (Coordenadora)

eloísa Petti Pinheiro Programa de Pós-Graduação em arquitetura e urbanismo, PPG-au/ufba

florentina da silva souza Pós-Graduação em letras e linguística. instituto de letras, PPG-ll/ufba

roaleno amâncio ribeiro Costa Programa de Pós-graduação em artes visuais, PPG-av/ufba

CoMissão CientÍfiCa do i seMinÁrio arte e Cidade / 2006

sessão temátiCa 1 - história e literatura, arte e Cidade: questões teóricas e metodológicas.

elyane lins Correa (ufba)Maria stella bresciani (uniCaMP)robert Moses Pechman (ufrJ)

sessão temátiCa 2 - arquitetura, literatura e Cidade

anete C. araújo (ufba)eneida leal Cunha (ufba)Maria José a. Marcondes (uniCaMP)

sessão temátiCa 3 - arte e Cenário Público

Maria hermínia hernandez (ufba)Maria helena flexor (uCsal)naia alban (ufba)

sessão temátiCa 4 - Patrimônio afro-brasileiro e Cidade

eloísa Petti Pinheiro (ufba)Jocélio telles (ufba)viga Gordilho (ufba)

arte e cidades 2ed.indd 2 04/11/15 18:07

selma Passos Cardosoeloísa Petti Pinheiroelyane lins Corrêa

salvador, edufba, 2015

2ª Edição Revista e ampliada

arte e cidades 2ed.indd 3 04/11/15 18:07

Editora filiada à:

2015, autoresdireitos para esta edição cedidos à editora da universidade federal da bahia.

feito o depósito legal.

ProJeto GráFiCo e CaPa lúcia valeska sokolowicz

PreParaÇão De oriGinais e revisão tânia de aragão bezerra

Magel Castilho de Carvalho

normaliZaÇão

adriana Caxiado

biblioteca Central reitor Macêdo Costa

arte e cidade : imagens, discursos e representações / selma Passos Cardoso, eloísa

Petti Pinheiro, elyane lins Corrêa (organizadoras) : 2.ed. - edufba, 2015.

429 p.: il.

este livro é o resultado do i seminário arte e Cidade, realizado em 2006.

Co-edição com Mav e PPGau.

isbn: 978-85-232-1267-4

1. arquitetura - estética. 2. arquitetura na arte. 3. Cidades e vilas na arte.

i. Cardoso, selma Passos. ii. Pinheiro, eloísa Petti. iii. Corrêa, elyane lins.

Cdd - 720

editora da universidade federal da bahia

rua barão de Jeremoabo, s/n Campus de ondina – 40170-115

salvador – bahia – brasiltelefax: 0055 (71) 3283-6160/6164

[email protected] – www.edufba.ufba.br

arte e cidades 2ed.indd 4 04/11/15 18:07

Agradecimentos

Esta segunda edição não teria sido realizada sem o convite da diretora da Editora da Universidade Federal da Bahia, Flávia Goulart Garcia Rosa, que nos incentivou a fazê-lo oferendo o apoio necessário quando contamos com a inestimável colaboração de Lúcia Valeska Sokolowicz. Agradecemos também ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, nas pessoas de Luiz Antônio Fernandes Cardoso e Rodrigo Baeta e a Rosa Gabriella Gonçalves coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da mesma instituição. Agradecemos ainda a todos os autores e, em especial, a Marta LLorente, que escreveu um texto para esta edição. E por fim, agradece-mos a todos aqueles que, direta ou indiretamente, colaboraram no processo de produção deste livro com sugestões, disposição e atenção irrestritas.

As Organizadoras

arte e cidades 2ed.indd 5 04/11/15 18:07

arte e cidades 2ed.indd 6 04/11/15 18:07

sumário

Marta llorente dÍaz

Prefácio – arte, literatura y ciudad: la palabra literaria frente al espacio habitado ]. 9

apresentação ]. 19

andrea JeftanoviC

la representation de la ciudad de santiago de Chile en la literatura: ríos, plazas y esquinas como espacios performativos del deseo ciudadano ]. 23

Maria stella Martins bresCiani

literatura e Cidade ]. 57

selMa Passos Cardoso

Cidade e literatura: salvador nos séculos Xvii e Xviii ]. 89

aleilton santana da fonseCa

visões líricas da cidade: imagens de são Paulo na poesia de Mário de andrade ]. 107

andréa Queiroz rêGo

as paisagens sonoras nas representações literárias. Marques rebelo e os sons da cidade do rio de Janeiro (1931-1964) ]. 125

eloÍsa Petti Pinheiro

a cidade como obra de arte: do renascimento à cidade burguesa ]. 145

Carlos eduardo CoMas

arquitetura moderna, pintura abstrata, escultura transparente, construção qualificada e porosa: notas sobre o comércio entre as artes visuais no século XX ]. 171

arte e cidades 2ed.indd 7 04/11/15 18:07

douGlas vieira de aGuiar

Grelhas. notas sobre o expressionismo e a neutralidade em arquitetura ]. 187

fabio loPes de souza santos

as neo-vanguardas e a cidade ]. 209

robert Moses PeChMan

eros furioso na urbe. Civilização e cidade na pintura de hopper ]. 233

renato CyMbalista

de cidades e sangue: imagens de martírios e construção do território católico no século Xvi ]. 245

Maria helena oChi fleXor

a escultura e o espaço urbano de salvador ]. 265

luCiana bonGiovanni Martins sChenk

Paisagem e arte: uma estratégia de aproximação, leitura e projeto do espaço urbano ]. 291

Gabriel Girnos elias de souza

estetização e conflito: reflexões sobre o urbano no Projeto arte/Cidade ]. 315

WalCler de liMa Mendes Junior

o samba e o amor ao lugar ]. 343

nivaldo vieira de andrade Junior

na cidade em que me perco: a tropicália e a representação do espaço urbano contemporâneo ]. 363

PasQualino roMano MaGnavita

arte/cidade no pensamento pós-estruturalista. saber, Poder e subjetivação ]. 385

elyane lins Corrêa

o silêncio das imagens ]. 405 sobre os autores ]. 421

arte e cidades 2ed.indd 8 04/11/15 18:07

9 ö

arte, literatura y ciudad: la palabra literaria frente al espacio habitado

“Ignoro si la música sabe desesperar de la música y si el mármol del mármol, pero la literatura es un arte que sabe profetizar aquel tiempo en que habrá enmudecido, y encarnizarse con la propia virtud y enamorarse de la propia disolución y cortejar su fin” (Borges, “La supersticiosa ética del lector”, en Discusión, p. 205)

Este libro reúne textos que hablan de las ciudades y del arte. Pero también de la literatura como arte y como mensaje que expresa el verdadero el ser de las ciudades. Sus textos explican la ciudad misma como arte, sus imágenes, sus ritmos. Todas estas figuras son expresión de las pasiones que la habitan y de la belleza que pueden alcanzar sus representaciones. Ciudad y ciudades, todas ellas distintas y todas ellas iluminadas por el arte, por la belleza. El arte crea imágenes dignas, aún cuando la ciudad que las origina pueda albergar tambi-én una experiencia que puede llegar a ser dolorosa, incluso trágica. Ya que el arte tiene la capacidad de representar las construcciones humanas, el espacio habitado, las sociedades que conforman los distintos pueblos, y construir, con todos estos elementos, cultura, significación, sentido y belleza. Este juego que permite transformar y comprender, sentir y reconocer la experiencia, a través del arte, no puede concluir nunca. El arte se transforma, las ciudades también, como lo hace el espacio que habitamos, pero el juego que entre sus respectivas

arte e cidades 2ed.indd 9 04/11/15 18:07

10

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

esferas se establece no cesa. En cada uno de los poemas, de los relatos o de los ritmos en que las ciudades reviven, se alarga la vida del arte, se despliega de nuevo su potencial, hacia el futuro, permitiendo entender nuevas formas de recrear las construcciones humanas.

Las ciudades, hoy, son realidades muy complejas, semejantes entre sí, a veces, o completamente distintas: su “personalidad” depende de cada cultura que la habita, de las diferencias que encontramos en cada lugar del mundo, en cada tiempo y en cada edad de cada civilización. La ciudad antigua, las ciudades europeas, en las distintas épocas de la historia, y también las ciudades america-nas, abiertas a lo largo de toda la espina dorsal de América sobre centros de las culturas anteriores a la colonización, han ido formando una paleta muy amplia de variaciones urbanas o de formas de poblar el espacio. Se pueden contem-plar como variaciones cromáticas de un tapiz, como ritmos temporales de una sinfonía que sonara en permanente estado de cambio y transformación. Es esta prodigiosa fuerza de variación aquello que hace posible que el arte sobreviva a través del ser de la ciudad, multiplicando exponencialmente sus variaciones a través de sus distintos medios de representación, por y para las comunidades que habitan un mundo de ciudades.

De entre estas formas distintas de abordar la idea de ciudad y sus expe-riencias vitales, de comprenderlas, leerlas, o representarlas, nos podemos referir quizás con más detalle, ahora, a la literatura, que centra una buena parte de los escritos reunidos en el libro que presentamos. El texto literario, o la palabra literaria que le da vida, ya se trate de un poema, de una novela o de cualquier otra estructura construida por el lenguaje, resulta quizá la forma más accesible al sentido de entre todas las representaciones posibles: la que es capaz de ex-presar al mismo tiempo la imagen de la realidad y nuestra forma de percibirla, el mundo objetivo que delimita las figuras de los espacios y los sentimientos que despierta. La literatura hace simultáneas la esfera afectiva y la objetiva, puede narrar los acontecimientos mientras atiende a las impresiones que se abren en nosotros, puede establecer distintos ángulos de visión a través de los distintos sujetos cuyo lenguaje encarna. Frente a la ciudad, el texto literario ha sido, posiblemente, la forma más compleja y completa de su representación.

Sin embargo, la ciudad no aparece de manera central en la literatura hasta épocas muy recientes. La ciudad ha sido nombrada por la literatura desde sus orígenes, también su campo ha dado lugar a las más antiguas epopeyas y tradiciones poéticas, pero su carácter actual de gran estructura viva, que reúne

arte e cidades 2ed.indd 10 04/11/15 18:07

11

Pr

efá

cio

ö

materia constructiva, arquitectura y humanidad, no ha aparecido en el campo literario con plenitud hasta que la literatura moderna la ha captado con toda la intensidad que merece. La plenitud de la representación literaria de la ciudad aparece progresivamente, a medida que las ciudades llenan con su agitación nuestros sistemas de vida. Literatura y ciudad, ambas construcciones de la cul-tura, han recorrido el tiempo de manera pareja, se han desplegado una sobre otra, al mismo tiempo que sus respectivos significados han cambiado y la vida urbana se ha hecho dominante en el orden global de las culturas del mundo.

Realmente no hay una “ciudad”, sino múltiples formas de ser de las ciudades, en todos los rincones del mundo. Tampoco hay una única forma de representar la vida urbana o su forma y realidad, su arquitectura, sus barrios, sus regiones de marginación o sus monumentos representativos. Las formas en que la literatura aborda lo urbano son múltiples y parte de este abanico de posibilidades se ofrece en este libro. A pesar de la diversidad de la literatura, en el tiempo y en sus frecuentes interpretaciones, y de la diversidad de las ciu-dades del mundo, hay una experiencia común en el presente, cuya formación se puede seguir de un modo sintético.

En este punto, establecemos la búsqueda de un camino de formación de la representación urbana que ha heredado la cultura y en el que la literatura tiene un papel que parece esencial. Telón de fondo de muchos elementos de una cultura compartida, tanto como de un mundo propio, válido para cada ser individual. Fondo sobre el cual se han elaborado nuestras imágenes particula-res, al mismo tiempo que entronca con una tradición cultural reconocida. La literatura ha creado los primeros escenarios altamente difundidos de la vida urbana. Ya que, en origen, la creación de una literatura urbana, de la novela y del relato breve, y también de la poesía, coincide con la amplificación de las masas lectoras, con uno de los episodios más notables de divulgación de la letra escrita posterior al fenómeno que siguió a la difusión de la imprenta, a lo largo del siglo XVI.1 La literatura urbana coincide, en especial, con la incorpo-ración definitiva de las mujeres al mundo literario, en calidad de lectoras en primer lugar, y de autoras, como consecuencia y reflejo de la propia actividad de la lectura. Solo en la época en que se alcanza una mayor distribución de la cultura entre las distintas realidades sociales, este circuito entre experiencia y representación se hace imprescindible.

La ciudad se ha desplegado, dentro también del campo de las represen-taciones literarias, en múltiples fragmentos de realidad que terminamos nom-

arte e cidades 2ed.indd 11 04/11/15 18:07

12

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

brando: espacio urbano, suburbano, periférico o extraurbano, y rural. Casi todas las categorías de la vida en sociedad se han formulado y se formulan todavía ante el fenómeno urbano en sus representaciones literarias, especialmente en la poesía que llamamos urbana y en la novela: en relación a él adquieren su propia topología y su denominación. Pero la ciudad, como idea de conjunto, se instituye como centro de todo el sistema espacial. La ciudad de hoy aturde, ensordece, pero acapara la dimensión del centro de nuestros relatos; es el caudal donde se vierten todos los matices diferenciales del espacio experimentado y vivido, el cruce real de los caminos que irrigan el territorio, su encrucijada real y figurada. Estos matices han adquirido también realidad a través de haber sido subrayados y recogidos por la escritura, así como por multitud de formas de representación. Inmersos en esta corriente de signos y referencias, de formas distintas de surcar el espacio y de ocuparlo, de cruces arbitrarios con los otros y con todos los azares que depara la vida urbana, apenas alcanzamos la posi-bilidad de la comunicación, en el sentido pleno de la palabra, solo la rozamos tangencialmente, olvidados de las formas ancestrales de convivencia que la hacían plenamente posible. La ciudad es ahora un magma que inunda y deter-mina las formas de comunicación. Pero este magma adquiere la capacidad de ser asimilado, comprendido o recreado, en la medida en que es representado, en especial, a partir del texto escrito, de la palabra. Y la propia experiencia de vivir en ciudades, o en un mundo de ciudades, no puede comprenderse sin reconstruir o esbozar la historia de sus representaciones verbales, de sus relatos. En los espacios aun alejados físicamente de la vida urbana, el lector o la lectora solitarios, han recibido y reciben noticias de las ciudades, las conocen y, por tanto, las habitan. Esta imagen no es banal, quizá incluso podemos insinuar que la ciudad deviene experiencia plena solamente cuando se la recuerda, o se la vive en la distancia, cuando la imaginamos y comprendemos desde la leja-nía. Muchas experiencias que surten de vida literaria a las ciudades se centran en los espacios de sus antípodas, lejos de ellas, en los retiros apartados desde donde es posible entender el caos de toda su experiencia sensorial y vital. La escena de la lectura alejada de los lugares que recrea es, asimismo, una escena literaria, extrema pero recurrente.2

La experiencia que aporta la lectura, que se traza en la escritura, se ajusta a las leyes del lenguaje, a su transcurso temporal, a sus recursos.3 Por lo tanto, las palabras, los términos, a través de los cuales tendemos a fijar en el lenguaje literario la experiencia urbana serán determinantes para reconocer su significado

arte e cidades 2ed.indd 12 04/11/15 18:07

13

Pr

efá

cio

ö

real. La literatura es aquí entendida como forma artística, bella en el sentido más genuino de la expresión verbal, debido a su intención poética que acentúa los recursos del lenguaje, lo estiliza y ajusta, de manera que su poder, el poder de la palabra literaria, del texto, reside en las formas naturales del habla, sometidas a un proceso particular.4 El lenguaje, por su parte, a pesar de todas las versiones según los distintos modos de hablar y de escribir, debería ser entendido en unidad, solo las distintas tradiciones del discurso lo disgregan aparentemente en distintos “lenguajes”: el científico, con todas sus especializaciones, el jurídico, la lengua común, en su expresión oral, todas éstas son figuras del mismo lenguaje y posiblemente sea un grave error diferenciarlas radicalmente. Solamente en el campo de la lengua literaria se establece una dimensión más exclusiva, una forma más pura de la expresividad: aquella que es capaz de recrear todas las demás; aquella que discurre bajo la mirada atenta de la intención artística, en mayor o menor grado de transformación. La literatura no es inaccesible para nadie, puede resultar más reveladora para la expresión que comparte una co-munidad cultural que ningún otro tipo de forma textual. Son otras las formas de escritura o de discurso, llamadas especializadas, las que barran el acceso a quienes no pertenecen a un mundo determinado, a una disciplina. El mensaje literario se da a la comunidad lingüística, solo precisa de un entrenamiento: el hábito de la lectura. Por esta razón, adentrarnos en el terreno literario en busca de un sentido, sin pretender teorizar sobre sus estructuras o su significado histórico, sino para intentar iluminar los sentidos generales de la cultura, no es una operación elitista, sino una reivindicación de pleno derecho que hacemos como seres hablantes. La literatura nos ofrece el mundo, en muchas versiones de diferente complejidad, con la plena generosidad del acto artístico. Centrar la atención en el ámbito de la literatura no significa tampoco renunciar al sentido objetual, al análisis preciso de la realidad, sino tratar de obtener una imagen más expresiva y completa de la experiencia, en este caso de la vida urbana y sus elementos de representación.

Pero no olvidemos mirar también hacia el lugar que ocupa la ciudad, la realidad material, habitada, construida y sus versiones en el texto literario. La ciudad de las palabras, la ciudad literaria, cuando aparece, lo hace imbricada con elementos de la experiencia del sujeto urbano, con elementos de la percepción de su realidad física, de manera que actor y escenario resultan inseparables. El lenguaje, ahora entendido de manera general, antes de su elaboración literaria, es el medio de mayor capacidad de transmisión del sentido que damos a las

arte e cidades 2ed.indd 13 04/11/15 18:07

14

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

construcciones de la cultura, del sentido explícito o de los sentidos ocultos, expresivos. El hilo del lenguaje – lo ha sabido muy bien el psicoanálisis – arras-tra consigo lo voluntario y lo latente, desvela ante la propia conciencia lo que podría haber quedado oculto, al ser privado de la palabra. Una unidad, entre lo consciente y lo latente, especialmente interesante para nuestra investigación de un espacio que esté dotado de la riqueza que le da la experiencia. Por ejemplo, la gran dimensión que adquiere la ciudad después de la incidencia de la industria puede delinearse y cuantificarse en una representación cartográfica, o puede comunicar su desmesura en algunas representaciones plásticas, visuales, pero sólo puede dar la medida del desbordamiento de emociones que desencadena en el sujeto a través de relatos verbales, ya sean de intención literaria o no.

Las palabras, por supuesto, en su contexto literario ahora, en su modo de ser enunciadas, unidas a todas las estrategias narrativas que ha inventado la literatura hasta el presente, ofrecen una idea, no sólo de la figura y de la medida de la ciudad en cuanto a referente, objeto de representación, sino de la presión que ejercen las dimensiones urbanas sobre la vida de los ciudadanos. Los relatos y la poesía que surgen en el campo de fuerzas de las ciudades contemporáneas expresan el peso y la tensión que ejercen las estructuras arquitectónicas, y su-gieren la posibilidad de soportarlas, disfrutarlas o, simplemente, de recorrer los caminos urbanos bajo sus imponentes sombras. Los cuentos de E. A. Poe perturban la nitidez de las imágenes concisas, de los escenarios rotulados por la literatura anterior, quizás porque las ciudades irrumpieron con violencia en las vidas que él narraba. Después de Kafka, no sólo Praga, sino todas las ciudades han sido transformadas, casi en la misma medida en que lo fue la literatura como forma de creación. Después de Baudelaire, el deambular urbano queda fijado en la imaginación: su versión del transeúnte como espectro, retomada en 1922 por T. S. Eliot en The Waste Land, ya con una voz poética radicalmente transformada, nunca ha desaparecido de la literatura, la habita para siempre.5 Tampoco será posible, o al menos no lo es para mi y muchas de las personas de mi generación, ver Manhattan sin las desgarradas imágenes que Lorca estable-ció, en el marco de una ciudad que crecía en altura y envergadura, justamente en los años en que él la habitó, acaso para resistir el golpe duro de la metrópoli para una sensibilidad formada en escenarios más amables, familiares, como los de la España que precede a la Guerra Civil.6

La literatura suele, y acaso debe, rebasar el simple nivel descriptivo y establecer una relación crítica con la ciudad. Esta relación crítica está en las

arte e cidades 2ed.indd 14 04/11/15 18:07

15

Pr

efá

cio

ö

obras mencionadas hasta ahora. La presencia del espacio es constante en la vida. La literatura, como veremos, ha abierto la conciencia del espacio a partir de la materia común del lenguaje, pero lo ha hecho críticamente, pues el propio lenguaje ignora, en contra de lo que a veces le exige la tradición científica, la posibilidad de una expresión neutral. Adrienne Rich, desde su análisis feminista de la poesía y de la literatura ha señalado bellamente, como lo han hecho otros autores y autoras, esta capacidad del texto literario, y la doble condición que cumple respecto a ella la poesía: ser crítica del propio lenguaje.7

Entre todas las formas de representación del medio urbano, la literatura ofrece el discurso más incisivo, capaz de penetrar en la relación crítica del sujeto con el espacio. Este poder indiscutible pertenece al pleno dominio del lenguaje, aunque también otros medios de representación pueden iluminar y completar los argumentos críticos que son propios de la literatura, en la medida en que comparten muchos de sus recursos. El cine, por ejemplo, que aparentemente asocia imagen y lenguaje, y que tanto debe a la tradición de la literatura, con apenas un siglo de tradición propia, sabe contar la ciudad desde todos sus pla-nos de realidad: parece haber nacido para hacerlo. Las primeras experiencias del cine muestran el asombro ante el espacio circundante y buscan códigos narrativos que lo puedan representar.8 Aunque muchas veces esos códigos deriven de la propia cultura literaria, la fusión con los medios visuales puede eludir aparentemente los presupuestos lingüísticos. La cámara, por ejemplo, ha penetrado con mayor violencia que otras tradiciones representativas en el espacio privado: ha mostrado las luces y las sombras de nuestras madrigueras, el misterio de sus puertas y ventanas, la oscuridad de los corredores, el abrigo de sus muros, el secreto y la razón del desamparo de algunas estancias, así como la fisonomía particular de las casas. Puede mostrar el silencio que el texto literario no tiene otro remedio que romper, al narrar sus circunstancias; puede seguir con sigilo al transeúnte, abrir nuestra mirada de espectadores en un lugar que nadie parece ocupar; mostrar o indicar sin nombrar los espacios o situaciones que captura.

Pero aquí nos habíamos propuesto explorar la capacidad de la literatura para “hablar” de la ciudad. Nuestra expectativa era enfocar un campo que, incorporado a las formas peculiares de la representación literaria, pudiera contribuir a precisar algunos lugares comunes, ciertas maneras de leer las ciu-dades y de comprender sus espacios y sus estructuras, las formas de habitarlas o recorrerla, las formas de incorporarla a nuestra cultura urbana a través de la

arte e cidades 2ed.indd 15 04/11/15 18:07

16

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

palabra literaria, la asimilación misma de los cambios y transformaciones que el tiempo ejerce sobre nuestras estructuras de sentido. Los textos que siguen en este libro, dan cuenta de muchas de estas variaciones posibles.

Se trata de distintos ejercicios que dirigen la atención sobre la sintonía altamente significativa entre las derivas del espacio urbano, sus formas de vida y sus lecturas en el orden de la representación literaria.

Para terminar, solo faltaría reflexionar de manera global ante las formas de representación urbana, ante sus imágenes, discursos y representaciones. Acaso para advertir que este esfuerzo significa comprender hasta qué punto la cultura y sus formas de expresión conduce nuestra percepción real y nuestra experiencia de vida, en casi todo lo que hacemos. Del mismo modo que po-demos afirmar que la propia experiencia es la cantera con la que se edifican las representaciones. Se trata, en realidad, de un circuito que, de nuevo, es claramente visible entre los extremos de la ciudad y la literatura, ambas tam-bién capaces de ser consideradas construcciones, artefactos o representaciones. La literatura, el arte, hoy, tienen ya mil formas posibles de expresión, pero su camino sigue creando posibilidades y transformando tradiciones, en imparable caudal, como un torrente de signos y textos, imágenes y figuras.

La ciudad, por su parte, acaso en vías de deconstrucción como organismo concreto, aún está presente en las figuras de todas estas representaciones: en el tiempo de la disolución territorial y de las nuevas formas de comunicación, la ciudad persiste como idea, nombre, concepto, imagen: persiste en formas fugaces y múltiples, persiste como objeto de representación. Buena parte de esta persistencia la debemos a la constancia de su presencia en los distintos medios, que crea una imagen más poderosa incluso que la que crea nuestra ex-periencia real, donde la ciudad tiende verdaderamente a diluirse en el universo privado, individual, del pensamiento. La ciudad en sus mil facetas constituye así un referente constante, privilegiado, de todas las formas de arte, aunque desparramado entre múltiples sistemas de representación, propios del presente.

Marta Llorente Díaz, Barcelona, setiembre de 2015

notas

1 Guglielmo Cavallo y Roger Chartier eds., en Historia de la lectura en el mundo Occidental. Madrid: Taurus, 1998.

arte e cidades 2ed.indd 16 04/11/15 18:07

17

Pr

efá

cio

ö

2 Sobre este tema, especialmente a través de la primera revolución de la literatura privada en el mundo latino, remito a mi propio estudio desarrollado en el capítulo “Ética y política: alma y ciudad”, en: M. Llorente, La ciudad: inscripción y huella. Barcelona: Edicions UPC, 2010.

3 Vease Tzvetan Todorov, Poética estructuralista. Madrid: Losada, 2004.

4 Sobre los procesos en que deriva la forma literaria a partir del habla, también el artículo de T. Todorov, “El origen de los géneros”, publicado en Miguel A. Garrido (ed.), Teoría de los géneros literarios. Madrid: Arco/Libros, 1988.

5 No me refiero a la figura del flâneur, tan resabiada, fatigada por sus mil versiones y alusiones, y tan poco grata a mi percepción femenina de los tipos humanos que prefiero no utilizarla en mis referencias a Baudelaire, ya que tampoco me parece que facilite la observación de otros importantes motivos urbanos de sus poemas. Me refiero a los espíritus, a los muertos, a las figuras que el llama “spectres”, como el que aparece en el poema titulado “Les sept viellards”, en Charles Baudelaire, Tableaux parisiens, 1861; edición bilingüe, Madrid: Ediciones 29, 1974.

6 También para este tema me referiré a publicaciones anteriores: el prólogo a la traducción de Le Corbusier, Cuando las catedrales eran blancas. Madrid: Apóstrofe, 2007.

7 Adrienne Rich, Sobre mentiras, secretos y silencios. Madrid: Horas y horas, 2010.

8 Pocos trabajos se han publicado sobre el cine y la ciudad, de manera que remito al breve estudio de Stephen Barber, Cine y ciudades proyectadas. Cine y espacio urbano. Barcelona: Gustavo Gili, 2006.

arte e cidades 2ed.indd 17 04/11/15 18:07

arte e cidades 2ed.indd 18 04/11/15 18:07

19 ö

apresentação

Este livro, agora em sua reedição, reúne uma parte significativa dos tex-tos apresentado no I Seminário Arte e Cidades, realizado na FAUFBA em 2006, aonde foram expostas múltiplas questões que envolvem essa relação. Por isso, acreditamos conveniente, dada a sua importância, fecundidade e a diversida-de das abordagens apresentadas, recolhe-las neste primeiro volume, a fim de que possamos contar com um conteúdo que possa colaborar nas reflexões e o debate diante das dificuldades de se pensar e definir, hoje, o que é ou não a Arte(s) e o que é ou não uma Cidade.

A leitura desses textos mostra o que pensam aqueles que buscam ave-riguar qual o estado atual das cidades e das artes. Se a Arte, como categoria transcendental da estética idealista entrou em crise e foi preanunciada a sua extinção, as artes, como uma tradição dos ofícios, continuam seu percurso em expansão e, por isso, provavelmente, o nosso tema devesse passar por uma correção e ser chamar Artes e Cidades.

A outra premissa é que a par de determinadas transformações, especial-mente aquelas ocorridas a partir dos anos sessenta do século XX, a cidade e sua relação com as artes, cada vez mais de caráter mercadológico e efêmero, não mais correspondem aos conceitos, valores, parâmetros e técnicas anteriores a elas relacionadas. Isso interessa não apenas aos artistas e fruidores das artes, mas aos habitantes das cidades, aos historiadores, críticos, professores e pesquisadores.

Neste corpus de dezoito ensaios agrupados por blocos temáticos, que podem ser lidos também sob certa condição de aleatoriedade, resume-se o que foi debatido e indagado:

- a literatura é instrumento capaz de ler a cidade, mas a cidade é como uma escrita que se mostra para quem souber desvendá-la, sendo a crônica o gênero literário protagonista;

arte e cidades 2ed.indd 19 04/11/15 18:07

20

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

- o desejo e a solidão do homem nas grandes cidades, e seus problemas e inadaptabilidade à vida urbana ainda podem encontrar na pintura sua mais fiel expressão;

- o cinema e a música, como discursos que evocam imagens e linguagens sensíveis à memória, podem expor as dinâmicas e as espacialidades da cidade, quando abordam contextos sociais e urbanos e, podem ainda, gerar e formar práticas sociais;

- a arte pública como uma busca para a humanização das cidades, e como modo de estabelecer relações com um lugar;

- as relações entre o Patrimônio Afro-brasileiro e cidade, onde as co-munidades religiosas negras foram centrais, além das conexões entre a “periferia” e música, e a violência urbana;

- os significados e as narrativas na construção das ‘identidades’ culturais podem manifestar-se no contexto contemporâneo através da arquitetura reinventada das “cidades mundiais” no marketing das grandes cidades que usa os espaços urbanos o que implica nos processos de segregação social;

- o conceito de cidade enquanto um importante valor na prática da con-vivência urbana e no exercício da cidadania e da civilidade;

- o recurso à filosofia da arte como uma tentativa de compreender os fenômenos considerados estéticos e, por conseguinte, a estetização das cidades ao considerar que isso é cada vez mais imprescindível para a compreensão das sociedades atuais.

Esta pluralidade de enfoques oferece uma visão de conjunto sobre os sentidos das artes e a vida nas cidades em um mundo no qual corremos o risco de perdermos seus valores de liberdade e de revelação, e por isso, e também por suas inesgotáveis questões em 2008 realizou-se na FAUFBA o II Semi-nário, com o tema central Arte e Cidade. Cultura, Memória e Contemporaneidade que despertou e reuniu grande interesse entre pesquisadores, professores, profissionais e pessoas que seguem as questões atuais nos debates relacionados a este tema. Como analisam estas questões os autores que compõem este livro é o que o leitor poderá compartilhar sendo essa a razão que nos leva à reedição desses textos ao constatarmos que o interesse pelo tema aumentou, desde a realização do I Seminário Arte e Cidades.

arte e cidades 2ed.indd 20 04/11/15 18:07

21

ap

re

se

nta

çã

o

ö

Como é bem sabido que a pergunta pelo sentido, a finalidade e o pro-pósito das coisas não tem fim, contamos com o auspicio de um leitor não só capaz, mas disposto a pesquisar e a seguir aquele dictum de que ler é acrescentar.

As organizadoras

arte e cidades 2ed.indd 21 04/11/15 18:07

arte e cidades 2ed.indd 22 04/11/15 18:07

23 ö

andrea JeftanoviC

la representation de la ciudad de santiago de Chile en la literatura: ríos, plazas y esquinas como

espacios performativos del deseo ciudadano

La reiterada aparición de la ciudad en gran parte de la literatura latino-americana actual, hace evidente que el nudo semántico urbano se encuentra en el centro de la pregunta por la realidad, y ha tomado un lugar predominante en la pulsión creadora y en la representación. Al mismo tiempo, en un número significativo de obras, este nudo semántico se presenta como derrotero o ruta que evidencia la constitución o desintegración del sujeto; a tal punto se da la identi-ficación entre interioridad y urbe, que pareciera que la ciudad se ha constituido en un “supra sujeto” del cual personajes y circunstancias vitales son subsidiarios emocional y síquicamente. Entonces la ciudad funciona como un alter ego, un espacio que habita una nación al mismo tiempo que miles de sujetos la habitan. En los textos la ciudad es un vehículo actante de múltiples hablas, que se hacen reconocibles en su intrincada red de espacios y significados según discurra por alguno de sus espacios semánticamente cargados. Es, entonces, contra calles y esquinas, contra plazas, contra edificios y bares que el individuo se delimita, a la vez que coteja su discurso con el contra-discurso de los espacios, de la historia.

No olvidemos que las ciudades adquieren un valor estratégico en tanto ellas mismas inauguran una nueva noción de lugar, la de lugar estratégico, de concentración de poder, de noción cívica. Si bien en siglos anteriores el valor de las ciudades estaba determinado por sus características geopolíticas, su po-sición de puerto, de fortaleza bélica, de frontera y otros como fue el caso de

arte e cidades 2ed.indd 23 04/11/15 18:07

24

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Venecia en el siglo XIII, de Génova en el siglo XVI, de Londres en el XIX. Hoy la posición de Nueva York o Tokio en el siglo XX y XXI tiene que ver con su participación en la globalización y en los procesos económicos y metropolitanos.

Habría que recordar que la ciudad nace en Hispanoamérica del gesto violento y dominador del español que instala su ciudad encima de la antigua ciudad pre-americana para borrar su cultura. Es así como la ciudad se afirma sobre la negación, en oposición a “la barbarie”, y esta ciudad europea imitada, occidental, se erige como “civilización” y paradigma a seguir. La Conquista significó construir nuevas ciudades, de hecho nuevos sistemas urbanos. Los españoles diseñaron un complicado sistema administrativo basado en una red bien conectada de pueblos y ciudades. El imperio colonial en el sentido estricto del vocablo, esto es, un mundo dependiente y sin expresión propia, era una periferia del mundo metropolitano al que debía reflejar y seguir en todas sus acciones y reacciones. El español instituyó el modelo de ciudad damero que se asemeja un tablero de ajedrez con una plaza concéntrica. De este modo a partir de las líneas que traza en forma homogénea, regular y ordenada, se diseña el pla-no de la “ciudad-capital” americana que institucionaliza “el puesto de mando” que vigila la expansión y la conquista de lo que está fuera de sus límites. En el modelo colonizador la “ciudad capital” sirve de pretexto al Estado que todavía no existe y justifica el orden administrativo que lo sustenta sobre el resto del territorio, y es así como “El contorno es progresivamente apropiado e integrado desde el cuadriculado capitalino; las líneas fronterizas, apenas exploradas, de los confines de provincias y virreinatos, tendidas desde la seguridad que inspira el trazado geométrico urbano”. (AINSA, 2002, p. 20)1 Entonces, la imitación (la copia), la vigilancia (la hegemonía) y el control (sobre lo desconocido) son los principios urbanos que rigen el surgimiento de la ciudad latinoamericana y que se mantendrán de otra forma durante la globalización.

La América Hispánica hereda esta significación del centro capitalino y lo hace suyo en la variedad connotativa de planificadores y urbanistas, en los proyectos de arquitectos y paisajistas, en el ensalzamiento del recinto cerrado de la casa y del abierto de la plaza pública. Pero, sobre todo, “en la superposición de culturas en el mismo lugar, entendiendo como lugar la fusión del orden natural y el humano en un centro significado por una experiencia individual o colectiva”. (AINSA, 2002, p. 21) Ahora, sabemos que en la historia la fusión a veces es superposición, hegemonía de una cultura sobre otra. Y la experiencia española en América no dista mucho de ese modelo.

arte e cidades 2ed.indd 24 04/11/15 18:07

25

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

Después de cinco siglos de registrar el deterioro progresivo de las grandes capitales, las megalópolis de crecimiento acelerado aparecen envueltas en un caos inhumano plagado de contradicciones, donde lujo, marginalidad y po-breza conviven bajo tensión, inseguridad y violencia en barrios diferenciados en forma dramática. La ciudad entró en la literatura hispanoamericana por los caminos del desarraigo nativo y coincidiendo con el modernismo. El narrador latinoamericano difícilmente podría apostar al mito civilizador de integración y consolidación del espacio urbano. Se da a entender que la ciudad es pobre, de-sigual en el reparto de los bienes, como toda capital latinoamericana; peligrosa, miserable, oscura. El espacio urbano no es, por lo tanto, neutro. Inscripciones sociales asignan, identifican y clasifican todo asentamiento. Relaciones de poder y presiones sociales se ejercen sobre todo núcleo urbano. Su territorio se mide, divide y delimita para su apropiación a partir de nociones como trazado, hori-zonte, límite, espacio privado y espacio público, una construcción que participa tanto de lo personal como de lo colectivo; profundamente imbricados en una compleja urdimbre de memoria histórica y vivencia personal.

Mapocho de nona fernandez: el rio como la cicatriz de la ciudad

En relación al protagonismo de la ciudad en literatura, es interesante lo que el escritor Carlos Franz, propone en su ensayo sobre la ciudad de Santiago, titulado La muralla enterrada (2001). El autor sostiene que en un mundo globa-lizado en que “los medios tienden a homogeneizar las culturas y sus productos (dentro de estos, las ciudades son probablemente los más importantes) escribir sobre la propia ciudad, afirmarse en su historia, sus particularidades, es una forma de resistencia, de trinchera. Resistir a través de la prevalencia de la me-moria, de quiénes somos”. (FRANZ, 2001, p. 25) Entonces, ¿de qué forma afirman su historia, sus particularidades los personajes de la novela Mapocho de la escritora chilena Nona Fernández?, ¿De qué modo este texto que transcurre en la ciudad de Santiago es una forma de resistencia, de trinchera a la historia personal de los hermanos protagonistas, y a la historia colectiva del país y al afán homogeneizador de la globalización?, ¿Cómo se muestra el tránsito de una memoria desde la colonización recorriendo algunos hitos de la fundación de Santiago a una memoria post régimen militar y de los años 2000?

En esta novela publicada el año 2002 por la editorial Planeta, se narra la historia de los hermanos protagonistas, El Indio y la Rucia, que vuelven a

arte e cidades 2ed.indd 25 04/11/15 18:07

26

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Santiago, su ciudad de infancia, tras un accidente automovilístico en el ex-tranjero. Regresan en busca de raíces a una tierra de muertos en vida, donde los muertos interactúan con los vivos y los horrores del pasado se repiten sin cesar. Estos hermanos, son los hijos de un profesor idealista, Fausto, que luego traicionará sus sueños para convertirse en historiador del gobierno militar; y de una madre que, frente al horror del momento histórico, decide huir con sus hijos a Europa, donde vivirán en forma literal y literaria con la herida de un país que nunca cicatriza. El accidente que sufren, junto con la muerte de su madre, los hará reencontrarse con su patria, con un Santiago que, como un escenario vivo, relata una y otra vez, en sus calles, río y arquitectura, los horrores de una historia, personal y nacional, silenciada.

Mapocho toma a la ciudad de Santiago como escenario, desde donde se despliega la memoria nacional, recorriendo eventos de la Colonia hasta los días actuales, y también reflexiona acerca de la escritura de esta memoria como una puesta en escena en la que los hechos son ficcionalizados de acuerdo a inte-reses políticos, a voluntades de poder. Entonces, se problematiza la memoria, como relato fidedigno, proponiendo alternativas versiones de la Historia. Así es como en el siguiente fragmento vemos un modo y transgresor, hasta burlón, de presentar los albores de la conquista y la fundación de la ciudad por parte del enviado de la corona española, el General Pedro de Valdivia:

Días después, el 12 de febrero de 1541, don Pedro funda su ciudad con el nombre de Santiago de la Nueva Extremadura. Santiago como el apóstol que cuidaba a los conquistadores, y el de la Nueva Extremadura, porque qué otra cosa sería esta ciudad sino el reflejo de aquélla otra lejana donde él había nacido. Una copia, un armado hecho con los trozos sueltos que la memoria del conquistador guardaba. Un remedo donde indios visten ropas de seda y rezan a vírgenes blancas. Una fotocopia desteñida, hecha con papel calco importado, una imitación inventada por la cabeza de Valdivia. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 44)

La ciudad se carga de visiones contrapuestas de una memoria que cubre un período amplio de quinientos años, es decir, desde la colonización, con la llegada de los españoles a Chile a la globalización, con la entrada del país en los mercados y redes internacionales en tensión con los procesos locales. En ese sentido, Mapo-cho, forma parte de la literatura pos colonialista en el sentido que es una ficción que viene después del imperio e intenta rescatar la versión de los colonizados, y también porque intenta una descolonización de los sentidos dominantes. (PRATI

arte e cidades 2ed.indd 26 04/11/15 18:07

27

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

DE SANTOS, 2005) Es así como se suma a la tendencia de este tipo de escritu-ras, de revertir mitos de poder, raza y subordinación. Por ejemplo, mostrando a Pedro de Valdivia como un soldado desorientado e ingenuo, y un caballero que mantiene un idilio homosexual con el líder indígena Lautaro.

Los personajes y la voces de este libro entablan un “diálogo contaminado” con la ciudad, o bien ésta funciona como instancia dialógica para discursos y contra discursos, memorias oficiales y memorias personales. Y en sentido, se identifica un deseo tanto de colonizados como colonizadores de crear un mundo nuevo a partir de las historia del antiguo. Españoles e indígenas, autoridades e individuos, padres e hijos luchan por imponer su relato. Toda historia evidencia su revés de las versiones oficiales y sus flagrantes omisiones. En la novela las versiones oficiales son contrastadas por un “Dicen” que refuerzan lo popular, lo de oídas, aquello que se susurra de generación en generación para que no se olvide pero que también, en otro orden de cosas, recuerda al “dicen” farandulero, mediático, el del chismorreo. La ciudad es sobre todo un proceso, la puesta en escena de un drama, el drama humano de una sociedad que entre sus nuevas versiones y explicaciones, se explica de esta forma:

Dicen que un día llegó el Diablo y […] reclutó a cuanto punga y borracho se le cruzó por el camino. […] Dicen que los engrilló que los alimentó con charqui podrido, que los hizo trabajar desde antes del alba hasta que el sol se pusiera. […] Dicen que muchos no soportaron y se fueron débiles por el río. Cuerpos azulosos, partieron engrillados por el Mapocho y se perdieron en sus aguas. Negros, mestizos. Nadie estaba libre de la furia del Diablo. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 84)

Se propone una historia que se construye de oídas, sin precisión, fusio-nando lo oral y lo escrito. Y en un sentido historiográfico la figura de Fausto (el padre y viejo historiador oficial) que describe su trabajo así: “Fausto piensa que la historia es literatura” (FERNÁNDEZ, 2002, p. 40) y que su Historia de Chile es “Reproducciones de su relato, de su versión personal de los hechos. Palabras salidas de su cabeza, mezcladas y aliñadas, amasadas con cuidado, hor-neadas a punto para luego constituirse en verdades ciegas”. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 41-42) En este punto es interesante lo que Opazo asevera en relación a que hay una confluencia con la “historiografía postestructuralista (Hayden White) en esta postura puesto que la tesis radical de Fausto indica que la obra histórica es un discurso verbal en prosa narrativa” (2005). Entonces la historia es

arte e cidades 2ed.indd 27 04/11/15 18:07

28

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

una versión hablada, un relato oral e individual que se transcribe en los anales, y que suscita desconfianzas de la historia como verdad única.

santiago como ciudad amnésica

Mapocho rescata la idea de la ciudad como una plataforma de discurso, como un espacio que se construye no solo de monumentos y edificios sino también de los recorridos y experiencias personales de sus habitantes. La novela propone dar cuenta de la división espacial recorriendo barrios y sus dinámicas particulares, como también hitos urbanos públicos (estaciones, estatuas, cementerios, vírgenes) y privados (casa de la infancia, barrios, etc.) que complejizan las nociones de identidad y memorial nacional e individual. Los hermanos de la novela vuelven en busca de su casa de infancia, de un lugar amable, del “lugar feliz” que propone Gastón Bachelard en La Poética del espacio (1965), pero se encuentran con una ciudad cambiada que intenta borrar o esconder los recuerdos. Bachelard propone la casa de infancia como el lugar que impregna al hombre de hábitos, actitudes y recorridos que luego influirán en el resto de sus espacios o viviendas. Frente a esto, la ciudad, según el autor, se vuelve, a ratos, un lugar hostil para los habitantes, que ayuda a reforzar la imagen de la casa como refugio en el mundo. En este caso, la casa de infancia se encuentra derruida por una ciudad que deteriora su condición de refugio con su progreso y suciedad. Así, los hermanos, al ir en busca de su propio pasado, se encuentran con todos los recuerdos escondidos bajo la ciudad neoliberal y sin memoria de Santiago, capital de Chile.

Se evidencia entonces una ciudad cargada de memoria pero, al mismo tiempo, una ciudad amnésica que busca olvidar, encubrir el dolor del pasado como, por ejemplo, cuando sobre la cancha de fútbol donde ocurrió la matanza durante el régimen militar se erige una torre de espejos, edificio globalizante, limpio e indistinguible. O bien, la metáfora de “la matanza de las locas”2 por el presidente Carlos Ibáñez cuando en 1953 se sube a cincuenta travestis a un barco para hacerlos desaparecer en el mar. Para trabajar ese episodio hay una que cambia de color y se le convierte en una tienda, logrando que la lógica capitalista consiga hacernos olvidar, a saber: “Apartadas de todo, en una pieza color rosa, cerca del baño chico, se encontraban las locas de la casa. Siempre marginadas del acontecer hogareño, las maricuecas habían asumido su rol de hermanas discriminadas y vivían lo mejor posible sin molestar a nadie”. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 159). Pero luego de la traición y las matanzas, el

arte e cidades 2ed.indd 28 04/11/15 18:07

29

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

horror debe ser blanqueado para ocultar, borrar el crimen: “La pieza rosa fue pintada nuevamente de blanco y allí se instaló una tienda comercial que hizo desaparecer todo olor a pasado. La gente iba a comprar feliz a la tienda blanca, completamente amnésica”. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 165) Se denuncia así, en primer lugar, al mercado y la lógica capitalista como principal culpable o, más bien, cómplice de los afanes de olvido impuesto por los poderosos.

Los recuerdos dolorosos son subsumidos por una lógica de ocultamiento cuando por ejemplo se describe lo siguiente: (El barrio) “está sepultado por construcciones, por publicidades de televisión por cable y telefonía móvil. […] Pero a veces, cuando la tierra se sacude en un temblor pasajero, el Bar-rio suspira y deja ver con claridad pedazos de carne”. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 189) Es entonces un accidente geológico, un temblor, lo que remueve los hitos de la modernidad y del capitalismo – cables de telefonía, carteles de publicidad, nuevos edificios-los que cubren miserias subterráneas, atávicas.

Es el mercado a través de la inversión del capital, proyectos inmobilia-rios y diseño paisajísticos, lo que estaría ocultando para siempre los hitos de la historia que no “ocurren” sino en específicos emplazamientos de la ciudad que amenazan con salir del fondo subterráneo:

Los vestigios de la mugre son tan peligrosos como ella. Pueden aparecer en cualquier momento, irrumpir cuando ya se les creía olvidados. Por eso se les reduce y cuando ya están bien controlados, se diseña un buen paisaje para instalar encima. Algo que ayude a borrar su imagen cochina. Un centro comercial, una torre de espejos, un parque, una plaza de juegos para los niños del sector. Columpios, balancines, áreas verdes para pelotear un rato. La basura queda olvidada bajo los juegos de color. Enterrada por las voces infantiles. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 218)

En el recorrido que hacen los hermanos por la ciudad, en una suerte de tour anti-turístico, se nos muestran aquellas historias que no se cuentan a los extranjeros, las que “ensuciarían” la imagen de Santiago como metrópoli globalizada. No olvidemos que la gran impronta globalización es ser “nadie” o “igual a todos” por medio del consumo y la imagen; porque las tres pretensio-nes de tal proceso es la homogeneización del valor, del espacio, y del lenguaje. Lo que ocurre es que la ciudad no es más que una muestra concentrada de lo que sucede en la trama del mundo, en el sentido de repetir el “aumento

arte e cidades 2ed.indd 29 04/11/15 18:07

30

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

de restricciones y fortalecimiento de los mecanismos represores y de control, incremento del trabajo clandestino y las economías sumergidas, aumento de la plusvalía, discriminación espacial, étnica y social, especulación con el uso del suelo, en fin, aumento desmedido de la marginalidad, la selectividad y la segregación”. (YORY, 2006, p. 81)

santiago o la mala copia

En Mapocho, estas restricciones y discriminaciones propias de la globa-lización propuestas por el urbanista colombiano Mario Yory, se espacializan en el texto a través de escenarios particulares, y al mismo tiempo, se critica la homogeneidad del mercado que borra los rasgos distintivos de los lugares. El personaje de la Rucia comenta que esa uniformización de la ciudad hace que se sienta aún más extranjera en ella, y que en su recorrido constata que los hitos turísticos/urbanos distintivos correspondan a copias foráneas. Por ejemplo, La Virgen del cerro y la estación Mapocho son francesas. De esta forma, la ciudad escapa a sus habitantes a través de la copia, renegando de su propia identidad, rasgo que se asienta desde su fundación: “Santiago como el apóstol que cuidaba a los conquistadores, y de la Nueva Extremadura, porque qué otra cosa sería esta ciudad sino un reflejo de aquella otra lejana donde él había nacido. Una copia, un armado hecho con los trozos sueltos que la memoria del conquistador guardaba”. (FERNANDEZ, 2002, p. 44) Y, más adelante, se agrega en relación a esto que la ciudad es: “Una fotocopia desteñida, hecha con un papel de calco importado, una imitación inventada por la cabeza de Valdivia”. (FERNÁN-DEZ, 2002, p. 44) Y sigue la falta de autenticidad, cuando se analiza el himno nacional y se habla de “copia feliz del Edén”. La Rucia nota específicamente que todo hito tiene una referencia foránea.: “El Mercado Central, La Vega, el Mapocho, todo tenía su equivalente perdido en algún rincón del mundo. Santiago se había reciclado en la cabeza de su madre y se había desparramado para reencontrarse con ella en cada lugar al que llegaba”. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 23) Entonces memoria, mala memoria, y copia, mala copia, son los ejes que van definiendo una metrópoli que es escenario de una torcida historia personal y nacional.

La ciudad desecha sus posibilidades de genuina identidad para camuflarse en otros referentes. Se evidencia una ciudad avergonzada, que reniega de su

arte e cidades 2ed.indd 30 04/11/15 18:07

31

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

pasado, al igual que sus habitantes reniegan de sus raíces indígenas e intentan disfrazar su ciudad de metrópoli. Así le dirá una vecina a la Rucia:

Pero bueno, le decía, señorita, contestando a su pregunta, que ésta es una ciudad como la gente. Yo no sé qué idea tendrá usted de nosotros, pero aquí es muy raro que alguien pregunte por una casa. Aquí las casas tienen número y están dispuestas en calles con nombres y apellido, si no somos nada aborígenes, estamos bien organizados, desde la Conquista hasta el día de hoy que nuestras casas tienen ubicación exacta para que la gente y las cartas lleguen sin problemas. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 22)

Memoria y espacialidad

Pero Santiago es una ciudad que persigue fantasmalmente, “Santiago le penaba como un ánima”, y cada historia encubierta se dejar ver en un espacio determinado. Así, a medida que avanzamos en la novela aparecen memorias y problemáticas asociadas a hitos paradigmáticos: el puente Cal y Canto, el barrio La Chimba, la estación Mapocho, la Virgen del Cerro y otros. Se va trenzando un mapa topográfico que nos permite conocer la Historia y las historias, pero por parte de la voz de los muertos, los habitantes de este río incesante, que lleva en él a los cadáveres que claman por justicia. Los personajes se condenan a contemplar como testigos, a los fantasmas del horror en diversos puntos de la ciudad.

Puente Cal y Canto

Una de las historias más importantes dentro de la novela es la del Puente de Cal y Canto, construido en 1779. Este puente de gran envergadura que cruzaba el río Mapocho fue todo un símbolo de la ciudad hasta el año 1888 cuando fue demolido para iniciar los trabajos de canalización del río. Repre-senta aquel espacio transitorio que intentó unir dos mundos (este y el otro lado del río, La Chimba) y, al hacerlo, los contaminó. Se cuenta en la novela que el Diablo, al ser expulsado del paraíso, llega a la Chimba y se deleita con el lugar que le parece a él un paraíso en la tierra. Queda tan feliz con este lugar, que queda algo apartado del resto de la ciudad, que decide hacerse intendente para así hacer el bien – y reivindicarse – y construir un puente que conecte este paraíso para hacerlo cercano a todos. Pero, durante la construcción de tan

arte e cidades 2ed.indd 31 04/11/15 18:07

32

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

ambicioso proyecto, el Diablo se llenará de soberbia y el poder mermará sus buenas intenciones, consiguiendo, no solo la muerte de cientos de trabajadores del puente, sino también la contaminación de la Chimba con su obra, llenando el paisaje campestre de comerciantes y negocios. Una vez más, el castigo de la ciudad en la cual se olvidan las promesas (la promesa del diablo de ser bueno) es la contaminación por medio del comercio, que siempre logra borrar las facciones de la ciudad.

Al mismo tiempo, la construcción de dicho puente es una de las histo-rias desdobladas que se cuentan en la novela, una historia que oficialmente se esconde en la majestuosidad de la obra de arquitectura, olvidando las muertes, la violencia y los sacrificios como se ve en la siguiente cita:

A Fausto le gusta esa imagen. Un puente grande y sólido, atormentado por los ecos de su propio pasado. Sus once ojos viendo a diario los cuerpos debiluchos que lo construyeron, yéndose por la corriente. Cuerpos que nadie ve. Cuerpos heridos, arrastrando a otros más con las cadenas del engrillado. Cuerpos ahogándose en las aguas turbias, navegando por el río, azotándose contra sus gruesas piedras de ladrillo, cruzando sus ojos de puente, atravesándolos una y otra vez, para que él nunca olvide que si está ahí, de pie, erguido sobre la corriente, es porque muchos de esos muertos sostienen su vida. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 119)

estación Mapocho

Esta antigua estación de ferrocarriles fue construida entre los años 1905 y 1912 e inaugurada en 1913, conectaba con el norte y costa del país, y también desde ahí partían los trenes en conexión a Mendoza. Fue edificada para celebrar majestuosamente el Centenario de la Independencia de Chile. En diciembre de 1976, fue declarada Monumento Nacional, y en los noventa se transformó en un centro cultural. Pero este importante centro ferroviario nacional fue construido a imagen y semejanza del modelo francés. Entonces si fue construida con la buena intención de ofrecer a Santiago una vía de acceso y escape, repitió la falta de autenticidad, la copia de “otra”:

La Estación Mapocho emerge en un costado del río como la hermana chica de la Estación Central. Una versión más pequeña de esa animita de fierro grande y negra que está instalada en el corazón de la Alameda. La estación Mapocho tiene pinta de francesa. La locura por parecer

arte e cidades 2ed.indd 32 04/11/15 18:07

33

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

europeos a toda costa, hizo construir este edificio y por ahí por el milnovecientositanto lo inauguraron con bombos y platillos. Pero como había que disimular el olor a copia, bautizaron a la Estación con un nombre bien autóctono. Mapocho. Estación Mapocho. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 125)

La Estación recuerda la fascinación por lo extranjero, lo europeo, a la vez que remite a la muerte. La estación como un umbral, un paso, pero también una animita, un recordatorio por los muertos porque desde ella partían trenes que llevaba prisioneros a campos de tortura: las víctimas de Carlos Ibáñez, las víctimas de la dictadura de Pinochet. Hoy, toda esa oscura historia se esconde tras producciones culturales itinerantes; Feria del libro, temporadas de obras de teatro. Del mismo modo la estación también marca el flujo de gente, el partir y regresar, no la permanencia.

río Mapocho

Sorprende que, al prestar atención a los espacios y cómo se adjetiva a nuestro país y su ciudad capital, lo que se privilegia son los lugares de tránsito. Se afirma que “Chile es un pasillo, largo y flaco”; la novela se titula Mapocho en alusión al río que siempre circula y nunca está quieto, como la historia, y así en un descarnado uso de la metáfora, nuestra historia, como el río de Heráclito, es un río que nunca se detiene, pero también caracterizado por la suciedad y el tránsito permanente de muerte. El río es la imagen matriz de la novela, que abre y cierra el texto, en el que se hunden los cuerpos muertos de los personajes hasta desembocar en el mar:

Ahora mi cuerpo flota sobre el oleaje del Mapocho, mi cajón navega entre aguas sucias haciéndole el quite a los neumáticos, a las ramas, avanza lentamente cruzando la ciudad completa. Voy cuesta abajo. El recorrido es largo y serpenteante. Viajo por un río moreno. Una hebra mugrienta que me lleva con calma, me acuna amorosa y me invita a que me duerma y me entregue por completo a su trayecto fecal. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 13)

El río Mapocho es visto entonces no como un tránsito de vida, sim-bolizada por el agua y su capacidad de purificación, sino como una arteria de sangre, estancada y putrefacta, que envenena la ciudad y transporta cuerpos muertos. Al mismo tiempo, el río es una cicatriz, un tajo en la frente de la

arte e cidades 2ed.indd 33 04/11/15 18:07

34

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Rucia, un tajo en el corazón de la madre, un tajo en la memoria de una ciudad y de un país. El río denuncia las historias escondidas bajo la pulcritud de las palabras y el paso del tiempo, busca esos primeros rastros de una historia de violencias y crímenes y evidencia estos trágicos acontecimientos por medio de la pestilencia y el hedor del río, donde se pueden encontrar un sinnúmero de cadáveres martirizados que navegan y recorren Santiago en un flujo doliente y mortuorio.

el barrio la Chimba

Tras la fundación de Santiago, se erigió La Chimba que era el territorio que se extendía hacia el norte del Mapocho, y que se convirtió en residencia de servidumbre y artesanos que proveían de mano de obra a la naciente urbe. Su nombre es una palabra quechua que significa “al otro lado del río”. Y des-de sus comienzos fue un sector de la capital marcado por su carácter rural y por el establecimiento de las clases más humildes. Hoy sin perder su perfil original está conformado por los actuales Patronato, La Vega, Recoleta, todos sectores de comercio e inmigrantes. Sobre este barrio se ha escrito bastante, por su significado social e histórico se ha convertido en un territorio narrativo, como lo demostró José Donoso en “El Obsceno pájaro de la noche” (1970) y anteriormente Augusto D´Halmar en “Juana Lucero” (1902). El ensayo de Franz es revelador al definir el carácter de este espacio:

La Chimba, al norte del río, es nuestro “otro lado”. Desde su origen como barrio de indios en la Colonia, allá hemos puesto lo que el Centro niega: la muerte y la locura, los cementerios y el hospital psiquiátrico. Pero la Chimba también es el vientre de la ciudad, la Vega, su fiesta nocturna en Bellavista. En esta amalgama de pulsiones primarias- entre el inconsciente y el vientre-, reaparece uno de los símbolos más poderosos de Santiago: el imbunche. Al negar la muerte y la locura, cortamos las alas de nuestra creatividad- de nuestra ciudad; cosemos el imbunche de Chile. (FRANZ, 2001, p. 26)

En la presente novela el barrio La Chimba aparece como uno de los pocos lugares de permanencia (obligada), fuera de la corriente de tránsito. A La Chimba se “entra” en el texto de Fernández por el puente que si bien puede representar la unión, es finalmente un vínculo de contaminación (en

arte e cidades 2ed.indd 34 04/11/15 18:07

35

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

el caso de la Chimba) a la vez que representa el tránsito, el pasar de un lugar a otro sin nunca permanecer por mucho tiempo en él. Entonces, La Chimba, es un barrio que si bien esconde historias terribles, también alberga lugares de permanencia en los que, finalmente, los hermanos, tanto metafórica como literalmente, pueden encontrarse. Estos son, la casa de infancia y el cemen-terio. La Chimba, así, es vista como el lugar donde se esconde la escoria de la ciudad, los temores, allá se encierra a los locos, se entierra a los muertos, se excluye a los pobres. Es también el terreno de lo irreal, donde se vive en otra dimensión temporal, “el tiempo circular, inmemorial, de sus atavismos”, como se menciona en el siguiente párrafo:

De pie, sin posibilidad de descanso, con los ojos tan abiertos como antes, viendo pasar a los mismos cuerpos, escuchando los mismos quejidos. Todo gira en este barrio. Un carrusel dando vuelta sobre sí mismo. Cuando crees que todo ha terminado, la vuelta comienza otra vez. Los mismos cuerpos, los mismos quejidos. Estamos en el punto cero, en el eje del carrusel y te lo digo, Fausto, por más que lo intentes, de aquí no hay forma de salir. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 122)

En una ciudad de tránsito y fuga, en la Chimba encontramos los lugares de exclusión, esos que aseguran la, al parecer, única permanencia posible: la marginalidad. Así, en la Chimba encontramos las poblaciones y los barrios que deben ocultarse a la vista del paseante; el hospital psiquiátrico que esconde las manchas al buen nombre de las familias y el cementerio, el lugar de una memoria que también es excluida. En la Chimba, en conclusión, se concentra el espacio de la permanencia obligada, aquella a que obligan las diferencias sociales, la salud, la enfermedad y la muerte.

No sorprende entonces que en Mapocho se recurra a la Chimba como escenario, el lugar de la muerte, para hablar de una ciudad de muertos y almas en pena, con dos personajes muertos en busca de algo a lo qué aferrarse y con la marca del incesto en sus historias.

el cementerio general

El Cementerio es un hito relevante dentro del micromundo de la Chim-ba, el lugar que completa la triada de sexo-locura y muerte que encarna este barrio. En la novela se lo describe de la siguiente manera: “Más allá, el cerro

arte e cidades 2ed.indd 35 04/11/15 18:07

36

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

emerge oscuro como un elefante nocturno. El río corre hediondo, abraza el Barrio, lo acuna con su olor a mierda. A unas cuadras, la cruz alta del Ce-menterio delimita la entrada al territorio de los muertos. Todo luce negro y desenfocado por la neblina”. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 60) La presencia del cementerio en ese barrio no es menor. Un lugar al margen del plano ordena-do del centro. Además, es de los pocos lugares donde la Rucia se encuentra a gusto, pues resulta ser finalmente el único espacio en donde todos tienen su lugar, un espacio democrático:

Avenida LA PAZ. CEMENTERIO GENERAL. Aquí las lápidas emergen de la tierra como cédulas de identidad fuera de uso. Familia Benítez, Familia Córdova. 103. […] Aunque tu cuerpo no mida más de un metro, aunque no hayas vivido más que un suspiro, no importa si fuiste ángel o demonio, no importa si lo hiciste bien o como las huevas, todos tienen derecho a una tumba, por rasca que sea, todos gozan de su lápida de identificación en el patio de los callados. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 103)

Es importante destacar el cementerio es una marca de memoria por an-tonomasia, aunque bastante ambivalente: un lugar que nos obliga a recordar nuestras muertes pero que también es un lugar apartado que es fácil omitir. Y que adquiere otra significación y valor en una obra donde todos los perso-najes son muertos.

la virgen del Cerro

En la novela el monumento de la virgen en el Cerro San Cristóbal es un referente de identidad geográfica, social y cultural importante. Se men-ciona que la virgen es extranjera, pues es un regalo de Francia, y por eso no escucharía a sus fieles: “Santiago tiene rostros de Virgen y brazos abiertos de loza blanca a los que algunos acuden de rodillas, subiendo el cerro entero, sin importarles que ella, por ser extranjera, no entienda, ni sus rezos, ni sus súplicas”. (FERNÁNDEZ, 2002, p. 32)

La virgen, además, le da la espalda a la Chimba, sus habitantes solo ven su trasero lo que se relaciona con la Chimba como espacio corporal de las bajas pasiones, del bajo vientre, del sexo. Este hito parece ser un inevitable y patético eje de orientación para los hermanos. El Indio dirá:

arte e cidades 2ed.indd 36 04/11/15 18:07

37

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

El poto de la Virgen. Cada vez que te pierdas, Rucia, recuerda que vivimos mirando el poto de la virgen. La doña no tiene ojos para nosotros, sólo mira a los que están del otro lado del río, así es que mientras el resto de la ciudad reza a su cara piadosa, nosotros nos conformamos con su traste, que por lo demás no está nada mal, todo blanco y de loza, todo casto y puro, el poto de la Virgen (FERNÁNDEZ, 2002, p. 28-29).

La virgen es una importante presencia en las culturas latinoame ricanas impregnadas en el culto mariano. En nuestro país la virgen representa la madre de los chilenos, y es revelador que ella siempre de la espalda a los más necesita-dos y solo mire de frente (aunque siempre desde las alturas) a quienes ostentan el poder, la población del sector oriente de la ciudad. Esto se destaca en una novela en que, a nivel de personajes, la madre siempre esconde la verdad y es una madre dolorosa; y el padre es un ser ausente que se refugia en las mentiras. Y, a nivel nacional, la figura materna excelencia da la espalda y los padres de la patria son seres autoritarios que se comportan con violencia.

Mapocho o la tachadura de la historia

La “ciudad narrativa” es el despliegue y gravitación de todas la instancias espaciales en el texto, cuya articulación construye una estructura y un nudo semántico que “habla”, al mismo tiempo que los personajes, de una historia, y enuncia un discurso donde se muestra una “situación”, un estado de cir-cunstancias.

En Mapocho la ciudad cobra vida propia y discurso propio, nos inter-cepta a nosotros como lectores. Y no solamente nos “habla”, sino que además despliega el mapa de un área por donde transita un río que es un escorial en tránsito o un torrente de las heridas y los muertos del pasado, del barrio la Chimba que divide ciudad en dos, del cementerio como lugar privilegiado, de la Virgen dando la espalda a una parte de la población, del puente Cal y Canto conectando y contaminando la ciudad, la estación Mapocho como un centro ferroviario dormido. La ciudad se presenta como lugar de memoria y de olvido a través de la tachadura, ocultando los crímenes y las identidades incómodas, construyendo una torre de espejos; celebrando la copia

He ahí la paradoja, una ciudad avergonzada y amnésica para una novela que trata de las posibilidades de hacer memoria y de realizar registro pero

arte e cidades 2ed.indd 37 04/11/15 18:07

38

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

donde conviven múltiples versiones que luchan por una interesada y volun-tariosa interpretación de la historia. Una historia que traza cinco siglos donde las tensiones de la colonización, la post dictadura y la globalización que con distintos modelos y obedeciendo a propias lógicas se disputan la versión de los hechos. De esta forma, se estudia la historia oficial, las versiones escondidas, los “dicen”, y, por supuesto, la ciudad, como otra forma de memoria: aquella que se concentra/esconde en los monumentos, en los hitos, en los grandes edifi-cios, en las calles, los ríos. Y es que también en la novela se postula otra forma de hacer memoria, que funciona en otra dimensión y bajo otros principios:

Los sueños y los recuerdos están conectados. La memoria nutre a la cabeza en el momento de dormir, la alimenta con imágenes conocidas y el resultado es una mezcla rara de cosas ya vistas. Los muertos resucitan en los sueños. Los lugares también salen de su tumba. Sitios sepultados por el olvido emergen nítidos, llenos de olor y ruido. Dormitando en el colchón de su casa vieja, La Rucia desentierra recuerdos en su cabeza. Viaja kilómetros en el tiempo, atraviesa océanos y desembarca en las costas mediterráneas donde creció. (FERNANDEZ, 2002, p. 87)

No sólo resucitan los muertos sino también los lugares, en los sueños hacemos memoria de las personas y de los lugares del pasado. En ese contexto Santiago es una ciudad de fantasmas, pobladas por sujetos e hitos muertos. Del mismo modo que en Pedro Páramo, los protagonistas buscan su lugar en el mundo, su historia, cuando ya es demasiado tarde y solo encuentran espectros. Los personajes son almas en pena, heridas que duelen pero obligan a recordar, al igual que las astillas en la cabeza de la rucia, que duelen hasta que un recuerdo llega y las hace caer.

Lumperica de diamela eltit: la plaza como espacio performativo de la identidad civica, politica y sexual

Diamela Eltit nació en Santiago el año 1949. Estudió Literatura en la Pontificia Universidad Católica de Chile y en la Universidad de Chile. Ha dic-tado clases en distintas universidades chilenas y norteamericanas. Su obra la ha consolidado como una de las autoras más sólidas en Latinoamérica con novelas tales como Lumpérica (1983), Por la patria (1986), El cuarto mundo (1988), Vaca sagrada (1991), Los vigilantes (1994), Los trabajadores de la muerte (1998), Mano de

arte e cidades 2ed.indd 38 04/11/15 18:07

39

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

obra (2002). Aparte de esto ha publicado dos textos híbridos en cuanto a género literario: El padre mío (1989) y El infarto del alma (1994), Puño y letra (2004).

Ciudad y marginalidad

En la novela Lumpérica (reunión en un mismo espacio de América y lumpen) se cuenta la historia de una mujer (L. Iluminada) en la Plaza Pública en el transcurso de una noche. Allí están presentes la marginalidad, el desvarío, las relaciones con el otro en la vida contemporánea. La obra se desarrolla en torno a esta situación-símbolo. L. Iluminada pasa la noche en la plaza donde también llegan los pálidos (los habitantes marginales). Los sucesos exteriores u objetivos son escasos, casi nulos. Sin embargo, la peripecia de un lenguaje fuerte va dando vida a una aventura intangible. Pareciera que una conciencia externa al personaje – sea la luz del letrero, la mirada del lumperío, el lente de la posible filmación – la completa, la ayuda a existir, o más exactamente, a ser. Miradas ocultas la buscan durante toda la novela y ella cuenta permanente-mente con el hecho de ser mirada en el espacio de la plaza. Lumpérica es una especie de improvisación – utilizando un término teatral – alrededor de unos ejes, difíciles de determinar, aunque se intuye que todos apuntan hacia lo que no es dominante, lo que carece de poder: la mujer-animal (L. Iluminada), el lumpen (los pálidos), la gente que pasa, alienada u oprimida por alguien o algo, el hombre interrogado, todo enmarcado en la marginalidad hispanoamericana. La novela propone que sólo desde la perspectiva del margen puede darse un discurso crítico.

Eltit ha trabajado la ciudad como cuerpo dañado por los discursos domi-nantes, si en un tiempo fue la dictadura, en sus trabajas posteriores lo enmarcará en el régimen neo-liberal. Su poética de la ciudad es la de un espacio corporal deshumanizadamente intervenido, en la cual predominan las figuras tránsfugas, sexuales, en situación límite con el sistema, con la legalidad. Es así como construye una ciudad clausurada, borrada en su función básica de espacio de convivencia colectiva. Esto tiene relación con la postura estética-política que ella asume. La ciudad se transforma en cuerpo intervenido por los discursos del poder, un reflejo de lo que ocurre con sus habitantes. Es una postura que sobrepasó el formato libro, fue una de las primeras en utilizar el video como instrumento no convencional de conocimiento del cuerpo. Luego junto con el colectivo CADA, grupo interdisciplinario de vanguardia que realizaban intervenciones en la ciudad,

arte e cidades 2ed.indd 39 04/11/15 18:07

40

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

lanzó volantes desde avionetas en Santiago, llamando a “no morirse de hambre por el arte”, instalaron bolsas de leche en la fachada de un museo y crearon la leyenda NO + (injusticia, hambre etc.) en los muros de la ciudad.

La expiación se transformó en el eje temático de los trabajos de Dia-mela Eltit que se escenificaban en la ciudad. Su cuerpo se convirtió en cuer-po expiatorio y sacrificial, al asumir la culpa y el dolor colectivo. Transitó por prostíbulos, cárceles y hospicios que designó como “zonas de dolor”. En estos lugares leyó trozos de su novela “Por la patria”, proyectó su imagen (en diapositivas) sobre las paredes de esos recintos y lavó sus veredas. Todas estas acciones fueron la prolongación de su trabajo literario y las incorporó como registro visual a su texto definitivo. Estos trabajos los denominó “arte de la intención” y los fundamentó así:

Desde los prostíbulos más viles, sórdidos y desamparados de Chile, yo nombro a mi arte como arte de la intención. Yo pido para ellos la permanente iluminación: el desvarío. “Digo que no serán excedentes, que no serán más lacras, digo que relucientes serán conventos más espirituales aún. Porque son más puros que las oficinas públicas, más inocentes que los programas de gobierno más límpidos. Porque sus casas son hoy la plusvalía del sistema: su suma dignidad. Y ellos definitivamente marginados, entregan sus cuerpos precarios consumidos a cambio de algún dinero para alimentarse”. Y sus hijos crecen en esos lupanares. Pero es nuestra intención que esas calles se abran algún día y bajo los rayos del sol se baile y se cante y que sus cinturas sean apresadas sin violencia en la danza, y que sus hijos copen los colegios y las universidades: que tengan el don del sueño nocturno. Insisto que ellos ya pagaron por todo lo que hicieron travestis, prostitutas mis iguales.3 (subrayado mío)

Cuando se la ha preguntado a la autora el móvil de estos trabajos ella argumenta así su proyecto: “[...] al trabajar con esta marginalidad no tengo la intención de que ellos se rediman, al estilo del Realismo Socialista. Me inte-resa señalar, nada más, y con eso yo me comprometo a fondo. Si tú quieres, se podría relacionar más con el Naturalismo, en el sentido de mostrar algo que es marginal a la sociedad, pero que le pertenece”.4

arte e cidades 2ed.indd 40 04/11/15 18:07

41

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

la plaza como espacio performativo

Bajo esta intención “naturalista”, es interesante como la plaza, locus principal de la novela, adquiere múltiples sentidos. Recordemos que hay una larga tradición en la cultura occidental de la plaza como espacio ciudadano que viene desde la polis griega. El filósofo Humberto Giannini señala lo siguiente en relación a este espacio en su libro La reflexión cotidiana:

Es “Reflexiva, en primer lugar, en cuanto por ella – en virtud de ella – la comunidad vuelve periódicamente a congregarse, a converger a propósito de todo lo que pudiese importar a una experiencia común: la preocupación política, la devoción, la defensa de sus murallas, ‘Reflexiva’, también, en cuanto alrededor de ella se levantan las instituciones por las que el ciudadano mantiene un trato directo o indirecto de intercambio permanente con los demás ciudadanos. Aquel fue el sentido del ágora ateniense que diera nacimiento a la democracia; ese, el sentido del foro romano o de los espacios sorpresivos o irregulares que abre la ciudad medieval para expresarse como experiencia común. (GIANNINI, 2004, p. 61)

De este modo “lo reflexivo” de la plaza que propone Giannini se da en la novela de Eltit en tanto espacio público compartido por aquellos que “sobran” y en una situación especial, no oficial: en la noche cuando rige el toque de queda en la dictadura, que prohíbe el desplazamiento libre de los ciudadanos. En Lumpérica este espacio de convergencia de la comunidad para tratar asuntos laborales y políticos, para expresar experiencia común, aparece en la obra suplantado por un enmascaramiento. En la novela la plaza es espa-cio luminoso, donde se hace posible borrar ciertas fronteras (aunque cuando amanezca el día todo vuelva a su aparente normalidad). Cuando anochece en la ciudad y tras el toque de queda todos se encierran en sus casas, se enciendo el luminoso y empieza el festín en la plaza para los personajes. De la oscuridad se recortan la escena y sus protagonistas. El luminoso delimita el espacio de la plaza como “respiradero de la ciudad” (ELTIT, 1983, p. 41), lugar de trasgresi-ón, de exposición y de liberación, donde la mujer protagonista, L. Iluminada, fraccionada y destituida de todo, busca un nombre propio, una identificación

arte e cidades 2ed.indd 41 04/11/15 18:07

42

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

ciudadana. ¿Pero cuál? La identificación posible es con los márgenes, con lo que queda excluido del orden, “los desarrapados de Santiago, pálidos y malolien-tes”. (ELTIT, 1983, p. 9) La plaza se convierte en escena de desgarro y placer. La imagen que da génesis al texto es elaborado así por la autora:

A mí siempre me impactó el hecho de que durante el toque de queda la gente se relegara a sus espacios privados, a clausurarse, pero que siguieran existiendo las cosas que estaban hechas para que la gente, precisamente, circulara por las calles. Entre esas cosas siempre me preguntaba por el sentido de la iluminación, de los faroles, de los avisos luminosos, de las plazas iluminadas. Todo eso existía para nadie, era inútil a la sociedad, aun cuando se seguían encendiendo las luces, como si la gente circulara. Ese espectáculo de desolación iluminada me llamó mucho la atención y está muy presente en la novela; no por nada se sitúa en una plaza.5 (ELTIT, 1983)

La protagonista de la novela, L. Iluminada, se expone a la luz de un aviso al que la ficción literaria ha premunido del poder de imprimir u otorgar ilusión de identidad a los que alumbra con la letra, la luz o el color adecuados. Existen amplias secciones de la novela, en la que la protagonista L. Iluminada debe responder preguntas a un Interrogador, figura enigmática que la somete a tediosos cuestionarios. En uno de ellos le pide que defina plaza...

Me preguntó: – ¿cuál es la utilidad de la plaza pública?Yo miré extrañado a ese hombre que me hacía una pregunta tan rara y le dije un tanto molesto: – Para que jueguen “los niños”.Pero su mirada siguió pegada a la mía y me dijo: ¿Sólo para eso?Bueno – le respondí – es un área verde, trae oxígeno al ambiente.....le contesté: – En verdad es un sitio de recreación, aunque también llegan muchos “enamorados”, ahora que lo pienso, está también llena de enamorados. ....– ¿Y qué más has visto en la plaza?, preguntó con energía.El interrogado se demoró unos instantes en contestar: – He visto viejos que también se sientan en los bancos, especialmente con sol hay muchos “viejos”, dijo.[...]– ¿Quiénes más acuden a la plaza?, insistió el que lo interrogaba. ....– Mendigos, se ven algunos “mendigos”. Eso dijo. – ¿Mendigos?, ¿y qué hacen ésos?

arte e cidades 2ed.indd 42 04/11/15 18:07

43

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

– Se tienden en el pasto y he visto algunos que lo hacen sobre los bancos. Duermen de cara al sol cuando lo hay, o bien si es Invierno y hace frío se tapan con trapos o con diarios, dijo el que interrogaban. ....– ¿Quiénes más, preguntó el que lo interrogaba, aparecen por allí? ...– Algunos “desquiciados”, llegan algunos locos que están muchas horas igual que los demás, pero éstos, a diferencia de los otros, hablan solos e incluso hacen discursos incoherentes - se expresaba ahora más sueltamente -, pero la gente, si bien también se aleja de ellos, no tiene la misma actitud que hacia los mendigos como si supieran que ninguno les va a hacer daño....– Está bien, revisemos todo de nuevo, ahora en forma ordenada y coherente. Describe la plaza, sólo eso, descríbela en forma objetiva. ...– Es un cuadrado - contestó el que interrogaban - su piso es de cemento, más específicamente baldosas grises con un diseño en el mismo color. Hay árboles muy altos y antiguos y césped. A su alrededor se disponen los bancos; algunos de piedra y otros de madera. (ELTIT, 1983, p. 47-49, el subrayado de la autora)

El espacio de la plaza es definido por la protagonista como un lugar de convergencia de enamorados, viejos ociosos, mendigos, locos y niños. Es decir, todos quienes están fuera de los circuitos de producción. Entregados a la dimensión inútil de ocio y el desvarío y reposando en el espacio cuadri-culado, uniforme de la plaza cívica. La protagonista L. Iluminada, pareciera que lo que pretende en su diálogo con el luminoso es la amalgama de todas sus identidades: de mujer, personal, intelectual y colectiva. Sin duda, la par-ticular savia femenina constituye un vehículo especial de aproximación. Pero ella busca fundamentalmente su identidad social y en ella disuelve su faceta femenina. Necesita confundirse con “los desarrapados de Santiago [...] que han venido a buscar su área: el nombre y el apodo que como ficha les autori-zará un recorrido”. (ELTIT, 1983, p. 7) Necesita confundirse o relacionarse o encontrar su lugar con los seres de la marginalidad, “los pálidos”, como los bautiza en la novela. Son el lumpen que llega a la plaza, sí, pero no son los únicos al margen, también están los que se abandonan “en el mismo país que nos condenó” [...] “marginados de toda producción”. (ELTIT, 1983, p. 122) Se presentan, además, una serie de descripciones de “rituales” brutales, como una forma de manifestar la inconformidad en contra de la alienación de algún sistema autoritario represor, llámese cotidianidad, dictadura o vida moderna.

arte e cidades 2ed.indd 43 04/11/15 18:07

44

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

La luz del luminoso o la mirada de los pálidos se convierten en símbolos de esas estructuras de poder. L. Iluminada protesta, se queja, sus acciones no va-len por sí solas sino por lo que representan, lo que significan, lo que aluden: “Estrella su cabeza contra el árbol”.

la performatividad erótica

La plaza también se definió para el interrogador como lugar de amores clandestinos, deseo forzado, intimidad, erotismos exhibicionista, preámbulo sexual. La presencia del ser hembra es muy fuerte en la novela. Hay en L. Ilu-minada emergencia de un lenguaje y de un cuerpo. Así, en Lumpérica, la plaza es la escena orgiástica que “garantiza una ficción en la ciudad” – es un espacio de teatralización de lo real, en que los personajes son el lumpen excluido de la escena. Pareciera que una conciencia externa al personaje - sea la luz del letrero, la mirada del lumperío, el lente de la posible filmación - la completa, la ayuda a existir, o más exactamente, a ser. La presencia de un ojo ajeno tiene la virtud de acrecentar su energía erótica. La protagonista tiene - y transmite - una poderosa sensación de su propia sexualidad: una sensación que empieza y termina en ella y que no parece perseguir la posesión masculina. Una especie de motor vital, una carrera continuamente reiniciada: “Emprende trote nuevo más cuidadoso aun, más lisonjero el sonido peculiar de esos pastelones que ubican sus cascos de mejor manera”. (ELTIT, 1983, p. 56) Se describe un goce o dolor de su propia existencia física, un despliegue de fuego animal que no la conduce al encuentro “de los anticuados ritos” (ELTIT, 1983, p. 57), sino constituye un peculiar camino hacia su propia identidad y descubrimiento del autoerotismo: “Pero ¿cómo se tienta a la luz eléctrica?, ¿bajo qué mecanismos la perturba?, si relicha, si muge o brama, si se estira perezosa como gata, si se arrastra como insecto bajo los bordes del farol, si croa, si pía ¿hará que ese cable la cabalgue?”. (ELTIT, 1983, p. 59)

El lenguaje y la escena rescriben el cuerpo y el deseo, trasgrediendo el orden dictatorial e indagaciones del propio cuerpo, por ejemplo, “Con sonidos guturales llenan el espacio en una alfabetización virgen que altera las normas de la experiencia. Y así de vencidos en vencedores se convierten, resaltantes en sus tonos morenos, adquiriendo en sus carnes una verdadera dimensión de la belleza”. (ELTIT, 1983, p. 13) Los cuerpos que constituyen la escena se abandonan al placer y al goce en una ciudad en que no debería haber lugar para

arte e cidades 2ed.indd 44 04/11/15 18:07

45

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

tales supuestos desbordes, “Nadie diría que en Santiago de Chile” sería posible una ficción de este tipo, orgiástica, ritual, espectacular”. (ELTIT, 1983, p. 10) En esta exposición del cuerpo, del “goce de su propia herida”, L. Iluminada perderá su costra personal y observará el deseo de los otros. Es así cómo lo relata en otra escena del interrogatorio:

– ¿Y qué hacen los enamorados en la plaza pública? – Se besan y se abrazan, le dije.– ¿Y qué más hacen allí?, continuó.– A veces he visto que tocan sus cuerpos, contesté.– ¿Qué quieres decir con que tocan sus cuerpos?, insistió el otro.– Se acarician, dijo el que interrogaban.– ¿Y en qué lugar exactamente ocurre eso?, dijo el interrogador.– Generalmente están sentados en los bancos de la plaza, aunque a veces están apoyados en los árboles pero esto pasa menos. Ellos se “tocan acariciándose sentados sobre los bancos”. [...]Se puede observar también a otras parejas que se juntan clandestinamente. “[...] Uno de los dos está a la fuerza, como requiriendo un lugar más íntimo, pero paradójicamente abundan en la plaza, como preámbulo para algo[...]”.Pero algunos jóvenes se acarician sin disimulo. Se dejan llevar en el umbral de sus sexualidades. También éstos se apartan en los bancos más alejados, o se tienden sobre el pasto y sus cuerpos se frotan. [...] Uno podría darse cuenta de que la posesión es inminente, que “el deseo se tiende en la plaza”. (ELTIT, 1983: 51-52, el subrayado ds la autora)

Se trata de reconciliar, en un gesto que se podría calificar de utópico, lo aparentemente irreconciliable, las márgenes y el centro, el cuerpo y el lenguaje, la oralidad y la escritura en el espacio heterópico de la plaza. Lumpérica crea entonces un espacio luminoso, la plaza, en que se hace posible borrar ciertas fronteras (aunque cuando amanezca el día todo vuelva a su aparente normali-dad). “Se abre así la novela, surgen los personajes, se los lee bajo la iluminación de la plaza”. (ELTIT, 1983, p. 115) De un modo original, perturbador se arma la performance de esta ciudad hiperfragmentada y vigilada a partir de sujetos que instan inscribir su lenguajes y su cuerpos excluidos. Según la autora “La diferencia hispanoamericana descansa en ‘lo otro” ese otro que tiene su ori-gen en el trauma de la ocupación europea y que el nuevo orden institucional expulsó fuera del espacio y del relato. Y luego fue la política nacional, y más

arte e cidades 2ed.indd 45 04/11/15 18:07

46

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

tarde el mercado neoliberal. Recuperar la plaza, la fundación ciudadana, poner al centro el margen es la ilusión transgresora que recorre esta novela.

la esquina en mi corazon de Pedro lemebel – o la esquina del deseo transgresor y travesti

Pedro Lemebel es un escritor y artista visual que se dio a conocer en la década de los 80 como integrante del colectivo de arte conocido como “Ye-guas del Apocalipsis”, colectivo que hizo una destacada labor en fotografía, video e instalaciones bajo el régimen de Pinochet, cuando la palabra oral y el poner el cuerpo eran instrumentos sediciosos más posibles y efectivos que las letras. El colectivo protagoniza algunas memorables performances: pasearse a caballo desnudo por las calles de Santiago, presentarse a un congreso del Partido Comunista con plumas de vedette o repartir preservativos en la Feria del Libro. Su trabajo se concentró enseguida en la literatura, seduciendo casi de inmediato a críticos y lectores, con su original praxis de la crónica. En sus crónicas despliega el mundo urbano marginal como una construcción cultural, territorial y existencial poderosa bajo una pluma transgresora, torrencial, una suerte de fulgurante barroco popular. A la fecha ha publicado La esquina es mi corazón. Crónicas urbanas (1995), De perlas y cicatrices. Crónicas radiales (1998) Loco afán. Crónicas de sidario (1996). También, la novela “Tengo Miedo Torero”. Recientemente ha publicado Crónicas del Zanjón de la Aguada y A flor de boca. En los años recientes ha gozado de becas otorgadas por el Consejo Nacional del Libro y la Lectura y la Fundación Guggenheim, gracias a las cuales ha podido avanzar en varios proyectos literarios.

Siguiendo el análisis de Santiago como espacio performativo, nos con-centraremos en su primer libro, La esquina es mi corazón, que desde su epígrafe instala una mirada donde ciudad y deseo se urden en el barrio marginal, en un nudo semántico polivalente. El volumen recoge una serie de crónicas publica-das en la revista Página abierta desde el año 89, a inicios de la democracia, que elaboró como abanico de “postales homosexuales” de la ciudad, dibujando el mapa urbano del deseo homosexual, con la elaboración de voyeur pillado en el acto. Recordemos el epígrafe del poeta argentino Nestor Perlongher que abre el libro: “Errar es un sumergimiento en los olores y los sabores, en las sensa-ciones de la ciudad. El cuerpo que yerra ‘conoce’ en/con su desplazamiento.” En congruencia este conjunto de textos podría verse como una imagen cubista

arte e cidades 2ed.indd 46 04/11/15 18:07

47

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

de una ciudad sin centro por donde se merodea buscando, equivocándose, de-satando pulsiones y donde las identidades se hacen, se definen a medida que se desplazan. Una imagen cubista de una ciudad sin centro, como una visión de la urbe desde distintos ángulos y cruzada por una libido salvaje, latente, ávida.

Para Lemebel la ciudad es un teatro del deseo ilícito, un escenario don-de se despliega el deseo del travesti popular o “la loca”. Un voyeur que mira en el espejo de su ojo en el fondo. Es así como la académica Soledad Bianchi define el libro como “un álbum fotográfico urbano donde cada una de las imágenes no sería una foto estática sino una suerte de paneo por sitios, situa-ciones, personajes, ambientes, sentimientos. Todo esto contemplado por ojos homosexuales y travestis que se deslizan, recorren, rescatan y revelan ángulos – topográficos y humanos – secretos, ocultos y ocultados.”6 Bianchi habla en su artículo del poder de la mirada como instrumento de escritura, donde estas crónicas urbanas registran las trayectorias de pies y ojos, donde nada queda prohibido ni censurado. De este modo, podemos completar una cartografía de la ciudad – específicamente de Santiago – bajo una nueva mirada. Cada texto no es sólo un fragmento por su extensión sino, asimismo, por el recorte de la mirada que se traduce en ágiles enfoques parciales. Está la mirada de “la ciudad como soporte” donde ésta no es un escenario de palabras sino un escenario donde la poesía y el deseo se consuman en una acción de arte. Lemebel nos hace ver lo que no queremos ver, devela y revela.

En los textos escribe sobre cuerpos que se restriegan unos contra otros en autobuses repletos, en parques públicos, en casas de baños, en solares baldíos. Como sostiene la académica estadounidense Jean Franco, es la visión de sujetos que cruzan la urbe con una libido salvaje, latente, ávida; el deseo incontrolado de sus personajes marginales es tan anónimo como compartido, en especial, es la visión del sujeto travestido, en particular, quien impone límites peligrosos, burlándose de la vigilancia del “Estado pero expuesto a la violencia azarosa de quienes se sienten atraídos y rechazan esa ambiguedad sexual. Pero más allá de todo hay una ciudad de partes humanas – anos, penes, muslos – que emiten sudores y olores, que provoca dolor y placer. Miembros, órganos, pieles que intentan inscribir su deseo en un cuerpo otro”. (FRANCO, 2003, p. 299-300)

A su vez, las crónicas son episodios urbanos y eróticos que insinúan el desplazamiento del centro hacia periferias, los arrabales y las marginalidades en un frecuente ambiente nocturno. Espacios tales como penumbras de cine, humedades frías de Parque Forestal, la oscuridad de la cárcel, los espacios de los

arte e cidades 2ed.indd 47 04/11/15 18:07

48

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

cuarteles militares, las calles del Santiago antiguo. Un entramado clandestino, que muestra que hay cientos de amores y encuentros sexuales para seguir con-tando, para seguir inventando y decorando descarada y literariamente siempre en el límite de lo prohibido y lo asombroso. La ciudad, puede ser entendida, además, a través de una estructura de espacios prohibidos, deseantes donde circula el cuerpo del travesti. Por ejemplo, en la crónica, Homoeróticas (1999), parece que el propio Lemebel sintetiza la mirada de una ciudad y un deseo homosexual y marginal:

La ciudad testifica estos recorridos en el apunte peatonal que altera las rutas con la pulsión dionisiaca del desvío. La ciudad redobla su imaginario civil en el culebreo alocado que hurga en los rincones del deseo proscrito. La ciudad estática se duplica móvil en la voltereta cola del rito paseante que al homosexual aventurero convoca. La calle sudaca y sus relumbros arribistas de neón neoyorkino, se hermana en la fiebre homoerótica que en su zigzagueo voluptuoso replantea el destino de su continuo güeviar. [...] El plano de la city puede ser su página, su bitácora ardiente que en el callejear acezante se hace texto, testimonio documental, apunte iletrado que el tráfago consume. Más bien lo plagia, y lo despide en el disparate coliza de ir quebrando mundos, como huevos, en el plateado asfalto del entumido anochecer”.7

Lemebel, en su trabajo de cronista, se inclina por las homosexualidades que quiebran el falogocentrismo (Derrida), que han ganado un lugar en la ciencia y en la política de estado. Por ejemplo, en Chile, hace solo diez años cambió la ley que condenaba la sodomía inscrita en el artículo 35 de la Cons-titución civil. Pero el camino legal y el de la mentalidad van por caminos dis-tintos, todavía queda el desafío de la inserción de la cuestión homosexual en lo social. Todo lo cual sugiere que el nombre multiplicado dirime en el cuerpo del lenguaje la prohibición del cuerpo transgresivo: contra la reducción del habla que lo condena, sanciona, persigue y victimiza, este derroche nominal transfiere este cuerpo a la zona acrecentada de significación permutante, donde la identidad es una máscara y el sujeto una mascarada.

La ciudad, puede ser entendida, además, a través de una estructura de espacios prohibidos, deseantes. Todo lo cual sugiere que el nombre multiplicado dirime en el cuerpo del lenguaje la prohibición del cuerpo transgresivo: contra

arte e cidades 2ed.indd 48 04/11/15 18:07

49

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

la reducción del habla que lo condena, sanciona, persigue y victimiza, este derroche nominal transfiere este cuerpo a la zona acrecentada de significación permutante, donde la identidad es una máscara y el sujeto una mascarada. Las palabras que sobredicen de un modo barroco, donde hasta lo grotesco es deco-rado y mejorado. En este libro se traza el mapa urbano del deseo homosexual.

En relación a la marginalidad, en especial con la crónica Los New kids of the block (alusión al grupo musical como a los niños de los edificios – favelas de la clase baja) el autor apunta al fenómeno de la esquina y sus habitantes tránsfugos como lo refleja el siguiente fragmento:

Dedicado a los chicos del bloque, desaguan do la borrachera en la misma escala donde sus padres beatlemaníacos me hicieron a lo perrito; inyectándome entonces el borde plateado de la orina que baja desnuda los peldaños hasta aposentarse en una estrella humeante. Yo me fumo esos vapores en un suspiro de amor por su exilio rebelde. [...] La esquina de la “pobla” es un corazón donde apoyar la oreja, escuchando la músi ca timbalera que convoca al viernes o sába do, da lo mismo; total, aquí el tiempo de marca la fatiga en las grietas y surcos mal parchados que dejó en su estremecimiento el terremoto. Aquí el tiempo se descuelga en manchas de humedad que velan los ros tros refractados de ventana a ventana, de cuenca a cuenca, como si el mirar perdiera toda autonomía en la repetición del gesto amurallado. Aquí los días se arrastran por escaleras y pasillos que trapean las mujeres de manos tajeadas por el cloro, comentan do la última historia de los locos. (LEMEBEL, 1995, p. 29-30)

La esquina de los bloques – dice – es el epicentro de vidas precarias que permiten evadir, escaparse del hacinamiento y promiscuidad, vidas sin hori-zontes que confluyen en la esquina que opera como un iceberg de una realidad de casas precarias, camas revueltas, intimidades mal compartidas. Incluso se hace una crítica a la habitación popular que la planificación urbana ofrece como pseudo solución, subsidio o caridad oficial:

De esta utilería divisoria que inventó la arquitectura popular como sopor te precario de intimidad, donde los resue llos conyugales y las flatulencias del cuer po se permean de lo privado a lo público. Como una sola resonancia, como una cam pana que tañe neurótica los gritos de ma dre, los pujos del abuelo, el llanto de los críos ensopados en mierda. Una bolsa cúbica que pulsa su hacinamiento ruidoso

arte e cidades 2ed.indd 49 04/11/15 18:07

50

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

donde na die puede estar solo, porque el habitante en tal desquicio, opta por hundirse en el caldo promiscuo del colectivo, anulándose para no sucumbir, estrechando sus deseos en las piezas minúsculas. (LEMEBEL, 1995, p. 34)

En esta precariedad habitacional, la esquina sobresale comos un lugar de encuentro, de roce, de pertenencia e identidad en una ciudad que mal acoge a estos jóvenes sin ofrecerles posibilidades de desarrollo, de realización. Jóvenes existencias mal predestinadas desde un inicio, mal paridas y unidad en este callejón sin salida: “Pareciera entonces que cada nacimien to en uno de estos bloques, cada pañal ondulante que presupone una nueva vida, es tuviera manchado por un trágico devenir”. (LEMEBEL, 1995, p. 35)

Por otra parte, en estas crónicas urbanas el autor retrata la complejidad del mundo sexual, da cuenta del lugar del travesti popular en ese entramado de poderes y discursos. Es así como Lemebel distingue diferencias:

Primero el mundo homosexual es un universo enorme lleno de matices. Yo te podría hablar desde el mariconaje guerrero que yo practico nada más. No todas las homosexualidades tienen que ver con este discurso. Existe una homosexualidad gay, blanca, apolínea que se adosa al poder por conveniencia. En ese sentido hay minorías dentro de las minorías, lugares que son triplemente segregados como lo es el travestismo. No el travestismo del show que ocupa su lugar en el circo de las comunicaciones, sino que el travestismo prostibular. El que se juega en la calle, el que se juega al filo de la calle, ese es segregado dentro del mundo gay, o también son segregados los homosexuales más evidentes en este mundo masculino. Aquí en Chile por ejemplo, donde yo vivo que es una población,9 lo gay se entiende como una rara ecología, “qué es eso”, un cierto arribismo de comerse la palabrita y sustituirla por otras, de encubrir las otras categorías que han recreado tanto la homofobia como el folklore homosexual. Son palabras de agresión a lo homosexual, como el “coliza” o “tereso”, que al usarlas yo, las descargo de esa energía brutal. (JEFTANOVIC, 2000, p. 76)

Lemebel se apropia del insulto, revirtiendo el menosprecio en estrategia de poder, en categoría de distinción. Pero en esa estrategia está alerta a distinguir las homosexualidades que se adosan, que resisten a las formas hegemónicas. Es por eso que distingue a la “la loca” y al gay apolíneo: “son categorías distintas

arte e cidades 2ed.indd 50 04/11/15 18:07

51

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

pero no contrapuestas: De esta forma asegura que “en todo gay hay una loca que se desviste frente al espejo, privadamente”. (LEMEBEL, 2000, p. 76) Lo que nos ofrece en sus textos es la homosexualidad como una construcción cultural, como una otra forma de pensarse, otra forma de imaginar el mundo, no sólo desde la teoría homosexual sino que desde todos los lugares agredidos y dejados de lado por esta maquinaria neoliberal y globalizante.

Lemebel en su trabajo literario propone un cuerpo travesti nos interroga una y otra vez: ¿Es hombre o mujer? Una pregunta que no tiene respuesta. Porque elegir un género es una posibilidad de construirse. Se trata de un proceso de interpretación de las normas culturales. El travesti perturba la narrativa tra-dicional, cuentan una nueva historia, es una representación distinta que cruza y perturba la ciudad. Supera la estructura ideológica como yo/otro, sujeto/objeto, materialidad/idealización, o realidad/ilusión propias de la deconstrucción, va más allá de las oposiciones binarias para instalar una categoría inclasificable. El travestismo no es un binarismo ni tiene noción de jerarquía, de dominio de uno sobre otro. La posición de travesti tensa el escenario contradiciendo la visión histórica de la mujer como alguien que trabaja contra Edipo, y problematizan-do la narrativa del cuerpo femenino y del cuerpo masculino. La innovación narrativa está en la representación del cuerpo femenino no como una falta de femineidad que se completa o erradica por el deseo masculino, sino como un cuerpo que es y no es femenino y masculino; como dos mujeres diferentes que en conjunto habitan una posición de sujeto masculino desplazado, distinto.

El travesti es una identidad que ocupa posiciones paradójicas desde donde es posible imaginar una variedad de posibilidades que permitan reordenar las relaciones entre conductas sexuales, identidades eróticas, construcciones de género, formas de saber, regímenes de enunciación, lógicas de representaci-ón, modos de auto conformación y prácticas comunitarias para reestructurar las relaciones entre el saber y el ser, el poder y el ser y el propio ser. El sujeto travesti está ahí desafiando a las ciencias sociales, a las ciencias biológicas, a la psicología, al status cívico estipulando, jugando con la idea de que existen tantos géneros como personas. Como sostiene Lemebel aún está pendiente ver en el homosexual, en el travesti “un devenir más en este abanico múltiple y polimorfo de la sexualidad en evolución y constante cambio. Tal vez, la ho-mosexualidad pudiera ser una parada en esta evolución y ser una sexualidad por venir, por hacerse.” (LEMEBEL, 2000, p. 76) El deseo homosexual como una trayectoria desbordada, escondida, un espacio en blanco para rellenar con

arte e cidades 2ed.indd 51 04/11/15 18:07

52

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

historias anónimas, erradas, que son accidentes, delitos, excepciones en la ciudad contemporánea.

Conclusión

En estos tres heterogéneos libros escogidos para pensar la ciudad de Santiago y sus posibles representaciones, la urbe aparece como un espacio problemático cruzado por deseos contradictorios, salvajes y lacerantes. Se muestra una ciudad que huye de sí misma, incómoda, a la vez que una ciudad de visiones encontradas donde se privilegia lo provisional, un imbunche10 de capas de mentiras que cubre todos nuestros rincones.

En el caso de Mapocho es una amalgama de comentarios sobre un mismo hecho, una misma época histórica la historia oral y la historia oficial. Santiago es la ciudad o el supra sujeto que carga con una memoria dolorosa, en el caso de la Rucia y el Indio es la historia de una madre que los ignora, que les da la espalda y los reprocha, y de un padre que traiciona a su familia y a sus ideales. Frente a esto, la opción del incesto, se presenta como una redención, la única forma de abrir los ojos a los fantasmas y descubrir el verdadero Santiago que se esconde tras los monumentos, con sus muertos y gritos, y su suciedad. En este texto se evidencia así que una ciudad se carga de significados y de historia no solo por sus habitantes y sus experiencias en las calles, sino también por los testimonios escritos sobre ella, que alimentan la ciudad de nuevos sentidos, nuevas mitologías, nuevas historias.

En el caso de Lumpérica de Eltit, en el delimitado espacio de la plaza da-mero se cruzan el alumbrado público y los neones de la publicidad moderna para hablar de los sujetos que sobran en la sociedad, los vagabundos y todo aquel fuera del circuito de producción, y que reivindican su deseo ciudadano de ser alguien, de vivir su erotismo bajo la mirada de un ser superior, el Lumi-noso, que puede ser la mirada del dictador, del director de la toma. Lumpérica, además, presenta a los personajes en una especie de improvisación – utilizando un término teatral –, pero además la forma en que está escrita la novela tiene una relación directa con las artes que involucran las imágenes visual – teatro, cine, fotografía – pero no en sus formas tradicionales sino con sus manifesta-ciones vanguardistas y neovanguardistas: el teatro del absurdo, el performance o arte de acción, las instalaciones de video o fotografía por lo que estos sujetos intervienen la ciudad desafiando las normativas (horario designado por el auto-

arte e cidades 2ed.indd 52 04/11/15 18:07

53

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

ritarismo), la segregación geográfica (clases sociales y distribución espacial), la censura erótica (la libido en el ámbito privado), el poder femenino a través de L-Iluminada que es mujer, que es yegua y que realiza una serie de ritos reales o simulados en medio de la plaza metropolitana.

Lemebel en sus crónicas, habla de una ciudad prohibida de encuentros tránsfugos, el de la ciudad, sitiada por la dictadura, estratificada por la miseria y homosexualizada por los cuerpos ávidos de roces. Todo esto bajo la mira-da de reojo del vouyer, que complaciente y pasiva cede a mirar a la ciudad anochecida, periférica, fuera de las estadísticas. Así se habla de un Santiago, una urbe con una sociedad reprimida, temerosa de la diferencia, ansiosa de controlar los deseos latentes de sus habitantes. Una ciudad que se resiste a las diferencias, pero en cuyos tránsitos y tráficos circulan jóvenes homosexuales, pobres, prostitutas, manifestantes que el autor nos revela en la esquina que ilumina con su pluma, neobarroca.

En todos estos textos literarios pareciera que se está “dibujando” un mapa pero no en el sentido del trazado en una hoja sino de recrear un mapa con las distintas percepciones o visiones de la ciudad para finalmente esbozar un proceso de construcción de identidad. En una urbe son muchos lo espacios “condensa-dores de temporalidad” en los que mito e historia se entrecruzan, y en donde se superponen no sólo las representaciones de lo visible, sino las de la memoria individual y colectiva, referentes connotativos no siempre vividos, sino también “aprendidos” o simplemente “leídos”, o bien confesados, conversados, relatos heredados. Como sostiene Fernando Ainsa, la identidad es el resultado de la suma de dos caracteres: localización (localidad) más locución (lengua, hablar). La ciudad Santiago, supra sujeto y escenario por excelencia para una memoria nacional y personal de las letras chilenas de los últimos veinte años.

notas

1 Ainsa, Fernandio: De Arcadia a Babel, Artículo: ¿Espacio mítico o utopía degradada? Notas para una geopoética de la ciudad en la narrativa latinoamericana.

2 En la década de 1950, bajo el régimen del ex dictador militar Carlos Ibáñez del Campo, se promulga una ley que persigue y encarcela a homosexuales y mendigos. En una de las razzias en contra de los primeros, un grupo de aproximadamente cincuenta travestis son subidos a un barco y lanzados al mar.

3 Texto que fue leído en un prostíbulo en Maipú y es parte de su “arte de la intención. Actualmente es posible encontrarlo en http://www.letras.s5.com/archivoeltit.htm

arte e cidades 2ed.indd 53 04/11/15 18:07

54

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

4 Entrevista “Los rostros de la marginalidad” publicada en Apsi Nº 131, 29 de noviembre al 12 de diciembre de 1983, es posible encontrarla en http://www.letras.s5.com/eltit200202.htm

5 Idem

6 Bianchi: Lemebel o el guante aterciopelado.

7 Publicada originalmente en la revista Rocinante Agosto 1999, hoy es posible de hallar en http://www.letras.s5.com/lemebel37.htm

8 Población en jerga es favela o barrio miseria

9 Criatura de la mitología mapuche. Un ser cosido en todos sus agujeros.

referências

TEORIA GENERAL

AINSA, Fernando. ¿Espacio mítico o utopía degradada? Notas para una geopoética de la ciudad en la narrativa latinoamericana2 in: De Arcadia a Babel Javier de Navascués (ed.). Madrid-Frankfurt: Iberoamericana-Vervuert, 2002.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidad líquida. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003.

BACHELARD, Gastón. La poética del espacio. DF: Fondo de Cultura económica, 1965.

DERRIDA, Jacques. La escritura y la diferencia. Barcelona: Anthropos. 1989.

FRANCO, Jean. Decadencia y caída de la ciudad letrada: La literatura latinoamericana durante la Guerra Fría. Barcelona: Debate. 2003.

FRANZ, Carlos. La muralla enterrada. Bogotá: Planeta, 2001.

GIANNINI, Humberto. La “reflexión” cotidiana. Hacia una arqueología de la experiencia. Santiago: Editorial Universitaria, 2004.

IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2004.

––––––. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2004.

PRATI DOS SANTOS, Eloína. “Pos-colonialismo y pos-colonialidade” In: Conceitos de Literatura e Cultura. Rio de Janeiro: Editora UFJ/EDUFF, 2005.

SASSEN, Saskia. Los espectros de la globalización. México D. F: Fondo de Cultura Económica, 2003.

YORY, Carlos Mario. Ciudad, consumo y globalización. Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2006.

SOBRE MAPOCHO

arte e cidades 2ed.indd 54 04/11/15 18:07

55

An

dr

eA

Je

ftA

no

vic

ö

FERNANDEZ, Nona. Mapocho. Santiago: Editorial Plantea, 2002.

NAVARRETE, Carolina. “Mapocho de Nona Fernández: Escritura de la memoria” en http://www.critica.cl/html/navarrete_01.htm

OPAZO, Cristián. “Mapocho, de Nona Fernández: la inversión del romance nacional” en http://www.scielo.cl/scielo.php?pid=S0718-22952004000100002&script=sci_arttext

SOBRE LUMPERICA

ELTIT, Diamela. Lumpérica. Santiago: Editorial Planeta, 1983.

–––––– . Por la patria. Santiago: Cuarto Propio, 1986 .

LÉRTORA, Juan Carlos. “Diamela Eltit y el imaginario de la virtualidad”, in: Una poética de literatura menor: la narrativa de Diamela Eltit. ed. J.C.Lértora. Santiago: Editorial Cuarto Propio, 1993, p. 53-58.

ORTEGA, Julio. “Resistencia y sujeto femenino: entrevista con Diamela Eltit” in: La Torre 4, 14, 1990, p. 229-241.

PIÑA, Juan Andrés. “Los rostros de la marginalidad”, APSI 131, 1983, p. 40-41

RICHARD, Nelly. La estratificación de los márgenes. Sobre arte, cultura y políticas. Santiago: Francisco Zegers Editor, 1989.

––––––. Masculino/Femenino. Prácticas de la diferencia y la cultura democrática. Santiago: Francisco Zegers Ed.,1993.

Ver sitio www.letras.s5.com/eltit200202.htm

SOBRE LA ESQUINA ES MI CORAZON

BIANCHI, Soledad. “Travestismo: la infidelidad del disfraz”, Ciclo de Género, Educación y Cultura “Conjurando lo perverso. Lo femenino: presencia, supervivencia”. 19 y 29 de junio de 1997 en la Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación. 1997.

––––––. http://www2.cyberhumanitatis.uchile.cl/03/textos/SBIANCHI.HTML (septiembre 2006)

––––––. ”Un guante de áspero terciopelo, la escritura de Pedro Lemebel”. http://www2.cyberhumanitatis.uchile.cl/03/textos/SBIANCHI.HTML (septiembre 2006)

FOUCAULT, Michel. Vigilar y castigar. México: Siglo XXI. 1999.

FREUD, Sigmund. “Una teoría sexual y otros ensayos” in: Obras Completas II. Madrid: Biblioteca Nueva. 1929.

GRAU, OLGA. (s.f.) Entre aromos e identidades fracturadas.

arte e cidades 2ed.indd 55 04/11/15 18:07

56

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

http://www.babelonline.net/home/004/ventaglio/Grau_fracturada.pdf

LEMEBEL, Pedro. “El cronista de los márgenes” entrevistada realizada por Andrea Jeftanovic in Revista Lucero (Universidad de Berkeley), 2000, p. 74-79.

––––––. La esquina es mi corazón. Santiago: Cuarto Propio, 1995.

––––––. De perlas y cicatrices. Crónicas radiales. Santiago: Cuarto Propio, 1998.

––––––. Loco afán. Crónicas de sidario. Santiago: Lom, 1996.

http://www.casa.cult.cu/semanadelautor/lemebel/iframeentrevista.htm

arte e cidades 2ed.indd 56 04/11/15 18:07

57 ö

Maria stella Martins bresCiani

literatura e Cidade

A sociedade industrial é urbana. A cidade é o seu horizonte. Ela produz as metrópoles, conurbações, cidades industriais, grandes conjuntos habitacionais. No entanto, fracassa na ordenação desses locais. A sociedade industrial tem especialistas em planejamento urbano. No entanto, as criações do urbanismo são, em toda parte, assim que aparecem, contestadas, questionadas. (CHOAY, 1997, p. 1)Esta frase define o campo de reflexão da filósofa Françoise Choay que, em seguida, expõe a questão que orienta seu estudo em O Urbanismo. Utopias e Realidades (SEUIL, 1965)

A partir desse ponto de vista, seu estudo percorre mais de um século de escritos sobre a cidade, apresentando o percurso de avaliações das condições urbanas e de propostas para solucionar os problemas de autores que falam de diferentes pontos de vista. Criticado, por vezes, pela classificação redutora das posições assumidas pelos críticos da cidade nos séculos XIX e XX, períodos que denomina de “pré-urbanismo” e “urbanismo”, seu livro tem um mérito crucial, o de estabelecer vínculos entre os diversos pontos de vista e seus fundamentos políticos. Nessa trajetória, a autora indica que a diversidade política se perde quando assume formato técnico e objetivo e se torna o lugar privilegiado de expressão dos especialistas.1

Joseph Ryckwert (2004, p. 89) desloca um pouco o ângulo de aproxi-mação e diz:

arte e cidades 2ed.indd 57 04/11/15 18:07

58

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A cidade atual é uma cidade de contradições; ela abriga muitas ethnes, muitas culturas e classes, muitas religiões. Essa cidade moderna é fragmentária demais, está cheia demais de contrastes e conflitos: conseqüentemente, ela tem muitas faces, não uma única apenas. É a pró pria condição de abertura que torna nossa cidade de conflitos tão convidativa e atraente para sua crescente multidão de habitantes. A falta de uma imagem coesa e explícita pode, em nossas circunstâncias, ser uma virtude positiva, nunca um defeito ou mesmo um problema. [...] A velocidade da mudança vem acelerando nos últimos cento e cinqüenta anos e está se acelerando ainda mais à medida que a globalização afeta todo o tecido urbano. Por isso, devemos partir do princípio de que nossas cidades são maleáveis e de que nós – cidadãos, administradores, arquitetos e urbanistas – podemos fazer algo para tornar claras nossas preferências e só podemos culpar a nós mesmos caso as coisas piorem em vez de melhorarem.

Coerente com esse ponto de vista, Ryckwert busca também escritos diversificados nos quais autores que desde fins do século XVIII expressaram observações críticas ao intenso crescimento das cidades e/ou propuseram formas de nelas intervir para solucionar problemas.2

O recurso à escrita de poetas, literatos, observadores sociais, políticos, moralistas, médicos, filantropos, entre os mais citados, constitui procedimento corrente entre os estudiosos da história das cidades, da história do urbanismo, bem como entre os que se dedicam a questões urbanas em geral. Essa multi-plicidade de escritos compartilha com várias formas de linguagens iconográ-ficas a tarefa de dar a conhecer aos leitores as inúmeras facetas das cidades em que vivem ou daquelas que apresentam características de interesse particular. Ao iniciar, em 1980, minhas pesquisas sobre o ambiente urbano, foi essa ampla dispersão de lugares de autores convergindo para um mesmo foco de interesse o que mais me intrigou. Descrições e mais descrições de capitais europeias no decorrer do século XIX – seu ambiente físico e seus habitantes – formavam um amplo painel, com frequência, conflituoso, um verdadeiro quebra-cabeça.

Estudar as cidades no longo período de intensas mudanças nas formas de produção designado já no início do século XIX por Revolução Industrial exigiu que se levasse necessariamente em consideração a extensa produção literária, tanto no sentido estrito da literatura ficcional como na acepção mais abrangente de acolher textos de pensadores políticos e de observadores sociais.

arte e cidades 2ed.indd 58 04/11/15 18:07

59

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

Isto por que, mesmo escritos não literários apresentavam características narra-tivas assemelhadas à narrativa literária: seus autores recorriam a descrições nas quais fica evidente o uso de teorias estéticas formuladas no campo da produção artística, fortemente marcadas pela atenção dada à construção de linguagens capazes de convencer e de persuadir os leitores.3 Em outras palavras, a tessitura dos textos mostra a nós, leitores do século XX e XXI, o uso de argumentos “objetivos” sublinhados em maior ou menor graus por imagens de grande poder persuasivo. Pode-se mesmo afirmar haver uma relação “promíscua” entre os inumeráveis textos de teor narrativo sobre as grandes cidades – suas formas físicas e modos de vida de seus habitantes –, de modo a tornar quase impossível estabelecer pioneirismo, originalidade ou prioridade entre autores e formas ou gêneros de escrita.

Nesse artigo, busco abrir uma brecha para desvendar a íntima relação entre escritos diversos e textos ficcionais, assim como a importância deles para conhecer e para a formação de uma imagem e um saber sobre as cidades, que alimentaram e alimentam o pensamento urbanístico. Trata-se de um recorte que deixa de lado linguagens importantes – como as várias formas de repre-sentações iconográficas – mas que se impõe para tornar possível uma análise que transcreva trechos dos textos, evitando parafraseá-los e deles fazer somente apoio para meu próprio texto.

Poetas, literatos e observadores sociais na cidade

Começo por um livro que mereceu enorme acolhida do público aca-dêmico no Brasil nas décadas de 1980 e 1990 – O declínio do homem público: as tiranias da intimidade – no qual Richard Sennett (1988) expõe ao longo de vários capítulos a forma pela qual, no ambiente urbano contemporâneo, “o eu de cada pessoa tornou-se o seu próprio fardo”. Voltado para uma das dimensões da vida urbana, Sennett (1988, p. 16) afirma com pessimismo: “A obsessão por conhecer-se a si mesmo como meio para se conhecer o mundo, leva, diz ele, a que quanto mais privatizada [for] a psique, menos estimulada ela será e tanto mais nos será difícil sentir ou exprimir sentimentos”. Essa seria a condição do habitante das grandes cidades em nossos dias. Segundo Sennett (1988), as pessoas estranhas nos surgem como figuras ameaçadoras, e poucos podem sentir um grande prazer nesse mundo de estranhos da cidade cosmopolita.

arte e cidades 2ed.indd 59 04/11/15 18:07

60

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

O silêncio em público se tornou o único modo pelo qual se poderia experimentar a vida pública, especialmente a vida das ruas, sem se sentir esmagado. [...] Cresceu a noção de que estranhos não tinham o direito de falar, de que todo homem possuía como um direito público um escudo invisível, um direito a ser deixado em paz. [...] Esse muro invisível de silêncio, enquanto um direito, significava que o conhecimento, em público, era questão de observação – das cenas, dos outros homens, dos locais[...] um certo tipo de voyeurismo. (SENNETT, 1988, p. 43)

O quanto à observação de Sennett, mantém sua atualidade nessa pri-meira década do século XXI? Seria essa distância psicológica ainda o único meio eficaz de preservamos nossa integridade em uma sociedade urbana que exige a exposição pública quotidiana de todos? O quanto nos últimos dois séculos levou-se ao limite a prática do isolamento como único meio de se proteger enquanto pessoa e personalidade na dupla acepção dos termos, física e moral? Quais mecanismos psicológicos teriam tornado plausível uma vida movida pela concorrência contínua e na qual a experiência da solidariedade foi substituída pelas explícitas relações de interesse? Teve a literatura, e a lite-ratura ficcional em particular, parte importante na formação dessa “identidade defensiva” característica de nossos dias, já que a ela se relaciona o hábito do recolhimento para a leitura silenciosa e solitária? Leitura que ao desvendar o mundo para nós, seus leitores, traduz na forma ficcional códigos de conduta em enredos saturados de noções morais e éticas, mas também de preceitos de higiene e preconceitos de classe. Ou, em posição radicalmente diversa, seria um argumento ou um construto intelectual formulado por Sennett a partir de sua própria experiência pessoal? O estreito vínculo entre a produção literária e a cultura urbana constitui a principal indagação deste trabalho.

Creio que Sennett, na verdade, coloca seu leitor frente a uma situação paradoxal, já que nas sociedades crescentemente urbanas, a exposição em público vem sendo aconselhada, desde as décadas finais do século XIX, como modo de completar a formação do indivíduo moderno. Evitar a companhia de estranhos passava a constituir a outra face da mesma moeda na qual se inscreve a necessidade de conhecer os perigos do mundo. O paradoxo parece, no entanto, ter sua lógica: o conhecimento aumenta o acervo das experiências que nos dá a necessária consciência daquilo que deve ser evitado.4

arte e cidades 2ed.indd 60 04/11/15 18:07

61

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

Assume assim significado expressivo ter Sennett (1988) colocado como epígrafe de seu livro uma citação Aléxis de Tocqueville, um atento observador da sociedade na primeira metade do século XIX:

Cada pessoa, mergulhada em si mesma, comporta-se como se fora estranha ao destino de todas as demais. Seus filhos e seus amigos constituem para ela a totalidade da espécie humana. Em suas transações com seus concidadãos, pode misturar-se a eles, sem, no entanto, vê-los; toca-os, mas não os sente; existe apenas em si mesma e para si mesma.

Essa afirmação5 de alguém que se dispôs nas décadas de 1830 e 1840 a conhecer pessoalmente as sociedades dos países que considerou serem os que mais lhe ofereciam elementos para entender a “nova” sociedade em formação – Inglaterra, Irlanda, Estados Unidos e França, sua terra natal – repete em eco observações semelhantes de contemporâneos seus, citadas e reproduzidas por vezes sem um filtro crítico por inúmeros autores do século XX.

É importante anotar que Sennett retomava na década de 1970 indaga-ções presentes em escritos anteriores. Walter Benjamin constitui exemplo paradigmático de autor que, no entreguerras, recorreu aos escritos do século XIX no intuito de conhecer e dar a conhecer a seus leitores a experiência de se viver nas cidades modernas: o anonimato em meio à multidão, os infindáveis estímulos nervosos aos quais o urbanista se vê submetido no cotidiano. Em Sobre alguns temas em Baudelaire, Benjamin se detém nesses dois temas. Sua afirmação de que “a multidão metropolitana despertava repugnância e horror naqueles que a viam pela primeira vez” encontrou apoio em escritos literá-rios. Porém, não só de literatos e poetas ele povoou seus escritos. Ao buscar elucidar o mecanismo dos estímulos nervosos, formula a “teoria do choque” a partir dos ensinamentos de seu contemporâneo Henri Bérgson, e cita, entre os autores que manifestaram sentimento negativo pelas multidões, Friedrich Engels em seu conhecido relato das primeiras viagens à Inglaterra nos inícios da década de 1840, no qual afirmou que “a multidão da rua tem, em si, algo de repugnante”. (BENJAMIN, 1989, p. 124-115) Perante as cenas da multidão das ruas de Londres, Engels (1960, p. 60) indagava:

Será que essas centenas de milhares de pessoas, de todas as condições e de todas as classes, se apertam e se trombam, não são todos homens possuindo as mesmas qualidades e os mesmos interesses na busca

arte e cidades 2ed.indd 61 04/11/15 18:07

62

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

da felicidade? E, entretanto, elas se cruzam correndo, como se nada tivessem em comum, nada a fazer em conjunto; e a única convenção entre elas é o acordo tácito segundo o qual cada um mantém a direita na calçada, de modo a permitir que se cruzem sem constituírem um obstáculo mútuo; e, entretanto, não vem à cabeça de ninguém dar ao outro, que seja um mero olhar.

Engels, como outros numerosos observadores sociais, anotava com espanto a aura de anonimato que cercava os habitantes da cidade. Antes dele, em Signs of the Times, de 1829, Thomas Carlyle (1980, p. 64) considerou ca-racterísticas da “era da máquina” o acelerado aumento da população urbana, o trabalho fabril, agora submetido a parcelização das tarefas e à máquina, a “mecanização” das mentes, o conflito entre capital e trabalho, a acentuada concorrência entre empresários e trabalhadores. Pensador conservador, mas arguto avaliador da sociedade inglesa da primeira metade do século XIX, Carlyle alertava para o modo pelo qual as pessoas se tornavam meros autô-matos subjugados uns ao maquinismo e outros à obsessiva busca de lucro, e fechavam-se sobre si mesmas. Verdadeiras mônadas na metáfora utilizada por Engels. Esses aspectos da vida contemporânea foram anotados por homens que consideravam estar vivendo no limiar de uma nova era, cujo potencial transformador do mundo material e da psique humana não fora ainda avalia-do. Seriam retomados na reflexão filosófica Metrópole e vida mental de Georg Simmell, em 1902. (BRESCIANI, 1985, p. 36; VELHO, 1976, p. 11)

As observações de Carlyle, Engels e Simmell compunham o amplo acervo para a composição do qual também contribuíram outros autores com outras linguagens. Pinturas, mas, sobretudo, gravuras e charges, e mais tarde fotografias povoavam os periódicos apresentando cenas de rua e as caracte-rísticas da variada composição dos habitantes das cidades. Formavam álbuns, acompanhavam e ilustravam argumentos escritos na clara intenção de mostrar aos leitores a complexidade do mundo em que viviam.6 Na certeza de que imagens bastante eloquentes na representação de cenas e personagens exigiam menos formação intelectual e passavam mensagens visuais a um público mais amplo, traduziram em linguagem iconográfica o que a poesia expressava fre-quentemente de modo alegórico.

É bastante conhecido e citado o poema A uma passante, no qual Baudelaire atribui ao acaso as parcas possibilidades de encontro entre duas pessoas em uma grande cidade e o caráter efêmero desse encontro:

arte e cidades 2ed.indd 62 04/11/15 18:07

63

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

A rua em torno era um frenético alarido.Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,Uma mulher passou, com sua mão suntuosaErguendo e sacudindo a barra do vestido.[...]Que luz [...] e a noite após! – Efêmera beldadeCujos olhos me fazem nascer outra vez,Não mais hei de te ver senão na eternidade?Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!Pois de ti já me fui, de mim tu já fugistes,Tu que eu teria amado, ó tu que bem o vistes!(BENJAMIN,1989, p. 42; BAUDELAIRE,1980, p. 68)

Tomado de verdadeira obsessão pelas intervenções na cidade de Paris, pela aceleração do tempo urbano e as rápidas modificações nas relações entre as pessoas, Baudelaire expressava em seus Petits poèmes en prose a experiência de viver mudanças radicais. Dedicou abertamente um dos poemas à experiência do poeta perante o insólito impacto proporcionado pela “aventura” de sair às ruas:

Não é dado a qualquer um tomar um banho de multidão: usufruir a multidão é uma arte; e isto só acontece às expensas do gênero humano, uma pândega de vitalidade, [...] por aquele a quem uma fada insuflou, ainda no berço, o gosto de travestir-se e mascarar-se, o ódio do domicílio e a paixão da viagem. Multidão, solidão: termos iguais e intercambiáveis para o poeta ativo e fecundo. Aquele que não sabe povoar sua solidão, sabe menos ainda estar só em meio a uma multidão atarefada. (BAUDELAIRE, 1980, p. 170)

O poeta oferecia a seus leitores em meados do século (a edição de Les fleurs du mal é de 1861) algo semelhante à construção poética de William Wor-dsworth quando elaborou a imagem de Londres ao chegar à cidade no início do século XIX:

Levante-te, tu formigueiro monstruoso na planície de um mundo muito atarefado!Perante mim flui, Tu! Corrente sem fim de homens e coisas em movimento!Tua aparência diária deslumbra –Pelo seu fascínio magnífico ou pelo seu sublime terror –

arte e cidades 2ed.indd 63 04/11/15 18:07

64

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Os estranhos de todas as idades; a dança rápidaDe cores, luzes e formas; o barulho ensurdecedor;Os que vêm e os que vão, face a face,Face após face; o cordão de mercadorias cintilantes,Loja após loja, com símbolos, nomes brasonados,E todas as honras do comerciante enaltecidas.(Prelude, 1799-1805, BRESCIANI, 1985, p. 35, tradução nossa)

Entretanto, a linguagem que registrou a formação dessa sensibilidade para com a vida urbana mais difundida foi certamente a literatura de ficção ou romance. Walter Benjamin é ainda, a meu ver, o autor que com grande acuidade apreendeu a relação de reciprocidade entre o literato e seu público. Para Benjamin, a multidão era o tema da escrita literária e como contrapartida constituía também o público consumidor do romance. Nesse momento, o mercado substituía a posição ocupada até então pelo mecenas. A multidão ga-nhava uma face, ou melhor, a escrita literária descortinava suas múltiplas faces para o leitor: ele se reconhecia na trama romanesca. O elenco de personagens composto pelo literato lhe atribuía uma identidade, sublinhava características do homem urbano, modo de se vestir, de andar, de falar, de se comportar, em suma. Os lugares pelos quais andava assumiam a grandeza de lócus literário, mereciam a atenção do autor, ganhavam publicidade. Benjamin (1989, p. 114) indica como Eugène Sue, “o mestre neste gênero, que começava a se tornar fonte de uma espécie de revelação para o pequeno burguês [...] foi eleito em 1850, por grande maioria, para o Parlamento, como representante da cidade de Paris.”

Sue e Baudelaire conheciam as entranhas da vida parisiense e seus textos exalam o à vontade do habitante da cidade. O leitor se vê captado por essa de-senvoltura e toma a ficção pela própria vida da capital francesa. Já Engels, um forasteiro, sem o mesmo à vontade, sente-se atônito perante o que vê na chegada a Londres. Seu texto reproduz o quanto a cidade o espanta e choca do ponto de vista estético e moral. Observa a multidão à distância, a descreve e a submete abertamente a uma análise mediada por noções e conceitos. (BENJAMIM, 1989, p. 115) Embora a escrita do observador alemão se aproxime bastante da forma literária – há descrições formidáveis; verdadeiros quadros fotográficos tintos com as sombrias cores do sublime – sua escrita define o lugar crítico de onde o autor fala desde o início: o custo social da imensa riqueza da Inglaterra.

arte e cidades 2ed.indd 64 04/11/15 18:07

65

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

Navios carregados com mercadorias do mundo inteiro, a dimensão espacial da cidade, a magnificência de seus edifícios públicos, privados e religiosos; as docas, por exemplo, estavam em proporção inversa à imensa miséria das condições de vida do trabalhador. O descuido com que os empregadores ou os burgueses tratavam do hábitat operário e mesmo das condições físicas das fábricas constituía uma das mais terríveis demonstrações de ser o lucro (teo-rizado por Karl Marx em O capital com os conceitos de mais valia absoluta e relativa) o objetivo primeiro (e único) da atividade produtiva.

Engels registra em A situação de classe trabalhadora, publicado em 1845, a promiscuidade em que viviam os trabalhadores, a falta de higiene de suas moradias e de seus corpos, numa época em que “a peste”, as temidas vagas epidêmicas de cólera e tifo, voltava a assolar a Europa e borrava a auto-imagem de ambiente “civilizado”. Registra a experiência física da aceleração do tempo no modo rápido pelo qual as pessoas se deslocavam nas ruas, numa clara tradução da velocidade imposta a todas as atividades. Expõe a transformação do trabalho em mercadoria. Ou seja, Engels, bem como outros observadores sociais, detém e explicita os elementos teóricos que lhe possibilitam ver e transmitir a expe-riência visual ao leitor (e para o observador, o sentido da visão é primordial7) através da aparência. Busca atingir o cerne dessa sociedade; adentrar, como Marx o faria poucos anos depois, os meandros dessa organização social para trazer à luz, ou dar a conhecer a seus leitores seu modo de funcionamento e suas estruturas.8 Modo de funcionamento que redundava na despersonalização e no anonimato, no caráter efêmero e contingente da modernidade; um mundo em que a constante transformação moldava a experiência de vida.

Contudo, essa acuidade do observador munido de noções e/ou conceitos parece diferenciar-se da espontaneidade do fluxo da escrita poética. Seria, então, a escrita poética o registro da experiência dos sentidos, do choque causado pelos inúmeros estímulos nervosos que atingem os habitantes das grandes cidades traduzido na forma de expressão dos sentimentos? Seria a escrita literária uma outra versão desse fluxo de impressões visuais, acústicas, olfativas, sensuais em suma? Seria a materialização do registro veemente da rejeição aos dogmas do método para a arte, um pressuposto do romantismo? (WILLIAMS, 1958, p. 39) Ou, alternativamente, pode-se interpor um nítido intervalo entre o impacto das sensações sensuais e a escrita literária e, desse modo, aproximar a prosa ficcional do relato conceitual do observador social? E, nesse caso, estaria correta a definição de Germaine de Staël sobre o teor das ficções quando, em

arte e cidades 2ed.indd 65 04/11/15 18:07

66

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

1795, disse que nelas “tudo é ao mesmo tempo inventado e imitado, nada é verdadeiro, porém tudo é verossimilhante”? (1979, p. 39)

É importante reter a noção de verossimilhança ao percorrermos os textos literários, já que constitui evidência notável o recurso à poesia e à literatura para se falar das cidades do século XIX, estudá-las como grandes observató-rios sociais do mundo moderno ou da sociedade industrial. Vejamos o que os estudiosos da literatura têm a dizer sobre esta questão.

Raymond Williams refez em dois livros fundamentais, Cultura e Socie-dade (1958) e Campo e Cidade (1973), o percurso histórico da relação entre a sociedade industrial e a produção da cultural. A condição de crítico literário permitiu que aproximasse suas impressões às do poeta William Wordsworth ao relatar a semelhança da experiência de suas respectivas chegadas a Londres. Os dois vinham do campo e Williams de uma aldeia aos pés das Black Moun-tains, na divisa de Gales. Williams transcreve o trecho do registro poético do impacto visual causado em Wordsworth pela paisagem da capital inglesa vista a partir da ponte de Westminster: “Nada há na terra de maior beleza: só um insensível contempla vista tão límpida sem se empolgar:[...] torres e cúpulas se elevam no ar em luminosa e suave majestade”. Em seguida reconhece em si o mesmo sentimento em pleno século XX, em relação a Londres e a muitas outras cidades

eu próprio o experimentei muitas e muitas vezes: os grandes edifícios da civilização; os pontos de encontro; as bibliotecas e teatros, as torres e cúpulas; e – muitas vezes mais ainda emocionante – as casas, as ruas, a tensão e o entusiasmo de estar no meio de tanta gente, com tantos objetivos diferentes. [...] Como todo mundo, também já senti o caos dos metrôs e dos engarrafamentos de trânsito; a monotonia de casas idênticas enfileiradas; a opressão agressiva de multidões de desconhecidos. (WILLIAMS,1989, p. 16)

Esse sentimento, entretanto, só se configura para ele como experiência quando, já adulto, entra na faculdade, situação que incluiu o contato com “realizações concretas” que lhe deram a “sensação de ilimitadas possibilida-des, de encontro e movimento, esse fator permanente do sentimento que me inspiram as cidades”. Afinal, Williams, um habitante da área rural, só tomaria conhecimento da “literatura campestre” ao ter contato com “gente citadina, os

arte e cidades 2ed.indd 66 04/11/15 18:07

67

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

acadêmicos”, passando a reconhecer nessa literatura “uma versão influente do que realmente representava a vida campestre”, ou seja, “uma história cultural preparada e convincente”. (WILLIAMS, 1989, p. 23) Uma literatura que, diz, exigia do leitor a distância defensiva “de relatos sentimentalizados e intelec-tualizados da “Velha Inglaterra” e reconhecesse estar frente a uma posição de autores que se localizavam no tempo de suas infâncias, exalando em seus escritos uma nostalgia universal e persistente. (WILLIAMS, 1989)

Em suma, uma imagem traduzida na escrita fundada na idealização do campo. Nostalgia associada a uma tradição de poesia bucólica ou engajada em suas próprias intenções realistas? Williams (1989) indaga e alerta para os peri-gos de nos atermos a “uma continuidade meramente nominal” – atribuindo às palavras campo, cidade, metrópole um sentido único e originário. Para ele, a literatura de “lamentos campestres” marcara o tempo de “mudanças excep-cionais na economia rural”, repetindo o movimento que associara a cidade a diferentes elementos nos últimos cinco séculos: nos séculos XVI e XVII ao dinheiro e à lei; à riqueza e ao luxo no século XVIII, à imagem da turba e das massas no final do XVIII e no XIX, e finalmente à mobilidade e ao isolamento no século XX. (WILLIAMS, 1989)

A sensação de repetição nas representações da cidade se manifesta tam-bém em outros escritos que tomam um mesmo tema de reflexão. A maneira como Thomas Hardy se refere a Londres em 1887 mantém, diz Williams, uma certa continuidade em relação à de Wordsworth décadas antes: “Londres parece incapaz de se ver. Cada indivíduo tem consciência de si próprio, mas ninguém é consciente da coletividade como um todo [...]”. (HARDY, 1928, p. 271 apud WILLLIAMS, 1989, p. 291)

Ou, quando o autor descreve uma multidão considerando cada uma das pequenas formas humanas “como se fossem ovas do monstro maior”:

À medida que a multidão vai se tornando mais densa, ela perde o caráter de aglomerado de uma infinidade de unidades e transforma-se num todo orgânico, uma criatura negra semelhante a um molusco, que nada tem em comum com a humanidade, que assume as formas das ruas nas quais se coloca e estende horrendas excrescências e membros nos becos vizinhos; uma criatura cuja voz emana de sua superfície escamosa, que tem um olho em cada poro de seu corpo. (HARDY, 1928, p. 129 apud WILLIAMS, 1989, p. 293)

arte e cidades 2ed.indd 67 04/11/15 18:07

68

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Escrito que Williams (1989, p. 291) aproxima ao de Thomas Carlyle, referindo-se também a Londres em 1831:

Como os homens são apressados aqui; como são caçados, perseguidos de modo terrível, impelidos a andar a toda velocidade! Assim, por uma questão de autodefesa, não podem parar e olhar uns os outros. [...] Ali, em suas pequenas celas, separados por paredes de tijolo ou madeira, permanecem estranhos.

Anotações que, por seu teor negativo, contrastam com as escolhidas por Joseph Rickwert (2004) ao recortar partes do poema The excursion de Wor-dsworth, publicado em 1814:

Do germe de alguma aldeia humilde, aqui rapidamenteSurgiu uma enorme cidade [...] e lá,Onde antes não se erguia uma única casa,Abrigos humanos reunidos irregularmente...Sobre os quais a fumaça de persistentes fogosPara permanente e abundante, assim como guirlandasDe vapor brilhando ao sol da manhã [...].

Que logo revelam, porém, ser um dos lados de um mundo cuja faceta sombria se expunha na hora em que o turno da noite vinha substituir os tra-balhadores do dia:

Agora são regurgitados os ministros do dia;E, à medida que saem do empilhamento iluminado,Um novo grupo vai ao seu encontro na porta lotada – [...] homens, moças, jovens,Mães e crianças, meninos e meninas,Entram, e cada um retoma a faina habitualDentro desse templo, onde é oferecido Ao ganho, o ídolo maior do reino,Perpétuo sacrifício[...].(RICKWERT, 2004, p. 47)

A ênfase nos contrastes oferecidos por cidades como Londres, já no início do século XIX, constitui traço evidente da escrita poética e literária fortemente alimentada por escritos políticos, como os de Edmund Burke. Considerado o

arte e cidades 2ed.indd 68 04/11/15 18:07

69

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

primeiro pensador britânico moderno de viés conservador, sua análise dos acon-tecimentos revolucionários franceses de 1789 chama a atenção para a ameaça de uma possível reprodução de levantes populares na Inglaterra. Não há em Reflexões sobre a Revolução em França9 uma posição saudosista de uma situação idealizada do passado e a ser reconquistada. Suas críticas, por vezes, ásperas encontram-se inseridas no debate com os “radicais” ingleses que viam nos acontecimentos na França a imagem de uma possível sociedade liberta de privilégios milenares. Para Burke (1982), esses críticos não davam o devido valor à forma como os britânicos haviam adquirido um século antes suas próprias liberdades inscritas na Declaração de Direitos da Revolução Gloriosa de 1688. Seu texto talvez seja o primeiro a não só considerar o que ocorria na França, “uma grande crise, não apenas francesa, mas européia” e ser a Revolução Francesa “a mais extraordinária que o mundo já viu”, mas também a se referir a ela como “espetáculo de mons-truosa tragicomédia [...] [frente ao qual] nós passamos do desprezo à indignação, do riso as lágrimas, da arrogância ao horror”. (1982, p. 52)

A metáfora do monstro acompanhou comentários sobre a representação das multidões na Revolução Francesa e foi utilizada recorrentemente no decorrer do século XIX, quando se falava de eventos considerados potencialmente destrui-dores da sociedade, mas também a dos componentes da multidão urbana no seu dia a dia. A metáfora-imagem do monstro teve o poder de aliar uma dimensão estética mecânica, em referência à Revolução Industrial, a uma dimensão estética orgânica por dramatizar e colocar em níveis aproximados os movimentos de multidões operárias na Inglaterra e populares em Paris.10

Por outro lado, Raymond Williams levanta uma questão interessante a respeito das reiteradas críticas das condições das cidades relacionadas à nostalgia, ou seja, a um “perpétuo recuo em direção ao passado”. Sublinha a persistência de antigas concepções de cidade presentes nos escritos de certos autores e/ou pessoas vivendo em tempos diferentes, aproximados por um sen-timento antiurbano romântico. Escritos nos quais, como o de Engels, a cidade é apresentada em tons sombrios; escritos fortemente marcados pela retórica do sublime, em posição equivalente à estética do pitoresco, tão explícita nos textos que apresentam ao leitor a imagem do bucolismo campestre, exatamente no decorrer do processo em que a extensão do cultivo da terra trazia como subproduto o gosto pela natureza inculta, o cultivo do gosto pelo “pitoresco”. (WILLIAMS, 1989)

arte e cidades 2ed.indd 69 04/11/15 18:07

70

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Assim como as descrições detalhadas da natureza constituíam um ele-mento característico da literatura das décadas finais dos setecentos, as cidades são descritas e reveladas ao público pelo filtro do olhar aguçado do autor oi-tocentista. (WILLIAMS, 1989) Charles Dickens fez de Londres o ambiente da trama da maioria de seus romances. A heterogeneidade dos habitantes, a aglomeração de pessoas e de edificações, umas magnificentes em sua singula-ridade, outras se reproduzindo na monótona repetição do mesmo, o intenso e aleatório movimento das ruas, as figuras suspeitas e sombrias deslizando por ruelas infectas na escuridão da noite, os meninos ladrões sempre prontos a se apossarem das carteiras dos desavisados transeuntes, a correria dos empregados no trajeto para seus escritórios, e tantas outras cenas de rua, foram aspectos da cidade usados para falar em linguagem literária da aceleração do tempo e da submissão do homem às rígidas jornadas de trabalho, dos perigos potenciais a ameaçar diariamente a população, da sujeira das ruas contrariando os preceitos da higiene prescritos pelos médicos sanitaristas.11 Podemos aceitar ser sua escrita literária mero registro de um olhar agudo? Ou seria mais prudente estabelecer uma íntima conexão entre vários tipos de escrita em sua dependência recíproca? Afinal, Dickens, tal como Émile Zola, manteve cadernetas de anotações feitas in loco, com o intuito de dar maior verossimilhança a seus romances e relatórios médicos e da administração pública, foram abundantemente utilizados por vários autores. O procedimento dos literatos do século XIX mostrava plena sintonia com as considerações de Germaine de Staël (1979, p. 40) no final do século XVIII a respeito da escrita ficcional moderna:

Nos bons romances (referia-se a Richardson e Fielding) nos quais o autor se propõe a acompanhar a vida seguindo exatamente as gradações, os desenvolvimentos, as inconseqüências da história dos homens e o retorno constante do resultado da experiência para a moralidade das ações, constituem uma vantagem para a virtude, os acontecimentos são inventados; mas os sentimentos estão de tal modo naturais que o leitor freqüentemente crê que nos dirigimos a ele com a simples precaução de mudarmos os nomes próprios.

arte e cidades 2ed.indd 70 04/11/15 18:07

71

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

verossimilhança e realismo

Proponho uma leitura dos escritos de Charles Dickens a partir desse ponto de vista. Em seus romances se percebe uma clara estratégia narrativa: a apresentação do caos aparente da grande capital inglesa como forma intencional de prender o leitor na riqueza dos detalhes que, deixa claro, poderiam com frequência passar despercebidos aos olhares incautos. Armada a trama sobre a aparência de caos, Dickens tece pouco a pouco os fios que ligam personagens dispersos a partir de um elemento organizador. Há nessa estrutura da narrati-va a explícita definição do lugar do autor, esse “personagem ausente”, porém onividente, que define as características dos personagens e do ambiente em que a trama transcorre. Dickens monta e conduz a trama, ao mesmo tempo em que dirige a atenção do leitor; ele, exímio na arte de passar em seus romances críticas sociais, mensagens moralizantes e códigos de conduta.12 Seus romances não começam com um crime a ser desvendado, mas, tal como na literatura policial, a trama só revela no final a complementaridade das várias situações.

Sennett (1988, p. 212) disse que Conan Doyle, criador do personagem Sherlock Holmes, ensinava a arte de observar sinais. Uma arte tão bem cultivada por Balzac que pelos detalhes dos trajes, dos trejeitos e tiques nervosos, pelo modo de andar e olhar de seus personagens caracterizava-os. São sutilezas de que a escrita nada ingênua, menos ainda espontânea do literato, utiliza para passar ao leitor uma lição subliminar: estimula nele o sentimento de visualizar e partilhar uma situação verídica. Em Outro estudo de mulher, Balzac (1989) ironiza o com-portamento da nova rica e da burguesa por imitarem o comportamento da femme comme il faut, desejosas de se alçarem ao nível da aristocrata. Entretanto, simu-lando o olhar de um observador arguto, Balzac passa a sensação de estar vendo fitas que evidentemente foram repassadas para novo uso, alfinetes e colchetes no ajuste de vestidos mal feitos e as longas horas de peregrinações pelas lojas, necessárias quando o intuito são aquisições ao menor preço, detalhes denun-ciadores do arraigado traço mesquinho do poupar burguês e pequeno-burguês (o uso da relação entre custo-benefício), em tudo contrário aos descuidados dispêndios aristocráticos. Essa leitura do caráter pelas aparências percorre os romances e mereceu de Thomas Carlyle uma reflexão também eivada de crítica irônica em Sartus Resartus, uma nova Filosofia das roupas (1830-1831).

arte e cidades 2ed.indd 71 04/11/15 18:07

72

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Acredito, porém, ter sido Émile Zola, o escritor mais obsessivamente apegado aos detalhes na elaboração do ambiente de seus romances e do ca-ráter dos personagens. Au Bonheur des dames (1883), Le ventre de Paris (1873), La curée (1871), Pot-Bouille (1882), Paris, Travail,13 para citar alguns, mesclam temas sociais com longas descrições de lugares de uso coletivo, mercadorias expostas, edifícios e sua ocupação, de modo a saturar o leitor com informa-ções e fazê-lo adentrar pela imaginação o ambiente da trama. Ao dar relevo ao caráter e às características físicas dos personagens, define seus lugares sociais e atitudes previsíveis. Tomo como exemplo o parágrafo inicial de Pot-Bouille:14

Na Rua Neuve-Saint-Augustin, uma confusão no trânsito fez parar o carro de praça carregando três malas, que levava Otávio da estação de Lyon. O rapaz abaixou o vidro de uma das portas, apesar do frio já cortante daquela sombria tarde de novembro. Surpreendia-o o declínio brusco do dia, naquele quarteirão de ruas estranguladas, todas fervilhantes de multidão. As blasfêmias dos cocheiros chicoteando os cavalos que resfolegavam, o acotovelamento sem fim das calçadas, a fila de lojas imprensadas, transbordantes de vendedores e de fregueses, o atordoavam; pois, se sonhara ver uma Paris mais limpa, não a supunha de trato tão ríspido; a sentia publicamente franqueada aos apetites das pessoas vigorosas e sólidas. (ZOLA, 1960)

Ao chegar à Rua de Choiseul, Otávio, o personagem central da trama, desce do carro e passa a observar o edifício onde se instalaria:

uma grande construção de quatro pavimentos ... [Otávio] media-a, examinava-a com um olhar maquinal, desde a casa de sedas dos rés-do-chão e da sobreloja, até as janelas recuadas do quarto andar, abrindo para uma estreita varanda. (ZOLA, 1960)

Sem que haja uma ruptura clara entre o que Otávio vê e o que o autor deseja que seu leitor veja através de seu olhar crítico, Zola passa a relacionar as características vulgares da casa, despercebidas aos olhos desavisados do per-sonagem, um “provinciano” recém-chegado à capital:15

No primeiro andar cabeças de mulher sustentavam uma sacada com balaústre de ferro fundido muito trabalhado. As janelas tinham caixilhos complicados, grosseiramente talhados com desenhos vulgares; e embaixo, acima da porta de entrada dos carros, mais carregada ainda

arte e cidades 2ed.indd 72 04/11/15 18:07

73

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

de ornamentos, dois cupidos desenrolavam um cartucho, onde se encontrava o número, que um bico de gás do interior iluminava à noite. (ZOLA, 1960)

Na página seguinte, outras observações do autor sobre o vestíbulo e a escada de “um luxo gritante” e dos “painéis da entrada de imitação de mármore”, expõem o conhecimento especializado do autor e dão conta do interior da casa, apresentada ao personagem pelo arquiteto Campardon. Este não poupa elogios aos dispositivos do conforto que mantinham até as escadas aquecidas na clara sugestão de quanto se valorizava os modernos equipamen-tos como indícios de status social. Quando faz alusão ao olhar “maquinal” de Otávio em seu exame da casa, a única observação a ele atribuída pelo autor é a do aborrecimento que sente ao ver que o tapete vermelho da escada não chega ao 4º andar no qual ficava seu quarto. Essa observação de Zola sugere com ironia a futilidade da preocupação com o luxo nitidamente de mau gosto. Desse modo, dá a conhecer ao leitor o ambiente compartilhado por outros moradores-personagens e um traço do caráter da personagem principal que aos poucos ganha contornos mais nítidos na trama narrativa.

Os detalhes com que se dá a apresentação do ambiente em que Otávio iniciaria sua vida parisiense repetem-se nos outros romances de Zola. Em Paris, cuja trama se desenrola no bairro popular de Montmartre, o autor contrasta o leste da cidade pobre com a zona oeste rica, elemento fundamental para entender a ação dos personagens, em especial a dos anarquistas:

Em todo o leste da cidade, os bairros de miséria e de trabalho pareciam submersos na fumaça avermelhada onde se adivinhava os canteiros de trabalho e as fábricas; enquanto na direção oeste, nos bairros de riqueza e desfrute, a nebulosidade se iluminava, formava somente um fino véu, imóvel de vapor. [...] Um Paris de mistério, envolto em nuvens, como se estivesse escondido pela cinza de algum desastre, meio escondido no sofrimento e na vergonha daquilo que sua imensidão escondia.16 (PARIS, p. 35. Tradução da autora)

Zola foi talvez o literato mais preocupado com dar “realismo” aos ro-mances.17 Seus Carnets d’enquêtes reunidos com o subtítulo Une ethonographie inédite de la France (1986) revelam o cuidado com que preparava a ambientação e a caracterização dos personagens como cuidadosa etapa preparatória da escrita.

arte e cidades 2ed.indd 73 04/11/15 18:07

74

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Entre suas anotações se revela o autor atento às particularidades necessárias para relacionar ambientes e personagens para a montagem de, por exemplo, La Curée: a casa (hôtel particulier) da ilha São Luís onde o personagem Renée Saccard, filha de um austero magistrado, fora criada, respirava respeitabilidade, bairro tranquilo cercado pelo rio Sena, edifício em pedra “sem esculturas”. Casa em nítido contraste com aquela em que passara a viver com seu marido financista, na qual grades douradas, fonte e marquise de vidro, galerias dou-radas em seu interior de salões mobiliados com madeira vermelha e dourada, revestidos de seda, “tudo muito dourado, cornija, teto e moldura dos espelhos, grandes consoles suportando vasos da China, longas mesas de pés dourados [exala] a ostentação de riqueza presente em todos os aposentos”. (ZOLA, 1986) As anotações foram complementadas pelo esboço da planta baixa da estufa na qual se cultivava vegetação exótica.

Sua obsessão pelo “realismo” foi ao limite de adaptar o livro do médico Claude Bernard – Introduction à l’étude de la médecine expérimentale (1865) – para propor uma base segura de método para estimular o literato a ser tornar adep-to da experimentação, “um cientista”. Entusiasmado com as possibilidades abertas pela leitura de Bernard, indagava se seria possível a experiência como etapa da elaboração literária, já que em termos de método, tradicionalmente se empregava somente a observação. Há, porém, em suas indagações, algo a mais do que a finalidade de apresentar ao leitor com “realismo” a complexa sociedade francesa da segunda metade do século XIX. A seu ver, ao invés de contentar-se com a condição de observador de fenômenos sociais que os re-colhia tal como se apresentavam, o literato deveria aceitar a lição da medicina experimental e, deslocando-se para a posição de experimentador, usar métodos pelos quais pudesse variar ou modificar, com alguma finalidade, as condições nas quais os acontecimentos se davam. Sugeria a utilidade de se aplicar esse método na produção do “romance naturalista”, pois comungava a certeza de que “se a observação mostra, a experiência instrui”.

Sua proposta dirige-se ao grupo de produtores de romances em particular e alia a dimensão do observador-experimentador a uma finalidade pedagógica: o intuito de fazer de “nós romancistas os juizes de instrução dos homens e de suas paixões”. Ao acompanhar os progressos da ciência o literato estaria apto a apreender “as leis do pensamento e das paixões”; chegaria inclusive, no futuro, a encontrar “o determinismo de todas as manifestações cerebrais e sensuais do homem”. Em uma evidente concepção de divisão do trabalho intelectual em

arte e cidades 2ed.indd 74 04/11/15 18:07

75

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

disciplinas especializadas, afirmava caber à medicina estudar “o meio intra--orgânico” e ao literato estudar “o meio social”. A afirmação baseava-se em uma certeza:

O homem não vive sozinho, vive em sociedade, em um meio social e, para nós romancistas, esse meio social modifica continuamente os fenômenos. Nosso grande estudo reside aí, no trabalho recíproco da sociedade sobre o indivíduo e do indivíduo sobre a sociedade [...] A partir disso, veremos que se pode atuar sobre o meio social agindo sobre os fenômenos [...] Eis aí o que constitui o romance experimental: possuir o mecanismo dos fenômenos humanos, mostrar as engrenagens das manifestações intelectuais e sensuais tais como a fisiologia nos explica, a influência da hereditariedade e das circunstâncias ambientes [...].(ZOLA, 1971, p. 73)

Sua certeza de ser possível atingir a objetividade da experimentação valia--se do exemplo da medicina que passara da condição de arte para a de ciência. Daí sua pergunta: “por que a literatura não se tornará por sua vez uma ciência, graças ao método experimental? Para ele tratava-se de uma “evolução fatal” que alcançaria o teatro e mesmo a poesia, pois acompanhava “a evolução naturalista que conduzia o século”. Em suma, se havia “um determinismo absoluto para todos os fenômenos humanos, a investigação tornava-se um dever”, cabendo ao literato “atuar sobre os caracteres, sobre as paixões, sobre os fatos humanos e sociais, tal como o químico e o físico operam nos corpos brutos, como o fisiologista opera nos corpos vivos”. (ZOLA, 1971, p. 59, 97)

No texto do Romance experimental, Zola leva ao limite sua proposta: con-fere ao romance o estatuto de construção textual elaborada a partir do olhar arguto do literato e estimula práticas sistemáticas que pretendiam alcançar objetividade científica no domínio das relações sociais. Não foi o único a nu-trir essa pretensão. Sennett (1988, p. 213) diz que “em meados do século XIX, num nível sofisticado, a palavra ‘etologia’ era usada por J. Stuart Mill e outros escritores para significar a ciência do caráter humano tal qual se pode deduzir das aparências humanas”.18

No final do século XIX, a ambição do literato de re(a)presentar a socie-dade urbana moderna ao leitor será assumida pelas ciências sociais. Pode-se acompanhar pela produção impressa o longo processo no qual observadores sociais como Tocqueville, Arthur Young, Friedrich Engels, Henry Mayhew,

arte e cidades 2ed.indd 75 04/11/15 18:07

76

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Eugène Buret, Villermé, Flora Tristan, e tantos outros, dentre eles numerosos médicos higienistas, foram aos poucos cedendo lugar aos pré-sociólogos, como Auguste Comte e Frédéric Le Play (Les Ouvriers européens, 1855-70). Na Ingla-terra, Charles Booth, e o casal Beatrice e Sidney Webb consideravam os méto-dos de trabalho científico uma base segura e confiável à sua ação filantrópica e política. A competição entre a literatura e a nascente sociologia percorre toda a segunda metade do século XIX colocando no cerne do conflito a oposição entre a fria razão e a cultura dos sentimentos. Processo que se estende até a sociologia alcançar e assegurar a condição de disciplina no mundo acadêmico quando Durkheim assume um cargo na Sorbonne em 1902 e exige de seus alunos que se ativessem aos métodos das ciências naturais e, sobretudo, se abstivessem de qualquer interpretação.19

Na trilha do repertório de observações in loco ou pesquisas de campo feitas pelo autor de ficções literárias, colecionar fatos passou, para o sociólogo, a corresponder o mesmo que a coleta de documentos significava para o histo-riador. Sem a pretensão de atribuir prioridade ao literato, podemos indagar o quanto seus procedimentos estiveram na base dos métodos da antropologia ou o quanto as trocas entre as diferentes disciplinas e formas de escrita se mesclam e se alimentam reciprocamente. Creio que cabe aqui também a indagação sobre a íntima relação entre a produção acadêmica das ciências humanas em sua intenção de manter distância da escrita literária de modo a desenvolver um estilo com pretensão à objetividade aparentemente descomprometida de posições políticas ou fundamentada na posição política considerada correta. A trajetória da escrita literária prossegue de algum modo na elaboração textual de imagens, posição assumida pela fotografia cuja pretensão à objetividade se materializava na imobilização de um “fato social”. (LEPENIES, 1990)

A trajetória dirigida pela pretensão à objetividade não se apresenta, entre-tanto, linear, nem mereceu a adesão de todos os literatos. Vários autores, entre eles os ingleses, Matthew Arnold e T.S. Eliot, lembra Lepenies, mantiveram-se na posição que creditava à literatura a faculdade de falar ao coração; sua intuição clarividente opunha-se às análises dos sociólogos tão obcecados com a intenção de adotar o modelo das ciências da natureza, apoiando-se em estatísticas classi-ficatórias e “dissecações” dos componentes da sociedade. Numerosos autores, como Samuel Smiles, C. F. G. Masterman, B. Seebohm Rowntree, Walter Besant prosseguiram nos caminhos abertos por observadores sociais.20 Um dos mais sistemáticos observadores, o jornalista Henry Mayhew publicou no

arte e cidades 2ed.indd 76 04/11/15 18:07

77

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

Morning Chronicle, entre 1849 e 1850, uma série de artigos sob o título London Labour and the London Poor. Os artigos resumiam resultados de sua peregrinação pela capital inglesa na tentativa de fazer um levantamento o mais completo possível da imensa massa de trabalhadores informais que povoavam as ruas de Londres com o intuito declarado de dar a conhecer aos mais afortunados os sofrimentos e o frequente heroísmo do pobre sofredor.

Mayhew (1968, v. 1) define um objeto particular – the Street-Folk – pois, como diz na introdução ao primeiro dos quatros volumes da publicação parcial de seus artigos que soma 2000 páginas: “cada tribo civilizada ou sedentária geral-mente abriga alguma horda nômade”. O resultado de suas investidas lhe permi-tiu inventariar “as raças nômades da Inglaterra”, ou mais especificamente, aque-les que obtinham seu sustento de algum tipo de atividade desenvolvida nas ruas. À parte os vagabundos – “semi-ladrões, semi-mendigos, prostitutas e sem-teto” – relaciona as seis espécies de Street-folk: “Street-Sellers, Street-Buyers, Street--finders, Street-Performers, Artists and Showmen, Street-Artizans e Street-Labourers”.21 Faz de entrevistas com esses personagens o material privilegiado para relatar seus costumes e diversões; transcreve parte das falas de seus entrevistados e os artigos são acompanhados por desenhos feitos a partir de daguerreotipos de Beard. Mayhew diria se tratar de apresentar ao público leitor pela primeira vez “a história de um povo pelos próprios lábios dele – dando uma descrição literal de seu trabalho, ganhos, condições de vida, sofrimentos, em sua própria linguagem ‘sem verniz’ [...] pela observação pessoal dos lugares e em contato direto com as pessoas”. (MAYHEW, 1968, n. XV, p. 1-4)

No início do século XX, escritos assemelhados continuam a ser publica-dos e contam com amplo público leitor. Em East London de 1901, por exemplo, Walter Besant descreve a área a leste do rio Lea, um afluente do Tamisa, uma área da cidade pobre e nova que se tornara densamente povoada e coberta de casas no período de menos de um século. Contrasta essa área com a que se situa a oeste da City, a dos bairros ricos, sublinhando que quando se trata do “East London, não há necessidade de se falar em história”. Para dar ao leitor uma ideia da situação da região, diz ser significativo que nessa “cidade” de dois milhões de habitantes (a população do East London) não houvesse um único hotel, nem restaurantes, o que mostrava não ser ela procurada por visitantes. (BESANT, 1902, p. 9) Tal como o livro de Mayhew, no qual gravuras ilustram e completam o texto, as páginas escritas do livro foram intercaladas com dese-nhos das ruas do bairro, fábricas e a área das docas.22

arte e cidades 2ed.indd 77 04/11/15 18:07

78

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

a literatura adentra o urbanismo

Voltando à ideia inicial deste artigo, o que mais me surpreendeu ao ler autores que escreveram sobre cidades e urbanismo, e sobre a condição do habitante das grandes cidades foi a constante presença de textos literários uti-lizados como documentos, na maioria dos casos sem a necessária mediação. São apresentados como retratos de época da sociedade; um espelho, ainda que ao dar ênfase especial a determinados aspectos da “realidade” social lhe impusesse certa deformação. O envolvimento pelos textos literários confirma o sucesso dos intuitos “românticos” ou “naturalistas” dos autores: “reapresen-tar a ‘Essential Reality’ por meio do controle da faculdade Imaginação”, como postulou Ruskin. (WILLIAMS, 1958, p. 39) Algo como se os especialistas em estudos urbanos – e aqui se congregam os que escrevem história das cidades e os que produzem história do urbanismo – pudessem alcançar uma imagem verdadeira ou a re-apresentação verídica das principais questões do século XIX, no decorrer do qual a cidade se tornou um problema exigindo a intervenção do saber especializado. Tal como os românticos acreditaram ser a “atividade do artista ler o segredo do universo” e os naturalistas ser a missão do literato apresentar a sociedade com a objetividade do cientista, as análises da formação do pensamento urbanístico parecem desejar alcançar ou penetrar a esfera da “realidade urbana”.

Leonardo Benévolo, um dos autores de leitura obrigatória para as áreas de história urbana e história do urbanismo, recorre em História da Cidade a extensas transcrições do livro de Engels para expor as condições de vida nos bairros pobres de Londres e cidades industriais, completando a escrita com representações iconográficas de época e de meados do século XX, de modo a mostrar a persistência da precariedade do habitat operário. No capítulo “A cidade industrial e seus críticos” de História da Arquitetura Moderna, Benévolo recorre a Engels, mas também ao pensador político Thomas Carlyle e ao lite-rato Charles Dickens (1969, p. 69), além de citar vários outros observadores sociais da época e, embora sublinhe as orientações políticas de seus autores, não estabelece diferenças entre o gênero de trabalho de cada um deles. A longa citação da parte introdutória de Hard Times de Dickens (1969) é acompanhada da observação de que,

arte e cidades 2ed.indd 78 04/11/15 18:07

79

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

não obstante a hostilidade preconcebida, a descrição de Dickens não é nem um pouco superficial, pelo contrário: exatamente graças à animosidade que a sustenta, penetra na realidade do ambiente industrial muito mais do que tantos discursos genéricos em louvor do progresso, onde a cidade é apresentada como um imenso canteiro de obras em festa.

Ao deslocar sua análise para Paris, Benévolo apoia-se em Baudelaire para relatar as mudanças na vida urbana de uma capital europeia: “Apenas um grande poeta, em meados do século XIX, percebe essa mutação em termos explícitos, e exprime tal fato no célebre dístico: “Le vieux Paris n’est plus; la forme d’une ville change plus vite, helàs, que le coeur d’un mortel!”. E com essas e várias outras transcrições organiza o argumento com o qual se propõe mostrar “até que ponto a cultura do século XIX estava ciente das transformações em curso nas cidades e nas terras [...]” endossando as opiniões emitidas pelas avaliações pessimistas. (BENÉVOLO, 1989, p. 151, 172)

De seu lado, Lewis Mumford, em A cidade na história de 1961, inicia e termina o capítulo sobre a cidade industrial com trechos do mesmo romance de Charles Dickens, utilizado por Benévolo (1989). Intitula o capítulo com o nome da cidade ficcional de Hard Times – Coketown. Mantinha assim na década de 1960 as referências de A cultura das cidades, de 1938, afirmando reconhecer nas grandes cidades “um novo tipo de cidade, o tipo a que Dickens, em Tempos Difíceis chamou Coketown.” E conclui: “Em maior ou menor grau, todas as cidades do Mundo Ocidental foram marcadas com as características de Coketown”. A seu ver, “A férrea disciplina da máquina” levara ao “caos as grandes cidades” e delas fizera “um campo de batalha”. Mumford utiliza a imagem de Coketown como modelo da cidade industrial inglesa do século XIX, um “paraíso paleotécnico” formado por “sombrias colméias, a fumegar ativamente, a bater, guinchar, a expelir rolos de fumo de doze a quatorze horas por dia...” Ao ambiente soturno, acrescenta as condições de trabalho: “[...] a rotina escrava das minas, cujo trabalho constituía o ambiente normal do castigo intencional para os criminosos, tornou-se o ambiente normal do novo trabalhador industrial”. (MUMFORD, 1961, p. 483)

Cotejar a citação de Mumford com a descrição da Coketown em Dickens (1969, p. 65) consiste em um exercício interessante:

arte e cidades 2ed.indd 79 04/11/15 18:07

80

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Era uma cidade de tijolos vermelhos, ou de tijolos que teriam sido vermelhos se a fumaça e as cinzas deixassem; mas da forma como as coisas se apresentavam, era uma cidade de um vermelho e um preto não natural, como a face pintada de um selvagem. Era uma cidade da maquinaria e de altas chaminés, das quais intermináveis serpentes de fumaça se exalavam incessantemente. [...] Continha várias ruas largas, todas muito semelhantes e numerosas ruas pequenas ainda mais semelhantes entre si, habitadas por pessoas igualmente assemelhadas, que entravam e saíam às mesmas horas, com o mesmo som sobre o calçamento, para realizarem o mesmo trabalho, e para os quais cada dia de hoje se assemelha ao ontem e ao amanhã, e cada ano a contrapartida do anterior e do próximo.23

Em Dickens, a analogia entre a cidade industrial inglesa e Coketown é um evidente recurso retórico. Não quero atribuir ingenuidade à transcrição do texto ficcional feita por Mumford, mas espero ter mostrado se tratar de textos de gêneros diferentes, no qual a escrita especializada do urbanista recorre, quase sem transição, à transcrição de grande poder sugestivo da imagem literária em apoio de seu próprio argumento.

As críticas de Mumford se aproximam das de Thomas Carlyle e Friedrich Engels ao deixar aflorar o viés romântico de seus escritos, embora as projeções futuras fossem opostas.24 Tal como Dickens, Carlyle, em 1829, baseara seu argumento em Signs of the Times na crítica à mecanização da produção e a cor-relata transformação do homem em autômato esvaziado da essência humana mantendo entre si unicamente relações de interesse monetário (cash nexus). Mumford volta seus olhos para uma idealização da “comunidade” e expõe no item “O conceito Social da Cidade” de A cultura das cidades o quanto se havia perdido da função social originária da reunião de homens em núcleos urbanos (1961, p. 493-498). Engels como Marx apostou na formação da consciência de classe entre homens destituídos de sua humanidade (condições de trabalho e habilidade manual) se reencontrando não mais nas restritas corporações de ofício, mas nas organizações operárias.25

Joseph Ryckwert, já no limiar do século XXI, também não limita o uso de textos poéticos e literários às descrições do impacto da capital inglesa sobre visitantes recém-chegados. Ao analisar os planos para as cidades industriais projetadas pelos autores denominados utópicos, coloca lado a lado o projeto de cidade nova de Tony Garnier e a cidade ficcional do romance O Trabalho de

arte e cidades 2ed.indd 80 04/11/15 18:07

81

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

Zola. As trocas entre romancista e “urbanista” merecem seu comentário sobre a maior sagacidade do romancista evidente no fato de o engenheiro-arquiteto fourierista ter transcrito longas citações do romance em versões posteriores do seu projeto. (RYCKWERT, 2004)

Essas trocas ou diálogos entre procedimentos de método de trabalho e textos de intelectuais produtores de gêneros diferentes parecem ter sido co-muns. No Anvant-propos à edição dos Carnets d’enquêtes de Emile Zola, Henri Mitterand aproxima a obra do escritor ao de outros romancistas, mas também daquelas “dos grandes sociólogos (neste artigo preferi nomeá-los observado-res sociais) franceses do século XIX – Parent Duchâtelet, Fréderic Le Play e Michelet”. Afirma que

os vinte anos de observação haviam posto em ação as três características principais da pesquisa etnográfica: o trabalho de campo, a observação de fenômenos particulares em grupos restritos e a análise e organização dos fenômenos observados para elaborar documentos descritivos e sínteses.

Confirma, pois, as observações de Lepenies sobre o quanto as ciências sociais seriam devedoras da literatura. Em minhas leituras também observei o modo como Vitor Hugo fez uso do relatório do médico Parent Duchâtelet na ambientação da fuga de Jean Valjean pelos esgotos de Paris durante os acon-tecimentos revolucionários de 1848 em Paris; também como Engels e Marx utilizaram os relatórios de médicos, juristas e parlamentares como documen-tos confiáveis para suas análises das condições de trabalho e de moradia dos operários. Nesses exemplos citados, há um evidente deslocamento de escritas baseadas em cânones diferentes.

O uso de textos literários nas pesquisas sobre o ambiente urbano persiste ainda hoje em dia em nossas pesquisas. Penso, portanto, que cabe a pergunta: estaria na força expressiva desses escritos, nas poderosas reconstruções de locais e personagens elaboradas por suas narrativas o ponto de atração incontornável? Sem dúvida há uma inter-relação íntima entre diversos tipos de escrita e, desse modo, pode-se indagar: por que nós, os estudiosos das cidades e do urbanismo, não lançaríamos mão dessa imensa gama de escritos que trazem aos dias atuais um tempo passado? Entretanto, tal como o relatório médico tem por base o saber especializado de sua época e textos dos pensadores e homens políticos

arte e cidades 2ed.indd 81 04/11/15 18:07

82

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

se estruturam pelo filtro de conceitos com os quais viam e analisavam a socie-dade, o autor de ficções também se subordinou, e ainda o faz, aos cânones de sua especialidade. Ou seja, tal como para o pesquisador de uma das disciplinas constituídas sobre bases teóricas definidas se interpõe entre ele e seu objeto, a mediação de um campo conceitual que lhe orienta e limita tanto o olhar como a escrita, uma segunda mediação se coloca entre o texto lido e seus leitores nem sempre familiarizados com o campo conceitual do autor. Além das inevitáveis “leituras interessadas” que com maior ou menor evidência orientam perspec-tivas de leitura. Essas colocações remetem para a noção de lugar de autor em que nos colocamos ao redigirmos nossos textos que também se subordinam a um campo conceitual nem sempre explicitado. Ou seja, se toda linguagem é válida como documento, cada linguagem precisa ser analisada a partir de seu próprio campo “disciplinar” e condições de produção.

Com essa inquietação retorno às observações iniciais sobre a prática da leitura silenciosa que nos isola e substitui a experiência, no sentido que lhe atribui Walter Benjamin, pelo relato ficcional literário e mesmo pela apresen-tação das experiências alheias com que somos bombardeados cotidianamente pela mídia. Penso ser importante voltar também a Germaine de Staël e a suas observações a respeito das ficções literárias, que denominava “ficções naturais”, e a noção de verossimilhança:

Os romances, ao contrário [da história], podem pintar os caracteres e os sentimentos com tanta força e detalhes que não há leitura que produza uma impressão tão profunda de ódio pelo vício e de amor pela virtude. A moralidade dos romances deve-se mais ao desenvolvimento dos movimentos interiores da alma do que aos acontecimentos que narram. [...] Tudo é tão verossimilhante em tais romances que nos persuadimos facilmente que tudo pode assim acontecer; não é a história do passado, mas, diremos, que é a do futuro. (STAëL, 1959, p. 25)

E prossegue didaticamente:

[...] É necessário acrescentar à verdade uma espécie de efeito dramático que não a desnatura, mas a coloca em relevo: é a arte do pintor, que longe de alterar os objetos, os representa de outra maneira mais sensível. [...] A narrativa mais exata é sempre uma verdade de imitação [...] o gênio a faz penetrar nas dobras do coração humano. [...] Pode-

arte e cidades 2ed.indd 82 04/11/15 18:07

83

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

se extrair dos bons romances uma moral mais pura, mais alta, do que de qualquer obra didática sobre a virtude. [...] Mesmo quando os escritos puramente filosóficos pudessem, tal como os romances, prever e detalhar todas as nuances das ações, sempre restaria à moral dramática uma grande vantagem; a de poder fazer nascer movimentos de indignação, uma exaltação da alma, uma doce melancolia, efeitos diversos das situações romanescas e uma espécie de suplemento da experiência; impressão esta que parecem fatos reais dos quais teríamos sido testemunhas. (STÄEL, 1979, p. 51)

Afinal, dizia ela ao iniciar seu ensaio sobre as ficções: não há faculdade mais preciosa para o homem do que sua imaginação. Concordamos?

notas

1 Choay incorpora na Introdução à antologia O urbanismo: utopias e realidades (1997) textos de pensadores aos quais chocam as condições físicas e morais das grandes cidades. Menciona dois grupos, os que são inspirados por sentimentos humanitários – dirigentes municipais, homens da Igreja, médicos e higienistas; e os pensadores políticos aos quais atribui “informações de uma amplitude e precisão notáveis”.

2 Pode-se ter ideia da ampla utilização por Ryckwert da poesia, literatura ficcional e relatos de viagens. Cito como exemplos: o poeta William Wordsworth: 47,53; os viajantes Arthur Young: 33,53 e Alexis de Tocqueville: 58; Restif de la Bretonne: 83; o pintor Pugin; os escritores Edward Bellamy, John Ruskin, Williams Morris, Thomas Carlyle, Julio Verne: 59,92,93; Emile Zola: 230-31.

3 Quanto à relação entre o convencer pelos argumentos lógicos e persuadir por meio de apelos emocionais, remeto aos textos que no decorrer do século XVIII trouxeram para o domínio do homem letrado a importância das teorias estéticas tanto no domínio das imagens como da retórica. Edmund Burke, Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo publicada na Inglaterra em 1757 (Ed.Unicamp/Papirus, 1993); Emmanuel Kant, Des observations sur le beau et le sublime (edição francesa do texto alemão de 1764 in Oeuvres philosophiques, vol.I, Gallimard, 1980, p. 437-509), Uverdale Price, Essay on the Picturesque, Londres, 1810, entre outros, como os de William Gilpin, Three Essays: On Picturesque Beauty; On Picturesque Travel; On Sketching Landscape, Londres, 1792. Para o tema deste artigo, o trabalho de Ed. Burke é fundamental. Uma importante reflexão sobre os escritos de Burke em Tom Furniss, Edmund Burke’s aesthetic ideology: language, gender and political economy in revolution, 1993. Em relação à noção de pitoresco, ver Stephen Copley e Peter Garside, The Politics of the Picturesque (1994).

4 Sobre a importância da experiência, já no final do século XVII, John Locke escrevia extensamente sobre questões relativas ao processo de conhecimento a partir do pressuposto de que não havia ideias inatas, a despeito da enorme diversidade de capacidade intelectiva inata, e que, ao nascermos, o cérebro constitui uma página em branco a ser preenchida por nossas experiências que formam um acervo mais rico na medida da diversidade e

arte e cidades 2ed.indd 83 04/11/15 18:07

84

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

quantidade de situações vividas. Of the Conduct of the Understanding (escrito em 1697, publicado postumamente em 1706) e An Essay concerning the Human Understanding (1690).

5 Sennett não data ou remete esta epígrafe a um específico livro de Tocqueville, mas suas citações remetem principalmente para A Democracia na América de 1835-1840.

6 J. Dyos e Michael Wolff ilustraram os dois volumes de The Victorian City: images and realities (1973) com 434 imagens selecionadas entre milhares.

7 Alain Corbin (1982) descreve longamente a importância da teoria sensualista, a experiência primordial dos sentidos na relação do homem com o mundo, que teria nos séculos XVII e XVIII privilegiado o olfato, comportando inclusive estudos detalhados da parte dos médicos (osphrèsiologie – estudo ou tratado do sentido olfativo) passando a privilegiar a visão no século XIX. Na relação com o meio urbano, diz Corbin (1982, p. 268): “Les savants de ce temps [séc.XVIII], observateurs incomparables des odeurs, proposent de la ville une image discontinue, ordenée par l´odorat, gérée par la hantise des foyers pestilentiels où germe l´épidemie”.

8 Lembro as descrições de Marx em O capital sobre as terríveis condições de trabalho e de moradia dos trabalhadores ingleses. Cf. cap. XV: Maquinismo e grande indústria; ver, por ex. item VII, e cap. XV “A manufatura moderna” no qual relata a promiscuidade entre familiares e estranhos amontoados em uma mesma casa precária em meio à sujeira reinante e diz: “Os corpos estão tão exaustos pela transpiração abundante durante o dia que toda precaução pela saúde é completamente negligenciada, o mesmo acontecendo com a limpeza e a decência. Um grande número dessas bibocas são verdadeiros modelos de desordem e sujeira. A pior face desse sistema é que as jovens que se empregam nesse gênero de trabalho permanecem desde a infância e por toda a vida associadas a canalha a mais abjeta.[...] Vestidas com alguns trapos sujos, as pernas nuas até acima dos joelhos, o rosto e os cabelos cobertos de lama, eles chegam a rejeitar com desdém qualquer sentimento de modéstia e de pudor. [...] Findo o rude trabalho do dia, elas se vestem mais corretamente e acompanham os homens nos cabarés”. (MARX, 1976, p. 329-330).

9 O livro Reflexões sobre a Revolução em França é de 1790 e nele Edmund Burke se posiciona contra a posição de defesa da revolução na França pela Sociedade da Revolução que, formada para avaliar os cem anos da Revolução Gloriosa na Grã-Bretanha, havia manifestado, a seu ver, entusiasmo e exaltação com o que se passava na França. Edição brasileira da Editora Universidade de Brasília, 1982.

10 Em “As faces do monstro urbano. As cidades no século XIX”, desenvolvo como os autores do século XIX recorreram à estética do sublime, a partir do livro de Edmund Burke publicado em 1757, Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo, (edição brasileira, Papirus/Unicamp, 1993) de modo a fazerem da metáfora do monstro argumento poderoso de persuasão de seus leitores. O artigo encontra-se na Revista Brasileira de História, n.8/9, ANPUH-Marco Zero, 1985.

11 Lembro, entre outros, Oliver Twist (1837), Nicholas Nickleby (1838), Pickwick Papers (1836-37), Bleak House (1852-53), Great Expectations, ambientados em Londres, e Hard Times (1854) em uma imaginária cidade do carvão. Para uma lista e comentários dos romances de Charles Dickens, ver a Introdução de Angus Calder para Hard times (1982).

12 Robert Pechman (2002) estuda com particular sensibilidade crítica alguns desses autores do séc. XIX que tiveram importância primordial na divulgação de códigos de conduta, inclusive higiênica e preceitos moralizantes.

arte e cidades 2ed.indd 84 04/11/15 18:07

85

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

13 Esse livro constitui o terceiro romance que Zola dedicou a cidade. Anteriormente pensou em escrever dois romances, um dedicado a Lurdes e outro a Roma. Foi publicado em 1898, e apresenta acontecimentos políticos e sociais, ocorridos em Paris nos anos de 1892, 1894 e 1895, época de intensa atividade empresarial relacionada à política, como o empreendimento que tornou possível atingir o Pacífico por meio da abertura do canal do Panamá, em 1888. Ver Introdução a Paris (STOCK, 1998) por Henri Mitterand. O ciclo dos Rougon-Macquart (1871-1893) é apresentado na p. 675 e segs.

14 Pot-Bouille recebeu na versão brasileira o título As mulheres dos outros, (1960). As citações constam do primeiro capítulo, p. 5-17.

15 Márcia Naxara (2006) analisa com muita acurada sensibilidade a polarização preconceituosa entre o parisiense e o provinciano na obra de Balzac.

16 No original: “Tout l´est de la ville, les quartiers de misère et de travail, semblaient submerges dans des fumées roussâtres, ou l’on devinait le soufle des chantiers et des usines; tandis que, vers l’ouest, vers les quartiers de richesse et de jouissance, la débâcle du brouillard s’éclairait, n´était qu’un voile fin, immobile de vapeur. [...] Un Paris de mystère, voilé de nuées, comme enseveli sous la cendre de quelque désastre, disparu à demi déjà dans la souffrance et dans la honte de ce que son immensité cachait”.

17 Ítalo Caroni diz “Todo artista é, a seu modo, um místico. Uma fé permanente sustenta e consolida o arcabouço geral da grande obra arquitetada ao longo de toda uma vida, [...] Assim é Zola, cuja crença naturalista alcança os contornos de uma verdadeira utopia”. In Do Romance. Emile Zola, São Paulo: Edusp-Imaginário, 1995, p. 9.

18 Ian Watt (1996, p. 13) acompanha a formação do romance e faz essa observação em relação ao termo “realismo”: “Evidentemente tal posição se assemelha muito à dos realistas franceses, os quais diziam que, se seus romances tendiam a diferenciar-se dos quadros lisonjeiros da humanidade mostrados por muitos códigos éticos, sociais e literários estabelecidos, era apenas porque constituíam o produto de uma análise da vida mais desapaixonada e científica do que se tentara antes. Não há evidência de que esse ideal de objetividade científica seja desejável e com certeza não se pode concretizá-lo; no entanto, é muito significativo que [...] os realistas franceses tivessem atentado para uma questão que o romance coloca de modo mais agudo do que qualquer forma literária – o problema da correspondência entre a obra literária e a realidade que ela imita”.

19 Lepenies (1990) dedica todo um capítulo do livro – Le roman jamais écrit: Beatrice Webb – às atividades do casal Webb e seus aliados. Charles Booth, iniciou em 1886 uma pesquisa que se prolongou por dezessete anos que é considerada os inícios das ciências sociais na Inglaterra publicada entre 1902 e 1903 com o título Life and Labour of the People of London. (LEPENIES, 1990) Há uma edição comentada de partes da pesquisa de Booth em Harold W. Pfautz, Charle Booth on the city: physical pattern and social structure: select writings. (1967).

20 Vários desses autores foram reeditados por Garland Publishing (New York e Londres): Samuel Smiles, Workmen’s Earnings, Strikes and Savings, 1861; Walter Besant, East London, 1901; C.F.G. Masterman, From the Abyss. Of Its Inhabitants by One of Them, 1902; B. Seebohm Rowntree, Poverty. A Study of Town Life, 1910. Neles há observações especializadas e relatos bastante próximos da escrita literária.

21 Numa tradução aproximada: vendedores ambulantes, compradores ambulantes, coletores de objetos encontrados nas ruas, performistas de rua, artistas, artesãos e trabalhadores de rua.

arte e cidades 2ed.indd 85 04/11/15 18:07

86

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

22 Besant retira várias informações do trabalho de Charles Booth Life and Labour of the People of London.

23 No original: “It was a town of red brick, or of brick that would have been red if smoke and ashes had allowed it; but, as matters stood it was a town of unnatural red and black like the painted face of a savage. It was a town of machinery and tall chimneys, out of which interminable serpents of smoke trailed themselves for ever and ever… it contained several large streets all very like one another, and many small streets still more like one another, inhabited by people equally like one another, who all went in and out at the same hours, with the same sound upon the same pavements, to do the same work, and to whom every day was the same as yesterday and tomorrow, and every year the counterpart of the last and the next.”

24 Ver em Marx Romântico, de Roberto Romano, a proximidade entre a crítica marxista do mundo industrial e o pensamento romântico do séc. XIX.

25 Essa aposta é enunciada já na Introdução a A situação da classe operária na Inglaterra (1845) de Engels e em especial no cap. XV do Iº volume de O Capital (1967) de Marx.

referências

BALZAC, Honoré de. Emílio Blondet professa. In: A comédia humana. Rio de Janeiro: Globo, 1989a. v. 4.

BALZAC, Honoré de. Outro estudo de mulher. In: _____. A comédia humana. Rio de Janeiro: Globo, 1989b. v. 4. Capítulo 20.

BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Robert Lafont, 1986.

BAUDELAIRE, Charles. Petits poemes en prose. Paris: Garnier, 1980.

BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1989.

BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BRESCIANI, Maria Stella. As faces do monstro urbano: as cidades no século XIX. Revista Brasileira de História, São Paulo: n. 8/9, p. 35-68, 1985.

BRESCIANI, Maria Stella. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. 10 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. Campinas-SP: Papirus: Unicamp, 1993.

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França. Tradutor: Renato de Assunção Faria. 2ed. Brasília: UNB, 1982.

arte e cidades 2ed.indd 86 04/11/15 18:07

87

Ma

ria

Ste

lla

Ma

rti

nS

Br

eS

cia

ni

ö

CARLYLE, Thomas. Signs of the times. In: Thomas Carlyle: selected writings. Londres: Penguin, 1980, p. 59-85.

CHOAY, Françoise. O urbanismo, utopias e realidades: uma antologia. Tradução de Dafene Nascimento. São Paulo: Perspectiva, 1997.

COPLEY, Stephen; GARSIDE, Peter (Ed.). The politcs of the picturesque: literature, landscape and aesthetics since 1770. New York: Cambridge University Press, 1994.

CORBIN, Alain. Le miasme et la jonquille: l´odorat et l´imaginaire social. 18e – 19e siècles. Paris: Aubier Montaigne, 1982.

DICKENS, Charles. Hard times. Londres: Penguin, 1969.

DYOS, H. J.; WOLFF, Michael. The Victorian City: images and realities. 2 v., Londres: Routledge, 1973.

EHRARD, Jean. L´invention littéraire au XVIIIe siècle: fictions, idées, société. Paris: PUF, 1997.

ENGELS, Friedrich. La situation de la classe laborieuse em Angleterre. Paris: Editions Sociales, 1960.

FURNISS, Tom. Edmund Burke’s aesthetic ideology: language, gender and political economy in revolution. New York: Cambridge University Press, 1993.

LEPENIES, Wolf. Les trois cultures: entre science et literature l’avènement de la sociologie. Paris: Maison des Sciences de L’homme, EMSH, 1990. [1985].

MARX, Karl. Le capital. Paris: Editions Sociales, 1976. livre 1.

MAYHEW, Henry. London Labour and London Poor. New York: Dover Publications, 1968. 4 v.

MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MUMFORD, Lewis. A cultura das cidades. Tradução de Neil R. da Silva. Belo Horizonte: Itatiaia, 1961.

NAXARA, Márcia. O (des) conhecimento do outro: pensando o “provinciano”. In: NAXARA, M.; MARSON, I. (Org.). Sobre a Humilhação. Uberlândia: EDUFU, 2006.

PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

PFAUTZ, Harold W. (Ed.). Charle Booth on the city: physical pattern and social structure: select writings. Londres: Phenix Books; Chicago: The University of Chicago Press, 1967.

arte e cidades 2ed.indd 87 04/11/15 18:07

88

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

ROMANO, Roberto. Corpo e Cristal: Marx romântico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.

RYCKWERT, Joseph. A sedução do lugar: a história e o Futuro da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SIMMELL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

STAëL, Germaine de. Essai sur les fictions suivi de de l’influence des passions sur le bonheur des individus et de nations. Paris: Ramsay, 1979.

VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradutor: Hilgegard Fiest. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

WILLIAMS, Raymond. Campo e cidade na história e na literatura. Tradutor: Paulo Henrique Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

WILLIAMS, Raymond. Culture & Society. 1780/1950. Nova Iorque: Harper & Row, 1958.

ZOLA, Émile. Carnets d’enquêtes: une ethonographie inedite de la France Apresentacion de Henri Mitterand. Oaris: Plon, 1986.

ZOLA, Émile. As mulheres dos outros. Rio de Janeiro: Vecchi, 1960.

ZOLA, Émile. Le Roman experimental. Paris: Garnier-Flammarion, 1971.

arte e cidades 2ed.indd 88 04/11/15 18:07

89 ö

selMa Passos Cardoso

Cidade e literatura: salvador nos séculos Xvii e Xviii*

Nosso objetivo principal neste trabalho foi fazer um estudo comparati-vo entre o discurso construído pela literatura e pela história no século XVII a princípios do século XVIII sobre a cidade de Salvador. Buscamos estabelecer as diferenças e as semelhanças entre os distintos estilos que aqui se estudou através das imagens estabelecidas pela mentalidade do homem barroco, do qual Gregório de Mattos e Antonio Vieira representam.

A possibilidade de confrontar Literatura e História para falar da cidade de Salvador provém do fato da literatura baiana haver criado uma ideia de Cidade que não foi exterior ao discurso histórico. A obra de Gregório de Mattos é a primeira obra de grande importância na literatura brasileira, e nela podemos contemplar a cidade de Salvador em toda sua complexidade. No transcurso do tempo, Salvador tem sido representada na literatura como a cidade da ale-gria, da sensualidade e da irreverência,1 e essas qualidades são de certa forma interpretada, como características de seu povo. Entretanto, a obra de Gregório de Mattos registra a insatisfação do poeta com a cidade devido a essas mesmas características que hoje a tem consagrado.

Desde o século XVII até nossos dias, pouca coisa mudou em Salvador: crescimento urbano desordenado, grande parte da população na pobreza e uma rígida estrutura hierárquica, onde a etnia ainda é forte elemento definidor dos estratos sociais. Podemos encontrar essa mesma estrutura de sociedade representada na literatura de Gregório de Mattos. Desde então não houve nenhum outro discurso sobre a cidade capaz de estabelecer uma crítica severa que conteste a ideia de cidade paraíso construído para Salvador, como a que

arte e cidades 2ed.indd 89 04/11/15 18:07

90

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

encontramos na sátira do poeta. Como foi possível a construção da imagem de cidade paraíso para esta sociedade profundamente desigual? A permanência da ideia de Salvador como cidade da alegria é, pelo menos, inquietante, porque seu cotidiano é, ainda hoje, de iniquidade. Por este motivo, buscamos desenvolver neste artigo um estudo da cidade que nos ajudasse a entender o processo que levou à criação e à permanência deste paradoxo, que hoje tem sido usado como slogan na divulgação da imagem da Bahia no universo turístico.

a cidade oficial e a cidade literária

Encontramos o período de 1650-1750 registrado em documentos das Atas da Câmara como uma época de ruína e morte. Época de propagação da febre amarela, do empobrecimento entre os comerciantes e os proprietários de engenhos, da fome na zona urbana que dependia do mar e do abastecimento do Recôncavo para sua subsistência. Nos documentos oficiais também estão relatados, por exemplo, a carência de recursos financeiros por parte do governo para honrar com o pagamento dos salários de seus funcionários, para garantir uma eficaz estrutura defensiva. Por outra parte, o dinheiro público era gasto na produção de suntuosas festas religiosas ou na contribuição financeira para os casamentos da realeza. Salvador primava pela insalubridade. A água das fontes que abasteciam a cidade era de péssima qualidade. A circulação por algumas ruas estratégicas que davam acesso a essas mesmas fontes era, muitas vezes, controlada pelos senhores de engenho, que cobravam pedágio à população.

No período colonial, prevaleceu a preocupação com os problemas eco-nômicos frente a seu crescimento territorial desordenado. Crescendo em meio a uma grande crise social e econômica, encontraremos a época de Gregório de Mattos, retratada em documentos oficiais, como uma época onde teve lugar a desintegração social e econômica na Bahia. Ao mesmo tempo, e contrariando o momento de crise, este também é um momento de grande complexidade na configuração do espaço urbano de Salvador, com toda a diversidade que isso implica. Através de algumas medidas tomadas pela Câmara Municipal, relacionadas às questões do desenho urbano, podemos ver retratados em do-cumentos oficiais o crescimento caótico e gradual da cidade. São os contrastes formando a cidade oficial, mas de contrastes também estará formada a cidade descrita pela literatura.

A Salvador literária construída por Gregório de Mattos não será muito diferente da cidade oficial, a cidade documentada nos arquivos. Depois de ler

arte e cidades 2ed.indd 90 04/11/15 18:07

91

se

lma

pa

ss

os

ca

rd

os

o

ö

a obra de Gregório de Mattos, poderíamos dizer que seus poemas descrevem uma Salvador que em alguns aspectos se assemelha à cidade oficial. Assim como a cidade dos documentos históricos, a Salvador literária também foi uma cidade deteriorada, onde tinha lugar a iniquidade e o abuso de poder. Em ambos os documentos, encontramos Salvador submergida em um ambiente fragmenta-do, dividida entre a condição de cidade colônia e o desejo de soberania. Dois períodos que não podem coexistir em um mesmo objeto? Contradição em uma sociedade rica e próspera?

No entanto, para construir a cidade literária de sua poesia, Gregório de Mattos utiliza componentes inexistentes no discurso sobre a cidade oficial desenhada nas Atas da Câmara como, por exemplo: as diversas formas de artifícios usados pela população na luta pela sobrevivência; a idealização de uma cidade diferente da cidade real por parte das elites brasileiras; a nostalgia de um passado de glória; a desconcertante ascensão dos homens mestiços etc. Estes elementos tão característicos de sua obra, marcam uma faceta muito pe-culiar da cidade de Salvador que nos possibilita entender, entre outras coisas, a picardia de sua gente, o caráter astuto que possuía a cidade, ou o desencanto e a impotência de alguns homens na construção desta nova nação. Por outro lado, Gregório de Mattos descreve um universo singular para falar da constru-ção de uma cidade absurda, utilizando elementos que não se encontram nos documentos oficiais da época.

o paraíso: lugar do impudico, do lascivo, da culpa e da luxúria

No século XVII, o degradado Estado da Bahia já evoca desilusões, e seu poeta abatido já não canta esperanças. O cenário que propicia a poesia já não é por ela exaltado, e a cidade, ressentida, anuncia:

Por crédito do meu nome/ e não por temer castigo; Confessar quero os pecados/ que faço, e que patrocino.(MATTOS, 1992, p. 39)

Pelas ruas da cidade literária, rica em promessas de futuro brilhante, desfilam pluralidade de raças, homens que vieram em busca de um mundo melhor. O colorido das roupas, a musicalidade dos idiomas, o aroma dos ali-

arte e cidades 2ed.indd 91 04/11/15 18:07

92

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

mentos, a diversidade étnico-racial. Todo este complexo conjunto humano aqui reunido lutava para conquistar seu território, na difícil topografia da cidade de Salvador. O sonho de Novo Mundo foi, para estes homens do século XVII, o dinheiro fácil, a riqueza rápida. Poderíamos considerar que a cidade aparece como esperança, como lugar prometedor para alguns destes homens que che-gavam. Influenciados pela ideia do Brasil ser lugar de natureza exuberante e enriquecimento fácil, alguns trouxeram consigo o sonho de encontrar o paraíso em terras americanas. Unidos pelo mesmo sonho, não serão, entretanto, por ele igualados.

A imagem do Brasil como terra da profusão e da exuberância persistiu durante muito tempo como podemos ver, confirmado, ao final do século XVIII, com a obra de Vilhena. (VILHENA, 1969) De certa forma, a ufania brasileira teve sua raiz na época colonial, quando os nascidos no Brasil o exaltavam. Mas não foi assim que Gregório de Mattos retratou a Bahia, ainda na segunda metade do século XVII. Entre expressões sarcásticas, o poeta canta sucessivos adjetivos depreciáveis:

Que falta nesta cidade? ...............VerdadeQue mais pôr sua desonra?...........HonraFalta mais que se lhe ponha...........VergonhaO demo a viver se exponhaPôr mais que a fama a exalta,Numa cidade, onde faltaVerdade, Honra, Vergonha.(MATTOS, 1992, p. 56)

A partir do século XV, no imaginário europeu, o Brasil estará relacionado com imagens paradisíacas, seja por sua natureza exuberante ou pela vontade dos cristãos portugueses em definir o “descobrimento” do Brasil como um milagre divino. No entanto, isto não impediu que, em muitos momentos, o território brasileiro estivesse relacionado com o diabólico. Não nos cabe negar que a cristianização do Novo Mundo formou parte do projeto de colonização que os portugueses realizaram na América. Podemos encontrar esta visão reafirmada em muitas crônicas e tratados sobre o Brasil, literatura que hoje definimos como informativa. A inocência e a simplicidade dos habitantes do Novo Mundo, assim como a fertilidade de suas terras, e a abundância de seus produtos foram, a prin-cípio, características com que a Europa definiu as terras americanas e com elas

arte e cidades 2ed.indd 92 04/11/15 18:07

93

se

lma

pa

ss

os

ca

rd

os

o

ö

construiu a ideia de paraíso. Esse discurso apologético também estará presente no século XVIII com Sebastião da Rocha Pita (PITA, 1976, p. 3).

Em carta escrita pelo padre Manuel da Nóbrega, na segunda metade do século XVI, as imagens do paraíso atribuídas às terras brasileiras estão cons-truídas a partir de valores físicos, materiais, que nada têm a ver com valores morais. Suas características edênicas estavam relacionadas com o maravilhoso que possuía sua natureza. A Bahia continuava sendo um lugar de paisagem exuberante e clima saudável.

Ainda a princípios do século XVII, pode-se encontrar opiniões que enaltecem a natureza brasileira. O clima quente de Salvador e da zona do Recôncavo baiano foi narrado pelos cronistas, que afirmavam proporcionar um ambiente saudável à região, onde dificilmente sofria por enfermidades. As doenças somente eram causadas pelo descuido dos homens. Mas, como podemos comprovar, analisando documentos da época, estes discursos con-trastavam enormemente com a realidade, porque o século XVI também foi palco de inúmeras calamidades como a fome, e as epidemias, que tiveram lugar desde que o homem branco pisou em terras americanas. A varíola chegaria ao Brasil em torno de 1563, alcançando a cidade e o Recôncavo baiano, dizimando todas as aldeias da Bahia.

Verdade e fantasia se confundem na hora de representar o Novo Mun-do. Talvez a condição de “novo” outorgasse aos cronistas liberdade no relato. Desejos e realidade se enleiam na hora de deparar com a construção de uma nova civilização. Essa mesma civilização é recriada pela linguagem escrita, que relata a vontade do homem de sua época, e que nós, desde aqui, buscamos entender, para remontar nosso próprio presente.

a decadência do paraíso

A partir do século XVII, o discurso sobre o Brasil começa a mudar. Neste instante, podemos identificar nostalgia de riqueza e de prosperidade. Nos tex-tos do século XVII, a cidade de Salvador já se apresenta bastante modificada, ela já não será descrita como a imagem do paraíso. Podemos confirmar que a natureza existente nos espaços urbanos se encontra muito degradada devido à grande intervenção do homem civilizado. O clima virginal e saudável de outrora corrompia os bons costumes, tornando o ambiente moralmente degradado.2

arte e cidades 2ed.indd 93 04/11/15 18:07

94

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A resistência do gentil à conversão da religião cristã também foi um fator que, para os jesuítas, contribuiu para o descrédito de seu bom caráter. Os religiosos, desde o princípio da colonização, mostraram seu desagrado com a inconstância dos índios à devoção católica, que em alguns momentos parecia estar logrando êxitos. No que se refere à catequese dos selvagens, esta era frequentemente perturbada por mudanças de atitude dos indígenas, que retornavam a suas práticas “bárbaras” de religiosidade. A evangelização parecia pouco ou nada contribuir para a mudança dos hábitos da população que, aos olhos dos religiosos, continuava primitiva, mesmo depois de duzentos anos de civilização cristã. Já ao final de sua vida, no ano de 1691, Vieira escreveu algumas cartas que registraram sua decepção. (VIEIRA, 1997, p. 629)

Através do olhar do século XVII, um olhar que já perdeu a fascinação do primeiro momento, a cidade agora é outra muito diferente. Encontrare-mos em Salvador um ambiente hostil, um clima infestado pela corrupção e pelas enfermidades. As enfermidades e os maus-tratos causados pela fúria da natureza foram considerados, em toda a literatura do período aqui estudado, como um castigo de Deus pelos vícios dos homens. O homem que corrompe a natureza. A natureza, perfeição da criação divina, contra a cidade, ambiente pernicioso, criação do homem.

O olhar de Gregório de Mattos recorre à cidade através do homem que nela habita. Correndo no encalço deste homem, enfocado pelo poeta, pode-mos ver como suas ações vão corrompendo a cidade. Neste poema, ele fala da cidade na primeira pessoa:

Meus males, de quem procedem?/ não é de vós? Claro é isso.Mas depois que vós viestes/ carregados como ouriçosDe sementes invejosas/ e legumes de mal vícios:Logo declinei convosco/ e tal volta tenho tido,Que, o que produzia rosas/ hoje só produz espinhos.(MATTOS, 1992, p. 41)

Para muitos estrangeiros que chegavam a Salvador e que eram por ela acolhidos, a cidade representou um lugar de passo. Um lugar aonde vinha fazer fortuna para depois retornar ao seu país de origem. O retorno desses estran-geiros implicou, muitas vezes, na transferência dos engenhos, na anulação de contratos comerciais ou no abandono de propriedades, causando perdas no comércio e na agricultura. Para Gregório de Mattos o estrangeiro português foi

arte e cidades 2ed.indd 94 04/11/15 18:07

95

se

lma

pa

ss

os

ca

rd

os

o

ö

o principal responsável pelo estado de decadência na Bahia. Ao não estabelecer verdadeiros vínculos com a cidade, os estrangeiros não podiam atribuir maior significado à sua vida social, política e econômica.

O paraíso dos primeiros anos parecia existir apenas na memória de alguns que ainda guardavam sua lembrança. O paraíso, idealizado em épocas anterio-res, se havia convertido em nostalgia. Na Salvador, representada por Gregório de Mattos, já não existia lugar para imagem paradisíaca, o que predomina em sua obra é a presença do homem de natureza perversa. Na cidade literária, estão reunidos homens de distintas índoles em uma população de excluídos. A cidade é um lugar que abriga as mais baixas e vis ações que o ser humano é capaz de cometer. A Salvador literária, como a cidade babilônica, é uma cidade condenada por Deus.

Assim como no texto bíblico, Gregório de Mattos também utiliza a metáfora de cidade maldita, de cidade infernal, para descrever Salvador como alegoria dos vícios e dos pecados. Assim, como no texto apocalíptico, a metá-fora de cidade-vício construída pelo poeta se refere, sobretudo, à formação da população da cidade, tanto no relativo à condição racial como à condição de classe, mas também à promiscuidade e à corrupção no comércio.

Gregório de Mattos também nos apresenta a Salvador literária como lugar do sensual e do erótico. Os aspectos sexuais e lascivos estão presentes em todos os rincões desta cidade infernal, não somente nas festas religiosas ou nas comédias representadas em praça pública; estão também presentes no mais cotidiano de suas atividades. O espetáculo de ostentação se apresenta como única forma possível de apreensão da realidade, neste universo de artificialidade que foi a cidade colonial. Manter a aparência de abastado era questão de honra porque ser rico era sinônimo de dignidade. Por meio da boa aparência, as pes-soas se distinguiam das outras, e encontravam seu lugar na complexa ordem de subordinação de poderes que estruturava esta sociedade. Ante a diversidade de raças que começava a formar a hierarquia nesta segunda metade de século, os modelos de nobreza europeia se confundiam. Para Gregório de Mattos, o dinheiro era o elemento que igualava os desiguais, muitos ricos, mas ignorantes, incultos que presumiam de ser nobres. (MATTOS, 1992)

Nos poemas de Gregório de Mattos, em quase todas as descrições dos acontecimentos ocorridos na cidade, sejam de acontecimentos comuns ou de festejos, está presente a imagem do teatro. A cidade de Salvador ilustrada como cenário. Todos atuam como personagens em um grande salão, o acontecimento

arte e cidades 2ed.indd 95 04/11/15 18:07

96

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

se transforma em celebração do poder, da vaidade e do ócio. Através da convi-vência social, podemos vislumbrar a grande vaidade em que estava enredada a vida pública, uma vida que transcorria nas ruas, espaço que não era frequentado apenas por escravos e gente miserável, ainda que essa participação no cenário público acontecesse de formas e escalas diferenciadas.

Sair à rua era formar parte de um espetáculo onde tinha lugar o luxo, a abundância e a ostentação em um ritual de reconhecimento do poder. Ostentação de uma riqueza que muitas vezes já não correspondia à realidade de alguns deles. Mas, em época de crise, o importante era manter as aparências. A fragilidade das relações que sustentam esta sociedade literária fica, muitas vezes, em evidência ao analisar a maneira como estavam construídas – adulação, hipocrisia e descon-fiança – características da vida pública brasileira que remonta aos primeiros anos da colonização. Sua visão de um mundo sedutor, e a consciência de um mundo finito traçam o destino trágico do homem barroco, e nos confirma o passo do tempo, a transitoriedade das coisas, o cenário frágil da vida:

Nasce o sol, e não dura mais que um dia,Depois da luz se segue a noite escura,Em tristes sombras morre a formosuraEm contínuas tristezas a alegria.Porém se acaba o sol, porque nascia?Se formosa a luz é, porque não dura?Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia?(MATTOS, 1992, p. 752)

Neste contexto, Gregório de Mattos recorre com frequência à metáfora para designar Salvador como cidade do pecado e prognosticar seu merecido destino:

Tão queimada e destruída/ te veja, torpe cidade/Como Sodoma e Gomorra, duas cidades infames. (MATTOS, 1992, p. 338)

Tudo gira em torno das aparências, tudo se reduz ao visível, tudo é falso, é ilusório. A Salvador literária possui uma nobreza falsa, uma raça “asnal” que, contrariando a ordem das coisas, é a que estabelece as regras. Entretanto, neste teatro, cenário e plateia se confundem, encontrando sua distinção no discurso

arte e cidades 2ed.indd 96 04/11/15 18:07

97

se

lma

pa

ss

os

ca

rd

os

o

ö

do poeta. Em sua obra podemos contemplar a cidade, através de um ritual de sedução e festividades. Estas imagens, que se entendem como o discurso do poeta, estão sempre mescladas em desprezo, burla e ironia:

Do que passeia farfante/ muito prezado de amantePor fora luvas, galões/ insígnias, armas, bastões,Por dentro pão bolorento:/ Anjo Bento.Destes beatos fingidos/ cabisbaixos, encolhidos,Por dentro fatais maganos/ sendo nas caras uns Janos,Que fazem do vício alarve:/ Deus me guarde.Que vejamos teso andar/ quem mal sabe engatinhar,Mui inteiro, e presumido/ ficando o outro abatidoCom maior merecimento:/ Anjo Bento. (MATTOS, 1992, p. 348)

Comparando os documentos da Câmara com seus poemas, podemos ousar dizer que a cidade concreta da realidade material está sendo construída pelo homem com os mesmos elementos com que o poeta traça a cidade de seu universo imaginário – depredação, segregação e negligência. Neste sen-tido, elas se assemelham porém sua literatura outorga a esta cidade funções e significados que os textos oficiais não são capazes de fazer. Ela se configura de maneira descuidada, e obedece a uma nova estrutura de organização que não está de acordo com a cidade idealizada por uma parte da população. A frustração na construção da identidade cidadã no período estudado é um sentimento que somente a obra de Gregório de Mattos foi capaz de expressar. Contemplando a cidade de pedra, o poeta volta a construí-la através de sua cidade literária, mas seu discurso não fala da arquitetura ou dos espaços privados, sua cidade é descrita através dos espaços públicos e dos personagens que vivenciam a rua. O que constrói a cidade do poeta são os sentimentos.

exaltação da cidade

Entretanto, esse universo degradante desenhado por Gregório de Mattos não vai estar presente na obra de Rocha Pita. Apesar da prosperidade do comér-cio ter sido a responsável pela construção da imagem de Salvador colonial como cidade afortunada, imagem que ela sustentou com orgulho durante muito tem-po, ao início do século XVIII, com a obra de Rocha Pita, podemos encontrar a

arte e cidades 2ed.indd 97 04/11/15 18:07

98

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

celebração da imagem de Salvador como cidade próspera devido ao crescimento urbano e ao desenvolvimento de sua arquitetura. (PITA, 1979)

Rocha Pita descreve os espaços urbanos como: “o maior e mais aprazí-vel” lugar. São grandes distritos com muitas ruas, bairros “célebres” com casas “formosas” e conventos “magníficos”. “Largas e sucessivas ruas”, “Grandes e virtuosos bairros”. Seu discurso abusa dos superlativos. A arquitetura, sempre “grandiosa”, “majestosa” e “suntuosa”, terá um papel importante na construção da imagem de Salvador como cidade nobre, porque ela contribuirá a seu fulgor. A Salvador de Rocha Pita é uma cidade em expansão econômica e territorial.

Em 1730, Salvador, que a princípio se restringia ao espaço limitado pela muralha, já se encontra bastante ampliada. A cidade baixa, também conhecida como o bairro da praia, estava dividida em duas paróquias, a de Nossa Senhora da Conceição da Praia e Nossa Senhora do Pilar. Aqui está localizado o porto. Em uma única rua estreita que cobria todo o pequeno bairro, junto à área do embarcadouro, as casas estavam incrustadas, lado a lado, construídas no limite estreito e comprido da pista. A população do bairro de Nossa Senhora do Carmo e Pilar era a mais densa da cidade, com grande concentração de habitantes das mais diversas classes sociais. (PITA, 1979) Já na metade do século XVIII, quase toda a área do bairro da praia estará ocupada por edifícios dos Trapiches, grandes armazéns onde era acumulada toda a mercadoria que vinha do Recôncavo. Aqui também havia um importante estaleiro; nessa época a construção naval já era intensa.

As arquiteturas mencionadas por Rocha Pita são os edifícios religio-sos, administrativos e militares. Ele nos descreve a expansão dos bairros da cida de a partir de suas arquiteturas, que são os elementos que lhe dão nome. Os bair ros nascem em torno a seus monumentos – a igreja da Ajuda, no bairro de Nossa Senhora da Ajuda; a igreja e o mosteiro de São Bento, localizado no bairro de São Bento, Igreja e Convento de São Francisco, no largo de São Francisco, bairro de Santo Antônio onde se localiza o Forte de Santo Antônio e a Igreja de mesmo nome, Terreiro de Jesus etc. – e a religião é um elemento fundamental na definição do desenho da cidade. Com relação à arquitetura civil, sua obra somente se refere às construções dos grandes solares ou, de forma mais generalizada, às “formosas casas”, sem se deter em descrições minuciosas. Mas as casas da população mais humilde são ignoradas. A vida familiar, tema que poderia auxiliar na tentativa de compor os espaços privados, em nenhum

arte e cidades 2ed.indd 98 04/11/15 18:07

99

se

lma

pa

ss

os

ca

rd

os

o

ö

momento é mencionada, e tampouco existem estudos que abordem as cons-truções populares da época colonial.

Entretanto, sabemos que na cidade baixa, por exemplo, viviam simples pescadores e pequenos comerciantes em casas térreas construídas de taipa. Na base da encosta viviam sapateiros, ourives, alfaiates e artesão, com suas pequenas oficinas. Em frente à igreja da Conceição, na praia dos pescadores, também conhecida como “Salgado”, se realizava uma vez por semana a feira da cidade. Apesar de concentrar um grande número de habitantes das classes humildes, no bairro da praia também viviam os comerciantes ricos, em sua maioria, judeus. A rua Direita, artéria principal do bairro da praia, era muito agitada devido a seu caráter comercial e a sua proximidade com o porto. Em alguns intervalos das quadras situadas na praia, as construções avançavam sobre o mar, violando as normas da Câmara. Toda sua extensão estava dividida por ruas sujas e estreitas, formando quadras que obedeciam à mesma estrutura de desenho do Morgado de Santa Bárbara. Essas ruas, de tão estreitas, dificulta-vam inclusive a circulação de veículos e pedestres. Nos bairros localizados fora dos limites da muralha também havia humildes residências; algumas dessas pequenas construções podem ser localizadas nos mapas da época.

Mas este ambiente tumultuado e sufocante não foi abordado por Rocha Pita. Quando ele descreve a área do cais, apenas as grandes edificações são mencionadas. (PITA, 1997) As ruas estreitas e sujas, ou os modestos edifícios ali existentes não são citados. Portanto, ainda que Rocha Pita nos fale das epi-demias, da crise econômica e do empobrecimento da população, sua descrição da cidade não contempla o universo de decadência que seguramente estava presente no desenho dos espaços urbanos, como, por exemplo, vestígios dos destroços da guerra contra os holandeses (1624), monumentos depredados, edifícios em ruínas ou em mal estado de conservação, como nos ilustra o Mor-gado de Santa Bárbara, edifícios militares inconclusos, que muitos documentos da época fazem referências. Através de sua obra, somente podemos imaginar Salvador como uma cidade suntuosa, imagem que corresponde unicamente a uma pequena parte da cidade de pedra.

Com relação à arquitetura popular da época colonial, a obra de Rocha Pita está longe de ser uma exceção. As classes humildes foram quase sempre uma notória ausência nos documentos oficiais ou na literatura, o qual nos dificultou enormemente a identificação dos bairros populares. Os grandes solares que iam surgindo se construíam ao lado de pequenas casas térreas ou até mesmo

arte e cidades 2ed.indd 99 04/11/15 18:07

100

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

de humildes construções de taipa. As ricas construções nasciam ao lado das casas dos pobres, dando ao desenho da cidade uma certa homogeneidade; a cidade não possuía contrastes exagerados.

No bairro da Ajuda havia um grande número de casas de aluguel, casas que nessa época estavam em mãos dos soldados, os quais, segundo o Estado, estavam isentos de pagamento. Os constantes protestos dos proprietários dos imóveis pela falta do pagamento do aluguel, em sua maioria instituições religiosas, nos faz concluir que um grande número de habitantes necessitava dessa renda para sua subsistência, inclusive a igreja; por outro lado, nos revela também a existência de um estrato social mais humilde que vivia em casas arrendadas, como os militares. A construção da cidade se realizava de maneira provisória. Não havia moradia para todos, e os funcionários do governo, com baixos salários, não podiam ou não queriam financiar a construção de suas residências. O Estado, pouco interessado em melhorar a qualidade de vida na colônia, nada fazia para amenizar as duras condições do cotidiano, e a cidade se expandia sem cuidado.

Quais eram, de fato, as condições de vida nessas casas arrendadas? De que forma estava estruturado o núcleo familiar entre a camada da sociedade que vivia em casas de aluguel, longe da vigilância dos grandes solares, como, por exemplo, os negros de ganho? As mulheres negras e mestiças, represen-tadas por documentos da época, como prostitutas que viviam de seu sustento, tiveram a possibilidade de construir uma identidade familiar? Os documentos aqui estudados não foram capazes de responder essas perguntas porque neles não estavam contemplados os pobres, estrato social da população privada de posses e de poder. A forma de habitar de todo o contingente de excluídos da cidade a que Gregório de Mattos se refere em seus poemas, e que conformou a especificidade do espaço urbano no período aqui estudado, se caracterizou pela formação do indivíduo em um ambiente esquivo e solitário, lutando para sobreviver num país desconhecido.

Através do discurso de Rocha Pita, não podemos vislumbrar Salvador como uma cidade em decadência. Mesmo que em sua obra o historiador relate as crises enfrentadas pela cidade ao final do século XVII e princípios do século seguinte, as questões relacionadas ao abatimento econômico, o aumento da mendicidade e a delinquência não são determinantes em seu discurso na hora de representar a cidade de Salvador. Rocha Pita não estabelece uma situação limite para a cidade, como a que encontramos nas últimas cartas escritas por Antônio

arte e cidades 2ed.indd 100 04/11/15 18:07

101

se

lma

pa

ss

os

ca

rd

os

o

ö

Vieira ou nos poemas de Gregório de Mattos. Temas como roubo, corrupção ou a atmosfera sexual que envolveu a Bahia barroca sequer chegam a constar em seu livro. O discurso de Pita não chega a definir para a cidade um futuro de condenação, como faz Gregório de Mattos, não encontramos sentimento que expresse fatalidade, impotência ou redenção. Em Pita, a cidade é esplendor e prosperidade, ele escreve com “aplauso e reverência” sobre o ambiente da Bahia. Enquanto identificamos, na literatura de Gregório de Mattos, gesto de crítica e de denúncia, em Rocha Pita a história tem como objetivo dar a conhecer ao mundo as excelências do Brasil. Podemos destacar em seu livro uma descrição positiva e animada do território brasileiro. Assim como em outros cronistas anteriores a Pita que descreveram o Brasil, podemos afirmar que em seu discurso há um grande amor e orgulho pela pátria. (PITA, 1997)

Conclusão

Distante do amparo patriarcal da zona agrícola, o homem urbano foi responsável por sua subsistência, mas, longe de escrever uma história de con-quistas, sua crônica é de injúrias e frustrações. Os personagens aqui reunidos, e que ajudaram a fundar esta nova civilização americana – entre brancos, negros, índios e mestiços – a consideravam uma sociedade injusta, poderíamos até dizer, uma sociedade sem direitos legais a uma existência real, que colocasse o homem no centro das discussões. Em nossa investigação isso está patente na obra de Gregório de Mattos, que analisa, através da crítica traçada para Salvador, os sentimentos humanos que conformavam a cidade. Mas, ainda na obra do poeta, a literatura da época, assim como a história, não foi suficientemente capaz de legitimar o universo dos marginados, sendo, por ela também, ignorados.

Entretanto, identificamos nesta literatura um sentimento de fracasso no processo de construção da sociedade colonial. Concluímos que esse fracasso, que para Antônio Vieira já era evidente, foi o reflexo do fracasso da política portuguesa que caminhava em direção contrária à construção do indivíduo e da cidadania. O Estado português não estava interessado em criar uma estratégia de aproximação nas relações entre as duas sociedades, e Vieira foi consciente disso. Quando o jesuíta afirma que o Brasil do século XVII era um espelho de Portugal, (VIEIRA, 1997) está considerando a colônia como herdeira da sociedade portuguesa somente no que se refere a sua condição de ruína e de-

arte e cidades 2ed.indd 101 04/11/15 18:07

102

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

cadência moral, e a sua extensão territorial como propriedade do reino, mas não como “nação” irmã.

O processo de construção do espaço urbano da cidade do Salvador no século XVII3 tem lugar neste ambiente opressor que dá origem a uma menta-lidade depredadora, e que converte Salvador em lugar hostil para o homem, seja ele branco, negro ou mestiço. As condições extremas de ruína social em que estava submetida a colônia criou um panorama sufocante que ajudou a estimular no homem sentimentos de desencanto pelos valores morais, tornan-do Salvador, aos olhos de Gregório de Mattos, uma cidade infernal. A cidade criada pela história de Rocha Pita somente em parte pode ser considerada rica, próspera e exuberante. Mas podemos deduzir que ela é, como unidade, um projeto malogrado porque não respondeu à consciência de um destino comum, desejada em um projeto de construção de uma nação includente no Novo Mundo.

É difícil estabelecer conceitos de texto literário e de discurso histórico para as obras estudadas aqui, o limite entre o verdadeiro e o imaginário nos discursos desenvolvidos nos primeiros anos de colonização é tênue. Como historiador, Vieira é uma voz que nos chega desde longe, devolvendo-nos a confiança nos relatos dos acontecimentos vividos, mas sua obra também desenha um universo fantástico. Para a literatura, esta problemática entre fic-ção/não-ficção do texto não gera uma grande dificuldade porque a literatura sempre esteve situada neste universo ambíguo, atravessado de personagens oníricos, que é a ficção. Mas a história sempre esteve obrigada a definir o que havia de real e de imaginário em seu discurso. E nos perguntamos, nos textos aqui estudados, qual é o limite que separa o discurso histórico de Rocha Pita do discurso literário de Gregório de Mattos? Até que ponto seus objetos de estudo são distintos? Além do mundo literário, existe outro universo possível de representação? Existem regras específicas que distingam o literário do não literário dentro da construção da cidade de Salvador? É possível estabelecer limites para as propriedades literárias do discurso histórico, uma vez admitida sua subjetividade? Temos de admitir que a linguagem é um sistema de caráter dual, ao mesmo tempo em que é forma, também é subjetividade.

A história narra fatos, a literatura constrói ficção, a história narra aconte-cimentos reais, “representa seus objetos”, enquanto que o objeto da literatura é ficção, é uma invenção da linguagem escrita. Entretanto, admitindo o caráter subjetivo da história e entendendo que os conceitos de verdadeiro/falso não

arte e cidades 2ed.indd 102 04/11/15 18:07

103

se

lma

pa

ss

os

ca

rd

os

o

ö

podem formar parte da definição do discurso, seja ele histórico ou literário, consideramos que história e literatura se assemelham enquanto linguagem. A história se propõe explicar o mundo, interpretar os fatos, enquanto a lite-ratura tem como pretensão modificar a ordem da história. (GROSSMANN, 1980) Ambos buscam o entendimento de um mundo que somente pode ser recriação, que somente pode ser escritura. Desta maneira, e admitindo que a história e a literatura são formas distintas de discurso somente no que se refere a seus objetos e, portanto, a sua metodologia de estudo, a cidade, como representação é ficção, tanto no discurso histórico como no discurso literário pelo que o discurso tem de subjetividade. A escrita é uma criação de mundos, tanto se tem pretensões de trabalhar com um objeto real como se faz com um objeto fictício.

Poderíamos dizer que o discurso de “cidade da alegria”, “cidade da felici-dade” utilizado hoje pelo turismo para definir a cidade de Salvador é a retomada da metáfora de “cidade paraíso” criada na época colonial. Tendo a cultura negra como principal elemento utilizado por este mesmo discurso, teria Salvador deixado de ser “inferno de negros” para transformar-se em democracia racial? A cidade contemporânea nos tem mostrado que não.

Na literatura do século XVII e XVIII, Salvador foi muitas e distintas cidades. Para cada olhar, uma cidade específica. Entretanto, vista por alguns aspectos, ela foi uma única cidade, a cidade da Bahia, com especificidades que perduram até os dias atuais. Desde distintos pontos de vista, cada autor cons-truiu seu discurso para falar de sua cidade imaginária, ao mesmo tempo em que buscava representar a cidade concreta, a qual buscamos desesperadamente compreender, mas que às vezes resulta demasiado difícil.

notas

* Esse texto faz parte de minha tese de doutorado intitulada La ciudad de Salvador a través de la literatura del siglo XVII y XVIII desenvolvida na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona da UPC, sob a orientação da professora Drª Marta Llorente Díaz, defendida em maio de 2003, com o apoio financeiro da CAPES.

1 A obra de Jorge Amado é uma das grandes representantes contemporânea desta construção.

2 Francisco Coreál (1685). In: TAUNAY, Afonso de E., Na Bahia Colonial 1610-1764, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, (p. 244 - 255), Rio de Janeiro, 1924, op. cit., p. 275.

arte e cidades 2ed.indd 103 04/11/15 18:07

104

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

3 É a partir da segunda década do século XVII que Salvador começa a reunir os conflitos que caracterizam as grandes cidades: diversidade de cultura, raças e classes sociais. Essa é uma ideia que foi trabalhada durante toda a pesquisa.

referências

ALDENBURGK, Johann Greoor. Relação da conquista e perda da cidade do Salvador pelos holandeses em 1624 –1625. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1961.

ANTONIL, André João. Cultura e opulência no Brasil Colonial. Lisboa: Biblioteca da Expansão Portuguesa, 1989.

GOMES, João Carlos Teixeira. Gregório de Mattos, o Boca de Brasa: um estudo de plágio e criação Intertextual. Petrópolis: Vozes, 1985.

GROSSMANN, Juditih. Temas de teoria da literatura. São Paulo: Ática, 1980.

HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Mattos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

_______. Visão do Paraíso: os motivos endêmicos no descobrimento e colonização do Brasil. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

MARAVALL, José Antonio. Poder, honor y elites en el siglo XVII. Madrid: Siglo XXI, 1979.

_______. La cultura del Barroco: análisis de una estructura histórica. 7. ed. Barcelona: Ariel, 1998.

MATTOS, Gregório de. Obras poéticas. Rio de Janeiro: Record, 1992. 2 v.

SOUZA, Laura Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

MIRANDA, Ana. Boca do inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

MONTEIRO, Luiz. A Bahia colonial: apontamentos para história militar da cidade do Salvador. Salvador: Progresso, 1958.

PERES, Fernando da Rocha. Gregório de Mattos: o poeta devorador. Rio de Janeiro: Manati, 2004.

PIERONI, Geraldo. Os excluídos do Reino. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.

PITA, Sebastião da Rocha (1660-1738). História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976.

REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil 1500 – 1720. São Paulo: Pioneira: EDUSP, 1968.

arte e cidades 2ed.indd 104 04/11/15 18:07

105

se

lma

pa

ss

os

ca

rd

os

o

ö

REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Edusp, 2000.

SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. São Paulo: Melhoramentos, 1965.

TAUNAY, Afonso de E. Na Bahia Colonial 1610 – 1764. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, p. 244 - 255, 1924.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, Faculdade de Arquitetura. Evolução física da cidade de Salvador. Salvador: Centro Editorial e Didático, 1979.

_______. Formação da Cidade do Salvador: a terra e o homem. Edição Facsimile. s/d.

VIEIRA, Pe. Antônio. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997. 3 v.

_______. Obras escolhidas. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1951. 12 v.

_______. Sermões. Porto: Llelo e Irmãos, 1959. 5 Tomos.

VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. 3 v. Salvador: Itapuã, 1969.

WHITE, Hayden. El contenido de la forma: narrativa, discurso y representación histórica. Barcelona: Paidós, 1992.

_______. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1994.

arte e cidades 2ed.indd 105 04/11/15 18:07

arte e cidades 2ed.indd 106 04/11/15 18:07

107 ö

aleilton santana da fonseCa

visões líricas da cidade: imagens de são Paulo na poesia de Mário de andrade

Na movimentação das ruas o poeta moderno encontra as motivações, os temas, as sugestões de sua poesia. Ele percorre a paisagem urbana com o seu olhar sensível para experimentar os efeitos da materialidade das edificações, dos veículos, das multidões.1 Nessa experiência, ele organiza um modo de per-cepção que lhe permita exercer a sua subjetividade através do discurso poético. Observador à parte, deslocado em relação à engrenagem que o cerca, o poeta estabelece uma forma própria de circular pelas vias públicas, onde estabelece referências afetivas ou aversivas, a partir das quais confere sentido às imagens cotidianas. Em Mário de Andrade essa busca corresponde à necessidade de manter uma identificação, ainda que problemática e precária, com a cidade de suas vivências, afetos e esperanças. Algumas vezes, porém, esse movimento se traduz pela impossibilidade e pela dispersão, como se observa no poema Toada, de 1932:

Busquei São Paulo no mapa,Mas tudo, com cara nova,Duma tristeza de viagem,Tirava fotografia...E meu cigarro na tardeBrilhava só, que nem Deus.Fiquei tão pobre, tão tristeQue até meu olhar fechou.

arte e cidades 2ed.indd 107 04/11/15 18:07

108

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

No outro lado da cidadeO vento me dispersou.(ANDRADE, M., 1994, p. 309)

O poeta paulistano imprime em vários poemas a marca do seu desloca-mento pelo espaço urbano, fixando pontos de vista que resultam de seu olhar itinerante pela paisagem. Desde os poemas iniciais de Paulicéia desvairada, o poeta circula pela cidade para observá-la, senti-la e expressá-la. Sua percepção crítica deixa-o em constante alerta e o seu olhar é mais de perquirição do que simplesmente contemplativo. Lucrécia D’Aléssio Ferrara (1988, p. 77, 78) ob-serva que “a percepção da cidade através de fragmentos da sua imagem leva o usuário à surpresa” que rompe o hábito do uso, à comparação entre fragmentos espaciais, entre o atual e a pregressa experiência urbana, ao flagrante de pon-tos de contacto e à discriminação das “diferenças de espaços, texturas, fluxos, valorizados na composição de um uso.” Este procedimento “leva o homem a captar, confrontar e informar espaços idênticos, próximos ou divergentes. A comparação é o método fundamental em uma pesquisa de percepção ambien-tal”. Muitas vezes Mário de Andrade procede de maneira semelhante para regis-trar sua percepção das paisagens urbanas. Subliminarmente às imagens traduzidas nos versos, insinuam-se os termos de comparação em que imagens do passado ancoram a visão crítica das novas paisagens, enquanto o juízo crítico compulsa os fatos e circunstâncias da vida cotidiana. O seu olhar crítico não cessa de medir o seu grau de identificação com o espaço urbano que se transforma rapidamen-te, tornando-se uma paisagem contraditoriamente íntima e estranha para ele. O seu poema às vezes toma a feição de um desabafo:

OS CORTEJOS

Monotonias das minhas retinas...Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...Todos os sempres das minhas visões! “Bon giorno, caro”.Horríveis as cidades!Vaidades e mais vaidades...Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!Oh! os tumultuários das ausências!Paulicéia – a grande boca de mil dentes;e os jorros dentre a língua trissulca

arte e cidades 2ed.indd 108 04/11/15 18:07

109

Ale

ilto

n S

An

tAn

A d

A f

on

Se

cA

ö

de pus e de mais pus de distinção...Giram homens fracos, baixos, magros...Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...Estes homens de São Paulo,todos iguais e desiguais,quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,parecem-me uns macacos, uns macacos.(ANDRADE, M., 1994, p. 84)

A partir da observação particular da cidade paulistana, o poeta generaliza um conceito negativo acerca da urbe moderna, enfatizando-lhe alguns dos seus elementos mais problemáticos. As cidades são definidas pela sua negatividade e pela sua carência de valores humanos autênticos. A palavra Nada ecoa seman-ticamente no verso, configurando o vazio da cidade – sem asas, sem poesia, sem alegria –, como uma chave que se tornará recorrente em outros poemas. A imagem asas simboliza a liberdade, a locomoção sem limites, não só do corpo, mas também do pensamento criativo, da imaginação, da fantasia. O termo asas metonimiza o sentido do vôo da criação poética e ao mesmo tempo contém implicitamente a metáfora do ato criador. A cidade moderna impõe a regra, o cálculo, o planejamento, e, com isso, submete a vida cotidiana e o indivíduo a determinados limites de ação. A materialidade urbana torna o homem uma peça de movimentos previsíveis, dentro ou mesmo fora da normalidade, e leva à negação do sentido essencial da poesia. Sem esses dois elementos, segundo a observação do poema, não há a alegria de uma vida em liberdade, em estado de verdadeira poesia.

A cidade, tal como se apresenta, está distante do ideal. É o contrário do utópico paraíso poético a que aspira o poeta, onde há liberdade, poesia e alegria. Na Paulicéia de Mário, a massa compõe um tumulto de passos, é imagem da ausência, pois seu sentido de humanidade está subordinado à lógica das coisas. Seus movimentos são ditados pela engrenagem cotidiana, como cortejos que são serpentinas, rolos de homens, entes frementes que lhe parecem maca-cos, porque seguem, autômatos, numa turba que emerge em jorros na selva urbana. Essa imagem radical é corroborada por Lewis Mumford (1991, p. 591), para quem, no mundo metropolitano, as massas humanas são “incapazes de ter contato direto com os meios de vida mais satisfatórios”, porque os homens se encontram “desligados da natureza que está fora deles e não menos desligados

arte e cidades 2ed.indd 109 04/11/15 18:07

110

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

da natureza íntima”, sendo progressivamente “reduzidos a um feixe de reflexos, sem impulso próprio de saída nem meta autônoma: o ‘homem behaviorista ’”.

A visão que o poeta tem da multidão de homens é paradoxal. São “todos iguais e desiguais”, uma condição intrinsecamente contraditória. São iguais na situação em que se encontram diluídos na massa, mas são desiguais pela perda do sentido de reciprocidade e da identidade como seres afetivos. A cidade é vista como hipérbole do absurdo: uma “boca de mil dentes”, “língua trissulca de pus e mais pus de distinção”, versos que a projetam como um espaço monstruoso que engole – e tritura – os “homens fracos, baixos, magros”, “serpentinas de entes frementes”.2 Essas imagens transmitem a ideia de que o homem urbano torna-se impotente a se locomover em fileiras anônimas e teleguiadas que apenas funcionam na engrenagem do cotidiano.

Nesse poema-desabafo, o pessimismo e a ironia são flagrantes e a gene-ralização das afirmativas faz pensar. Talvez as cidades, em geral, sejam horríveis porque, com as transformações modernizantes, os indivíduos perdem parte de suas referências pessoais já sedimentadas, que antes garantiam a proximidade en-tre o ser e o estar no mundo. Comentando as transformações físicas advindas do desenvolvimento da cidade moderna, Leonardo Benevolo (1984, p. 36) explica:

A aceleração crescente faz com que sejam perceptíveis as transformações no curso da vida humana: assim, a mudança do cenário físico transforma-se numa experiência individual, além de colectiva, e a relação tradicional entre vida e ambiente inverte-se: o ambiente deixa de ser uma referência estável para os destinos variáveis das pessoas, mas renova-se com mais rigidez do que as recordações e os hábitos, exigindo das pessoas um contínuo esforço de adaptação.

Mário de Andrade parece particularmente sensível a essa questão. Adap-tar-se ao novo cenário significa restaurar a identificação do modo de ser com a fisionomia do espaço de estar e viver. Dessa imbricação advém a consciência de “ser de” ou “pertencer a” um determinado locus e comportar-se como tal. A esse respeito é expressiva a referência ao “modo de ser paulistanamente” da Paisagem n. 4. Dessa maneira, sentir a cidade é estar em consonância afetiva com o seu modo de ser e o ato de avaliá-la decorre da contemplação de um sujeito partici-pante. Esse empenho afetivo do indivíduo aciona sua vontade de participar do processo de construção da cidade, através de suas ideias, suas sugestões e seus pontos de vista e de sua avaliação positiva ou negativa em relação às mudanças

arte e cidades 2ed.indd 110 04/11/15 18:07

111

Ale

ilto

n S

An

tAn

A d

A f

on

Se

cA

ö

que se vão efetuando. No entanto, essa prerrogativa não pertence aos indivíduos em geral, mas aos técnicos e profissionais do urbanismo. O poeta idealiza e constrói a cidade de palavras, mas não a urbe material de pedra, cimento e asfalto. De certa maneira, a cidade moderna constrói a si mesma, como engrenagem que se multiplica vertiginosamente, direcionando os esforços do homem para atender a uma lógica institucional e pretensamente social que foge ao controle de cada indivíduo em particular.3 Isto pode ser percebido por alguns como uma desordem, enquanto que para outros se afigura como uma nova lógica imposta pela enormidade da metrópole e pela necessidade de planejamento técnico exercido por profissionais especialmente preparados para administrar os desígnios da urbanização moderna.4

Efetivamente, o processo foge ao controle do olhar individual, faz-se em si pela decisão e pelas mãos de administradores, urbanistas e arquitetos oficiais que detêm o poder de interferir e transformar o espaço social, geralmente sem levar em conta o fator humano, mas preferencialmente as razões técnicas e funcionais. Dessa maneira, a cidade transforma-se continuamente sem que o poeta, enquanto homem que transita pelas ruas, sinta-se como partícipe do processo com poder objetivo de interveniência. De sua janela, de sua esquina, da janela do bonde, enfim, de seu posto de observação, lhe sobrevêm a surpresa, o estranhamento, o não se reconhecer no novo, pois a feição de antes, com a qual ele se identificava, deixa de existir abruptamente, some na poeira da demolição e dá lugar a novas formas que abrigam e acomodam novos interesses dos que detêm os poderes. As formas da cidade que constituíam seu conhecimento, como conjunto de imagens fixadas na experiência e na vivência memorizada, cedem lugar à cidade não sabida. Assim, se já não se reconhece no seu espaço, este como que perde a sua essência humana, torna-se espaço estranho, sem nexo significativo com o sentimento. A identificação do sujeito com o seu espaço vivencial torna-se precário, pois as modificações contínuas alimentam uma crise permanente de reconhecimento afetivo. Como a transformação física constante constitui o modo de ser moderno da cidade, resta ao indivíduo experimentar um permanente estado de adaptação ao seu espaço de vida, processo que se exprime inclusive pela atitude e pelo discurso de estranhamento.

O poeta, como qualquer habitante, se reconhece na cidade pelo uso co-tidiano que faz de seus espaços habituais. Ele estranha as mudanças, ao menos até integrá-las em sua vivência, sendo por elas modificado como interpretante urbano. Como afirma Lucrécia D’Aléssio Ferrara (1988, p. 56):

arte e cidades 2ed.indd 111 04/11/15 18:07

112

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A questão da cidade enquanto linguagem é a percepção que dela tem o usuário na projeção de usos que, como leituras, marcam uma estesia urbana e são demonstrações de sua atuação na qualidade de interpretante urbano que transforma a paisagem e é por ela transformado. O usuário, leitor da cidade, absorve fragmentos da imagem urbana para atualizá-los em enunciados que caracterizam o uso.

Na poesia de Mário, a percepção das transformações do espaço urbano é muito mais aguda do que se pode observar no senso comum. A visão do poeta, na medida em que é filtrada pela linguagem figurativa da poesia, faz recortes muito mais profundos na imagem da cidade. Os poemas representam a tomada de consciência diante de mudanças que tornam a cidade diferente e “desconhe-cida”. O poeta traduz nos versos uma redescoberta do espaço transformado, em relação ao qual a sua percepção se redimensiona, retocando os quadros paulistanos para atualizá-los, dizendo para si mesmo – e para os outros – aquilo em que se transforma a cidade ao se tornar moderna. É nesse movimento que vai registrando os seus juízos, seu estranhamento, sua avaliação crítica e o seu ideal. A cidade muda porque se moderniza, mune-se de novos serviços, novos instrumentos, novos campos de ação, amplia o comércio, a eco nomia, a ativi-dade fabril, cria novas ocupações. Isso leva ao aumento da população urbana, que se torna uma massa humana a circular pelas ruas, fluida e incaracterística.

Os homens tornam-se estranhos uns aos outros, os amigos somem na multidão, surgem novos tipos humanos e as relações são mediadas por interesses mais objetivos e circunstanciais. Esse processo não é visto de modo univalente, como algo só positivo ou só negativo. As linhas de visada são expressivamente contraditórias, ou seja, o poeta ao mesmo tempo em que saúda a face moderni-zadora das transformações, já percebe e lamenta o processo de desumanização que ele implica. Ao lado do “espetáculo das avenidas”, também se constatam as “sujidades implexas do urbanismo”. A cidade tor na-se dialeticamente íntima e estranha. Como espaço de experiências, ela se mantém íntima do poeta, devido à imagem introjetada na memória, através das vivências, da proximidade e do compromisso afetivo. Mas ao mesmo tempo se torna distante pela transfor-mação que sofre diante dos olhos sensíveis do artista. Assim, se o poeta já não pode abarcá-la in totum em quadros só positivos, abre espaço em seu discurso também para as metáforas da negatividade, exprimindo-a num discurso em que se entrecruzam as imagens do encanto e do desencanto. A contradição torna-se parte da relação entre a poesia e seu espaço social e, diante disso, o

arte e cidades 2ed.indd 112 04/11/15 18:07

113

Ale

ilto

n S

An

tAn

A d

A f

on

Se

cA

ö

poeta experimenta um mal-estar existencial, pois a urbe que cresce num ritmo desvairado, agigantando-se diante dos seus olhos sensíveis, vai perdendo seus traços mais visíveis de humanidade. Dessa maneira, a poesia se converte em espaço simbólico de negação, através da crítica, e de restauração, através do desejo de mudança, constituindo as imagens da utopia do poeta.

Os poemas cumprem um itinerário em que a contemplação da paisa-gem real se cruza com imagens interiorizadas e perpassadas por juízos críticos. As palavras surgem em liberdade, numa linguagem que não se submete à lógica e à legibilidade imediatas, permanecendo aberta ao caudal da imaginação. E é do choque entre o real e a imaginação que surge o modo como se configura o poema:

RUA DE SÃO BENTO

Triângulo.Há navios de vela para os meus naufrágios!E os cantares da uiara rua de São Bento...Entre estas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas,as minhas delícias das asfixias da alma!Há leilão. Há feira de carnes brancas. Pobres arrozais!Pobres brisas sem pelúcias lisas a alisar!A cainçalha... A Bolsa... As jogatinas...[...]Minha loucura, acalma-te!Veste o water-proof dos tambéns!Nem chegarás tão cedoà fábrica de tecidos dos teus êxtases;telefone: Além, 3991...Entre estas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas,vê, lá nos muito-ao-longes do horizonte,a sua chaminé de céu azul!(ANDRADE, M., 1994, p. 85-86)

O poeta contempla a cidade, mas não é um mero registrador objetivo dos fatos. Ele submete a paisagem a um ângulo subjetivo através do qual recorta e modela as imagens. A partir do seu ponto de vista, ele estabelece os contornos líricos das cenas urbanas segundo o seu modo íntimo de senti-las. Seu discurso se constrói a partir da contemplação da paisagem e dos elementos móveis da cidade, mas os fatos não são simples registros da realidade e sim projeções do impulso criador, mediadas por suas referências pessoais.5

arte e cidades 2ed.indd 113 04/11/15 18:07

114

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A percepção aguda do artista mostra os desequilíbrios da vida urbana, que são traduzidos de forma negativa nos poemas. Essa visão para além das aparências e do imediatamente palpável se converte numa espécie de desvario, como uma forma especial de perceber as mazelas da sociedade. Essas alucina-ções são as imagens poéticas que surgem imbricadas com a avaliação do senso crítico. O Rebanho é exemplar desse procedimento, pois o verso “Oh! minhas alucinações!” reitera-se cinco vezes, inclusive, abrindo e fechando o poema:

Oh! minhas alucinações!Vi os deputados, chapéus altos,Sob o pálio vesperal, feito de mangas rosas,Saírem de mãos dadas do Congresso...(ANDRADE, M., 1994, p. 86)

Trata-se de um poema crítico acerca da função política que se exerce para controle e direcionamento da sociedade. Essa instância muitas vezes tende a isolar-se no poder de mando, comandando os destinos da multidão sem ter representatividade política autêntica. Aqui, os políticos são entrevistos como elementos que ainda não se modernizaram para atuar de modo conveniente aos novos tempos, pois continuam pautando-se pela lógica do poder provinciano, marcado pelo servilismo e pela troca de favores. O servilismo ao poder central e a mediação do favor são elementos tradicionais de nossa experiência política, desde a era colonial, sendo um elemento profundamente enraizado na consciência dos que controlam a coisa pública.6 Assim, os deputados são vistos ironicamente como “salvadores do estado amado”, que o poeta vê transmu dar-se em cabras que “se punham a pastar / rente do palácio do senhor presidente [...]”(ANDRADE, M., 1994, p. 87). Essa imagem irônica é uma crítica direta à forma de atuação dos parlamentares da velha política oligárquica, cuja capacidade de representa-ção limitava-se a manter as benesses do poder, através de uma postura servil em relação ao mando central.

Mário de Andrade está sempre atento aos aspectos que desumanizam a cidade. Essa preocupação aparece principalmente nos poemas que registram paisagens, em que muitas vezes se encontra um discurso de constatação e de recusa. A paisagem vista pelo poeta resulta do esforço de captar a natureza em seus aspectos mais característicos. Reconhecer-se pela contemplação da paisagem circundante é uma maneira de assegurar e realimentar a noção de humanidade e cidadania frente aos espaços de exercer a vida cotidiana, reafir-

arte e cidades 2ed.indd 114 04/11/15 18:07

115

Ale

ilto

n S

An

tAn

A d

A f

on

Se

cA

ö

mando o sentido de mútua identidade. Assim, o poeta contempla as paisagens modificadas pela ação do progresso rápido e contínuo e as avalia criticamente, pois os seus interesses se colocam para além dos valores materiais advindos dessas transformações. Ele representa o que Octavio Paz denomina de a outra voz,7 aquela que flui da consciência crítica de um sujeito que procura, através do discurso da poesia, recuperar os verdadeiros valores da existência humana.

Em alguns quadros destacados pela poesia de Mário de Andrade, os elementos da natureza são ressaltados por contraste em relação aos aspectos modernizantes, abrindo espaço para o registro de referências ao passado, palco das vivências anteriores do poeta. As paisagens mudam e o poeta procura ler e avaliar sobre o seu palimpsesto as novas feições que lhe são impressas pelo progresso. No poema Anhangabaú essa atitude aparece com bastante clareza:

ANHANGABAÚ

Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora [...]Oh larguezas dos meus itinerários! [...]Estátuas de bronze nu correndo eternamente,num parado desdém pelas velocidades [...]O carvalho votivo escondido nos orgulhos do bicho de mármore parido no Salon [...]Prurido de estesias perfumando em rosaiso esqueleto trêmulo do morcego [...]Nada de poesia, nada de alegrias! [...]E o contraste boçal do lavradorque sem amor afia a foice [...]Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris,onde as tuas águas, onde as mágoas dos teus sapos?‘Meu pai foi rei! – Foi. – Não foi. – Foi. – Não foi.’Onde as tuas bananeiras?Onde o teu rio frio encanecido pelos nevoeiros,contando histórias aos sacis? [...]Meu querido palimpsesto sem valorCrônica em mau latimcobrindo uma écloga que não seja de Virgílio! [...](ANDRADE, M., 1994, p. 92-93)

O poema começa centrado na imagem estática da paisagem. O poeta estende seu olhar crítico sobre as transformações sofridas pelo Vale do Anhan-

arte e cidades 2ed.indd 115 04/11/15 18:07

116

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

gabaú, que foi reurbanizado no início do século para mais tarde ser novamente desfigurado por sucessivas intervenções e adequações às exigências da urbani-zação.8 No seu olhar, o contraste da movimentação humana com a paisagem se intensifica com a visão das estátuas que, correndo eternamente em sua forma de representação, permanecem alheias “num parado desdém pelas velocidades...” dos homens anônimos que passam.9

Há uma recusa à nova feição adquirida pelo vale, cujos jardins e mo-numentos copiam deliberadamente os modelos parisienses. O presumível zelador que cuidaria dos jardins, o faz mecanicamente, cumprindo apenas sua rotina. A denominação de lavrador, portanto, é uma ironia, pois ele já não têm consciência de sua lavra, sendo apenas um funcionário “que sem amor afia a foice...”, num ofício sem significação pessoal.

Essa paisagem não agrada, pois está vazia de sentido afetivo. O poeta então recorre à memória e recupera no poema as formas anteriores da paisagem que foram removidas pelo novo projeto urbanístico. Nesse quadro, estão represen-tados o rio, a flora e a fauna originais que contavam a história genuína do vale.10 Assim, a paisagem atual é vista sob uma ótica negativa, como um “palimpsesto sem valor” em que se apaga a feição autêntica da cidade.11 Para Mário de An-drade, o que se perdeu foi o valor poético da paisagem original, digna do canto clássico de uma écloga virgiliana, agora recoberta pela urbanização moderna. A ideia de palimpsesto amplia as perspectivas de significação, indicando que o poeta superpõe o tecido urbano atual à sua representação na memória, onde continuam escritos os traços originais da cidade, sob as sua novas inscrições físicas.12 No poema Tabatingüera” há um exemplo expressivo dessa projeção:

Mas a taba cresceu... Tigüeras agressivas,Pra trás! Agora o asfalto anda em Tabatingüera.Mal se esgueira um pajé entre locomotivasE o forde assusta os manes lentos do Anhangüera.

Anhangá fantasmal, feito de tabatingaGuincha, entrou pela chão como o Anhagabaú.E a alvura se tornou cimento-armado, é cinza,Tinge a garoa Borba gato Enguaguaçu [...](ANDRADE, M., 1994, p. 130)

arte e cidades 2ed.indd 116 04/11/15 18:07

117

Ale

ilto

n S

An

tAn

A d

A f

on

Se

cA

ö

Como se pode observar, é no plano da memória histórica que as diferentes paisagens se interpenetram, possibilitando a convivência dos elementos fora da cronologia linear, numa dimensão criada pela projeção poética. Mas essa superposição não é estática, porque há uma intenção valorativa no discurso. As imagens fantasmais do passado encontram-se pressionadas pelos ícones modernos (locomotivas, fordes), que as deslocam para o subsolo histórico, soterrando-os no nível da cidade escrita e oculta no palimpsesto que o poeta decifra, comprovando que “a alvura tornou-se cimento-armado, é cinza”. Essa última imagem cristaliza o sentido negativo que é atribuído à paisagem atual, pela forma (cimento armado) e pela cor (cinza), em relação àquela de contornos originais e autênticos, dignos de uma écloga clássica.

Em A caçada os largos itinerários do poeta são tomados pela turba que irrompe no final da tarde. As ruas se tornam invisíveis como espaço humano, pois são tomadas pela multidão que, em sua condição incaracterística e anônima, merece o epíteto de “formigueiro onde todos se mordem e devoram”.13 Como em Os cortejos, em que os homens parecem uns macacos, aqui o símile animal é novamente utilizado para sinalizar a perda de humanidade do homem urbano. Acrescenta-se agora uma relação de reciprocidade negativa, pois a forma de interação entre os indivíduos é a agressividade, em que todos se mordem e devoram, como formigas, lembrando a imagem baudelairiana da multidão fourmillante que se avoluma nas ruas da cidade moderna:

Não há mais lugares no boa-vista triangular.Formigueiro onde todos se mordem e devoram [...]O vento gela... Fermentação de ódios e egoísmospara a caninha-do-Ó dos progredires [...](ANDRADE, M., 1994, p. 94)

Na verdade, os indivíduos movimentam-se numa espécie de limbo, onde geralmente não há uma identidade baseada na reciprocidade positiva. Os fatos do cotidiano se investem de uma objetividade em si mesmos. Os fla grantes seguintes do poema decorrem dessa imagem, posta em primeiro plano: a agressividade do homem urbano moderno se traduz pelas ocorrências esparsas de ódios, egoísmos, ostentações, crimes, perdas. Reitera-se a imagem poética de infertilidade: “nada de asas! nada de poesia! nada de alegria!”, mas se firma a esperança de que a missão dos poetas ainda mantenha um caráter restaura-

arte e cidades 2ed.indd 117 04/11/15 18:07

118

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

dor, pois é ironicamente nessa multidão que é preciso recrutar os artistas que possam instaurar, ou restaurar, os discursos da poesia.

O poema Paisagem n. 2 configura as contradições da cidade, cuja alma é recortada entre positividade (“Oh! para além vivem as primaveras eternas!”), que está na natureza, e negatividade (as doenças jocotoam em redor), que está no espaço urbano. Os elementos climáticos constituem o pano de fundo da paisa-gem urbana, como fatores integrantes do quadro de situações desarmoniosas, acentuado desde o oxímoro do verso inicial “Escuridão de um meio-dia de invernia...”. O contraste com o cinza emblemático da cidade se dá pela alusão ao verde, que sinaliza a esperança como “cor dos olhos dos loucos!”. Os ho-mens sonambulam autômatos na massa, formando bandos nefários, ou seja, indignos de se nomear. O progresso produz as aparências enganosas, vestindo as doenças de eletricidade e gasolina. Diante desse quadro de contradições, a ênfase do poema se fixa no riso irônico e desesperançado que denuncia a vida paulistana como um palco de imposturas, modas importadas, doenças, sentimentos inferiores, crimes e ilusões. A ironia do poeta se torna acre e até zombeteira ao final:

[...]Deus recortou a alma de Paulicéianum cor de cinza sem odor...Oh! para além vivem as primaveras eternas!...

Mas os homens passam sonambulando [...]E rodando num bando nefário,vestidas de eletricidade e gasolinaas doenças jocotoam em redor [...]

São Paulo é um palco de bailados russos.Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimese também as apoteoses da ilusão [...]Mas o Nijinski sou eu!E vem a Morte, minha Karsavina!Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da desesperança,a rir, a rir dos nossos desiguais!(ANDRADE, M., 1994, p. 97)

arte e cidades 2ed.indd 118 04/11/15 18:07

119

Ale

ilto

n S

An

tAn

A d

A f

on

Se

cA

ö

O convite a rir “dos nossos desiguais” mostra a atitude do poeta diante de algumas situações observadas no cotidiano da cidade. Esse riso constitui uma provocação à consciência crítica, um alerta para que o paulistano possa reconhecer seus próprios valores culturais (“Mas o Nijinski sou eu!”) e per-ceber a verdadeira aparência da sua realidade social. A proposta de dançar não dilui o problema, pois a parceira do poeta-Nijinski é a Morte-Karsavina, o que agudiza a tensão e o sentimento das contradições, através da situação macabra que é contracenar com a morte. Assim, o “fox-trot da desesperança” faz parte da atitude irônica que se manifesta na linguagem solta do poema e no riso zombeteiro que deseja provocar a reflexão.

Os registros de aspectos da paisagem, dos costumes e das atitudes urbanas aparecem em fragmentos que se inserem nos poemas ao lado de comentários, reflexões e atitudes do poeta perante a cidade. As realidades evocadas surgem nos versos como percepções que se presentificam no processo de criação, em tom de surpresa e lamentação, respectivamente marcados com os sinais de exclamação e de reticências. A Paisagem n. 3 representa um desses momentos de inserção do poeta no cotidiano da cidade. O eu lírico interioriza as ima-gens em que a chuva, o sorriso triste da garoa, os homens encharcados, as normalistas se tornam intrínsecos ao seu modo de sentir o momento. Enfim, a sua vontade de intervir e mudar o cenário (E si pusesse um verso de Crisfal / No De Profundis?...)14 leva-o a harmonizar o clima com a presença do sol.

Quando Mário, em suas poucas andanças fora de São Paulo, trata de outras paisagens urbanas, observa-se que ele geralmente fixa o ponto de vista do eu lírico a partir do referencial paulistano. Em Noturno de Belo Horizonte, de 1924, escrito em face de uma viagem à capital mineira, esse paralelo está inicialmente subentendido: “Minas progride. / Também quer ter também ca-pital moderníssima também.” A reiteração da palavra “também” é um índice do substrato comparativo que mais adiante se torna bastante explícito:

Afinal Belo Horizonte é uma tolice como as outras.São Paulo não é a única cidade arlequinalE há vida há gente, nosso povo tostado.O secretário da agricultura é novo! Fábrica de calçadosEscola de Minas no palácio dos Governadores,Na casa dos Contos não tem mais poetas encarcerados,[...]

arte e cidades 2ed.indd 119 04/11/15 18:07

120

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Tenho pressa! Ganhemos o dia!Progresso! Civilização!As plantações pendem madurasO morfético ao lado da estrada esperando automóveis...(ANDRADE, M., 1994, p. 184)

O poeta busca termos de comparação entre a cidade observada, no caso Belo Horizonte, e a cidade de São Paulo, fixando-se nos valores do progresso como medida de aproximação. Este progresso que se mostra através da movi-mentação das ruas causa no poeta uma verdadeira comoção de júbilo, no poema datado de dezembro de 1925, significativamente intitulado Louvação matinal:

Nombrada da terra em força nova na manhã!Ao pé de mim São Paulo em rosa vibra cheirando vida!O Sol abrindo o paraquedas de ouro na amplidãoE peneirando o polem do calor sobre esse mundo [...]Rangem os caminhões. Padeiro entrega o pão. O leiteFerve no fogo. A feira grita de cor. As notíciasCorrem povo no galopão folgado dos jornais.Autoônibus bufando. Tudo bufando, abrindo asa [...]A cidade mexe de vida fresca, temporã.É a manhã! é a manhã! a glória formidável da manhã! [...]Eu fiz da minha vida sempre um rasgo, uma nombrada matinal [...]Isso é a felicidade.É a minha glória.(ANDRADE, M., 1994, p. 257)

Em geral, o discurso poético sobre os diversos quadros paulistanos são bivalentes, alternando-se momentos de positividade e de negatividade. Ao lado das louvações, a imagem da cidade como caos é também recorrente. No poema Jorobabel15, o poeta estabelece um paralelo com o episódio bíblico para mostrar a incapacidade de entendimento por parte da multidão urbana, num mundo que vive sob o “agouro da miséria”. O eu lírico exclama: “Cla-mor! Ninguém se entende! Um Deus não vem!... Babel!...” Assim, a cidade é a metáfora da dissolução dos homens e se configura como uma “Babel! Um choro aberto sobre a confusão / Das raças!”. É, enfim, um campo arrasado e estéril, em que “multidão devora e baba o fel!.../ Um choro aberto de entes misérrimos...”16 Comentando essa imagem da cidade na literatura moderna,

arte e cidades 2ed.indd 120 04/11/15 18:07

121

Ale

ilto

n S

An

tAn

A d

A f

on

Se

cA

ö

Malcolm Bradbury (1989, p. 79.) afirma: “O caos cultural alimentado pela cidade populosa em crescimento constante, Torre de Babel contingente e poliglota, é reproduzido como análogo caos, contingência e pluralidade nos textos modernos, no desenho e na forma da pintura modernista.”

notas

1 Como explica Mílton Santos (1991, p. 61), “tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons etc.”

2 Bem mais tarde, no poema Rua (1961), Guilherme de Almeida (1982, p. 87) retoma a imagem alegórica da cidade-monstro, em que a rua mastiga, deglute, digere e dejecta a multidão de homens iguais e desiguais, em cujo meio nivelam-se o poeta, o agiota, o larápio, o bêbado e o sábio.

3 Eis a propósito um poema de Drummond (1977, p. 9) intitulado Infatigável: “O progresso não recua./Já transformou esta rua / em buraco. // E o progresso continua./ Vai abrir neste buraco / outra rua.// Afinal, da nova rua, /o progresso vai compor / outro buraco.

4 A propósito, são interessantes as seguintes observações de Maria Elaine Kohlsdorf (1985, p. 24): “A partir do final do século XIX, começou a configurar-se o urbanismo com pretensões expressamente científicas, porém colocadas de forma bastante peculiar: há uma despolitização de enfoque, simultânea a uma especialização dos urbanistas. A concepção da sociedade perde, assim, seu sentido global, e a cidade passa a ser encarada como uma entidade autônoma, quase sempre física ou funcional, sendo portanto, definida em bases insuficientes. Os urbanistas são, geralmente, arquitetos e contrapõem, ao caráter utopista dos estudos anteriores, a prática de transformações de espaços urbanos ou da construção de cidades totalmente novas.”

5 Kevin Lynch (1990, p. 11-12) adverte, a respeito dos elementos móveis de uma cidade, especialmente as pessoas e suas atividades: “Não somos apenas observadores deste espetáculo, mas sim uma parte activa dele, participando com os outros num mesmo palco. Na maior parte das vezes, a nossa percepção da cidade é fragmentária, envolvida noutras referências. Quase todos os sentidos estão envolvidos e a imagem é o composto resultante de todos eles.”

6 A propósito, vale salientar as explicações de Roberto Schwarz (1981) sobre “ideologia do favor” como uma constante cultural no Brasil, mediando as relações de poder.

7 Para Octavio Paz (1993, p. 140) no mundo moderno regido pela lógica da produtividade e das ideologias do progresso material, a poesia constitui a outra voz: “Todos os poetas, nesses momentos longos ou curtos, repetidos ou isolados, em que são realmente poetas, ouvem a voz outra. É sua e é alheia, é de ninguém e é de todos. Nada distingue o poeta dos outros homens e mulheres, salvo esses momentos - raros, embora frequentes - em que, sendo ele mesmo, é outro.

arte e cidades 2ed.indd 121 04/11/15 18:07

122

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

8 Segundo Murillo Marx (1980, p. 63, 143), “os vales do Anhangabaú e do Tamanduateí foram tratados paisagisticamente na segunda década do século; cederam paulatinamente lugar ao asfalto, o primeiro a partir dos anos 30, o segundo pelos anos 50.”

9 Mário de Andrade (1976, p. 346) também se referiu às mudanças do Anhangabaú, numa de suas crônicas, em 1931. O poeta resenha o livro Urbanismo e Arquitetura de Le Corbusier, valorizando as ideias modernizantes do arquiteto, em contraste com as “idiotices” da nosso paisagismo.

10 Paulo Cursino de Moura (1980, p. 104) refere-se à uma lagoa denominada Tanque do Zunega ou Zuniga que “existiu e as plantas da época o registram. A vertente dali partia, desaguando no Anhangabaú. Tudo desapareceu, pela drenagem do terreno, aterros e canalizações do rio Anhangabaú.”

11 Henri Lefebvre (1991, p. 24) fala de um urbanismo dos administradores ligados ao setor público, cuja marca registrada é o racionalismo operatório. Segundo o filósofo, “esse urbanismo tecnocrático e sistematizado, com seus mitos e sua ideologia (a saber, o primado da técnica) não hesitaria em arrasar o que resta da Cidade para dar lugar aos carros, às comunicações, às informações ascendentes e descendentes. Os modelos elaborados só podem entrar para a prática apagando da existência social as próprias ruínas daquilo que foi a Cidade.”

12 Mílton Santos (1991, p. 66) comenta que, na cidade moderna, “uma paisagem é uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades diferentes, é uma herança de muitos diferentes momentos. Daí vem a anarquia das cidades capitalistas. Se juntos mantêm elementos de idades diferentes, eles vão responder diferentemente às demandas sociais. A cidade é essa heterogeneidade de formas, mas subordinada a um movimento global.”.

13 Ítalo Calvino (1990, p. 51) representa ficcionalmente essa característica dos habitantes da cidade moderna, onde as trocas afetivas são inibidas pela mobilidade constante dos indivíduos. “Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se vêem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.”

14 Conforme notas de Diléa Zanotto Manfio, Crisfal, título que constitui um anagrama do nome do autor, é uma écloga do poeta Cristóvão de Souza Falcão. (1515? - 1585). De Profundis é um texto de Oscar Wilde, enviado do cárcere de Reading a Alfred Douglas. “Publicado em 1905, a obra assinala o ponto culminante da vida e da filosofia wildeana. É a demonstração de como cada experiência ‘adquire valor e significado de arte.’” Cf. MANFIO, Diléa Zanotto. Op. cit. p. 504.

15 Como anota Diléa Zanotto Manfio, a respeito desse poema, Mário de Andrade revela, em carta a Alceu Amoroso Lima, de 23/12/1927: “[...] tenho em ‘Jorobabel’ uma das minhas páginas mais dolorosas. [...] Porque você analise o poema e ponha reparo como todas as associações que a palavra deslanchou quer as assonâncias (imagens) quer as do momento doloroso que atravessamos (ideias) todas concorrem para descrever a tragicidade tumultuária do tempo nosso, do povo na época atual.” Cf. MANFIO, Diléa Zanotto. Op. cit. p. 507.

16 Comentando essa imagem da cidade na literatura moderna, Malcolm Bradbury (1989, p. 79) afirma: “O caos cultural alimentado pela cidade populosa em crescimento constante,

arte e cidades 2ed.indd 122 04/11/15 18:07

123

Ale

ilto

n S

An

tAn

A d

A f

on

Se

cA

ö

Torre de Babel contingente e poliglota, é reproduzido como análogo caos, contingência e pluralidade nos textos modernos, no desenho e na forma da pintura modernista.”

referências

ALMEIDA, Guilherme de. Textos escolhidos. Sel., not., est. Frederico O. P. de Barros. São Paulo: Abril Educação, 1982.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Discurso de primavera e algumas sombras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo; EDUSP; 1994.

ANDRADE, Mário de. Cidades. In: ANDRADE, Mário de. Taxi e crônicas no Diário Nacional. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

BENEVOLO, Leonardo. O desenvolvimento da cidade moderna. In: BENEVOLO, Leonardo. A cidade e o arquitecto. Lisboa: Edições 70, 1984.

BRADBURY, Malcolm. As cidades do modernismo. In: BRADBURY, Malcolm; MACFARLANE, James (Org.). Modernismo: guia geral (1890-1930). Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CALVINO, Ítalo. As cidades e as trocas. In: CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FARRET, Ricardo Libanez (Org.). O espaço da cidade – contribuição à análise urbana. São Paulo: Projeto, 1985.

FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo: Nobel, 1988.

KOHLSDORF, Maria Elaine. Breve histórico do espaço urbano como campo disciplinar. In: FARRET, Ricardo Libanez (Org.). O espaço da cidade – contribuição à análise urbana. São Paulo: Projeto, 1985. p. 15-72.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1990.

MARX, Murillo. Cidade brasileira. São Paulo: EDUSP: Melhoramentos, 1980.

MOURA, Paulo Cursino de. São Paulo de Outrora (evocações da metrópole). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980.

MUMFORD, Lewis. O mito da Megalópolis. In: MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

arte e cidades 2ed.indd 123 04/11/15 18:07

124

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993.

SANTOS, Mílton. Metamorfose do espaço habitado. 2. ed. São Paulo: HUCITEC, 1991.

SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas cidades, 1981.

arte e cidades 2ed.indd 124 04/11/15 18:07

125 ö

andréa Queiroz rêGo

as paisagens sonoras nas representações literárias. Marques rebelo e os sons da cidade

do rio de Janeiro (1931-1964)

As paisagens sonoras estão associadas ao desenvolvimento urbano e à cultura de um determinado grupo social que atua em determinada área de uma cidade, numa época específica. Acredita-se que esta relação exista, pois os grupos sociais ao se expressarem culturalmente, modificam as paisagens sonoras das ci-dades, introduzindo ou eliminando sons no uso dos espaços públicos e privados.

É importante destacar que o espaço sonoro é frequentemente mais extenso do que o espaço físico para o desempenho de determinada atividade. Os sons, muitas vezes, transpassam os “muros privados”, invadindo os espaços públicos. Assim, mesmo se tratando de um estudo do ambiente urbano, os sons observados são produzidos, algumas vezes, no espaço privado.

Adotando como premissa que os sons são representações culturais, suas manifestações, mesmo que não “concretizadas” no espaço, contribuem conti-nuamente para a (re)construção da paisagem urbana, sendo elementos de es-truturação e identificação das diferentes áreas da cidade, nos diferentes tempos.

Deste modo, cada paisagem urbana guarda sons originados em diferentes épocas que se perpetuam e se adicionam no ambiente, criando sonoridades específicas, cuja percepção e entendimento dependerá do ferrramental de cada indivíduo que a escuta.

A compreensão de uma paisagem sonora se dá pela compreensão de cada fragmento sonoro que a compõe, sendo o desafio investigar a origem desses

arte e cidades 2ed.indd 125 04/11/15 18:07

126

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

sons, visto que, dificilmente, são objetos de documentação. Neste intuito, volta-se à literatura, para o estudo das paisagens sonoras, uma representação capaz de mostrar, desde os tempos mais remotos, como as paisagens urbanas e sonoras são alteradas ao longo do tempo e como essas alterações são per-cebidas e retratadas pelos escritores, raramente como motivo da escrita, mas comumente como fundo da narrativa.

os sons urbanos como representações culturais

A partir da década de 1960, vários estudos contribuem para uma melhor reflexão sobre as questões até então colocadas.

Kevin Lynch, arquiteto, coloca que o homem para se locomover de modo orientado no espaço urbano necessita “estruturar e identificar o ambiente”, e para tanto, “muitos tipos de indicadores são usados: as sensações visuais de cor, forma, movimento ou polarização da luz, além de outros sentidos como o olfato, a audição, o tato, a cinestesia, o sentido da gravidade e, talvez dos campos elétricos ou magnéticos”. (LYNCH, 1999, p. 4)

Parece, entretanto, que raramente arquitetos e urbanistas têm consci-ência de sua responsabilidade na construção da sonoridade urbana, apesar de seus projetos definirem morfologicamente os “caminhos sonoros” através do desenho e criarem espaços de vivência que interferem nos modos de produção e recepção sonoras, ao estabelecerem o posicionamento das fontes sonoras e a implantação dos materiais absorventes ou refletores acústicos.

O conceito de “paisagem sonora” foi introduzido em 1977 por R. Murray Schafer1, na obra The soundscape – our sonic environment and the tuning of the world, como um manifesto no âmbito dos estudos ambientalistas, contra o crescente nível de ruído nas cidades. No entendimento de Schafer, todos os sons de um ambiente devem ter a possibilidade de ser escutados, pois todos têm um significado importante e integram uma “paisagem sonora”:

O ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente. (SCHAFER, 1994, p. 274)

arte e cidades 2ed.indd 126 04/11/15 18:07

127

an

dr

éa

qu

eir

oz

go

ö

Schafer considera, ainda, a importância simbólica dos sons para o ho-mem e coloca que os padrões comportamentais humanos diferem conforme o ambiente sônico, fazendo a distinção entre um som, entendido como simples fenômeno físico e, um “evento sonoro”, entendido como:

A menor partícula independente da paisagem sonora, a qual [...] é um objeto acústico para estudo simbólico, semântico ou estrutural e é aqui um ponto de referência não abstrato relacionado com um todo de maior magnitude do que ele próprio. (SCHAFER, 1994)

Ele tenta mostrar como a sonoridade mudou radicalmente ao longo da história humana, observando, cronologicamente, as paisagens sonoras natural, rural, das vilas e das cidades, da revolução industrial e, finalmente, da revolu-ção elétrica. Nesta última fase, considera que as paisagens urbanas mudaram essencialmente com o surgimento de três mecanismos sonoros – o telefone, o fonógrafo e o rádio implantados, definitivamente, no século XX, que per-mitiram o empacotamento e estocagem do som e o afastamento dos sons de seus contextos originais.

São justamente esses eventos sonoros que passam quase despercebidos na literatura, que busca se destacar, por serem capazes de contribuir para a identificação dos espaços urbanos, na medida em que seus significados são compartilhados por um determinado grupo social, em certa época.

Para o historiador Paul Veyne, um evento se destaca sobre um fundo uniforme em função do olhar do pesquisador, devido a seu conhecimento prévio, que permite identificá-lo, sendo estimulado a construir, a partir dele, um objeto de estudo. Um evento nunca “é apreendido de uma maneira dire-ta e completa, mas, sempre, incompleta e lateralmente, por documentos ou testemunhos, ou seja, por tekmeria, por indícios” observados pelo pesquisador. (VEYNE, 1998, p. 18)

Esses indícios, isto é, os fragmentos sonoros retirados da literatura, for-necem uma série de informações sobre como o espaço urbano é usado e por quem, numa determinada época, caso se conheça a cultura do grupo social envolvido no processo da produção sonora.

Stuart Hall, sociólogo, coloca que cultura é a troca de significados atri-buídos às pessoas, objetos e eventos entre os participantes de um grupo:

arte e cidades 2ed.indd 127 04/11/15 18:07

128

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Significados culturais não estão apenas ‘na cabeça’. Eles organizam e regularizam as práticas sociais, influenciam nossas condutas e consequentemente têm efeitos reais e práticos. [...] Coisas por si só raramente ou nunca têm um único significado, fixo e imutável. [...] É o nosso uso das coisas e o que nós dizemos, pensamos ou sentimos sobre elas – como nós as representamos – que lhes dá o significado. (HALL, 2003, p. 3)

Deste modo, são significados compartilhados que fazem com que os indivíduos se identifiquem como semelhantes. Quando indivíduos comparti-lham a compreensão do significado de um som, quando o produzem de modo similar nas ações do dia a dia, ou ainda quando o qualificam esteticamente em “agradável” ou “desagradável” nas mesmas experimentações, pode se dizer que esses indivíduos fazem parte de uma mesma cultura. Sons escutados num contexto cultural deixam de ser simplesmente ruídos cuja manifestação é indesejável, devendo ser eliminados.

É consenso que a música é um produto cultural, pois é a expressão dos sentimentos e ideias de um indivíduo que se torna compartilhada por um grupo social numa determinada época; mas é mais difícil perceber como o som produzido por um carro possa ser uma representação cultural. Entretanto, observando apenas dois exemplos, se torna mais fácil: uma arrancada “cantando pneus” ou uma “acelerada” quando o sinal de trânsito abre, são formas de usar o objeto “carro”, que no cotidiano lhe dão um significado além de um meio de transporte, e faz com que seja atribuído, também, ao som, um significado específico em função do uso que o indivíduo (motorista) faz do objeto (carro).

a literatura como memória e registro sonoro

O uso das representações literárias, em estudos culturais da cidade do Rio de Janeiro, já foi feito diversas vezes com sucesso, a inovação está, como coloca a Nova História, no novo objeto pesquisado – os sons urbanos.

Os historiadores franceses atestam a possibilidade de utilizar os docu-mentos literários imaginários como fonte de pesquisa dos estudos culturais urbanos, desde de que se tenha consciência que os eventos, neles observados, são representações singulares dos escritores e não a percepção, na totalidade, de uma paisagem, numa determina época.

arte e cidades 2ed.indd 128 04/11/15 18:07

129

an

dr

éa

qu

eir

oz

go

ö

Jacques Le Goff e outros (1977) coloca que a Nova História dilatou o campo do documento. “Isto contempla, por um lado, o recuo do documento escrito, a busca do documento arqueológico figurativo, do documento oral, que é interrogar os silêncios da História, a entrada em cena do documento imagi-nário”. Georges Duby acrescenta que “os textos dos historiadores antigos não são os únicos dignos de atenção, mas todo o conjunto de documentos em que se revela o imaginário, [...] textos em que se exprime a visão que os homens do passado tinham da realidade concreta”. (LE GOFF et al., 1977, p. 34-42)

A literatura foi a primeira representação responsável pela memória sonora das diversas sociedades, muito antes das gravações. Desde o passado longínquo, o homem registra através da escrita os sons que o cercam, usando para isso uma série de recursos linguísticos.

A professora Dirce Riedel (1962) quando estudou a sonoridade linguís-tica na literatura de Guimarães Rosa, observou que as imagens auditivas foram obtidas na prosa por cinco recursos linguísticos: a seleção dos vocábulos; a onomatopéia; a metáfora fônica; a arquitetura das frases e a pontuação.

Edward Hall, antropólogo norte americano, destaca a importância da literatura em suas pesquisas sobre o uso cultural do aparelho sensorial humano na experimentação do espaço. Estudando os textos literários, verificou que os escritores, frequentemente preocupados com o espaço, percebem por meio de seus sentidos, apreendendo culturalmente e o representando, permitindo que o leitor “construa o seu próprio sentimento do espaço”:

Quando examinamos as obras literárias do ponto de vista das estruturas, mais do que dos conteúdos, descobrimos elementos que esclarecem a história e as modificações ocorridas na contribuição dos diferentes sentidos. Para mim, não há dúvida que tais variações se ligam aos diferentes tipos de ambientes que o homem tem adotado de acordo com a época e a cultura. Gostaria de ter podido provar, no termo destas análises demasiado apressadas, que a literatura é, para além dos seus outros aspectos, uma fonte de informação acerca do modo como o homem usa os seus sentidos. No que me diz respeito, as diferenças históricas e culturais são perfeitamente evidentes. Mas essas diferenças não são necessariamente tão claras para os leitores que se interessam apenas pelo conteúdo dos livros. (HALL, 1988, p. 116)

arte e cidades 2ed.indd 129 04/11/15 18:07

130

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Esta colocação de Hall é um claro caminho que se abre para definir a literatura como um documento no qual se pode observar os sons urbanos e, respectivamente, como são percebidos por aqueles que os deixam registrados em seus relatos literários.

Schafer faz, ainda, uma importante colocação que reforça o caminho aberto por Hall, a respeito do uso da literatura como fonte de registros sonoros:

Embora possamos utilizar modernas técnicas de gravação e análise no estudo das paisagens sonoras contemporâneas, para fundamentar as perspectivas históricas teremos que nos voltar para o relato das testemunhas auditivas da literatura e da mitologia, bem como aos registros antropológicos e históricos. (SCHAFER, 1994, p. 8)

Na verdade, a maior parte dos registros sonoros observados na literatura é formada pelos sons escutados no cotidiano, aqueles que integram o espaço urbano experimentado no dia a dia. Em função de sua ocorrência momentânea, os sons só são percebidos, memorizados e associados a um local, quando sua ocorrência é previsível e repetitiva, similar ao conhecimento transmitido através dos cantos nas sociedades orais. Desta forma, é comum identificar escritores que descrevem os sons do “lar”.

David E. Sopher, geógrafo, destaca os sons como um dos elementos que participam da paisagem do “lar”, lugar que os indivíduos sentem pertencer. Para ele, esta sensação de pertinência é construída quando o indivíduo identifica e elege marcos na paisagem que são fixados na memória, aos quais sempre se remete para lembrar. Destaca que “sons e sabores são proeminentes nas recor-dações, [...] uma simples nota ou odor pode produzir uma clara recordação de uma sensação” (SOPHER, 1979, p. 144) e cita o escritor Albert Murray, para o qual a recordação do lar em Alabama e no restante do sul está associado:

[...] aos sons, cheiros e sabores encontrados no Harlem que evocam para ele o órgão da igreja da cidade natal, os encontros e comemorações religiosas, piquenique e festas no campo com salada de batata e torta de batata doce, [...]. (SOPHER, 1979)

Como Sopher, Gernot Böhme, filósofo, que analisa a estética acústica de um ambiente, menciona especificamente os sons do “lar”. Para ele a esté-

arte e cidades 2ed.indd 130 04/11/15 18:07

131

an

dr

éa

qu

eir

oz

go

ö

tica de uma atmosfera, algo entre sujeitos e objetos, está relacionada com as experiências humanas no cotidiano e o modo como o ambiente é produzido e recebido. Analisar uma atmosfera acústica em termos de sua estética, é “uma questão de sobrepujar uma limitada ciência natural baseada numa abordagem a qual insiste no mais hábil domínio dos ruídos como uma função de deci-béis, e ao invés, perguntar que tipo de características acústicas os espaços nos quais vivemos devem ter”. (BÖHME, 2000, p. 15) Deste modo, preocupado com as questões que qualificam sonoramente um ambiente, Böhme destaca a importância dos sons do “lar”:

[...] tem sido descoberto que o sentimento de ‘lar’ está fortemente mediado pela paisagem sonora de uma região, e que a experiência característica de um estilo de vida, de uma cidade ou de um atmosfera rural, é fundamentalmente determinada a cada instante pelo espaço acústico. Isto significa que uma concepção sobre o que uma paisagem pode ser hoje não é mais restrita ao que se pode ver e que o planejamento urbano não pode mais se contentar com o controle e a redução do ruído, mas deve prestar atenção às características da atmosfera acústica de praças, áreas de pedestres, de toda a cidade. (BÖHME, 2000, p. 16)

Na verdade, dois importantes aspectos devem ser observados ao se adotar a literatura como uma forma de registro sonoro. O primeiro é estar ciente que o evento sonoro detectado é uma representação de um escritor, sua forma de “escutar” o mundo que lhe cerca, sendo assim um evento singular, o qual só ganha uma certa especificidade quando é compartilhado por outros. O segundo é entender o significado do som usando as ferramentas culturais daquele que o representou.

Assim, quando o cronista carioca Paulo Barreto (2001, p. 141) diz que o som dos automóveis era insuportável em 1919, pode parecer irônico que um número tão pequeno de veículos em relação aos que circulam hoje em dia na cidade, possa causar tanto incômodo. É preciso compreender que naquela época os automóveis causaram um “rompimento” e uma profunda mudança na paisagem sonora da cidade. Esse rompimento ainda é sentido nos dias atuais, quando se introduz o comércio ou serviço, ou ainda, a passagem de coletivos, numa tranquila rua residencial.

arte e cidades 2ed.indd 131 04/11/15 18:07

132

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

os sons participando da construção das identidades urbanas

À proporção que as áreas urbanas se tornam de uso especializado, trans-formam lugares de grande “pluralidade sonora”, em função da diversidade dos usos, em lugares de “singularidade sonora”. A setorização gera, também, enormes contrastes entre o nível de intensidade sonora produzido nos períodos diurno e noturno. Basta observar a sonoridade dos centros das cidades durante o dia e à noite ou, em oposição, locais de lazer e burburinho, de utilização noturna que durante o dia são “mortos” e silenciosos. O tráfego urbano causa, por sua vez, o mascaramento2 de uma rica variedade de sons, que passam a um segundo plano, cuja escuta só se torna viável com a diminuição do fluxo.

Marcel Roncayolo, geógrafo francês, procurou entender as raízes cultu-rais dessa setorização urbana, considerando que não são apenas manifestações morfológicas. Para ele, é no interior dos espaços urbanos “que as características e as estruturas de uma sociedade se projetam sobre o solo, presas a uma forma material que as exprimem dentro das paisagens e as cristalizam todas ao mesmo tempo”. (RONCAYOLO, 2002, p. 269) Acrescentar se ia, também, presas a uma forma imaterial sonora. Roncayolo considera que “a distinção espacial dos grupos sociais deveriam ser estudados por si só, como um dos fatores que explica a repartição dos fenômenos dentro de uma cidade”. (RONCAYOLO, 2002) Por fim, coloca que a divisão social deve ser julgada dinamicamente e não de forma estática:

A dinâmica das categorias, o valor relativo e modificado no tempo das relações de associação ou de exclusão entre categorias, a aparição de novos princípios de distinção, destacadamente de elementos, que deverão intervir na interpretação das formas espaciais e dos mecanismos de difusão ou de contradição. (RONCAYOLO, 2002, p. 284)

Com estas colocações de Roncayolo, avança-se um pouco mais no en-tendimento de como os sons têm relação com o espaço urbano. Se um som faz parte da cultura de um grupo social específico que constrói sua paisagem urbana e este grupo social é espacializado, isto é, ocupa uma posição definida no espaço da cidade, podemos dizer que os sons também possuem uma espa-cialização urbana específica.

Gordon Cullen, arquiteto, que analisa o espaço urbano, principalmente através de sua apreensão visual, em vários momentos emprega a oposição “si-

arte e cidades 2ed.indd 132 04/11/15 18:07

133

an

dr

éa

qu

eir

oz

go

ö

lêncio x ruído” para demonstrar a diferença entre os espaços destinados ao uso residencial e das relações humanas mais íntimas e os espaços mais impessoais:

Enclaves: […] Local tranqüilo, onde os passos ressoam e a lumi no-si dade é atenuada, onde se fica apartado do burburinho da rua e se desfruta, simultaneamente, o exterior, de um ponto bem situado e seguro.

Recintos: […] Fora dele, o ruído e o ritmo apressado da comunicação impessoal, vai–vem que não se sabe para onde vai nem donde vem; no interior, o sossego e a tranqüilidade de sentir que o largo, a praça ou o pátio têm escala humana. (CULLEN, 1983, p. 27)

Iniciativa Local: [...] Uma vez que uma parte tão considerável da paisagem urbana consiste na pequena rua tranqüila e na simplicidade do trivial e do quotidiano, há que aproveitar plenamente o talento local. [...] (CULLEN, 1983, p. 44)

Individualização da Paisagem: […], embora acompanhando a estrada principal, está separado por uma sebe espessa: de um lado temos o ruído ensurdecedor e os perigos do tráfego rodoviário, do outro um caminho encantador e perfeitamente seguro, com uma bonita vista sobre os prados. (CULLEN, 1983, p. 61)

Cidade Secreta: […] coexistem, lado a lado, dois mundos comple-tamente diferentes: a rua movimentada e ruidosa que atravessa a zona de comércio e dos negócios e que, em determinada altura, segue até a ponte sobre o canal, cuja bacia é silenciosa e deserta como uma cidade secreta. (CULLEN, 1983, p. 66)

Desta forma, Cullen menciona superficialmente duas das características das grandes metrópoles, que participam diretamente na composição das pai-sagens sonoras: o contínuo processo de setorização urbana e a intensificação do tráfego veicular.

Lynch acrescenta como as percepções sensoriais qualificam um espaço e criam laços emocionais:

A maior parte das pessoas já teve a experiência de estar em um lugar muito especial, e eles o prezam e lamentam a sua perda. Existe um puro deleite em sentir o mundo: o jogo de luzes, a sensação e o odor

arte e cidades 2ed.indd 133 04/11/15 18:07

134

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

do vento, toques, sons, cores, formas. Um lugar bom é acesível a todos os sentidos, faz visível as correntes de ar, garante a percepção de seus habitantes. O sincero prazer nas nítidas percepções é ainda mais ampliado porque lugares identificáveis e com sentido são convenientes estacas, nas quais se fixam a memória pessoal, sentimentos e valores. A identidade de um lugar é estreitamente relacionada à identidade pessoal. ‘Eu estou aqui’ suporta ‘Eu sou’. (LYNCH, 1996, p. 132)

O “lugar utópico” de Lynch reforça essa questão, quando o ruído e a poluição são banidos dos transportes urbanos e os “lugares adquirem distintos sons e odores em momentos especiais” que os fazem memoráveis, uma vez que “luz, movimento, sons e cheiros são manipulados para tornar os lugares mais atraentes aos sentidos”. (LYNCH, 1996, p. 311-312)

os fragmentos sonoros nos contos e crônicas de Marques rebelo reforçando as identidades urbanas

da cidade do rio de Janeiro

Marques Rebelo, pseudônimo de Edi Dias da Cruz, foi jornalista, contis-ta, cronista, novelista e romancista3. Nasceu no Rio de Janeiro, em 6 de janeiro de 1907, e faleceu também nessa cidade, em 26 de agosto de 1973. Eleito em 10 de dezembro de 1964 para a cadeira n. 9 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Carlos Magalhães de Azeredo, foi recebido em 28 de maio de 1965 pelo acadêmico Aurélio Buarque de Holanda.

Filho de Manuel Dias da Cruz Neto e Rosa Reis Dias da Cruz, sua infância dividiu-se entre Vila Isabel, onde nasceu, e a cidade mineira de Barba-cena, para onde sua família se mudou quando ele tinha quatro anos. Iniciou-se muito cedo na leitura e aos 11 anos já tinha lido Buffon, Flaubert, Balzac e os clássicos portugueses. Aos 15 anos, o conhecimento de Machado de Assis e Manuel Antônio de Almeida iria despertar nele a “coceira de escrever” de que nunca mais se libertaria. Ingressou na Faculdade de Medicina no início dos anos 1920, que logo abandonou para se dedicar ao comércio.

Atuou como jornalista profissional no início dos anos 1920. Publicou poemas nas revistas modernistas Verde, Antropofagia, Leite Crioulo e outras. Es-creveu seus primeiros contos por volta de 1927, quando fazia o Serviço Militar. Decidiu abandonar a poesia e se tornar ficcionista, adotando o pseudônimo Edi Dias da Cruz, como explicou: “Nome de família muitas vezes atrapalha. Devido

arte e cidades 2ed.indd 134 04/11/15 18:07

135

an

dr

éa

qu

eir

oz

go

ö

à campanha que fizeram contra os modernistas na Semana de Arte Moderna, justamente na época e por influência da mesma senti que tinha vocação para a literatura e resolvi adotar esse pseudônimo, evitando assim sofrimentos para a família” (Academia Brasileira de Letras).

Foi o romancista do Rio de Janeiro, dedicando-se ao retrato das camadas menos favorecidas da população carioca, descrevendo o cotidiano de pessoas que lutavam para sobreviver, gente simples e humilde. Para ele, o Rio era a Zona Norte, de onde vinha o Carnaval e onde ia buscar a maioria dos seus personagens de classe média.

Marques Rebelo era um apaixonado “pintor” da vida carioca. Mas muito do Rio por ele descrito já desapareceu – serenatas na Tijuca e a Lapa com casais de namorados passeando de bonde. Em toda sua obra, Rebelo cria cenários de uma riqueza sensorial como poucos outros escritores brasileiros. Tanto nos contos como nos romances, o enredo se desenvolve em quadros, onde os personagens vivenciam o espaço povoado pelos cheiros, pelo vento, pela chuva, pelo calor, pela luz intensa ou escuridão, pelos inúmeros sons; além das inúmeras formas e cores, descrições mais comuns nas escritas em geral.

Esta riqueza se torna evidente ao se constatar mais de 80 descrições de eventos sonoros distintos apenas nos seus contos. Raramente usava a onopa-topéia, normalmente trabalhava figuras de linguagem que tangiam a poesia. Usava, também, uma riqueza de termos para definir a qualidade sonora – silên-cio, sossego, fragor, ruído, barulho, som, marulho, chiado, vozerio, guinchol... Rebelo nos faz ouvir a cidade do Rio de Janeiro através dos tempos.

Talvez, por seu contato durante a infância com a natureza, no interior de Minas Gerais, Rebelo mostra uma sensibilidade apurada para os sons da natureza, descrevendo-os frequentemente como pano de fundo – o mar, ventos, tempestades, cigarras, grilos, pardais, pássaros, corujas e mosquitos, os quais por inúmeras vezes povoam seus contos, talvez pela latente preocupação da época com a febre amarela ainda presente na cidade, mesmo que controlada. Descreve, em especial, a paisagem sonora das encostas dos bairros da Tijuca, Grajaú e Vila Isabel, fruto de anos de moradia no local. São as águas das represas, dos rios e o coachar de rãs e sapos na Mata Atlântica.

Mas são os sons ouvidos numa vizinhança os mais ricos e frequentes em seus contos. Os sons do fundo dos quintais, os sons que saem de dentro das casas e chegam às ruas, relativamente silenciosas, e os sons das ruas que entram nas casas. São os sons de animais domésticos – cães, galos, gatos..., são

arte e cidades 2ed.indd 135 04/11/15 18:07

136

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

os sons humanos – vozes, risadas, gritos, conversas, sussuros, brincadeiras de crianças, brigas, palmas no portão, apito do guarda noturno, lixeiros, gritos de vendedores... e são os sinos das paróquias tocando, que não podem ser ouvidos de muito longe. São os sons do lazer de cidadãos comuns – futebol, músicas, rádios, bandas na praça, cinema...

Também fazem parte de cenários, diversos sons das atividades humanas, que em função da tecnologia, marcam as épocas da cidade do Rio de Janeiro – os bondes, os automóveis, os aviões, as obras, as sirenes...

Neste trabalho, mostra-se como os sons reforçam as identidades urbanas de áreas distintas e as diferentes identidades de uma mesma área em função das épocas, destacando trechos do livro Contos reunidos de Marques Rebelo (2002).

No primeiro caso, numa análise sincronista, são trabalhados dois contos de 1931: “Vejo a lua no céu”, retratando a área da Tijuca, conhecida por Trapichei-ro e Oscarina, retratando o Centro. No segundo caso, numa análise diacronista, são trabalhados dois contos que têm como cenário o bairro de Copacabana. O primeiro, de 1931, História de Abelha, e o segundo, de 1964, Conto à la Mode.

análise sincronista

Em Vejo a Lua no Céu, Rebelo retrata os sons do início dos anos 1920, guardados na sua lembrança, quando morou próximo à área do “Trapicheiro”, no bairro da Tijuca. Constatamos, neste primeiro recorte, a predominância dos sons da natureza de uma rua residencial na subida da encosta do Maciço da Tijuca (Rua José Higino), onde mora o personagem:

A casa era no Trapicheiro, ... dela se ouvia o murmúrio seco do rio, fio d’água que descia do morro, esbarrando nas pedras cinzentas. [...] Sentados à beira da pequena represa, aromas vegetais tomavam o ar, pássaros cantavam, ficávamos vendo o lençol escuro, com ciscos à tona, onde nossos rostos (papai tinha rugas) se refletiam. [...] O barulho igual e constante da água, jorrando dos escapatórios abafava nossas vozes. [...] Descíamos o caminho íngreme, serpenteante, ouvindo arrulhos queixosos na profundeza das folhas e estalidos de chão pisado, atravessávamos a pontezinha de pedra. [...] O alarido das rãs vinha morrer nos meus ouvidos.

arte e cidades 2ed.indd 136 04/11/15 18:07

137

an

dr

éa

qu

eir

oz

go

ö

Mamãe acudiu, aconchegando o cobertor, acalentando-o: ‘Dorme, dorme, meu amor [...]’ Ele sossegou. Veio o silêncio com grilos, com sapos, com galos. (REBELO, 2002, p. 131-141, 170)

Outros sons que marcaram as ruas residenciais cariocas no início do século XX são os pregões dos vendedores ambulantes que caminhavam de porta em porta. Esses gritos humanos foram alvo de proibições em diversas legislações no mundo.

Manhã de quinta-feira sem aula, oca, brumosa, com cheiro de almoço se fazendo. O quitandeiro vai aos saltos equilibrando os balaios nas pontas do pau como conchas duma balança. Grita o vassoureiro – a mulher chama-o, regateia, compra o espanador. [...] Nas manhãs quentes, cigarras estridulavam, borboletas amarelas volitavam… [...] Os vendedores passavam apregoando: – Não quer nada hoje, freguesa? – Laranja seletra!... – Olha a melancia!... [...] Odiávamos o mascate das rendas, toque, toque, com o metro na caixa de pau. [...]. (REBELO, 2002, p. 146-148)

Também comuns eram os sons das brincadeiras infantis que ocorriam nas ruas sossegadas e seguras, ou ainda a algazarra provocada pelos estudantes na saída das escolas, no caso abaixo, o Colégio Batista, que marcavam especí-ficas horas do dia.

Ficava do alto, espiando-os, ouvindo-lhes aos berros, as disputas, as brigas, o entusiasmo da peleja com bola de meia. [...]. (REBELO, 2002, p. 150)

Fugindo, tímido, à algazarra da saída, apressava-me pela rua José Higino abaixo, a bolsa de couro nas costas como se fosse mochila. (REBELO, 2002, p. 165)

Nos dois trechos a seguir, percebe-se como o “silêncio” urbano no fundo e o modelo morfológico de casas próximas, permitiam que o som produzido no espaço privado se tornasse público.

arte e cidades 2ed.indd 137 04/11/15 18:07

138

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

O gramofone rangeu próximo. Varre, varre, vassourinha... Não sabíamos o que fazer. Vem varrer meu coração. (REBELO, 2002, p. 142)

A rua despertou com o bate-boca confuso. A voz masculina que ofendia aclarou-se. Era do seu Alfredo. – Cínica! Ordinária! Fica pra aí! – Fala baixo, bandido! Olha a vizinhança! – Falo alto, bem alto. Arranje outro! (a cadeira caiu). – Quer escândalo, não é? – Quero é que todos fiquem sabendo quem você é, cínica. [...] A porta bateu, furiosa. Dona Zizi implorou: – Alfredo! [...] Mas os passos desesperados ecoavam na calçada sonora da madrugada. [...] E havia vento. Rajadas sufocantes de tempestade próxima traziam, da montanha, o ramalhar das árvores, grosso e ininterrupto como o fragor duma cascata. ...Cada clarão recorta-lhe, no vão da janela, o perfil imóvel, distante. Cada relâmpago mostra melhor o nariz reto, os lábios secos, o bigode à inglesa. Os olhos serenos, sob os óculos têm brilho d’água. (REBELO, 2002, p. 155)

Os eventos sonoros destacados a seguir são típicos da cultura carioca, retratando o Carnaval de dois modos. O primeiro, visto como algo impróprio para as classes média e alta, são as “escolas de samba”, e por isso mesmo “as-sustadoras”. O segundo, o corso, era o carnaval das classes média e alta, do qual o personagem podia participar.

O vento trazia a angústia do Salgueiro, num batuque desenfreado. As vozes bárbaras, negras, noturnas, crescem nos meus ouvidos, dimi nuem, quase se extinguem para voltarem depois mais altas, mais trágicas, na força de novas rajadas. (REBELO, 2002, p. 141)

Um caminhão, coberto de girassóis de papel fino, que saiu da rua José Higino, veio fazer a volta defronte à nossa casa. O pessoal, dentro, fantasiado, cantava, batendo palmas. A moça atirou serpentinas. Eu apanhei-as e enfeitei a grade do varandim. Papai não ralhou. (REBELO, 2002, p. 168)

Outra manifestação cultural comum na época, eram as serenatas, hoje desaparecidas, que com este relato evidencia, um pouco, o impacto sonoro causado na paisagem noturna, nada “romântico”.

arte e cidades 2ed.indd 138 04/11/15 18:07

139

an

dr

éa

qu

eir

oz

go

ö

Despertei com a lamúria, na rua, das sanfonas enamoradas, cava-quinhos, bandolim, flauta, na valsa tristíssima. Abrem-se janelas. O cantor principia. E a serenata passa, sobe, vai-se perdendo no caminho do rio, ao luar claro e frio da madrugada. (REBELO, 2002, p. 167)

O trecho a seguir, a exemplo de Cullen, mostra a oposição entre o sos-sego da Rua José Higino e o burburinho no Largo da Segunda Feira, próximo, mas que já marca uma área comercial do bairro, onde o personagem transita, apenas acompanhado pelo pai, em momentos raros.

O largo fervia com o povaréu que ia para as corridas, para o futebol, para a cidade flanar. [...] O pai esperava-o na estação agitada. Os carregadores agrediram as janelinhas. [...] O cheiro açucarado da gasolina valia por um perfume. Os bondes solavancavam. [...] Os jornaleiros berravam nos estribos. (REBELO, 2002, p. 152-174)

O contraste dos sons de um bairro residencial, ou mesmo de uma área comercial de menor porte, com os sons do centro da cidade, pode ser observado em trechos do conto Oscarina, que mostra a movimentação ruidosa causada pelo transporte público, pelo comércio aberto para rua “vazando seus sons” e pela multidão que transita.

O Largo de São Francisco regurgitava de povo na tarde quase noite. O anúncio luminoso acendia e apagava. […] Se o rádio não fosse tão fanhoso, compreender-se-ia a letra do samba muito bem. [...] Estava repleto o bonde, gente pendurada nos balaústres. Dlém! Dlém! O motorneiro batia a campainha, impaciente. Cavou um lugar apertado no reboque [...] Tentou assobiar. Olhou anúncios. O veículo comia ruas, cortava praças, atravessava avenidas, jogando casa para trás, barulhento e desengonçado. (REBELO, 2002, p. 16)

Comum de uma cidade portuária, como o Rio de Janeiro, são os sons do cais, o burburinho dos estivadores, do “entra e sai” da carga e passageiros, e o apito dos navios e barcas que então avisavam a movimentação no porto.

Através da janela, a Ilha Fiscal levantava-se das águas, como uma aparição mágica, sob o dia perfeito. E a vela deslizava no azul. Barcas apitavam. (REBELO, 2002, p. 46)

arte e cidades 2ed.indd 139 04/11/15 18:07

140

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

análise diacronista

O conto História de Abelha traz um pouco dos sons do bairro de Copa-cabana no final dos anos 1920. Nesta época, o escritor, morador do bairro, era também o diretor artístico do jornal de bairro O Atlântico, que circulou entre 1926 e 1927. Seu primeiro contato com a área foi servindo no Forte Copaca-bana. O bairro então se consolidava como um modelo de modernidade, aberto aos padrões norte-americanos, num crescimento acelerado como constatamos no trecho abaixo.

O arranha-céu se construindo não dava descanso aos operários. Lá es-tavam eles, mesmo sendo domingo, lidando com a rangedora máquina de misturar cimento às pedras, enchendo de concreto as grandes fôrmas de madeira. [...] A eletrola enchia completamente a esquina com o Sonny Boy, a história tristíssima dum menino que morre nos braços do pai, cantor de jazz, quando o ninava, mas que, apressado o compasso, é um fox divertido e bisado nos cabarés. (REBELO, 2002, p. 105)

Quarenta anos depois, Conto à la mode traz um pouco dos sons do bairro de Copacabana, retratando o momento do “Golpe Militar” de 1964. O bairro, já intensamente verticalizado, é agora ocupado por banhistas, nos finais-de--semana, oriundos de todas as demais áreas da cidade. O tráfego de veículos é intenso e o mar quase não pode mais ser ouvido, apesar de ainda não estar afastado das edificações da orla pelo aterro.

Sete horas eram, o sol de verão já forte se mostrava, e os banhistas seminus começavam a encher a estreita e tão promovida faixa praiana, [...] enquanto pela pista de asfalto, sem sombra de árvores, as filas de automóveis se alongariam, vagarosas, entre buzinadas, estampidos de motores e agressivos e estúpidos escapamentos abertos, que a inerte Inspetoria de Veículos não conseguia coibir. [...] Zumira recolhia a louça, o avental molhado. Surdo, subia até eles o marulho das ondas, mais vivo, um vago vozerio esportivo, e o sol entrava até o tapete persa, outra impulsiva aquisição européia. (REBELO, 2002, p. 328)

Cabe destacar aqui, também desse conto, um relato sonoro bastante raro que engrandece a memória sonora da cidade do Rio de Janeiro, que é a

arte e cidades 2ed.indd 140 04/11/15 18:07

141

an

dr

éa

qu

eir

oz

go

ö

passeata “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, em apoio ao movi-mento militar pela destituição do Presidente João Goulart, que teve início em Copacabana e fim na Cinelândia.

[...] mas meio milhão, o que forneceu ótima panorâmica para as objetivas da reportagem – e tome sinos, tome foguetes, tome lenços brancos, tome buzinas e sirenes, tome chuva de papel picado tombando dos arranha-céus como na Broadway! (REBELO, 2002, p. 349)

Conclusão

Ao longo do trabalho, verifica-se que os relatos sonoros acrescentam inúmeras informações e enriquecem a percepção dos espaços urbanos, per-mitindo uma nova forma de “reler” as cidades.

Os sons de uma cidade possuem diferentes contemporaneidades, num mesmo espaço escutam se sons oriundos de várias épocas. Somente no âmbito cultural pode se entender as inúmeras “camadas sonoras”, para então propor se qualquer intervenção qualitativa ou quantitativa que envolva a preservação, inserção ou eliminação de sons num ambiente.

Constatou-se que, metodologicamente, é possível construir uma me-mória sonora urbana “resgatando”, de modo contextualizado, os sons da lite-ratura. Entretanto, pela amplitude desse trabalho, delineam-se várias frentes de abordagem voltadas a demonstrar como os sons reforçam as identidades urbanas. Um tímido caminho encontrado foi a criação de um mapa clicável, que permite construir, mesmo que parcialmente, a memória sonora vinculada aos ambientes urbanos.

Para tanto, os inúmeros relatos sonoros foram cadastrados levando em consideração os diversos tipos de sons produzidos, a percepção do escritor a respeito de cada som, a época de ocorrência e o local da ocorrência dos sons. Cada um dos sons – fragmento sonoro, que compõe um relato, foi inserido em um mapa, respeitando a contemporaneidade da malha urbana e do registro sonoro. Este registro ao ser pesquisado (clicado), permite a visualização do relato sonoro literário, da imagem iconográfica do local na respectiva época de ocorrência do som e a escuta desse som eletroacusticamente criado.

arte e cidades 2ed.indd 141 04/11/15 18:07

142

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Essa pesquisa possui infinitos desdobramentos, mas espera-se que ela possa, acima de tudo, demonstrar a importância dos sons na vida das pessoas e das cidades, entendendo-os como representações culturais e, deste modo, fazer com que as atuais paisagens sonoras tão complexas e difíceis de serem compreendidas, sejam melhor escutadas.

notas

1 Raymond Murray Schafer nasceu em Ontário, Canadá, em 1933. Formou-se em música na Inglaterra - Royal Schools of Music, mais tarde pelo Royal Conservatory of Music e pela University of Toronto. Lecionou na Simon Fraser University, Canadá (1965-1975) quando fundou o “WSP - World Soundscape Project” e participou da fundação do “WFAE - World Forum for Acoustic Ecology” (1993). Seus principais livros são The soundscape - our sonic environment and the tuning of the world (1977) e The thinking ear (1986).

2 Mascaramento de um som (som mascarado) é o quanto de decibéis ele deve ser amplificado além de seu nível normal para que possa ser percebido na presença de um outro som (som mascarante).

3 Obras: Oscarina, contos (1931); Três caminhos, contos (1933); Marafa, romance (1935); A estrela sobe, romance (1939); Stela me abriu a porta, contos (1942): Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida, biografia (1943); Cenas da vida familiar, crônica de viagem (1943); Cortina de ferro, crônica de viagem (1956); Correio europeu, crônica de viagem (1959); O trapicheiro, romance (1959); A mudança, romance (1962); A guerra está entre nós, romance (1968).

referências

Academia Brasileira de Letras. Disponível em: <www. academia. org. br>. Acesso em: 18/10/2005.

BARRETO, Paulo (João do Rio). Crônicas efêmeras – João do Rio na Revista da Semana. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

BÖHME, Gernot. Acoustics atmospheres – a contribution to study of ecological aesthetics. Soundscape - The Journal of Acoustic Ecology. v. 1, n. 1, 2000.

CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. Lisboa: Edições 70, 1983.

HALL, Edward. A dimensão oculta. Lisboa: Relógio D’água, 1988.

HALL, Stuart. Representation: cultural representations and signifying practice. Londres: Sage Publications, 2003.

LE GOFF, Jacques et al. A nova história. Lisboa: Edições 70, 1977.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

arte e cidades 2ed.indd 142 04/11/15 18:07

143

an

dr

éa

qu

eir

oz

go

ö

LYNCH, Kevin. Good city form. Cambridge: The MIT Press, 1996.

REBELO, Marques. Contos reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

RIEDEL, Dirce. O mundo sonoro de Guimarães Rosa. [Tese de Concurso para a Cátedra de Português e Literatura do Curso Normal do Instituto de Educação do Estado da Guanabara]. Rio de Janeiro, 1962.

RONCAYOLO, Marcel. Lectures de villes - formes et temps. Marseille: Éditions Parenthèses, 2002.

SCHAFER, R. Murray. The soundscape - our sonic environmental and tuning of the world. Rochester: Destiny Books, 1994.

SOPHER, David E. The landscape of home. In: MEINIG, D.W. (Org.). The interpretation of ordinary landscapes - geographical essays. Oxford: Oxford University Press, 1979.

VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora UnB, 1998.

arte e cidades 2ed.indd 143 04/11/15 18:07

arte e cidades 2ed.indd 144 04/11/15 18:07

145 ö

eloÍsa Petti Pinheiro

a cidade como obra de arte: do renascimento à cidade burguesa

As sociedades se organizam de maneira urbana adquirindo certas proprie-dades: crescimento demográfico e construtivo, expansão das áreas urbanizadas, transformação do meio rural, uma vez que aldeias se transformam em cidades, dominação das classes sociais rurais pelos citadinos e predominância de práticas sociais geradoras de cultura urbana.

A componente arquitetônica entra quando qualquer estruturação social não existe sem espaço. E a natureza social implica que o espaço da cidade seja necessariamente histórico, no sentido de posicioná-lo em marcos temporais, geográficos e culturais. Ou seja, o espaço é sempre concreto, possuindo qua-lidades físicas. Não é um fenômeno estático, encontra-se em permanente transformação.

Sendo a cidade um espaço arquitetônico, observamos que na história dos assentamentos urbanos, muitas cidades possuem normas urbanísticas cujo ponto de partida é uma visão efetivamente morfológica do espaço urbano. Foi assim na Antiguidade, na Idade Média, no Renascimento, na cidade Barroca, na do século XIX e chega até a atualidade.

As edificações e a forma das cidades são as formas transparentes de expres-são cultural. Quanto mais se conhece da cultura, da estrutura da sociedade em vários períodos da história, em diferentes partes do mundo, mais seremos capazes de interpretar seu meio ambiente construído. As cidades podem ser classificadas como reflexo do governo ou de ideias – cidade catedral, cidade estado, portuária, cidade imperial, cidade ideal, sede de principado, cidade capital etc.

arte e cidades 2ed.indd 145 04/11/15 18:07

146

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A qualidade da arquitetura é determinada pela habilidade do arquiteto/urbanista, do projetista, em relacionar os elementos arquitetônicos, tanto no interior como no entorno das edificações. A arquitetura é formada por uma série de espaços articulados, cada um possuindo qualidades particulares e relacionados entre si. O desafio do desenho da cidade está em construir har-moniosamente as experiências no espaço ao longo do tempo. O desenho da cidade deve ser organizadamente dotado de energia arquitetônica de forma que a influência de edifícios de qualidade se irradie para fora, articulando todo o espaço construído da cidade.

O objetivo do projeto é atingir a população que vai usar estes espaços e mexer com suas emoções e sensibilidade enquanto se movem por ele. A função do projeto é fazer com que essas experiências sejam harmoniosas, continuamente, a cada instante e de todos os pontos de vista.

A integração entre arquitectura e urbanística existirá desde o início do Renascimento até o século XIX. Todavia a arquitectura absorve primeiro as novas idéias nas realizações, enquanto o urbanismo se desenvolve apenas em termos teóricos, desde a concepção da cidade ideal aos tratados de arquitectura e desenho de cidade. (LAMAS, 1992, p. 168)

Assim, podemos estudar a história da cidade por diversos pontos de vista e um deles é através da forma urbana. E, dentro da forma urbana, se pode ana-lisar como se pensa a cidade através do embelezamento urbano. Neste texto, pretendemos expor como a cidade pode ser projetada, pensada e construída como uma obra de arte.

Desde finais do século XIX e princípios do XX, podemos encontrar modelos e teorias urbanísticas que consolidam e divulgam a Arte Urbana que alguns autores associam com o “urbanismo artístico” preconizado por Camillo Sitte, outros a identificam com a “arte na rua”, ou mesmo, com as propostas monumentais típicas do movimento City Beautiful dos Estados Unidos, o que nos leva a associar com as estratégias de embelezamento e a monumentalidade das cidades europeias. Esses movimentos de embelezamento surgem da vontade de converter as cidades em obras de arte e podemos identificar intervenções de embelezamento desde o Renascimento, e técnicas de pensar a cidade geo-metricamente desde a Idade Média.

Algumas cidades como Paris, Londres e Viena aplicam em suas ruas o embelezamento e a monumentalidade não só com a introdução de elementos

arte e cidades 2ed.indd 146 04/11/15 18:07

147

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

decorativos e detalhes, mas, também, buscam transformar as próprias cidades em monumentos. Essa tradição monumental fica mais conhecida a partir dos bulevares de Haussmann em Paris, da Regent’s Street em Londres e a Ringstrasse em Viena. No século XX, reflete-se no orgulho cívico aliado ao impulso co-mercial dos EUA e nas colônias britânicas da Índia, da África e da Austrália, e culmina na megalomania da Alemanha de Hitler, da Rússia de Stalin, da Itália de Mussolini, da Espanha de Franco e até do Brasil durante o regime autoritário do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Todo esse pensamento da cidade como obra de arte, monumentalidade e embelezamento não surge no século XIX, tem suas raízes no Renascimento e nos novos modos de vida urbana depois da Idade Média.

Na análise sobre o embelezamento urbano, que nasce na Europa renas-centista, vai aos Estados Unidos e volta à Europa, conclui-se que não há nada que ajude a compreender esse fenômeno. Uma corrente em que se encontra todo tipo de situação econômica, social, política e cultural, independente de ideologia, em que o mais importante, o que existe em comum em todas as situações nas quais se implanta o modelo é a concentração no monumental e no superficial, além da forma de tratar a arquitetura como símbolo do poder, cuja finalidade é impressionar. (HALL, 1996, p. 211) Sua ideologia está em seus partidários acreditarem na beleza, nos belos edifícios e cenários, e crerem que estes, além da estética, podem mudar a má situação das cidades, combatendo a feiúra e a desordem.

Outra tese, sobre essa forma de projetar a cidade, defende a existência de uma intenção de combinar beleza com função, e por isso se incorporam profissionais para o desenho e a execução dos projetos. No caso do movi-mento City Beautiful, as bases encontram-se na chamada American Discovery of Europe, em que a Europa representa o progresso com suas cidades que, sob o modelo classicista, parecem mais dinâmicas do que as da América do Norte, mais limpas, melhor administradas, mais bonitas e onde o crescimento e o desenvolvimento estão controlados.

antecedentes

As cidades antigas são cidades de forma fechadas e seu contraste com a típica metrópole radial de hoje é absoluto. Na Idade Média, o renascimento comercial torna indispensável um local fixo para que mercadores e viajantes

arte e cidades 2ed.indd 147 04/11/15 18:07

148

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

repousem e, para tal, é necessário que seja um local com boa comunicação, com possibilidades de defesa e próximo de um curso de água. As cidades passam a ser o centro de quase todo o progresso intelectual e artístico, principalmente no segundo período da Idade Média. Assim, ao final deste período, quase todas as cidades da Europa Ocidental tinham conquistado certo grau de independência do controle feudal.

A forma da cidade medieval possui uma ordem militar e estético-ideo-lógica cujo traçado deve oferecer uma boa defesa e, normalmente, está cercada por muralhas. Com o nascimento da arte gótica, as novas normas de ordem e luz, matemática e razão, cor e verticalidade, introduz na cidade o pensamento artístico. A Idade Média não sente a beleza da natureza, ela cria a beleza artística urbana. (LE GOFF, 1998)

O traçado se forma por um re-parcelamento do traçado romano com a introdução da cidadela ou do mosteiro e a adaptação ao relevo. Encontram-se plantas mais regulares em cidades destinadas à colonização e defesa do território, como as bastides francesas, por exemplo, Aigües Mortes de 1240. A cidade é do tipo fechada, ocupa o menor espaço possível e o centro, por ser o mais valori-zado, cresce em altura. Não existem espaços vazios e, muitas vezes, os andares superiores se projetam sobre as ruas estreitas e sinuosas. Com o crescimento acelerado, esse tipo de traçado gera uma cidade sem higiene nem conforto, e relaciona-se a falta de condições sanitárias com a densidade demográfica.

Já no final da Idade Média, encontram-se algumas experiências de cidades planejadas em grid regular e irregular. Mestres do gótico têm o grid das cidades como um problema artístico e matemático. Nas cidades florentinas do século XIV, em terreno plano, encontramos um uso sofisticado da trigonometria onde funções do seno são relacionadas com as medidas geométricas do círculo, ou seja, dos arcos e cordas, uma vez que os quadros diminuem quanto mais longe do centro. Como a plano da cidade de Terranuova, cidade florentina fundada em 1337, ou de Grenade-sur-Garonne, na França, fundada em 1300.

A consciência artística criada pelos planejadores florentinos precede à atitude renascentista de que uma cidade, assim como uma importante cons-trução, deve ser produto de um projeto de arquitetura. No século XV, Alberti compara a cidade com um palácio. “O principal ornamento da cidade é a or-denada distribuição das ruas, praças e edificações de acordo com sua dignidade e funções.”

arte e cidades 2ed.indd 148 04/11/15 18:07

149

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

a cidade do renascimento e barroca

Encontram-se mudanças significativas no desenho da cidade depois da perspectiva e do racionalismo do Renascimento, que rompe com as reações sensoriais intuitivas dos projetistas anteriores. A partir do século XV, a arqui-tetura, as teorias estéticas e os princípios da urbanística seguem ideias seme-lhantes: o desejo de ordem e disciplina geométrica. Em discursos, tratados, esquemas, projetos e realizações, a forma da cidade está subordinada à unidade e à racionalidade. Nem mesmo o local é obstáculo. Se a topografia é irregular, o terreno deve ser uniformizado, por mais absurdo que isso custe em material e mão de obra, simplesmente, para fazer o plano funcionar.

Entre o desenho urbano que se desenvolve no Renascimento e o do período do Barroco, encontram-se pontos em comum: os princípios do dese-nho espacial e os princípios da arquitetura que os compõem estão estritamente relacionados; e as regras de proporção aplicadas, em geral, às plantas, aos ele-mentos tridimensionais e ao desenho detalhado das fachadas se estendem à organização do espaço urbano. A arquitetura e a urbanística têm como base a disciplina e a ordem, e uma restrição à informalidade assimétrica.

A simetria condiciona a distribuição funcional do programa e das massas construídas, constituindo uma composição equilibrada em relação a um ou mais eixos e planos. A subordinação da composição urbana aos efeitos espaciais e à perspectiva é mais do que um elemento técnico de representação espacial tornando-se objetivo da própria concepção, comandando o desenho urbano. Ape-sar da integração e da subordinação das construções a um conjunto urbanístico projetado como um todo, cada edifício pode conservar a sua individualidade.

A urbanística renascentista apresenta uma ordenação consciente dos edifícios segundo uma forma preestabelecida. Entre os séculos XV e XVIII, a nova forma urbana reflete os novos traços culturais de uma nova economia – o capitalismo mercantilista e a nova estrutura política: despotismo ou oligarquia centralizada.

Identificam-se as primeiras intervenções no traçado medieval que tem como característica o enclausuramento, a desordem e o congestionamento em ruas tortuosas e becos escuros que são considerados como um incentivo ao crime. Como solução inicia-se um processo de demolição de construções, abertura de ruas retas e praças de forma geométrica regular, porém ainda em pequena escala. Os trechos com ordem renascentista – espaços abertos e cla-

arte e cidades 2ed.indd 149 04/11/15 18:07

150

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

rificações – modificam a cidade medieval e identificam-se nas remodelações parciais de Roma e Londres ou em áreas de expansão de Paris e Berlim.

Um típico exemplo de uma intervenção renascentista em uma cidade construída com claros objetivos da formação de um espaço como obra de arte é a reformulação do Camplidoglio de Roma com projeto de Miguelangelo. A transformação do centro político da Roma medieval, uma área desordenada, para criar um espaço simétrico com elementos que originalmente eram uma composição através de um eixo focal.

A colina do Campidoglio era um espaço sem ordem alguma, confuso, com suas construções de estética diferenciada e sem um diálogo entre elas. Em seu projeto, Miguelangelo estabelece uma linha de força e de simetria, conferindo ordem ao lugar. A estátua equestre de Marco Aurélio centraliza o projeto e é o ponto focal principal do espaço urbano. São propostas novas fachadas, criando integração entre a arquitetura das construções, a localização da escultura e a modulação do piso. Um novo acesso permite ao usuário ir se integrando ao espaço, conforme sobe as escadas e descobre, aos poucos, a perspectiva criada. A modulação do piso, em elipse e arcos de circunferência, cria a ilusão de um espaço geometricamente regular. Tudo é simetria, ordem e regularidade.

Figura 1 - Vista da Campigoglio, Roma.

Foto da autora, 2007.

arte e cidades 2ed.indd 150 04/11/15 18:07

151

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

Outros objetivos na forma de projetar cidades são por razões estratégicas, como Palmanova, no Veneto; por decisão aristocrática, como Versailles, na França e Karlsruhe, na Alemanha; ou pelas duas razões como San Petersburg, na Rússia.

As cidades ideais também são heranças do Renascimento. Através de um ideal de proporção e regularidade, as propostas de cidade ideal ficam como um objetivo teórico, com perímetro fixo e composição por parte. A forma urbana é produto de um projeto de arquitetura.

No barroco, um ponto focal pode se transformar numa força de desenho poderosa que traz ordem ao caos. A função da geometria, na planificação, é es-clarecer e orientar. Os planejadores mostram-se confiantes a respeito do tipo de ordem que impunham: no seu planejamento tridimensional não há lugar nem mesmo para o tempo. Assim como não há preocupação com as peculiaridades topográficas do sítio. Todas as modificações e adaptações, que são inevitáveis com o crescimento posterior, foram por eles deixadas fora de cogitação. Os resultados são planos, muito simétricos, e a sua ordem exclusiva e rígida para admitir, como regra, as necessidades das gerações futuras. A planta é uma realização de natureza geométrica e se alterar esse tipo de planta, introduzir elementos novos, é prejudicar a sua simetria, até mesmo, os elementos estéticos superficiais são preservados através de severos regulamentos administrativos.

Os principais elementos da urbanística barroca são a simetria em relação a um ou mais eixos, a conclusão em perspectivas e edifícios isolados integra-dos como se fosse um só, formando um coerente conjunto arquitetônico. E sua aplicação se dá de três formas: rua principal retilínea, bairros de traçado reticular e recintos especiais.

A rua, ou seu traçado, é um elemento de grande importância. A rua tem percurso regular que mantém a função de acesso aos edifícios, mas é, pela primeira vez, eixo de perspectiva, traço de união e de valorização entre elementos urbanos. A rua deixa de ser apenas um percurso funcional – como na Idade Média –, para se tornar também um percurso visual, decorativo, de aparato, próprio ao deslocamento da carruagem e organizador de efeitos cênicos e estéticos.

Por exemplo, as intervenções que realiza o papa Sisto V em Roma, no final do século XVI, onde através de pontos focais como pontos de tensão co-locados estrategicamente na frente das principais igrejas de Roma, abrem-se

arte e cidades 2ed.indd 151 04/11/15 18:07

152

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

avenidas enlaçando os principais pontos de peregrinação católica, iniciando pela Piazza del Popolo e finalizando na Praça de São Pedro, diante do Vaticano.

Figura 2 - Piazza del Popolo, Roma

Foto da autora, 2007.

Os prolongamentos urbanos se dão em cidades onde a nova burguesia ganha pretensões quase aristocráticas. As novas plantas se distinguem dos an-tigos núcleos medievais pelo emprego de linhas retas, quarteirões regulares e, na medida do possível, ruas e avenidas radiais, a cortar imparcialmente velhos obstáculos e campos novos.

Com o boom arquitetônico dos últimos decênios do século XVI e os primeiros do século XVII, muitos soberanos europeus promovem muitas ordenações simétricas e regulares nas grandes cidades, como as praças reais de Paris, a praça maior de Madrid, e outras, onde a uniformidade dos recursos arquitetônicos supre a insegurança da composição perspectiva nesta escala. O absolutismo exige cenários prefeitos e indiscutíveis.

Em Paris, os recintos especiais se constroem com fins estéticos e sim-bólicos, com edifícios religiosos e civis; residenciais em linha; ou mercado e edifícios comerciais. Muitos dos recintos especiais servem de moldura para a estátua do rei, as Places Royales, concebidas para compor a paisagem e colocar em evidência um monumento, definindo uma perspectiva ou uma

arte e cidades 2ed.indd 152 04/11/15 18:07

153

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

decoração. Porém, a construção dos recintos fechados não se justifica apenas através da finalidade política de servirem como molduras para as estátuas do rei. Vincu la-se, também, a razões de ordem econômica e a um nível mais alto de exigência de eficácia urbana: a construção de uma praça permite realizar uma intervenção localizada e uma adequação funcional, definindo centros comerciais e diretivos da cidade. São recintos fechados, limpos e ordenados, que criam um contraste com os arredores sujos e empobrecidos.

Nesse período, os princípios do desenho espacial e da arquitetura estão estreitamente relacionados com regras de proporção nas plantas e nos elementos tridimensionais: desenho detalhado das fachadas que se estendem até à orga-nização do espaço urbano. Arquitetura e urbanismo se baseiam na disciplina e na ordem, e há uma repulsa à informalidade assimétrica. Buscando identificar uma diferença entre a urbanística renascentista e a barroca, intui-se que o espaço renascentista reflete um equilíbrio sossegado, completo em si mesmo, limitado e em repouso – por exemplo, as praças de Vosges, Victoires e Vendôme, em Paris –, e no barroco, encontramos a ilusão do espaço infinito, perspectivas infinitas – como na place de la Concorde, em Paris; na cidade de Versailles; e nas intervenções em Nancy, todas na França – com simetria em um ou mais eixos e um conjunto arquitetônico coerente com edifícios isolados formando uma tela única.

Figura 3 - Place Vendôme, Paris

Foto da autora, 2007.

arte e cidades 2ed.indd 153 04/11/15 18:07

154

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Considera-se que Paris, no século XVII, transforma-se no berço de uma revolução decisiva na urbanística, que se difunde pela Europa e América do Norte.1 São realizadas intervenções nos cais ao longo do Rio Sena, transfor-mados em passeios públicos, rodeados de construções altamente valorizadas, o que significa um grande incremento de imóveis para alugar (immeuble à loyer). Algumas dessas estruturas decorrem de um desenho de edifícios projetados num bloco único, como se fossem um só, ao longo da rua. São derrubadas as muralhas e se abre a cidade, dando a oportunidade a uma primeira operação urbanística de grande porte, com a abertura dos primeiros bulevares. Além das já citadas Places Royales.

No século XVIII, a abertura da Rue Royale, 1732 – projeto de Jacques Gabriel – possui as fachadas construídas antes do interior dos edifícios, for-mando uma fachada única, mesma estratégia usada na Place Vendôme. A praça dedicada a Luís XV, mais tarde chamada de La Concorde, se projeta para ser a moldura da estátua do rei que lhe dá nome. Muda a conformação – aberta em três de seus lados – rio Sena, Champs Elysées e Les Tulleries – e um lado fechado com dois edifícios simétricos projetados também por Gabriel. O espaço não está limitado, mas sua composição geométrica sugere os limites.

A muralha do século XIV deixa de ter utilidade na época de Luís XIV, que a derruba e a substitui por largas vias arborizadas que acompanham o se-micírculo, entre 1660 e 1705. Os boulevards, que significam passagem sobre a muralha de uma cidade fortificada, oferecem aos parisienses amplos passeios sombreados, que se constituem numa das primeiras e principais características da época, sendo seus traçados fundamentais na rede concêntrica de Paris, além de ser um símbolo da nova cidade “sol”. Estas artérias transformam-se nas avenidas mais animadas da cidade, centro de distrações e de comércio.

A novidade e a maestria da solução adotada parece ser uma primeira e coerente comprovação das mais atualizadas estéticas da urbanística dos séculos XVII e XVIII, que introduzem, na cidade, uma nova relação quantitativa e espacial entre natureza e arquitetura.

A organização do espaço urbano e das edificações vem atender à demanda de uma nova aristocracia, conduzindo as transformações na cidade em duas direções: a multiplicação de equipamentos aristocrático-burgueses – igrejas, teatros, fontes públicas e “passagens”2 nas áreas centrais e um crescimento simultâneo de novos bairros nas faixas externas aos bulevares.

arte e cidades 2ed.indd 154 04/11/15 18:07

155

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

Outra intervenção importante, na França, em que a cidade é tratada como uma obra de arte acontece em Nancy, também no século XVIII. Em 1753, Héré de Corny projeta uma experiência axial e de simetria unindo duas partes da cidade – a cidade medieval e a vila nova renascentista do século XVI. Os principais elementos são a clausura espacial, a simetria, as vistas, a unifor-midade de fachadas, a rua reta e a perspectiva infinita. A Praça Real (Luis XV), hoje Stanilslaus, onde se localiza o palácio da Prefeitura, no limite da cidade nova com a medieval, está no nó do sistema urbano de duas diretrizes perpen-diculares, uma que atravessa Nancy de leste a oeste pela linha de fortificações e outra em linha reta entrando pela cidade medieval, formando um conjunto de três praças: a Praça Stanilslaus; a Praça de la Carrière com 2 fileiras de árvores e fachadas em tela formando um cone ótico; e a Praça do Hemiciclo, com co-lunas e o Palácio do Intendente ao fundo. Os dois palácios estão contrapostos num grande eixo. Metodologia axial e simetria fazem parte da nova concepção urbana de modificação dos tecidos preexistentes.

A mudança na urbanística da Grã-Bretanha começa com a Convent Garden Piazza, a partir de 1630. Projeto de Iñigo Jones, em forma de um retângulo, tem casas nos lados norte e leste em fileira com desenho uniforme e outras casas idênticas ladeiam a Igreja de Sant Paul, formando o lado oeste. O lado sul permanece aberto mantendo a vista para as colinas de Highgate e Hampstead. Duas ruas, no meio dos lados norte e leste, penetram na praça.

Ainda na Inglaterra e sob o domínio do barroco, existem maravilhosos desenhos livres da demanda formal de simetria axial, como na cidade de Bath. Mantendo os princípios acima mencionados, mas deixando as formas geomé-tricas fechadas, os crescents de Bath se abrem para a natureza, inovam na forma urbana e rompem com o formalismo rígido do barroco.

No século XVIII, Bath passa a ser muito procurada pela aristocracia, que vai desfrutar de suas águas termais, provocando uma série de melhoramentos em pequena escala e levando os proprietários da vizinhança a elaborar planos ousados para as redondezas residenciais. Em alguns prolongamentos espinais, como a Gay Street, o King’s Circus e o Royal Crescent, junto com a Queen Square, tem-se uma nova ordem de urbanização na sua melhor e mais cativante forma.

Os projetos que marcam a história do desenho urbano em Bath são: Queen Square, de John Wood (pai) de 1729, onde Wood consegue criar uma composição arquitetônica ordenada partindo das diversas exigências de seus arrendatários; King’s Circus, de John Wood (pai) e John Wood (filho) de 1754,

arte e cidades 2ed.indd 155 04/11/15 18:07

156

AR

TE E

CID

AD

ES

Imag

ens,

Dis

curs

os e

Rep

rese

ntaç

ões

].

com 96m de diâmetro e 33 casas formando três fachadas em arco de circunfe-rência, com 3 andares, sótão e porão e altura uniforme de 13m; Royal Crescent, de John Wood (filho) construído de 1767 a 1774, uma perfeita integração entre forma construída e paisagem natural, com 30 casas com fachadas rigidamente controladas que fecham plantas diferentes.

Com forma semi-elíptica, com eixo maior com 155m que se abre para um prado em declive, o Royal Crescent não é apenas a aplicação de uma figura geométrica, mas compõe com o local uma elevação que domina o vale inteiro, protegida pelo parque que se estende abaixo, além dos jardins na parte dos fundos, que são visíveis através dos portões de ferro. John Wood (filho) deixa a compacidade, antes aplicada, projetando o Royal Crescent onde a forma usada faz o contraponto com um gramado em suave pendente. A natureza já não está a serviço da arquitetura, agora se concede a mesma importância a ambas.

Figura 4 - Crescent, Bath

Foto da autora, 1997.

O Lansdowne Crescent, do arquiteto John Palmer, é um exemplo onde, além da sinuosidade horizontal do conjunto, a estrutura se move vertical-mente subindo uma colina, descendo para o vale e, a continuação, subindo outra elevação, que Bacon compara com a forma espacial da sailing city de Paul Klee. (BACON, 1995, p. 183) É um projeto em uma escala regional, que não

arte e cidades 2ed.indd 156 04/11/15 18:07

157

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

contém nenhum detalhe arquitetônico radical ou pouco conhecido ou mesmo truques, contudo o conjunto está livre do planejar axial barroco, sendo uma declaração poderosa de uma nova e inusitada forma urbana. O desenho urba-no se sobressai pela invenção de engenhosas situações espaciais, explorando as condições topográficas e acidentais do território e utilizando-as para obter formas de grande significado.

século XiX e a Cidade burguesa

Os problemas das cidades do século XIX são muito semelhantes depois da Revolução Industrial do final do século XVIII – a grande migração de po-pulação, a rápida urbanização, os problemas gerados pela insalubridade, a falta de habitação, a dificuldade de circulação, o empobrecimento do centro. Tudo motiva os governantes a reagir com intervenções que ensejam as reformas urbanas. Essa situação não é exclusiva das cidades europeias, pois, nas urbes americanas, do norte e do sul, encontramos situações muito semelhantes às que desencadeiam reformas urbanas e intervenções no tecido urbano europeu.

A diferença da cidade pré-industrial da industrial não está apenas na dimensão, mas se constitui de uma entidade nova, que se contrapõe a outra e tende a usá-la segundo sua própria lógica, mudar seu sentido e transformá-la por completo. As transformações e o crescimento urbano trazem como con-sequências o desaparecimento dos vínculos feudal e comunitário; a liberação do solo; e o aproveitamento das economias externas mais imediatas. São dois os aspectos estruturais para a mudança: renda imobiliária típica do mercado capitalista no espaço urbano, onde terrenos livres dentro ou fora da cidade não têm valor de mercado e sim do uso que se faça deles, pois, num regime de crescimento cada vez mais acelerado, o solo se converte em mercadoria escassa no sistema urbano; e a nova articulação dos transportes e das comunicações, ou seja, a inovação tecnológica.

Com a demolição das fortificações, se destrói a forma-estrutura que foi a essência e a imagem da cidade durante séculos. Isso significa que a circulação se prolonga através do traçado viário entre a cidade velha e a nova. Os pontos que orientam o novo modelo de organização da cidade são a entrada no mercado de solos da propriedade nobiliária e religiosa; a privatização de bens públicos; e a evolução do cinturão de circunvolução depois da demolição das muralhas.

arte e cidades 2ed.indd 157 04/11/15 18:07

158

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Nos finais do século XVIII e princípios do XIX, as novas ordenações legais consolidam a esfera da propriedade e da iniciativa privada. O poder público só pode interferir de acordo com formalidades fixas e definidas com precisão. Qualquer intervenção da administração pública se considera um obstáculo. As cidades crescem e os controles diminuem, enquanto o que há para controlar aumenta. Desta combinação nasce uma paisagem caótica e desconcertante.

O ambiente urbano muda por completo no século XIX. As cidades crescem de forma rápida e trazem más consequências para seus habitantes, como doenças e o caos urbano. Multiplicam-se os bairros miseráveis, uma grande parte da po-pulação não possui habitação digna e salubre, e a sujeira está por toda parte, um cenário que se cria pelo laissez-faire, quando os métodos de controle urbanístico estão desacreditados e se espera que o mercado regule tudo. Os relatórios dos médicos, a insalubridade da cidade, que ocasiona taxa de mortalidade muito alta, e as epidemias, que matam milhares de pessoas, chamam a atenção da administração pública que decide intervir para mudar a situação, restaurar a habitabilidade da cidade e substituir a imagem do caos pela da ordem.

O industrialismo, a principal força criadora do século XIX, produziu o mais degradado ambiente urbano que o mundo jamais vira; na verdade, até mesmo os bairros das classes dominantes eram imundos e congestionados. (MUMFORD, 1982, p. 484)

Nesse ambiente deteriorado, as pessoas perdem a sensibilidade. As mo ra-dias são da pior qualidade, não só as dos pobres, como também as construídas para a classe média. Os trabalhadores amontoam-se em velhas casas abandonadas transformadas em casas de cômodos e cortiços. Muitas vezes, famílias inteiras vivem em um só compartimento. Os resultados dessa aglomeração são a grande concentração de sujeira, os esgotos correndo a céu aberto, os ratos que transmi-tem a peste bubônica e os piolhos que transmitem o tifo. A falta de asseio e as habitações úmidas e escuras propiciam a proliferação de bactérias e infecções.

Segundo Hobsbawm (1996, p. 295), as cidades transformam sua forma, imagem e estrutura pela pressão das construções e do planejamento e pela busca do lucro, mas, nos dois casos, não aceitam a presença dos pobres, mesmo reconhecendo que são um mal necessário. Para os planejadores, os pobres são uma ameaça pública capaz de criar distúrbios, e, por isso, seus pontos de con-centração devem ser cortados por avenidas e bulevares. Dessa forma, os pobres dispersam-se em direção a pontos não especificados, à procura de habitações.

arte e cidades 2ed.indd 158 04/11/15 18:07

159

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

O congestionamento do tráfego, a insalubridade e a feiura interferem não só na vida das classes subalternas, mas também ameaça às classes supe-riores, fazendo com que se proponham novas formas de intervenção pública. Benevolo (1992, p. 141) divide a classificação da cidade da era industrial em duas etapas: a cidade liberal, anterior a 1848, que apresenta um ambiente de-sordenado e inabitável, resultado da superposição de muitas iniciativas públicas e privadas não regulamentadas e não coordenadas, fruto do laissez-faire; e a cidade pós-liberal, posterior a 1848, quando se estabelece um novo modelo de cidade em que se limita a liberdade das iniciativas privadas pela intervenção da administração pública, com regulamentos e execução de obras públicas, o que permite a reorganização das urbes. Com a vitória da burguesia depois de 1848, se estabelece um novo modelo de cidade.

Aos poucos se passa aos poderes públicos a gestão dos setores em des-vantagem no mercado livre. Surgem os instrumentos de controle – códigos de obras – codificação de alturas e distâncias entre construções e infraestruturas, regulamentação de parâmetros de edificações; divisão do solo, modalidades e tipologias de equipamentos, modelo de planos, e a definição de usos vai se constituindo numa bagagem técnico-disciplinar, sempre a partir da hipótese de uma composição-divisão entre espaço público e privado.

Assim se forma a cidade burguesa, uma cidade onde não há espaço para os pobres. Os novos governos, posteriores a 1848, executam projetos de refor-mas nas cidades, com intervenções que mudam a sua estética e sua estrutura, transformando-as em cenários onde a população pobre não pode penetrar, e a burguesia sente-se à vontade. Os bulevares de Paris, o Ring de Viena, o ensanche de Barcelona ou a Londres vitoriana são exemplos desse tipo de intervenção realizada durante o século XIX.

Elaboradas as leis e obtida a viabilidade econômica, necessita-se de uma boa argumentação para que a opinião pública aprove as intervenções. Circular, sanear e embelezar são os três principais argumentos presentes nos discursos que justificam as intervenções nos espaços construídos, apesar de não serem os únicos. Há também a questão da ordem pública, o medo das revoltas e a busca da monumentalidade.

As urbes começam a introduzir, em suas ruas, novos elementos que provocam mudanças sem previsão. São os trens, os bondes, os novos servi-ços urbanos como abastecimento de água, iluminação e redes de esgoto. São

arte e cidades 2ed.indd 159 04/11/15 18:07

160

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

também os novos meios de comunicação como os jornais, o telégrafo e o te-lefone. As ruas são pavimentadas, separando-se a caixa da rua da calçada, onde transitam os pedestres. Pouco a pouco, os modos de vida urbana mudam e a sociedade encontra-se no meio de um turbilhão. Chega a cidade burguesa, a cidade moderna. M. Berman (1986, p. 15) define muito bem a experiência da modernidade:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.

As intervenções para o alargamento das ruas e a abertura de avenidas e bulevares permitem a reconstrução de imóveis com novas fachadas, criando uma nova paisagem urbana e uma nova estética. As ruas retas da cidade clás-sica permitem uma perspectiva que destaca os monumentos eventualmente localizados em suas extremidades. Nas reformas urbanas, a preocupação com a estética, o desenho, a perspectiva, a ornamentação, o traçado urbano e a ordenação da cidade é um forte argumento que justifica as intervenções. No século XIX, as cidades querem transformar-se em “obras de arte”.

As mudanças urbanas geralmente começam pela definição de um projeto de infraestrutura, como a abertura de eixos e bulevares para um reagrupamento de setores da cidade, uma das exigências da burguesia, para manter o controle unitário da forma da cidade, frente à anarquia do mercado e da produção nos maiores centros metropolitanos e nas capitais. O projeto consiste em configurar os pontos de confluência mais qualificados da nova cidade burguesa, através da construção de ambientes representativos e espaços funcionais.

A Paris do Second Empire (1852-1870) é a máxima expressão dessas mu-danças urbanas, com as intervenções realizadas sob a autoridade de Napoleão III e as ordens do Prefeito Haussmann. Segundo M. Roncayolo (1989, p. 223), Paris é o resultado da vontade política em busca da ordem social, do prestígio, do desenvolvimento dos negócios e até de uma reforma autoritária da socie-dade. Duas são as causas que justificam essas transformações: em primeiro lugar, estão as epidemias, as revoltas, a obstrução e a depredação do centro; e, em segundo, está o deslocamento das residências e atividades em direção noroeste, com o risco de o centro se tornar obsoleto.

arte e cidades 2ed.indd 160 04/11/15 18:07

161

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

A velha Paris, medieval e romântica, fica inabitável. As epidemias de cólera matam 50 mil pessoas entre 1832 e 1849, e mais de 11.500 em 1853. (GAILLARD, 1991) Paris também é a cidade das revoluções e das barricadas. As conspirações nascem no centro superpovoado, nas ruas estreitas e sinuo-sas, onde qualquer um pode mover-se e esconder-se com segurança. Nesse ambiente encontra-se o conspirador, que tem na boemia parisiense, na vida desregrada e nas tabernas seu ponto de encontro.

Esse problema não se limita às ruas do distrito central. Os bairros mise-ráveis, o amontoamento, a sujeira e as epidemias fazem de toda a cidade um grande problema sanitário, e até os bairros ricos se veem afetados pelo estado de insalubridade. Essa situação interfere na imagem da cidade, uma imagem que se quer mudar, para que reflita as aspirações da nova cidade, da cidade burguesa.

Na cidade haussmanniana é introduzida uma nova forma de construção da paisagem urbana. As intervenções no núcleo central tratam o conjunto dos espaços heterogêneos como uma entidade única e o dotam de isotropia. Constrói-se uma imagem urbana mais coerente, com um tipo de arquitetura definida, em que o imóvel se integra no espaço público através de uma pro-jetação regulamentada.

Figura 5 - Avenida da Ópera, Paris

Foto da autora, 2007.

arte e cidades 2ed.indd 161 04/11/15 18:07

162

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A questão estética busca a qualidade do efeito arquitetônico. Em 1855, Haussmann, numa circular, faz referências à “harmonia a ser instituída nas novas fachadas” (GRAVAGNUOLO, 1998, p. 42-43), indicando a homo-logação dos elementos construtivos – balcões, molduras, cornijas – como norma indispensável a ser somada ao simples controle dimensional de altura e cubagem dos edifícios.

Haussmann dota Paris de bulevares criando corredores de fachadas uni-formes, elementos que constituem peça essencial na estética haussmanniana e em sua estratégia urbana. As avenidas e os bulevares são planejados com o objetivo de que o olhar, de uma extremidade a outra, seja guiado pelas linhas de fuga. A nova monumentalidade conjuga-se com a harmonia entre a política viária e os novos espaços públicos. Haussmann é leal ao espaço urbano, como um cenário onde

[...] as fachadas dos edifícios de apartamentos ao longo das novas ruas portam detalhes mínimos. Suas linhas horizontais foram enfatizadas, e harmonizadas pela intervenção oficial da cidade, para acentuar os efeitos da perspectiva. Estandardização e a carência de decoração minimizam os custos da construção, e o efeito foi saudado como ‘moderno’. (SUTCLIFFE, 1993, p. 86)

Por trás da abertura das ruas retas haussmannianas supõe-se que a pla-nificação retilínea tenha muito mais um objetivo estético do que militar, e tenha sido implantada mais para impor beleza à cidade do que para ajudar no deslocamento das tropas. (SUTCLIFFE, 1973, p. 39) O tema da retificação e “regularização” das ruas e do espaço público é essencial no urbanismo moderno, ainda que finque suas raízes no urbanismo clássico e no barroco.

As intervenções haussmannianas mudam a maneira de pensar a cidade, tomando como principal elemento a rua. A rua do século XIX destrói e mo-difica a rua medieval. A caixa da rua aumenta, as fachadas são reconstruídas e os trechos irregulares são substituídos por outros com desenho regular, geo-métrico e reto. O espaço haussmanniano é o espaço público – a rua, o passeio, as praças –, o espaço da mobilidade. A hierarquia do sistema de comunicações muda a ordem de valores.

Daqui para frente, a rua ou o bulevar comandam o imóvel; a percée, o desenho das parcelas; a posição, as funções; o espaço público, o

arte e cidades 2ed.indd 162 04/11/15 18:07

163

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

agenciamento dos espaços privados. O alinhamento não é mais um procedimento corretivo que respeita o plano. A nova rede viária transforma-se no princípio de organização que se superpõe à cidade antiga ou que regula o agenciamento dos espaços conquistados. A projeção zenital, própria ao engenheiro, abstrai a rede da paisagem urbana e toma o caminho da perspectiva de estilo clássico e da harmonia dos volumes. (RONCAYOLO, 1983, p. 102)

A cidade a que chamamos haussmanniana é a cidade burguesa por exce-lência, o local institucional da moderna sociedade burguesa, um espaço que se configura de acordo com a sua lógica e se supõe um modelo espacial concreto. A harmonia haussmanniana se consegue pela uniformidade das grandes massas e a variedade dos detalhes, uma combinação que forma um conjunto esteti-camente coerente. A cidade está concebida por hierarquias que controlam os volumes formados por unidades distintas, mas pensadas umas em relação às outras: os imóveis, as ruas, os cruzamentos, os jardins e os quarteirões. É uma vitrine da modernização antes de ser um centro de produção que se aciona pelo encontro entre um urbanismo autoritário e as novas estruturas do capitalismo. Uma cidade onde o bulevar e a edificação formam um conjunto indissociável. A haussmannização se associa muito mais à estética da cidade que a funcio-nalidade de seu projeto. A cidade se transforma num exemplo de experiência estética, de um espetáculo público sem igual: seu projeto de funcionalidade acaba muito mais conhecido pela criação de um belo conjunto, pela concepção de uma cidade como uma obra de arte.

A situação de Londres não é muito diferente da de Paris em meado do século XIX. A abertura da Regent’s Street, apesar de anterior aos trabalhos de Haussmann em Paris, segue os mesmos princípios. A necessidade de ligar a nova área da Regent’s Park, ao norte, com a área da aristocracia inglesa, ao sul, se resolve com a abertura de uma nova via que divide a cidade em leste e oeste. John Nash, que também propõe a abertura de parques na cidade, projeta a Regent’s Street com uma nova área, com uma arquitetura controlada e destinada à nova classe social burguesa como sua principal área de lazer e passeio.

Londres pode ser considerada mais moderna por seus parques, passeios e áreas verdes. Apesar de ter aberto a Regent’s Street em princípios do século XIX, estabelecendo uma separação entre as ruas e praças habitadas pela nobreza e a burguesia, e os becos e casebres ocupados pelos operários e trabalhadores em

arte e cidades 2ed.indd 163 04/11/15 18:07

164

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

geral, a cidade mantém seu aspecto sujo, com uma população pobre e com desempregados pelas ruas. É uma capital gigante que incha sem planificação, sem uma autoridade municipal única, e que acolhe todo tipo de indústria. É uma cidade cosmopolita com um porto de grande movimentação, uma po-pulação misturada em todos os escalões da sociedade e que abriga uma grande delinquência e criminalidade. Londres também é cenário de intervenções com a construção de novos edifícios públicos, parques, regularizações ao longo das margens do Tâmisa, reconstruções na City e a abertura da Kingsway.

Viena une seu centro medieval com os subúrbios mais longínquos, atra-vés da abertura da Ringstrasse e de um conjunto de edifícios públicos e residências particulares – projetados no local das antigas muralhas e do Glacis, uma área no edificandi com uma profundidade entre 500 e 1000 m, através de um concurso público. Em sua área central, Viena já havia passado por uma renovação das fachadas introduzindo o barroco, mas mantém seu traçado medieval.

Antes de se pensar um projeto para o Glacis, esta área já era usada como passeio público que se converte em local animado com cafés, quiosques e locais arborizados. Já apropriado como área recreativa da cidade, depois dos acontecimentos e revoltas ocorridas em 1848, se redefine política e militar-mente o papel da esplanada. Com a necessidade de juntar em uma estrutura contínua as duas partes da cidade junto com a necessidade de renovação de alguns equipamentos urbanos além do patrimônio habitacional para fazer frente de modo adequado às funções potenciais da capital, se convoca, em 1857, um concurso com os elementos: área para as demonstrações e evoluções militares; área residencial imperial; bairros residenciais; bulevar arborizado de conexão; e soluções de enlace espacial e viário entre as duas partes da cidade. O objetivo é criar uma imponente e moderna capital imperial. São destinados 4/5 da área para monumentos, espaços públicos, ruas e parques; e 1/5 para edificações privadas. O Ringstrasse é a expressão visual dos valores de uma classe social, está controlado pelos habitantes prósperos e profissionais liberais.

a Cidade do Movimento City Beautiful

O Civic Art Movement surge nos Estados Unidos com influência da Europa no final do século XIX, composto por ideias sociais, econômicas e espaciais que resultam na construção de edifícios públicos ou semipúblicos, em conjunto ou não, com características clássicas. A princípio se associa o termo Civic Art mais

arte e cidades 2ed.indd 164 04/11/15 18:07

165

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

à ideia de “arte na cidade” do que a visão mais disciplinar da “arte de construir cidades”. Suas iniciativas incluíam o uso de esculturas nos parques e praças e murais nos edifícios públicos. Propunham o embelezamento dos mobiliários urbanos, pontes, cais e prédios e sugeriam portais como entrada de parques e fontes. Nos anos 1890, nos EUA, a burguesia tem inquietudes cívicas, pre-ocupada com a crescente heterogeneidade étnica e cultural e o aumento das desordens que associa ao enramado social urbano.

Este movimento, que dura até as primeiras décadas do século XX, foi uma tentativa de trazer ordem e padrão ao crescimento urbano caótico dos Estados Unidos. A “arte urbana” tem raízes que vão desde o movimento arts and crafts ao preservacionismo, desde a tradição pitoresca até o tratamento classicista dos centros urbanos. No fundo, está uma vontade implícita em transformar a cidade numa obra de arte. Uma aspiração geral que se traduz na reformulação das visões tradicionais do “embelezamento urbano”.

A expressão City Beautiful é então usada para descrever o conjunto de reformas propostas por paisagistas para melhoria dos municípios e do desenho civil, baseado nos bulevares e passeios das grandes cidades europeias, princi-palmente nas obras de Haussmann em Paris e a Ringstrasse. Sua expressão se encontra nas grandes cidades do centro e do oeste dos Estados Unidos com a intenção de superar os complexos de inferioridade e estimular as empresas. Tem como ideal a proposta de realizações físicas no desenho urbano como construção de centros cívicos, criação de sistemas de parques e bulevares e embelezamento dos parques existentes.

A ideologia do movimento City Beautiful se baseia na beleza funcional, mais que decoração ou adorno superficial, procurando aliar beleza à fun-cionalidade. Seus planos buscam oferecer desenhos funcionais e atrativos, preocupando-se com a solução dos problemas urbanos, principalmente, com a circulação e o fluxo. No movimento City Beautiful, depois de 1910, as questões de estética urbana que estão na base do movimento, em particular a projetação de conjuntos monumentais de edifícios públicos, dão lugar à chamada City Efficient, que expressa a vontade de primar outros aspectos funcionais por cima dos estritamente formais.

Uma eficaz avaliação do movimento City Beautiful deve levar em consideração o modo como seus defensores o interpretam. O movimento foi, primeiro, um esforço para adornar as cidades

arte e cidades 2ed.indd 165 04/11/15 18:07

166

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

americanas com beleza, carentes que eram pelas características do século dezenove. Foi, em segundo lugar, um esforço consciente para juntar a beleza clássica com a paisagem natural construída e com elementos funcionais essenciais. Combina apreciação estética com algum conhecimento, e algumas vezes uma percepção aguçada de políticas e legítimas necessidades. Foi, finalmente, amplo em sua força. Concebe a cidade e seus habitantes como um organismo, tendo vida e crescimento suscetíveis de definição, racionalidade e controle. (WILSON, 1980, p. 189)

O plano para Chicago (1909) de Daniel Burnham e Edward Bennett simboliza a maturação da proposta do movimento City Beautiful e deveria restaurar a harmonia visual e a estética perdida, de modo a criar um ambiente físico necessário para que dele possa surgir uma harmoniosa ordem social. O plano está composto por um sistema de vias diagonais e circulares projetadas para evitar aglomeração e congestionamento e a eliminação da via que circun-da o Lago Michigan, abrindo esta parte como área de lazer para a população. Também propõe a expansão de áreas para parques e bulevares, a preservação de florestas, a proposta para um centro cultural, a abertura de áreas para expansão do crescente comércio, assim como seu projeto para reorganizar o tráfego de passageiros e de cargas. Limita-se o gabarito dos edifícios e institui-se a uni-formização de fachadas. O ponto focal do projeto, e um dos pilares de todo o movimento, é o projeto para o centro cívico, com sua enorme cúpula para ser vista e sentida como símbolo de ordem cívica e unidade.

o fim de uma era: da cidade como obra de arte à cidade funcional

A solução dos problemas de desenho da cidade contemporânea não se apoia na forma ou nas relações que existem como simetria ou rigidez geomé-trica. O fim da uma época que teve sua origem no renascimento dá lugar a uma nova: a cidade do Movimento Moderno.

Segundo Bacon (1995, p. 182), no modernismo, a inter-relação entre os edifícios não avançou além dos princípios do Renascimento e, inclusive, falhou ao empregar esses princípios. Com exceção de Kenzo Tange e o projeto para o Estádio Olímpico de Tóquio, o autor considera difícil encontrar duas ou mais estruturas modernas que se relacionem com outra coisa que não sejam

arte e cidades 2ed.indd 166 04/11/15 18:07

167

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

os princípios do desenho da Renascença recomendando, dessa forma, que os projetos sejam revistos em relação à estrutura renascentista. O projeto para o Estádio Olímpico de Tóquio, de 1964, mostra uma nova geometria de relação no desenho dos edifícios, que pode se estender numa grande composição.

A cidade modernista é fruto das experimentações e formulações teóri-cas que, na primeira metade do século XX, repudiam a cidade tradicional e a substitui por um novo modelo. Esse conjunto de ideias vem para substituir os resíduos da urbanística formal. Entre as duas guerras, os arquitetos moder-nos se esforçam na tarefa de oposição à urbanística formal e na organização da estrutura e forma da nova cidade. Tanto a arquitetura como a urbanística moderna busca romper com as formas tradicionais de construção de edifícios e de cidades. Essa atitude anti-histórica, de recusa de formas comprometidas com a cidade antiga, reflete-se também na rejeição e destruição dos próprios centros históricos.

Nesta etapa, formulam-se as experiências de destruição e abandono do quarteirão, da rua e até da própria praça; são propostas as tipologias das torres, dos conjuntos e do bloco; e a cidade deixa de ser estruturada com base na mistura funcional para ser zoneada, quebrando a integração recíproca dos vários elementos morfológicos que constituem a estrutura urbana. Os novos modelos de organização do espaço urbano recusam as formas e a configuração morfológica da cidade tradicional.

Se analisarmos a forma urbana anterior à Primeira Grande Guerra, identifica-se uma primeira mudança no pensamento sobre a cidade e suas formas. Tony Garnier e sua cidade industrial; Ebenezer Howard e sua cidade jardim; Eugène Henard e sua cidade sobre estacas e o urbanismo subterrâneo; Patrick Geddes e sua cidade em evolução; são alguns exemplos de teóricos cujo pensamento propõe mudanças na forma urbana da cidade “dita” tradicional.

O entreguerras vem a ser um período de reconstrução das cidades euro-peias, momento importante de reconstrução e de repensar a cidade tradicional. As tensões sociais são grandes com o desemprego, as migrações e a falta de habitações, sendo necessária a reconstrução rápida e em larga escala: novos alojamentos onde se necessita planificação de bairros, conceber conjuntos ur-banos, construção de habitações a baixo custo e esquema de ordenação urbana.

Em toda a Europa se realiza uma revisão dos instrumentos legislativos relativos à administração da cidade e do território, fato que permite a concepção de planos de ordenação para as cidades grandes e médias. Diferente da cidade

arte e cidades 2ed.indd 167 04/11/15 18:07

168

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

tradicional, os edifícios são concebidos isoladamente, com uma composição feita como uma maquete, onde as peças podem ser deslocadas como num mostrador.

A forma urbana, portanto, decorre das considerações habitacionais em detrimento da composição de espaços urbanos. As novas tipologias habitacio-nais, que se dispõe no terreno conforme necessidades higiênicas, de insolação, de arejamento e de acessos, fazem com que os edifícios deixem de pertencer à estrutura superior do quarteirão e se tornem autônomos. As ruas deixam de pertencer às relações físico-espaciais da cidade e se reduzem a traçados de circulação e serviço. As implantações dos edifícios decorrem das melhores condições para a habitação, e não da posição no quarteirão. É a cidade funcional.

Diferente, assim, da cidade tradicional, onde o alojamento e o edifício de habitação são determinados pelo lote, gerados pela posição e implantação previamente determinadas pela forma urbana. Na cidade modernista, pelo contrário, a edificação determina a forma urbana. O espaço entre as constru-ções torna-se apenas um espaço residual, área que sobra da implantação das mesmas no terreno, não sendo mais objeto de desenho urbano.

notas

1 Por exemplo, o plano de Pierre Charles L’Enfant para Washington, final do século XVIII.

2 Passagens são ruas internas aos quarteirões, que passam por baixo dos edifícios, equipadas com lojas, restaurantes e serviços, abrigados do tempo e do movimento das ruas externas

referências

BACON, Edmund N. Design of cities. London: Thames and Hudson, 1995.

BAIROCH, P. De Jericó a México: historia de la urbanización. México: Trillas, 1990.

BENEVOLO, Leonardo. Orígenes del urbanismo moderno. Madrid: Celeste, 1992.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

DETHIER, J.; GUIHEUX, A. (Org.). Visiones urbanas. Europa 1870-1993: la ciudad del artista: la ciudad del arquitecto. Madrid: Electra, CCCB, 1994.

GAILLARD, M. Paris au XIXe siècle. Marseille: AGEP, 1991.

arte e cidades 2ed.indd 168 04/11/15 18:07

169

Elo

ísa

PE

tti P

inh

Eir

o

ö

GIEDION, Sigfrido. Espacio, tiempo y arquitectura (el futuro de una nueva tradición) 2. ed. Barcelona: Hoepli, 1958. 2 v.

GRAVAGNUOLO, Benedetto. Historia del urbanismo en Europa 1750-1960. Madrid: Akal Arquitectura, 1998.

HALL, Peter. Ciudades del mañana: historia del urbanismo en el siglo XX. Barcelona: Serbal, 1996.

HOBSBAWM, E. J. A era do capital 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

KOSTOF, Spiro. The city shaped: urban patterns and meanings through history. London: Thames and Hudson, 1991.

LAMAS, José M. Ressano Garcia Lemos. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.

LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

MONCLÚS, F. J. Teorías arquitectónicas y discurso urbanístico: de las operaciones de ‘embellecimiento’ a la reforma global de la ciudad en el s. XVIII. Ciudad y territorio, Madrid, n. 79, p. 25-40. ene./mar. 1989,

MORRIS, A. E. J. Historia de la forma urbana: desde sus orígenes hasta la Revolución Industrial. 4. ed. Barcelona: Gustavo Gili, 1992.

MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

PANERAI, Philippe R.; CASTEX, Jean; DEPAULE, Jean-Charles. Formas urbanas: de la Manzana al Bloque. Barcelona: Gustavo Gili, 1986.

PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos. Salvador: Edufba, 2002.

PINON, P. Le projet de Napoléon III et d’Haussmann: la ‘transformation de Paris’. In: DES CARS, J.; PINON, P., Paris-Haussmann. “le pari d’Haussmann” Paris: Editions du Pavillon de l’Arsenal-Picard, 1991.

RONCAYOLO, Marcel. La croisssance de la ville. Les schémas, les étapes. In: BERGERON, Louis. (Ed.). Paris: génèse d’un paysage. Paris: Picard, 1989. p. 217-261.

RONCAYOLO, Marcel. La production de la ville. In: DUBY, Georges (ed.) Histoire de la France Urbaine 4: la ville del âge industriel: le cycle haussmannien. Paris: Du Seuil, 1983. v. 4. p. 73-155.

RONCAYOLO, Marcel. La ciudad. Barcelona: Paidós, 1988.

SICA, Paolo. Historia del urbanismo: El siglo XX. Madrid: IEAL, 1981.

arte e cidades 2ed.indd 169 04/11/15 18:07

170

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

SUMMERSON, John. El lenguaje clásico de la arquitectura: de L.B. Alberti a Le Corbusier. 9 ed. Barcelona: Gustavo Gili, 1994.

SUTCLIFFE, A. Paris: an architectural history. New Haven; London: Yale University Press, 1993.

SUTCLIFFE, A. Ocaso y fracaso del centro de Paris. Traducción de Antonio J. Desmonts Gutiérrez. Barcelona: Gustavo Gili, 1973.

WILSON, W. H. The ideology, aesthetics and politics of the City Beautiful movement. In: SUTCLIFFE, A. (Org.). The rise of modern urban planning - 1800-1914. London: Mansell, 1980.

arte e cidades 2ed.indd 170 04/11/15 18:07

171 ö

Carlos eduardo CoMas

arquitetura moderna, pintura abstrata, escultura transparente, construção qualificada e porosa: notas sobre o comércio entre as artes visuais no século XX

Painting toward architecture pode se traduzir como Pintando em direção à ar-quitetura. É ensaio de Henry-Russel Hitchcock (1948) no catálogo da exposição de mesmo título, apresentando em diversos museus americanos a coleção de arte moderna da Miller Company, que produz luminárias sob a presidência de Burton G. Tremaine Jr. A coleção se reúne para mostrar, primeiro, “pintura abstrata do primeiro quarto do século XX com influência no desenvolvimento da arquite-tura moderna, segundo, pintura e escultura abstratas contemporâneas com valor potencial para os arquitetos contemporâneos”. (HITCHCOCK, 1948, p. 5) As obras expostas incluem óleos de Picasso, Gris, Braque, Le Corbusier, Léger, van Doesburg, Mondrian, Klee, Arp, Feininger, Moholy-Nagy e Kandinsky, esculturas de Jacques Lipchitz, Henry Moore, José de Rivera e Alexander Calder. As ilustrações do catálogo incluem a Casa Hickock (1900) de Frank Lloyd Wright, o Café de Unie (1925) de J.J.P. Oud e a Bauhaus (1925) de Walter Gropius, a Vila Savoye (1929) de Le Corbusier, o projeto de Wright para um hotel de montanha (1948) e o de Oscar Niemeyer e Burle Marx para uma casa de praia e seus jardins (1948), ambos encomendados por Tremaine.1

Para Hitchcok, as formas arquitetônicas, mesmo as presumivelmen-te imitativas, como a pirâmide egípcia ou a coluna grega, tem um grau de abstração geométrica que as distancia da natureza. A arquitetura é sempre abstrata. A pintura abstrata é uma criação do século XX. A rejeição da cópia

arte e cidades 2ed.indd 171 04/11/15 18:07

172

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

de formas naturais pelos pintores e escultores modernos se compara à rejei-ção do reuso de motivos arquitetônicos pelos arquitetos modernos, ambas opostas à imitação. Arquitetura e pintura então se estimulam reciprocamente. A abstração se associa à recuperação dos valores arquitetônicos da composição pictórica no cubismo sintético e movimentos paralelos. Cézanne e Seurat são precursores cuja obra envolve já a distorção da figura em função do interesse plástico. Permanecendo relativa em Picasso, Braque, Gris e mesmo Mondrian (com formas abstraídas de objetos naturais), a abstração é absoluta em outros artistas franceses, alemães e russos (com formas totalmente não-figurativas). Por volta de 1912, a pintura mais avançada se aproxima duma pesquisa sobre forma pura, onde as linhas retas fortes se relacionam com chapadas de cor que se aproximam de figuras geométricas elementares. Os resultados trans-cendem as duas dimensões e lidam com profundidade e projeção de uma maneira não-perspectiva.

Pouco antes, no início do século, ainda que comprometido com o orna-mento, Wright inova emulando os padrões geométricos simples das gravuras japonesas na verticalidade enfática dos planos de paredes das Casas da Pradaria, nos planos suspensos dos seus telhados, na planta aberta e na interpenetração de interior e exterior. A difusão da obra de Wright na Europa coincide com a simplificação e aumento de escala dos elementos da pintura de vanguarda e sua tradução em escultura. Surge uma nova base para a composição arqui-tetônica de grande escala, com peso similar ao da arte oriental para Wright. A pintura abstrata oferece uma alternativa para o funcionalismo radical e para o historicismo, o que revive um estilo específico, como o eclético. Aparece como uma fonte válida de referências formais quanto aos produtos da enge-nharia, máquina ou construção utilitária. Contudo, a exploração efetiva das ideias dos novos pintores e das descobertas de Wright só começa após finda a primeira guerra mundial.

Hitchcock dá o construtivismo por etapa intermediária na definição visual duma arquitetura nova, com suas esculturas-maquetes e seus cenários de grandes elementos não-figurativos no espaço real dum palco vazio sem fundo, espécie de arquitetura temporária. Para ele, a arquitetura moderna nasce por volta de 1923 na França, Holanda e Alemanha, pelas mãos de Le Corbusier, J. J. P. Oud, Walter Gropius e Mies van der Rohe. Hitchcock aponta as afinidades de Oud, Rietveld e Mies com o neoplasticismo. Associa Gropius e a Bauhaus a Kandinsky, Klee e Feininger. Mostra o vínculo entre o Le Corbusier arquiteto e o pintor, purista

arte e cidades 2ed.indd 172 04/11/15 18:07

173

Ca

rlo

s e

du

ar

do

Co

ma

s

ö

que quer superar o cubismo junto com o amigo e sócio Ozenfant. Reconhece que a arte abstrata não assiste o arquiteto nos seus problemas estruturais e só contribui para o seu papel social por um condicionamento indireto do público, mas reitera a sua importância enquanto pesquisa plástica difícil de levar a cabo em escala arquitetônica plena. Conclui:

As formas visuais de uma nova arquitetura fundada em novos métodos de estrutura e dedicada ao serviço mais pleno das necessidades humanas, estavam cedo implícitas numa certa característica - franqueza de enfoques estruturais e funcionais na obra de vários precursores antes da arte abstrata aparecer. Mas essas formas permaneceram largamente invisíveis (exceto na obra de Wright), irrealizadas e apenas imanentes, até que o contato catalítico com as experiências dos artistas avançados de um quarto de século atrás levaram-nas à cristalização.(HITCHCOCK, 1948, p. 54)

Hitchcock nota que a influência da pintura sobre a arquitetura nos anos de 1930 diminui, enquanto cresce o interesse na figuração entre os artistas. A exceção é a afinidade do surrealismo abstrato de Arp com as curvas livres de Aalto e da escola brasileira onde Niemeyer e Burle Marx despontam. Na obra de Aalto e Niemeyer, a curva fluindo livre em planta é um “contraponto melódico ao ritmo regular da construção em esqueleto e veículo poderoso de expressão arquitetônica.”(HITCHCOCK, 1948, p. 102) Os jardins do último lhe parecem traduzir diretamente o biomorfismo abstrato, tal qual o parque inglês do século XVIII traduz as paisagens clássicas de Poussin e Claude Lorrain. O biomor-fismo arquitetônico e paisagístico enriquece o repertório moderno e induz, além disso, a valorizar a materialidade da construção, na trilha da abordagem da superfície por Arp quando trabalha em madeira e Miró ao jogar com manchas.

Hitchcock distingue as sugestões de forma básica recebidas da pintura e escultura pelos arquitetos modernos da colaboração dos mesmos com pintores e escultores, destacando os murais de azulejos de Portinari em várias obras de Niemeyer e o Prometeu de Lipchitz para o Ministério da Educação no Rio. Aprova a complementação da arquitetura de geometria rigorosa pela escultura e pelo mural figurativo ou de linhas mais soltas, elementos subordinados de composição, sugerindo que são opostos que mutuamente se completam e acessórios que a aperfeiçoam. A escultura ganha apreciação particularizada:

arte e cidades 2ed.indd 173 04/11/15 18:07

174

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A obra de Lipchitz no Brasil, os relevos de Rivera e Noguchi no transatlântico Argentina e o móbile de Calder no Terrace-Plaza sugerem que experiências posteriores dos escultores modernos com vazios, com elementos lineares no espaço e com movimentos oferecem adjuntos mais satisfatórios aos edifícios modernos. Os planos transparentes ou esvoaçantes e as linhas de força materializadas desta nova produção são peculiarmente consoantes com os novos métodos de construção e simpáticos à expressão básica da arquitetura moderna.2

(HITCHCOCK, 1948, p. 51)

Hitchcock alude às experiências posteriores de Henry Moore e Barbara Hepworth sem lembrar que as “esculturas transparentes” de Lipchitz são para-lelas a estudos de Picasso e Giacometti e posteriores a trabalhos de Archipenko. É este que introduz o furo como “dispositivo” para relacionar planos em lados opostos de uma escultura na altura do tronco. Amplia assim a gama de vazios, classicamente restrita à articulação dos membros entre si, com o corpo e/ou com a base. Nos Boxeadores (1914), as massas já estão rotadas ao redor dum furo central. Na Figura de pé (1920), um furo circular no tronco substitui um seio.3 Lipchitz integra a equipe de L’Esprit Nouveau e o vazio só surge em sua obra após instalar-se, em 1925, no atelier projetado para ele por Le Corbusier (1923), geminado ao atelier do escultor Miestchaninoff.4 Passa então a desafiar a gravi-dade sem abdicar do monumental. Troca a geometria cubista pelo movimento de volumes curvilíneos. Sobre temas de música, dança ou circo, cria bronzes que instauram um novo jogo com o espaço, entre eles Pierrô (1925), Arlequim com guitarra (1925), Figura (1926), Alegria de viver (1927) e O grito (1928-29), a penúltima feita para o jardim da Vila Noailles em Hyères, projeto de Robert Mallet-Stevens. O expressionismo se associa, desde 1930, à exploração de te-mas clássicos ou bíblicos num tom barroco. Mecenas das artes que cede o seu castelo em La Sarraz para a realização do I CIAM, Hélène de Mandrot compra Mulher reclinada com guitarra (1928) e encomenda o Canto das vogais para sua casa de campo, outro projeto corbusiano (1931). O primeiro Prometeu estrangulando o abutre é um gesso de 10 m de altura feito para a Exposição Internacional de 1937, em Paris, complemento do Guernica de Picasso no contraponto à águia nazista. (WILKINSON, 1996)

Lipchitz emigra para Nova York em 1941. Em 29/7/1942, Gustavo Ca-panema escreve ao ministro-conselheiro Fernando Lobo nos Estados Unidos, para que contate o artista e lhe encomende escultura a fixar-se na parede cega

arte e cidades 2ed.indd 174 04/11/15 18:07

175

Ca

rlo

s e

du

ar

do

Co

ma

s

ö

do auditório do Ministério da Educação e Saúde (1936-1945), por indicação de Oscar Niemeyer. A obra deve representar uma vitória, alusão à guerra em curso. A iniciativa sela o descarte das propostas para o local de Victor Breche-ret e Bruno Giorgi. No mesmo dia, a embaixatriz e escultora Maria Martins escreve a Capanema. Bem relacionada no meio artístico, amiga íntima de Marcel Duchamp, Maria é testemunha do êxito de Lucio Costa e Niemeyer com o Pavilhão na Feira Mundial de Nova York de 1939. Diz que visitou Lipchitz, já sondado pelo MoMA. Garante que ele está entusiasmado com a encomenda, “tendo como ideia e símbolo da vitória um Prometeu libertado e já estrangulando o abutre”, como em Paris. Recém-chegado do Brasil onde colhera material para a mostra Brazil Build, no MoMA, Philip Goodwin conta de sua reunião com Lipchitz e confirma o entusiasmo do escultor em carta a Niemeyer datada do dia seguinte, 30/7/1942.5 Vale supor que Niemeyer não desconhece as características da obra de Lipchitz, e o mesmo deve se aplicar a toda a equipe do Ministério.

Comentando a obra de Lipchitz, Hitchcock diz que as formas maciças da escultura tradicional raramente combinam com os espaços fluidos e volumes leves da arquitetura moderna. (WILKINSON, 1996, p. 106) Presumivelmente, o Pavilhão de Barcelona é exceção pelo contraste feliz entre a ortogonalidade da arquitetura e a rotundidade do nu feminino que Mies expõe num pátio. Comentando a obra de Henry Moore, Hitchcock repete que suas formas plásticas são complementares e não similares às da arquitetura moderna. (WI-LKINSON, 1996, p. 108) Curiosamente, atrás das diferenças óbvias, há uma afinidade entre a “transparência” de certa linha de escultura moderna e a poro-sidade da arquitetura moderna brasileira emergente. É qualidade característica para Comas, que a vincula ao uso reiterado do arranjo tripartido A-B-A, numa variante em que o vazio intermediário é furo que revela toda a profundidade do volume construído. Localizado em regra na base do edifício, o furo aparece às vezes no seu corpo, intensificando a simpatia entrevista. (COMAS, 2002b)6

De fato, a porosidade está presente em quase todas as obras de destaque no período 1936-1945. O caso mais singelo é o do edifício Esther. Abertas as portas de entrada opostas nas fachadas menores, evidencia-se desde fora a galeria que o atravessa. Na ABI, o furo é um átrio aberto de planta trapezoidal entre duas lojas com frente larga para a rua, no fundo os elevadores ao lado do vão de acesso es-treito para o estacionamento no miolo de quarteirão descoberto. Rota pedestre e rota veicular privadas compartem a planta trapezoidal, traspassando a sede correta

arte e cidades 2ed.indd 175 04/11/15 18:07

176

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

e digna da sede de associação profissional. No Ministério, o furo é um pórtico hipostilo retangular entre duas esplanadas a norte e sul e dois vestíbulos a leste e oeste, pórtico e esplanadas unificados pelo piso de granito. A simetria reforça a monumentalidade do palácio traspassado por rota pública e pedestre. No Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova York 1938-39, a rota se eleva para o andar nobre: rampa curva, a um lado, e escadaria reta, no lado oposto, levam ao terraço que acolhe o visitante, entre a galeria principal de exposições e o auditório. O furo vira loggia. Retangular em planta, esta se anima com as curvas do auditório e da laje que a recobre parcialmente. No térreo, alternando-se paredes e entradas, os poros se multiplicam. No Grande Hotel de Ouro Preto, o clima é ao mesmo tempo austero, rústico, movimentado. De planta retangular e seção escalonada, flanqueado por bloco onde o restaurante e seu terraço cobrem a cozinha e bloco onde a recepção sobrepõe-se a um salão de jogos, o furo é um pórtico majestoso do lado da esplanada de acesso, conjugado, parede de cobogó mediante a uma varanda intimista, junto a pátio escavado no flanco do morro. Em qualquer caso, colunas e pilares de seções e materiais diversos contribuem para a festa.

No Hotel de Friburgo, modesto e primitivo, o furo é uma varanda aberta para a vista e diminuída por biombo do lado da entrada, que se associa a uma sequência de furos alinhados, porta de entrada, janela atrás da portaria, a vista da varanda. O térreo do Yacht Club da Pampulha replica a multiplicação de entradas do térreo do Pavilhão. Na Casa do Baile de um só pavimento da mesma Pampulha o furo é terraço coberto por laje sinuosa entre o salão e o coreto desenvolvendo-se ao comprido, entre o pátio de entrada e o pa-rapeito junto ao lago. Na Capela de São Francisco, o furo vem assimétrico feito uma marquise nártex e portal ligando a nave abobadada ao campanário num arranjo em esquadro. No aeroporto Santos Dumont, aberto do lado da cidade, envidraçado do lado da pista, o furo é saguão, retangular, arejado e majestoso, integrando uma encruzilhada com a rua de colunas. A revenda SOTREq ilustra o furo escamoteado no extremo interno por vidraça. Entre as obras exemplares, a exceção conspícua é o Parque Guinle. A base do Nova Cintra é fechada. A base do Bristol comporta um terço semifechado entre a ponta fechada e a ponta terço vazada. A base do Caledônia não é porosa, mas vazada, só interrompida pelos dois núcleos de elevadores. Trata-se de reces-são do volume compartimentado, mas não de porosidade, porque as colunas não são suficientes para definir um furo. O furo distingue igualmente projetos significativos. Reidy reelabora o térreo do Ministério no Palácio da Prefeitura

arte e cidades 2ed.indd 176 04/11/15 18:07

177

Ca

rlo

s e

du

ar

do

Co

ma

s

ö

Municipal do Rio de Janeiro e propõe um bar em praça pública que é em algum aspecto antecipação da Casa do Baile. Niemeyer explora furo sobre furo na casa Henrique Xavier. Na casa Oswald de Andrade, o furo é virtual, dividido em vestíbulo e área de serviço por parede de pedra que um mural desmaterializa. No Hotel da Pampulha, deslocado para o segundo andar, o furo sob a barra de apartamentos conecta a vista para a rua com o terraço-jardim na cobertura da base expandida para o lago. O Yacht Club Botafogo passa por versão avantajada do Yacht Club da Pampulha.

Os exemplos citados não esgotam o assunto, mas são suficientes para corroborar o fenômeno e suas múltiplas versões. Em qualquer delas, os planos de chão bem definidos por pavimentação e/ou vegetação são elementos ativos da composição, equivalentes ao conjunto de base e escultura de material idêntico ou similar. Sem os sólidos, flanqueando o furo, a porosidade não se estabelece. Sem esse chão limitado, a impressão de porosidade enfraqueceria. A transparência resultante é uma transparência enquadrada, distinta da transparência literal e da transparência fenomenal analisadas por Colin Rowe e Robert Slutzky (1976).

Não cabe falar de uma influência direta da escultura transparente sobre arquitetura moderna brasileira na sua fase “heróica” – da mesma forma que não cabe falar de uma influência direta de Arp sobre as curvas de Aalto e Niemeyer. Aliás, Hitchcock é cuidadoso nesse sentido e observa que se, de um modo geral, pelo menos, arte abstrata posterior como a de Arp ajudou a “facilitar e alargar as possibilidades expressivas da arquitetura moderna”, as fontes de Aalto e Niemeyer provavelmente são outras. (HITCHCOCK, 1948) No caso de Niemeyer – e também de Burle Marx, Comas argumenta persuasivamente que as fontes são as formas já convencionais dos canteiros e espelhos d’água do parque pitoresco, difundidos no Brasil por Grandjean de Montigny e por Glaziou, já no final do século XIX, convertidos em elementos corriqueiros de praça interiorana. A expressão parque pitoresco recorda o débito dessa invenção inglesa para com a pintura, referência para a concepção do parque de circuito pontuado por folias exemplificados por Stowe e por Stourhead. Mas as paisagens de Poussin e Claude Lorrain são por sua vez tributárias da arquitetura clássica. A interação entre diferentes artes pode se assemelhar a um jogo de ricochetes. Aliás, as fontes de Labrouste para a esbelta estrutura de ferro nas salas de lei-tura da Biblioteca Sainte Geneviève e da Biblioteca Nacional da França são as pinturas de Pompeia ilustrando uma arquitetura imaginária. De outro lado, talvez as placas de contornos amebóides de Arp tenham sofrido a influência

arte e cidades 2ed.indd 177 04/11/15 18:07

178

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

dos mesmos elementos paisagísticos que impactam Niemeyer e Burle Marx, ambos acordes, como toda a vanguarda brasileira na importância da integração entre jardim e arquitetura. (COMAS, 2002)

Digressão encerrada, a ideia de um comércio entre arquitetura e pintura no caso dos anos de 1920 é corroborada pela polêmica entre Perret e Le Corbusier. Orgulhoso da condição de construtor, Perret ataca Le Corbusier como “fazedor de formas”.7 (ENCYCLOPÉDIE PERRET, 2002; COLLIN, 1995) O interesse do arquiteto moderno brasileiro na integração das artes visuais à obra pública é espetacularmente evidente tanto no Ministério da Educação e no Pavilhão Brasileiro em Nova York (que pré-estreia, por assim dizer, parte da coleção do Ministério, como os painéis de Portinari sobre os ciclos econômicos) quanto na Pampulha. O Yacht Club ganha óleos de Portinari e Burle Marx, que também é pintor e escultor. A bi-dimensionalidade continua dominando na Capela, onde os bronzes de Alfredo Ceschiatti no batistério são notas em baixo-relevo, acrescentada ao painel de azulejos, ao mural do altar e à Via Sacra de Portinari ou aos mosaicos da cobertura de Paulo Werneck. No Ministério, porém, ao lado do aporte de Portinari (que inclui ainda os murais do auditório e da sala de espera do andar nobre), a escultura de massa compacta sobressai no circuito cerimonial, com obras de Celso Antônio (Mulher reclinada, Mãe, o busto de Getúlio Vargas), Adriana Janacópoulos (Mulher sentada) e Bruno Giorgi (Moça de pé, Monumento à juventude) todos discípulos de Maillol. A estátua do Homem brasileiro não sai por questões de divergência conceitual entre ministro e artistas. No Cassino, a escultura e a mulher reinam, com o nu de August Zamoisky, o par abraçado de Ceschiatti, a figura alada de José Pedrosa, vazados em maior ou menor grau.

Outras evidências insinuam a familiaridade com a transparência na es-cultura moderna que não a indicação de Lipchitz por Niemeyer, que data de 1942, posterior à aparição dos projetos exemplares de porosidade, ou a assimi-lação entre arte e arquitetura moderna por Lucio Costa em Considerações sobre a arte contemporânea de 1952, quando cita Lipchitz e o escultor Henri Laurens junto com Picasso, Braque, Léger, Chagall. Conta antes a difusão no Brasil de L’Esprit Nouveau, assinada, entre outros, por Jayme da Silva Telles, colega de Lucio, que registra o fato por escrito.8 (COSTA, 2002) Importa a mostra de cem obras da Escola de Paris que Vicente do Rego Monteiro traz a Recife, São Paulo e Rio em 1930. Graças às boas relações entre Rego Monteiro e o marchand de vanguarda Léonce Rosemberg, a mostra inclui Braque, Gris, Dufy, o De

arte e cidades 2ed.indd 178 04/11/15 18:07

179

Ca

rlo

s e

du

ar

do

Co

ma

s

ö

Chirico amado pelos surrealistas, Max Jacob, Léger, Severini, Vlaminck, Miró. São relevantes as conexões entre Lucio, quando organiza o Salão de 1931, e os artistas brasileiros com passagem pela Europa. Estes não eram poucos, entre eles o próprio Rego Monteiro (1911-30), Ismael Nery (1920-1927), Tarsila do Amaral (1920-1923), Di Cavalcanti (1923-1926), Lasar Segall (1925-1932), Portinari (1929-1931), Cícero Dias (1930-1937), Brecheret (1913-1919, 1921-1935), Celso Antonio (década de 1920), José Pedrosa (1940). Enfim, na Œuvre complète 1929-1934 de Le Corbusier, uma página inteira é devotada a fotos das esculturas mencionadas de Lipchitz no gramado da casa de Mandrot. (LE CORBUSIER; JEANNERET; BOESIGER, 1935) Isso posto, a articulação brasileira entre arquitetura e escultura é provavelmente subliminar e há mais de um precedente conhecido, no repertório arquitetônico moderno, para a porosidade mencionada.

Concluídos no mesmo ano (1925), a Bauhaus e o Pavilhão Russo de Me-lnikov na Exposição de Artes Decorativas em Paris são edifícios transpassados por rota pública no seu térreo. No primeiro caso, a rota é veicular e o edifício se assemelha a uma ponte coberta. No segundo, a rota é pedestre, virtualmente coberta e constituída por escadarias flanqueando o patamar intermediário, lembrando a ponte do Rialto e cortando em diagonal a massa edificada. Num outro veio, Le Corbusier propõe enormes ocos no projeto não realizado para a habitação suburbana na cidade contemporânea de 3 milhões de habitantes (1922). Em Pessac (1925), na vila em Garches (1927), embora a profundidade do balcão de frente e da loggia de fundos não seja total, ambos se recortam para deixar ver nesga de céu na face interior, o primeiro centralizado no co-roamento, o segundo lateral e de altura equivalente ao corpo da composição. Além disso, pelo menos quatro exemplos nos vêm de passado mais remoto. Rasgos da Bauhaus e dos pavilhões citados se insinuam no Grande Trianon de Mansart: dois corpos unidos por uma galeria hipostila aberta da mesma altura, conexão e mirante cujo piso se estende dos dois lados em plataformas acessíveis por escadas. Os arcos de triunfo e as pontes dos romanos mostram oco sem coluna. O propileu é portal hipostilo que media entre planos distintos e tem a centralidade acusada por frontão.

Nem tudo é influência, portanto, de uma arte sobre outra, mas o estí-mulo recíproco parece inegável, subordinação à arquitetura incluída (como postula a tradição mais antiga) ou não (como propõe a autonomia crescente de cada arte na sociedade burguesa). Em paralelo ou sequencial, a pesquisa

arte e cidades 2ed.indd 179 04/11/15 18:07

180

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

plástica na arquitetura, pintura e escultura pode operar independente, mas convergente no propósito, sem noção consciente da convergência, efeito talvez de sentimento comum que é associável ao espírito da época. Assim, dá para interpretar a relação da arquitetura moderna com a pintura abstrata em termos de referência, em função da cronologia, ou, a posteriori, em termos de confirmação. No prefácio para o ensaio de Hitchcock, Alfred Barr, diretor do MoMA, observa corretamente que muitos fatores influem na determinação da forma arquitetônica – acrescentando que só no século XX a pintura está entre eles. Considerando os parques de circuito ingleses e as salas de leitura francesas que foram mencionados, trata-se de meia verdade. É certo, porém, que no século XX, com a autonomia garantida da pintura e da escultura face à arquitetura, a importância da pintura e da escultura para a arquitetura aumenta. Em boa medida, porque se consagra então a busca de inspiração em formas fora do território convencional da arquitetura. A arte abstrata se torna uma mina para os arquitetos de vanguarda, do mesmo jeito e ao mesmo tempo, que as obras de engenharia civil, as construções utilitárias, os artefatos industriais.

A arte abstrata não é a única influência sobre a arquitetura moderna. É a alternativa ao reuso de motivos históricos que Hitchcock enfatiza, suben tendendo que tem um papel similar ao dos silos, fábricas, pontes, hangares, arranha-céus, transatlânticos, aeroplanos, automóveis e simila-res. Construção, indústria e arte de vanguarda avalizam a simplificação e a minimização formal dos elementos materiais da arquitetura, o repúdio do ornamento mentiroso e uma composição centrífuga onde a assimetria dinamicamente equilibrada substitui a simetria hierática e a centralização hierárquica. Mas Hitchcock não observa que está em jogo a mesma estratégia genérica usada pelos arquitetos do ecletismo. Uma representação envolve a reiteração de precedente formal pertinente. Os usos do gótico como ex-pressão de identidade nacional (na França e na Inglaterra, por exemplo) e de religiosidade (mais ou menos por toda parte) se justificam respectivamente pela associação desse estilo com a fundação de nação e com a fé cristã. Em termos acadêmicos, a caracterização de nação ou de religiosidade implica a rememoração de figuras emblemáticas de uma ou outra. A preocupação do arquiteto moderno com a expressão do espírito da época é explícita e a caracterização da época implica a rememoração de figuras emblemáticas da mesma. Parte da disputa entre Le Corbusier e Perret vem da recusa deste

arte e cidades 2ed.indd 180 04/11/15 18:07

181

Ca

rlo

s e

du

ar

do

Co

ma

s

ö

em reforçar uma caracterização da época via motivos maquinistas – cuja atualidade é por definição transitória – e/ou motivos atectônicos. Para Perret, não há porque deslocar conceitos, olhando para além da tradição disciplinar. A racionalidade estrutural e o rigor de composição de inspiração clássica bastam.(COLQUHOUN, 1993)

Contudo, a disputa permanece em família. Convicto de que toda ar-quitetura é sempre construção, mas nem toda construção é arquitetura, cioso portanto, da definição tradicional de arquitetura como construção qualificada, é sobre a estrutura tipo Domino que Le Corbusier vai fundar teoricamente a arquitetura moderna, sobre o esqueleto mais perene e não a carne que en-velhece. A arquiteturização de formas estranhas ao repertório da disciplina erudita é estratégia que assinala a transitoriedade, enquanto vivifica o esteio permanente e ordenador. Incidentalmente, a fórmula aceita como caso limita o racionalismo estrutural de Perret com o esqueleto aparente na elevação, enquanto a recíproca não é verdadeira.

Para os arquitetos modernos brasileiros das décadas de 1930 e de 1940, a arquitetura segue sendo construção qualificada. Se a estrutura tipo Dom-ino é fundamento, a porosidade ajuda a distingui-los frente a Le Corbusier. Nada o ilustra tão bem quanto a comparação entre a base do Ministério construído e a base do Ministério proposto pelo arquiteto franco-suiço na Beira-mar, com o núcleo central cheio entre as pontas vazadas. Obtida com o uso intensivo de procedimentos de composição subtrativos mais o chão limitado, é também dispositivo de origem clássica, conotando continuidade junto com ruptura. Ingrediente da diversificação formal que trata de superar as limitações do Estilo Internacional como definido em 1932 por Johnson, Hitchcock e Barr, tra ta-se de um desenvolvimento de paradigma que implica enriquecimento do re-pertório disciplinar em termos de elementos de arquitetura e de composição. Não envolve uma negação da planeza, mas sua manipulação, visando ganhar textura, espessura, profundidade, modelado, relevo – qualidades em suma es-cultóricas, não intrinsecamente brasileiras, mas apropriadas para um clima que admite a interpenetração exterior-interior o ano inteiro. Afinal, a proximidade da arquitetura com a escultura é bem maior que com a pintura. É certo que a escultura não tem compromisso com o habitar. Isso posto, muitos fatores são tão vitais para uma quanto para outra, como a silhueta icônica, a materialidade, a textura, o sólido e o vazio, a sombra, a luminosidade e o lustre.

arte e cidades 2ed.indd 181 04/11/15 18:07

182

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Não estranha que a simpatia entre construção qualificada pela porosida-de e escultura transparente tenha passado despercebida. A própria percepção e registro dessa porosidade é coisa recente. Ainda predomina uma interpretação da arquitetura moderna brasileira que a reduz a um modernismo nacional ou regional. Entretanto, após 1950, à medida que (talvez indevidamente), ela passa a identificar-se cada vez mais com a obra de Niemeyer (cuja influência certamente cresce) e os exemplos de porosidade diminuem no conjunto da produção, os comentários sobre suas qualidades escultóricas aumentam. O reconhecimento dessas qualidades informa as críticas que para bem ou para mal a tacham de barroca, as que a desprezam por formalista ou as que a exaltam por fazer triunfar a plástica. E, de fato, então os apoios de Niemeyer ganham massa, viram troncos. As placas que se curvam, definindo o volume não se limitam mais à cobertura. As incursões na escultura pura se inauguram com o marco proposto para o Parque Ibirapuera, reminiscente da obra de José de Rivera ilustrada em Painting toward architecture, por sua vez tributária dos experimentos construtivistas de Naum Gabo. A comparação entre Niemeyer e o Aleijadinho passa a ser comum. Aliás, a tendência de arquitetar na direção da escultura não é exclusivamente brasileira, é internacional, envolvendo no mínimo Le Corbusier, Aalto e Saarinen. Ao mesmo tempo, a complementação de projeto monumental moderno por escultura de proporções heroicas vira comum. Sugestivamente, Henry Moore, Grande Prêmio na Bienal de São Paulo de 1953, tem sua Figura Reclinada (1957-1958) colocada frente ao prédio da UNESCO em Paris, projeto de Breuer, Zehrfuss e Nervi selecionado por comitê que inclui Lucio Costa. Grande prêmio na Bienal de São Paulo de 1959. Barbara Hepworth vai destacar sua Forma singular (1964) contra o arranha-céu da ONU, projeto com participação relevante de Niemeyer.

No último terço do século XX, a expressão ou caracterização do espírito da época não é mais uma bandeira desfraldada, mas a estratégia da arquite-turização de formas fora do território convencional da arquitetura continua operacional. Hostil tanto ao Mies americano, que reedita Perret com seu ra-cionalismo estrutural, quanto ao expressionismo abstrato então hegemônico, Venturi – cujos heróis são Le Corbusier e Aalto com Lutyens ao lado – toma lições com a pop art e atenta para o potencial iconográfico da construção banal americana, do shopping center a Levittown, passando por Las Vegas. O paralelo com a exploração iconográfica da construção banal industrial da década de

arte e cidades 2ed.indd 182 04/11/15 18:07

183

Ca

rlo

s e

du

ar

do

Co

ma

s

ö

1920 é óbvio. O equacionamento da arquitetura como abrigo decorado implica uma distinção da construção tão ou mais enfática quanto em Le Corbusier. Ao mesmo tempo, favorece o retorno à planeza do Estilo Internacional, reagindo contra o edifício expressionista de volume escultórico, chamado de “pato” em sua versão figurativa e exemplificado, não sem malícia, com o volume dum restaurante de beira de estrada.

Neo-realista segundo Alan Colquhoun, a posição de Venturi – e de Charles Moore – comparte a cena nos anos de 1970 e 1980 com outras duas. O polo historicista abriga neo-culturalistas figurativos (como Michael Graves) e neo-progressistas abstratos (como Peter Eisenman), mas todos interessados em retratar o momento. O polo idealista abriga neo-racionalistas figurativos (como Aldo Rossi) e proto-minimalistas abstratos (como Tadao Ando ou Piñon e Viaplana), todos interessados na atemporalidade. Salvo nos casos de Venturi e Eisenman, este confessamente preocupado em introduzir nos seus projetos referências à geo metria não euclidiana, as fontes privilegiadas são estritamente arquitetônicas. (COLOUHOUN, 1981; COMAS, 1993)

A influência da escultura volta explícita nos anos 1990, quando o neo-mo derno arquitetônico olha para a minimal art tanto quanto para a land art dos anos 60 e 70. Peter Eisenman, Peter Zumthor ou Herzog & de Meuron atentam para Donald Judd e Dan Graham como para Walter de Maria e todos aqueles que, num movimento inverso anterior, haviam impulsionado a escul-tura na direção da arte das instalações, espécie de arquitetura transitável. Mais recentemente, a dimensão escultórica de projetos como o museu de Bilbao se retoma em uma série de arranha-céus, como se vê em Tall Buildings, a exposição do MoMA de 2003. No mesmo ano de 2004, em mostra na Fundação Beyler, Markus Bruderlin cunha o termo arquiescultura para designar projetos como Bilbao e a Torre Agbar de Jean Nouvel. De um lado, pode ser que a história da escultura contemporânea esteja sendo escrita também pela arquitetura de hoje. De outro, cabe pensar em uma vingança tardia dos “patos” execrados por Venturi, valorizados agora por seu caráter de exceção memorável (com estrutura especial) em entorno constituído primariamente por caixas repetitivas (com estrutura em esqueleto). (RILEY, 200; BRUDERLIU, 2004)

Ora, parte da desatenção ao comércio entre escultura e arquitetura mo-derna, brasileira ou não, tem a ver com o próprio status inferior da escultura em relação à pintura. Em The world as sculpture, James Hall argumenta que, da Renascença ao século XIX, a escultura é a prima pobre, exigindo maior esforço

arte e cidades 2ed.indd 183 04/11/15 18:07

184

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

físico para sua execução e apreciação. Enquanto os pintores podem aspirar a ser gentis-homens, os escultores são considerados trabalhadores manuais em vez de gênios criativos, copistas da antiguidade em vez de artistas originais. Hall pensa que a escultura se torna paradigmática nas artes plásticas desde o início do século XX. (HALL, 1999)

notas

1 A história da coleção Tremaine se relata em Kathleen Housley (2001).

2 Hotel em Cincinatti projetado pela SOM.

3 Os Boxeadores se encontram no Milwaukee Art Museum em bronze. O Guggenheim de Nova York tem uma versão em madeira. Moore só explora o furo em sua terceira fase (1931-1939); uma sugestão já está presente, porém, no tronco oco de Meia-figura (1929). Segundo Herbert Read. (1965, p. 60-62).

4 Esculturas suas se expõem no Pavilhão da revista na Exposição Internacional das Artes Decorativas Modernas e Industriais de 1925: um Marinheiro com guitarra dentro e uma Banhista diante do pátio.

5 Goodwin fica de intermediário no processo até a instalação da maquete no local, em 1945. Outro colaborador é Berent Friele, presidente da American Coffee Association e representante especial na agência carioca da Coordenadoria de Assuntos Interamericanos, planejada por Nelson Rockefeller, grande patrono do MoMA. As cartas são reproduzidas em Mauricio Lissovsky e Paulo Sá (1996). O mesmo livro contém a correspondência referente às outras obras de arte no Ministério encontrada nos arquivos Capanema do CPDOC.

6 Ver igualmente os artigos anteriores de Comas (1987, 1988, 1989, 2002).

7 Ver AAVV. Encyclopédie Perret. Editions du Patrimoine, Paris 2002., capítulos 11 (Environnement Architectural) e 12 (Critique et débats). Igualmente COLLINS, Peter. La splendeur du béton. Hazan: Paris, 1995. p. 290 (coluna 2), tradução de Concrete. Londres: Faber & Faber, 1959, último capítulo (Le maître) especialmente p. 524, que se refere ao manifesto de Mondrian publicado em L’architecture vivamte de 1925 quanto à afinidade entre pintura moderna e concepção arquitetônica.

8 A coleção encadernada se encontra hoje na Biblioteca da FAU-USP. Mario de Andrade é outro assinante, conforme Mario Andrade (1989, p. 86-87). Há extenso artigo sobre o escultor assinado por Paul Dermée (1920).

referências

ANDRADE, Mario. Cartas a Anita Malfatti. São Paulo: Forense, 1989.

BRUDERLIN, Markus. (Ed.). Archisculpture. Ostfildern: Hatje Kanz, 2004.

COLLINS, Peter . La splendeur du béton. Hazan: Paris, 1995.

arte e cidades 2ed.indd 184 04/11/15 18:07

185

Ca

rlo

s e

du

ar

do

Co

ma

s

ö

COLQUHOUN, Alan. Displacement of concepts in Le Corbusier. In: Essays on architectural criticism. Cambridge, Mass & Londres: MIT Press,1981.

COMAS, Carlos Eduardo. Precisões brasileiras sobre um estado passado da arquitetura e urbanismo modernos. A partir dos projetos e obras de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, MMM Roberto [...] 2002. Tese (Doutorado em Arquitetura) - Universidade de Paris 8, Paris: 2002b. 2 v. Tradução de: Précisions brésiliennes sur une etat passé de l’architecture et de l’urbanisme modernes d’aprisles projects exemplaires de Lucio Costa & Cia. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/10898>.

_______. Protótipo, monumento, um ministério, o ministério. Projeto, São Paulo, n. 102, p. 136-149, 1987.

_______. Teoria académica, arquitectura moderna, corolario brasileño. Anales del Instituto de Arte Iberoamericano, Buenos Aires: 1988. v. 26.

_______. Arquitetura moderna, estilo Corbu, pavilhão brasileiro. AU - Arquietura e Urbanismo. São Paulo, v. 5, n. 26. out./nov. 1989.

_______. Passado mora ao lado: Lucio Costa e o projeto do Grande Hotel de Ouro Preto. Arqtexto. Porto Alegre, n. 2, 2002a.

COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.

DERMÉE, Paul. Lipchitz. L’Esprit Nouveau, Paris, n. 2, 1920.

ENCYCLOPÉDIE PERRET. Editions du Patrimoine, Paris 2002. Cap. 11: Environnement Archictectural e cap. 12: Critique e debats.

HALL, James. The world as sculpture. Londres: Chatto & Windus, 1999.

HITCHCOCK, Henry-Russel. Painting toward architecture. New York: Duell, Sloan and Pearce. 1948.

HITCHCOCK, Henry-Russel; JOHNSON, Philip. The international style. Norton: New York, 1966.

HOUSLEY, Kathleen L. Emily Hall Tremaine: collector on the Cusp. Meridien, CT: Emily Hall tremaine Foundation, 2001.

READ, Herbert. The work of Henry Moore. Londres: Thames and Hudson, 1965.

RILEY, Terence. Tall buildings. New York: MoMA 2003.

ROWE, Colin; SLUTZKY, Robert. Transparency: literal and phenomenal. In: ROWE, Colin. The Mathematics of the Ideal Villa and other essays. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1976. p. 159-183.

arte e cidades 2ed.indd 185 04/11/15 18:07

186

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

LE CORBUSIER; JEANNERET, Pierre; BOESIGER, Willy (Ed.). Œuvre complète de 1929-1934. Zurich: H. Girsberger, 1935.

LISSOVSKY, Mauricio; SÁ, Paulo. Colunas da Educação. Rio: IPHAN: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

WILKINSON, Alan G. The sculpture of Jacques Lipchitz: catalogue raisonné: the Paris years 1913-1940. Londres: Thames and Hudson, 1996. v. 1.

arte e cidades 2ed.indd 186 04/11/15 18:07

187 ö

douGlas vieira de aGuiar

Grelhas. notas sobre o expressionismo e a neutralidade em arquitetura

O termo expressionismo é utilizado no presente contexto para descre-ver estratégias arquitetônicas que, ao deixarem de lado a preocupação com o equilíbrio entre as categorias Vitruvianas, mergulham na exploração gratuita do reino da forma; uma situação na qual a arquitetura chega perto, e mesmo frequentemente coincide, com o domínio da escultura. Há, no entanto, que ser reconhecido que a matéria é complexa visto que a arquitetura é sempre, por sua própria natureza, uma manifestação em algum grau expressionista. É sabido que a arquitetura em forma de caixote, de grelha e livre de ornamentos do movimento moderno provocou forte impacto em sua primeira aparição no início do século passado. No entanto, na medida em que o enfoque modernista difundiu-se sua arquitetura foi crescente e naturalmente privada do poder de expressão original.

Nas últimas décadas do século vinte, a arquitetura dita modernista sofreu uma série de reações; majoritariamente em razão de sua reconhecida discrição e imagem de neutralidade. A primeira dessas reações – as quais podem ser in-terpretadas como buscas inconsequentes de expressão – está naquela atitude ou tendência que veio a ser denominada como pós-modernismo, uma tendência que trouxe de volta à cena arquitetônica uma variedade de estilos recuperados aleatoriamente da história. O pós-modernismo foi rapidamente consumido a medida em que a arquitetura comercial adotou-o como estilo oficial. Simulta-neamente a esse declínio, se observa a emergência do que veio a ser chamado

arte e cidades 2ed.indd 187 04/11/15 18:07

188

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

deconstrutivismo, uma tendência ao que parece ideologicamente comprometida com o papel da arquitetura dentro da descontinuidade e fragmentação da me-trópole contemporânea. A expressão arquitetônica desse estilo – em muito asse-melhada ao construtivismo soviético – tornou-se moda e, conforme o esperado, foi consumido e descartado ainda mais rapidamente que o estilo pós-moderno. Na sequência, quase que simultaneamente à decadência do deconstrutivismo como estilo, o cenário arquitetônico é assolado, no início dos anos noventa, pelo que veio a ser denominado, de modo em princípio equivocado, como tendência topológica ou arquitetura digital.1 Esse estilo tem como expressão dominante às superfícies e espaços curvos e, segundo os arautos, formas sur-gidas de um processo de “deformação contínua” dessas linhas e superfícies. Teóricos dessa tendência parecem estar em busca de uma arquitetura que se mova, que se desloque; possibilidade essa que se tornou facilmente realizável na tela do computador, mas que de fato tem pouco, ou nenhum, impacto em edificações reais. Na realidade, os esforços de construção surgidos dessa ten-dência são bastante ambíguos. Exemplo emblemático é o já não tão novo museu de Bilbao que exibe uma pirotécnica demonstração de high technology em suas superfícies curvas de titânio as quais, em anti-climax, são apoiadas em estrutura absolutamente convencional desde o ponto de vista dos princípios da estática. Outro representante dessa tendência introduz uma espécie de arquitetura em origami na qual formas são arbitrariamente produzidas a partir de “malhas deslocadas”; malhas sobrepostas de modo desencontrado sem qualquer razão aparente. Nessa linha o Aronoff Center of Arts, recentemente construído em Cincinatti, mostra uma imagem de destruição; uma espécie de cenário pós--terremoto ou quem sabe um terremoto em andamento. A Federation Square em Melbourne sucumbe a essa postura arquitetônica.

A situação acima descrita apenas confirma o permanente estado de crise vivido pela disciplina arquitetônica. Tal cenário parece reviver a discussão te-órica de meados do século dezenove a respeito do pitoresco – ou o picturesque, como dizem os ingleses – um estilo que “emergiu como uma revolta contra a idealidade da tradição acadêmica [...] e [...] foi simultaneamente um culto do remoto e do local, do específico e altamente pessoal’’. Nessa linha a busca de uma expressão característica foi “um corolário da consciência romântica a respeito da natureza e da história, da liberdade e da individualidade”. (ROWE, 1976) A história parece repetir-se com a diferença que nos tempos atuais a mídia e as tecnologias de informação vieram a substituir a natureza e a história como

arte e cidades 2ed.indd 188 04/11/15 18:07

189

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

modelos nesse novo pitoresco digital; um estilo que, na linha do original, tende a ser predominantemente voltado para o impacto de superfície que as formas causam ao olho. De qualquer modo o culto do caráter – modo como esse fe-nômeno foi descrito por Colin Rowe – ou a necessidade de expressar caráter a qualquer custo parece ser um ponto em comum entre o presente momento da disciplina arquitetônica e o pinturesco de meados do século dezenove.

originalidade e criatividade

Em um de seus textos sobre arquitetura e “disjunção” o arquiteto e teórico Bernard Tschumi se refere ao mundo material como “o labirinto da experiência” e ao mundo dos conceitos como “a pirâmide”; um campo no qual à arquitetura seria permitido ser autônoma. (TSCHUMI, 1975) Nas últimas duas décadas a pirâmide conceitual identificada por Tschumi vem sendo, de modo crescente, materializada no trabalho de arquitetos ditos de vanguarda os quais defendem a autonomia da arquitetura, sua total dissociação do mundo das necessidades e usos e, sobretudo, seu fazer como pura manifestação artística. Nessa linha, o arquiteto e teórico americano Peter Eisenman declara: “[...] meu trabalho não trata da conveniência, trata da arte [...] meus melhores trabalhos não têm propósito”. (CUFF, 1989) Essa provocativa declaração pode até, de certo modo, contribuir para a cultura arquitetônica ao promover a disciplina a um status de arte autônoma, no entanto, certamente não é uma contribuição positiva ao ensino de arquitetura, uma área onde o principal agente, o estudante, tende naturalmente a buscar originalidade, independentemente de um insólito aval da academia. De qualquer modo, ao final, essa postura de distanciamento do mundo da experiência tende a produzir resultados desastrosos desde o ponto de vista da prática arquitetônica.

Nesse cenário, os estudantes de arquitetura são frequentemente con-frontados com o trabalho de arquitetos famosos que excedem no inesperado, com exageros, distorções, pirotecnia formal etc. etc., tudo em busca do im-pacto emocional através do objeto arquitetônico. Estudantes frequentemente tomam o trabalho desses profissionais como um parâmetro de criatividade – ou originalidade? – e, sobretudo, de um ambicionado sucesso profissional. É oportuno a essa altura do argumento esboçar, ainda que ao modo tentativo, uma distinção entre originalidade e criatividade em arquitetura. De certo modo, originalidade e criatividade parecem coincidir. No entanto, a noção

arte e cidades 2ed.indd 189 04/11/15 18:07

190

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

de originalidade parece ser explícita em sua referência a algo nunca antes visto ou feito. Resta saber, por outro lado, se a originalidade completa seria algo alcançável. Nesse aspecto, a história mostra que a originalidade pode sim ser alcançada; ainda que seja pelo gênio. E isso ocorre de quando em quando nos diferentes campos do conhecimento, são ocorrências excepcio-nais e provavelmente dependam pouco de processos de educação formal. Seria o talento de um Salieri, uma vez adequadamente treinado, capaz de aproximar-se ao talento de um Mozart? Ou, de outro modo, seria Mozart, uma vez formalmente educado, um gênio em tão tenra idade? Ninguém sabe exatamente, mas para ambas as questões a resposta parece ser não. Parece, ao contrário, que quanto mais o gênio vier a ser contaminado por informação prévia ou circundante menor será a probabilidade de que ele produza material original. Tanto quanto a evidência histórica mostra não há treinamento para originalidade; há a circunstância...

Já a criatividade parece acontecer de outro modo na medida em que esta afeta à cultura; quanto mais o agente estiver inserido em uma cultura mais será ele capaz de interagir criativamente. O ato criativo se assemelha à colagem; no sentido utilizado pelo antropólogo francês Claude Levi-Strauss (1972). A criatividade depende de conhecimento prévio, conhecimento sobre possíveis relações entre os elementos que se está lidando, colando, sejam eles notas musicais ou elementos de arquitetura; e isso não tem qualquer relação com uma ambição de originalidade. Ao contrário, a criatividade se baseia em estruturar conhecimento, em relações perceptíveis entre os elementos de uma cultura. Por isso, a criatividade pode ser formalmente aprendida e treinada. O gênio não parece ser feito para isso. No entanto, curiosamente, a ambição de originalidade em arquitetura é uma característica bastante comum entre estudantes. E o expressionismo gratuito é, frequentemente, bem acolhido por orientadores alheios à distinção entre criatividade / originalidade. Nesse contexto, o argumento ora perseguido não tem a ambição de fornecer receita para o trabalho criativo em arquitetura. Porém, alimenta uma ambição, ainda que singela; aquela de reafirmar o papel da tradição – tanto a clássica quanto a moderna – no ensino e na prática da arquitetura; uma proposição que nos dias que correm soa conservadora. Esse não é, no entanto, o caso, na medida em que a tradição está lá, na cidade, que em meio à onda de pirotecnia arquitetônica vem se mantendo, onde é possível, como um digno pano de fundo.

arte e cidades 2ed.indd 190 04/11/15 18:07

191

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

Presença e ausência

O reconhecimento do papel das tradições clássica e moderna no presen-te cenário de confusão teórica abre oportunidade para enfocar, e especular, a respeito da condição de neutralidade em arquitetura; suas peculiaridades, sua performance, sua potencialidade. Expressionismo e neutralidade são, senso comum, reconhecidos como pólos opostos. Neutro significa não envolvido, ou imparcial, ou ainda, algo sem um caráter ou peculiaridade que o distinga. No entanto, conforme sugere a experiência, neutralidade parece ser uma con-dição utópica. Em arquitetura, neutralidade pode ser considerada como a qua-lidade de permanecer como pano de fundo, não interferindo ou interferindo o mínimo na cena principal; algo que está lá, mas não é imediatamente percebido, algo quase ausente. Expressionismo, ao contrário, é a busca de presença; e fre-quentemente de uma presença forte. A arquitetura é então colocada na linha de frente. Presença e ausência são um modo sinônimo de descrever a polarização entre expressionismo e neutralidade. Há, no entanto, a considerar que essa condição de ausência, de pano de fundo, tomada de modo positivo, confere à arquitetura um papel subsidiário e, paradoxalmente, fundamental; o papel de enquadrar, estruturar as situações, criando condições para que sejam enfatizadas características particulares do ambiente; tanto ambientes construídos quanto naturais e, sobretudo, o ambiente social e a vida espacial das pessoas, a arquitetura como um pano de fundo para a vida espacial das pessoas. Em tem pos ancestrais, muito antes dos arquitetos virem à existência, esse era provavelmente o modo natural de lidar com situações/assuntos espaciais. E ainda hoje, o tradicional, o modo senso comum de lidar com demandas espaciais é buscar abrigo sob a racionalidade de panos de fundo mais neutros.

Grelhas

O reconhecimento da polaridade entre expressionismo e neutralidade em arquitetura traz naturalmente ao argumento o papel da repetitividade e, sobretudo, da malha, ou grelha, na morfogênese da tradição arquitetônica: tanto a clássica quanto a moderna. Nos cursos de arquitetura, estudantes tendem a associar as grelhas e o ângulo reto com rigidez, falta de flexibilidade e de um certo modo, falta de criatividade. As razões para isso parecem estar na recor-rente presença da grelha no ambiente contemporâneo: “O esqueleto de aço,

arte e cidades 2ed.indd 191 04/11/15 18:07

192

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

ou a estrutura de concreto, é o tema mais recorrente na arquitetura contem-porânea e está dentre aqueles que Sigfried Giedion teria apontado como seus elementos constituintes”. (ROWE, 1976, p. 90) Na mão contrária, as grelhas também têm sido vistas como as configurações mais abertas ao exercício da criatividade. Essa “abertura”, um atributo que parece ser inerente às grelhas, acontece tanto em termos operativos quanto simbólicos:

[...] a grelha veio a possuir um valor para a arquitetura contemporânea equivalente ao da coluna para a antiguidade clássica e Renascença. Assim como a coluna, a grelha estabelece por todo o edifício uma razão comum à qual todas as demais partes se reportam; assim como o arco ogival na catedral gótica, ela dita um sistema ao qual todas as demais partes se submetem. (ROWE, 1976, p. 90)

O operativo é naturalmente seguido pelo simbólico:

Aparentemente a neutra malha especial que é abrigada pelo esqueleto estrutural nos fornece um símbolo particularmente convincente, e por essa razão a grelha estabelece relações, define uma disciplina e gera formas. A grelha tem sido o catalizador de uma arquitetura; e se verifica também que a grelha também tornou-se ela própria arquitetura, e sobretudo que a arquitetura contemporânea seria quase inconcebível na sua ausência. (ROWE, 1976, p. 90)

Vestígios de grelhas, ou padrões “em grelha”, são encontrados em grande número nos registros mais antigos da história humana. É provável que o recurso configuracional mais utilizado pelo homem – os primeiros arquitetos – através da história seja o padrão em grelha. A simples intersecção e seu caso particular, o ângulo reto, estão na origem da malha. Ainda que o ângulo reto seja usualmente considerado como uma evidência explícita de racionalidade – e artificialidade – ele carrega também, paradoxalmente, uma característica bastante natural; em muitas espécies vivas desse planeta, aí incluídos os humanos – os corpos humanos – tendem a materializar naturalmente ângulos retos em relação ao horizonte e, como corolário, em relação ao plano horizontal sob nossos pés. Essa verticalidade é natural nos humanos, em muitos animais e na maioria das árvores. O ângulo reto, apesar de sua aparente artificialidade, pode ser considerado como um elemento natural na cultura, talvez o mais difundido,

arte e cidades 2ed.indd 192 04/11/15 18:07

193

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

o mais tradicional, o mais neutro e, paradoxalmente, o mais expressivo, espe-cialmente quando confrontado com os arranjos mais livres da natureza, aqueles reconhecidos pelo senso comum como naturais. Ângulos retos são naturais geradores de malhas e padrões regulares em geral e, de volta ao ponto inicial, geradores naturais de padrões de neutralidade. Nessa linha as “intersecções”, o caso genérico, são geradoras naturais de “malhas deformadas”.9

“O símbolo de cidade utilizado pelos egípcios é uma cruz dentro de um círculo”. (RYKWERT, 1976, p. 92):

[...] esse hieróglifo [...] sugere duas das mais simples, mais duradouras imagens urbanas. O círculo é uma única ininterrupta linha fechada; ele sugere fechamento, uma parede ou um espaço como uma praça; dentro desses limites a vida acontece. A cruz é a mais simples forma de diferentes linhas se agregarem; ela é talvez o objeto mais antigo no processo ambiental [...] linhas que se cruzam representam um modo elementar de fazer ruas, seguindo o padrão em grelha. (SENNET, 1990)

O modo como os antigos gregos construíram suas cidades através de uma configuração em grelha é bem conhecido. Isso foi repetido pelos roma-nos e por sucessivas culturas em diferentes períodos da história da cidade; de Mileto a Nova Iorque e Barcelona. Ao longo dos tempos, a grelha tem sido de modo recorrente tomada como um padrão teoricamente neutro que vem a permitir diferentes modos de ocupação; diferentes tamanhos e formas para os quarteirões, diferentes tamanhos e formas para os lotes, diferentes tipos de edificação, diferentes tipos de atividade, diferentes padrões de movimento. Nessa condição de pano de fundo para múltiplas finalidades, a grelha foi tomada sem questionamento e, em tempos mais recentes, banalizada.

No entanto, a constatação da grande variedade de “situações urbanas em grelha” sugere que esta, em princípio reconhecida como um instrumento radical na canalização de pessoas e ordenamento de atividades, é também vista por muitos como um agente efetivo de liberdade especial. O fundo aparente-mente neutro permite o desenvolvimento dos mais diversos e contrastantes comportamentos espaciais, todos acomodados na suposta neutralidade do padrão especial em grelha. A malha parece fornecer a “ausência” de um esforço con-figuracional. Nessa linha, a relação das configurações em grelha, ângulos retos e linhas retas com rigidez e falta de criatividade parece ser um falso axioma e

arte e cidades 2ed.indd 193 04/11/15 18:07

194

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

até um limitador, desde o ponto de vista do treinamento em arquitetura, visto que esses elementos parecem ser justamente aqueles mais abertos ao exercício da criatividade.

sobre a neutralidade

No capítulo da arquitetura que trata das propriedades da malha urbana um tópico relevante é o da “neutralidade”; o argumento toma as grelhas regu-lares em geral e a malha urbana regular como um tipo de organização espacial absolutamente homogênea, vazia de expressão e, portanto, aberta, de modo irrestrito, a qualquer conteúdo. Esse tópico parece ser particularmente oportuno no estágio do treinamento em arquitetura quando, é sempre oportuno relem-brar, os estudantes frequentemente tendem a considerar a adoção da grelha como elemento operativo na atividade de projeto, como um limitador no drive criativo. Duas questões emergem daí. A primeira: seria um padrão especial em malha regular, uma vez utilizado na configuração de um assentamento urbano, um instrumento de neutralidade ou algo dotado, na origem, de neutralidade? A segunda: considerando a prática da arquitetura de um modo geral, pode o uso de padrões espaciais em grelha – como base operativa (um substrato) para o desenho arquitetônico – ser considerado como uma técnica neutralizante?

O enfoque trazido por Richard Sennet em A consciência do olho parece trazer alguma luz sobre o assunto. A tese de Sennet, em um capítulo intitulado “a cidade neutra”, é a de que a adoção da “urbanização em grelha” seria res-ponsável por uma “falta de identidade pública” tanto nas cidades americanas e, ampliando o argumento, no povo americano de um modo geral. O argumento de Sennet vai na linha do determinismo arquitetônico; ele considera os “efeitos” da malha regular como um subjacente fator espacial negativo a incidir sobre “o modo de vida americano”. (SENNET, 1990) O tema é ambíguo e é na ambi-guidade que se encontram as oportunidades de avançar nessa discussão. Sennet considera que na urbanização do novo mundo a malha se tornou a expressão de um “comportamento protestante”; uma vez chegados à América os Puritanos, em sua condição de refugiados e na busca de realização do desejo de deixar o “cenário europeu” totalmente para trás, teriam reconhecido na neutralidade da grelha regular o padrão espacial ideal a partir do qual poderiam iniciar uma nova vida a partir do zero. Deixar o passado para trás significava deixar para trás o opressivo cenário urbano medieval. Nessa linha, o autor sugere que:

arte e cidades 2ed.indd 194 04/11/15 18:07

195

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

[...] as igrejas nos centros dos tradicionais tornavam evidente ao olho onde estava Deus. Esses centros eram um espaço de reconhecimento. Deus é legível; ele está dentro, dentro do santuário assim como dentro da alma. No exterior só há exibição, desordem e crueldade. (SENNET, 1990, p. 44)

Ao contrário, o lugar ambicionado pelo Puritano “devia ser tratado como uma tela branca buscando atender a dupla compulsão de exaurir-se; para que o homem, ou a mulher, tenham mais autocontrole para o recomeçar em outro lu-gar”. Além disso, “o olho do Puritano só podia ver dentro de si próprio. Do lado de fora não havia nada. Ele existe, esse interior selvagem, no espaço onde Beckett imaginou Esperando Godot, um espaço vazio em um tempo sem narrativa”.(SEN-NET, 1990, p. 45) Comparado com a cidade europeia, o ambiente ambicionado pelos Puritanos incorporou objetivos políticos radicalmente distintos; “[...] a busca por um santuário físico expressava o desejo de colocar-se nas mãos da autoridade. A perspectiva puritana do espaço, ao contrário, expressava uma ambição de poder”. (SENNET, 1990, p. 45)

Sennet oferece ao leitor um relato sobre a origem histórica dos padrões espaciais em malha, se valendo para esse fim do trabalho do historiador Joseph Rykwert que, em seu relato antropológico da forma urbana no mundo antigo, é a todo o momento ciente do forte conteúdo simbólico contido no padrão em grelha. Ainda que o autor em princípio reconheça que em paralelo, se-não sobreposto, à finalidade simbólica sempre tenha havido um subjacente pragmatismo na adoção do que ele denomina como planejamento ortogonal; “[...] o planejamento ortogonal apareceu por toda a parte, na América do Sul, na China, Índia, Egito, Mesopotâmia, e por todo lugar onde formas de parce-lamento foram desenvolvidas, e sob qualquer estatuto da terra”. (RYKWERT, 1976, p. 72) O pragmatismo inerente ao planejamento ortogonal transcende ao lado prático da simples divisão da terra e, segundo Rykwert, ele estaria bastante ligado à dimensão operativa de algumas sociedades antigas e, como tal, esse tipo de planejamento era então uma novidade:

[...] a cidade Hipodâmica não é diferente de outras (do seu tempo) só porque era ortogonal, mas sim porque ela é zoneada de acordo com a classe de seus habitantes (guerreiros, fazendeiros, artesãos) e de acordo com o estatuto da terra (sagrada, pública, privada). (RYKWERT, 1976, p. 86)

arte e cidades 2ed.indd 195 04/11/15 18:07

196

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A suposta razão pragmática para a adoção generalizada dos padrões espa-ciais em malha na antiguidade é, segundo Rykwert, superada pelos conteúdos simbólicos, pois nas suas origens mais antigas a malha sempre teria estabelecido, em um primeiro momento, um centro espiritual. Isso fica claro, ainda segundo Rykwert, nas palavras do escritor Hyginus Gromaticus, que acreditava que os antigos sacerdotes inaugurando um novo vilarejo romano teriam colocado o primeiro eixo no cosmos visto que “os limites nunca são desenhados sem re-ferência à ordem do universo, por isso os decumanos são colocados em linha com o curso do sol, enquanto os cardos seguem o eixo do céu”. (RYKWERT, 1976, p. 91) Essa evidência parece indicar de modo claro que em sua origem a malha, em radical contraste com a tese da neutralidade inicialmente posta, tem sido tomada, desde tempos ancestrais e por diferentes sociedades, como um elemento dotado de forte conteúdo simbólico.

Sennet reconhece essa primordial força simbólica ainda que seu argu-mento sugira que a condição de neutralidade tenha sido perseguida com sucesso no novo mundo na medida em que:

[...] os americanos tenderam mais e mais a eliminar o centro público, o centro urbano, como mostram os planos para Chicago de 1833 e aqueles para San Francisco de 1849 e 1856, que apresentam não mais que um punhado de pequenos espaços públicos para as milhares de construções projetadas. (SENNET, 1990, p. 48)

O centro urbano, ao contrário, foi um elemento essencial nas cidades americanas do assim chamado “lado espanhol”. Isso decorre em grande parte da “Lei das Índias”, um conjunto de regulamentos criados por Felipe II da Espanha, em 1573, destinados a ordenar a criação de cidades no novo mundo. Sennet sugere que:

[...] com a vinda das ferrovias e doses massivas de capital buscando um porto, acontece uma mudança nas cidades de origem espanhola enunciadas nas Leis das Índias. A praça deixa de ser um centro, ela não mais é um ponto de referência na geração de novos espaços urbanos. Praças urbanas passaram a ser pontos aleatórios em meio aos blocos após blocos de lotes urbanos. (SENNET, 1990, p. 50)

arte e cidades 2ed.indd 196 04/11/15 18:07

197

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

A conclusão de Sennet traz uma desilusão determinista; ele culpa a grelha por muitas das falhas – por ele reconhecidas – da sociedade Americana; desde a estéril vida social suburbana até a insípida atmosfera por ele observada e vivida nos bares de Manhattan. Nessa linha, ele sugere que a grelha:

[...] pode ser vista como uma arma usada contra a afirmação de um caráter ambiental, um espaço para competição econômica a ser utilizado como um tabuleiro de xadrez; um espaço de neutralidade, uma neutralidade conseguida negando ao ambiente qualquer valor vindo dele próprio. (SENNET, 1990, p. 55)

O argumento é, por um lado, de reconhecimento ao forte conteúdo sim-bólico inerente à malha urbana em sua origem e, por outro, de reconhecimento à força da malha como instrumento de neutralidade. A ambiguidade é evidente especialmente considerada a malha, como ele próprio sugere, como um “signo protestante para a cidade neutra”. (SENNET, 1990, p. 48) Um signo é por de-finição expressão; não pode ser, também por definição, vazio, ou não será um signo. Por outro lado, o desenho urbano em grelha tem em geral vida curta, como fundo neutro, quando confrontado com o “comportamento espacial” dos assuntos humanos. A confrontação da malha com a situação existente, real, é sempre uma questão complexa; o sítio, a natureza, a topografia, esses elementos estão sempre aí como elementos perturbadores e contaminadores. Em sua relação com o mundo, a grelha ganha vida, hierarquias, valores. Por meio desse mecanismo natural, a grelha, em suas diferentes partes e porções, ganha identidade via especificidade.

Ícone e índice

O trabalho do arquiteto alemão Mies van der Rohe é emblemático e controverso no que diz respeito ao tópico da neutralidade na medida em que ele liderou um modo de composição arquitetônica onde a repetição tende a ser a regra. O arquiteto japonês Tadao Ando, após visitar alguns dos edifícios de Mies durante os anos sessenta, sugeriu que “a arquitetura de Mies pertence a todo o lugar e a lugar algum”, e prossegue:

arte e cidades 2ed.indd 197 04/11/15 18:07

198

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

[...] tudo o que lembro é a frieza daqueles espaços uniformes. Me dei conta que em Mies havia algo de trágico e cruel empurrando tudo para uma conclusão lógica que ignora todas as considerações humanas [...] e ainda que Mies não tivesse nascido ainda assim alguém teria produzido aqueles edifícios entediantes, movidos pela necessidade de criar um espaço homogeneizado capaz de absorver toda e qualquer

diferença. (SENNET, 1990, p. 476)

O discurso de Ando vem alinhado com a percepção de Sennet, vista acima, de um zeitgeist neutralizante expresso no urbanismo americano “em xadrez”, e reconhece a expansão dessa tendência na prática arquitetônica con-temporânea que tende a reproduzir esse modo homogeneizante de lidar com a produção do espaço; “[...] hoje temos que trabalhar com tecnologias totalmente controladas por computadores e que apenas entendem o que seja normal e não deixam margem para a diversidade”. (SENNET, 1990, p. 4-6) Ao dar-se conta do quanto a padronização avançou no mundo contemporâneo o arquiteto japonês já não parece tão certo do radicalismo do mestre alemão, com o qual mostra, ao final, alguma complacência; “[...] tentativas de humanização foram feitas pela introdução de eventos informais em grelhas repetitivas. Em Mies, o espaço uniforme sempre deixa essa margem para a liberdade e a diferença [...]”. (MARUYAMA, 1995, p. 476)

O próprio trabalho de Ando foi sempre dotado de um explícito rigor geométrico onde o papel da grelha tende a predominar. Nessa linha, o arquiteto sugere que uma geometria pura esteja entre os elementos necessários para a cristalização da arquitetura:

uma estrutura que venha a dotar de presença a arquitetura [...] o ponto de partida poderia ser um volume tal como um sólido platônico, mas freqüentemente é uma estrutura tridimensional; sinto que essa última seja uma geometria mais pura. (ANDO, 1995, p. 476)

Vê-se aí que o depoimento de Ando sobre o trabalho de Mies está bas-tante distante de uma crítica generalista sobre uma pressuposta neutralidade dos padrões em grelha. Ando de fato não reconhece a grelha em si própria um elemento de composição expressivo, mas sim um outro elemento, ou proce-dimento, por ele apresentado que é o deslizamento (slippage) entre grelhas:

arte e cidades 2ed.indd 198 04/11/15 18:07

199

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

dizem alguns que com o uso de grelhas o resultado será apenas o espaço uniforme de um tipo ou de outro, mas eu discordo. Quando dois espaços homogêneos, representados como malhas, interferem um com o outro acontece um deslizamento entre eles o qual provoca o incômodo, a rejeição de entidades idênticas que colidem. Isso é o que considero ‘diferença’ e é isso o que procuro.(MARUYAMA, 1995, p. 476)

Esse é o modo como Ando cria “lugares que abrangem a diversidade existente no mundo e que dão expressão a quaisquer ideias que rejeitem uniformidade”. (MARUYAMA, 1995, p. 476) De fato, essa característica à qual Ando se refere é algo bastante recorrente no meio urbano, em cidades de crescimento natural, paulatino, onde grelhas pertencentes a diferentes es-tágios de desenvolvimento colidem – em suas adjacências – de modo casual. Nessas situações, o caráter dessas grelhas em colisão tende a produzir situações espaciais excepcionais – diferenças – estranhas aos padrões originais. Nesse sentido, e em comparação com as imaculadas estruturas miesianas, o trabalho do arquiteto japonês parece assumir um caráter bastante pitoresco ou, se qui-sermos, expressionista.

O arquiteto americano Peter Eisenman, em uma análise do trabalho de Ando, sugere que

[...] as linhas de Ando não são simplesmente uma grelha; elas contêm esse ‘outro’ que é simultaneamente índice e ícone [...] a grelha tem secundariedade – uma qualidade de um índice sem complexidade adjetival ou hierárquica, e não mais uma forma primária. (EISENMAN, 1995, p. 496-497)

Eisenman se apoia em categorias – dadas pelo filósofo americano Char-les Peirce – que estabelecem diferença entre as condições do signo. “Essas categorias fornecem elementos que contribuem na compreensão da dimensão oculta dos padrões em grelha”. (PEIRCE, 1952) Um ícone, sugere Peirce, é um signo que guarda uma “relação primária e direta” com um objeto. Exemplo clássico de ícone são os números (um, dois, ... n) que se relacionam direta-mente a uma certa quantidade de algo. Um índice é um signo que guarda uma relação secundária com o objeto. Um índice é o signo de um conjunto de relações tais como os algoritmos, equações e sintaxes. Índices descrevem

arte e cidades 2ed.indd 199 04/11/15 18:07

200

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

“as complexas interações em um objeto que podem ser conhecidas, mas não necessariamente vistas. São relações de ‘secundariedade’ na medida em que não se revelam a partir de uma visão inicial”. (PEIRCE, 1952, p. 496) Relações de secundariedade constituem uma espécie de dimensão oculta da arquitetura, estão mais escondidas – no domínio da forma espacial – enquanto o discurso arquitetônico trata, em geral, da aparência visual. Relações de secundariedade descrevem o modo como o espaço, a arquitetura, de fato, opera.

Seguindo essa tipologia, a grelha – os padrões em grelha em geral – detém ambas as condições, ou seja, são simultaneamente ícones e índices. Conforme Eisenman sugere,

[...] quando se desenha a intersecção de duas linhas, se produz uma cruz que é um óbvio ícone de ponto, centro, foco etc. A repetição desse cruzamento produz uma grelha, que não tem mais a ver com centro e foco, mas sim com superfície, textura etc. A grelha não é mais então primariamente icônica, mas também um índice.2

Isto é, a grelha carrega em si própria relações espaciais que não podem ser vistas em sua totalidade, mas que serão determinantes no uso do espaço em grelha resultante. Esse caráter de secundariedade é bastante distinto do caráter icônico primário que pode ser facilmente percebido em qualquer planta e em geral na iconicidade utilizada pelos mestres do movimento moderno:

[...] (Mies e Le Corbusier) ambos utilizaram a grelha como um ícone da arquitetura modernista; ela representava as novas concepções de espaço como algo abstrato, ilimitado e tectônico perseguindo uma imagem mecanicista ou de máquina simplesmente.

A “neutralidade” da grelha, portanto, seguindo a tipologia proposta por Sennet, parece ser apenas algo aparente, algo dado na superfície, uma iconi-cidade aparente. Mais fundo, sob a superfície, imersa na “secundariedade”, a grelha carrega uma essência espacial, uma dimensão oculta que provém de sua “sintaxe”. Nesse sentido, fica aparente que Eisenman de certo modo perdeu o foco, ele próprio, ao sugerir que as grelhas seriam não mais relacionadas com o ponto, ou centro(s), mas sim com superfície e textura. A condição de acessi-

arte e cidades 2ed.indd 200 04/11/15 18:07

201

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

bilidade espacial inerente a qualquer padrão urbano em grelha é naturalmente dotada de centralidade. Considerado o conjunto de relações espaciais inerentes a cada um se seus segmentos de linha, a grelha, qualquer grelha, será natural-mente dotada de um centro, um ponto focal, topológico (não geométrico). Como tal a, acima teorizada, neutralidade da grelha mostra-se insustentável quando confrontada com sua própria “natureza sintática”, sem falar de seu confronto com o mundo real.

um emblema da arte moderna

Esse caráter duplo, inerente aos padrões em grelha tem sido largamen-te reconhecido e levado a seu limite pela arte moderna, especialmente na pintura. Nessa linha, a crítica de arte americana Rosalind Krauss sugere que “se a separação entre espírito e matéria, presidida pela ciência do século XIX, é o legado deixado às crianças do século XX, esse não deixa de ser também o legado deixado à arte do século XX, e a grelha é sua forma emblemática”. (KRAUSS, 1980, p. 1) O forte conteúdo simbólico vinculado aos padrões em grelha desde a Antiguidade fica adormecido por um milênio de obscurantismo e ressurge com força total nos tempos modernos; “a grelha é um emblema da modernidade por ser apenas isso: a forma que está em toda a parte na arte do nosso século, e em lugar algum na arte do século passado”. (KRAUSS, 1980, p. 2) Essa transição do tradicional conceito de arte como imitação (da natureza) na direção de um conceito explicitamente abstrato teve, ao longo do século XX, o padrão em grelha como seu principal protagonista. Na medida em que toda a tradição da imitação é deixada para trás, a malha vem a representar por si própria a autonomia da obra de arte. Curioso, no entanto, é que nos tempos atuais – tempos explicitamente presididos pelo secularismo combinado com o materialismo – a dimensão espiritual é frequentemente vinculada ao uso de padrões em grelha. Nessa cisão entre o sacro e o secular, típica do tempo em que vivemos, verifica-se a força da grelha tanto como um emblema quanto como mito; “[...] a força mítica da grelha está no fato de ela nos fazer pensar que estamos lidando com materialismo e ao mesmo tempo nos liberar na di-reção de algo a acreditar (ou ilusão, ou ficção)”. (KRAUSS, 1980, p. 4) A obra de artistas como Agnes Martin, Malevitch, Mondrian e tantos outros mostra vestígios dessa força subjacente.

arte e cidades 2ed.indd 201 04/11/15 18:07

202

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

as grelhas e o mundo lá fora

Desde o ponto de vista da suposta neutralidade da grelha, a preexistência tende a se comportar como um fundo orgânico. Isso parece corresponder ao que ocorre tanto no ambiente natural quanto no artificial. A presença ordenadora da arquitetura está em seu modo de contrastar esse cenário complexo. O ex-pressionismo arquitetônico frequentemente tenta mimetizar a complexidade ambiental. Essa atitude parece afastar-se da condição de “elemento ordenador” inerente à arquitetura. A tentativa de imitar a espontaneidade natural, mais que uma missão impossível, termina produzindo um expressionismo inconse-quente. E a melhor arquitetura – Palladio e Mies são exemplos – é configurada tendo a neutralidade como origem, no conceito. Por partirem, na origem, de configurações neutras, essa arquitetura se torna fortemente comunicativa, e mesmo expressionista, em seu desenvolvimento, quando confrontadas com o ambiente, com a vida das pessoas e com a passagem do tempo. Quando isso é obtido a arquitetura se torna arte. Isso fica evidente na planta de Mileto, nos bulevares parisienses, na obra de Mies e no monolito prismático de 2001, a Odisséia Espacial; a pedra negra que assusta os macacos, ícone de racionalidade. Essas obras de arte mostram a realização do que pode ser considerado como o caráter correto; aquela situação na qual a expressão emerge da neutralidade, simplesmente da interface com o mundo real.

A expressão simultânea de caráter e finalidade dos bulevares parisienses vem do modo como esses espaços se confrontam com os mil anos do tecido urbano onde foram situados. A colisão entre a linha reta da avenida e o tecido labiríntico da cidade medieval faz o papel de um instrumento de comunicação. O bulevar é simplesmente um eixo e precisamente por isso um comunicador eficiente. A arte, a obra de arte, está no modo – como e onde – esse eixo é rea-lizado, o modo como ele intersecta a preexistência. É provável que Haussmann não estivesse consciente desse aspecto, no entanto, o resultado obtido é eficiente e belo. A destruição de boa parte da Paris medieval para tor ná-lo possível, inclu-ídas aí as implicações sociais, é outro tema. O que conta no presente argumento é a força, a beleza e a efetividade de uma linha reta – um elemento neutro na origem – quando confrontado com a complexidade da preexistência. A grelha de Hippodamus realizada em Mileto produziu um efeito similar. O contorno natural da península é confrontado com a neutralidade da grelha. E a grelha é afetada pelo ambiente natural. Ela deve acomodar-se e por outro lado sofre

arte e cidades 2ed.indd 202 04/11/15 18:07

203

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

a pressão dada pelo programa – o ágora, os foruns, a acessibilidade desde e pa ra esses locais – e desse modo uma natural hierarquia de caminhos emerge. A ma lha se torna naturalmente expressiva, comunicativa. Efeito similar ocorre em Manhattan quando a Broadway atravessa a malha regular em diagonal. O resul tado é um pedaço de Nova Iorque fortemente expressionista; ainda que naturalmente.

Os antigos parecem ter manejado de modo automático com a trans-posição mecânica da genérica neutralidade de um modelo à especificidade de cada situação. As casas gregas e a domus romana reproduzem na escala do edifício esse mesmo princípio. As casas antigas são frequentemente em grelha; um espaço central articula espaços periféricos que por sua vez se comunicam. É a “matriz de compartimentos conectados de Evans”. (EVANS, 1978) E o mecanismo de deformação opera de modo similar à aquele que atua sobre as malhas urbanas. Essas edificações, ainda que similares, nunca são as mesmas; muito embora sejam baseadas em um padrão simples e originalmente neutro eles se transformam ao acomodar os diferentes usos, atividades e o movimento das pessoas. Os edifícios de planta central do Renascimento são variações desse ancestral padrão neutro encontrado nas casas greco-romanas. A malha vem sendo através dos milênios um natural gerador de diversidade.

o corpo e a malha

A relação entre ortogonalidade e o conceito mais geral de inteligibilida-de espacial merece atenção no contexto do presente argumento. Malhas são, senso comum, reconhecidas como naturais provedores de orientação espacial, naturais sistemas de referência. Coordenadas cartesianas são um meio universal através do qual o homem é capaz de posicionar-se no mundo físico e estão na base tanto do mais elementar mapa geográfico até os mais sofisticados GPS. Um trivial exemplo de inteligibilidade espacial dos padrões em grelha é dado por um observador deslocando-se ao longo de uma rua que é atravessada por outras ruas em ângulo reto. A percepção local de uma sequência de esquinas assim configurada fornece uma indicação sobre o padrão em malha desse entorno. A percepção local opera como instrução para o reconhecimento do padrão global.3 Outro exemplo banal é dado por um observador situado em um compartimento tendo a sua frente paredes posicionadas em ângulo reto. Ainda que esse não seja o caso, há uma alta probabilidade que as paredes nas

arte e cidades 2ed.indd 203 04/11/15 18:07

204

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

costas desse observador descrevam padrão similar e o observador tende a concluir que está dentro de um compartimento retangular; configurado por quatro paredes posicionadas em ângulos retos. Esses exemplos não contêm julgamento de valor qualquer, porém, sugerem uma relação instrumental entre ortogonalidade e a condição de inteligibilidade espacial.

A ambição da arquitetura moderna de alcançar uma relação adequada entre forma e função coincide e está sobreposta à ambição de alcançar geome-trias também adequadas; aquelas que sejam capazes de prover um ambicionado padrão de uso e movimento. Esse objetivo pode ser buscado pelo menos de dois modos diferentes. Um é pela canalização das pessoas; a “promenade” arquitetural. Outro, é através da provisão de uma estrutura espacial de referência que oriente o comportamento espacial das pessoas. O movimento das pessoas no mundo parece ser, em princípio, naturalmente entrópico, ou seja, os corpos se moveriam aleatoriamente sem a contenção arquitetônica que organiza o movimento. Isso tende a ocorrer em diferentes escalas. Assim sendo, a arquitetura tende a ser por definição ordenadora e, de certo modo, repressora. Diferentes graus de restrição são introduzidos pelos objetos – barreiras – que atuam sobre o movimento dos corpos no espaço. Nessa linha quanto mais neutra for a arquitetura menos ela será um preventivo à ação livre das pessoas e menor será o grau de violência – a violência espacial de Tschumi – que ela irá impor à vida das pessoas. Por outro lado, quanto mais a geometria dada nas distribuições espaciais é complexa maior será a restrição imposta ao movimento. Portanto, pelo menos em teoria, quanto mais presente – ou expressionista – for a organização espacial, mais limitadora ela tenderá a ser ao movimento do(s) corpo(s). Na mão contrária, as arquiteturas mais neutras ou mais “ausentes” tendem a estabelecer apenas uma estrutura de referência à vida espacial das pessoas.

No entanto, o partido em grelha não parece ser também uma garantia de inteligibilidade espacial. Tanto a arquitetura moderna quanto a arquitetura clássica fizeram, e têm feito, uso recorrente das grelhas em seus modos de arranjo. E a promenade resultante é bastante contrastante se esses dois modos de composição são comparados. Na arquitetura da Antiguidade, a distribui-ção espacial tende a produzir em geral um padrão de percursos claro e direto. A dis tribuição espacial é revelada de modo explícito. Na arquitetura modernis-ta, apesar da teoria em torno do passeio arquitetônico, o padrão de percursos resultante é em geral mais complexo, tortuoso e de difícil apreensão. A dis-tribuição espacial é seguidamente não explicitada. Na arquitetura moderna,

arte e cidades 2ed.indd 204 04/11/15 18:07

205

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

as distribuições espaciais em malha frequentemente configuram labirintos. Nessa linha, um conhecido “passeio arquitetônico” assim descrito por Colin Rowe é exemplar:

[...] no edifício da Bauhaus enquanto se registra a apreciação men-tal tanto da planta quanto da estrutura, o olho é confrontado com o perturbador problema do impacto simultâneo de elementos amplamente dispersos. Um dominante elemento central é eliminado; elementos subsidiários são por isso incapazes de desempenhar um papel de apoio, e num estado de autonomia visual, eles são dispostos em volta do vazio da ponte central que nem lhes fornece orientação visual como um esquema consistente nem permite que eles assumam independência como unidades autônomas [...] nessa estratégia de perturbar, ao invés de fornecer prazer imediato ao olho, o elemento de prazer da arquitetura moderna parece predominantemente enganar [...] um esquema labiríntico é oferecido o qual frustra o olho ao intensificar o prazer visual de episódios individuais. (ROWE, 1976, p. 45)

O passeio arquitetônico oferecido pela distribuição espacial do edifício da Bauhaus mostra, na linha do argumento ora perseguido, o modo como um padrão espacial em malha pode ser fortemente expressionista e, sobretudo, um fator limitante à inteligibilidade espacial.

notas finais

As ideias acima apresentadas constituem uma incansável tentativa de apresentar diferentes aspectos envolvendo o expressionismo e a neutralidade em arquitetura. O principal objetivo é desmistificar a ideia de que o uso de regula-ridades, e especialmente o uso de grelhas, seja um fator limitante à criatividade em arquitetura. Procurou-se mostrar que a grelha não é, em caso algum, um instrumento projetual neutro e que, de fato, ela pode ser, e frequentemente é, um poderoso instrumento simbólico, e expressionista, na atividade do dese-nho arquitetônico. O objetivo principal aqui é o de encorajar a pesquisa sobre a potencialidade de padrões espaciais em grelha como um modo efetivo de entrada no mundo da arquitetura, especialmente os estudantes. Ao final, em contraponto, foi também mostrado que o uso de grelhas não é uma garantia de que se chegue a resultados seguros na obtenção de inteligibilidade espacial.

arte e cidades 2ed.indd 205 04/11/15 18:07

206

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Nessa linha, o caso do edifício da Bauhaus, estudado por Rowe, é desconcer-tante. Finalmente, há que reconhecer que o argumento apresentado é de certo modo desestimulante ao uso de irregularidades e configurações exóticas em arquitetura em geral. Há, no entanto, lugar para tudo no presente contexto cultural e a proposição dada acima sugere apenas que, em arquitetura, é sempre necessário que os primeiros passos explorem, sintam o sabor e se habituem ao repertório dado, gratuitamente, por uma tradição milenar.

notas

1 Uma coleção de teorias nessa linha é dada em Cristina, G. (Ed.) (2001). ‘Architecture and Science’, Chichester: Wiley-Academy.

2 As given in Hillier B. and Hanson J, The Social Logic of Space, CUP, Cambridge, 1984.

3 This concept is developed by B. Hillier and others (1993).

referências

ANDO, T. Materials, geometry and nature. In: DAL CO, Francesco (Ed.). Tadao Ando: complete works, London: Phaidon, 1995. p. 456.

CRISTINA, G. (Ed.). Architecture and science. Chichester: Wiley-Academy, 2001.

CUFF, Dana. Through the looking glass: seven New York architects and their people. In: ELLIS, Russell; CUFF, Dana (Ed.). Architects’ people. New York: Oxford, University Press, 1989.

EISENMAN, P. Indicencies: in the drawing lines of Tadao Ando. In: DAL CO, Francesco (Ed.). Tadao Ando: complete works, London: Phaidon, 1995.

EVANS, R. Figures, doors and passages. Architectural Design 4, p. 267-278, 1978.

HILLIER, B.; HANSON, J., The social logic of space, Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

HILLIER, B. et al. Natural Movement. Environment and Planning B, v. 20, p. 29-66. 1993.

KRAUSS, R. Grids: format and image in 20th century art. New York: Pace Gallery, 1980. p. 1.

LÉVI-STRAUSS, C. Structural anthropology. Harmondsworth, England: Penguin, 1972.

arte e cidades 2ed.indd 206 04/11/15 18:07

207

do

ug

las

vie

ira

de

ag

uia

r

ö

MARUYAMA, H. Interview with Tadao Ando. In: DAL CO, Francesco (Ed.). Tadao Ando: complete works, London: Phaidon, p. 476, 1995.

PEIRCE, C. S. The collected papers of C. S. Peirce. Ed. A. W. Burks, Cambridge: Harvard, 1952.

ROWE, C. Character and composition. In: The mathematics of the ideal villa, and other essays. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1976.

RYKWERT, J. The idea of a town: the anthropology of urban form n Rome, Italy and the ancient world. London: Faber and Faber, 1976. p. 192.

SENNET, R. The conscience of the eye: the design and social life of cities. New York : Random House, 1990.

TSCHUMI, B. Questions of space: the pyramid and the Labyrinth. Studio International, London, n. 177, sept./oct., 1975.

arte e cidades 2ed.indd 207 04/11/15 18:07

208

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

arte e cidades 2ed.indd 208 04/11/15 18:07

209 ö

fabio loPes de souza santos

as neo-vanguardas e a cidade

A produção contemporânea em arte e arquitetura se constrói a partir dos frutos da efervescência dos anos de 1960, embora esta conexão possa soar es-tranha à primeira vista: aos nossos olhos o horizonte utópico da neo-vanguarda parece pertencer a outra era. Paradoxalmente, enxergamos com maior clareza a continuidade entre as formas artísticas empregadas hoje e aquelas geradas pelas neo-vanguardas que a dinâmica de fundo que as impulsionou e depois as transformou substancialmente. Paulatinamente, passou-se, nas últimas quatro décadas, do discurso moderno contra o caos urbano para outro que elogia a heterotopia, tendo como elo decisivo justamente as manifestações neo-vanguardistas. Houve um deslizamento gradual desde a hegemonia mo-derna até a atual apologia da “diferença” e da “pluralidade”. O presente texto passa em revista algumas produções da neo-vanguarda, artística e arquitetônica, procurando discernir por trás de sua exorbitante diversidade motivações com-partidas para, num segundo momento, entender a natureza da transformação na produção cultural recente.

rauschenberg, Cage e kaprow: emergência de uma sensibilidade

“Monograma” é, sem dúvida, uma das obras contemporâneas mais conhecidas. Encontramos em toda parte a enigmática imagem de um cabrito montanhês com face multicolorida que, entre seus pelos sedosos, ostenta um prosaico pneu. Não menos inusitada é a sua base, mescla de baixo relevo e cola-

arte e cidades 2ed.indd 209 04/11/15 18:07

210

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

gem, rematada com toques de tinta, cuja horizontalidade dificulta a visualização. Podemos imaginar as dificuldades enfrentadas por um observador educado nos paradigmas modernistas perante esta obra: seria escultura, pintura, ready made ou colagem? Possivelmente, também vacilaria ao tentar conceder algum sentido ao pneu em volta do animal, à pintura em sua face, ou ao tentar criar algum nexo entre estes inusitados elementos. Mesmo a referência à revolta dadaísta ou o acesso à suprarrealidade parecem deslocados para esta imagem, exemplo perfeito de “surrealismo sem inconsciente”. Se observasse outras obras de Robert Rauschenberg, um estranhamento semelhante o acompanharia. Tomemos algumas de suas grandes assemblages bidimensionais. Após o cho-que inicial, o observador se dá conta de que o desfile de imagens desconexas apenas é organizado pela ortogonalidade latente de sua disposição. O olhar, ao percorrer a extensa superfície do quadro, encontra dificuldade em unir as imagens esparzidas em um agrupamento sintético: seus elementos resistem a se hierarquizar em subgrupos visuais. Ao não fixar nenhuma ordem clara, ou seja, ao não encontrar pontos focais mais fortes no todo em contraposição a áreas periféricas, o olhar volta a percorrer a tela, buscando, sem repouso.

Figura 1 - Robert Rauschenberg, Monogram, assemblage, 1955-1959.

Só é possível abarcar a composição por vias paralelas e defasadas. Uma opção é negar o valor particular de cada imagem e interpretá-las em conjun-to, como áreas pictóricas de um quadro abstrato. Assim, encontramos uma

arte e cidades 2ed.indd 210 04/11/15 18:07

211

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

construção formal que remete à abstração: a organização do campo visual em ortogonais e contrastes de extensão de áreas. Outra possibilidade seria dar prioridade à leitura individual das figuras, concentrando a atenção dentro do campo visual de cada foto ou objeto. A construção formal converte-se então em uma sucessão de elementos de igual valor cujo vínculo é frágil. A atenção pula de um para o outro e mesmo quando se tenta integrá-los semânticamente, tampouco sua sucessão constrói algum sentido. Rauschenberg cria uma pintura semelhante a uma somatória, deixando em suspenso o papel de ordenador ou de intérprete. A justaposição cubista de fragmentos ainda configurava uma hie-rarquia, remetia a alguma totalidade. Mas é outra a estratégia de Rauschenberg ao lidar com fragmentos: a ausência de hierarquia em seu trabalho materializa uma mudança radical de sensibilidade. Seu trabalho se dirige a um sujeito que aceita o fluxo contínuo de imagens díspares e abandona sem remorsos o esfor-ço de integrá-las em uma totalidade. Os procedimentos utilizados, colagem, gestualidade ou a citação do banal, são familiares ao modernismo, mas não sua sintaxe. E nem sua semântica: o significado das imagens permanece estranha-mente neutro; são alheias à lógica cubista e lhes falta a provocação dadaísta. A gestualidade comparece mecânica, a enorme escala da tela foi fragmentada e a qualidade de inacabado, que sempre foi lida como índice de individualidade ou ainda referência ao Primitivismo, soa artificial. Imagens e procedimentos se apresentam no campo visual, mas sem necessariamente constituir alguma refe-rência clara, além da própria presença. Aquilo que é sujeira, objeto descartado ou má impressão se torna matéria, textura, criando uma estética do inacabado na qual uma tábua envelhecida remete a uma escultura africana e as falhas da serigrafia equivalem à massa pictórica expressionista. Mas, nesta mimese, perdem intencionalidade e impulso expressivo. Paradoxalmente, este “vácuo”, a suspensão de significado, seduz o público. Por outro lado, o observador pode indagar pelo artista, o sujeito responsável pela sensibilidade organizadora. Mas, o que norteou a escolha destes materiais? Ao citar imagens da indústria cultural, ele está criticando, sendo irônico, faz apologia? Estas interrogações suscitam outras: se ele não propõe nem utopia nem apologia, podemos, então, estar perante um universo pessoal. Mas tudo que antes indicava gesto ou visão pessoal foi obliterado, toda destreza do ofício da pintura foi deixada de lado em favor de operações tão simples como decalcar, pincelar, colar ou pregar. É claro que a estruturação dos elementos no campo visual é sofisticada, mas é a simplicidade e a rapidez do gesto que “ganha” o observador, que se sente

arte e cidades 2ed.indd 211 04/11/15 18:07

212

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

capaz de realizar algo semelhante. Paradoxalmente, um dos cavalos de batalha da vanguarda aparece magicamente realizado: a síntese entre arte e vida. Aliás, como o próprio artista declarava: Trabalho na defasagem entre a Arte e a Vida.

As assemblages são resultado do gesto que recolhe detritos heterogêneos, disparando cadeias de associações; abdicando de qualquer conclusão, deixa para o público dotá-las de significado. Configuram um elogio não só à “obra aberta”, mas à percepção “desatenta”, dispersa, mas capaz de captar múltiplas solicitações do ambiente. A obra de Rauschenberg, longe de constituir um caso isolado, encaixa-se sem dificuldade dentro do conjunto de manifestações que emergiu ao final dos anos de 1950. Nelas encontramos um forte impulso iconoclasta como condição para experiências novas, explicitado por Susan Sontag na demanda “devemos aprender a ver mais, a ouvir mais, a sentir mais”.

No Black Mountain College, Rauschenberg foi aluno de Jonh Cage, personagem central na superação do alto modernismo, cuja influência es-tendeu-se muito além da esfera musical. As peças de Cage inseriram-se em uma cena dominada pelo Serialismo, disparando uma dialética de ruptura e continuidade. Paradoxalmente, a audição de uma peça serialista ou uma de Cage, construída pelo princípio da indeterminação, resulta de difícil distinção, apenas a partitura revela com clareza a diferença: a extrema determinação e o acaso mostram resultados semelhantes. Essencial para Cage foi incluir sons “não-musicais”: “enquanto que no passado o ponto de discórdia era entre a dissonância e a consonância no futuro próximo, ele será entre o ruído e os assim chamados sons musicais”. Sua música incluía elementos absolutamente exteriores à tradição: o concerto “4’33” de 1952 consistia na audição dos cinco minutos de silêncio de um intérprete parado frente ao piano – situação cujo estranhamento devolvia ao público a consciência de si mesmo, de sua presença em uma sala de audição. Convertida em collage de situações, sua música muitas vezes se metamorfoseou em estratagema para vencer a “defasagem entre arte e vida”. Ao invés de “representar”, ela prefere “apresentar”: deixar evidente a situação concreta da comunicação artística, o local, a própria presença, tudo que constitui o ritual da audição. Nesta “apresentação” todos os sentidos são incluídos e de modo alheio às hierarquias convencionais: os instrumentos que Cage desenvolveu tem tanto interesse quanto a música.

Nesta linha, outro passo foi dado por Allan Kaprow, também aluno de Cage. Em 1962, organizou um happening no pátio da maior flophouse do mun-do, com 1.200 pequenos quartos para “os mais pobres entre os mais pobres”,

arte e cidades 2ed.indd 212 04/11/15 18:07

213

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

o “Mills Hotel” no Village de Nova York. No centro deste pátio, o artista e seus assistentes tinham construído um alto andaime coberto de papel negro, cartolinas e plásticos. Duzentos espectadores rodeavam as paredes desta “prisão onírica”, enquanto centenas de moradores olhavam para baixo desde pequenas janelas com barras. Hans Richter, antigo dadaísta presente no evento, relata:

Então, entregaram-nos vassouras e a ‘audiência’ começou a varrer o chão, que estava coberto com jornais e outros tipos de lixo. Quando tudo estava limpo, pedaços pretos de papel caíram desde o céu, ao acompanhamento de sirenes estridentes e de alguém soprando uma trombeta. Mais papel choveu, e sacos vazios e caixas de cartolina começaram a cair desde o céu noturno... e nós percebemos um ciclista que estava passeando muito devagar envolta do andaime gigantesco e que continuou a fazê-lo durante toda a noite. Um pneu atado ao final de um cabo balançou de um canto bem acima de nós e atingiu algumas caixas grandes de cartolina que tinham caído desde a cúpula, jogando-as desde cima do andaime sobre os espectadores. Uma Ofélia em branco começou a dançar, com o transistor de um radio preso aos seus ouvidos, envolta do andaime que agora parecia um altar de sacrifício. Sons de sirenes amedrontadores. Dilúvios de papel, efeitos de trovão, urros e rangidos, e a cúpula começou a descer vagarosamente até que cobriu Ofélia, fotógrafos, caixa de cartolina e o pneu. O sacrifício atingia seu final. (RICHTER, 1964, p. 237)

Assemblages, happenings e concertos encaixam-se dentro do arco de experiências que então se realizavam, além dos gêneros artísticos aceitos, transgredindo-os em favor de inesperadas “sínteses das artes”. Devemos ir além da esfera da arte para imaginar a razão destas experimentações: elas apontam a maturidade de novas formas de percepção, uma sensibilidade emergente. Na mú sica de Cage, o elemento aleatório contrapõe-se à racionalidade da forma alto modernista, encarnando a esperança de que uma outra percepção, mais ampla, ultrapassasse a “percepção programada” (FERRARA, 1998, p. 198-199) dos modernos, induzindo o público a maneiras inusitadas de apropriação do cotidiano. É justamente a aparente desordem (a confluência e/ou colisão de ordens heterogêneas) reinante nestas obras que deveria reeducar a associação perceptiva do observador, abrindo-o para uma nova relação com o mundo exterior. Tais obras pretendiam criar uma sensibilidade em sintonia com a heterotopia da vida contemporânea: as imagens e as situações que nos assal-

arte e cidades 2ed.indd 213 04/11/15 18:07

214

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

tam quotidianamente deveriam ser desfrutadas como uma sucessão de ritmos ou estruturas sensíveis. Kaprow, como Rauschenberg ou Cage, defendiam o apagamento das fronteiras entre obra e cotidiano como um procedimento que visava criar uma nova harmonia entre sujeito e objeto, promovendo a plena aceitação da sociedade capitalista industrial. Emerge, nestas obras, um desejo estranhamente lírico de captar o aleatório presente no cotidiano: ultrapassado o estranhamento, substituído pelo deleite, o público aprenderia a navegar com prazer ao ritmo dos choques da (pós) modernidade.

Multiplicidade de propostas. Numa clara contestação ao alto moder-nismo, ambientes, happenings e performances sedimentaram-se como formas de experimentação, nas quais era característica a atitude de “inclusão”, tão propícia ao inesperado, ou mesmo à transgressão, quanto oposta ao caráter “excludente” da ortodoxia alto modernista. Levantando-se contra o comporta-mento induzido, contra a cidade funcional (mas tediosa, se não opressora), estas manifestações estéticas reivindicavam uma nova articulação entre vida, estrutura urbana e produção. Abrangendo desde novas atitudes na vida cotidiana até novas propostas de politização, estas manifestações, em seu estonteante expe-rimentalismo, não esqueceram nem o resgate (ou invenção) de rituais urbanos nem a revalorização do misticismo. Exemplo desta diversidade foram algumas propostas do grupo Fluxus, de Joseph Beuys e da Internacional Situacionista.

Segundo Robert Watts, “a coisa mais importante sobre o Fluxus é que ninguém sabe o que ele é”. Singularmente, o grupo originou-se nos festivais de música de Darmstadt, ampliando depois suas atividades para outras artes. A declaração de Wolff Vostell, “todo processo vital pode ser sentido como um processo artístico”, esclarece sobre os objetivos do Fluxus. Encarando o estético como emancipação, arquitetaram suas propostas visando ampliar a participação do público. Sua produção enfocou a metamorfose de acontecimentos “coti-dianos”: surgiram assim casamentos ou comidas fluxus, que hibridizavam de maneira inextricável vida e arte. Sua temática estendeu-se ao urbano, encarado como um sistema de fluxos de atividades e informações. Suas táticas opunham-se simultaneamente a mercantilização e à autonomia da arte; ao colocar em cheque a categoria arte, almejavam ressemantizar o cotidiano. Segundo o Fluxus, não se tratava de “representar” o cotidiano, mas de operar nele por meio de intervenções que atuando como ruído, interromperiam o fluxo da vida programada, abrindo portas para novos comportamentos. Paradigmático foi o happening de Vostell,

arte e cidades 2ed.indd 214 04/11/15 18:07

215

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

“Im Ulm, um Ulm, um Ulm herum”, de 1964, no qual mães com máscaras de gás e carrinhos de bebê passearam dentro do subterrâneo de uma garagem.

Figura 2 - Joseph Beuys. América. Instalação e happening.

Peculiares no conjunto destas produções são as atuações de Joseph Beuys. Elas ganham significado, apesar de ancoradas no aqui-agora da sociedade industrial, a partir da compreensão dos “mitos pessoais” que cultivou. A constante presença dos materiais banha e feltro, que em seus trabalhos serve como referência à criação e conservação de energia, remete (e transcende) sua história pessoal: a queda de seu avião em meio à II Grande Guerra e seu resgate por uma tribo nômade que o salvou da morte, protegendo-o do inverno rigoroso ao envolver seu corpo nestes materiais. Outros materiais, mel ou ouro, e determinados animais, como a lebre e o veado, são igualmente investidos de simbolismo. A apresentação de sua persona artística fica entre o espetacular e a atuação do xamã: seus happpenings têm a du-ração e o caráter de provação física de um ritual. Estas relíquias pré-capitalistas não devem espantar: elas fazem parte da contabilidade neo-vanguardista das perdas trazidas pela modernização, em que utopias “regressivas” são reavaliadas sob luz positiva. Mas este traço irracional não impediu Beuys de liderar nos

arte e cidades 2ed.indd 215 04/11/15 18:07

216

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

anos de 1960 reivindicações dos estudantes, transformando-as em verdadeiros happenings de massa. Pelo contrário, o papel de xamã que assumiu foi mais do que aceito, talvez como reconhecimento da exigência que Beuys fazia da presença da arte na universidade como contrapeso à influência da tecnocracia. Foi, neste sentido, que promoveu a “teatralização” das manifestações políticas: a efetividade destes “rituais” foi tal que levou o encarregado oficial das negocia-ções com ele e os estudantes a recusar uma entrevista com o artista/professor/xamã, temendo ser “convertido em uma obra de arte”.

A atuação da Internacional Situacionista materializou a recíproca influ-ência entre reflexão e arte, constituindo uma ponte com a política no sentido forte do termo. Embora louvassem as conquistas do modernismo, os situacio-nistas eram críticos ferozes do caráter unidimensional do funcionalismo. Sua atuação pautou-se pela “resistência a um urbanismo disciplinador e inibidor dos desejos”. Os situacionistas queriam ampliar os horizontes da arquitetura, de maneira a permitir que a vivência urbana voltasse a ser totalizadora e aberta a todas as possibilidades existenciais. Enfatizando as relações entre espaço e comportamento, os situacionistas concebiam o habitat como um “cenário para totalidade da vida” e a cidade como “usina do imaginário social”. As propostas situacionistas materializavam-se na invenção e na prática de jogos, “criação coletiva ao nível de uma arte verdadeira, complexa por meios variados”, en-tendidos como “alternativa revolucionária a uma vida planificada”. Criaram, portanto, jogos de agitação social, “a construção de situações”, para expandir a percepção dos participantes de si, entre si e do ambiente. O principal deles, a “deriva”, convidava os participantes “à realização contínua de um grande jogo deliberadamente escolhido, [...] um momento da vida, construído concreta e deliberadamente pela organização coletiva de um ambiente unitário e de um jogo de acontecimentos”. (ANDRADE, 1993, p. 16, 19) Uma proposta sua consistia em colocar uma pequena multidão em marcha, cujo percurso por alguns quilômetros da cidade configurava uma linha absolutamente reta e inde-pendente da configuração do tecido urbano. Esta defasagem dava lugar a práticas inusitadas: rasgando literalmente o tecido urbano, a multidão marcharia sobre automóveis, penetraria em espaços privados, em suma, invadiria e atrapalharia a marcha do cotidiano. Como resultado “aquele que deriva entende(ria) que os quarteirões por onde anda são construções sociais e, portanto, ele é capaz de ‘reconstruí-los’, rompendo-os, fragmentando-os com seu caminhar. É o espetáculo social, em suas falsas montagens, que deve ser arrebentado desde

arte e cidades 2ed.indd 216 04/11/15 18:07

217

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

dentro”. Na deriva, o espaço urbano converter-se-ia em palco de perambulações coletivas, realizadas como tática de estranhamento para recuperar o sentido da experiência urbana, que os situacionistas acreditavam ameaçado pela “sociedade do espetáculo”.

Atingiu-se na época, por meio destas diferentes manifestações, outra compreensão da natureza do urbano, que deixou de ser entendido como apenas o espaço onde acontece a produção ou se inserem “objetos de arte”. Uma vez concebido como o suporte de fluxos de diferentes redes de so-ciabilidade, empregando estes canais, a intervenção artística ganharia outra ressonância. Em sua forma extrema, happenings provocavam intencionalmente a ordem pública, queriam estender os limites da normalidade aceita, politizar o comportamento. Levantando-se contra a estética alto modernista, ao final, esbarraram no sistema fordista de produção, homogeneizador de vivências, e nas limitações do Estado de Bem-Estar Social: neste sentido, a trajetória da Internacional Situacionista foi exemplar. Como coroamento, estudantes (com a ajuda de políticos e policiais) promoveram um imenso happening ao final dos anos de 1960, oportunidade concedida pela conjuntura excepcional, na qual alcançaram o auge a politização estética e a mobilização política e social. Diversos acontecimentos cimentaram a troca entre arte, teoria e participação popular, tingindo as manifestações com o matiz de festa urbana, como bem traduz a colocação inusitada de um piano de cauda no pátio da “Sorbonne libertada”, em maio de 1968. “A imaginação no poder”, “É proibido proibir”, “Seja realista: peça o impossível”, “Sob os paralelepípedos a praia”: slogans que evidenciavam a identificação entre as emancipações política e estética. Após “1968” um novo tom, próximo à festa, colorirá as manifestações políticas. Não por acaso, manifestações “artísticas” acompanharam e moldaram Maio de 1968. A acomodação da classe operária, acompanhada pela crescente inquietação entre as “minorias”, concedeu um novo caráter às rebeliões, que passaram a reivindicar outros direitos políticos e a livre expressão de comportamentos alternativos. Nos EUA, a neo-vanguarda se expressara inicialmente por meio da ironia Pop ou pelo radical distanciamento minimalista. Mas, a partir de certo momento, a proliferação de formas de arte coletiva acompanhou a es-calada das revoltas contra a guerra e pelos direitos civis. Investiu-se contra as instituições, não poupando sequer aquelas que formavam o circuito artístico, enquanto pipocavam produções que traziam implícitas a exigência de novas relações sociais. A forma estética inclusiva que tomaram estas manifestações

arte e cidades 2ed.indd 217 04/11/15 18:07

218

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

permitiu a expressão de um amplo arco de reivindicações, justapondo questões referentes à juventude, às minorias étnicas, às mulheres e aos homossexuais. Redesenharam-se as mobilizações políticas em verdadeiros happenings, enquan-to festivais de música transformavam-se em eventos políticos. Identificando a opção política e existencial, o corpo converteu-se em meio de expressão de atitudes de rebeldia. Os Bed-Ins de Ioko e Lennon exemplificam bem estas inovações, uma vez que combinam arte e política, neo-vanguarda (Ioko par-ticipara do Fluxus) e música pop, ativismo político e liberação de costumes, festa e espetáculo, estabelecendo uma simbiose inusitada entre performance, mass-mídia e rebeldia política. Ampliou-se o entendimento do que seria uma mídia eficaz para manifestações de protesto: percebeu-se que as ações valiam pe-las imagens mediáticas que geravam e que comportamentos inusitados podiam ultrapassar discursos verbais. Nos protestos convergiram diferentes demandas sobre arte, política ou costumes, convertendo inquietações estético-existenciais, antes restritas, em fenômeno de massa. Mas para isto foi essencial a cobertura dada pela mídia: a política passou a se travar sobre o campo do “cultural”. As contrastantes proposições dos grupos neo vanguardistas guardavam em comum a desconfiança em relação à “vivência” contemporânea, considera-da restritiva. Elas retomaram questões da vanguarda heróica negativa, mas diferenciando-se destas. Como definiu Bozal,

a experiência do cotidiano ocupa agora o lugar do qual até agora podiam dispor as grandes idéias, ou, dito de outra maneira, o cotidiano não é o ponto de partida para outras coisas, sua transcendência sublime ou o agrado interessante. A experiência do cotidiano, quer dizer, a relação do sujeito com o cotidiano, é a matéria prima do happening e da instalação, mas aqui matéria prima não quer dizer transformação em algo distinto, que o tornara irreconhecível [...] Não existe uma representação da transformação exemplar do sujeito [...] Como este não é espectador se pretende uma transformação efetiva. Experiência estética e experiência quotidiana confluem. (BOZAL, 1993, p. 40)

O sentido profundo destas manifestações era a ação sobre as potenciali-dades adormecidas da vida urbana contemporânea. Nelas o cotidiano converte--se na questão central, não como “tema” ou “matéria-prima”, não para ser representado, mas como o campo para a ação transformadora.

arte e cidades 2ed.indd 218 04/11/15 18:07

219

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

a produção arquitetônica e a cidade

Naqueles anos, as neo-vanguardas arquitetônicas também realizaram experimentos que cumpriam o programa de apagar fronteiras. O Grupo Superstudio, na Itália, realizou propostas francamente utópicas. Entre elas, con-ceberam um espaço ideal para toda a humanidade, onde a totalidade do mundo seria transformada em uma grelha cartesiana, abstrata, contínua e rente ao solo, e que proveria a todos de todos os serviços necessários. Este espaço absoluto seria habitado apenas pelo corpo nu dos habitantes e objetos mínimos. Nele,

você pode estar onde você quiser, trazendo consigo sua tribo ou família. Não existe a necessidade de abrigos, pois as condições climáticas e os mecanismos de termo-regulação do corpo foram modificados para garantir total conforto. No máximo nós podemos brincar de construir abrigos ou o lar, ou a arquitetura. Tudo que você tem de fazer é parar e conectar uma tomada: o micro-clima desejado é imediatamente criado (temperatura, umidade etc.); você conecta na rede de informações, você acesa a comida e a água. Não vai existir mais necessidade de cidades ou castelos, nem de ruas ou praças. Cada ponto será igual a qualquer outro. Nós manteremos silêncio para ouvir nossos corpos. Nós nos observaremos vivendo. Nós jogaremos jogos maravilhosos de habilidade e amor. Falaremos muito conosco mesmo e com todo o mundo. A vida será a única arte ambiental. (ROWE; KOETTER, 1978, p. 42-47)

O interesse pelo aqui-agora não se restringiu em absoluto às artes plás-ticas. E nem o elogio à diversidade: testemunhamos, nestes anos, a “cidade” atrair a atenção crítica dentro e fora da cena cultural, convertendo-se em objeto de múltiplos e contraditórios desejos, que não raro bordejavam o elemento utópico. Emerge o interesse pela condição urbana, como lugar de atividades cotidianas. Por volta dos anos de 1950, surgiram discursos que a valorizavam como fenômeno constituído pela diversidade espacial, temporal, social e exis-tencial. Assim, apareceram textos, hoje clássicos, como o de Henri Lefebvre, A vida quotidiana no mundo moderno, onde soava uma nota, distinta, que privile-giava a qualidade da interação promovida entre pessoas e grupos sociais na vida urbana – deslocando o foco da atenção da produção material. Não tardaram a emergir propostas arquitetônicas em resposta a estas demandas.

arte e cidades 2ed.indd 219 04/11/15 18:07

220

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Figura 3 - Superstudio. Figuras na Paisagem. Montagem Fotográfica, 1970.

Foi o arco de propostas aglutinadas em volta da ideia de contexto que se revelou mais fértil. Estas podem ser caracterizadas por sua atitude de extremo cuidado com o entorno existente, visando sua apropriação pela população, respeitando suas peculiaridades e mesmo sua alteridade cultural. Entre os arquitetos, começou-se a falar em Contextualismo ao materializar-se uma profunda reestruturação do espaço, não apenas urbano, após a segunda guerra mundial. Esta mudança engendrou um sentimento de perda, fazendo nascer o desejo de resgate dos tipos de vida reprimidos ou destruídos pela Modernidade. Constatou-se que a atuação do Movimento Moderno (e especialmente de sua diluição comercial) constituía um fator adicional de entropia. Como reação, valorizaram inúmeras (e, muitas vezes, conflitantes) qualidades deixadas de lado pelo projeto moderno, configurando uma verdadeira inflexão nos objetivos e metodologias deste. Ponto decisivo nesta crítica foi a perda de prestígio da

arte e cidades 2ed.indd 220 04/11/15 18:07

221

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

proposta da cidade absolutamente moderna, erguida sobre uma tábula rasa, em favor da atuação sobre a cidade existente, de sua permanente atualização. O re per tório moderno foi questionado a partir do novo papel que a arquitetura deveria exercer. Para os defensores da nova postura, era claro que o funcio-nalismo descuidara da cidade enquanto “obra”, um fim em si, ao submetê-la aos ditames da produção material. Em reação a este caráter abstrato do plane-jamento, ampliou-se a concepção da cidade. A estrutura urbana passou a ser pensada como o contexto material e simbólico que possibilita a existência de complexas teias de relações sociais. Abandonada a convicção de que a ruptura radical com o existente era o método único e inevitável de ação, pensamento e prática arquitetônicos, voltaram-se para pesquisa da continuidade histórica e das possibilidades latentes do entorno. Emergiu uma consciência que preferia reciclar áreas degradadas e projetar a partir da cidade existente, adaptando-as a novos usos, necessidades e demandas. O interesse pelo “contexto” deu lugar à formulação da cidade como espaço construído pela história e ligado à memó-ria. Valorizou-se a importância simbólica do tecido construído, fruto do labor coletivo, pregando-se o respeito à sedimentação de tempos diferentes que a constituía como uma tática para reatar e rejuvenescer os vínculos com o lugar. Redescobriu-se o conceito de “lugar”, sítio prenhe de história e significados e presidido por um genius loci, contraposto ao “espaço”, entidade abstrata e genérica dos modernos. Assim, procedimentos que realçavam as qualidades do “lugar’ alicerçaram parte da produção arquitetônica renovadora, no mais das vezes, como resistência à modernização tecnocrática. O Contextualismo tinha uma consciência aguda das patologias da cidade moderna e expressava a vontade de “corrigir mediante a recomposição de um vínculo orgânico o que o deserto moderno desfizera”. Como Otília Arantes sintetizou, seu objetivo era “recriar algo como uma res cívica – reatar com formas de vida social desa-tivada, reanimar uma vida pública”. (ARANTES, 1995) Em certos casos este urbanismo assumiu abertamente o caráter de “revanche contra o projeto urbano moderno”. Nesta época, preteriu-se o planejamento urbano em favor da “ar-quitetura da cidade”. Definiu-se um urbanismo alternativo que se configurou como “tático” (contraposto ao pensamento totalizador moderno), cujo método definia áreas propícias para uma série de “intervenções pontuais” que como “metástases benignas” (Bohigas) irradiariam uma influência sadia sobre o tecido urbano adjacente. Como a cidade era concebida em associação às vivências da “comunidade” local, o repertório arquitetônico, portanto, passou a refletir e

arte e cidades 2ed.indd 221 04/11/15 18:07

222

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

reforçar os valores da comunidade acumulados ao longo do tempo. A revita-lização de áreas degradadas converteu-se no foco do esforço, especialmente a cidade histórica. Na Itália, esta polêmica desenrolou-se vigorosamente em resposta à ameaça à ordem urbana e ao rico patrimônio ocasionada pelo rápido desenvolvimento econômico do pós-guerra.

Neste debate, as teorias de Aldo Rossi alcançaram grande ressonância. Elas objetivavam a manutenção da integridade do “lugar”, visando obstaculizar sua dissolução pela entropia da modernidade. Rossi enxergava a cidade como a condensação de vários tempos em um só espaço, fato que garantiria sua continuidade. A tarefa do arquiteto seria, portanto, descobrir e “incentivar” os fios condutores desta continuidade, não apenas a harmonia visual do conjunto arquitetônico ou do entorno, mas principalmente a coesão do fenômeno urbano para além de seu aspecto puramente “funcional”, questionando a caracterização feita pelos modernos do contexto e da natureza da articulação entre estrutura e vida urbana. Analisando a evolução das cidades, Rossi depurou a “estrutura” que permitiria a permanência do genius loci através da transitoriedade histórica. Esta seria constituída tanto pelos “elementos primários” fixos, tais como os monumentos ou o traçado da malha urbana, como pelos “secundários”, sujeitos a maior mudança, a parcela da habitação e dos serviços. A articulação entre os elementos de maior ou menor duração possibilitaria a continuidade e mudança no interior de uma “estrutura” urbana. Coerente com este raciocínio, também depurou elementos arquitetônicos constantes, que materializavam a continui-dade da disciplina ao longo da história, discriminando aqueles que permitiriam ao arquiteto estabelecer diálogo com os usuários. No lugar da relação entre forma e função propunha um repertório de “tipos”, constantes universais da forma arquitetônica. No “Teatro do Mundo”, projeto de um teatro flutuante para um festival, Rossi materializou uma “ideia” de Veneza, condensando em uma única edificação a herança bizantino-barroca das cúpulas e templos centrais com a arquitetura flutuante das gôndolas e as festas venezianas – uma estrutura mutável como a luz dos canais. Rossi tinha o projeto do “Teatro” como realização da “Arquitetura Analógica”, conceito a que chegou observando um quadro de Canaletto onde diversas edificações de Palladio em Veneza estão “condensadas” em uma única imagem. (ROSSI, 1984)

Porém, no leque aberto pelas críticas à uniformização fordista da socie-dade, nem todas as propostas arquitetônicas voltaram-se para o resgate da me-mória. No pensamento arquitetônico emergiram enfoques que centraram seus

arte e cidades 2ed.indd 222 04/11/15 18:07

223

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

esforços no processo de produção e de apropriação, semelhantes, neste ponto, à produção artística envolvida com o processo e a recepção abertos. Pregando uma abordagem “antropológica”, os arquitetos estruturalistas Hertzberger e Aldo van Eick destacaram-se por seu interesse pelas lições de arquiteturas não-ocidentais. Criticando a ênfase na ruptura pregada pelo projeto moderno, buscaram em outras culturas elementos que consideravam constantes no ato de habitar. Ao renovar a concepção moderna de programa, Hertzberger radi-calizou a crítica ao funcionalismo, propondo a apropriação ativa dos usuários. Seguindo o conceito que chama de “claridade labiríntica”, construiu espaços interiores intrincados e narrativos, com mudanças bruscas de qualidade, com áreas mais ou menos expostas e de escala variável. Tal ordenação é reforçada pela presença de um equipamento flexível que convida a “improvisações” de ambientes por parte de seus ocupantes. Estes espaços devem ser encarados como uma espécie de “pauta” a ser interpretada a cada nova ocupação pelos usuários; como em um happening, o edifício só se completa quando efetivamente ocupado e permanece em constante mutação.

Outras propostas privilegiaram aspectos excluídos na arquitetura moder-na. Um tipo de projeto, feito para e pela “comunidade”, passou a ser incenti-vado na crença de que esta parceria possibilitaria resultados mais próximos às necessidades e pontos de vista do usuário. No conjunto de Byker Wall, New-castle, o arquiteto Ralph Erskine e sua equipe se instalaram durante meses no precário conjunto habitacional existente para entender melhor os anseios de seus habitantes, envolvendo-os ao pedir sua colaboração. O re sultado destoa do urbanismo do CIAM: as habitações verticais formam um imenso “muro” multicolorido que abraça a área das habitações térreas contra o vento, criando uma forte identidade visual para o conjunto, sem descuidar de individualizar cada habitação por meio de variações “vernaculares” em cada varanda ou no muro e na tipologia. A presença de hortas entre as casas térreas existentes no conjunto ou a de pequenos jardins nos corredores suspensos do “muro”, assim como de equipamentos em madeira foram estratégias para criar vínculos entre o projeto e seus habitantes.

O traço de processualidade, que em muitas manifestações neo-van-guardistas visava requalificar o público em participante ativo e assim conceder outro sentido à obra, deu lugar à redefinição das áreas de competência da Arte e da Arquitetura. Uma corrente arquitetônica ultrapassou a simples consulta aos usuários, incentivando a iniciativa e participação ativa de camadas antes

arte e cidades 2ed.indd 223 04/11/15 18:07

224

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

excluídas dos programas oficiais de habitação. Voltada para o problema da ha-bitação no terceiro mundo, iniciada pelo inglês Turner, criticou a estratégia e o alcance dos programas oficiais, enxergando como alternativa a organização autônoma de empreendimentos por parte da população “marginal”.

Discernimos aqui um impulso de crítica e expansão da área de compe-tência da arquitetura análogo àquele presente na trajetória de alguns artistas: neste ponto, a de Lygia Clark é exemplar, paulatinamente, transformando seu fazer para culminar na “superação” da arte. Uma primeira ruptura importante aconteceu quando articulou suas esculturas com dobradiças, tornando-as ma-nipuláveis. Um “Bicho” apenas deixa-se revelar por inteiro por meio de sua manipulação. Clark incorporou à recepção da obra o privilégio antes encerrado no ateliê da exploração plástica. Este “não-objeto” induz o público à pesquisa, uma vez que a informação que ali se encontra só pode ser acionada por meio da interação. Em outra obra sua, em parceria com Hélio Oiticica (Diálogo, 1966), uma faixa de tecido une, atando seus pulsos, dois indivíduos. Neste caso, em que o suporte material comparece apenas como meio mínimo para possibilitar o contato, físico e intersubjetivo entre duas pessoas, a arte metamorfoseou-se em prática educativa dos sentidos, “regredindo” àqueles antes considerados como primitivos como o tato. O ideal moderno da educação integral do in-divíduo redesenhou-se nestes rituais que passaram a incluir a descoberta do próprio corpo. Ao final de sua carreira, Clark expandiu, ou ultrapassou, os limites aceitos da arte, aproximando-a da terapia, convertendo-a em método para a integração da personalidade e para a descoberta de vínculos interpessoais.

horizontes e limites da neo-vanguarda

Comparando produções da arte e da arquitetura, percebemos que na he-terogeneidade das propostas esconde-se certa unidade de intenções. Os traços em comum evidenciam-se se; ao invés de estabelecermos analogias formais, procurarmos entender seus objetivos. Neste sentido, analisando as obras a partir de confluências entre as táticas empregadas, o que em uma primeira aproximação pode parecer desorientação, excesso utópico ou desmedido experimentalismo, toma sentido como adequação a mudanças. Assim, a aparente disparidade se torna convergência, delineando uma arte e uma arquitetura de intervenção, modificadora, antes de tudo, do “comportamento” do público e decidida a recuperar, ou melhor, reinventar, o caráter de “obra” da produção material.

arte e cidades 2ed.indd 224 04/11/15 18:07

225

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

A arquitetura vinculada ao “lugar” e as experiências da performance, aparen-temente díspares, compartilhavam o desejo de promover a participação do público, sua transformação de “dentro para fora”, envolvendo-o, consultan do-o ou pedindo sua colaboração, mas sempre evitando impor comportamentos. Mesmo quando desafiava o público, a obra que se apresentava difícil procurava ser didática; tentava por meio do estranhamento sacudi-lo de sua passividade: queria torná-lo consciente e autônomo, responsável por seus atos.

Perante o objetivo maior de abrir a obra de arte, o projeto e a cidade à apropriação, convertendo em participante ativo e criativo o passivo obser-vador ou usuário da “sociedade do espetáculo”, arquitetos e artistas não se intimidaram em enfatizar aspectos antes secundários ou exteriores à área de competência da disciplina. Se olharmos sob o prisma dos objetivos, a produção neo-vanguardista apresenta-se como uma inflexão do movimento moderno e do modernismo: apesar de suas diferenças, ela manteve-se fiel aos objetivos universalizantes destes. Mas constataremos uma mudança mais profunda se a olharmos a partir das táticas empregadas que se caracterizam pelo abandono do “ponto de vista abstrato e totalizador” moderno e a consequente reorien-tação das práticas “rumo ao concreto”. (ARANTES, 2000) A rebelião contra o caráter abstrato do planejamento assumiu a forma da defesa do “lugar” e nas artes materializou-se na polêmica contra a narrativa teleológica da arte moderna então vigente. Em ambos os casos, a rebelião orientou-se pela firme inserção em algum contexto imediato: o “lugar” ou o “cotidiano”, expressões deste mergulho no “aqui-agora”. A desconfiança no planejamento traduziu--se nas intervenções pontuais e a descrença na historiografia ortodoxa da arte moderna deu origem a uma produção que privilegiava elementos que o alto modernismo excluíra ou abandonara no meio do caminho.

O vínculo entre as artes e a arquitetura sedimentou-se na resposta a as-pectos sentidos como restrição e imposição do fordismo e do Estado de Bem Estar Social, e materializados no planejamento do movimento moderno ou ainda simbolizados por um modernismo crescentemente aceito e ortodoxo. Acredita-mos, portanto, poder atribuir um sentido comum às diferentes tendências, se as entendemos como parte de uma “rebelião antifordista”. Arantes utiliza este termo para caracterizar um amplo movimento, estético e social, no qual discrimina duas faces complementares: por um lado, um aumento “de exigências apresentadas a um estado social que a desaceleração do crescimento econômico começaram a desacreditar”. Por outro, ressalta o inaudito desafio ao “velho ethos produtivista

arte e cidades 2ed.indd 225 04/11/15 18:07

226

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

do capitalismo”, ou seja, às “virtudes burguesas clássicas da produtividade e da performance individual máxima”, que foram desprezadas em favor de uma nova agenda de “valores pós-aquisitivos”, tais como “realização pessoal, soli-dariedade”. (ARANTES, 2000, p. 42) Na verdade, uma “rebelião antifordista” só ganharia sentido em uma sociedade permeada pela atuação de engenharias sociais. Sintetizando, podemos dizer que se tratava de uma rebelião contra o cotidiano programado, hostil ao “espaço” funcionalizado e à vida degradada em mero comportamento. Nesta época, amadurece a crítica à produção estética que “abstrai”, excluindo o cotidiano, a ação e a experiência (uma arte autônoma, mas predefinida pela ortodoxia modernista, ou uma arquitetura obediente ao plano), em favor de uma “obra” porosa às solicitações do cotidiano, solidamente implantada em seu entorno imediato (caso do happening contra a temporalida-de abstrata do planejamento, ou do contextualismo contra o espaço abstrato). Concebida como “obra”, a cidade deveria superar a condição de instrumento da reprodução material e converter-se no palco de atividades criativas, em suma, em “festa urbana” (Lefebvre). A “obra” urbana deveria ser “aberta”, no sentido de sua leitura e produção. Espaço urbano e tempo cotidiano seriam emancipados pela interação entre a polissemia de vozes, ouvidas em sua construção e parti-cipantes em sua experiência. A criação da cidade e a experiência da vida seriam confiscadas da mão dos “especialistas” e, abrindo-se ao diálogo, recuperariam a dimensão pública.

Uma profunda ambiguidade (“seja realista, peça o impossível”) colore pensamento e ação da época, promovendo formas misturadas de elementos de utopias futuristas e regressivas, hibridizando os mais antitéticos desejos e propostas. Para fundamentar suas críticas, arte e arquitetura voltaram-se tanto a aspectos do passado quanto às promessas abandonadas pelo modernismo. A defesa da “forma-lugar” como a de uma arte intimamente ligada ao coti-diano objetivava a recuperação (ou a reinvenção) de qualidades do passado pré-industrial expulsas pela racionalização modernizadora, evidentes neste momento de transição acelerada. A redescoberta do valor de uso da cidade serviu para fundamentar as críticas contra o “núcleo duro produtivista do sistema da cidade como valor de troca”. (ARANTES, 2000, p. 44) Ou ain-da, para que na arte ressurgissem brotes de irracionalismo, reprimidos pelo alto modernismo. O chamado de Lebel pela “recriação” de rituais urbanos lembra a fascinação de Aldo Rossi, em seus textos e projetos, pelo “monu-mento”. Cada qual à sua maneira, ambos rejeitavam a sociedade existente

arte e cidades 2ed.indd 226 04/11/15 18:07

227

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

com propostas que ostentavam os traços de utopias regressivas, orientando suas reivindicações pela lembrança das perdas históricas.

Apesar de ser capaz de materializar estas reivindicações em formas reno-vadoras, a neo-vanguarda (e não só ela) foi incapaz de lidar com a complexidade das mudanças. Mas, por mais contraditórias, suas propostas sempre objetivaram ampliar o elemento de universalidade pressuposto no modernismo. Como os artistas, a neo-vanguarda arquitetônica pedia a expansão do cânon, o aumento das possibilidades de atuação e a redefinição dos limites das disciplinas. Artistas e arquitetos clamavam por maior abertura, pelo fortalecimento de concep-ções que favorecessem um novo tipo de participação, abertas ao mundo e às sociabilidades em transformação. Ou seja, tratava-se de crítica que apontava as limitações existentes no Estado de Bem-Estar e que queria problematizar a Doxa moderna visando torná-la mais abrangente, realmente universal.

“Design que se tornou perfeito e racional sintetiza diferentes realida-des por sincretismo. Assim, projetar coincide mais e mais com a existência: não mais a existência sob a proteção de objetos de design, mas a existência como design”. (ROWER; KOETTER, 1978, p. 42) Embora surpreenden-te, a formulação de Superstudio encaixa-se perfeitamente em sua época. O horizonte máximo da experiência neo-vanguadista, identificação entre arte e vida, define-se aqui como vontade de projetar a vida como um design. Mas, ao aprofundarmos nossa indagação, constataremos uma situação bastante ambígua: mesmo a reação antifordista mais virulenta estava, inevitavelmente, impregnada da lógica da sociedade administrada. Procuremos enxergar com os olhos de hoje os experimentos de ontem: Kaprow definiu a “expansão” como o princípio formal do happenning, cuja “composição [...] procede exatamente como na assemblage e nos ambientes, ou seja, se desenvolve como uma collage de acontecimentos com certas durações temporais e em certos espaços”. (MAR-CHAN, 1974, p. 238) Neste movimento de expansão que dissolve os limites dos gêneros artísticos, a forma happening (e a da performance) atinge um outro patamar, uma vez que a articulação de seus elementos (tomados de qualquer gênero de obra ou produção cultural existente) torna-se absolutamente livre, imprevisível, no sentido de não obedecer nenhuma regra de articulação prove-niente dos gêneros artísticos consagrados (fenômeno que Fluxus denominara de “intermídia”). Pelo contrário, a forma performance retira sua força expressiva da tensão entre a preservação da identidade de cada elemento que a compõe e a justaposição, aparentemente frouxa ou arbitrária, que promove entre

arte e cidades 2ed.indd 227 04/11/15 18:07

228

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

eles. A dissolução radical da autonomia estética promovida pela performance possui traços peculiares, pois, ao “descentrar” os materiais com que trabalha, a performance enfatiza a “independência e simultaneidade” dos seus múltiplos elementos e “rechaça a forma que significa imobilidade, e opta em troca, pela descontinuidade e o desequilíbrio”. (CONNOR,1996) Uma das características inovadoras da performance foi sua imersão no contexto imediato, interagindo com a contingência e particularidade. Permeável às sugestões do cotidiano e do entorno, a performance só constrói seu sentido a partir desta relação. Ou seja, era essencial para a “dissolução” da performance no entorno imediato e no coti-diano a incorporação do tempo e do espaço “reais” como matéria expressiva. Proclamando um apagamento total dos limites de seu campo perceptivo, os defensores da performance argumentam que ela, constituindo um evento “em tempo real” que comparte o mesmo espaço do público, apenas “apresenta-se” e não mais “representa”.

A extrema incorporação do elemento “extra-artístico” ao estético, realiza-da pela performance, implicou na dispersão da identidade da obra, levando à sua hibridização com outras áreas da cultura e com o cotidiano. Como resultado, a performance exibe como notas distintivas a intertextualidade e a interatividade. Estas características foram reforçadas pela quebra, promovida intencionalmen-te, das fronteiras existentes entre obra e o público, que teve que abandonar de vez a posição de observador para entregar-se ao envolvimento com a obra. Em outras palavras, a obra de arte, convertendo-se em performance e, portanto, “teatralizando-se”, visa englobar a ação do antigo espectador em sua produção, como parte ou participante em uma “festa” (em oposição à contemplação ou ao “espetáculo”), demandando-lhe uma atitude de “interatividade”. A performance visa a instauração da percepção da obra como “presença absoluta”. Indo além do conceito de obra como “representação”, exacerbando a autorreferencialidade da obra modernista até o paroxismo e mesclando-a com o ideal de experiência autêntica e imediata, sua atuação objetivava instaurar um “presente absoluto”, ao acontecer em um espaço/tempo idêntico ao “real”. Sendo “apresentação”, ela deseja a instauração de uma representação que negue a si mesma. Para entender os limites da proposta emancipatória da performance, que “funciona dentro e fora das estruturas de representação”, é esclarecedora a analogia com o teatro. Suas formas, por mais que assumam o caráter de total improvisação, absolutamente desprovida de texto e no umbral entre a vida e a arte, não es-capam da condição de “representação”. Embora fosse mais do que simpático

arte e cidades 2ed.indd 228 04/11/15 18:07

229

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

à ideia da “presença pura”, Derrida conclui seu texto sobre as propostas de Artaud indicando a impossibilidade de uma “apresentação” absoluta, alheia à representação. “Pois pelo mero fato de ser teatro sempre incluirá algo de representação e repetição”. (CONNOR,1996)

Figura 4 - Aldo Rossi. Teatro Del Mondo. Veneza. 1979

A tendência de redirecionamento radical, rumo ao real, impregnou as performances de características contraditórias. Nelas realiza-se o paradoxo do “espontâneo esteticizado”, pois, diferentemente do ritual ou da festa tradicio-nais nos quais os participantes compartiam um repertório comum, o happening/performance visava a superação dos “comportamentos”, ou seja, previa a partici-pação criativa do público pautada pela “tradição do novo”. Esta ambiguidade central da performance trará implicações na cena cultural contemporânea, na qual vínculos “sociais” dissolvem-se paulatinamente em “culturais”. Assim, as performances encenam uma sucessão de oximoros ao criar representações de espontaneidade, o paradoxo do acaso programado. Em suma, fugindo do comportamento e da vida programada caem na estetização da experiência, na “ritualização do espontâneo”, originando uma “vivência” peculiar, não tayloriza-

arte e cidades 2ed.indd 229 04/11/15 18:07

230

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

da e nem estandardizada, mas igualmente “desenhada”. Ou, em outras palavras, “o modo teatral é o que realmente domina a cultura de hoje”. (CONNOR,1996) Contradições semelhantes ameaçaram o contextualismo arquitetônico, que caiu, no pior dos casos, na armadilha de encenar uma “representação” de vida urbana. Segundo Jean Pierre Jeudi, a cidade, revitalizada segundo ideias de-gradadas vindas do contextualismo, converteu-se em um “museu ao ar livre”, pano de fundo para a teatralização da vida cotidiana.

A “mudança de sinal” que sofreu a pesquisa neo-vanguardista, ao ser incorporada ao mainstream, fundamenta um dos pontos centrais da análise de Fredric Jameson (1997), a expansão da lógica da mercadoria para as últimas áreas ainda por ela intocadas, que ocorre a partir dos anos de 1960. Descrita como a “colonização das áreas não produtivas”, ela incorporou o terceiro mundo, o inconsciente ou ainda aquilo que Lefebvre chamava de “cotidiano”. Tal ponto de vista é reforçado e complementado pela análise de T. J. Clark (1990) sobre modernismo (o “sonho mau”), segundo a qual o papel que este desempenha é o de colonizador de áreas culturais ainda não mapeadas, como uma espécie de vanguarda da “consciência burguesa”. É ilustrativo neste ponto, rever a utopia de Superstudio de “uma vida como design”.

A sensibilidade neo-vanguardista foi, em grande medida, formada no consumo, então em expansão inaudita. O “Teatro del Mondo” reunia a po-pulação em um “evento”, de maneira semelhante a um happening de Vostell, compartindo o mesmo desejo de converter a cidade e a arte em territórios de atividades criativas abertas à participação, manifestações que deixavam ale-gremente de lado a contemplação ou a funcionalidade do alto modernismo. Mas este projeto para Veneza é realmente avesso ao olhar do turista?

referências

ANDRADE, C. R. M. Introdução aos situacionistas. Óculum, Campinas, n. 4, p. 16-19,1993.

ARANTES, O. G. R. O lugar da arquitetura depois dos modernos. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 1995.

ARANTES, O. Uma estratégia fatal. In: ARANTES, O. G. R, VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: Desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

arte e cidades 2ed.indd 230 04/11/15 18:07

231

fáb

io l

op

es

de

so

uza

sa

nto

s

ö

BOZAL, V. Modernos y postmodernos. Madrid: Historia 16, 1993. (Historia del arte)

CLARK, T. J. Jackson Pollock´s Abstractions. In: GUILBAULT, S. (Org.). Reconstructing modernism: Art in New York, Paris and Montreal: 1945-1964. Londres: The MIT Press, 1990, p 178.

CONNOR, S. Cultura postmoderna: introducción a las teorías de la contemporaneidad. Madrid: Akal, 1996.

FRAMPTON, K. Historia crítica de la arquitectura moderna. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 1993.

FERRARA, L. A. O olhar periférico. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1998.

HUYSSEN, A. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.

MARCHAN, S. Del arte objetual al arte de concepto. 1960-197: epílogo sobre la sensibilidad “postmoderna”. Madrid: Akal, 1997.

RICHTER, J. Dada: art and anti-art. Nova York: Harry N. Abrans, 1964.

ROSSI, A. La arquitectura de la ciudad. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 1966.

ROSSI, A. Autobiografia científica. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 1984.

ROWE, C.; KOETTER, F. Collage-citty. Londres: The MIT Press, 1978.

arte e cidades 2ed.indd 231 04/11/15 18:07

232

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

arte e cidades 2ed.indd 232 04/11/15 18:07

233 ö

robert Moses PeChMan

eros furioso na urbe. Civilização e cidade na pintura de hopper

Da cidade de Zenóbia, conta-nos Ítalo Calvino de As cidades invisíveis, é inútil classificá-la entre as cidades felizes ou infelizes. Não faz sentido, conta seu Marco Pólo, dividir a cidade nessas duas categorias, mas em outras duas: “aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados”. (CALVINO, 1994, p. 36-37)

Cidades há ou houve em que o desejo imperou e em sua potência incen-diou a sociabilidade, fazendo brilhar e dando forma à vida mundana e pública. Esta foi a Paris da Belle Époque. Em outras como a Berlim nazista, a cidade ou aquela sua característica que melhor a define como tal – a hospitalidade, ou seja, a ética/estética de acolhimento do outro – foi cancelada e por onde um dia fluiu o mar dos desejos que incendiou a imaginação social, passou a escorrer um filete de esgoto que abasteceu o medo e irrigou o terror. Ali a fantasia de feliz-cidade eclipsou-se diante das sombras projetadas pelos campos de con-centração. Diante da fachada triunfal de uma cidade projetada para durar 1000 anos, imortalizando a ideia de ordem, poder, obediência, submissão, a cidade cancelou o desejo e transformou-se numa espécie de laboratório da morte.1 Cidades/topografias do terror. Desejos/interdições. Eros/Tânatos.

Mas, de quais desejos estamos falando? De que se trata quando falamos do desejo na cidade?

arte e cidades 2ed.indd 233 04/11/15 18:07

234

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Segundo o psicanalista Contardo Calligaris (1994, p. 96), trata-se de um aspecto básico do espírito da cidade: “a maneira como ela organizou seus cidadãos para responder ao desafio de uma convivência não regrada pelas simples necessidades vitais”. O desafio da convivência tem duas pontas, uma conecta os citadinos com a socialidade e tudo o que dela flui: o amor-mundi. A outra ponta se liga a uma espécie de terminal de aniquilamento de sonhos, onde ainda que se sonhe, só se sonha com o real mais imediato.

É nesse sentido, quando a cidade transcende a sobrevivência, fundada na reprodução da espécie, que o homem para de perguntar, onde está o ob-jeto? (da sobrevivência imediata) e começa a perguntar pelo desejo do outro: como será que o outro me deseja? (CALLIGARIS, 1994) Diferentemente do desejo animal, que para Calligaris visa um objeto que ele anula e consome se satisfazendo, o desejo humano é constituidor do social, pois ele é a aventura da conquista do outro, fundamentalmente, do seu reconhecimento. O preço pago pela humanidade, segundo Calligaris, no processo de sua humanização, revela o tamanho da perda: “o símbolo e o imaginário barram um real, per-dido por definição, o real de uma relação com o outro passível de uma feliz adequação”. (CALLIGARIS, 1994, p. 88, grifo meu) Assim a satisfação animal imediata é barrada, dando lugar a elaboração de um imaginário sobre esse real, que se desdobra em símbolos, fantasias e imagens, onde o desejo voltaria a operar e a desejar.

E qual teria sido o preço pago pela cidade... para ser cidade? Por abrir mão de que a natureza sirva-se da espécie, para num segundo momento a so-ciedade humana servir-se da natureza? (PAZ, 1999) O preço pago pela cidade, sugere Octavio Paz, é aquele que se impõe na diferenciação entre sexualidade e erotismo: a sociedade submete o instinto sexual (sexualidade) a uma regu-lamentação (erotismo), confiscando e utilizando sua energia. O erotismo é, pois, “sexualidade socializada, submetida às necessidades do grupo, força vital expropriada pela sociedade”. (PAZ, 1999, p. 24) Nesse sentido, o erotismo é tanto mais complexo quanto é complexa a socialidade na cidade. Daí sua dupla face: freio e espora da sexualidade. Sua finalidade é irrigar o corpo social sem expô-lo aos riscos destruidores da inundação. (PAZ, 1999) Para Paz, “o ero-tismo evita que o grupo caia na natureza indiferenciada, opõe-se à fascinação pelo caos e, por fim, à volta da sexualidade rude”. (PAZ, 1999, p. 25) Por outro lado, no entanto, o erotismo permite que se vá além de você e além de mim,

arte e cidades 2ed.indd 234 04/11/15 18:07

235

ro

be

rto

mo

se

s p

ec

hm

an

ö

“o que me tira de mim mesmo e me leva a você: o que me faz ir mais além de você”. (PAZ, 1999, p. 35) O erotismo, portanto, além de ser fato social, é criação, invenção: “nada mais real que este corpo que imagino; nada menos real que esse corpo que toco e se desmorona em um monte de sal ou se desvanece em fumaça. Com essa fumaça meu desejo inventará outro corpo”. (PAZ, 1999, p. 34, grifo nosso) Nesse sentido, o erotismo é promessa incessante de renovação do desejo. Para o erotismo, o corpo alheio é um obstáculo ou uma ponte. Enquanto obstáculo, o corpo alheio funda cidadelas, enquanto ponte, ele funda cidades.

Qual teria sido o preço pago pela cidade para ser cidade, nos indagávamos há pouco? Esse preço, portanto, é a passagem da cidade fortificada e fechada, na forma de cidadela, para a cidade aberta; de uma sociabilidade que esbarra em muros e só reconhece o mesmo, para uma sociabilidade aberta que acolhe o outro. É o preço da entrada no social, na sociabilidade, de reconhecimento da diferenciação entre sexualidade e erotismo, é o preço do reconhecimento da ruptura entre Natureza e Civilização, é o preço, enfim, da cultura. É o preço do papel da cultura na estruturação da convivência, seja ampliando o desejo ou tentando cancelá-lo.

Observar a manifestação dessa cultura e suas representações no campo das artes, pode ser revelador dos sintomas de diferentes sociedades em rela-ção aos “problemas do desejo”. A maneira como o desejo é tomado na cidade indica, pois, o espírito dessa mesma cidade, seja pondo em jogo a desordem das paixões – ao se abrir aos encontros, ao inesperado, ao desconhecido – seja impedindo a imoderação de se expressar coletivamente, ou melhor, estabele-cendo limites às possibilidades da convivência.

Edward Hopper, pintor realista que pintou o american way of life entre os anos 20 e 60, pintou o desejo e por tabela o erotismo e a socialidade nas cidades americanas, tanto na sua expansão, quanto na sua contenção.

Em Hopper há uma erótica furiosa tanto no sentido constituidor do so-cial e consequentemente da cidade, estruturada na paixão e na possibilidade do encontro com o outro e marcada pelo voyerismo; quanto na destituição desse mesmo social, dessa mesma cidade fundada no individualismo, na solidão e marcada por um determinante isolamento e falta de trocas.

Dependendo do ponto de vista, temos o Hopper da paixão ou um ou-tro da contenção. Como isso é possível? Em verdade, Hopper parece estar

arte e cidades 2ed.indd 235 04/11/15 18:07

236

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

sempre propondo dois mundos, duas cidades, duas possibilidades, que se dividem entre a paralisia e o isolamento total e a ação e o encontro com o outro. A impressão que se tem é que há sempre uma espera no pintor, que poderá levar a um tédio incontornável ou a um acontecimento inesperado. A cidade acontece ou desacontece em Hopper. Esse duplo código do artista serve a que este possa apresentar aquilo que parece ser seu interesse mais pro-fundo: a condição humana na cidade.

Partindo do princípio que o homem foi “tirado” da Natureza pela ur-banização, Hopper pinta, basicamente, o seu processo de adaptação à cidade. Para o artista, no entanto, essa adaptação é problemática, pois ela importa a contenção e o enquadramento do desejo pelas estruturas da cidade. Ou seja, trata-se do constrangimento que a urbanidade impõe aos afetos e comporta-mentos urbanos.

Nesse sentido, toda a obra de Hopper encontra uma polaridade estrutural entre Natureza e Cultura, ou vista por outro ângulo, uma polaridade entre a expansão e a contenção do desejo.

Emblemático desse processo de polarização entre a natureza e a civilização, ou entre o natural e o urbano, é o quadro Gasolineira (Gas Station, 1940).

Aí uma bomba de gasolina parece um posto avançado da civilização e marca um espaço delimitado pela urbanização, que tem que se defender de uma natureza ameaçadora de tudo devorar. Entre a mata e o posto de gasolina, o homem, que parece espremido entre esses dois universos, indefinido ao qual aderir.

Já em 1912, Hopper começava a se indagar sobre a vida urbana. Aldeia Americana é sua primeira pintura, depois de Paris que retrata as cidades do Novo Mundo. Novo Mundo aí no sentido daquele mundo que se distanciava da velha civilização europeia e era a promessa de uma nova experiência sen-sorial e afetiva. Mas esse quadro é ainda um quadro de transição pois trata-se de uma aldeia e não da metrópole. Por isso mesmo ainda paira sobre o quadro o espírito da comunidade, que se revela no casario onde parece que a própria aldeia precisa fazer ainda muita força para se sobressair à natureza.

Numa água-forte de 1921, intitulada Sombras Noturnas (Night shadows, 1921), a situação é bem outra. Embora construída do mesmo ângulo (vista do alto) de Aldeia Americana, essa obra nos joga no coração da urbe. O efeito dramático desse quadro resulta do observador olhar de cima, da direita, para um homem a passear de noite na cidade, a partir de um ângulo de visão que

arte e cidades 2ed.indd 236 04/11/15 18:07

237

ro

be

rto

mo

se

s p

ec

hm

an

ö

se dirige, numa diagonal, para a sombra de uma árvore. A sombra da árvore é de dimensões enormes e rasga o quadro ao meio. Tal dinâmica dá origem a uma impressão de ameaça. Estamos em plena Nova Iorque, mas o que ameaça é a sombra de uma árvore, coisa que evoca a natureza e traz de volta o desco-nhecido, o irracional, a luta da Natureza com a Cidade. A questão da transição para o urbano continua no quadro Domingo de 1926. Aí o homem, expoente da ordem natural, é mostrado de uma maneira extremamente insignificante e pequeno na área da cidade. Esse homem, sentado à beira da rua, não olha para o que lá se passa, mas para dentro de si próprio. Ele já não é mais da natureza, mas não parecer ser ainda da cidade. A cidade parece morta e abandonada. Não sabemos se ela está em decadência ou se ainda vai florir. A cidade pode ser ainda uma possibilidade...

A pintura A cidade, de 1927, parece ser a resposta de Hopper para uma situação irreversível: a cidade é, a cidade não tem volta. Nesse quadro, Ho-pper anuncia como ele vê a cidade, e na cidade, a condição humana. Assim, de um lado, a cena pintada ainda aponta para a tensão Natureza/Cultura. No caso, há a prevalência absoluta da Cultura, representada pela massa de prédios que ocupam ¾ do quadro. O que sobra de tela é ocupada pela representação da Natureza, expressa pelo relvado da praça, completamente subjugada pelo volume dos prédios. De outro lado, em relação ainda a A cidade, Hopper re-vela, significativamente, ainda do mesmo ângulo que pintou Aldeia americana e Sombras noturnas, que percebe, a urbanização fez das cidades algo muito pouco hospitaleiro e nada caloroso, coisa que transparece nas janelas fechadas. Obcecado por janelas abertas, por onde o privado e o público poderiam se co-municar, Hopper indica no seu quadro o isolamento, a dispersão das pessoas numa cidade pouco convidativa.

Num quadro do ano seguinte, 1928, Janelas à noite (Night Windows) o pintor fecha seu ângulo de visão e ao invés de observar a cidade do alto e de longe, trabalha com uma espécie de zoom , penetrando com seu olhar, o quarto de uma mulher. Ousado, Hopper arrisca-se a abrir as janelas do apartamento e devassa com seu olhar tudo que lhe vai dentro. O que vemos então? O que escondiam as janelas cerradas? A mulher! Mas não uma mulher num momento banal qualquer de seu cotidiano. O que Hopper nos mostra é uma mulher na intimidade, pega de surpresa no ato de se vestir, levemente coberta por uma

arte e cidades 2ed.indd 237 04/11/15 18:07

238

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

combinação vermelha que revela mas que esconde seu corpo. Janela, mulher, corpo, camisola, vermelho. Hopper nos leva pela mão e nos apresenta o desejo.

É noite na cidade e um vento cálido agita suavemente uma diáfana cortina. Um convite para entrar? Um convite para olhar? Um convite à conjugalidade? Uma invitação ao desejo?

A cena é picantemente erótica. Abrindo as janelas da cidade, Hopper descobre o desejo e nos convida para com ele espiarmos o indiscreto, o proibido. O olhar, essa experiência vivida por Hopper no limite do voyeurismo. Sobre seu olhar a cidade, maliciosamente, abre suas portas e janelas, revelando sua erótica.

Inebriado com sua descoberta, Hopper avança em suas pesquisas sobre a condição humana na cidade, aguça seu olhar, assume seu voyeurismo, ousa nas fan-tasias. Desta vez, ele aponta seu pincel para um corpo de mulher, mais precisamente para um rosto feminino, exatamente para uma boca pintada de vermelho. Trata--se do quadro Chop Suey, de 1929. Duas mulheres, sentadas num restaurante chinês, parecem conversar. O quadro apresenta dois planos, se pudéssemos dividi-lo ao meio: o interior do restaurante onde as mulheres conversam e o luminoso que anuncia Chop Suey do lado de fora. O quadro apresenta, então, um dentro e um fora, lembrando a relação possível entre o espaço do restau-rante e a cidade. A mulher, em primeiro plano, com sua cara muito pintada, mais parece uma boneca. Mas esse rosto revela também sedução. O reclame do restaurante faz lembrar um bairro de diversões. O vermelho berrante do luminoso do lado de fora corresponde às bocas pintadas das mulheres, e as letras parcialmente tapadas da palavra Suey leva o observador a associa-las à palavra Sex. Nesse quadro, Hopper está a nos sugerir as promessas da noite na cidade que cintilam na boca carmim da moça e igualmente piscam no luminoso, acenando com Sex, Sex, Sex.

A tela Manhã numa grande cidade, de 1944, vai mais fundo ainda no abis-mo de Hopper. Aí o enquadramento da mulher, ao invés de petrificá-la como uma boneca (Chop Suey), desperta-a e põe-na à janela. Nua, diante da janela que abre a vista para um ambiente citadino, sonhadora, numa certa espera, ela parece querer escapar ao enquadramento provocado pelas paredes do quarto. A janela lhe oferece a cidade. Ela se oferece, nua, à janela, à cidade.

Hopper pintara um ano antes, em 1943, o quadro Verão, que em sua temática, está muito próximo de Manhã numa grande cidade. Como nesta tela, Verão nos põe em contato com o desejo na cidade. Há uma mulher cujo corpo é, pelo vestido leve que a veste, mais revelado do que escondido, que espera.

arte e cidades 2ed.indd 238 04/11/15 18:07

239

ro

be

rto

mo

se

s p

ec

hm

an

ö

De maneira provocadora ela espera, e nessa espera, diante da porta aberta da casa, parece haver um convite. Vamos entrar? O que haverá lá dentro? O que acontecerá lá dentro? Nos indagamos com Hopper.

Na tela de 1955, Manhã na Carolina do Sul, o dilema do desejo se repete, recolocando o tema do confronto entre Natureza e Civilização. Trata-se de uma casa construída sobre uma base de pedra que desponta numa área descampada, evocando um ambiente natural. A casa sobressai-se à natureza e uma mulher negra, vestida com um audacioso vestido vermelho que lhe realça a silhueta, impõe-se à arquitetura que lhe emoldura o corpo sensual. Num confronto entre a natureza e as formas arquitetônicas que exprimem a presença humana, a figura de uma mulher se impõe, desejante e desejosa, suscitando a dúvida: Hopper quer devolvê-la à natureza de onde veio e onde a cultura não tem como impor limites ou quer enquadrá-la no jogo do desejo, “um desejo urbanizado”?

A resposta a essa questão, ao confronto entre um desejo domesticado pela urbanidade e um desejo sem compromisso com a cultura está dado num quadro de 1962, Escritório em Nova Iorque (Office in New York ). Nessa tela, que retrata um aspecto banal do cotidiano da maior metrópole da Terra, o pintor abole qualquer resquício de natureza, a não ser a figura da mulher que impõe sua “natureza” à cidade. A tensão aqui é entre a estrutura arquitetônica e ur-banística que ocupa 2/3 do quadro e a figura de uma mulher que mais parece uma artista de cinema. Nesse sentido, a grande janela de vidro do escritório transforma-se em tela e, ao mesmo tempo, superfície de projeções dos desejos do observador. (RENNER, 1992)

Assim, para Hopper a cena urbana, as estruturas arquitetônicas, os pré-dios, as paredes, são mais que mineralidades, são mais que uma paisagem, são o enquadramento cultural, melhor ainda, civilizacional. Emoldurada por tão pesada e densa estrutura arquitetural, a secretária/artista/mulher, diferente-mente das mulheres de Verão e Manhã na Carolina do Sul, não está mais numa atitude de espera erótica. A mulher do escritório parece desejosa, mas não mais desejante, enquadrada que está pelas estruturas arquiteturais/civiliza do-ras do prédio. Compenetrada no seu trabalho, ela evoca uma certa distância. O desejo continua ali, mas no olhar longínquo do observador/voyeur. Há uma imensa vidraça pela qual divisamos a mulher, mas ela não é pervasiva como as janelas e portas abertas de outras pinturas, que eram como convites a espiar, a entrar, a realizar o desejo. A vidraça mais lembra um aquário, não evocando qualquer fantasia.

arte e cidades 2ed.indd 239 04/11/15 18:07

240

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Alguma coisa parece ter mudado no pintor, uma ruptura ou a compre-ensão de uma impossibilidade no que diz respeito à experiência do desejo na cidade.

Essa suspeita se confirma, de alguma maneira, numa obra de 1965, inti-tulada Chair Car. Trata-se da pintura de um vagão de trem que retrata alguns passageiros no seu interior. Esse quadro conta-nos duas histórias. No plano inferior, a descrição dos passageiros sentados em confortáveis poltronas, cada qual absorto em suas coisas, destaque para uma mulher lendo um livro. A sen-sação é de isolamento total entre as pessoas, ainda mais quando o quadro trans-mite uma sensação de tédio e de solidão. No plano superior da pintura, uma outra história. O teto do vagão do trem mais parece o teto de uma construção, simulando que ele está apoiado sobre vigas de concreto. A sensação de tal visão causa estranheza. Esta se desfaz se pensarmos que Hopper constrói aí uma cena da contenção e da impossibilidade de comunicação. O teto, como se fora uma estrutura arquitetônica, faz as vezes da presença da cidade para aqueles que estão em trânsito e portanto fora da urbe. O teto é uma lembrança da cidade e de seu constrangimento civilizacional. O isolamento, a impossibilidade de contato entre os passageiros, arremata as ideias do quadro deixando entender que mesmo longe das amarras (passageiros em viagem) não há qualquer possibilidade de contato entre as pessoas, que perdidas em pensamento nenhum, não se miram e muito menos se aproximam.

O quadro Pessoas ao Sol, de 1960, anunciava essa percepção de Hopper, não em relação à solidão, ao isolamento, à falta de contato, que é coisa que perpassa sua obra desde sempre, mas sua percepção de que Eros furioso na cidade tende a pender mais para o desencontro, o desacontecimento, que o seu contrário. Assim, Pessoas ao Sol mostra um grupo de pessoas, todas ele-gantemente vestidas, banhando-se ao sol, cada qual sentada em sua cadeira, tendo por panorama as montanhas e a pradaria. Vem do quadro uma estranheza quase surrealista. Diferentemente do óleo de Hopper de 1952, Sol da Manhã, onde uma mulher sentada na cama, olhando a cidade através de sua janela, nitidamente se oferece ao sol que banha o quarto e roça suas pernas e peitos como querendo fecundá-la quase que numa relação amorosa, diferentemente do quadro Meio dia, de 1949, onde uma mulher com o vestido aberto assoma o umbral da porta de sua casa banhado pelo astro-rei, como se oferecendo a ele, diferentemente desses quadros, em Pessoas ao Sol os personagens não ardem diante deste, apenas se deixam banhar por ele sem quaisquer concupiscência.

arte e cidades 2ed.indd 240 04/11/15 18:07

241

ro

be

rto

mo

se

s p

ec

hm

an

ö

Ninguém se olha e apesar da proximidade física, sentimos uma distância psi-cológica intransponível. Emoldurados pelas roupas formais, os corpos imóveis parecem existir apenas para se banhar em sua porção de sol, sem quaisquer veleidades de disponibilidade pessoal, social ou emocional. A delimitação do terraço aonde as pessoas têm suas cadeiras é nitidamente definida em relação à pradaria. Isso parece dar segurança às pessoas retratadas, na medida que in-dica que Natureza e Civilização são dois mundos completamente separados e que não há risco da primeira invadir a segunda. Ou seguindo nossa linha de argumentação, não há risco das Pessoas ao Sol se contaminarem das inconstân-cias e dos afetos desse mundo em estado bruto. Melhor ainda, não há risco do desejo eclodir.

Há uma outra luz nas pinturas de Hopper que não vem do sol, não erotiza, não fecunda, é a luz da lâmpada elétrica. Essa luz não aquece, apenas ilumina e dá a ver ao observado/voyeur algum segredo, alguma coisa erótica a salvá-lo da civilização. Assim temos os quadros Chop Suey, Autômato, Escritório em Nova Iorque, Janela à Noite e especialmente Noite de Verão, de 1947. Se com a luz elétrica reconhece a potência civilizadora do artifício, por outro lado, ele neutraliza esse potencial procurando retomar a experiência autêntica dos afetos ao mostrar, à luz de uma lâmpada elétrica, uma mulher se vestindo, mulheres na noite urbana, mulheres trabalhando e, principalmente, uma mulher à beira do amor, no ato de ser seduzida.

Artifício por um lado, experiência vital/erótica por outro. O quadro Noite de Verão, com dois jovens a conversar na varanda, ela de bustiê e sainha curta, o corpo à mostra, talvez seja a síntese dos dilemas do artista quanto à opção ou integração entre natureza e cultura, natural e artificial, campo e cidade, comportamento e experiência, janela e vidraça, fantasia e realidade, desejo e repressão, Eros e Tânatos. Assim, se a luz artificial é estéril, se a civilização enquadra e cerceia a natureza humana e se a cidade não é uma promessa de encontro, ainda assim Hopper deixa uma janela ou uma porta aberta para que Eros ali faça morada.

Mas esse Eros na cidade não é só pulsão, embora as raízes do erotismo sejam vitais, a sexualidade não esgota seu conteúdo. (PAZ, 1999) Nesse sentido, como já vimos, a sociedade submete o instinto sexual a uma regulamentação, confiscando e utilizando sua energia. É por esse viés que podemos entender o quadro mais emblemático de Hopper, na medida que ele sintetiza tudo o que o pintor pensou/pintou sobre o dilema de se viver em cidade e ter que

arte e cidades 2ed.indd 241 04/11/15 18:07

242

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

transformar a experiência do afeto, do amor, da sexualidade, do erotismo, em comportamento, razão, adequação, contenção, civilidade e urbanidade.

O quadro em questão é de 1942 e chama-se Nightwaks, que foi traduzido para Noctâmbulos, Notívagos, Apaixonados da Noite, Gaviões da Noite, cada título, sintomaticamente, evocando uma certa atmosfera. O próprio Hopper disse desse quadro ter pintado inconscientemente a solidão de uma grande cidade, sublinhando, por outro lado, a “causalidade do quadro que não representa nada, a não ser um restaurante na Greenwich Avenue onde se cruzam duas ruas”. (RENNER, 1992, p. 80)

Esse “lapso” do autor em relação a própria obra é bem significativo. Talvez seja ali onde ele menos racionaliza que o inconsciente encontra seus caminhos para se exprimir. Por isso mesmo esse quadro é pleno de pistas que podemos seguir como se fôssemos um Morelli2 à cata de pequenos indícios que o autorizem a atribuir a autoria de um quadro, pois é exatamente nestas pequenas pistas que se condensam toda a originalidade do autor. O que tem de especial, portanto, esse quadro? Ele nos conta, fundamentalmente, a his-tória da urbanidade, isto é, o processo de “submissão” do homem às grandes metrópoles modernas. Ele nos conta a história do banimento da Natureza do meio urbano, seja a Natureza em forma de meio ambiente, seja a experiência da paixão, submetida à “politesse”. Quanto à “natureza” humana, nada nos é dado a apreciar dela senão seu subproduto, a solidão. Quanto à Natureza “na-tural”, seu único resquício é a noite, ferozmente combatida pela luz elétrica. A noite com seus monstros e fantasmas ainda impõe algum penar natural à cidade. Mas em algum lugar há uma luz acesa que espanta os temores noturnos. A cidade dorme mas alguns seres noctívagos se esgueiram por bares desafiando a escuridão. Nesses lugares onde a noite está acordada, a cidade palpita. Não é mais uma cidade febril queimada pelo sol, mas uma urbe silenciosa onde afetos, devaneios e fantasias procuram recompensa. Desejos procuram desejos... para se sentirem desejados. Hopper nos dá a imagem desse desejo: uma mulher de vestido vermelho, o mesmo vermelho anunciado em quadros anteriores, o vermelhos das mulheres em combinação, o carmim das bocas embatonadas, o vermelho do vestido da negra sensual que se oferece à porta de casa em Manhã na Carolina do Sul. Vermelho paixão!

Sob a luz artificial do bar, na figura de uma mulher vestindo vermelho, há uma promessa de vida na cidade escura e vazia: uma mulher-paixão.

arte e cidades 2ed.indd 242 04/11/15 18:07

243

ro

be

rto

mo

se

s p

ec

hm

an

ö

No entanto, a cena de Hopper não revela nenhum movimento como se podia esperar da presença da mulher-vermelho. Ao contrário, a cena é estática, todos parecem petrificados. Mas há uma promessa de movimento no ar, uma promessa de ação, uma promessa de paixão. Sobre o balcão do bar, à direita e à esquerda da mulher pontuam ícones fálicos, sejam as duas máquinas de café, seja o açucareiro, ou talvez mesmo, os saleiros. Paixão na inércia. Alguma coisa pode acontecer...

Se a mulher-vermelho sustenta a paixão na noite silenciosa, Hopper nos lembra, entretanto, que quando a cidade escura desanoitecer, a aurora será saudada por outro ícone da cidade que pontua do outro lado da rua, na loja que se encontra na penumbra, em frente ao bar: a máquina registradora.

E aí, em vez do galo cantar anunciando o dia, lá estará a máquina com seu sonoro tlim-tlim a sugar todos os vermelhos, todas as paixões da cidade. Então, todo devaneio hopperiano, toda a explosão de cores com que o artista ilumina seus quadros, se concentrará numa só cor: o verde. O verde da máquina registradora, o verde das notinhas de dólar.

notas

1 O livro Topography of terror: Gestapo, SS and Reichssicherheitshauptamt on “Prinz-Albrecht-Terrain” - A Documentation, Arenhövel, Berlim, 2003, faz menção a um pequeno espaço da Berlim nazista onde houve uma excepcional concentração de poder e de terror. Ali funcionou, entre 1933 e 1945, as instituições mais temíveis do terror do 3º Reich, como a Gestapo, o Escritório da Polícia Secreta do Estado, a “SS”, o Serviço de Segurança e a Direção de Segurança do Reich. Esse lugar, que se transformou num centro de pesquisa sobre terror nazista, foi o derradeiro lugar de planificação e administração do terror da Alemanha hitlerista e disseminou por toda cidade de Berlim seu imaginário aniquilador.

2 Morelli é o crítico de arte do século XIX que criou um método indiciário de atribuição da veracidade, quanto à autoria, dos quadros antigos. Seu método se baseava em análise dos pormenores mais negligenciáveis na obra de arte, como lóbulos de orelha, unhas, forma dos dedos etc. Ver o belo ensaio do historiador Carlo Guinzburg (1999).

referências

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das letras, 1994.

CALLIGARIS, Contardo. O elogio da cidade, In: PECHMAN, Robert M. (Org.). Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.

arte e cidades 2ed.indd 243 04/11/15 18:07

244

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das letras, 1999.

PAZ, Octávio. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim, 1999.

RENNER, Rolf G. Edward Hopper: transformações do real. Colônia: TASCHEN, 1992.

arte e cidades 2ed.indd 244 04/11/15 18:07

245 ö

renato CyMbalista

de cidades e sangue: imagens de martírios e construção do território católico no século Xvi

Uma das temáticas mais recorrentes na pintura portuguesa do século XVI são os martírios, imagens que evocam os inúmeros episódios de tortura e morte dos santos cristãos, principalmente dos primeiros séculos do cristia-nismo. Os martírios eram peças quase indispensáveis nos retábulos das igrejas portuguesas do início da Idade Moderna, sinalizando a força do culto aos santos mártires. Evocavam a miríade de santos, intercessores da Igreja, cujas trajetórias de vida e morte os aproximavam de Deus e de Cristo, compondo algo como uma corte divina. O efeito exemplar de suas experiências de constância na fé, mesmo desafiados pelas maiores adversidades, tinha um impacto pedagógico sobre o conjunto da sociedade.

Mas a evocação aos martírios do início da Idade Moderna ibérica pode ser analisada para além da narrativa literal do sofrimento e morte dos santos cristãos, que tornava-se verdade de tão repetida. Este texto constrói-se sobre uma tentativa nesse sentido, examinando a territorialidade que, via de regra, acompanha as narrativas pictóricas de martírios portugueses do início da Ida-de Moderna. Sustenta que essas representações territoriais têm significados que vão muito além da sinalização de um necessário pano de fundo para a representação pictórica: nos deixam perceber conteúdos importantes para a compreensão dos significados religiosos do território urbano cristão no início da Idade Moderna.

A partir dessa problematização, o texto atravessa o oceano e procura olhar sob nova luz alguns documentos referentes à expansão colonial portuguesa,

arte e cidades 2ed.indd 245 04/11/15 18:07

246

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

em que se encontram presentes episódios de martírios, marcadamente entre os missionários. Defendo aqui que, para estes, o martírio foi um dos instru-mentos de ocupação do território da América Portuguesa, e sua representação e disseminação em textos, gravuras, martirológios, a documentação utilizada para demonstrar ao mundo a inserção das novas e imensas terras no tempo e no espaço cristão.

Trata-se de um exercício de distanciamento em relação às maneiras como atualmente compreendemos a construção – e principalmente a repre-sentação – do território, que nos permite compreender um pouco mais sobre as maneiras como aquela sociedade e aquelas cidades evocavam, utilizavam e construíam relações com o seu passado, quais as formas através das quais os homens lidaram com o elemento dos corpos sagrados que – veremos – foi constitutivo, fundador das cidades e do território, elemento com o qual era bastante difícil deixar de negociar.

Há várias formas de aferir isto, por exemplo, a partir das hagiografias, martirológios, sermões dedicados a santos ou datas específicas, teatro, corres-pondência missionária. Aproveitando desta imagem do mártir como fundador do território, vamos agora examinar algumas pinturas de martírios presentes nas igrejas portuguesas no início da Idade Moderna.

narrativas de martírio e territórios de cidade na pintura portuguesa do início da idade Moderna

As imagens de martírios, peças quase obrigatórias nos retábulos e capelas das igrejas portuguesas dos séculos XVI e XVII, celebravam o poder sobrena-tural que emanava dos mártires, complementando as leituras dos episódios de martírio que eram feitas nos aniversários das suas mortes, e reforçando assim a veracidade e a continuidade de sua presença entre os mortais, mesmo muitos séculos após seus sacrifícios. Os martírios são contrapartidas visuais do sistema que foi sendo consolidado na Idade Média pelas hagiografias, baseadas na celebração que se repete a cada ano das celebrações dos episódios violentos de martírio.1 (CARVALHO, J.; CARVALHO, M., 2002) O início da Idade Moderna em Portugal é um momento interessante neste percurso, em que as descobertas de linguagem da arte renascentista e maneirista agregam-se às tradicionais crenças, dando um inédito realismo às representações de martírios.

arte e cidades 2ed.indd 246 04/11/15 18:07

247

re

nat

o c

ymb

ali

sta

ö

A Figura 1 mostra o martírio do apóstolo Santo André, ocorrido no século I. Santo André teve o papel de evangelizar imensas regiões: a região a norte dos mares Negro e Cáspio, a Etiópia, a Ásia Menor e a Grécia. Foi martirizado na região do Peloponeso, atado à cruz, onde agonizou por dois dias. A partir do século XV, a cruz em formato de X, ou Cruz de Borgonha, foi incorporada como marca registrada de seu martírio.2 (CARVALHO, J.; CARVALHO, M., 2002) Ao fundo, vemos a representação da cidade: trata-se de Patras, local de ocorrência do martírio, segundo hagiógrafos como Jacopo de Varazze na sua imensamente reproduzida legenda áurea. A cena introduz ao mesmo tempo proximidade e separação em relação ao núcleo urbano pré-existente. Evoca, assim, (mais do que isso, reitera) a ordem territorial fundada pelos primeiros mártires, e assinala o local em torno do qual teria se organizado o culto cris-tão naquele local: fora das muralhas da cidade, mas a uma distância razoável, que aos poucos poderia transformar-se em uma nova centralidade, um novo referencial territorial.

Figura 1 - Martírio de Santo André. Pintura Portuguesa, atribuído a Cristóvão de Figueiredo c. 1530. Col. Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa

arte e cidades 2ed.indd 247 04/11/15 18:07

248

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Levando em conta a recorrência das imagens, a localização dos martírios ao mesmo tempo próximo e separado das cidades está longe de ser uma casualidade, o que reforça a ideia de que essas imagens, mais do que narrativas da morte dos santos, articulavam um discurso intencional sobre o território. A Figura 2 foi pintada entre 1540-50 e mostra o martírio de Santa Catarina em Alexandria, que repete este elemento e mostra a santa sendo decapitada do lado de fora das portas de Alexandria. Em um sinal de sua pureza, do corpo decapitado verteu leite em vez de sangue, o que teria deixado estupefatos seus algozes, conforme mostra a pintura.3 As roupas exóticas das figuras que participam do martírio evidenciam o esforço de representação de uma localidade oriental.

Figura 2 - Decapitação de Santa Catarina, de cuja cabeça teria vertido leite no lugar de sangue. Ao fundo, as muralhas de Alexandria. Pintura portuguesa, 1540-1550, Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa

A Figura 3 mostra o martírio de Santo Hipólito, cujo nome Jacopo de Varazze associa de forma bastante interessante e criativa com o território da cidade: de hyper (acima) e lytos (pedra), significando “sobre a pedra”, isto é, “fundado em cristo”; ou de in (em), e polis (cidade), ou seja , “aquele que está na cidade” – “foi bem fundado sobre a pedra de Cristo por sua constância e firmeza, esteve na cidade celeste pelo ávido desejo que tinha disso”.4

arte e cidades 2ed.indd 248 04/11/15 18:07

249

re

nat

o c

ymb

ali

sta

ö

Na imagem, Hipólito aparece arrastado por um cavalo no exterior da Porta Tiburtina, em Roma, na presença de seus familiares e escravos que apa-recem e também estão presentes na imagem. O local assinala as proximidades da Basílica de San Lorenzo, onde Santo Hipólito foi sepultado.5 Note-se que a porta da cidade aparece na imagem com sua aparência medieval, o que será explorado adiante.

Figura 3 - Martírio de Santo Hipólito, atribuído a Cristóvão de Figueiredo, meados do séc. XVI, col. Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa

Um dos martírios mais evocados no século XVI era o de São Sebastião. A Figura 4 mostra o episódio, ocorrido em Roma no ano de 187, e é proveniente de um altar da Charola do convento de Cristo em Tomar. É atribuída ao pintor Gregório Lopes, e datada de 1536.6 (RITA, 1986) Diferente das outras, esta ima-gem mostra o martírio acontecendo no interior de uma cidade, e não fora dos seus muros. Isso porque o martírio das flechas não logrou matar São Sebastião. A Figura 5 mostra uma das raras representações do martírio definitivo, a golpes,

arte e cidades 2ed.indd 249 04/11/15 18:07

250

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

e também fora da cidade, marcando o local onde anos depois seria edificada a igreja de São Sebastião fora dos muros. Após ter sobrevivido às flechas, São Sebastião foi sacrificado nas imediações de Roma, e o Imperador mandou que desaparecessem com o corpo para que os cristãos não o honrassem como mártir. Mas São Sebastião apareceu na noite seguinte a Santa Lúcia, revelando onde estava o seu corpo, e mandando que o sepultassem nas catacumbas, próximo aos apóstolos Pedro e Paulo, o que foi feito. Logo o local se transformou em lugar de culto cristão, e posteriormente foi nesse local erigida a Basílica de São Sebastião. A pintura mostra, portanto, mais do que uma representação de martírio, mas tem a intenção de atribuir a um local específico um conteúdo de sacralidade, altamente relevante para a cidade de Roma, e, portanto, para toda a cristandade que possuía Roma como a “cabeça do mundo”.7 São Sebastião é considerado por São Gregório como o terceiro padroeiro de Roma, depois dos mártires Pedro e Paulo.8 (RITA, 1986)

Olhando com mais cuidado, percebemos que a representação portuguesa do martírio de São Sebastião teve significados para além do apontamento do lugar sagrado em Roma. São Sebastião, por seus atributos guerreiros, auxiliava os cristãos em muitas ocasiões de batalhas, e no século XVI seu culto foi espe-cialmente forte em Portugal. Era adotado como santo padroeiro dos besteiros, e desde 1505, os artilheiros da guarnição de Lisboa constituíram uma irmandade em evocação ao santo, erigindo-lhe uma ermida chamada São Sebastião da Mouraria, hoje Nossa Senhora da Saúde.9 (RITA, 1986)

Por volta de 1530, o Imperador do Sacro Império Romano, Carlos V, ofereceu a seu cunhado D. João III, rei de Portugal, o osso do antebraço direi-to de São Sebastião, levados de uma igreja por ocasião do saque de Roma de 1527. Em 1531, o Papa Clemente VII emitiu uma bula autenticando a relíquia e legitimando D. João III como o seu proprietário, e absolvendo-o de qual-quer pecado por portar a relíquia fruto de profanação da igreja romana alguns anos antes.10 A pintura foi feita, portanto, no contexto da chegada do tesouro a Lisboa, e de sua legitimação pelo Papa.

D. João III mandou depositar a relíquia no Mosteiro de São Vicente de Fora, este também construído por sobre os túmulos de mártires. Durante a reconquista de Lisboa aos mouros, D. Afonso Henriques escolhera aquele local para sepultar os portugueses que morreram na luta contra os infiéis, onde mandou construir uma pequena igreja em devoção a São Vicente, posterior-mente doada aos prelados de São Vicente para lá erigirem seu grande mosteiro.

arte e cidades 2ed.indd 250 04/11/15 18:07

251

re

nat

o c

ymb

ali

sta

ö

Anteriormente fora da cidade, o Mosteiro foi incorporado a ela na expansão da Muralha Fernandina, no século XIV.11 (TAROUCA, 1952)

Figura 4 - Martírio de São Sebastião, Gregório Lopes, 1536, proveniente da charola do convento de Cristo em Tomar. Col. Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa

Mas a relíquia não deveria ficar no Mosteiro de São Vicente por muito tempo. Ao que tudo indica, D. João III teria deliberado a edificação de um templo para São Sebastião em seu reinado. A edificação do templo foi inicia-da pelo seu sucessor, D. Sebastião. Em 1569, em plena epidemia de peste na cidade, o Rei D. Sebastião enviou à Câmara de Lisboa um voto que exprimia seu desejo de edificar um templo ao santo, tido como guerreiro eficaz contra a peste, e a relíquia estava destinada a ser acomodada na Igreja. D. Sebastião recebeu ainda um outro tesouro de Roma para o novo templo: uma das setas com as quais o santo foi martirizado, doada pelo Papa Gregório XIII em 1573.12 A Figura 6 é talvez a única imagem existente da construção da igreja de São Sebastião, que estava em curso no meio do Terreiro do Paço, datada de 1575.

No entanto, com o desaparecimento de D. Sebastião em 1580, mudam a sorte das relíquias, do templo e da própria cidade de Lisboa. Filipe II da Es-panha, que assume o trono de Portugal, ordena a interrupção da construção do templo de São Sebastião, e a volta do culto ao Mosteiro de São Vicente. Aquilo que já existia foi demolido, e o novo rei espanhol Filipe II não só de-liberou que as relíquias ficariam em São Vicente, mas também que o próprio material de construção do templo acompanharia seu patrono, reutilizado nas obras filipinas do Mosteiro de São Vicente. A relíquia é possivelmente aquela

arte e cidades 2ed.indd 251 04/11/15 18:07

252

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

que é atribuída a São Vicente pelos fiéis, que continua até hoje no Mosteiro de São Vicente.13 (RITA, 1986)

Figura 5 - Martírio de São Sebastião, pintura portuguesa, c. 1550. Col. Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa

O mais intrigante é percebermos a semelhança da paisagem urbana que salta aos olhos ao confrontarmos as Figuras 5 e 6. Ambas evocam um terreno de várzea, levando à ideia de uma cidade ribeirinha, à semelhança da posição de Lisboa.14 Em que pesem os detalhes, as semelhanças são bastante grandes entre o local representado como o de martírio de São Sebastião em Roma e o local onde, mais de três décadas depois de realizar-se a pintura, iniciou-se a construção da Igreja.

Dessa semelhança colocam-se hipóteses interessantes, que no momento não tenho condições de aprofundar: a) D. João III já planejava edificar o templo a São Sebastião no Terreiro do Paço, diferente daquilo que a histórica consagra, que D. Sebastião teria sido o autor dessa iniciativa; b) A pintura revelou-se algo premonitória, e sua existência poderia ter sido considerada um sinal de que o

arte e cidades 2ed.indd 252 04/11/15 18:07

253

re

nat

o c

ymb

ali

sta

ö

terreiro do paço seria o local designado como de edificação do novo templo; c) Trata-se de coincidência, de fenômenos sem qualquer relação entre si.

Figura 6 - Rara imagem que mostra as fundações da jamais concluída igreja de São Sebastião, que o rei D. Sebastião mandara construir no Terreiro do Paço da Ribeira de Lisboa antes de desaparecer no norte da África. Para o interior do “suntuoso templo, que [...] vai se edificando em Lisboa [...] para ser da invocação do mártir São Sebastião defensor da saúde deste Reino”, Dom Sebastião havia obtido do Papa Gregório XIII uma das lanças que haviam supliciado o santo. 1575, Arquivo de Turim

A última alternativa é possivelmente a correta, mas mesmo neste caso, temos que refletir sobre essas semelhanças. Vai também nesse sentido uma outra inferência, a de que a cena na qual dois ou três mártires são também supliciados, no fundo à direita (inexistente na hagiologia de São Sebastião ou nas representações pictóricas do martírio de São Sebastião) teria o significado de uma ilustração da perseguição antijudaica, coeva à realização da pintura por Gregório Lopes.15 (SERRÃO, 1995) Sabe-se que os autos de fé de Lisboa eram realizados no Terreiro do Paço, justamente o local onde, posteriormen-te, seria iniciada a igreja de São Sebastião.16 (CARVALHO, 1999) Um outro comentário sobre a mesma obra aponta que o casario no fundo do quadro tem características lisboetas, trazendo a hipótese de representar a vista da Praça do Rossio.17 (SERRÃO, 1994)

arte e cidades 2ed.indd 253 04/11/15 18:07

254

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Caso estejam corretas as várias opiniões que confluem no sentido de a paisagem urbana na pintura do martírio de São Sebastião pelas flechas ser inspirada em Lisboa, cabe perguntar se este texto não estaria trazendo duas argumentações contraditórias: a) a cena, assim como as demais representações de martírios, apontam lugares específicos onde o suplício teria acontecido; e b) trata-se da evocação do território de Roma.

A resposta para esta questão deve ser buscada no próprio culto aos santos. Lembremo-nos da devoção às suas relíquias sagradas (ossos, cabelos, unhas lágrimas), fundamental na religião cristã do início da Idade Média até o século XVI, com uma potente sobrevida nas regiões católicas por pelo menos mais dois séculos. Nas relíquias, a integralidade do santo estava presente em suas partes, mesmo nas menores, por isso estas podiam ser fragmentadas e distri-buídas por onde sua presença era demandada. A capacidade de multiplicar-se e fazer-se presente em todos os lugares aonde suas relíquias fossem levadas era, aliás, uma das grandes provas dos poderes dos santos.18 Dessa forma, como São Sebastião podia estar inteiro em Roma, Lisboa e em muitas outras cidades, por meio de suas relíquias, sua imagem podia também evocar dois cenários urbanos distintos, ambos verídicos. A construção do raciocínio, aliás, deve partir do poder onipresente do mártir: porque a imagem é de São Sebastião, ela pode evocar simultaneamente duas cidades. Veremos a seguir que algo semelhante acontece em relação à temporalidade.

o mártir, o tempo e a cidade

As várias imagens já comentadas trazem referências arquitetônicas e urbanísticas contemporâneas às pinturas: muralhas, portas ou casario de cida-des da baixa Idade Média. Na imagem do martírio de São Sebastião, o templo cilíndrico ao fundo evoca a tipologia do renascimento italiano, estilo da maior modernidade para a época. Isso dá indícios que o mártir não era apenas capaz de transcender o espaço, mas também o tempo.

Esse efeito de um certo “curto circuito” temporal fica mais claro em uma série de quatro pinturas que representam a paixão dos mártires patronos de Lisboa, São Veríssimo, Santa Máxima e Santa Júlia, martirizados no final do século III ou início do IV.19 (MARTINS, 1955) Nesta sequência de pinturas, a relação entre a narrativa do martírio que teria sido o fundador da territorialidade

arte e cidades 2ed.indd 254 04/11/15 18:07

255

re

nat

o c

ymb

ali

sta

ö

cristã e as representações coevas do espaço urbano são por demais explícitas para serem coincidência.

O culto aos mártires Veríssimo, Máxima e Júlia em Lisboa datava de muitos séculos, e suas relíquias estavam depositadas na igreja que havia sido construída no local onde acreditava-se que os santos haviam sido martirizados, a igreja de Santos, que dava nome a toda aquela região da cidade. Até o final do século XV, o local era ocupado por um convento cujas freiras receberam, em 1490, um local mais amplo também às margens do Tejo, o chamado mos-teiro de Santos-o-Novo. Na mudança, levaram seu mais precioso tesouro, as relíquias dos santos mártires, depositadas no altar mor da nova igreja. Algumas décadas depois, esse conjunto de pinturas foi feito em celebração ao novo local de repouso dos mártires.

Ao mesmo tempo, a série evidencia algumas das mais recentes trans-formações urbanísticas da cidade. Lisboa acabava de passar por grandes transformações urbanísticas, promovidas por D. Manuel no início do século XVI, superando uma situação defensiva e recolhida em relação ao Rio Tejo e abrindo uma série de espaços de interface entre o espaço urbano e o rio. As pinturas mostram alguns dos principais dentre os novos referenciais da cida-de, como o Paço da Ribeira e a Torre de Belém.20 Também as roupas mostram essa dupla temporalidade: os santos vestem-se no estilo da corte portuguesa da primeira metade do século XVI, com as roupas coloridas que se importava de Flandres e da Itália na época.

Ou seja, temos aqui uma sobreposição de celebrações: o martírio ocor-rido há mais de mil anos, as transformações da cidade abrindo-se para o rio e o próprio traslado das relíquias. Não podemos nos esquecer que em meados do século XVI, era impensável para os portugueses, assim como de uma forma geral para os europeus, a ideia de transformações puramente laicas do território, estas pressupunham uma contrapartida religiosa, e parece que estas imagens trazem à visibilidade aquilo que era invisível: os mártires dos primeiros séculos do cristianismo estavam a abençoar, a proteger o território da Lisboa renovada, com a mesma intensidade do momento de seu martírio.

Essas pinturas, portanto, reafirmam um tratamento da escala temporal que prioriza não ao tempo cronológico, mas a um tempo sagrado e cíclico, próximo àquele das hagiografias, para as quais o que interessa é mais o dia do santo, (em geral o dia em que se comemora seu martírio ou morte) do que o ano em que estamos.21

arte e cidades 2ed.indd 255 04/11/15 18:07

256

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Enquanto os outros martírios mencionados neste texto referem-se a santos de culto universal, o culto aos santos-patronos de Lisboa era de caráter essencialmente local. Isso explica a maior importância que adquire o território da cidade nas imagens: mais do que relatar o martírio, o objetivo desse conjunto de pinturas é evidenciar o nexo entre o martírio e a consagração do território da cidade. De certa forma, os mártires são a cidade.

Esse nexo fica bastante evidente se olharmos para as representações do outro mártir padroeiro de Lisboa (de todo o reino, aliás, simbolizando também o surgimento de Lisboa como capital), São Vicente, cujas relíquias foram milagrosamente encontradas pelo primeiro rei de Portugal. D. Afonso Henriques, no chamado “promontório sacro”, local mais ocidental de Portugal, debruçado sobre o Oceano. Dois corvos acompanharam o santo por todo o percurso desde o seu local de martírio, em Saragoça, até o promontório sacro, onde esteve escondido até D. Afonso Henriques libertar a cidade de Lisboa dos mouros, momento em que finalmente o santo pôde revelar o local onde estava seu corpo.

O barco no qual chegara o corpo de São Vicente desde o local de seu martírio, ladeado pelos dois corvos, é desde então o símbolo da cidade de Lisboa. Uma das imagens do conhecido livro de Francisco de Holanda, Da fabrica que fallece a cidade de Lisboa, de 1570, aprofunda ainda mais a identidade: Lisboa é representada carregando o barco de São Vicente, na companhia dos dois corvos, pousados sobre seus ombros. A cidade, aqui, toma o lugar do corpo do mártir.

Aproveitando que já estamos na água, vamos agora atravessar o oceano.

a representação do martírio do outro lado do oceano

Os martírios de jesuítas eram minuciosamente documentados, sistema-tizados, ilustrados e descritos nas milhares de cartas que os jesuítas trocavam entre si, e também nas inúmeras imagens de martírios que corriam o mundo, que documenta um dentre vários martírios ocorridos na América, semelhantes a outras imagens que documentavam episódios similares em várias regiões do mundo. Trata-se do martírio do padre jesuíta Francisco Pinto, cujas relíquias foram motivo de disputa entre índios e jesuítas. (Ver CYMBALISTA, 2006)22

Os martírios estavam, aliás, na ordem do dia na própria Europa. Há sé-culos não se viam sacrifícios de ordem religiosa em tão grande escala quanto os

arte e cidades 2ed.indd 256 04/11/15 18:07

257

re

nat

o c

ymb

ali

sta

ö

que aconteceram no século XVI, devido às tensões religiosas provocadas pela ruptura dos reformistas com Roma. Os primeiros a morrer foram os protes-tantes, mas estes, ainda que tratados como mártires pelos seus correligionários, não passavam de hereges para os católicos.23

Mas, para os católicos, é claro que os mortos protestantes não eram mártires, mas hereges. Os martírios de católicos também aconteceram, principalmente na In-glaterra. Personagens célebres como o missionário e humanista Edmund Campion e o poeta e jesuíta Robert Southwell também foram martirizados nesse período.24

(HSIA, 1998) Em 1535, Thomas Morus e o bispo de Rochester, John Fisher, foram decapitados na Inglaterra. Em Wittemberg (futura Alemanha) em 1552, Provença (França) em 1560, e nos Países Baixos em 1566 ocorreram grandes fúrias reformadoras. Em 1572, nos Países Baixos, monges católicos foram enterrados com vida, mas suas cabeças foram deixadas de fora para servirem como balizas de um jogo de bola. Em Vivarais, católicos foram trancados em campanários e deixados para morrer de fome, crianças foram colocadas em espetos e assadas na frente dos pais. Na Inglaterra da rainha Elisabeth, vísceras e corações eram arrancados dos católicos ainda vivos.25 (DELAMEAU, 1989)Os jesuítas cultuaram fortemente os monges de Gorcum, massacrados pelos calvinistas.26 (HSIA, 1998)

Enquanto durante o final da Idade Média os martírios haviam sido ma-joritariamente representados como um valor, como uma referência de piedade, o século XVI estava presenciando o ressurgimento do ato do martírio católico em maior escala. Nesse contexto, emerge uma nova onda de representações de martírios, da qual fazem parte tanto aqueles que ocorrem em mãos de protestantes quanto aqueles que ocorrem em mãos de povos não europeus. As datas mais ou menos coincidiram, pois o momento da primeira expansão colonial é também o momento das disputas religiosas na Europa. Para a mente profundamente religiosa do homem católico do século XVI, tudo isso fazia um grande sentido místico, e a missão daquele momento era a de combater todos os tipos de heresias, em todos os locais onde a fé católica agora chegava. O último terço do século XVI é o momento em que isso tudo faz sentido, e, que o Concílio de Trento reforça a fé nos primeiros mártires e em suas relíquias e articula o discurso da reforma católica, estratégia de uma igreja combatente, e os mártires estavam na linha de frente.27 (GREGORY, 1999)

É nesse contexto do martírio renovado que devemos tratar os relatos e representações de martírios ocorridos no Brasil. Tratava-se de uma estratégia

arte e cidades 2ed.indd 257 04/11/15 18:07

258

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

global, e um dos principais focos de disseminação desses relatos era justamente a Europa em guerra religiosa.

A Companhia de Jesus desenvolveu o seu próprio martirológio, em que quase todos os dias do ano estavam benzidos com o sangue de seus mártires ao redor do mundo. Os jesuítas decoravam partes da sua igreja Sant’Andrea al Quirinale, construída por Bernini no século XVII, com cenas de martírio de jesuítas mortos a caminho do Brasil pelos calvinistas, com uma imagem do Irmão Pero Correia, morto a flechadas no Brasil, entre outras imagens de martírios ocorridos entre 1549 e 1606. Sobre essas imagens, o jesuíta Padre Richeome escreve: “estas, meus caros, são imagens de seus irmãos, abatidos entre 1549 e 1606; alinhadas, nesta sala, não apenas em honra a suas memórias, mas para serví-los de exemplo”.28 (MALE, 1949, p. 175-176) Uma represen-tação do martírio do jesuíta Antonio Criminal, na Índia, ocorrido em 1550, foi colocada na Capela Real, a pedido do Rei D. João III, “para que se dessem devidas graças a Deus, que nos seus santos obra tamanhas maravilhas”.29 (ANDRADE, 1976, p. 1048)

Na ocasião da canonização de Inácio de Loyola e Francisco Xavier em 1622, fizeram-se grandes festas em Lisboa, ocasião em que os martírios de jesuítas ao redor do mundo foram celebrados:

[...]aparecia uma formosa nau da Índia, tão perfeita, & bem acabada, que podia servir de modelo para as que se fazem na Ribeira, não vinha carregada de drogas, mas de mártires da Companhia de Jesus, que levados do zelo da fé, navegaram por todas as partes do mundo, & nelas deram suas vidas por Cristo. Ia embandeirada com muitos galhardetes & glamulas de tafetá vermelho, nas velas pintadas palmas & coroas: pelas bombardeiras assomavam muitas peças de artilharia de bronze, que a lugares disparavam, navegava em um mar de ondas contrafeitas, & por entre ellas apareciam cabeças, & braços dos santos mártires que foram lançados ao mar, que por toda a parte mostrava veias e escumas de sangue.30

Percebemos, portanto, que os relatos de martírios nas fronteiras do mundo conhecido dos europeus tinham um efeito de mão dupla: por um lado, impulsionar o fervor dos cristãos e conquistar novos fiéis entre os índios, acentuado o efeito pedagógico da trajetória dos mártires que, assim como cristo, morrem para salvar a toda a humanidade. Por outro lado, tinham um papel

arte e cidades 2ed.indd 258 04/11/15 18:07

259

re

nat

o c

ymb

ali

sta

ö

estratégico na própria Europa em crise, na qual a Igreja Católica precisava se esforçar para dar mostras concretas do poder de seus próprios mártires.

Considerações finais

As pinturas portuguesas de martírios e as imagens de martírios na América eram imagens com diferenças de várias ordens. O primeiro grupo remete os relatos dos martírios dos primeiros séculos a uma escala temporal e espacial que é mais mítica do que técnica ou histórica, à reiteração de relações tradicionais de devoção. Já o segundo conjunto de imagens tem datas e locais bastante definidos, procurava disseminar histórias de martírios que não eram universalmente conhecidas, documentando a presença cristã nas novas terras, procurando incidir em um momento particularmente crítico para os cristãos. São bastante mais modernos, nesse sentido.

Em um ponto fundamental, no entanto, todos estes documentos se pa-recem: relacionam intimamente o episódio do martírio com a cristianização do território. Aquela sociedade estava ainda muito longe de conseguir ocupar novos territórios de forma exclusivamente laica, e divulgar essas conquistas a partir de uma documentação exclusivamente técnica. Tratar esse tipo de ocupação e representação religiosa do território como simples “justificativa”, “suporte” para a ocupação econômica, me parece um anacronismo. Se aceitarmos que era um homem religioso aquele que colonizou o Brasil no século XVI, como mostra Lucien Febvre31 (1968) temos que aceitar essas imagens de martírios como documentos legítimos referentes à colonização do Brasil, lado a lado com a cartografia, com a edificação em pedra e cal, com a documentação cartorial, corpos documentais que, com o triunfo da abordagem técnica do tempo e do espaço, foram sendo progressivamente convencionados como os “corretos”.

notas

1 CARVALHO, José Alberto Seabra e CARVALHO, Maria João Vilhena. A espada e o deserto (catalogo de exposição). Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 2002, p. 6.

2 Ibid, p. 11.

3 Segundo o relato medieval, trazido, por exemplo, por Jacopo de Varazze, na Legenda Áurea. São inúmeras as edições deste livro. A versão consultada é da Companhia das Letras (São Paulo, 2003 [1293]).

4 Ibid., p. 653.

arte e cidades 2ed.indd 259 04/11/15 18:07

260

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

5 Ibid., p. 654.

6 RITA, Dora Iva. Martírio de S. Sebastião: aproximação à pintura do século XVI. Dissertação de Mestrado em História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, 1986, p. 13.

7 São muitas as referências nesse sentido. Por exemplo, o Padre Antonio Vieira, no “Sermão de Quarta-Feira de Cinza (1672)”, trata Roma como a “cabeça do mundo”. In: A arte de morrer. São Paulo: Nova Alexandria, 1994, p. 64. Outras referências em HIBBERT, Christopher. Rome: the biography of a city. London: Penguin Books, 1985.

8 RITA, Dora Iva. Martírio de S. Sebastião: Aproximação à pintura do século XVI. Dissertação de mestrado em História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, 1986, p. 22.

9 Ibid., p. 23.

10 Breve “P. Devotionis”, de Clemente VII, 17 de março de 1531. ANTT, Maço 2 de bulas no 16.

11 “Crônicas dos sete primeiros reis de Portugal”, 1499, Edição crítica por Carlos da Silva Tarouca, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1952, vol. I, p. 78.

12 Breve “Per Magnum Est”, de Gregório XIII, 8 de novembro de 1573. ANTT, Maço 36 de bulas no 44.

13 RITA, Dora Iva. Martírio de S. Sebastião: Aproximação à pintura do século XVI. Dissertação de mestrado em História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, 1986, p. 24-.27.

14 A ideia é de Dora Iva Rita: “aqui este complexo urbano dá-se em fachada para um dos lados – este em que como observadores nos situamos – muito à maneira de cidade ribeirinha, até porque atrás de si já se avistam serranias, vindo topograficamente, a cidade e descer até ao terreiro na sua parte mais baixa, que em lugar de se fechar deixa que a ela se tenha acesso como ponto de chegada”. Martírio de S. Sebastião: Aproximação à pintura do século XVI. p. 89.

15 SERRÃO, Vitor. “A pintura Maneirista em Portugal”. In Paulo Pereira (dir.) História da arte portuguesa, vol. II. Lisboa: Temas e Debates, 1995, p. 432. O autor aponta que a pintura é contemporânea ao primeiro auto de fé realizado em Portugal.

16 CARVALHO, José Alberto Seabra. Gregório Lopes. Pintura portuguesa do século XVI. Lisboa: Edições Inapa, 1999, pp. 61-62. Isabel Ponce de Leão Policarpo reitera a possibilidade ao referir-se a esse fundo: “[em] pormenores do segundo plano, nomeadamente na cena trágica do auto-de-fé inerente ao desenrolar da vida de uma cidade que poderá ser Lisboa, sobressai a sensibilidade diferente deste pintor, que se espelha também numa preocupação visível de construção de uma arquitetura, aqui invulgarmente concreta. Na representação da cidade ao lado esquerdo, mais do que uma arquitetura de cariz flamengo, são representados edifícios que podiam existir em qualquer cidade portuguesa da época”. Gregório Lopes e a “ut pictura architectura”: os fundos arquitectónicos na pintura do Renascimento português. Dissertação de Mestrado em História da Arte, Instituto de História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1996, p.135.

17 SERRÃO, Vitor. “Lisboa maneirista: oito notas a propósito da imagem da cidade nos anos 1557-1668”. In MOITA, Irisalva (coord.), O Livro de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1994, p. 195-199.

arte e cidades 2ed.indd 260 04/11/15 18:07

261

re

nat

o c

ymb

ali

sta

ö

18 Ainda no século XVII, a fragmentação dos santos era festejada: “E se antes predicavam os santos com suas línguas, agora predicavam com suas mãos e pés, que divididos dos corpos, e postos em diferentes lugares, davam maiores vozes, e persuadiam com maior eficácia que quando estava unidos”. Historia Eclesiástica, princípios y progressos de la ciudad y religion católica de Granada Corona de su poderoso Reyno, y excelências de su corona, por Don Francisco Vermudez de Pedraza, Canonico, y Tesorero de la Santa Iglesia Apostólica Metropolitana de Granada. Granada: Por Andrés de Santiago, 1638, p. 106.

19 MARTINS, Mário. A legenda dos santos mártires Veríssimo, Máxima e Júlia, do cod. CV/1-23 da Biblioteca de Évora. [Biblioteca da Ajuda, 213-IV-16, p. 45-72].

20 Nuno Senos menciona uma das imagens da série como uma das poucas representações do Paço da Ribeira do século XVI. O Paço da Ribeira. Lisboa: Editorial Notícias, 2002.

21 Carlos M. N. Eire comenta essa relação entre a hagiografia e o tempo: “A Hagiografia [no século XVI] procurava conectar passado e presente, mas seus objetivos eram a-históricos mais do que históricos, pois a hagiografia aspirava encontrar um continuum milagroso perpassando passado, presente e futuro. Quanto mais um evento coadunava-se com os padrões estabelecidos, mais convincente era sua sacralidade. Quanto mais o tempo fosse abolido por meio da imitação dos paradigmas e da repetição dos gestos pré-concebidos, mais se aproximava da verdade”. From Madrid to Purgatory. Cambridge: University Press, 1995, p. 509.

22 Sobre esse episódio, ver CYMBALISTA, Renato. “Relíquias sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna”. In: Anais do museu paulista v. 14 n. 2, jul. – dez. 2006.

23 Em 1523, os dois primeiros mártires protestantes foram mortos em Antuérpia. Em 1528, Patrick Hamilton foi supliciado na Escócia por haver se convertido ao luteranismo, e o líder Pierre Bruly foi martirizado em Strasburgo em 1545. Seguiram-se milhares de mortes nas décadas seguintes: os Anabatistas foram severamente perseguidos nos Países Baixos, o Rei da França Francisco I deixou 3 mil Valdenses (os seguidores de Pedro Valdo, mercadsor lionense) serem massacrados, cerca de 30 mil reformados foram mortos na noite de São Bartolomeu na França e o rei da Espanha Filipe II matou em cinco grandes autos-de-fé todos os protestantes da Espanha. DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989, p. 59-155. Sobre os martírios no século XVI na Europa, ver GREGORY, Brad S. Salvation at stake: Christian martyrdom in Early Modern Europe. Harvard: University Press, 1999.

24 HSIA, R. Po-chia. The world of catholic renewal, 1540-1770. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 1998, p. 82.

25 DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. pp. 138-163. Uma obra do próprio século XVI é YEPES, Frei Diego de. Historia particular de la persecucion de Inglaterra y de los martirios mas insignes que en ella ha ávido, desde el anno del Señor 1570. Madrid, por Luis Sanchez, 1599.

26 HSIA, R. Po-Chia. The world of catholic renewal, p. 86.

27 GREGORY, Brad S. Salvation at stake: Christian martyrdom in Early Modern Europe, p. 250-252.

28 MALE, Emile. Religious art to the twelfth to the eighteenth century. New York: Pantheon Books, 1949, pp. 175-176

arte e cidades 2ed.indd 261 04/11/15 18:07

262

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

29 ANDRADA, Francisco de. Crônica de D. João III. Introdução e revisão por M. Lopes de Almeida. Porto: Lello e Irmão Editores, 1976, p. 1048.

30 Relação das festas que se fizeram em Lisboa quando da canonização de São Francisco Xavier e Santo Inácio de Loyola, Lisboa, 1622.

31 FEBVRE, Lucien, Le problème de l’incroyance au 16e siècle: la religion de Rabelais. Paris: Éditions Albin Michel, 1968 [1942].

referências

ANDRADA, Francisco de. Crônica de D. João III. Introdução e revisão por M. Lopes de Almeida. Porto: Lello e Irmão Editores, 1976.

BERMUDEZ DE PEDRAZA, Don Francesco. Historia eclesiastica, Principios y progressos de la ciudad y religion catolica de Granada: Corona de su poderoso reyno, y excilencias de su Corona. Granada Francisco Sanchez, 1652.

CARVALHO, José Alberto Seabra e CARVALHO, Maria João Vilhena. A espada e o deserto (catálogo de exposição). Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 2002.

CARVALHO, José Alberto Seabra. Gregório Lopes: pintura portuguesa do século XVI. Lisboa: Edições Inapa, 1999.

CYMBALISTA, Renato. Relíquias sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna. Anais do Museu Paulista, v. 14, n. 2. jul./dez. 2006.

DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989.

EIRE, Carlos M. N. From Madrid to Purgatory. Cambridge: University Press, 1995.

FEBVRE, Lucien. Le problème de l’incroyance au 16e siècle: la religion de Rabelais. Paris: Albin Michel, 1968.

GREGORY, Brad S. Salvation at stake: Christian martyrdom in Early Modern Europe. Harvard: University Press, 1999.

HIBBERT, Christopher. Rome: the biography of a city. London: Penguin Books, 1985.

HSIA, R. Po-chia. The world of catholic renewal, 1540-1770. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

MALE, Emile. Religious art to the twelfth to the eighteenth century. New York: Pantheon, 1949.

arte e cidades 2ed.indd 262 04/11/15 18:07

263

re

nat

o c

ymb

ali

sta

ö

MARTINS, Mário. A legenda dos santos mártires Veríssimo, Máxima e Júlia, do cod. CV/1-23 da Biblioteca de Évora. Revista Portuguesa de História, Coiombra, t. 5, v. 1, p. 45-93, 1955.

POLICARPO, Isabel Ponce de L. Gregório Lopes e a “ut pictura architectura”: os fundos arquitectónicos na pintura do Renascimento português. 1996 Dissertação (Mestrado em História da Arte) - Instituto de História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

RITA, Dora Iva. Martírio de S. Sebastião: aproximação à pintura do século XVI. 1986. Dissertação (Mestrado em História da Arte) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.

SENOS, Nuno. O Paço da Ribeira. Lisboa: Editorial Notícias, 2002.

SERRÃO, Vitor. Lisboa maneirista: oito notas a propósito da imagem da cidade nos anos 1557-1668. In: MOITA, Irisalva (Coord.). O Livro de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1994.

SERRÃO, Vitor. A pintura Maneirista em Portugal. In: PEREIRA, Paulo (Dir.). História da arte portuguesa. Lisboa: Temas e Debates, 1995. v. 2.

TAROUCA, Carlos S (Ed.). Crônicas dos sete primeiros reis de Portugal, 1499. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1952. v. 1.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

VIEIRA, Antonio. Sermão de Quarta-Feira de Cinza (1672). In: VIEIRA, Antonio. A arte de morrer. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

YEPES, Frei Diego de. Historia particular de la persecucion de Inglaterra y de los martirios mas insignes que en ella ha ávido, desde el anno del Señor 1570. Madrid: Luis Sanchez, 1599.

arte e cidades 2ed.indd 263 04/11/15 18:07

arte e cidades 2ed.indd 264 04/11/15 18:07

265 ö

Maria helena oChi fleXor

a escultura e o espaço urbano de salvador1

Desde a Antiguidade que esculturas, de natureza diversa, ocuparam espaços públicos nos centros povoados do mundo Ocidental. Os desdobramentos da Revolução Francesa, o neoclassicismo – como arte de representação do poder e como arte oficial – e o romantismo, mais os movimentos nacionalistas glorifica-ram alguns personagens, ou fatos da história, que se transformaram em heróis, ídolos, ou referências internacionais, brasileiras ou regionais. Esses personagens, e os fatos cívicos, foram alvo de homenagens públicas, materializadas em escul-turas, ou sob a forma de monumentos, que passaram a ocupar espaços urbanos importantes. Salvador foi um deles.

Passada a ideologia nacionalista, ou mesmo antes disso, e introduzidas modificações urbanas, decorrentes do progresso científico e tecnológico, com exceção dos monumentos de grandes dimensões, boa parte deles ini-ciou uma verdadeira peregrinação pela Cidade, descaracterizando o propó-sito inicial das homenagens. Outros monumentos sofreram modificações, quase sempre em função das mudanças dos logradouros em que estavam ou estão inseridos. Outros não passaram da pedra fundamental. Procura-se identificar essas esculturas e monumentos, sua história e destino no espaço urbano da Cidade do Salvador.

Antes de tudo é necessário saber o que moveu os antepassados a pro-mover todos os esforços para homenagear pessoas, fatos e levantar, usando a escultura, os monumentos. Eles foram erguidos, especialmente, entre 1815 e 1932, tempo em que dominava a mentalidade de que, conforme dizia Pedro

arte e cidades 2ed.indd 265 04/11/15 18:07

266

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Celestino da Silva, na primeira metade do século XX (SILVA, 1933, p. 76-77; A BAHIA..., 1923, p. 272.), se devia

perpeturar no bronze e no marmore, os acontecimentos de relevancia, apontar ás gerações porvindouras, como exemplo, os feitos dos homens que se tornaram distinctos, é um dever que se impõe, a titulo de gloria, ás nações que elles engrandeceram e illustraram em vida, a historia serena e immutavel, registra sempre com desvanecimento essas justas homenagens por um dos meios mais adequados de sagrar a memória dos bons cidadãos. É o fim dos monumentos, obras de arte que a civilização emprega para illustrar uma época ou glorificar um nome. Os tempos antigos e os modernos ‘não divergem neste ponto; se, na antiguidade, levantavam-se estatuas aos grandes guerreiros, a civilização moderna segue a mesma pratica, homenageando os seus beneméritos’ [...] porque a cultura de um povo se afere, neste caso, pelo numero de seus monumentos.

Observa eminente pensador que, na divina arte das estatuarias se vão buscar os recursos para a celebração das glorias nacionaes, porque é a estatua que põe em contacto com o povo os antepassados que o dignificaram, e que desperta, cercando-a de um halo de benção e flores, a evocação dos seus triunphos nas paginas scientificas, nas letras, na guerra e nas lutas pela liberdade [...] As estatuas, são como reliquias, entregues ao julgamento dos posteros pela gratidão nacional. Portanto, os monumentos, nas praças publicas das cidades civilizadas, attestam a cultura moral de um povo e perene reconhecimento a seus benfeitores, e ao mesmo tempo servem de estimulo ás gerações do presente e do futuro.

Herdando os reflexos da arte da corte napoleônica que, coincidente-mente, refletia o neoclassicismo, os monumentos dos heróis e vultos nacionais passaram a substituir as figuras despersonalizadas, colocadas em praças e jardins, depois do Renascimento na Europa, e na maior parte do mundo Ocidental. Exemplos típicos, em Salvador, eram as dezenove estátuas que estavam na murada do Elevador Lacerda,2 colocadas depois de 1872, e retiradas na remo-delação de 1930. Esse tipo de escultura povoava, também, o Passeio Público.3

Um dos primeiros monumentos comemorativos, levantado em Salvador, foi de janeiro de 1815, data de inauguração do obelisco, situado próximo ao an-tigo forte de São Pedro. Esse obelisco destinou-se a comemorar o desembarque da Família Real Portuguesa na Cidade, a 23 de janeiro de 1808. (SILVA, 1933,

arte e cidades 2ed.indd 266 04/11/15 18:07

267

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

p. 79-81) O mais antigo monumento baiano foi, inicialmente, colocado no Passeio Público, mandado construir pelo Governador, 8º Conde dos Arcos, D. Marcos de Noronha e Brito, aproveitando aquele terreno comprado, em 1803, pelo Governador Francisco da Cunha Menezes, para criação de um Jardim Bo-tânico. Portanto, o obelisco estava no Passeio Público original, entre mangueiras, “estátuas nuas, formosas algumas”, de mármore branco, num pátio suspenso, coberto de embrechado com azulejos, azul e branco, e conchas. O monumento era representado por uma pirâmide de mármore português, com inscrições em letras douradas numa das faces, alusivas ao fato de 1808.4

Com a abertura da Avenida Sete de Setembro, em 1915, e a remodelação do Palácio, – depois chamado Palácio da Aclamação –, que serviria de residên-cia aos governadores, o Passeio Público perdeu parte de seu terreno, apesar de pertencer ao governo da Intendência Municipal.5 Nesse período, o obelisco foi desmanchado e transferido para o meio do jardim da praça fronteira a esse mesmo Palácio.

Um longo período de tempo separou este do segundo monumento, mais significativo, erguido em Salvador.

Esse monumento civil comemorativo só seria elevado em 1874: o monu mento em homenagem à Batalha Naval do Riachuelo. (SILVA, 1933, p. 84-86; A BAHIA..., p. 171)6 O negociante José Lopes da Silva Lima apre-sentou a proposta de elevação do monumento na reunião da Junta Diretora da Associação Comercial, em 15 de julho de 1870. Só dois anos depois foi lançada a primeira pedra do monumento,7 estando presente D. Pedro II, de passagem para os Estados Unidos.

Inaugurou-se a 23 de Novembro de 1874 e é formado por uma coluna de bronze, em estilo coríntio, arrematada por um capitel dourado de onde saem oito volutas douradas, sustentando uma esfera que ampara o Anjo da Vitória, tendo uma palma em uma das mãos e uma coroa de louros na outra, também em bronze. O pedestal é de pedra branca francesa. As inscrições trazem os no-mes dos lugares onde os brasileiros marcaram seus feitos. As colunas têm anéis, sustentando capelas de ouro com inscrições. A base das colunas compõe-se de anéis nos quais se prendem festões com capacetes nos ângulos. Traz medalhões com as armas do Império e da Câmara.

Obra projetada pelo arquiteto Delaporte, realizada pelo fundidor Leroux, as obras foram dirigidas pelo engenheiro José Revault. O monumento de 20

arte e cidades 2ed.indd 267 04/11/15 18:07

268

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

metros de altura estava cercado de jardim e grades de ferro, entre a Casa do Comércio e o mar.

Por pouco a Associação Comercial e o monumento a Riachuelo esca-param do destino que teve a Igreja da antiga Sé, que perdeu seu prestígio para os bondes. Era intenção do Governo J. J. Seabra, entre 1912-1915, derrubar a Associação Comercial e reconstruí-la junto ao cais ou mesmo no meio da praça. Ganhou-se terreno ao mar e, com isso, o jardim que envolvia o mo-numento, em frente da Associação Comercial, desapareceu. Viu-se cercado pelos edifícios com vários andares no bairro comercial. Por isso mesmo, pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, do Governo Federal, foi con-siderado monumento nacional.

Nessa praça, colocou-se outro monumento, dedicado ao Conde dos Arcos. (SILVA, 1933) A 14 de Julho de 1911, autorizada pela Lei Estadual nº 851, do dia anterior,8 realizou-se a cerimônia do lançamento da primeira pedra da estátua do fundador da praça, e da Associação Comercial, que tomaria seu nome, Conde dos Arcos, promovida, além do Governo do Estado, pelos comerciantes da Cidade. Só foi inaugurada a 28 de janeiro de 1932.

Ainda no século XIX, se fez uso de pequenos monumentos, as hermas, com a colocação de busto sobre pedestal, para homenagear personagens baianos ou que se destacaram na sociedade local. O primeiro deles foi o monumento ao Dr. Paterson. (SILVA, 1933, nota 3; A BAHIA..., p. 171), morto em Salva-dor, em 1882.

Levantado no largo da Graça, foi feito em memória do Dr. John Li-gertswood Paterson, médico escocês, que residiu e clinicou em Salvador por quarenta anos (1842-1882), tendo se destacado, sobretudo, no combate à epi-demia da colera morbus, nos meados de oitocentos. A herma foi construída por subscrição pública, feita pelos amigos, colegas e clientes,9 sendo inaugurada a 13 de Dezembro de 1886.

O monumento é todo de granito da Escócia, terra natal do Dr. Paterson, feito em local cedido pela Câmara Municipal. O pedestal formava uma fonte com torneiras de bronze e bacia de pedra. Nos ângulos se ergueram quatro pilares, que sustentavam a abóbada e, por fora, quatro colunas de granito poli-do. Foi arrematado por uma cúpula piramidal, aberta dos lados, tendo na base medalhões circulares. O busto do médico foi colocado por baixo da abóbada. Feito em mármore de Carrara, ficava com o rosto virado para o Poente. Tinha

arte e cidades 2ed.indd 268 04/11/15 18:07

269

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

inscrições em inglês e português. Era cercado de gradil e por três árvores, grandes tamarineiros.

Já no início de sua construção foi desmanchada, por causa de reforma do largo e, algum tempo depois, voltou ao local primitivo, onde permaneceu até a reforma dos anos 1990, sobre um canteiro de grama, agora com o rosto virado para o lado contrário da posição inicial.

Da mesma forma, com uma herma, foi homenageado o Dr. Joaquim Manoel Rodrigues Lima.10 Esse monumento foi, primeiramente, assentado na praça da Aclamação, em 3 de maio de 1911,11 de onde foi removido, quando o obelisco tomou seu lugar, para o largo da Vitória e colocado no meio do jardim então ali existente.12

Enquanto estava na praça da Aclamação, repousava sobre um pedestal de alvenaria de pedra e argamassa, cercado por gradil de ferro, em estilo neogótico, combinando com todo o monumento. Entre o busto, em tamanho natural, e o pedestal, mediava um bloco de mármore, medindo o conjunto mais de quatro metros de altura. Feito em mármore branco, consta ter sido executado por notável escultor italiano (SILVA, 1933), sem que o nome fosse declarado. Na mudança do monumento para o largo da Vitória, a base foi modificada e desapareceu o gradil que o protegia.

Outros personagens tiveram uma herma como homenagem. A herma do General Pedro Labatut13 foi inaugurada em comemoração ao centenário da Independência da Bahia, no dia 2 de Julho de 1923. Encarregou-se de sua execução a mesma Comissão de comemorações do Centenário e foi colocada na praça Coronel Araponga, antigo Largo da Lapinha.

Trata-se de monumento muito simples composto de pedestal de granito, encimado pelo busto do general Labatut, em bronze, obra do escultor italiano da moda, e de quase todos os monumentos soteropolitanos do período, Pasquale de Chirico. Uma placa de bronze o oferecia Aos heróes da Independência. A Bahia Agradecida, além de inscrição em gratidão ao General.

A herma14 em memória do médico Conselheiro José Luiz de Almeida Couto15 foi feita em gratidão pelos serviços que também prestou, especialmente no período da epidemia de colera morbus, nos meados do século XIX. Também teve intensa atividade política. Foi o último Presidente da Província, antes da proclamação da República, e primeiro Intendente, eleito em 1892.

Iniciou-se a obra na praça que levou seu nome, – Praça Conselheiro Almeida Couto –, antigo Largo de Nazareth, realizando-se o pedestal de már-

arte e cidades 2ed.indd 269 04/11/15 18:07

270

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

more que ficou pronto em 1911. O busto, fundido nas oficinas de Wilson & Cia, na Bahia, foi considerado imperfeito, razão porque a obra permaneceu abandonada por muito tempo.

Só as festas de comemoração do Centenário da Independência da Bahia fizeram reavivar a homenagem. Foi o Intendente Epaminondas Torres que concluiu o trabalho, encarregando a tarefa ao ex-Intendente, Júlio de Viveiros Brandão. O pedestal já estava arruinado. Foi recomposto com granito artificial, dando-lhe estylo mais moderno e, por falta de tempo, colocaram o mesmo bus-to que fora recusado anteriormente. Foi inaugurado no dia 3 de julho de 1923.

Com as obras de aformoseamento da praça, em 1925, a herma foi transferida para outro lugar, num canto do mesmo jardim, em frente da Igreja Matriz de Nazareth e ali permanece de forma inexpressiva.

Comemorando o primeiro centenário de nascimento do Dr. Abílio César Borges,16 o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia realizou homenagem a esse personagem que havia se dedicado à instrução popular.

Com o auxílio do Governo do Estado, o Instituto Histórico, em Setembro de 1924, inaugurou os bustos do educador em dois importantes estabelecimen-tos de ensino, a Escola Normal e o Ginásio da Bahia, homenageando-o como reformador das instituições escolares da Bahia. (SILVA, 1993)

A direção da construção dos bustos das hermas foi dada ao escultor já citado, Pasquale de Chirico, que os confeccionou, ambos de bronze, fundidos em São Paulo, com o mesmo molde, diferindo somente no pedestal. A primeira herma foi colocada em frente da porta principal da Escola Normal, sobre um pedestal de granito veneziano simples. A segunda foi instalada na praça do Ginásio da Bahia, sobre um pedestal de alvenaria, um pouco mais alto. Datam de 1924, mas foram inaugurados no ano seguinte. Em novembro de 1932 foi inaugurado, em frente ao mesmo Ginásio da Bahia, uma outra herma de outro educador baiano, Ernesto Carneiro Ribeiro, ambos inexistentes na atualidade.

O Dr. Júlio David17 teve grande popularidade na região de Itapagipe, onde os moradores levantaram uma modesta herma no largo da Igreja do Rosário (IDEM, p. 142-143, p. 275, nota 31.), em homenagem ao médico dos pobres, sob a presidência do engenheiro naval, almirante Cleto Japi-Assú e subscrição popular.18 Foi inaugurada a 21 de fevereiro de 1926 e a herma constava do busto, em bronze, sobre um pedestal de granito. Sua construção foi confiada ao escultor italiano Pasquale de Chirico, mais uma vez. O mesmo escultor fez o seu mausoléu, em mármore branco, no Cemitério do Campo Santo.

arte e cidades 2ed.indd 270 04/11/15 18:07

271

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

Quase inteiramente de cunho particular é o monumento à memória do Conde de Pereira Marinho.19 (SILVA, 1933; A BAHIA..., p. 272) Feito em mármore, está em frente ao edifício do Hospital de Santa Isabel, no largo de Nazareth. Foi levantado em homenagem à caridade do Conde Pereira Mari-nho,20 cuja representação em vulto é acompanhada por duas crianças expostas (o Hospital é da Santa Casa) que lhe oferecem flores. O Conde tem na mão esquerda a planta do novo edifício do Hospital.21

O monumento, que mede 4.75m, foi levantado por resolução de 26 de abril de 1887, sendo inaugurado a 30 de julho de 1893, no mesmo dia da inau-guração do novo Hospital. Por ser de grande porte e com finalidade específica, ligada ao Hospital, não foi removido do lugar.

Da mesma natureza particular é o monumento a Luís Tarquínio. (SILVA, 1933, A BAHIA..., 1923) Estava na praça da Vila Operária Luís Tarquínio, na Boa Viagem, em homenagem ao benemérito industrial baiano, fundador do Empório Industrial do Norte, instalado a 14 de Março de 1891. Esse modelar estabelecimento de fiação ocupava uma área de 23.100m2 e proporcionava trabalho a 1.500 pessoas, de ambos os sexos, com mais de 1.300 teares. A Vila Operária contava com 258 casas, escolas com aulas diurnas e noturnas, com cinco professores, armazém, açougue, jardim.22

O monumento foi colocado no citado jardim. Foram os acionistas da empresa que erigiram, em 1898, o monumento ao criador da vila. O monu-mento representava o industrial, em tamanho natural, em pé, com um rolo de papel na mão direita. Estava sobre um pedestal.

Por causa de seu tamanho, também continua no mesmo local o Monu-mento ao Dois de Julho. (SILVA, 1933) Foi construído na praça Dois de Julho, depois Duque de Caxias, mas que ainda é conhecida pelo nome primitivo de Campo Grande. O monumento foi feito para comemorar a entrada do exér-cito Pacificador na Cidade do Salvador, em 2 de Julho de 1823, data em que se comemora a Independência do Brasil, na Bahia, festejada civicamente até o presente.

A primeira pedra fundamental23 foi colocada no Campo da Pólvora, ou Campo dos Mártires, a 3 de julho de 1881. Ficou sem efeito por mais de dez anos. A direção dos festejos resolveu, a 2 de julho de 1892, mudar de local, colocando, a 5 de julho desse ano, outra pedra fundamental do monumento, no Campo Grande, onde se encontra até hoje.24

arte e cidades 2ed.indd 271 04/11/15 18:07

272

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A construção foi promovida por uma comissão especialmente formada para esse fim. O engenheiro Alexandre Freire Maia Bittencourt, responsável pelas Obras Públicas do Governo e pela fiscalização da construção do monu-mento, fez um folheto descritivo,25 distribuído no dia da inauguração, que dava notícias históricas mais precisas.

A descrição acusa a presença da coluna de bronze, de ordem coríntia, com onze metros e quarenta e seis centímetros, assentada sobre pedestal de mármore de Carrara, composto de dois corpos, sobrepostos um ao outro. Apoia-se num plano de onde partem escadarias para os quatro lados, do mesmo mármore, formadas por sete degraus.

Encimando a coluna está a figura de um índio, com quatro metros e onze centímetros de altura, armado de arco e flecha, simbolizando o Brasil e ameaçando golpear a serpente, representando o governo da antiga Metrópole. Tem várias inscrições alusivas. Em um dos lados está uma estátua com cabelos soltos, coroa de louro, figura Catarina Paraguassu, tendo numa das mãos uma arma, em posição de defesa e, na outra, um escudo em que estão gravadas as palavras: Independência ou Morte. Dos outros dois lados estão duas estátuas encostadas, de formas colossais, representando os dois principais rios da Bahia: o São Francisco e o Paraguassu. É fechado por um gradil de ferro fundido, decorado com folhagem e escudos, nos quais figuram, em baixo relevo, as armas da República e da Cidade. Tem 25,86m de altura e é um monumento complexo devido à presença de várias outras alegorias.

A Manoel Vitorino Pereira, Secretário da Comissão Executiva, coube grande parte do delineamento do projeto que foi executado pelo escultor, co-mendador Carlos Nicoli, Vice-cônsul brasileiro em Carrara. Foi todo feito na Itália.26 A montagem realizada, por contrato, foi feita pelo engenheiro Antonio Augusto Machado, fiscalizada pelo engenheiro Dr. Alexandre Freire Maia Bittencourt, tendo como auxiliar o artista Thomaz Pereira Palma.

Outro monumento, que não foi movido, nem do local, nem de posição por causa de seu porte, foi o dedicado ao Barão do Rio Branco.27 Está no anti-go largo de São Pedro, depois chamado Praça João Pessoa, mas o local é mais conhecido como Relógio de São Pedro. É um dos monumentos que foi mais rapidamente acabado. A pedra fundamental foi colocada em 7 de Janeiro de 1915 e o monumento foi inaugurado a 7 de Setembro de 1919.28

Foi construído sob o impacto da comoção provocada por sua morte em 1912. Logo no ano seguinte, promoveu-se a concorrência para sua construção.

arte e cidades 2ed.indd 272 04/11/15 18:07

273

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

Foram apresentadas várias propostas, acompanhadas de maquetes, entre as quais as do Professor E. Franzim, este representado por João Mercuri, Roque Mingo, William Zodig e Pasquale de Chirico. As propostas foram encaminhadas ao estudo de uma comissão composta por cavalheiros competentes (BARÃO, 1913, p. 1): Teodoro Sampaio, Otávio Mangabeira, Evandro Pinho, comandante Frederico Villar e o professor Lopes Rodrigues.

A elevação do monumento, de bronze com platina moderna, construído o pedestal com blocos de granito róseo de Santa Luzia, no interior do Estado, se deveu à iniciativa da Associação dos Empregados no Comércio e doações públicas, feitas através de listas de doações livres, e em conferências e distribui-ção de postais com a imagem do Barão etc., além da contribuição do Estado.29

É obra do escultor italiano Pasquale de Chirico representando Rio Bran-co, de pé sobre um pedestal em alto relevo, em bronze, e figuras em tamanho natural, alegoria simbolizando a paz. Segundo Antônio Celestino da Silva (1933), era a própria imagem do Brasil moderno, tendo um friso figurativo, onde constam os nomes das regiões que tiveram a ação direta do homenageado: Missões, Amapá, Acre, Lagoa-Mirim. É um monumento de 7,20m de altura.

Os monumentos que mais sofreram mutilações, mudanças, descaracte-rizações foram aqueles conjugados aos chafarizes, especialmente porque, com o tempo e melhoramentos tecnológicos, tornaram-se desnecessários.

Entre os 21 chafarizes que embelezavam a Cidade, destacavam-se alguns, verdadeiras obras de arte, dos quais o da Praça 15 de Novembro, ou Terreiro de Jesus, era um dos mais suntuosos. Figurou na Exposição Universal de Paris. É um chafariz de origem inglesa (1855), feito sob encomenda de Francisco Antônio Pereira da Rocha e Companhia de Águas do Queimado, todo em ferro fundido.

Num exemplar desses chafarizes aparece a estátua do Salvador. (SILVA, 1933) Essa estátua está no meio do largo, defronte da Basílica do Senhor do Bomfim. É sustentada por um chafariz de mármore branco de Carrara, elaborado na Itália. A colocação desse chafariz, em 1865, se deveu a José Eduardo Freire de Carvalho que, por muito tempo, foi tesoureiro da Irmandade do Senhor do Bomfim. Além de recursos da Irmandade, foi feito com o produto de loterias, esmolas e o auxílio da antiga Companhia do Queimado.30

O pedestal forma uma coluna com quatro cabeças de anjos de cujas bo-cas jorra água. Tem duas ordens de bacias em forma de conchas, de tamanhos diferentes, nas quais cai a água, escorrendo para o tanque inferior. Era cercado

arte e cidades 2ed.indd 273 04/11/15 18:07

274

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

por colunas de ferro arrematadas por lampião, unindo um gradil de ferro.31 Sua montagem foi dirigida pelo empregado da Companhia do Queimado, o por-tuguês João Antônio da Silva Oliveira. Foi essa Companhia que se encarregou da elaboração do monumento, feito em Gênova, e o ofereceu ao Senhor do Bomfim, incluindo o encanamento, a partir da porta de Rafael Ariani até a descida do adro da igreja, ficando a Companhia com o direito de puxar as penas de água necessárias para o abastecimento dos moradores dos arredores.

A Companhia do Queimado foi responsável por outros chafarizes, como o da praça Castro Alves (SILVA, 1933) e da praça 13 de Maio32 que eram de mármore branco, de Carrara, e vistos como obras de arte. O monumento a Castro Alves substituiu o chafariz no Largo do Teatro. Este era encimado por uma estátua que, por tradição, se dizia que era Pedro Álvares Cabral, tendo seu nome gravado na base.

Foi instalado no mesmo período que os demais chafarizes, entre 1853-1856, e serviu, por muito tempo ao público, até que o Intendente, Antônio Pacheco Mendes, mandou cortar os degraus de mármore que o cercavam e, mais tarde, todo o gradil de ferro, fazendo virar a estátua para o lado da terra, depois de ela estar voltada para o mar por cerca de cinquenta anos.

A representação do personagem histórico foi, por longo tempo, discutida porque sempre permaneceu a dúvida entre a representação de Pedro Álvares Cabral ou Cristóvão Colombo. (ALLIONI, 1923) Argumentava-se que a figura principal do chafariz não tinha a barba e nem os cabelos como, tradicionalmente, se representa no descobridor do Brasil. Para alguns essa estátua não passava da cópia daquela existente em Gênova do descobridor da América.33

O chafariz foi desmontado em 1920 e deveria ir para o jardim da Praça da Inglaterra, no bairro das Nações, na zona ganha ao mar. Mas o jardim só ficou pronto em 1927. A essa altura o jornal A Tarde já reconhecia a figura de Colombo no antigo chafariz, mas ironicamente fazia referência à velha discus-são. “É ela uma homenagem ao descobridor do Brasil? Pedro Álvares Cabral ou Colombo? Ou ainda Américo Vespuccio, como querem outros investigadores do passado”. Esse monumento demorou a tomar seu lugar no novo logradouro, porque uma de suas mãos tinha desaparecido, pois a estátua andara por muito tempo à matroca. (DESCOBERTA..., 1927, p. 1) Querem alguns que ela tenha estado, por um tempo, numa fonte em Água de Meninos.

Dali, em data ainda não verificada, foi para a rótula, na desaparecida Praça dos Reis Católicos, no entroncamento entre a Avenida Centenário e o

arte e cidades 2ed.indd 274 04/11/15 18:07

275

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

Vale do Canela. Com a reurbanização dessa praça, para a criação das ligações das avenidas de vale, nos inícios dos anos de 1970, foi transferido, já sem a característica de chafariz, para a Mariquita, no Rio Vermelho, e já não era mais Pedro Álvares Cabral, mas Cristóvão Colombo, da mesma forma como fora para a Praça dos Reis Católicos.

O chafariz da Praça 13 de Maio, ou Jardim da Piedade, em 1931, foi substituído por uma fonte luminosa, importada da França.34 O chafariz-mo-numento antigo foi para a Praça Duque de Caxias, Campo Grande, e depois se mudou para o espaço nos Aflitos, em frente ao Quartel da Polícia Militar. Este expressava uma homenagem ao 2 de Julho, num pequeno monumento simbólico. O chafariz tem como figura principal o caboclo, abatendo a hidra da tirania portuguesa com a flecha. Segundo a lápide, foi uma homenagem da Companhia do Queimado aos heróis do 2 de Julho.

Com a remodelação do bairro comercial e avanço sobre o mar, vários logradouros foram criados no novo espaço. Um deles levou o nome do Vis-conde de Cairu (Bahia/1758-1835),35 e estava situado nos terrenos do antigo Arsenal da Marinha, em frente à entrada inferior do Elevador Lacerda. A 2 de Julho de 1923, foi lançada a pedra fundamental, em homenagem ao inspirador da Carta Régia que abriu os portos em 1808.

Desde 1837, sob a Lei nº 56, de 24 de abril, o Governo autorizou à Pro-víncia da Bahia mandar levantar, numa das praças públicas da Capital, uma estátua em bronze, do Visconde de Cairu. Não vingaria essa ideia, e só depois de 86 anos, como disse Silva, “ao calor das festas commemorativas do primeiro centenário do 2 de Julho”, agitou-se novamente a Bahia para concretizar a ere-ção do monumento. Este foi feito por concorrência pública, que correu não só na Bahia, mas também no Rio de Janeiro e São Paulo, por quatro meses, com três prêmios.36 Foram apresentados nove projetos e acabou-se escolhendo, mais uma vez, o de Pasquale de Chirico.37 A Lei Estadual nº 1831, de 7 de agosto de 1925, autorizou a elevação desse monumento. Foi inaugurado em 1932.

O monumento, em granito e bronze, tem a figura de Cairu, dominan-do o conjunto ladeada por grupos que representam a abertura dos portos, o comércio, indústria, arte e civilização. À frente, pisando a quilha de um navio de pedra, está uma mulher, simbolizando a liberdade. Foi, em grande parte, feito na Itália, pois, como dizia de Chirico, não queria sofrer como acontecera com a construção do monumento de Castro Alves.

arte e cidades 2ed.indd 275 04/11/15 18:07

276

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Além do espaço urbano dos vivos, os monumentos ocuparam o espaço dos mortos. Foram para dentro dos cemitérios. É o caso daquele construído em memória dos mortos de Canudos (SILVA, 1933), promovido pelo Comi-tê Patriótico da Bahia,38 por meio de subscrições, concertos, quermesses etc. O Comitê deu amparo àqueles que voltaram da guerra vivos, sãos ou feridos, vestindo os soldados que chegavam nus, abrigando suas famílias, alocando, especialmente os inúmeros órfãos, nas casas pias de educação, além de erigir um monumento modesto aos mortos.

O monumento foi inaugurado, a 2 de fevereiro de 1900, no cemitério do Campo Santo. É de granito negro, polido em todas as quatro faces, tendo três metros de altura, excluindo o alicerce e a base. É em forma de pirâmide, destacando-se pela simplicidade. Na face principal tem um escudo de bronze, ornamentado com palma, com a inscrição dedicada aos mártires de Canudos. Foi feito em Hamburgo nas oficinas de Xavier Arnold.

De todos os monumentos da Cidade de Salvador, a estátua da Liberdade (SILVA, 1933) tem a história mais curiosa. O bacharel Aarão Alves Carneiro organizou uma Comissão para melhorar o antigo largo da Soledade. Teve a participação do pintor Miranda e foi restaurada, por volta de 1910, pelo Coro-nel Bemvenuto Alves Carneiro, como uma homenagem à entrada do Exército Pacificador na Bahia, a 2 de julho de 1823.

Diz a história que, nesse local, o exército recebeu as homenagens das Irmãs Ursulinas, do Convento da Soledade, como sempre se fizera aos heróis, ato que passou a se repetir posteriormente.39

Em homenagem ao acontecimento, buscou-se colocar, na praça remo-delada, a estátua da Liberdade, como uma forma da gratidão pública. Foram os moradores do distrito de Santo Antônio Além do Carmo que tomaram a iniciativa, com o auxílio dos poderes públicos, tendo uma Comissão responsá-vel.40 Promoveram quermesses, espetáculos e subscrições para levantar fundos para levar a efeito o monumento projetado.41

Iniciada em 1919, a estátua foi inaugurada a 2 de Julho de 1920. (FES-TAS..., 1920, p. 2) A estátua era de bronze, com o pedestal de mármore, tendo nas quatro faces, em forma de livro, as inscrições condizentes com o 2 de Julho.

É interessante verificar que essa estátua tinha vindo da Itália, junto com uma série de outras esculturas e escadarias de mármore, encomendadas pelo Intendente Municipal, Júlio Viveiros Brandão, para ornamentar a Cidade. Como não havia uma escultura específica, representando a Liberdade, os mo-

arte e cidades 2ed.indd 276 04/11/15 18:07

277

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

radores se apossaram de uma estátua de Ceres, a deusa da agricultura, trocaram os símbolos e atributos e a transformaram em estátua da Liberdade.

Um articulista do jornal A Tarde (UMA MARTELADA, 1920, p. 1) en-trevistou a escultura, caricaturizando, num monólogo, a “deusa da Agricultura transformada em deusa da Liberdade”

Dizia a reportagem:

Minutos de inquérito com a mutiladaDeixe-me falar sobre o passado.[...] Eu fui fundida na Europa. Minha arvore genealógica perde-se na noite dos tempos, ou antes encontra-se no Olympo, no reino dos Deuses da Bella Hellade.Eu sou a Deusa Ceres, filha de Saturno e Cybele.Fui, não sou mais.Um governador desta cidade encantadora um que o ódio popular persegue, mandou-me buscar lá no velho Mundo, bem como as muitas outras companheiras minhas.Dellas, o fim não sei.Parece-me que a Casa Fadigas comprou-as todas, a ellas, coitadinhas, que tinham vindo para embellezar a cidade.Hoje, ao que me consta descansam num trapiche.Imagine, o que seria de mim, eu Ceres, a deusa da Agricultura atirada a um trapiche! Felizmente escapei. Os moradores de Santo Antônio precisavam de uma estatua de liberdade para commemorar a data cívica. Não havia dinheiro. E sabe o que fizeram? Muito simples. Tiraram-me a foice e o sacco de trigo symbolicos das mãos e collocaram uma lâmpada! E eis-me transformada em Liberdade! Foi rápida a operação como vés. [...]Digas somente ao dr. Bernardino de Souza que me tire este pedestal de rebôco que é exquisito de mais [...]

Entre os monumentos civis, a Cidade foi presenteada com uma outra Estátua do Cristo. (SILVA, 1933) Simbolizando amor e paz, esse monumento encontra-se na Avenida Oceânica. Foi assentado no Morro do Ipiranga, por Resolução municipal nº 467, de 7 de Dezembro de 1920, que passou a se denominar Monte de Jesus. Com a urbanização da região, mudou-se para a pequena reentrância, junto à praia, nos anos 1970.

Esse monumento, com 8 metros de altura, foi oferecido pelo Desem-bargador José Botelho Benjamin42 à Cidade do Salvador da Bahia. É feito num

arte e cidades 2ed.indd 277 04/11/15 18:07

278

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

bloco inteiriço de mármore e estava colocado sobre um pedestal de pedras toscas, medindo, só o Cristo, 2,20m, sendo trabalho de artista italiano. Feita em mármore fino, foi executada pela casa estatuária M. Luize & C. de Pietro Santa, em Gênova, segundo modelo de uma pintura que existia no Tribunal de Justiça, trabalho de Dulce Benjamin Tourinho, filha do Desembargador.

A Estátua de Jesus – O Salvador foi inaugurada a 24 de Dezembro de 1920. A inauguração desse Cristo acelerou o término da Avenida Oceânica que, de tanto tempo que se estava construindo, já era chamada de obra de Santa Engrácia.

Nenhum personagem baiano, entretanto, foi mais festejado que Cas-tro Alves (Muritiba/1847-Salvador/1871). (SILVA, 1933; ALLIONI, 1923) Passados muitos anos do falecimento do venerado poeta, todos reclamavam, especialmente seus parentes, um mausoléu para Castro Alves. Em 1896, o Dr. Augusto Alves Guimarães, cunhado de Castro Alves, promoveu uma reunião no Diário da Bahia, organizando uma comissão43 para levantar fundos, espe-cialmente donativos, concertos, subscrições populares,44 para construir um monumento digno do poeta. Mas, em 1908, projetava-se, outra vez, a cons-trução do monumento ao poeta (ESTÁTUA..., 1908), que só teria lugar nos finais da década seguinte.

Removido o chafariz de Pedro Álvares Cabral, teve início, no seu lugar, a execução das obras do monumento ao poeta, em 1920, seguindo o projeto feito em maquete de gesso. O monumento foi, depois de concorrência, entregue ao escultor italiano Pasquale de Chirico.45 Esse monumento encontra-se no antigo largo do Teatro, hoje praça Castro Alves, assim denominada por ocasião da celebração do decenário da morte do poeta, em 1881.46

Os grupos laterais, ornamentos da coluna e base foram fundidos em Nápoles, na Itália. A estátua de Castro Alves, em bronze, foi fundida em São Paulo, chegando à Bahia, em dezembro de 1922, nos porões do paquete Jagua-ripe. O conjunto, à frente do monumento, representa Lucas e Maria, baseado nas estrofes da Cachoeira de Paulo Afonso. O pedestal foi feito com granito, vindo de Santa Luzia, na Bahia. O monumento foi inaugurado a 6 de julho de 1923. Mede 10,74m de altura.

Parece que o resultado final não agradou a todo mundo. Celestino Silva (1933, p. 126) dizia que:

arte e cidades 2ed.indd 278 04/11/15 18:07

279

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

falta-lhe, ao nosso ver, o esplendor deslumbrante do marmore, essa riqueza de ornamentação em que o bello se manifesta com maestria e grandeza de concepção, que fale ao coração e ao espirito, suprema condição do seu ideal, attendendo á cultura de uma epoca e á veneração respeitosa da posteridade agradecida ao estro primoroso do cantor da Hebrea (SILVA, 1933, p. 126)

Muito embora, ao que dizem, foi inspirado nas Espumas flutuantes.Muitos projetos foram frustrados e não passaram das intenções ou da

pedra fundamental. É o caso do monumento a D. Pedro I. (SILVA, 1933) A 16 de novembro de 1859 foi lançada, no Campo Grande, a primeira pedra para a execução de um monumento a D. Pedro I, iniciativa da Sociedade 24 de Setembro.47 A essa cerimônia esteve presente D. Pedro II.

O monumento não foi levado a efeito e, por ocasião das escavações, em 1892, para o lançamento dos alicerces do Monumento do Dois de Julho, foi en-contrada essa pedra fundamental, acompanhada com placa de prata com inscrição alusiva. Como era costume, sobre a pedra foram colocadas moedas de ouro e de prata. Tanto essas moedas, quanto o quantitativo levantado pela Sociedade 24 de Setembro, foram dadas à Comissão do novo monumento, por Thomaz Pereira Palma, encarregado das obras, com o testemunho de várias pessoas, que assistiram as escavações. A lâmina foi encaminhada para o Museu do Estado.

Da mesma forma, no dia 1o de Maio de 1900, no meio da antiga Praça de Palácio, Praça Municipal ou Rio Branco, foi colocada a primeira pedra do monumento que a Bahia, por iniciativa da colônia portuguesa, deveria erigir ao navegante português Pedro Álvares Cabral. (SILVA, 1933) O escultor fran-cês, Joseph Gabriel Sentis, chegou a realizar uma maquete, que foi premiada com 5:000$000rs, pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que acabou, também, por não ser levantado.

Vinte anos depois ainda se discutia sobre esse monumento. Em reunião na Associação Comercial agruparam-se pessoas da colônia portuguesa para erguer, em uma das praças centrais da Cidade, um monumento comemorativo ao descobrimento do Brasil. Constituía-se, então, em 1920, uma grande co-missão, presidida pelo Comendador Francisco Rodrigues Pedreira, mas dizia o articulista do jornal A Tarde que “A Bahia ainda está longe de ser uma cidade na qual os monumentos venham completar e embellesar as perspectivas urbanas”

arte e cidades 2ed.indd 279 04/11/15 18:07

280

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

(A TARDE, 1920, p. 1), dizendo que seria preferível que se construísse um edifício com fim social ou humanitário.

Também ficaram no projeto outros monumentos de maior ou menor porte. Por ocasião das comemorações, em 1901, do 4o Centenário do Des-cobrimento do Brasil, foi lançada, na praça D. Isabel, a pedra fundamental para a ereção do monumento a Jesus Redentor, sendo colocada uma lápide de mármore, em frente da antiga Sé. A Sé foi demolida em 1933 e o monumento ainda não tinha sido erguido. E nem o seria.

Do mesmo modo, em 2 de Julho de 1908, foi colocada a pedra fundamen-tal para outro monumento ao 2 de Julho, a Praça Barão do Triunfo, antigo largo de Santo Antônio Além do Carmo. Outra pedra que ficou sem o monumento.

Se D. Pedro I não teve a homenagem de um monumento, um outro seria levantado para D. Pedro II. (SILVA, 1933) A pedra fundamental para a cons-trução do monumento lançou-se a 2 de dezembro de 1925, data do aniversário daquele Imperador, na então chamada Praça D. Pedro II, antigo Campo dos Mártires48 ou Campo da Pólvora. Foi inaugurada a 7 de setembro de 1937 e foi removida, para construção do Fórum Ruy Barbosa, pelos anos 1950, para o Largo de Nazaré onde se encontra hoje.49

Nessa galeria de homenageados, é interessante verificar que um dos maiores personagens da Bahia, Ruy Barbosa (SILVA, 1933), não tem seu mo-numento. Tentou-se. Em 16 de novembro de 1925, a Secretaria da Agricultura publicou edital, por seis meses, abrindo concorrência pública, oferecendo prêmio em moeda corrente do período,50 nomeando-se comissão para executar o trabalho.51 A pedra fundamental foi lançada na Praça Rio Branco, ou Praça Municipal, na mesma em que se lançara a de Pedro Álvares Cabral, e nunca se construiu. Mais tarde, em 1933, por iniciativa da Associação Bahiana de Imprensa, formou-se outra comissão para executar outra obra, mas também não teve resultados. Ruy Barbosa, porém, recebeu o maior dos monumentos: o Fórum que possui um insignificante busto do notável baiano.

Em 1949, cogitou-se homenagear Manuel da Nóbrega e José de An-chieta, homenagem que acabou sendo abortada por falta de lugar na cidade. Nem mesmo o monumento a Manuel Querino, que já tinha espaço certo, na praça que levava seu nome em Brotas, foi levado a efeito, entre talvez muitos outros ainda não identificados. (A TARDE, 24 jan.1949)

Todos esses monumentos, sem exceção, foram levantados por vontade pública. A população, tendo à frente membros eminentes da sociedade, não só

arte e cidades 2ed.indd 280 04/11/15 18:07

281

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

formavam comissões, para dirigir a tarefa de recolher fundos, quanto acom-panhavam a concorrência e execução da obra.

Sem dinheiro, desde o período do Império, o Governo sempre usou do expediente de usar esses homens importantes da sociedade para encabeçar as co-missões, não só para erigir monumentos, como também presidir todas as reformas urbanas da cidade. O Governo Estadual e a Intendência Municipal faziam suas doações, entretanto, era a população que arcava com a maior parte dos gastos.

Um dos monumentos que foi edificado com rapidez homenageava J. J. Seabra, por ocasião das comemorações do 4º Centenário da fundação da Cidade do Salvador, em 1949. Situado na Praça da Inglaterra, desde seus princípios, homenageava o Governador que modernizou a Cidade e que muitos historia-dores classificam essa obra de urbanismo demolidor (??!!).52

Todos os monumentos levaram anos até serem concretizados. Do lançamento da pedra fundamental, ou mesmo da primeira ideia de levantar os monumentos, decorriam anos antes que os mesmos fossem inaugurados. E quando se efetivavam... Muitos tiveram suas pedras fundamentais lançadas e nunca se tornaram visíveis ao público, como se viu.

Mesmo no auge do espírito nacionalista, um crítico da Cidade, Carlo d’Alba (1923, p. 1) mostrava como os baianos cuidavam dos monumentos. Em junho de 1923, publicava uma crônica que mostrava bem, sob o impacto das comemorações do Primeiro Centenário da Independência, o destino dos monumentos. Dizia ele:

AGONIA DAS ESTATUAS! [...] esquisita expressão [...] e no entanto, nada mais objectivamente verdadeiro! [...]Suggeriu-me estas linhas aquella attitude de desespero e aquelle estado revolto dos cabellos do grande vate de Curralinho (Castro Alves), alli assim no ruinoso desvão, que por milagre escapou do incendio do Theatro de S. João! Fala por mim, por estas linhas, muito melhor, aquella mão espalmada, apontando-nos o abysmo, onde para sempre se sepultaram tão bellas tradições bahianas! A sorte das nossas estatuas é esta, começarem a soffrer, mal começam a ser idealisadas, sejam moldadas no bronze ou plasmadas no marmore, estátuas que sejam, terão o seu martyrologio, a sua historia accidentada atravez dos annos...Castro Alves, depois de ingentes pelejas, atravéz meio século de tentativas, surge no bronze magistral de Del Chirico e quando alli no escuro do casarâo aguardava as figurinhas italianas (a que elle tanto

arte e cidades 2ed.indd 281 04/11/15 18:07

282

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

amou) (Lucas e Maria de Paulo Afonso), eis que lhe dão duchas de fogo e agua; e o vate condoreiro mão sempre espalmada, está como a dizer:Senhor Deus dos desgraçados, / Dizei-me vós, senhor Deus [...] / Se é mentira ou se é verdade, / Tanto horror perante os céus? [...]O poeta pergunta, já se vê, por nimia gentileza, pois é verdade e muito verdade que, em se tratando, de estatuas, há sempre muito que ver e lamentar em nossa cara terra.Passemos um olhar por essas praças e ruas de nossa Urbis, reparemos que, emquanto os velhos casarões das Pedreiras, Areal, Sé e mesmo em trechos centraes da Avenida Sete de Setembro, desafiam o gosto esthetico dos nossos governos, as estatuas, essas pobres victimas, luctam contra a alavanca demolidora, luctam contra as patriotadas dos pumivivos, luctam ainda contra o ‘travesti’ imposto pelos artistas de meia tigélla, luctam contra os amantes do transformismo e da inconstancia, luctam e reluctam por todo o sempre e só não luctariam se de uma feita entendessem de as fazer emigrar desta cidade! [...]Certo dia, com pompas e foguetórios, a memoria do Dr. Rodrigues Lima mereceu uma herma artistica e, por varias razões fluentes de oratoria, o lugar adequado seria a Praça da Acclamação, e alli a puzeram; a eterna birra, porém, em pouco tempo arrancou, da noite para o dia com a herma espetando-a no largo da Victoria, ou seja a dois kilometros mais distante [...] Calculemos se em vez de uma herma a estatua tivesse braços e pernas, onde estaria hoje? [...]Aquela outra herma do Dr Paterson, alli no jardim da Graça, descançando sob vetusto zimborio, teve um dia o seu supplicio, assim foi que sem mais aquella, desmancharam-lhe a egrejinha e o saudoso esculapio foi ao barro! Não sei porque felicidade, tempos depois o fizeram voltar ao ponto primitivo, agora, sobre um canteirinho de grama, mas para não ficar como estava, mudaram-lhe a posição! O Dr. Paterson olha agora para o lado a que antigamente voltava as costas. E como os canteirinhos não têm trato, a herva cresce e o dr. Paterson lembra assim um estudioso professor de botanica que errasse pelas florestas...O obelisco de D. João VI, o tal que commemorava ao mesmo tempo a abertura dos portos e a abertura [...] do chambre do serenissimo Monarcha, tambem mudou um dia de lugar [...] cançado de olhar para as mangueiras do passeio Publico (de saudosa memoria), está agora olhando para a Avenida Sete de Setembro, no ‘futuroso’ parque da Acclamação.

E questionava:

arte e cidades 2ed.indd 282 04/11/15 18:07

283

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

“Em 2.022 onde estará o obelisco?” Continuando:

Aquella estatua do largo do Theatro, a estatua ‘fregolina’, que representa a um tempo e conforme maior ou menor erudição dos nossos historiographos, – Pedro Alvares, Colombo, Vespucio e até Castro Alves, mas que na realidade é copia de uma estatua de Christovam Colombo, existente em Genova e para aqui trazida pela inauguração do serviço d’agua, pelo Dr. Rocha (o da borracha), tambem teve o seu martyrologio [...]Há tempos foi apeada do fuste oitavado e ficou enforcada (triste sorte) em uma tripeça de caibros, a olhar os seus despojos. Depois foi novamente empossada e não será de duvidar que pelo remorso dos seus algozes. Por acto talvez de reparação, cercaram-na com canteirinhos de capim. Mas ultimamente, (estava escripto), a estatua tornou a descer; – Castro Alves desgostoso com a peça que lhe pregava o Kursaal, (hoje Theartro Guarany), intimou ‘judicialmente’ a retirada de Colombo e o senhor mareante desceu e... desceu mesmo!Não ficou ahi o penar do sabio genovez... pois um Intendente de Porto Seguro descobrindo rasões sobejas na historia do seu municipio, (mesmo porque conhecer historias das intendencias não era somente privilegio do coronel Manuel Duarte, exigira a extradição de Colombo para aquella cidade! O Coronel Duarte, em defeza do martyr, teve de mystificar a sua identidade e só assim escapou o infeliz Colombo de continuar, depois de morto, o ról de suas desventuras! E por via das duvidas, o mesmo coronel Duarte abriu a cortina de uma eterna arapúca de Agua de Meninos e botou Colombo por lá[...]Com as estatuas da Praça Rio Branco53 tem sido um Deus nos acuda!... retiradas dos pilares para darem lugar ao Palacio da Biblioteca. Voaram [...] e não se sabe para onde [...] O intendente botou edital, tocou reunir, suppondo-as lá pela Sé [...] mas nada, e só a muito custo appareceu uma, graças ás pesquisas periciaes do Dr. Barros do Museu do Estado. As outras continuam sendo objecto de pergunta a premios com promessas de elogios pela gazeta para os seus descobridores.Assim, as estatuas que não se mudam azúlam, as que não azulam, se transformam e as que não se transformam perdem a sua identidade e feitio! As metamorphoses são, então impagaveis!... O marmore representando um indio no chafariz do jardim da Piedade recebeu sobre a ponta da setta um arremate com tres folhinhas verdes! [...] parecendo que está castigando a hydra ou dragão com um galhinho de coentro; do bronze artistico do lindo chafariz do Terreiro de Jesus, metteram em mãos uma arandela de ferro com uma lampada pendente

arte e cidades 2ed.indd 283 04/11/15 18:07

284

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

no centro, parecendo mais uma pastora de rancho de reis! Quanto ao monumento dos heróes de 23, no Parque Duque de Caxias, (que já hoje é Praça Dois de Julho), feito de fino bronze pintou-o a sapiencia de celebre artista italiano a oleo verde e [...] deu em seguida um viva á Republica. O monumento aos Heróes de Riachuelo, está com a sua principal figura, ao alto, ‘toda vestida’ de lampadas electricas, tirando por isso mesmo a doçura das suas linhas magnificas; e o mais segue com a mesma marcação, como bem o mais recente de todos, o da Lapinha, alli ao largo da Soledade! Quero me referir á estatua da Liberdade [...] que era Céres [...] tendo a sua braçada de trigo substituida por um facho de 50 vellas marca Edison e na cabeça, antes ao louro uma corôa de folhas de [...] Flandres! [...]E assim é o culto às estatuas, em nossa terra; deante das mutações as outras que ainda não surgiram, permanecem á sombra das pedras inauguraes, receiosas de virem a luz meridiana: Pedro I, Pedro II, Pedro Alvares, Conde dos Arcos, e outros, espiam atravéz as gretas das lápides e murmuram, indecisos: Qual será a nossa sorte???

E mesmo o Castro Alves, da Praça do Povo,54 virou de lado, pois, antes, olhava para o mar. Que importa? A Praça já não é mais do Povo!

notas

1 Trabalho apresentado no I Seminário Arte e Cidade, realizado de 23 a 26 de maio de 2006, na Faculdade de Arquitetura da UFBa.

2 Na época, chamado Parafuso da Conceição.

3 Segundo consta, algumas delas, encontram-se, hoje, no jardim do Dique do Tororó.

4 As letras originais, enquanto no Passeio Público, foram roubadas, supondo os ladrões que eram de ouro.

5 Através do Art. 109 da Constituição do Estado, e da Lei nº 104, de 4 de Outubro de 1894, o Passeio Público passou para o Município.

6 A Batalha de Riachuelo se deu a 11 de junho de 1865, durante a participação do Brasil na Guerra do Paraguai.

7 A pedra foi lançada a 27 de março de 1872 e deveria erigir-se o monumento no centro da praça Riachuelo, segundo a sua inscrição. Com essa pedra foram enterradas 3 moedas de ouro, 3 de prata e 3 de cobre, conforme o ritual.

8 Com a quantia de 40:000$000 rs.

9 A subscrição rendeu 11:147$570.

arte e cidades 2ed.indd 284 04/11/15 18:07

285

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

10 Natural de Caetité (1845-1903), era médico, esteve na Guerra do Paraguai, estudou na Europa e foi o primeiro Governador eleito, por sufrágio direto, para o período 1892-1896. (SILVA, 1933, p. 104-107)

11 Autorizado por Resolução Municipal nº 144, de 4 de janeiro de 1905.

12 Foi feito por subscrição pública e administrada por uma comissão formada por Dr. Ramiro de Azevedo, presidente (falecido e substituído por José Olímpio de Azevedo), Dr. Celso Spínola, secretário, Bernardino F. de Almeida, tesoureiro, o farmacêutico Lellis Piedade (falecido, foi substituído por Raphael Spinola), Coronel Genésio Salles, Coronel Gonçalo de Athayde, Francisco J. Fernandes.

13 Custou cerca de 30:000$000. (SILVA, 1933)

14 Autorizada pela Lei municipal nº 182, de 14 de novembro de 1895, concorrendo com 10:000$000 para o monumento. (SILVA, 1933)

15 Nascido em Pirajá, em 1833, e falecido em Salvador, em 1895.

16 Rio de Contas/1824-Rio de Janeiro/1891.

17 Nascido e falecido em Salvador (1857-1921).

18 Num total de 15:661$020. A comissão era formada, ainda, por José Pereira de Almeida, secretário, Aurélio Espinheira, 1o tesoureiro e Alberto Tourinho, 2o tesoureiro.

19 Nascido em Portugal em 1816 e falecido na Bahia em 1887.

20 Personagem de destaque na Bahia, Joaquim Eliseo Pereira Marinho tinha sido provedor da Santa Casa e como tal foi homenageado. Durante sua gestão foi construído o Hospital Santa Isabel, onde está o monumento. Fundou o Banco da Bahia, o Instituto Literário e o Ginásio Baiano. Foi Deputado Geral pela Bahia (1881-1889) e Diretor da Associação Comercial da Bahia (1870-1880). Teve o título de barão, depois de conde. Devia sua fortuna, em grande parte, ao tráfico de escravos (www.acbahia.com.br; www.jbcultura.com.br).

21 Planejado pela Santa Casa, desde 1827-1828, só foi inaugurado em 1893. O Conde Pereira Marinho, ao falecer em 1886, deixou em testamento um vultuoso legado para conclusão do Hospital.

22 Fundou, com Leopoldo José da Silva e Miguel Francisco Rodrigo de Moraes, ricos comerciantes da Bahia, a Companhia Empório Industrial do Norte, em 4/3/1891, maior e mais importante de seu setor na época, destacando-se pela modernidade e progressividade (www.desenbahia.ba.gov.br).

23 Tinha a seguinte inscrição: No Reinado de Sua Magestade o Sr. D. Pedro II e presidencia do Exmo Sr. Cons. Lustosa da Cunha Paranaguá, foi colocada pela direção dos festejos do anno de 1881, a primeira pedra, para principio da Memoria do Imortal Dois de Julho.

24 A comissão responsável despendeu a quantia de 405:188$963 rs na sua construção, sendo 105:188$963, produto de subscrições, donativos, loterias, etc. e 300:000$000 de subvenção do Governo Estadual, através de leis orçamentárias próprias.

25 É reproduzido em A Tarde, Salvador, 7 jun. 1935, p. 1.

26 O contrato de execução foi feito com a firma Pitombo Podestá H. As estátuas, colunas, foram feitas na fundição de Conversini M., de Pistoia; as águias na de G. B. Bastianelli, em

arte e cidades 2ed.indd 285 04/11/15 18:07

286

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Roma; os candelabros por Giuseppe Michelucci Figlio, em Pistóia; sendo os desenhos de Emilio A . Podestá; os mosaicos por Giuseppe Fomagnini Fratello, em Pietrasanta; as vascas por Paulo Triscórnia de Ferdinando e os mármores pela Sociedade Cooperativa entre os marmoristas de Carrara.

27 Dr. José Maria da Silva Paranhos, nascido e falecido no Rio de Janeiro (1845-1912). Destacou-se como Ministro das Relações Exteriores, especialmente nas demarcações do território do Brasil. (SILVA, 1933, A BAHIA, 1923)

28 Allioni (1923, p. 119-123) dá a data de inauguração em 13 de maio de 1919.

29 O Governador do Estado também sancionou a Resolução da Assembléia Geral Legislativa, autorizando-o a concorrer com a quantia de 10:000$000 para o monumento.

30 Companhia sob a direção de Francisco Antonio Pereira da Rocha e Bernardino Ferreira Pires, foi criada por Lei Provincial nº 451, de 17 de junho de 1752, para abastecer de água a cidade de Salvador. O contrato foi assinado a 17 de janeiro de 1853.

31 Segundo anotações das resoluções da mesa administrativa, de 1864, custou cerca de 10:000$000.

32 O Diário Oficial, em 1923, não faz menção ao monumento, nem à discussão que ele envolvia, porque estava desmontado desde 1920. (A BAHIA, 1923, p. 273)

33 Os mediadores, como Sílio Boccanera Junior, propôs fazer-se um plebicito para resolver a questão, através do Diário de Notícias, aventando ele próprio tratar-se de Américo Vespúcio. O Intendente Municipal de Porto Seguro chegou a exigir que o monumento (Colombo) fosse transferido para aquela cidade. O Coronel Manoel Duarte quis transferir a figura para o chafariz para Água de Meninos. A discussão sobre a identificação dessa escultura fez surgir registros curiosos. Inclusive o de Afonso Arinos, que chegou a chamá-la de Castro Alves em suas Impressões de Viagem, publicadas no O Correio Paulistano.

34 A fonte luminosa e a praça ganharam nova roupagem depois de 1996, incluindo uma cerca de gradil desenhada por Carybé.

35 José da Silva Lisboa, economista, jurisconsulto, escritor que escreveu o célebre Direito Mercantil, publicado em 1801. (SILVA, 1933)

36 De cinco, de três e de dois contos de réis.

37 Foi orçada em 150 contos.

38 Formado por Franz Wagner, como presidente, Lellis Piedade, secretário, e Fernando C. Koch, tesoureiro.

39 A entrada da Cidade se dava pela Liberdade, pelo caminho que fora denominada Estrada das Boiadas. A nova saída, pela Barros Reis, só foi feita em 1949.

40 A Comissão era formada por Francisco Correia de Aguiar, Reynaldo dos Reis Meirelles, Monsenhor Olimpio Pereira, coronel Bemvenuto Alves Carneiro, Coronel Odilon Alves Peixoto de Athayde, Bacharel Aarão Alves Carneiro.

41 O Estado, através da Lei nº 1.356, de 13 de agosto de 1919, contribuiu com a quantia de 5:000$000, e o Município, pela Lei nº 438, de 7 de Junho de 1920, com a de 2:000$000.

arte e cidades 2ed.indd 286 04/11/15 18:07

287

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

42 Publicou, em 1894, Breve noticia sobre o Estado da Bahia, sua geographia physica, politica, riquezas naturaes, leis principaes, esboço historico etc. Faleceu logo depois da inauguração, em 1922.

43 A comissão ficou formada pelo Dr. Augusto Alves Guimarães, jornalista (falecido em 1916), Anisio Circundes de Carvalho, João B. de Castro Rebello (falecido em 1912), Frederico Augusto da Silva Lisboa, jornalista Raymundo Bizarria, Aloysio de Carvalho e professor Francisco Torquato Bahia da Silva Araújo. A comissão final ficou constituída por Frederico Marinho de Araújo, presidente, Anísio Circundes de Carvalho, tesoureiro, historiador Braz Hermenegildo do Amaral, jornalista Xavier Marques e Aloysio de Carvalho.

44 Em 1923, incluindo os juros, somava 35:959$000rs. O Governo do Estado, através do Art. 21, da Lei n. 1373, de 29 de agosto de 1919, doou 30:000$000rs.

45 Foi contratado por 53:000$000. Além dele, o francês Joseph Gabriel Sentis, professor contratado em Paris, em 1895 para ensinar na Escola de Belas Artes, apresentou projeto, chegando a moldá-lo em gesso. Retirando-se em 1904 para a Europa, não teve seu projeto aprovado. Esse molde ficou por algum tempo com D. Adelaide de Castro Alves Guimarães e depois foi para o Museu do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

46 Por autorização da Câmara Municipal, registrada no Livro de Ata, fl. 39, de 10 de Junho de 1881.

47 O Conselho diretor da Sociedade 24 de Setembro era formada pelo conselheiro Manoel Maria do Amaral, presidente, comendador Joaquim Ignacio de Aragão Bulcão, vice-presidente, Constantino do Amaral Tavares, 1o secretário, Joaquim Antônio de Oliveira Botelho, 2o secretário, negociante José Lopes Pereira de Carvalho, tesoureiro.

48 O Conselho Municipal, por Resolução nº 729, de 30 de novembro de 1925, denominou praça D. Pedro II o Campo dos Mártires, como também deu licença à Comissão do monumento fixar as placas e levantar, na referida praça, uma estátua ao ex-Imperador.

49 Em 1949, na praça remodelada Campo da Pólvora, por ocasião da construção do Fórum Ruy Barbosa, pensava-se substituir o monumento de D. Pedro II, que seria mudado para o Largo de Nazaré, por uma lápide com os nomes dos patriotas da Revolução Pernambucana, que condenados à morte, foram ali fuzilados, em 1817. (ESTADO DA BAHIA, 5 set.1949, p. 1)

50 De 5:000$000rs, de 3:000$000 e de 2:000$000 para os três primeiros colocados.

51 Orçado em até 500:000$000rs.

52 A Comissão Executiva pro monumento ao Dr. J. J. Seabra contou com personagens importantes da intelectualidade e administração da época, como Pimenta da Cunha, Oscar Carrascosa, Anfrísia Santiago, Conceição Menezes e Gelásio Farias. (A TARDE, 8 jul. 1949, p. 4)

53 Refere-se às esculturas que ornavam a murada junto ao Elevador Lacerda que, definitivamente, desapareceram.

54 Repetindo a canção de Caetano Veloso.

arte e cidades 2ed.indd 287 04/11/15 18:07

288

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

referências

ALBA, Carlo d’. A agonia das estátuas! Diário da Bahia, Salvador, p. 1, 9 jun. 1923.

ALLIONI, José. Architectura e escultura na Bahia. In: Diario Official do Estado da Bahia, Salvador, p. 119-123 , 1923. Edição Especial do Centenário.

ALVES, Marieta. História, arte e tradição da Bahia. Salvador: Prefeitura Municipal; Departamento Cultural: Museu da Cidade, 1974. 158 p.

BAHIA de ontem e de hoje. Salvador: Diretoria do Arquivo, Divulgação e Estatística da Prefeitura do Salvador, 1953. snp.

A BAHIA e seus monumentos. Diario Official do Estado da Bahia, Salvador, p. 271-273. 1923. (Edição Especial do Centenário).

BARÃO de Rio Branco. Diário de Notícias, Salvador, p. 1. 30 jan.1913.

BOCCANERA JÚNIOR, Silio. Bahia cívica e religiosa, subsídios para a história. Bahia: A Nova Graphica, 1926. 410 p.

BOCCANERA JÚNIOR, Sílio. Bahia epigraphica e iconographica. Salvador: s.c.p., 1928. 488 p.

BOCCANERA JÚNIOR, Síllio. Bahia histórica; reminiscências do passado registo do presente. Salvador: Typ. Bahiana, 1921. 308 p.

BRESCIANI, Stella (Org.). Imagens da cidade, séculos XIX e XX. São Paulo: Marco Zero, 1993.

DESCOBERTA a mão de colombo, A Tarde, Salvador, p. 1. 13 de junho de 1927.

DIÁRIO DA BAHIA, Salvador, 1913-1915, 1920-1923.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 1913-1918.

ESTADO DA BAHIA, Salvador, 5 set. 1949, p. 1.

ESTADO DA BAHIA, Salvador, 2 dez. 1949, p. 3.

A ESTÁTUA de Castro Alves. Diário de Noticias, Salvador, p. 1, 10 jun. 1908.

AS FESTAS de 2 de julho. A Tarde, Salvador, p. 2, 3 jul.1920.

A GAZETA DO POVO. Salvador, 1913-1914.

UMA MARTELADA. A Tarde, Salvador, p. 1, 8 jul. 1920.

PEIXOTO, Afrânio. Breviário da Bahia, 3. ed. Rio de Janeiro: MEC/Conselho Federal de Cultura, 1980. 310 p.

PEIXOTO, Afrânio. Livro de horas. Rio de Janeiro: Agir, 1947. 318 p.

arte e cidades 2ed.indd 288 04/11/15 18:07

289

ma

ria

he

len

a o

ch

i fle

xor

ö

PINHEIRO, Eloisa Petti. Intervenções públicas na Freguesia da Sé em Salvador de 1850 a 1920: um estudo de modernização urbana. Salvador, 1993. (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

PREFEITURA MUNICIPAL DO SALVADOR. Monumentos da Independência. Salvador: Secretaria Municipal de Educação/Departamento de Cultura, 1973. 88 p.

PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA, Série Viação, Engenheiros, 1835-1879. Seção de Arquivo Colonial e Provincial, maço nº 4.874-1, avulsos.

PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA, Série Viação, Engenheiros. 1837-1880. Seção de Arquivo Colonial e Provincial, maço nº 4.875, avulsos.

PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA, Série Viação, Engenheiros. 1857-1889. Seção de Arquivo Colonial e Provincial, maço nº 4.877, avulsos.

PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA, Série Viação, Engenheiros. 1855-1873. Seção de Arquivo Colonial e Provincial, maço nº 4.898, avulsos

PRESIDÊNCIA DA PROVÍNCIA, Série Viação, Engenheiros. 1870-1873, Seção de Arquivo Colonial e Provincial, maço nº 4.901, avulsos.

QUERINO, Manoel R. As artes na Bahia: escorço de uma contribuição histórica. 2 ed. Bahia: Diário da Bahia, 1913. 241 p.

QUERINO, Manoel. A Bahia de outr’ora; vultos e factos populares, 2 ed. Salvador: Livraria Economica, 1922. 301p.

QUATRO séculos de história da Bahia. Revista Fiscal da Bahia, Salvador: 1949. 382 p. Edição Especial dedicada ao IV Centenário da fundação da Cidade do Salvador.

REIS, Antônio Alexandre Borges de (Org.). Almanak administrativo, indicador, noticioso, comercial e litterario do Estado da Bahia para 1899. Salvador: Wilcke, Picard, 1899.

REIS, Antônio Alexandre Borges de (Org.). Almanak do Estado da Bahia, 1904-1905, Bahia: Litho-Typ. e Encadernação de Reis e C, 1904.

SILVA, Armando. Imaginários urbanos; Bogotá y São Paulo: cultura y counicación urbana em América Latina.Bogotá: Tercer Mundo, 1992. 293 p.

SILVA, Pedro Celestino da. A Bahia e seus monumentos. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, v. 59, 1933, p. 75-205.

A TARDE. Salvador, 1912-1919, 1927, 1935

A TARDE. Salvador, 19 ago. 1920, p. 1

A TARDE. Salvador, 24 jan. 1949, p. 3.

arte e cidades 2ed.indd 289 04/11/15 18:07

290

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

A TARDE, Salvador, 8 jul.1949, p. 3.

VÃO-SE OS MÁRMORES, A Tarde, Salvador, p. 1. 21 ago. 1920.

SITES CONSULTADOS:

<www.acbahia.com.br>.

<www.correiodabahia.com.br/2002/noticia>.

<www.desenbahia.ba.gov.br/recursos/news/video_Artigo_10pdf>.

<www.jbcultura.com.br>.

<www.salvador2003.com.br/pontos.htm>.

arte e cidades 2ed.indd 290 04/11/15 18:07

291 ö

luCiana bonGiovanni Martins sChenk

Paisagem e arte: uma estratégia de aproximação, leitura e projeto do espaço urbano

Esse trabalho segue um caminho que entrelaça definições e estratégias de pesquisa sobre o urbano em geral e sobre a paisagem em especial, para tan-to estabelece alguns movimentos que, como numa composição se articulam nessa tarefa.

A ideia de uma investigação acerca das possíveis estratégias para a elabo-ração de projetos para áreas livres públicas ocorre a partir de nossa experiência didática e profissional. Foram estabelecidos então desenvolvimentos das cha-madas chaves de investigação, a saber: espaço público, paisagem e arte, que se exercitam num projeto que recebeu Menção Honrosa no Prêmio Prestes Maia de Urbanismo 2006 cujo tema foi: Uma Cicatriz Marca a Cidade - Soluções para o Elevado, concurso promovido pela Prefeitura da Cidade de São Paulo. A hipótese que se coloca é a questão da reflexão projetual acerca de áreas livres públicas, algo que se procura configurar como Arquitetura da Paisagem, e sua associação ao campo das artes e à chamada Arte Urbana.

Tal preocupação em gerar formas de abordagem decorre do fato de percebermos cotidianamente um hiato que separa o conceito e o projeto, do objeto construído e em uso. A ideia de utilizar a arte como ponte entre essas instâncias, como elo que, ao mesmo tempo em que une, tenciona, a um só tempo transpassa e permanece, é a tentativa de não só associar campos afins, mas de engendrar uma lógica atinente às artes contemporâneas, especialmente as obras pensadas para áreas públicas e que, na sua prática, materializam refle-xões críticas acerca desse mesmo espaço.

arte e cidades 2ed.indd 291 04/11/15 18:07

292

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Sobre o espaço público atual, deparamo-nos com falas acerca do esvazia-mento de seu caráter institucional e encolhimento sintomático, bem como da sua colonização pelo poder privado. (PALLAMIN, 2002) Uma argumentação que desvenda a estetização de certos lugares e mesmo cidades que, escolhidos pelo capital nesses tempos de flexibilização, transformam em mercadoria a paisagem.

Se num primeiro momento a leitura parece ser de total esvaziamento da disciplina e profissão (ARANTES, 2002), num segundo afirma-se a neces-sidade de redefinição do papel do arquiteto urbanista na concepção e feitura do tecido urbano.1

O aporte teórico que se estabelece compartilha a tese de Habermas (1990), que afirma a transição do paradigma da consciência para o paradigma da compreensão. Habermas concebe a ação racional através da teoria da ação comunicativa: o conhecimento não é mais algo validado por sujeito, ou sistema, mas é antes um acordo entre os participantes sobre aquilo que se procura compreender e decidir; uma ação que nasce orientada pelo norte da compreensão.

A ação é positiva no sentido em que se busca resgatar um certo tipo de razão que sobrevive à falência, ou desencantamento, de um mundo racional, anunciado como uma progressiva evolução para um futuro melhor. O projeto Iluminista de redenção pela razão, ora nublado pela barbárie sempre presen-te aparece, segundo alguns autores (ARENOT, 1997; ROUANET, 1987; DEUTSCHE, 1996), ainda como projeto possível, senão o único, para a vida cívica e democrática.

O trabalho procura, ainda, estabelecer a possibilidade de síntese, concei-tual e de projeto, a partir da ideia de totalidade.2 Uma totalidade que não tem a pretensão do todo, não significando o conjunto de todos os fatos: a atualidade do termo exprime um todo que se estrutura dialeticamente, num processo de correlações que longe de apresentar uma derradeira verdade para o assunto, apresenta uma perspectiva, um possível, que coteja ideia e fenômeno.

Elabora-se, então, um primeiro movimento no qual certas definições são apresentadas para uma futura articulação sobre o tema espaço público e arte; um segundo movimento que trata do estatuto da paisagem, da natureza do termo à sua inserção dentro do campo dos saberes da Arquitetura e Urbanismo; um terceiro movimento, agora mais estreitamente ligado à abordagem desse lugar que se configura revelando um projeto, e que trata da construção de períodos,

arte e cidades 2ed.indd 292 04/11/15 18:07

293

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

recortes de aproximação – estratégia de leitura e reflexão acerca do urbano, esse processo de construção de um conceito para o lugar procura reunir as-pectos qualitativos, eleger e recortar elementos da paisagem e da história dessa paisagem, elementos que marcam o território e que projetam possibilidades. Uma eleição de pontos significativos que podem ter sua visibilidade ampliada e desvendada através do projeto.

Um quarto movimento trata dos modos pelos quais essas intervenções devem ser conquistadas e desenvolvidas, uma vez que o projeto de uma área livre pública, dentro de uma sociedade civil organizada e democrática se in-sere dentro da perspectiva de um planejamento da cidade por seus cidadãos. Daí a necessidade de investigar a ligação entre a ideia de plano e ideologia. O intuito é desmistificar chaves ideológicas e localizar o plano como tradução de um tempo-espaço de uma sociedade – aqui a dimensão da teoria da ação comunicativa (HABERMAS, 1990), opera como uma espécie de agente que auxilia no desvendamento das falas ideológicas, embora sujeito às dificuldades e desafios que a vida em grupo estabelece. Daí devém o quinto e último movi-mento que versa sobre arte e projeto de áreas públicas – a dimensão trabalhada é aquela da arte urbana:

Destacamos a arte urbana como prática crítica exatamente nesse momento em que o horizonte não possui mais a carga utópica que já teve um dia. Isso não significa propor o alinhamento com uma atitude melancólica ou nostálgica [...]. Tampouco significa uma aproximação com uma atitude cínica ou decepcionada. Pelo contrário, potencializada pela idéia de tornar a cidade disponível para todos os grupos, essa prática crítica inclui dentre seus propósitos estéticos o desafio a certos códigos de representação dominantes, a introdução de certas falas e a redefinição de valores como abertura de outras possibilidades de apropriação e usufruto dos espaços físicos e simbólicos. (PALLAMIN, 2002, p. 103)

A natureza da proposta é cúmplice da natureza do lugar, o que vincula essa composição de movimentos ao fenômeno. Um ponto se clarifica: a leitura resgata aspectos atuais e históricos, físicos e ambientais, de uso; informações muitas vezes pouco visíveis, ou intencionalmente colocadas ao largo. Revela-se, pela prática projetual do espaço livre público, o que pode ter ficado à sombra, em associações tão diversas quanto necessárias, pois que o necessário é que a cidade contemple o encontro, aquilo que fecunda e engendra a cultura.3

arte e cidades 2ed.indd 293 04/11/15 18:07

294

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Primeiro movimento: definições

No segundo capítulo do livro intitulado A natureza do espaço, o geógrafo e professor Milton Santos apresenta seu percurso intelectual na tentativa de definição de espaço. Suas primeiras considerações, ainda na década de 1970, apresentavam o espaço como par: fixos e fluxos, duplo que amadureceria até a tese que acreditava melhor expunha esse objeto fundamental para a geografia: “[...] cabe estudar o conjunto indissociável de objetos e sistemas de ação que formam o espaço”.

Seu esforço era o de contribuir na construção de uma epistemologia própria à geografia, e evitar a utilização de conceitos migrados de outras áreas, carregados de outros percursos, estranhos ao campo disciplinar em questão. Ele se apercebera de que o debate filosófico, bem como interdisciplinar, acon-teceria apenas a partir dessa construção, daí a importância de precisar termos, afinar ideias e definições.

A paisagem, segundo sua conceituação, é um conjunto de formas, que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. Essas formas somadas à vida que as anima seria o espaço. A paisagem é, portanto, uma “construção transversal”, uma imagem de diferentes tempos que une objetos presentes e passados, um sistema material que existe através da coexistência de suas formas, expressando diferentes momentos históricos. (SANTOS, 2002) Aqui, a definição de paisa-gem carrega uma fixidez que só ganha movimento a partir da ideia de espaço, esse sim, articula as ações humanas e cria as condições de existência, portanto, de realidade filosófica.

Entretanto, conhecer esse duplo, paisagem / espaço é algo que merece incessantes mediações, em outras palavras, há algo como uma coleção de informações de diferentes naturezas que coexistem nessa estrutura que se pretende apreender:

O espaço é hoje um sistema de objetos cada vez mais artificiais, povoado por sistemas de ações igualmente imbuídos de artificialidade, e cada vez mais tendentes a fins estranhos ao lugar e seus habitantes. Os objetos não têm realidade filosófica, isto é, não nos permitem o conhecimento se os vemos separados do sistema de ações. (SANTOS, 2002, p. 63)

arte e cidades 2ed.indd 294 04/11/15 18:07

295

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

O desafio é justamente criar condições para a aproximação, a leitura e compreensão desse par que no limite expressa permanência e mudança, ao mesmo tempo em que se efetua um movimento paralelo, e não necessariamente posterior, pertinente ao projeto. Em outras palavras, o que se afirma aqui é que conhecer já é parte da atividade de projeto.

O termo paisagem participa de diversas áreas do conhecimento. Uma ga ma de profissionais, especialidades, ou simplesmente interesses operam sobre essa temática, recortando, de acordo com sua formação, a visada que lhes desperta a atenção. A percepção da paisagem pelo geógrafo, ecólogo ou arquiteto – urbanista expressa conceituações potencialmente distintas.

Interessa aqui reter que essa percepção diferenciada redunda em dis-tintas prioridades, reflexões e propostas sobre a paisagem, o que gera grande desafio no estabelecimento de uma epistemologia, bem como de um campo disciplinar consistente.

Se nos voltarmos à origem do termo veremos que a distinção do léxico surge apenas no século XV (ROGER, 2000), e acontece de modo correlato em diversas línguas a partir da palavra que designa terra, no sentido de país. Land / Landschaft, em alemão; land / landscape, em inglês; Pay / Paysage, em francês; Paese / Paesaggio, em italiano; País / Paisagem, em português – essa estreita ligação descortina uma noção histórica do termo paisagem presente na sua raiz.

Todos os que se iniciam no conhecimento das ciências da natureza – mais cedo ou mais tarde, por um caminho, ou por outro – atingem a idéia de que paisagem é sempre uma herança. Na verdade, ela é uma herança em todo sentido da palavra: herança dos processos fisiogeográficos e biológicos, e patrimônio coletivo dos povos que historicamente as herdaram como território de atuação de suas comunidades. (AB’SABER, 2003, p. 9)

Assim, o colega geógrafo de Milton Santos, Aziz Ab’Saber, compartilha a dimensão histórica e de herança que o termo paisagem guarda, enfatizando, entretanto, também seus aspectos naturais.

Dentre os diferentes campos disciplinares que se debruçam sobre a paisagem, cabe ao arquiteto urbanista, cuja natureza da formação é criativa,

arte e cidades 2ed.indd 295 04/11/15 18:07

296

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

a intervenção, sob a forma de plano e projeto. Desse modo, embora existam pontos de contato bastante intensos, seja com a geografia, seja com a biologia e a ecologia, a construção da disciplina Arquitetura da Paisagem ainda ensaia sua epistemologia e esta está, sem dúvida, estreitamente ligada ao campo das artes desde sua origem.

A argumentação de que a paisagem nasce em primeiro lugar no olhar que se modela, na percepção que se amplia a partir desse contato com as ar-tes em geral e com a pintura em particular, é defendida por Alain Roger que explora, segundo seu testemunho já há duas décadas, a hipótese culturalista no estabelecimento das ideias de beleza e paisagem. Segundo o autor, que elabora retoma um termo inaugurado por Montaigne e traduzido aqui por artealização, cujo significado seria a afirmação de nossa experiência como fruto de uma percepção gerada a partir de modelos artísticos, “são aquisições, ou melhor, invenções culturais que podemos datar e analisar”.4

Entretanto, cumpre precisar uma face da construção aqui pretendida. O vínculo entre arte e paisagem se atualiza num tempo-espaço presente, escapando de românticas visadas que transformam a paisagem em paisagis-mo, termo carregado de significados que reduzem em muito a atividade do arquiteto urbanista, nublando assim o estabelecimento de um campo disci-plinar consistente. A paisagem é testemunho de relações sociais complexas, construção cultural e histórica.

Se a Arquitetura da Paisagem ainda ensaia seu estabelecimento, os es-forços de definição do urbano colecionam muitos momentos, desde tentativas meramente quantitativas, relativas ao número de população, às qualitativas, como as ligadas a uma cultura urbana existente apenas a partir da geração de excedentes na produção, o que possibilitaria o desenvolvimento de outras atividades não ligadas diretamente à sobrevivência. Não cabe aqui recolocar questões amplamente desenvolvidas por diversos autores como Munford (1982), Morris (1984), Singer (1977), Harleey (1973, 1993) e Castells (1993), mas firmar um momento nesse esforço de definição em que a visada relacional se estabelece. Em outras palavras, o urbano, melhor posto como urbanização, uma vez que o termo denota processo, se dá a partir de um tipo especial de relação, ou relações que se estabelecem.

Um percurso que nos parece referencial é o estabelecido por David Harvey, 1973,5 que elabora sua definição a partir de categorias baseadas no uso do espaço, bem como na relação entre usuário e lugar.

arte e cidades 2ed.indd 296 04/11/15 18:07

297

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

Esse é um ponto que nos interessa reter: o lugar guarda contornos mais definidos que o espaço, seu recorte é correlato à distinção estabelecida pela chamada nova geografia em relação a urbano e cidade.6

É o lugar que se revela como objeto de intervenção ao arquiteto urba-nista – a dimensão científica e artística de sua atividade, a arquitetura dessa paisagem, bem como, as estratégias para desenvolvê-la – pretende fazer parte dessa investigação.

segundo movimento: ciência contemporânea, paisagem e arquitetura da paisagem

A dimensão do investigar a paisagem deve ultrapassar o simples colecio-nar de fatos, ou a mera descrição de qualidades, a atividade que se apresenta é de reflexão e crítica.

Um dos pontos que fundamenta uma investigação é a escolha, o recorte do objeto de estudo. Operação que não implica em isolar, pois isso significaria um retorno a uma matriz de pesquisa analítica pouco compatível com o estudo urbano e o projeto da cidade.

É necessário compreender que essa ação é antes uma convergência tática de várias disciplinas que se desloca do objeto para as condições de possibilidade dos objetos. Essa lógica amplia os horizontes para reconstituir práticas, técnicas, preceptivas, regras, num esforço de correlação entre obras, discursos, práticas, objetos, fragmentos, de sorte que a ideia de interpretação como geradora de um sentido, ou solução para um problema resulta desestruturada em seu sentido corrente. (HANSEN, 2002)

Em seu livro A estrutura das revoluções científicas, Thomas Kuhn analisa a mudança ocorrida dentro do universo científico, no qual a chamada ciência normal, ou cumulativa, que opera baseada em paradigmas – realizações cien-tíficas reconhecidas, e, por isso mesmo, modelares – é substituída pela nova ciência. Enquanto a tendência geral da ciência cumulativa é ampliar sempre mais a precisão e alcance de uma ordem já conquistada, a nova ciência tra-balha com a percepção voltada para a mudança: “A descoberta começa com a consciência da anomalia, o reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que governam a ciência normal”. (KUHN, 1989, p. 78)

arte e cidades 2ed.indd 297 04/11/15 18:07

298

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Não se trata apenas de estabelecer relação entre informações, mas fundamentalmente de como colecionar essas informações. O alinhamento a qualquer modelo vinculado a uma teoria a priori torna-se incompatível com o objeto que investigamos: a urbanização, ou o processo de desenvolvimento de uma parte do tecido urbano, a paisagem que se configura num determinado trecho da cidade, qualquer um desses processos será refratário a uma postura de investigação explicativa, o par causa-efeito que aqui resultará simplificador e parcial, dada a complexidade inerente ao objeto.

Empreender uma investigação sobre uma paisagem, tendo como hori-zonte a realização de um projeto é frequentar, vivenciar e construir esse lugar a partir dessa experiência.7

O fenômeno e os meios de investigá-lo são vitais à atividade de projeto, desse modo, neutralizam-se os modelos abstratos, baseados em assertivas con-quistadas do desdobramento de grandes Verdades. O lugar é uma construção revelada a cada aproximação, o cotidiano, ou esse frequentar, participa e revela a totalidade.

A princípio, parecerá haver uma incongruência na utilização do termo totalidade, uma vez que no texto do professor Hansen mencionado, o termo totalidade aparece associado às noções de sentido, negatividade, superação e finalidade, cujos significados se esvaziam contemporaneamente dentro do âmbito da crítica. Entretanto, essa totalidade sobre a qual se fala não é um Todo enquanto soma das partes, a coleção que traz a confortável, porém falsa ideia de havermos completado e conhecido uma realidade. É justamente nesse contexto atual de presença marcante da parcialidade e da impossibilidade de prescrição na crítica cultural que o termo totalidade pode ser utilizado: como uma construção de significado móvel, algo que se estrutura a partir da concepção de que mesmo a totalidade é algo que se percebe parcialmente.8

A paisagem em sua dimensão histórica é o plasmar de muitas relações; os diferentes tempos agregados num mesmo lugar testemunham mudanças entre diferentes relações. A atualidade de seu uso revela disposições e mudan-ças. Embora pareça impossível abarcar a realidade de um fato, ou fatos, existe a possibilidade de percebê-los através da ideia de uma construção que apresenta um possível, daí a pertinência de estabelecermos a construção de períodos como categorias de leitura da paisagem.

arte e cidades 2ed.indd 298 04/11/15 18:07

299

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

terceiro movimento: construção de períodos

Como estratégia, trabalham-se chaves históricas, para que o processo de construção do lugar seja conhecido, esse movimento não é necessariamente linear, ou cronológico; reúnem-se dados primários e secundários, criando situações para conhecer e frequentar o lugar. Os períodos são estabelecidos dentro de um tempo – espaço, entretanto sua lógica é transversal.

A história conta o processo de mudança pelo qual passa um lugar, e ao mesmo tempo, testemunha épocas pelas quais ele atravessa. Como num grande jogo de montar, as partes que poderíamos elaborar funcionando como peças. Cada peça guardaria em si a qualidade de uma proporção. Atingiríamos, ao construí-las, “uma fração do acontecer humano”. (SANTOS, 1994)

O processo de elaboração dessas peças é dialético na medida em que estabelece, entre objeto e pensamento, uma especial relação. Sartre nos fala de um “vaivém da razão” na construção de um cenário, uma época: conhecer a biografia, que poderia ser a biografia de uma paisagem urbana, é aprofundar sua época, ou épocas, e estas aprofundam a biografia. (SATRE, 1967)

Essa estrutura relacional nasce em estreito diálogo com o tempo, pontu-am-se as mudanças no fluxo dos acontecimentos. As associações e dissociações, as afirmações e negações, são estabelecidas dentro de um período de validade. O conjunto de relações que se estabelece tem algo como uma fixidez momen-tânea – uma totalidade que assinala o período que circunscreve – uma prática que elabora tantas peças quanto forem as escalas de observação.

Dois eixos de construção para o colecionar das informações são pro-postos: o das sucessões e o das coexistências. (SANTOS, 1994) O primeiro trata dos eventos cuja observância se dá linearmente – a mudança histórica dos lugares. O segundo, também chamado das simultaneidades, extrapola objeto e mergulha num universo de potenciais informações que podem, a partir dele, objeto, ser desvendadas e criadas.9

Tecer esses dois eixos é estabelecer um período, e perceber as trans ver-salidades, o quanto certas informações atravessam esse tecido pro movendo inu-sitadas associações, configuram uma estratégia que participa dessa composição. O interpretar reaparece agora reestruturado como categoria de reflexão crítica.

arte e cidades 2ed.indd 299 04/11/15 18:07

300

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Quarto movimento: plano e planejamento / espaços públicos e desenho

A figura do plano sobrevoa o território concreto. O plano traduz, ainda que parcialmente, em termos teóricos, intenções de um tempo-espaço. Desse modo, ideológicas são as tentativas de colocar o plano em campo oposto ao da política, transformando-o apenas em peça técnica, fruto do discurso competente que afasta a participação dos cidadãos.

Vivemos o primado da técnica, especialmente aquela que comparece nos discursos que justificam sistematicamente as decisões tomadas para a resolução dos problemas da cidade. Essa forma-técnica tornada ideologia nubla as refle-xões realizadas acerca das coisas e, em especial, acerca do urbano, impedindo que os reais interesses, os conflitos, ganhem visibilidade. A existência de um poder emanado pela ciência e pela técnica esvazia outras falas, neutraliza a participação política e desautoriza outros, que não os especialistas, através do discurso competente.

Buscando operar como antídoto, a lógica de pesquisa que se apresenta procura expor conflitos e desvendar ideologias que justificam soluções, ao mesmo tempo em que nos permite uma aproximação mediada, sem pretensas verdades a priori, mas com verdades válidas para aquele tempo-espaço com o qual tratamos naquele período.10

De um modo geral, soluções chamadas modernas são vinculadas ao uso da tecnologia e fazem com que uma solução apresentada à população pareça a única possível, senão a única desejável. Assim, são elas convencidas da necessi-dade dos viadutos, dos rebaixamentos de leitos de rios e alargamentos de vias. Algumas, entre tantas obras encantadas pela técnica.11

Permanecemos, ainda, atados a esse paradigma. É esse modelo que inclusive transforma a paisagem em algo como um cenário que se constrói uma peça no marketing para lançamentos imobiliários, ao mesmo tempo em que neutraliza a cruzada pela visibilidade do meio ambiente como informação relevante na gestão e projeto das cidades. Faces de um discurso que afirma o científico enquanto técnico, esvazia o perceptível como romântico. Uma fala que desarticula o estatuto da disciplina Arquitetura da Paisagem que nos esforçamos para construir.

Por isso é fundamental que conheçamos as lógicas que conformam o meio ambiente urbano. Da mesma forma é importante que se esclareça a ideia

arte e cidades 2ed.indd 300 04/11/15 18:07

301

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

de que a atividade de projeto extrapola o desenho. O desenho será um dos momentos dessa aproximação e leitura do lugar para o qual se projeta; a obra construída, uma etapa cuja dimensão do uso transforma, ele traduz a crítica do usuário sob a forma de fruição, ou abandono. Momentos que exprimem a complexidade de uma intervenção, algo amplificado em sua condição quando os contornos são de espaços públicos.

Em artigo intitulado O retorno à cidade, Philippe Panerai reitera a falência da fé nas virtudes da planificação e no progresso técnico. Ele afirma um ponto que interessa: a sintomática perda de qualidade urbana resultante dos modelos de planejamento, especialmente os modernos sob inspiração funcionalista.

Sua argumentação retém, das chamadas cidades antigas, valores que comporiam a qualidade urbana mencionada, a saber, “proximidades, hierar-quia e legibilidade”, bem como uma surpreendente “capacidade de adaptação” a novos usos. O fundamento de sua fala é que essa qualidade referida é fruto do arranjo dos espaços públicos, o modo como se articulam, o aspecto e configuração. Dessa leitura, que se apoia nas experiências passadas, devém a afirmação de que o espaço público deva ser o ordenador do construído em geral: “Trata-se de pensá-lo como elemento positivo do projeto e não como o vazio residual a organizar por último”. (PENERAZ, 1994) Uma inversão de perspectiva que vem de encontro ao objetivo desse trabalho.

O que está em jogo aqui é o que se torna importante como informação para uma sociedade, o que é percebido como importante: “Nosso papel é justamente o de explicitar as qualidades das razões que levam à eleição deste ou daquele ponto como prioridade; ao mesmo tempo em que atentamos, en-quanto arquitetos-urbanistas, para o ganho de visibilidade do meio ambiente como um todo: sociedade, meio físico e uso”.

Tomemos as áreas livres públicas, lugar de potenciais projetos como exemplo: um projeto para uma praça de área central pode, a partir do papel desempenhado por essa parte do acontecer urbano, algo que se desvela durante sua leitura, ampliar-se até a compreensão de que não se trata do projeto de uma praça singularmente, mas de um sistema de áreas livres, associado a um curso de água que permanecia talvez invisível aos habitantes da cidade, quer porque estivesse canalizado, ou mesmo tamponado, quer porque esse mes-mo curso de água, ora pequeno filete de água, ora rio caudaloso, provocasse enchentes nos meses de chuva e fosse então percebido meramente como um problema. Que as diretrizes do plano para a área em questão privilegiasse não

arte e cidades 2ed.indd 301 04/11/15 18:07

302

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

a solução meramente técnica, como a construção de um “piscinão”, mas que procurasse trazer visibilidade às lógicas naturais, apresentando alternativas dentro da perspectiva da arte urbana que colocassem essas lógicas de exclusão a descoberto. Nesse momento, o plano opera chaves da arte urbana. Essa é uma dimensão da Arquitetura da Paisagem enquanto expressão artística que precisa ser apresentada associada aos conceitos de Panerai de proximidade, hierarquia e legibilidade: a fisionomia do território surge como qualidade positiva, como característica que nutre uma outra forma de proximidade, gera identidade e alimenta vínculos entre uma população. A disciplina, bem como a prática da Arquitetura da Paisagem, apresenta, portanto, as relações do meio ambiente como informação fundamental.

Ao mesmo tempo, e como extensão da expressão cultural que a domina, pensa-se na exclusão social sobre a qual a arte urbana atenta, e que não são mais do que faces de uma mesma realidade. Tomemos como mote exclusões que se aproximam: uma população que permanece à margem dos cursos de água que alagam, todos participantes de uma lógica que gera a Paisagem, e que no limite apresenta o meio-ambiente, compreendido como meio físico natural e sociedade, desvendando aquela parte que não serve, que não reproduz o capi-tal. Temos então como imagem do nosso exemplo uma área alagável, ocupada por uma população exposta ao risco, em síntese, uma paisagem de exclusão, o início de uma leitura, de um possível projeto que se compromete não apenas com a resolução técnica do chamado problema, mas com o explicitar da lógica que o engendra.

A construção de uma inteligibilidade não é uma questão quantitativa, mas qualitativa. Não é o número de profissionais envolvidos, ou a tecnologia em questão, mas quais problemas se elegem como principais, a clareza de que essa decisão é política e traduz quais interesses e conflitos foram levados em conta no momento em que se decide por uma intervenção na cidade.

Essa proposta de um caminho possível para a criação de projetos para áreas livres públicas retém a arte urbana como pivô que estrutura o futuro projeto, por sua potencial capacidade de apresentar conflitos próprios ao espaço público sob outra mediação, revelando-os como memória, reflexão e síntese.

Os entraves e descaminhos que funcionam como obstáculos a uma gestão em que essa lógica de desvendamentos seja relevante são de ordem ideológica e informacional, assim a tarefa é ampla: engendrar campos disciplinares que possibilitem articular pesquisas cuja estrutura escape da velha ordem de valores

arte e cidades 2ed.indd 302 04/11/15 18:07

303

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

estabelecida, bem como veicular e expandir a informação, pois a razão comuni-cativa (HABERMAS, 1989, 1990) parece ser a única a desfazer o caleidoscópio de mitos em que estamos envolvidos:

[...] pois num mundo que inventa cada dia uma novidade, tornamo-nos todos, cada dia ignorantes do que são as coisas novas, do que elas trazem como impulso na produção e na ideologia. Essa criação cotidiana do homem ignorante é que impõe o discurso, impondo essa nova categoria de análise indispensável ao entendimento do que as coisas e os homens são. (SANTOS, 1994, p. 104)

Quinto movimento: arte, espaços públicos e arquitetura da paisagem

O espaço urbano não se presta a um método no sentido de caminho único. Nada de novo aqui se coloca, apenas se reitera que cada abordagem que se realiza, cada investigação que se faz, ou projeto que se propõe, é a alternativa que parece ser visível hoje,12 dentro de uma leitura e construção, nesse mundo desencantado de superações e finalidade.

Como final de movimento e com o intuito de avançar nessa abordagem para projeto de áreas livres públicas, compartilha-se a defesa do vínculo ne-cessário entre cultura e cidade realizada por Oskar Negt (2002) em seu texto Espaço público e experiência:

A importância da vida urbana esteve sempre ligada a alguma forma de ambiente público transparente a seus participantes. Nesse sentido, a cidade sempre estava ligada a formas de ambiente público como praças e assembléias públicas [...], sua forma não é fenômeno casual. Quando desaparece essa forma ambiente, desaparece também a vida urbana.

De sorte que o exemplo que ora apresentamos, e que mantém uma ligação com nosso trabalho de Mestrado (SCHENK, 2007), deu-nos a oportunidade de experimentar, junto ao escritório Studio Ilex, Arquitetura e Paisagem,13 certos conceitos e intuições num objeto bastante conhecido.

O Elevado Costa e Silva surge como parte de um plano maior e dentro de uma perspectiva de estruturação da cidade a partir de vias expressas que

arte e cidades 2ed.indd 303 04/11/15 18:07

304

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

pudessem cruzar a cidade sem a passagem por um centro já apinhado nos finais da década de 1960.

O que cumpre explicitar, e que opera fortemente na geração da proposta que se apresentou, é a qualidade do planejamento em questão que justifica uma intervenção com o prontamente apelidado Minhocão. Dentro de uma lógica que associa planejamento e desenvolvimento, e que expressa uma cha-ve ideológica que mantém ao largo outros interesses e intenções que não os dominantes: o poder que decide pela construção de uma obra dessa natureza se pauta em justificativas técnicas, o discurso da competência emudece outras falas e esvazia conflitos.

Recontar essa história é atualizar um mote que acompanha o Elevado Costa e Silva e seu período: o plano nesse momento foi o grande avalista do desenvolvimento que se apoiou numa ordem de razões que afastou o cidadão como aquele que não possuía o conhecimento.

Figura 1 - Minhocão, São Paulo

Foto: Luciana Bongiovanni Martins Schenk.

arte e cidades 2ed.indd 304 04/11/15 18:07

305

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

O que se apresenta como proposta para a chamada cicatriz urbana, Mi-nhocão, dialoga com a arte urbana em sua dimensão crítica que procura pelo desvendar das lógicas que levam à perda de visibilidade de uma peça a princípio tão dominante na paisagem urbana.

Surge então não uma solução como demandava o título do concurso, mas um percurso que inaugura diferentes respostas que deveriam, a seu tempo, ser avaliadas: a decisão final do que fazer e como fazer nasceria desse processo de conhecimento e comunicação.

ausência, ironia e violência

[...] a faculdade metafórica é essencial ao modo como ocupamos o mundo; as metáforas funcionam tão bem na linguagem precisamente porque são parte do nosso equipamento conceitual inato. Somente a metáfora pode nos fornecer a chave para negociar com nosso meio físico. É tarefa da arquitetura – e em certa medida de outras artes também – cativar e alimentar essa faculdade. (RYCKWERT, 2002, p. 374)

A metáfora pode ser objeto de uma discussão racional. Enquanto figura de linguagem, ela opera no território da arte e da cultura sob a égide da expansão, sua potência enquanto comunicação experimenta a mudança e o movimento de significados como território possível.

O conceito que se desenvolve nesse projeto é aquele que opera tanto a ausência do elevado quanto a sua presença sob outra perspectiva. A ideia, de-senvolvida a partir da constatação de que parte da população sequer vincula o viaduto às suas queixas sobre o lugar, é tornar visível algo que não comparece no quadro de referências sobre a área da cidade.

Não propõe uma “solução”, mas aponta para o que se julga primeira e fundante etapa de qualquer projeto dessa natureza: uma percepção mais clara e refletida sobre uma localidade, uma leitura que descarta o imediato para procu-rar pelas mediações. Procura-se assim trazer visibilidade à complexa realidade dessa área da cidade, evitando a destruição por completo porque essa decisão guardaria uma lógica tão violenta quanto seu processo de decisão e edificação. É necessário construir social e coletivamente sua destruição, na contramão dos desmandos tão comuns em relação aos processos decisórios sobre o urbano e que tem no Elevado Costa e Silva um paradigma revelador.

arte e cidades 2ed.indd 305 04/11/15 18:07

306

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Dar visibilidade ao conflito,14 tornando-o operativo, significa procurar por uma dimensão que opere como um antídoto contra o processo de homo-geneização, perda de significado e abandono do espaço urbano contemporâneo.

Nesse sentido é que se pensou não na destruição total do Elevado, mas na destruição de parte dele, entre o largo Péricles e Praça Marechal Deodoro, sob o mote da ausência tornar visível novamente a Avenida General Olímpio da Silveira, ampliando suas calçadas pelo novo arranjo da via e arborizando seu passeio, criando uma nova qualidade de sombra que não mais a do tabuleiro de concreto.

O acesso único ao sistema, no sentido Oeste-Leste, passa a ser na altura da Avenida Angélica, próximo à Rua Albuquerque Lins. Em sentido contrário, vindo da zona Leste, o ponto de descida já existente e que desemboca na Rua Ana Cintra passa a ser também a única possibilidade de evasão, entretanto a direção do centro ou bairro pode ser decidida pela alternativa dos baixios do Elevado, por ora via de pouquíssimo uso. Essa mesma mão (sentido Leste--Oeste) permanece sem ser demolida uma vez que o outro lado do tabuleiro ainda será utilizado (entre Praça Marechal Deodoro e Largo Santa Cecília) como leito carroçável.

Figura 2 – Maquete eletrônica do projeto para concurso do Elevado Costa e Silva, 2006

Fonte: Studio Ilex.

arte e cidades 2ed.indd 306 04/11/15 18:07

307

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

Desenvolve-se então, na área da pista na qual não há mais o trânsito de veículos, a ideia de uma nova urbanidade, dentro da perspectiva da localização, uso e história. Algo que nasce da ironia de um Parque Elevado de Concreto, que aparece nos domingos e feriados, quando o Minhocão é fechado ao tráfego e passa a ser utilizado de outra forma pela população, fato comemorado como conquista: a utilização do leito carroçável como alternativa à ausência de áreas livres públicas qualificadas para o lazer.

Uma nova urbanidade,15 algo que denota a ironia do pensar naquele lugar como parque, a singularidade dessa situação estranhada, que opera em consonância à parte do projeto em que não só o uso atual de via elevada é man-tido, mas no qual se trabalha a partir do mote violência, operando chaves que explicitam o modo de inserção, a história e a atualidade de um objeto como o Elevado Costa e Silva no tecido urbano.

Figura 3 – Maquete eletrônica com vista do Elevado Costa e Silva

Fonte: Studio Ilex.

arte e cidades 2ed.indd 307 04/11/15 18:07

308

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

O trecho ironia é algo para ser vivenciado na escala do pedestre, muito embora da perspectiva do carro participe da experiência uma vez que a pista que leva da Praça Marechal Deodoro para a zona Leste aí se mantenha vizinha. A pista parcialmente interrompida se torna um Parque Elevado de Concreto, de fato, e recebe peças que anunciam diferentes movimentos e tensões. São es-culturas que operam também como equipamentos, que referenciam o que está ao redor, mas que se tornam objetos lúdicos na escala vivenciada pelo usuário.

O material utilizado na intervenção é o aço, suas qualidades plásticas e sua possível reutilização, prevista como parte da proposta, adquire contornos angulosos e pontiagudos quando do último trecho denominado violência.

Figura 4 – Croquis e Maquetes do Projeto

Fonte: Studio Ilex.

Tal opção estrutural está intrinsecamente relacionada à qualidade do partido arquitetônico adotado. De imediato funda a dramaticidade da concep-ção espacial pretendida, pela multiplicidade de ângulos impostos aos planos da estrutura, capazes de desorientar o olhar. Por outro lado, a estabilidade estrutural atingida através de vincos imprimidos nas chapas metálicas torna prescindível a utilização convencional de lançamento estrutural para posterior revestimento, ou seja, aqui revestimento e estrutura são o mesmo elemento.

arte e cidades 2ed.indd 308 04/11/15 18:07

309

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

A concepção estrutural dos pórticos e balanços metálicos, que se projetam transversalmente ao longo da extensão preservada do Elevado Costa e Silva, e que se desdobram em planos inclinados atirantados sob o teto do viaduto, busca sua estabilidade através de princípios de Superfície-Ativa.16 Valendo--se de tais princípios é possível conferir rigidez estrutural por intermédio de dobraduras conferidas nas chapas metálicas. Tais inclinações imprimidas nos planos em questão tratam de reorientar forças atuantes – horizontais e ver-ticais – distribuindo-as em pequenos esforços unitários, sobre a superfície. O enrijecimento de bordas e perfis, nos planos das superfícies, condicionam seu mecanismo portante, viabilizando a espacialidade estrutural.

A intenção é tornar os pórticos metálicos em elementos leves, passíveis de serem facilmente ancorados na estrutura existente do Elevado Costa e Silva. No intervalo espacial entre as chapas metálicas, tanto em relação aos pórticos quanto aos forros dispostos sob a estrutura de concreto existente, são acondi-cionados projetores para iluminação pública, no sentido de prover um espaço público vivo em sua utilização noturna, bem como para ressaltar e garantir a dimensão cênico-dramática da proposta arquitetônica e urbanística em questão.

O partido arquitetônico adotado se reflete na escolha do material, uma vez que o aço adquirido por peso é reciclado do mesmo modo. A estrutura metálica prevê sua própria demolição, sua e do elevado, a seu tempo.

Figura 5 – Perspectiva do Projeto

Fonte: Studio Ilex.

arte e cidades 2ed.indd 309 04/11/15 18:07

310

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Figura 6 – Perspectiva do Projeto

Fonte: Studio Ilex.

Assim o último trecho expressa através dessa intervenção a crítica acerca não só da realidade atual da obra em questão, mas reflete sobre o contexto que a constrói, especialmente ligado a um tempo-espaço brasileiro de suspensão dos direitos, ditadura militar; sobre o planejamento urbano, sobre o mito do desenvolvimento e modernidade; pensa especialmente no iniciar de uma comunicação, um diálogo sobre a cidade instigado pelo ambiente que cria.

O desafio é projetar espaços públicos urbanos dentro de um contexto de conflito e esvaziamento faz entrever na prática artística uma alternativa possível na construção de lugares. No âmbito da constituição de um campo disciplinar ligado à Arquitetura e Urbanismo, com a atenção voltada para a Paisagem que se conforma, o papel de pivô atribuído à arte, em especial à arte urbana, parece de fundamental relevância, pois que não se trata de solução pura e simplesmente, mas de uma proposta em que opera a razão comunicativa, um desafio à criatividade que contempla, explicita e propõe acerca do fenômeno urbano, da paisagem e da exclusão em geral.

notas

1 “Toda ação ligada ao urbanismo e à construção é inescapavelmente política. É, portanto, uma ação pela qual todos os construtores e urbanistas devem ser responsáveis [...] a constante

arte e cidades 2ed.indd 310 04/11/15 18:07

311

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

participação e envolvimento da comunidade são necessários para moldar nossas cidades e torná-las comunicativas, e essa noção parece ter sido tragicamente esquecida por várias entidades que nos governam”. (RYCKWERT, 2005, p. 348).

2 Noção que veremos apresentadas em Sartre (1967) e Kosic (1963 / 1985).

3 “O essencial é que a cidade ensaia a convivência com aquele que eu não conheço, que me é estranho, e que, no entanto, não é excluído”. (NEGT, 2002, p. 22)

4 “Existem dois modos de artealizar um terreno para transformá-lo em paisagem. A primeira consiste em inscrever diretamente o código artístico na materialidade do local, sobre o terreno, a base natural. Artealiza-se in situ. É a arte milenar dos jardins, o landscape gardening a partir do século XVIII, e, mais próxima de nós, a Land art. O outro modo é indireto. Não se artealiza mais in situ, mas in visu, trabalha-se sobre o olhar coletivo, fornece-se modelos de visão, esquemas de percepção e de fruição. Junto-me portanto ao ponto de vista de Oscar Wilde – é a natureza que imita a arte”. (ROGER, 2000, p. ? )

5 O autor se baseia na ideia de existência formulada por Lebniz que afirma o existir de algo sempre em relação a outro. “...an object be can said to exist only insofar as it contains and represents within itself relationship to the others objects”. (HARVEY, 1973, p. 13)

6 “O urbano é freqüentemente o abstrato, o geral, o externo. A cidade é o particular, o concreto, o interno, não há o que confundir”. (SANTOS, 1994, p. 69)

7 “[...] a atitude dos filósofos que defendem a precisão remonta à época que Matemática e Física eram ciências exatas – eles ainda estão encantados. [...] Todavia, a fertilidade não é decorrência da exatidão, mas da percepção de novos problemas onde ninguém os havia visto antes, e da invenção de novas maneiras de resolvê-los.” (POPPER, 1977, p. 31)

8 “A cultura jamais nos dá, pois, significações absolutamente transparentes, a gênese do sentido jamais se conclui. O que bem chamamos nossa verdade, nunca a contemplamos, a não ser num contexto de símbolos que datam o nosso saber.” (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 143)

9 “São relações entre variáveis de natureza diferente que permitem aproximação da noção de estrutura”. (SANTOS, 1994, p. 64)

10 “Desvendar a simbologia urbana é reconhecer a estrutura de interesses e conflitos que opera através do que somos capazes de reconhecer como símbolos. É conhecer a lógica e desmistificar as falas ideológicas que embaralham as argumentações e justificativas”. (CASTELLS, 1972)

11 O encantamento pela técnica como tema é recorrente na crítica filosófica a partir de pensadores da chamada Escola de Frankfurt, com desdobramentos em outros autores, Lefébvre e Castells, bem como no território nacional com Rouanet, Matos e Santos, entre outros.

12 “É preciso dizer pois, que a cada momento nossas ideias exprimem, ao mesmo tempo que a verdade, nossa capacidade de atingi-la nesse momento. O ceticismo começa, quando se conclui a partir daí que nossas idéias são sempre falsas. Mas só se pode faze-lo se nos referimos a algum ídolo de saber absoluto”. É preciso dizer, ao contrário, que nossas idéias, por mais limitadas que sejam num dado momento, exprimem sempre nosso contato com o ser e com a cultura e são suscetíveis de verdade desde que as mantenhamos abertas ao âmbito da natureza e da cultura que devem expressar”. (MERLEAU – PONTY, 1990, p. 56, grifos nossos)

arte e cidades 2ed.indd 311 04/11/15 18:07

312

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

13 O concurso foi realizado tendo à frente os arquitetos Leandro e Luciana Schenk, o arquiteto colaborador Daniel Paschoalin, e os estudantes de arquitetura e urbanismo Mateus Rosada e Camila Sant’Anna.

14 “Neste contexto, a Arte Pública é tratada como um modo de materializar relações sociais urbanas, um dos modos tangíveis de como a cidade se mostra e apresenta seus conflitos”. (PALLAMIN, 1994, p. 24)

15 Bernard Tschumi ao se referir a seu projeto para La Villete recusa o termo Parque propondo como uma outra conceituação para o lugar a locução: uma nova urbanidade.

16 “Os sistemas estruturais de superfície-ativa são, simultaneamente, o invólucro do espaço interno e a casca externa da construção, e, conseqüentemente, determinam forma e espaço desta. Assim, são as substâncias reais da construção e critério de sua qualidade: como as mesmas qualidades de uma máquina racional e eficiente ou uma forma estática significativa”.(ENGEL, 1981.)

referências

AB’SÁBER, Aziz. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

ARANTES, Otília B. F. Cultura e transformação urbana. In: PALLAMIN, Vera. Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2002.

_________. Urbanismo em fim de linha e outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônica. São Paulo: EDUSP, 2001

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

ARGAN, Giulio C. A história da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

CASTELLS, Manuel. A questão urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

DEUTSCHE, Rosalyn. Evictions, art and spatial politics. Massachusetts: MIT, 1996.

ENGELS, Heino. Sistemas de estruturas. São Paulo: Hemus, 1981.

HABERMAS, Jürgen. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: Série grandes cientistas sociais, v. 15. FREITAG, B.; ROUANET, P. S. (Org.). São Paulo: Ática, 1980.

_________. Técnica e cência enquanto ideologia. In: Série grandes cientistas sociais, v. 15. HABERMAS. São Paulo: Abril 1983. (Os Pensadores)

_________. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990.

arte e cidades 2ed.indd 312 04/11/15 18:07

313

luc

ian

a b

on

gio

van

ni m

ar

tin

s s

ch

en

k

ö

HANSEN, João A. A temporalidade na cultura contemporânea. In: PALLAMIN, Vera Maria; FURTADO, Joaci Pereira (DIR.). Conversas no ateliê: palestras sobre artes e humanidades. São Paulo: FAU – USP, 2002.

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993.

_________. Social justice and the city. London: Edward Arnold Publishers, 1973.

KOSIK, Karel. A dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

KUHN, Tomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1989.

LEFÈBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.

MATOS, Olgária. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In: MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos selecionados. Tradução Marilena S. Chauí e outros. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção os pensadores)

__________. O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas. Tradução Constança Marcondes César. Campinas, SP: Papirus, 1990.

MORRIS, A. E. J. Historia de la forma urbana – desde sus origenes hasta la Revolución Industrial. Barcelona: Gustavo Gili, 1984.

MUNFORD, Lewis. A cidade na história – suas origens transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes: UNB, 1982.

NEGT, Oskar. Espaço público e experiência. In: PALLAMIN, Vera M. (Org.). Cidade e cultura, esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

__________. Arte Urbana: aspectos contemporãneos. Sinopsis, São Paulo, n. 22, dez. 1994.

PALLAMIN, Vera M. Arte urbana como prática crítica. In: PALLAMIN, Vera M. (Org.). Cidade e cultura, esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2002.

PANERAI, Philippe. O retorno à cidade. Revista Projeto, São Paulo, abr. 1994.

POPPER, Karl. A filosofia da ciência – autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix / Edusp, 1977.

KOUANET, Sérgio P. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

arte e cidades 2ed.indd 313 04/11/15 18:07

314

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

ROGER, Alan. La naissance du paysage em Occident. In: SALGUEIRO, Heliana Angoti.(Org.). Paisagem e arte. São Paulo: CBHA: CNPQ: Fapesp, 2000.

ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SANTOS, Milton. Técnica espaço-tempo, globalização e meio ambiente técnico-científico e informacional. São Paulo: Hucitec, 1994.

__________. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2002.

SARTRE, Jean P. A questão de método. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.

SCHENK, Luciana Bongiovanni Martins. Elevado Costa e Silva: processo de mudança de um lugar. 1997. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo.

SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo: Nacional, 1977.

arte e cidades 2ed.indd 314 04/11/15 18:07

315 ö

Gabriel Girnos elias de souza

estetização e conflito: reflexões sobre o urbano no Projeto arte/Cidade1

A presença de arte no espaço urbano é costumeiramente pensada no sen-tido de enriquecimento simbólico e estético da cidade, e com frequência tem sido tratada em termos de um embelezamento e entretenimento que aliviem o peso do cotidiano. Cotidiano esse que compõe uma realidade particularmente árida na São Paulo contemporânea. Décadas de uma progressiva e contínua fragmentação simbólica e física do tecido urbano, junto ao radical crescimento da marginalidade e da insegurança, fizeram da paisagem urbana e do espaço público paulistano instâncias inóspitas e de difícil apreensão.

O âmbito cultural, por sua vez, teria se tornado, nas últimas décadas, um campo depositário de esperanças de recuperação da fragmentação social e simbólica; nesse contexto, a arte na cidade seria cortejada como possibilidade de embelezamento e ressemantização de uma cidade utilitária e desencantada, assim como de “democratização” de uma alta cultura normalmente elitista. Na São Paulo dos últimos anos, essa defesa das benesses da arte estaria visível, por vezes, na condução e na recepção dada a grandes eventos expositivos em espaços urbanos, como a recente Cow Parade. Nesses casos, o que parece ser esperado da “arte na cidade” – e, principalmente, o que é enfatizado na “pro-paganda” que se faz dela – permanece sendo em boa parte o momentâneo “alívio” em relação à barbárie urbana.

Entretanto, na celebração do embelezamento, da diversão ou da “de-mocratização”, a arte na cidade, muitas vezes, não é percebida em relação à

arte e cidades 2ed.indd 315 04/11/15 18:07

316

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

dimensão de valores e poderes conflituosos da cidade; e, raramente, a “arte” chega a pensar em si mesma, como produto de diferenças e interesses inte-riores à sociedade. Assim sendo, raramente pensa suas relações com a atual situação “globalizada” da economia – na qual o meio cultural, intensamente mercantilizado, estaria firmado como vetor de marketing das grandes cidades. Situação em que vetores de “animação cultural” são buscados e celebrados pela imprensa, patrocinadores e pelo público consumidor de cultura. Situação na qual uma “Cultura” distendida e onipresente, antes instrumento civilizador, tenderia muito mais ao consumo e entretenimento espetacularizados do que a uma perspectiva mais “pública” de crítica ou de reflexão a respeito da realidade.

Em tal situação, pensar a arte na cidade apenas pelo “amaciamento da rea-lidade” (WELSCH apud PALLAMIN, 2001, p. 3), é correr o risco de mantê-la como fator de reificação e espetacularização passiva da vida. A questão que motiva este trabalho, então, não é sobre a possível participação da arte na construção de um ambiente mais agradável ou coeso (estética e simbolicamente), mas na possibilidade de “construir outras compreensões da cidade através da atuação artística no espaço urbano”.

Interessados nas reverberações “mundanas” da presença da arte na cida-de, vários pesquisadores2 chamam atenção para as ligações entre a proliferação contemporânea de empreendimentos culturais e as políticas de revalorização de espaços urbanos, “ondas ‘históricas’ de reconfiguração espacial para uma nova circulação de mercadorias e revalorização de imóveis”. (RUFINONI, 2003) Vários desses autores apontam, em particular, para o caráter socialmente excludente que com frequência acompanhou essa ligação. Certas análises, como as dos críticos norte-americanos Rosalyn Deutsche (1996) e Hal Foster (1996), consideram mesmo que o emprego da arte para “restaurar” a urbanidade e a civilidade – pelo embelezamento e “humanização” da cidade – estariam calca-dos em ideias de cidade e esfera pública como instâncias de coesão e “valores coletivos” que, embora prejudicadas, poderiam ser reatadas. Tais reflexões também levantam a questão de que tal coesão seria fundamentalmente fictícia, pois a cidade teria sido, desde sempre, estruturada por conflitos e exclusões de parcelas da sociedade em prol de outras.3 Estratégias ancoradas na evoca-ção à coletividade “ideal” tenderiam a ser, então, excludentes em relação às “diferenças e conflitos”. Estes, por sua vez, seriam justamente os elementos constitutivos da cidade como espaço “político”; como colocou o filósofo Jac-ques Rancière na palestra A política da arte e seus paradoxos contemporâneos, para o

arte e cidades 2ed.indd 316 04/11/15 18:07

317

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

Seminário Internacional Estética e Política, realizado em São Paulo em 2005. A verdadeira racionalidade da política seria a do “dissenso” – “não simplesmente o conflito de interesses ou de valores entre grupos, mas, mais profundamente, a possibilidade de opor um mundo comum a um outro”

A uma perspectiva predominantemente “contemporizadora” da presença da arte na cidade, esses autores oporiam uma perspectiva “conflitiva” de am-bas, na qual a “esfera pública” não seria um espaço perturbado pelo conflito, mas “criado” pelo próprio conflito, ao abrir-se para a alteridade da sociedade e para o dissenso. É inspirado nessa oposição que este texto pretende analisar aspectos de dois exemplos extremamente singulares de arte em espaço urbano no Brasil: as últimas edições do Projeto Arte/Cidade, A cidade e suas histórias (1997) e Arte/Cidade Zona Leste (2002).

A discussão aqui colocada, todavia, irá se concentrar nesses eventos em sua condição de “discursos sobre a cidade”; não tratará de seu significado no pano-rama de produções artísticas e circuitos culturais brasileiros, e nem mesmo das consequências concretas que estas poderiam ter sobre a cidade – assunto que, embora extremamente importante, foge ao escopo e à competência deste artigo.

Projeto arte/Cidade

Em suas quatro edições, o Projeto Arte/Cidade formou a maior e mais ambiciosa experiência de intervenção artística em espaço urbano já realizada no Brasil, configurando um dos acontecimentos artísticos nacionais mais impor-tantes da década de noventa.4 O projeto surgiu em 1993, como uma iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (na gestão de Ricardo Ohtake) de realizar um grande evento artístico multimidiático. De autoria do filósofo Nelson Brissac Peixoto (então assessor para o audiovisual da Secretaria), o pro-jeto era de início calcado basicamente em três questões: “provocar um diálogo entre artistas de diferentes linguagens” – artes plásticas, fotografia, cinema, mú-sica, teatro – incluindo o debate horizontal entre artistas, críticos e curadores5 (inicialmente a grande motivação do projeto); “buscar uma fruição mais rica das obras de arte”, através do trabalho com lugares mais “vivos”, alternativos aos “espaços tranquilizadores” dos museus e galerias; “propor um novo tipo de uso para espaços degradados em processo de transição” – um uso temporário e mais aberto, sem obrigações e limitações trazidas por reformas definitivas.

arte e cidades 2ed.indd 317 04/11/15 18:07

318

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

O projeto surgiu num momento em que a cidade já adquiria grande pro-jeção como assunto em várias áreas de conhecimento. Havia então a confluência do panorama de discussões “pós-modernas” sobre interdisciplinaridade, cultura e cidade, e do conjunto crescente de iniciativas apontando para o problema da decadência dos centros históricos, com articulações do Estado e do setor privado em torno da recuperação de patrimônio urbano (a Associação Viva o Centro, surgida em São Paulo em 1991, foi um exemplo muito conhecido).

A prática artística conhecida como site-specific poderia ser considerada como a base do que se tornou modus operandi de Arte/Cidade:6 a proposta cura-dorial feita aos artistas participantes (em sua maioria artistas já consagrados) era de elaboração de obras especificamente relacionadas aos locais ocupados, criadas a partir da exploração dos potenciais formais e simbólicos destes e em relação aos temas propostos pelos curadores. Arte/Cidade, curiosamente, nas-ceu como uma proposta de “ampliação da gama de atividades institucionais” através de um tipo de prática originalmente anti-institucional; afinal, a arte (ou antiarte) para “sítios específicos”, surgida no meio contestatório do final dos anos 60, trazia em si

a aspiração estética (neo-vanguardista) de exceder as limitações dos meios tradicionais, como pintura e escultura, assim como seu aparato institucional; o desafio epistemológico de relocar o significado de dentro do objeto artístico para as contingências de seu contexto; a reestruturação radical do sujeito, de um velho modelo cartesiano para um fenomenológico de experiência vivida corporalmente; e o desejo autoconsciente de resistir às forças da economia de mercado capitalista, a qual circula trabalhos de arte como mercadorias transportáveis e trocáveis. (KWON, 2002, tradução do autor)

Historicamente, pode-se dizer que Arte/Cidade já faria parte de um mo-mento de “institucionalização” dessa prática. O projeto poderia ser encarado também como a primeira manifestação brasileira do boom mundial de eventos artísticos site-specific em espaços não-institucionais, ocorrido desde meados dos anos de 1980, dentre os quais pode-se citar o Chambres d’amis em Gand (1986), o Skulpturenboulevard em Berlin (1987), o SkulpturProjekte em Münster (1987), a Documenta 8 em Kassel (1987) e o inSite em Tijuana e San Diego (1994 - 2002). O projeto, porém, possuíra questões muito próprias: não fazia a simples celebração da cidade, tematização de “identidades” urbanas ou a constituição

arte e cidades 2ed.indd 318 04/11/15 18:07

319

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

de “lugares”, mas visava intervenções temporárias abordando questões de “percepção” – da arte na cidade, da cidade na arte, da cidade “através” da arte.

A iniciativa previa desde o princípio, três conjuntos de exposições, cada uma com temas, situações urbanas e conjuntos de artistas distintos e progres-sivamente mais amplos. As duas primeiras, Cidade sem Janelas – que ocuparia o edifício abandonado do Matadouro Central, no bairro da Vila Mariana – e a Cidade e seus Fluxos – locado em três edifícios e no espaço público do Vale do Anhangabaú – aconteceriam em 1994; a terceira, A Cidade com suas Histórias, teve como cenário as estradas de ferro internas a cidade de São Paulo e a decadência industrial que as cerca, e foi concluída em 1997; a quarta edição, não prevista originalmente, Arte/Cidade Zona Leste, foi terminada em 2002 e interveio em diversos pontos de bairros da Zona Leste de São Paulo, enfocando as questões urbanas destes.7 As duas primeiras fases ocorreram sob a égide da Secretaria de Estado da Cultura, mas as duas últimas já foram organizadas por uma entidade própria, o Grupo de Intervenção Urbana.8 O projeto, porém, manteve um caráter “não-comercial”, com acesso gratuito em todas as exposições.

No desenrolar de suas sucessivas edições, Arte/Cidade passou por uma crescente aproximação em relação a questões urbanas. A cidade, que de início seria “catalisador” e “pano de fundo” para a produção e exposição de obras artísticas, foi gradualmente para o primeiro plano. A escolha deste trabalho por abordar mais pormenorizadamente as duas últimas edições do projeto decorre justamente dessa transformação: entre A Cidade e suas Histórias e Arte/Cidade Zona Leste há uma transição muito importante nas formas de entender e tratar a cidade. Ambas foram gestadas durante anos, envolveram múltiplas negociações com agentes urbanos, tiveram participações teóricas e práticas de arquitetos e urbanistas, travaram contato com sérios dilemas urbanos e resul-taram em eventos imensos e complexos; entretanto, entre uma e outra haveria uma visível diferença de cunho político. A breve comparação entre ambas feita aqui visa ilustrar as diferentes abordagens e discursos, e refletir sobre algumas das noções da relação entre arte e cidade em jogo.

a Cidade e suas Histórias: arqueologia artística

Com a ideia básica de “uma intervenção em pontos a serem acessados pela linha férrea, revisitando locais hoje isolados da vida urbana” (PEIXOTO, 2002a, p. 156), A Cidade e suas Histórias dedicou-se à “chaga urbana” representada

arte e cidades 2ed.indd 319 04/11/15 18:07

320

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

pela estrada de ferro metropolitana. A exposição resultante (preparada entre 1995 e 1997) foi um impressionante percurso ferroviário de cinco quilômetros entre os bairros Luz e Água Branca (junto às linhas ferroviárias das Estradas Sorocabana e Santos-Jundiaí), através de áreas industriais isoladas e arruinadas em pleno centro de São Paulo – “uma cidade morta nas entranhas da cidade atual”. (MAMMI, 1997) O itinerário apresentava três pontos de parada:

- a Estação da Luz, que sendo ao mesmo tempo um símbolo histórico paulistano e um equipamento intensamente usado, serviria como um portal de entrada no mundo cotidiano de história ainda “viva” para o mundo morto e esquecido das áreas de intervenção;

- o Moinho Central, no bairro da Barra Funda, que era literalmente uma “terra-de-ninguém”: um imóvel devoluto completamente abandonado (antes propriedade da Santista Alimentos S.A.) e ilhado entre linhas férreas, com um imenso edifício de cinco andares e seis grandes silos de armazenagem. As edificações encontravam-se muito degradadas pela ocupação marginal: ocasionais usuários de drogas, traficantes, sucateiros e desabrigados que, a despeito da vigilância da Rede Ferroviária Federal, se abrigariam lá. O interior do grande edifício seria “um espaço lúgubre, coberto de dejetos” (PEIXOTO, 2002), com vestígios fantasmagóricos de uso humano – desenhos, mensagens e rastros diversos;

- o terreno das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, no bairro de Água Branca, que seria tanto ponto final como a outra entrada para a exposição. Era uma área estagnada e apartada por um grande muro, porém mais facilmente integrável à cidade que o Moinho: era propriedade da empresa Ricci Engenharia, e não estava ilhada, mas contígua à movimentada Avenida Francisco Matarazzo. Daquele que fora o maior complexo fabril brasileiro restaria apenas a casa das caldeiras, o galpão de embarque e três chaminés – edificações que, ao contrário do Moinho, exibiam ainda as marcas de seu uso original.

Na temática proposta pelo evento, trazia-se uma discussão sobre a memória e o ocaso da modernidade industrial do século XX. As Indústrias abandonadas e trens sucateados apareciam como imagens de um “futuro pretérito”, destroços do sonho moderno em meio a tempos “pós-modernos” e “pós-industriais”.9 A História paulistana específica era enquadrada pelo significado e crise da era mecânica, da memória e da narrativa urbanas – termos de debates internacio-

arte e cidades 2ed.indd 320 04/11/15 18:07

321

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

nais. Era frisada, entretanto, a necessidade de evitar idealização e saudosismo: “Arte/Cidade não vai fazer um trajeto nostálgico, não vai ser um túnel do tempo, uma Disneylândia de sucata. É um embate com uma situação muito tensa”. (PEIXOTO, 1995) Os organizadores de Arte/Cidade tentavam ressaltar a “presença viva” desse passado industrial no imaginário atual e o destino do trem na metrópole contemporânea – “pensar o trem e o futuro das megaci-dades por meio da arte e da tecnologia” (PEIXOTO, 1995), apontando para a característica autodestrutiva de São Paulo.

Figura 1 - Edifício do Moinho Central ocupado pelo evento A Cidade e suas Histórias, 1997. Na foto estão visíveis a Intervenção em Escala Urbana e o Kinotrem

Fonte: Grupo de Intervenção Urbana, 1997.

Seria ingênuo esperar que a arte, a arquitetura e o urbanismo tivessem a capacidade de recompor essa memória [da cidade]. A metrópole, especialmente São Paulo, trabalha sistematicamente pelo apagamento, pela destruição contínua e reconstrução incessante dos mesmos espaços. [...] O que as intervenções fazem é aflorar esse trabalho inconsciente de ocultar o seu passado, de negar o seu passado. São Paulo é uma cidade voltada para o esquecimento, para o auto-esquecimento. Esse

arte e cidades 2ed.indd 321 04/11/15 18:07

322

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

processo perverso, ao ser evidenciado, permite que, nessas fissuras, nas entranhas, nos desvãos desses muros, por entre esses telhados caídos, a gente consiga recuperar indícios dessa narrativa e trabalhar os fragmentos dessa história perdida, de modo a obter um quadro, ainda que fragmentado, desse passado, e que aponte suas possibilidades. (PEIXOTO, 1997, p. 10)

A estrutura expositiva montada para a visitação das ruínas foi gigantesca (e inédita para Arte/Cidade). Incluiu um amplo e delicado projeto de adequação arquitetônica, mais a adaptação e reforma de ramais ferroviários e de vagões de trens; um trem especial para o evento, o Kinotrem – que, “inspirado” em experiências da vanguarda russa, era ao mesmo tempo transporte, comunicação visual e parte de um circuito mediático; e um sistema de grandes intervenções cromáticas a demarcar sua presença na cidade (as chamadas “Intervenções em Escala Urbana”, cobrindo de vermelho-passarelas, torres de escada e viadutos no percurso da mostra). O número de participantes (trinta e três) foi o maior de todos os Arte/Cidade, incluindo nomes de peso como os artistas Cildo Meirelles, Carlos Vergara e Nelson Félix, e os arquitetos Ruy Ohtake e Paulo Mendes da Rocha.

A exposição demorou três anos para ser realizada, tamanha a complexi-dade e as proporções alcançadas, que exigiram muitos levantamentos, múltiplas negociações com diferentes instâncias administrativas, múltiplas empresas, e as companhias ligadas à estrada de ferro (RFFSA, CPTM, FEPASA) para obtenção de patrocínio, permissão e know-how – além de também ter exigido insólitos e tensos contatos com os ocupantes do Moinho para tratar de sua retirada. Marta Bogéa, responsável pelo Projeto de Adequação Arquitetônica dos Espaços, em depoimento concedido ao autor em 6 de julho 2005, diz:

Não sei te dizer quantas pessoas havia ali; havia pessoas. À medida, que a gente foi ocupando esse espaço essas pessoas naturalmente foram se deslocando, porque era sempre gente da borda, que não queria convívio. [...] no final da obra, num determinado momento, tinha um grupo que estava ocupando aquela torre [do Moinho]. E eles tinham coisas, e houve uma negociação. [...] Não sei dizer em que termos de negociação a produção resolveu isso, mas eles sairiam do espaço, tendo claro que aquele era um projeto transitório, a gente não estava transformando o edifício.10

arte e cidades 2ed.indd 322 04/11/15 18:07

323

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

Obras muito significativas foram realizadas: Nelson Félix, por exemplo, trouxe rica tensão à lógica estrutural e espacial do Moinho, ao cortar e pendurar três lajes do edifício: uma intervenção incisiva nas relações de peso e espaço que carregava reverberações mais amplas que o puramente formal.11 No conjunto das obras, da estrutura expositiva e das discussões vindas a público, A Cidade e suas Histórias abarcou enfoques que tratavam desde a experiência sensível da decrepitude dos locais e seus resquícios mínimos até as imensas escalas urbanas compreendidas pelo evento, inapreensíveis pela vivência individual; contudo, foi a abordagem “histórica” – a exploração dos locais em termos de sua memória e significados latentes – que mais teria marcado o evento para o grande público. O que não é de estranhar levando em conta que, nesses anos, o patrimônio histórico era assunto muito discutido na capital paulista, com as políticas de recuperação crescendo e recebendo grande injeção de dinheiro privado e público.12

De maneira geral, porém, a mostra teria apresentado dificuldade em elaborar os significados dos locais, assim como em travar um diálogo à altura do impacto e das questões presentes, que além de estéticas também eram ur-banísticas, políticas e sociais. Houve vários trabalhos problemáticos, a maioria operando com referências e alegorias; grosso modo, estes não teriam conseguido ultrapassar a representação dos locais e criar uma articulação mais impactante entre passado e presente. O tratamento gráfico do Kinotrem (uma abstração “cinética” composta pelo designer Ricardo Ribenboim), por exemplo, teria uma inclinação demasiadamente “publicitária” e historicista em sua alusão declarada às vanguardas construtivistas soviéticas. O projeto dispendioso, complexo e malsucedido de Ruy Ohtake – uma estrutura de aço motorizada e espelhada com um gigantesco arco colorido e inflável, cuja outra ponta estaria presa na boca de uma das chaminés – também não proporia mais que uma “conexão literal, mais do que prosaica, entre o velho e o novo”. (ANDREOLI; SANTOS in: PEIXOTO, 2002a, p. 291)

Mas os problemas mais sérios estariam talvez nos trabalhos que aludiam à miséria e marginalidade, como as duas instalações de Cildo Meireles. Estas consistiam em milhares de seringas fincadas em paredes de uma sala nos galpões Matarazzo e outras centenas num trecho do chão do moinho – em volta de um gigantesco cachimbo de crack. Elaborar diretamente a presença ainda “fresca” de uma indigência real é sempre problemático, guarda graves implicações de espe-tacularização e estetização da miséria. Numa hipótese mais extrema, porém, a

arte e cidades 2ed.indd 323 04/11/15 18:07

324

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

estetização irônica do trabalho de Meirelles talvez ainda funcionasse para “induzir no espectador uma passividade incômoda diante de sua própria cumplicidade” (WOOD et al., 1998, p. 210),13 evidenciar uma faceta sombria da própria ex-posição: um megaevento cultural que, a despeito de seu discurso, acabou por “higienizar” temporariamente os locais de visitação e fazer da marginalidade um espetáculo. De qualquer maneira, o resultado continuaria problemático, e mos-trava uma dimensão irônica (e trágica) da iniciativa: artistas só podiam “mostrar” a marginalidade social porque a presença real desta fora extraída.

Figura 2 - Instalação de Cildo Meireles no Moinho Central para A Cidade e suas Histórias

Fonte: Folha de São Paulo, 15/10/1997.

Pesando-se o resultado final da exposição, a simples experiência de visitação às ruínas teria sido mais forte e expressiva que o conjunto dos trabalhos, ofuscado pela expressividade, a monumentalidade e a presença urbana dos sítios.14

O problema do Arte/Cidade 3, enquanto exposição de arte, não é a falta de boas obras [...]: o problema é que, se as obras fossem outras, o significado da exposição seria mais ou menos o mesmo. [...] talvez

arte e cidades 2ed.indd 324 04/11/15 18:07

325

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

a crise surja por termos chegado, dessa vez, ao cerne da questão: São Paulo não nasceu de um conjunto de moradias, mas de uma empreitada industrial, que já embutia em si toda a violência posterior. A descoberta da cena do crime, a exumação do cadáver é tão impactante que não deixa espaço para comentários. As obras ficam à margem. (MAMMI, 20/11/1997)

O evento concentrou-se em uma leitura “arqueológica” e formal das ruínas; ao se dedicar às potencialidades sensíveis, porém, o evento não pôde acrescentar muito ao impacto dos próprios lugares – o que compreenderia, talvez, em justamente expor e trabalhar relações que não estavam declaradas. Nesse sentido, é significativo que o intuito declarado de “apontar possibilida-des” para os locais não tenha implicado – nem nas intervenções nem no discurso – em um enfoque dos “processos então em andamento” na situação na qual se interveio. Não se atentou mais para o cruel processo de sucateamento (e futura privatização) das companhias de trem, nem para os interesses e especulações imobiliários em torno do terreno Matarazzo em uma área com perspectiva de futuros investimentos através da anunciada Operação Água Branca – parte de estratégias muito questionáveis de “parcerias público-privado” – para re-desenvolvimento urbano.15 O próprio estado de ruína do local estaria ligado às vicissitudes de ter uma condição imobiliária proveitosa: afinal, foi para dar outros fins ao imóvel que a família Matarazzo teria demolido o parque industrial decadente em 1986, imediatamente após seu tombamento como patrimônio. Diante disso, várias das referências feitas à “autofagia” e ao “apagamento” de São Paulo parecem ainda vagas ou quase naturalizadas. Nelson Brissac, em entrevista concedida ao autor, em 16 de maio de 2005, disse:

Eu acho que, retrospectivamente falando, a gente operou no Arte/Cidade 3 de forma interessante do ponto de vista da memória, do ponto de vista da experiência, do ponto de vista da sugestão de um possível futuro outro para aqueles lugares, mas ainda extremamente marcados por uma visão estética das coisas. [...] a gente perdeu grandes oportunidades de fazer discussões mais a fundo a respeito dos projetos existentes para aquela área do ponto de vista urbanístico. Havia uma discussão mais a fundo do problema do futuro da rede ferroviária, dos rumos do transporte ferroviário na metrópole... as políticas, todas as operações urbanas, Água Branca, tudo aquilo que estava rolando. A gente não tinha

arte e cidades 2ed.indd 325 04/11/15 18:07

326

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

repertório pra isso. [...] poderia ter sido politicamente mais audaz, questionando o futuro da região da Água Branca, sobre os projetos da Ricci Engenharia. [...] não passou pela cabeça ter uma visão mais crítica com relação à questão da especulação imobiliária. Uma reconstituição da história daquele local, por exemplo, no sentido de que a especulação imobiliária veio antes da Ricci, veio quando a própria família Matarazzo destruiu aquilo lá.

Anos depois, a situação das duas áreas mostraria sua fragilidade: a área Matarazzo tornou-se um local de uso completamente privatizado – como aliás nunca deixou de ser, a não ser pelo breve tempo de visitação de A Cidade e suas Histórias. O terreno foi ocupado por um conjunto corporativo de arranha-céus – o Centro empresarial Água Branca – e o edifício da Caldeira foi transformado em um decorativo “espaço de eventos”, extremamente convencional e de acesso restrito. O terreno e o edifício do Moinho, em contrapartida, tornaram-se uma grande favela, com centenas de moradores. As direções diametralmente opostas tomadas pelos dois casos seriam, como o próprio coordenador de Arte/Cidade diria recentemente, “emblemáticas do que é o Brasil, do que é São Paulo”.

Figura 3 e 4 - Comparação entre a situação atual do antigo terreno Matarazzo à direita (foto do arquivo do autor) e a situação atual da área do Moinho, à esquerda

Fonte: Peixoto (2002).

arte e cidades 2ed.indd 326 04/11/15 18:07

327

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

Embora A Cidade e suas Histórias fosse a única iniciativa cultural brasileira até então a se envolver tão profundamente na infraestrutura urbana e a construir um leque tão amplo de contatos e negociações em torno de uma exposição, sua relação com diferentes instâncias e dinâmicas da cidade (de grandes em-presas a sem-teto) não ultrapassou os “bastidores” da produção. Não houve intervenções que visassem escavar mais a fundo as possibilidades latentes ou negadas da situação, que procurassem tensionar ou demarcar as relações entre a decadência exibida e o jogo corrente de forças políticas – uma atitude que, embora talvez pouco usual (especialmente ao quadro artístico brasileiro), não seria nenhuma novidade no mundo das artes plásticas.

arte/Cidade zona leste: campo de guerra

A edição seguinte de Arte/Cidade aconteceria cinco anos depois, em 2002; nesse tempo, mudanças consideráveis ocorreriam no interior do projeto, no con-junto de seus organizadores e em suas concepções, resultando numa radicalização que traria enfoques mais controversos e incisivos, mais abertamente políticos.

Arte/Cidade Zona Leste surgiu de um projeto paralelo do Grupo de Inter-venção Urbana, denominado BrasMitte. Este foi originalmente uma ambiciosa proposta de intervenção artística internacional envolvendo os bairros do Brás, em São Paulo, e de Mitte, em Berlim, tendo como assunto a degradação de áreas urbanas centrais em meio à globalização. A iniciativa de traçar um para-lelo artístico entre os dois bairros não se efetivou – e foi julgada questionável até por intelectuais que participaram dos primeiros debates a respeito, como Barbara Freitag e Armin Medosch. (LUDEMANN, 1997) O BrasMitte, po-rém, iniciou o contato de Arte/Cidade com a Zona Leste de São Paulo, assim como uma série de importantes diálogos com intelectuais e artistas estrangeiros entre 1998 e 1999.16 Esses contatos possibilitaram uma grande participação de artistas estrangeiros no evento final, e foram importantes para os novos rumos que o projeto tomou em suas ações e discursos, em especial porque entre os interlocutores estrangeiros houve expoentes de práticas artísticas radicalmente politizadas – como o alemão Hans Haacke e o polonês Krzysztof Wodiczko – e experientes em intervir em situações urbanas complexas.

A região contemplada pelo evento – que, além do Brás, compreendia os bairros do Pari, Mooca e Belenzinho, de caráter conhecidamente popular – fazia parte da antiga periferia industrial da cidade, e tal qual a região de A Cidade e suas

arte e cidades 2ed.indd 327 04/11/15 18:07

328

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Histórias, fora drasticamente afetada pela desindustrialização, e se caracterizava por edifícios em degradação, espaços públicos desfigurados e desarticulados por imensas obras viárias. Diferente do evento anterior, porém, não se tratava agora de espaços apartados da vida urbana cotidiana, mas de uma zona muito movimentada e particularmente marcada pela ocupação informal dos espaços: ambulantes, catadores de lixo, favelados e desabrigados, toda uma população nômade ou seminômade vivendo à margem da cidade formal.

Figura 5 - conjunção de viadutos, terrenos baldios e barracos em ponto da Zona Leste

Fonte: Ludemann (1997).

Entretanto, como parte dessa região desvalorizada era dotada de infraes-trutura e boa localização junto ao centro da cidade, também estava contemplada por interesses de grande capital corporativo. O grande marco dessa condição foi a propaganda e o debate iniciado em 1999 em torno da construção de um megacomplexo arquitetônico no Pari, a Maharishi SP Tower (que, no final, não foi realizado). Além da gigantesca torre, o projeto previa uma reestruturação radical de uma área imensa, a qual seria adaptada a padrões corporativos de monumentalidade e de “civilidade” cenográfica – o que implicaria, obviamente,

arte e cidades 2ed.indd 328 04/11/15 18:07

329

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

na retirada massiva da população de baixa renda já existente – e tudo com apoio total do governo municipal.17

O extremo contraste entre interesses imobiliários empresariais e usos informais e miseráveis presentes na área (análogo aos diferentes destinos que os terrenos do Moinho e da Matarazzo tomariam nesses mesmos anos) tornou-se um dos pontos importantes para o discurso de Arte/Cidade Zona Leste, que pas-sava a se referir ao espaço urbano como “campo de guerra”: local da diluição da coletividade e da esfera pública na violência e na segregação, e da generalização da apropriação privada do espaço – seja a incorporação “capturadora” do grande capital ou a invasão “tática” do camelô. O tom controverso e crítico que seria assumido pelo evento – por vezes apontando diretamente nomes que estariam ligados a diferentes processos “perversos” na cidade – renderia inimizades ao projeto, que pela primeira vez teria oponentes declarados.18

Arte/Cidade Zona Leste trouxe um recorte temático completamente distin-to das experiências anteriores de Arte/Cidade: não o uso da arte para a exploração do potencial plástico e simbólico de lugares, mas o emprego de intervenções para articular leituras de uma região – e leituras, em grande parte, justamente daquilo que não teria sido contemplado pelo evento anterior: os processos, usos e interesses “mundanos” e presentes sobre o espaço metropolitano.

Arte/Cidade propõe uma nova modalidade de intervenção urbana: partir de toda uma região, compreendendo os processos de reestruturação urbana, os elementos arquitetônicos e as formas de ocupação existentes e as operações previstas ou em andamento. (PEIXOTO, 2002a, 2003)

A gama de temas levantados pelo evento foi imensa, complexa e variada como a própria área, incluindo questões infraestruturais, sociais e políticas. Um enorme levantamento da Zona Leste foi realizado, à procura dos locais e das situações mais significativas: pontos nevrálgicos pelos quais marcar algu-mas das questões candentes da região a serem escolhidos e trabalhados pelos artistas convidados.

A exposição final (entre março e abril de 2002) possuiu intervenções de vinte e oito participantes, das quais catorze ficariam espalhadas por locais da cidade (Figura 5) e doze concentravam-se na Torre Leste das edificações aban-donadas da Indústria Santista, que haviam então sido convertidas em sede do

arte e cidades 2ed.indd 329 04/11/15 18:07

330

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

SESC Belenzinho – que se tornara o grande parceiro do empreendimento.19 Estabeleceu-se uma divisão clara entre as intervenções em espaço urbano e as instalações na torre Leste; e é interessante pensar que, enquanto a maioria dos convidados estrangeiros foi para a cidade, a maioria dos brasileiros ocuparam o interior do edifício. De maneira geral, a exposição montada na torre se as-semelhou em certa medida à exposição de A Cidade e suas Histórias: primeiro, por também se dar em uma grande edificação industrial em ruínas; segundo, por ter concentrado intervenções cujas questões eram muito próximas da “ar-queologia” física e simbólica empreendida pela exposição anterior (ainda que, no geral, as intervenções tenham possuído mais audácia e maturidade nesse sentido);20 e terceiro porque, por imposição do SESC, os muros entre a rua e a torre não puderam ser derrubados,21 de modo que ela acabou se tornando um espaço “artístico” – um problema da edição anterior. Brissac, em entrevista concedida ao autor em 16 de maio de 2005 relata:

[...] uma limitação que a gente tentou evitar no Arte/Cidade seguinte, da Zona Leste, foi entender aquele espaço como um espaço de exposição, de visitação. Um espaço pelo qual você é responsável. Que quem vai lá é um público, e não um habitante da cidade. Essa diferença é fundamental quando se trata de intervenção urbana; você não pode fazer intervenções urbanas que sejam entendidas como a configuração de um espaço artístico.

A despeito da contundência, o conjunto das intervenções no meio urbano foi relativamente pouco visível. Como exposição artística, essa parte de Arte/Cidade Zona Leste era muito mais difusa, e por isso, talvez, menos impactante para a grande maioria dos visitantes do que, por exemplo, a edição anterior do projeto. A visita do público “cultural” paulistano, porém, seria menos interes-sante ao evento do que a convivência cotidiana estabelecida pelos milhares de passantes e habitantes da zona leste. Nelson Brissac em 1º de maio de 2004, em entrevista concedida ao autor, opina:

O que eu acho que é interessante no Arte/Cidade é a corrosão crescente da noção de público. [...] Lá na Zona Leste, você tem 2 milhões de pessoas que moram na região. Não vai chamar essas pessoas de “público”. [...] Não eram eles que estavam indo lá, éramos nós. Então muda radicalmente a idéia de algo ser feito para ser visitado.

arte e cidades 2ed.indd 330 04/11/15 18:07

331

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

[...] Muda totalmente a questão da percepção, da recepção da obra de arte. Ela passa a ser uma intervenção num espaço de vivência cotidiana e não mais um objeto colocado para ser visto como obra de arte necessariamente – a maioria das pessoas que se relacionam com aquilo nem se relacionam enquanto obra de arte.

Entre os artistas que atuaram no espaço urbano, foram apresentadas abordagens substancialmente distintas de todas as ocorridas no projeto Arte/Cidade, até então; estas teriam recebido mais ênfase no discurso da curadoria do evento, sendo talvez o principal diferencial de Arte/Cidade Zona Leste em relação à mostra precedente – e, portanto, interessando mais a este estudo. A maioria dessas intervenções trabalhava com populações informais e marginalizadas: os moradores de rua (os americanos Vito Acconci e Dennis Adams), os favela-dos (o grupo holandês Atelier Van Lieshout), os catadores de papel (o polonês Krzysztof Wodiczko), os ocupantes clandestinos de prédios ociosos (o arqui-teto holandês Rem Koolhaas e o grupo brasileiro Casa Blindada), os camelôs (Carlos Vergara e a dupla Maurício Dias e Walter Riedweg). O fator principal dessa atenção dada aos estratos marginalizados seria a escolha pelo contato e participação destes – ou, pelo menos, por esforços e tentativas nesse sentido.22

As participações dos estrangeiros Krzysztof Wodiczko e Vito Acconci – possivelmente as mais polêmicas – poderiam ser descritas como “criar produtos inaceitáveis para um mundo inaceitável”. (WODICZKO apud MORAES, 1998) Acconci projetou o “Equipamento para moradores de rua”, um “cen-tro de convivência” para a população desabrigada, embaixo de um viaduto;23 Wodiczko foi idealizador e consultor de um projeto de “veículos críticos” para catadores de papel, cujos protótipos circularam nas ruas durante a duração do evento. A “intervenção urbana” ocasionada por tais obras não estaria na “representação” das condições dessas pessoas e nem na eficiência do design; ela começaria no processo desencadeado para seu desenvolvimento – que, no caso veículo exigira diversas parcerias para viabilização e uma pesquisa e interlocução estreita com as comunidades de catadores, de modo, a levantar necessidades e testar os protótipos.

Não há escolha a não ser estabelecer contato com as pessoas que moram nessas áreas e desenvolver projetos específicos com eles, em que eles serão os atores principais. Em vez de trabalhar em nome

arte e cidades 2ed.indd 331 04/11/15 18:07

332

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

deles, deixá-los ser parte. Isso é muito difícil, porque, claramente, há conflitos e antagonismos. (WODICZKO in 1998)

Figura 6 - O artista Krzysztof Wodiczko (à direita) dialogando com catadores de papel no bairro do Brás, 2001

Fonte: arquivo Arte/Cidade.

Figura 7 - Equipamento para moradores de rua, projetado por Vito Acconci para Arte/Cidade Zona Leste. Viaduto do Largo Glicério, 2002

Fonte: arquivo Arte/Cidade.

arte e cidades 2ed.indd 332 04/11/15 18:07

333

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

Estas obras não tratavam de questões de percepção física do espaço, mas de “visibilidade social”: acarretar um choque a partir da visão dessas pessoas, cuja marca principal é a precariedade, utilizando um produto de design – um objeto “elaborado especificamente para elas”. O objeto não seria uma “solução”, mas principalmente, um aparelho dedicado a evidenciar e “gerar debate” em torno de uma questão socialmente “invisível”.

O veículo torna-se um veículo de comunicação, porque é um objeto legítimo, não “roubado”. As pessoas começam a imaginar soluções que substituiriam esses projetos ridículos. Mas o projeto é ridículo porque a situação é ridícula. (idem)24

Nestes trabalhos, o campo da “arte” não aparece como “lugar privi-legiado” e autônomo da pesquisa poética e fenomenológica, mas como um campo que possibilita a construção de fazeres e processos que não estejam pré-condicionados pelas estruturas de representação, ação e utilidade da vida cotidiana. A contribuição desta “arte” para a cidade é pensada, assim, para além do plano da forma estética, da indagação perceptiva ou de seu imaginário: ela serve de “laboratório para práticas críticas diferenciadas”.

As duas obras foram muito criticadas, principalmente no que toca à “exposição humilhante” da situação das pessoas envolvidas – algo que prova-velmente já seria esperado. Mas embora muitas das críticas fossem superficiais e conservadoras, existem indagações pertinentes sobre os limites e deficiências dessas realizações, as quais necessitam de debate. Uma destas, que também se aplica ao terceiro Arte/Cidade, é a de “qual a possibilidade crítica do evi-denciamento da miséria” em meio à tendência contemporânea de estetização generalizada, na qual a evidência, tornada passiva e espetacular, tem dificulda-de em ser “política”. Questão particularmente relevante em vista da extrema permissividade à miséria que caracteriza o Brasil, onde a convivência, a ba-nalização e a “despolitização” em relação ao absurdo social são desmesuradas. Outra questão seria sobre o “limite ético do experimentalismo” ao se tratar do espaço social real: quais as implicações, por exemplo, de realizar ações de melhoria e diálogos com populações de absoluta carência sem ter meios de fazer algo duradouro por elas – ou seja, gerar possíveis expectativas de melhoria e reconhecimento sem poder atender a essas mesmas. Não se trata de condenar tais experimentos, mas levantar a questão de quais seriam os parâmetros éticos para que sejam feitos dignamente.

arte e cidades 2ed.indd 333 04/11/15 18:07

334

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Em defesa de Arte/Cidade há o fato de que tais experiências não teriam sido simplesmente impostas, mas realizadas em conjunto com os grupos contemplados; estes teriam sido tratados como “atores sociais”: “não como indivíduos ou grupos a ser evacuados, mas como interlocutores para o desen-volvimento de políticas”. (PEIXOTO, 2002d) Em termos de contribuir para a reflexão sobre a cidade, pode-se considerar que tais operações já têm um espectro de ação mais largo e profundo do que, por exemplo, as obras alusivas à miséria e violência em A Cidade e suas Histórias. Mas é sempre indispensável perguntar sobre o nível de cuidado efetivo de Arte/Cidade no desenvolvimento dessas iniciativas, e o quanto seu próprio formato de megaevento – um modelo temporário, com inevitáveis conotações espetaculares e múltiplas urgências pragmáticas – pode acabar sendo um entrave para estas.

“bem comum” e conflito

Apresentados alguns dos aspectos das duas exposições, ficam patentes certas diferenças profundas de tratamento com o ambiente urbano; estas, por sua vez, podem ser compreendidas, como concernentes a distinções nas con-cepções de cidade, espaço público e da relação que a arte estabelece com estes. Ambas as edições de Arte/Cidade procuraram ser críticas e fomentar discussões; é possível dizer que a mudança geral que ocorreu entre as duas nesse sentido não seria de uma posição de “entretenimento” para uma “crítica”, mas sim de uma perspectiva de “bem comum” para uma perspectiva “conflituosa”.

A Cidade e suas Histórias não fora um simples espetáculo ou uma em-preitada comercial, nem procurou ser alguma pretensa recuperação artística de espaços urbanos. Comparado às muitas iniciativas culturais de reforma de patrimônio que tinham então lugar em São Paulo – assim como à maioria dos eventos artísticos desde então – essa exposição mostrou-se algo muito mais experimental e especulativo. Não restaurava locais, mas chamava atenção para eles; não se punha simplesmente a construir encenações da importância his-tórica e pública destes, mas procurava privilegiar reflexões sobre significados latentes e novos.

Uma das características mais interessantes do Arte/Cidade como um todo é a prática de dialogar com espaços de indiscutível peso simbólico para a leitura da história da cidade sem ceder à tentação de sucumbir à sua reificação. Uma reificação que só concorre efetivamente para

arte e cidades 2ed.indd 334 04/11/15 18:07

335

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

esvaziar a historicidade dos lugares, como antigas fábricas, estações de trem, mercados, que são travestidos em shoppings ou centros culturais, com perfis absolutamente distantes das práticas sociais que fundaram sua construção. As restaurações desse tipo tendem a acreditar que a cultura ocorre em um lugar diferente da esfera pragmática da vida e por isso precisam colocar entre parênteses a historicidade dos lugares de que se apropriam. O projeto Arte/Cidade, desde sua primeira etapa, no antigo Matadouro Municipal da Vila Mariana, recusa essa hipótese. [...] Isso porque não se faz o make up dos lugares em que se intervém. Arte/Cidade não os arruma, não os enfeita, não os fantasia. (BEIGUELMAN in LUDEMANN, 1997, p. 93-94)

Todavia, a despeito de “não enfeitar” lugares, A Cidade e suas Histórias não conseguiu deixar de colocar um enquadramento artístico e expositivo nos sítios – até pela inevitável lógica de visitação controlada exigida pela situação e por sua responsabilidade como megaevento. Embora fosse pensada como uma valorização e uma sinalização, essa sutil “moldura” colocada por Arte/Cidade 3 em seus locais de intervenção (reflexos talvez do próprio emparedamento físico e histórico ao qual estavam submetidos), contribuiria para sua estetização e reificação como um espetáculo, uma experiência estética a ser consumida. O projeto não levaria em conta, então, as possíveis ramificações negativas de sua própria intervenção.

A citação de Regina Meyer em entrevista concedida ao autor em 06 de julho 2005, renomada urbanista e integrante do Grupo de Intervenção Urbana na época de A Cidade e suas Histórias, lança luzes sobre as perspectivas pelas quais seus organizadores pensariam a contribuição da exposição a São Paulo:

A idéia era lidar com tudo aquilo pra ver que motivações aquilo ainda guardava, que potencialidade de transformação estava colocada ali [...] então era olhar para aqueles espaços com um olhar que não fosse o da mercadoria [...]. O fato de ser arte, de ser efêmero, tira aquele lugar temporariamente do circuito da mercadoria. Eu acho que isso que eu estou falando é a essência do Arte/Cidade 3: você tirar aquele espaço do circuito da mercadoria e colocar numa outra dimensão, nem que fosse por um segundo. Quando uma coisa é colocada por um segundo numa outra dimensão, mesmo que ela volte para sua situação antiga, para o circuito da mercadoria, a memória daquele segundo vai permanecer. É uma máscara. A idéia era marcar situações, [...] que as coisas não

arte e cidades 2ed.indd 335 04/11/15 18:07

336

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

sejam mais unidimensionais [...] Eu acho que é esse o papel, é você lidar, fertilizar o seu imaginário urbano.

Nessa fala, a arte é como possibilidade de liberdade momentânea em relação à dimensão utilitária e alienante que predomina na metrópole. O pro-blema dessa perspectiva, por mais poética e bem-intencionada que possa ser, é sua inclinação a colocar a cultura e a estética em um plano separado do conflito de poderes e interesses da cidade. A arte então parece carregar ainda as cono-tações de uma

Ilha sagrada oposta, sistemática e ostensivamente, ao mundo cotidiano profano da produção, um santuário para a atividade gratuita e desinteressada em um universo entregue ao dinheiro e ao interesse próprio, [que] oferece, tal como a teologia em épocas passadas, uma antropologia imaginária obtida por uma recusa de todas as negações realmente provocadas pela economia. (BORDIEU apud WOOD et al., 1998, p. 70)

Tal depoimento permite perguntar se o terceiro Arte/Cidade, em seu âmago, não estaria ligado ainda a uma ideia não-conflituosa de esfera pública e cidade: o espaço urbano como um “patrimônio comum”, cujos espaços esquecidos seriam reservatórios de valor cultural e estético a ser enfatizado e trabalhado pela arte. A Cidade e suas Histórias, assim, ainda parece ligado à ideia de uma dimensão de “bem comum” a ser trazido à tona, “através” da cultura, de dentro da cidade mesquinha da mercadoria e do cotidiano; ideia de uma possível dimensão autônoma, para além dos conflitos – que, para autores como Rosalyn Deutsche, seria simplesmente fictícia. Sem “tensionar” politicamen-te as condições da realidade em que se insere, uma intervenção temporária dificilmente tiraria lugares do circuito da mercadoria, mesmo no plano do imaginário. Antes, talvez, corresse o risco de contribuir para o aproveitamen-to momentâneo de espaços urbanos por outra ordem de mercadoria – não o capital imobiliário “duro”, mas o consumo “flexível” de entretenimento no grande museu ampliado da cidade-turismo.

Arte/Cidade Zona Leste, por outro lado, já se aproximaria a uma concepção basicamente conflituosa e política de cidade, na qual a arte não é lugar autô-

arte e cidades 2ed.indd 336 04/11/15 18:07

337

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

nomo, mas essencialmente uma prática inserida em meio a outras forças em jogo. Nelson Brissac em entrevista concedida ao autor em 1º de maio 2004.

Você não pode fazer um projeto como esse na ilusão de que você está atuando na cidade de maneira neutra. Isso não existe, quanto maior a intervenção, com mais interesses conflitivos você está lidando, e você é obrigado a ser consciente disso.

Nesse sentido, é extremamente significativa a relação estabelecida por cada um dos eventos com aqueles que habitavam as “fissuras” da cidade. A retirada dos ocupantes clandestinos do Moinho em A Cidade e suas Histó-rias não trouxe maiores questionamentos e debates.25 Entretanto, por menos expressivo que pudesse ser o número de desabrigados a habitar o Moinho, e mesmo que não tenha havido remoção violenta, a saída destes de seu abrigo não poderia ser considerado um assunto menor. O grande problema, nesse sentido, não é a falta ou não de posição ética por parte dos organizadores de Arte/Cidade, mas ausência de um debate público maior a respeito dessa posição. O que também é índice de quão excluídas da esfera pública reconhecida cos-tumam estar as pessoas marginalizadas e as questões sérias a elas concernentes.

Em Arte/Cidade Zona Leste, por outro lado, a população marginalizada tornou-se não só um assunto, mas um interlocutor (ainda que com limitações e problemas). Nesse sentido, poderia haver alguma contribuição – por tênue e deficitária que seja – para a inserção destes marginalizados no debate público como parceiros de ação, não pessoas a serem representadas por um porta-voz externo. Isso só é possível, por outro lado, pelo evento ter acolhido uma no-ção mais expandida e radical tanto da “arte” quanto das possibilidades de sua relação com a cidade.

A ideia da arte não como uma produção privilegiada do campo estético, mas como um discurso entre os outros, esteve mais ou menos presente em todo o Projeto Arte/Cidade; foi no quarto evento, no entanto, que essa ideia teria se colocado de maneira mais profunda. Até A Cidade e suas Histórias, Arte/Cidade ainda “põe entre parênteses a arte para um experimento formal ou perceptivo” (FOSTER, 1996, p. 140); a partir de Arte/Cidade Zona Leste, porém, o papel de “reunir” e ressemantizar a cidade para além de sua dimensão utilitária foi declaradamente negado à arte. Esta, em contrapartida, foi enfatizada em seu

arte e cidades 2ed.indd 337 04/11/15 18:07

338

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

potencial de, “inserida conscientemente num contexto de forças e interesses, formular outras práticas e criar espaços de debate”.

O poder da produção artística pode ser colocado a serviço da dominação ou da emancipação. Aos artistas cabe então elaborar defesas contra as estratégias de subordinação aos criadores. Máquinas que funcionem como armadilhas, fazendo o público participar do processo, detonando uma cadeia de discursos que engendre crítica. Inventar formas de ação inusitadas, operações que tenham um papel de catalisador: a opinião pública é um campo de batalha e o artista é aquele capaz de criar polêmica. Produzir intensos efeitos que rompam com as regras do jogo, muitas vezes pelo escândalo, o instrumento por excelência da ação artística. Desenvolver contrapoderes, ações simbolicamente eficazes e politicamente complexas, capazes de mobilizar uma força equivalente às forças que buscam enfrentar. (PEIXOTO, 2002c)

É relevante e necessário indagar se tais estratégias teriam aplicação para além da especulação artística e do curto tempo dos eventos, ou mesmo quais seriam suas responsabilidades quanto à “vida real”. Mas é visível que nestas foi conquistada uma consciência maior quanto às ramificações da existência da arte como operação comunicativa, ação no espaço cotidiano da vida e signo social. Tal consciência continua valiosa, pois a posição majoritária a respeito da arte na cidade ainda parece ser a de colocar ambas “entre parênteses”. E é bom ter em mente que, sem a mobilização de um debate amplo, contínuo e público – e isso vale tanto para A Cidade e suas Histórias quanto para Arte/Cidade Zona Leste – o que fica de uma exposição potencialmente contundente conti-nuará sendo pouco mais que um “alívio poético” para um cotidiano alienante e aparentemente além de compreensão, alteração e superação.

notas

1 Este texto, escrito originalmente em janeiro de 2006 e revisado em fevereiro de 2007, foi gerado a partir da pesquisa de Mestrado desenvolvida pelo autor pela Universidade de São Paulo, que foi concluída com a dissertação Percepções e intervenções na metrópole: a experiência do Projeto Arte/Cidade em São Paulo (1994-2002), defendida em 11 de setembro de 2006.

2 Entre estes, por exemplo, os norte-americanos David Harvey e Rosalyn Deutsche ou brasileiras Otília Arantes e Vera Pallamin.

3 Em seu livro Evictions (1996), Deutsche trata o espaço público a partir das noções de “democratas radicais” como Claude Lefort.

arte e cidades 2ed.indd 338 04/11/15 18:07

339

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

4 As informações e depoimentos que serão apresentados aqui sobre o Projeto Arte/Cidade fazem parte da pesquisa de Mestrado do autor, e estão incluídas na dissertação.

5 Segundo Brissac, em entrevista dada ao autor em 01/05/2004, essa seria a principal motivação do projeto em seu início.

6 No início de Arte/Cidade, o termo site-specificity quase não era usado – talvez para evitar rótulos e referências a ações pré-formatadas. Na terceira fase do projeto, porém, ela já seria uma referência.

7 Completamente mudado, o projeto prepara atualmente sua quinta edição, agora em uma macro-região envolvendo os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, abordando questões infraestruturais da mineração.

8 O Grupo foi uma entidade basicamente informal; os membros mais “constantes” até o final do terceiro Arte/Cidade teriam sido Ricardo Ohtake, Danilo Santos de Miranda, (diretor regional do SESC São Paulo), Regina Meyer (pesquisadora de urbanismo e planejamento da FAU-USP e consultora da Associação Viva o Centro), Giselle Beiguelman (arquiteta e historiadora da FAU-USP, envolvida também com novas mídias eletrônicas), Christine Mello (coordenadora de produção dos dois Arte/Cidade anteriores), os arquitetos Marta Bogéa e George Ribeiro Neto, o designer gráfico Ricardo Ribenboim e o próprio Nelson Brissac. Na passagem para Arte/Cidade Zona Leste, no entanto, o Grupo de Intervenção Urbana foi muito reduzido, sendo integrado nominalmente apenas por Brissac, Beiguelman e o engenheiro Ary Perez. Em todas as edições houve grandes mudanças das pessoas envolvidas, sendo que provavelmente a única constante, de toda a experiência, seja seu idealizador e coordenador, Nelson Brissac.

9 Havia referências a questões de Walter Benjamin, como a abordagem surrealista do poder das ruínas e a relação intrínseca entre modernidade e transitoriedade (retomando Baudelaire), entre mecanização e as transformações na arte e na percepção. (PEIXOTO, 29/10/1995).

10 Esse aspecto da concretização de A Cidade e suas Histórias foi até hoje muito pouco abordado. Em seus depoimentos, tanto Marta Bogéa como a artista Laura Vinci fizeram menção a uma convivência e negociações tensas: “em época de levantamento”, contou Bogéa, “a gente só ia com policiamento pesado no silo. [...] A gente chegou a ver gente sendo jogada muro pra dentro, muro pra fora, e batida, porque era uma situação ali de ocupação irregular”.

11 Laymert Garcia e Elisabetta Andreoli (entre outros) comparam a obra de Félix aos cuttings de Gordon Matta-Clark, estratégias de resistência “ao ciclo de destruição, construção e consumo da arquitetura que se faz à custa da memória histórica”: “aqui também é feita uma afirmação desse teor: desenterram-se silenciosamente as estruturas, enquanto os cortes parecem liberar as áreas, desencavando a informação que se encontrava socialmente escondida sob a superfície. Ao permitir que o tempo histórico entre no espaço, os cortes criam múltiplas leituras, atuando como uma memória subversiva”. (ANDREOLI; SANTOS, in PEIXOTO, 2002, p. 291)

12 Nos muitos artigos na imprensa sobre o projeto (desde 1995), o enfoque quase sempre recaía sobre a história de São Paulo – e sobre a depredação desta.

13 Esta frase do crítico Paul Wood se refere especificamente às obras de Arte Pop de Andy Warhol.

arte e cidades 2ed.indd 339 04/11/15 18:07

340

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

14 Essa insuficiência foi ponto comum a várias análises de críticos sobre Arte/Cidade 3 (C.f. MAMMI, 1997; AMARAL, 1997; PEDROSA in: PEIXOTO, 2002a; ANDREOLI; SANTOS in: PEIXOTO, 2002, p. 290.

15 Sobre algumas das articulações políticas e ideológicas e das consequências em torno das Operações Urbanas (FIX, 2001).

16 Esses diálogos fariam parte do Seminário Intervenção em Megacidades, promovido pelo Grupo de Intervenção Urbana em parceria com o SESC e o Instituto Goethe.

17 A administração de Celso Pitta (PPB, 1997-2000), que se tornou famosa por denúncias de corrupção.

18 O exemplo principal desse discurso mais político foram as duas publicações de Nelson Brissac de 2002: a “fotonovela sci-fi” as Máquinas de Guerra contra os Aparelhos de Captura, revista-manifesto de tom paródico, ácido e quase panfletário, e o texto Isto aqui é um Negócio: operações de captura da arte e da cidade que adota tom de denúncia às estratégias de comercialização da cultura e da cidade. Este último, veiculando acusações diretas a instituições e pessoas, nem pôde ser publicado. Entre os citados por essas publicações, estariam o arquiteto Carlos Bratke e o Instituto Cultural Thomie Ohtake.

19 Segundo Brissac, em entrevista 01/05/2004, quando a Torre Leste foi escolhida para ser um provável sítio de intervenção, em 1998, o SESC ainda não havia se instalado lá.

20 Pela primeira vez em Arte/Cidade, os artistas brasileiros chamados eram quase todos participantes dos eventos anteriores – aqueles cujas participações prévias teriam sido julgadas mais “bem-sucedidas” pelo curador. Entre eles, estaria Nélson Félix, Carlos Fajardo, Carmela Gross, José Resende, Marcos Gianotti. Entre os brasileiros “novos”, estaria Ana Maria Tavares, o grupo Casa Blindada e José Wagner Garcia.

21 Segundo Brissac, em entrevista concedida em 01/05/2004, havia a intenção de integrar o máximo possível a edificação com o entorno. Ainda, segundo ele, o relativo domínio que o SESC adquiriu sobre o evento foi fonte de muitos outros empecilhos.

22 Tanto a proposta de Koolhaas quanto a de Casa Blindada contemplavam o arranha-céu abandonado São Vito. Devido, em grande parte, às pressões de grupos criminosos locados no edifício, a ideia de Koolhaas não pôde ser implantada, e uma pesquisa mais detalhada do São Vito não pôde acontecer. Como os artistas estrangeiros eram apenas visitantes, as negociações contínuas exigidas para seus projetos foram efetivadas pelas equipes de produção de Arte/Cidade Zona Leste.

23 Originalmente, o projeto de Acconci deveria ser locado em espaço aberto no próprio Largo do Glicério; o local, porém, foi formalmente ocupado, e o projeto teve de ser completamente alterado em pouco tempo.

24 Wodiczko (1987) se refere em ambas as citações a projetos anteriores ao quarto Arte/Cidade. Nesta última citação, especificamente, ele está se referindo ao seu Homeless Vehicle (veículo para sem-teto) feito em Nova York na década de 1980; o projeto guarda várias semelhanças com os protótipos desenvolvidos para Arte/Cidade Zona Leste.

25 Em minha pesquisa, não encontrei nenhum texto ou declaração de imprensa na época em que organizadores e participantes abordassem mais essa questão. Tampouco houve atenção particular a esse respeito da parte dos maiores jornais, Folha de São Paulo e o Estado de

arte e cidades 2ed.indd 340 04/11/15 18:07

341

ga

br

iel

gir

no

s e

lia

s d

e s

ou

za

ö

São Paulo; as críticas nestes se centraram nos problemas artísticos e de produção. Uma das únicas exceções foi o texto de Marcelo Rubens Paiva para a Folha de São Paulo, “Riquinhos se fingem de modernos no Arte/Cidade”. Mas embora tenha sido uma das únicas manifestações na grande imprensa a contestar frontalmente A Cidade e suas Histórias, a crítica satírica do artigo construiu uma caricatura que tampouco faz jus às contradições e complexidades do projeto.

referências

AMARAL, Aracy. Arte/Cidade desafia sensibilidades criativas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 nov. 1997.

ANDREOLI, Elisabetta; SANTOS, Laymert Garcia dos. “Arte pública, cidade privada”. In: ARANTES, Otília. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: EDUSP, 1998.

DEUTSCHE, Rosalyn. Evictions: art and spatial politics. Cambridge: The MIT Press, 1996.

FIX, Mariana. Parceiros da exclusão. São Paulo: Boitempo, 2001.

FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.

GRUPO DE INTERVENçÃO URBANA. Arte/Cidade: a cidade e suas histórias. São Paulo: Editora Marca D’Água, 1997. Catálogo.

KWON, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity. Cambridge: The MIT Press, 2002.

LUDEMANN, Marina (Ed.). Brasmitte: intervenções urbanas São Paulo – Berlim. São Paulo: Goethe Institut/SESC, 1997.

MAMMI, Lorenzo. Evento acha uma cidade morta nas entranhas da cidade atual. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 nov.1997.

MOASSAB, Andréia. Pelas fissuras da cidade: composições, configurações e intervenções. (Mestrado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

MORAES, Angélica de. Wodiczko fala de intervenções urbanas em SP. O Estado de São Paulo, São Paulo, 17 jun. 1998.

PAIVA, Marcelo Rubens. Riquinhos se fingem de modernos no Arte/Cidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 1º nov. 97.

PALLAMIN, Vera M. Arte urbana: São Paulo: Região Central (1945-1998): obras de caráter temporário e permanente. São Paulo: Anna Blume, 2001.

PEIXOTO, Nelson Brissac. As máquinas de guerra contra os aparelhos de captura. São Paulo: Garilli, 2002c.

arte e cidades 2ed.indd 341 04/11/15 18:07

342

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

PEIXOTO, Nelson Brissac. Em busca do dinamismo e da verdade. Entrevistado por Bernado Carvalho. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 out. 1995.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Isto aqui é um negócio: operações de captura da arte e da cidade. São Paulo: Associação Brasil 500 anos, 2002b.

PEIXOTO, Nelson Brissac (Org.). Intervenções urbanas: Arte/Cidade. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002a.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Projeto de Intervenção evidencia o auto-esquecimento da cidade. Entrevistado por Edilamar Galvão. Folhas de São Paulo, São Paulo, v. 4, p. 10, 31 out. 1997.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Urbanismo da imaginação. Entrevistado pela Revista URBS. Revista URBS, São Paulo, n. 26, ano 5, maio/jun. 2002d.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Editora SENAC, 2003.

RUFINONI, Priscila Rossinetti. Artecidadezonaleste: viagem pitoresca à São Paulo modernista. 2003. Disponível em: <www.fflch.usp.br/df/geral3/>. Acesso em: 22 nov. 2011

WOOD et al. Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.

WODICZKO, Krzysztof. Strategies of public address: which media, which public. In: FOSTER, Hal. (Ed.). Discussions in contemporary culture. Seattle: Bay Press, 1987.

WODICZKO, Krzysztof. Wodiczko leva excluídos a espaço público. Entrevistado por Patrícia Decia. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jun. 1998.

arte e cidades 2ed.indd 342 04/11/15 18:07

343 ö

WalCler de liMa Mendes Junior

o samba e o amor ao lugar

O presente artigo propõe investigar as relações entre certos enunciados contidos nas letras do cancioneiro popular, mais particularmente o samba, e o apelo ao sentimento de topofilia – amor ao lugar1 – na cidade do Rio de Janeiro. (MELLO, 1990) Considerando-se a eloquência dos discursos e a força das intervenções do Estado sob o axioma da transformação e modernização da cidade, propomos dialogar com o período da Belle-Époque carioca que se circunscreve entre o final do século XIX e os anos de 1920, o que não significa ficar restrito a esse recorte histórico.

Acredito que através da introdução desse diálogo ascenda uma possível função da canção popular como agente mediador das relações de ordem e desor-dem na cidade do Rio de Janeiro. A partir daí, o artigo busca constatar, através de alguns exemplos, como a canção popular urbana lê e propõe condutas de convivência nos espaços público e privado produzindo – propositalmente ou não – referências identitárias que, mais do que qualquer outra plataforma antes da televisão (literatura, teatro, cinema, jornal), tem a capacidade de configu-rar-se, através do rádio, como o agente mediador que difunde imaginários de maneira mais e melhor atualizada e aproximada aos acontecimentos cotidianos. Em uma sociedade majoritariamente ágrafa, a palavra falada, cantada, assume um poder simbólico sem paralelos. Esse poder só seria rivalizado após os anos 80 quando, de fato, o mercado fonográfico torna-se refém da televisão através da cultura do “videoclipe”, da relação das gravadoras com os programas de au-ditório, enfim, da valorização da imagem em detrimento daquilo que se escuta. Note-se que entre os anos sessenta e setenta essa hegemonia da televisão em

arte e cidades 2ed.indd 343 04/11/15 18:07

344

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

relação ao rádio (ou da imagem sobre o som) não era assim tão evidente, não só pelas limitações técnicas do veículo, que por si já representavam um entrave ao controle dos eventos, como pela própria cultura radiofônica no Brasil. Mas, essa é uma outra história que definitivamente escapa da tônica do presente artigo.

Trocando em miúdos, o que se pretende, então, é estabelecer um diá-logo entre as músicas e as transformações sociais, na tessitura das relações das condutas de ordem/desordem que se dão no bojo do apelo ao sentimento de topofilia que a própria cidade inspira em seus habitantes. É preciso estar atento para o fato de que as vozes do cancioneiro tanto propõem quando são propostas pelas transformações da cidade em ritmo de modernização.

Como primeiro passo, façamos um foco sobre uma manifestação que nos acompanha há tempos idos e que, grosso modo, está relacionada com as camadas mais empobrecidas da população: o carnaval. Ainda que comumente classificado como manifestação de origem popular, o carnaval no Brasil, ou melhor, o espaço do carnaval no Brasil, articulou interesses, conflitos e roçagares entre classes sociais que em nenhuma outra circunstância perceberam-se tão próximas. Durante o século XIX, o carnaval foi marcado por debates em torno do Entrudo, a guerra de limões, que a princípio se propunha a confundir hie-rarquias e a instituir um hiato, um respiro, uma suspensão no rigor da ordem urbana de uma sociedade colonial e cortesã a caminho da modernidade e da República.2 Porém, como em toda zona de conflito, o espaço do Entrudo não era assim tão óbvio. Para muitos historiadores, apesar do afrouxamento das normas e códigos de conduta, a festa do Entrudo continuava reproduzindo a segregação e as distâncias sociais, marcadas pela rigidez hierárquica da sociedade carioca oitocentista.

Membros da elite podiam lançar projéteis e líquidos sobre escravos, por exemplo, mas a esses restava rirem-se das brincadeiras sem nunca revidar. Nas ruas realizavam-se as batalhas entre negros e entre empregados do pequeno comércio [...]. As moças, vigiadas e cerceadas na vida cotidiana, aproveitavam-se do relaxamento carnavalesco para entrar em contato com rapazes do seu nível social e, deste modo, estabeleciam-se relações matrimoniais de interesse das famílias. Dentro das casas brincavam as famílias, respeitando-se as diferenças de nível econômico e social e utilizando-se de projéteis mais sofisticados, como as laranjas e limões de cheiro, enquanto nas ruas, os negros, os pobres, os ambulantes as prostitutas e os moleques molhavam-se,

arte e cidades 2ed.indd 344 04/11/15 18:07

345

wa

lcle

r d

e l

ima

me

nd

es

jr

.

ö

e sujavam-se com polvilho, pós de barro, águas de chafarizes e de sarjetas e um ou outro limão de cheiro roubado das casas senhoriais. Desse modo seria mais acertado falar dos vários entrudos em lugar de tentar reduzir as brincadeiras carnavalescas cariocas deste período a uma única manifestação. (FERREIRA, 2005, p. 30)

Dessa forma, o Entrudo é vivido como uma festa partida: a sinhá-moça que oferta delicadamente um limão de cheiro ao galante cavalheiro sob a sacada do sobrado, e a lambança dos moleques de rua jogando água da sarjeta numa escrava que equilibra com dificuldade o cesto de roupa limpa sobre a cabeça. Apesar desse muro invisível e invulnerável protegendo a elite dos outros, o carnaval, já em sua gênese, pelo menos para muitas vozes tradicionalistas dos poderes político, religioso e econômico, representava uma ameaça ao estado das coisas em sociedade. Ainda assim, em nenhum momento, por nenhuma autoridade, é proposta sua extinção. Propõem-se, isto sim, seu controle, sua domesticação, de maneira que a festa de características portuguesa, medieval e pública, passo a passo, fosse se europeizando, aburguesando e, dentro do pos-sível, privatizando-se. Dos bailes de máscara nos clubes à Rua do Ouvidor em meados do século XIX aos desfiles de corsos pela recém-inaugurada Avenida Central em 1906, a história do carnaval é a história do controle e adestramento da diversão, da festa pública, segundo os critérios morais da classe dominante. A questão é que, no decorrer do processo de aburguesamento e modernização dessa sociedade, tais critérios também se apresentaram bastante diluídos, difusos e confusos tal qual os corpos em movimentos carnavalescos. Haja vista que a mesma Avenida Central dos corsos de luxo assistiu, pari passu, a chegada dos ranchos e cordões populares deslocando, nos dias de festa, o subúrbio para o centro. (VELLOSO, 2004)

Sobre isso, podemos afirmar sem sustos que os anos da Belle-Époque carioca marcam um período de redefinição da identidade nacional. O povo ocupando a rua, o ritmo do capitalismo, a urbanização, a fábrica, as condições do trabalho assalariado, as possibilidades de prazer, luxo e erotização que a cidade oferece aos corpos citadinos são fatores que colaboram para a formação de uma representação da identidade nacional sintetizada na cidade, em particular no Rio de Janeiro, que se coaduna com as metrópoles do mundo – Paris, Nova York, Buenos Aires, Londres – numa síntese ainda mais completa que aponta para um ideal único de cidade burguesa que materializa a modernidade. O Brasil não

arte e cidades 2ed.indd 345 04/11/15 18:07

346

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

seria mais representado pelo índio vigoroso e europeizado de José de Alencar, pelo banto africano ou pela mestiça orientalidade ibérica. A construção da nova identidade nacional entre os anos da Belle-Époque é marcada por dois períodos distintos. Primeiro por uma negação de tudo o que remetesse ao primeiro esfor-ço de invenção de uma história do Brasil, que data do século XIX e aponta para nossas raízes étnico-culturais, o índio, o africano e o português. Depois, a partir dos anos de 1920, por uma reaceitação desses mesmos três elementos originais, que, de elementos de opróbrio e vergonha, transformam-se – dentro dessa nova concepção de construção do Brasil – em fatores vantajosos, responsáveis por nosso hibridismo e originalidade. Exemplos não nos faltam: o primitivismo nos quadros de Tarsila, o anti-herói Macunaíma, os instrumentos de congada na orquestração de Villa-Lobos, e, claro, a incorporação do maxixe, do samba e do choro na vida social dos salões da elite carioca. Chiquinha Gonzaga e seu “Corta-Jaca”, Donga e seu “Pelo telefone” e a poesia de Patativa adentram a vida dos salões e saraus da alta sociedade carioca.

Até aqui contamos a história das vozes e manifestações de uma elite intelectual e até certo ponto política que lê e produz uma representação da cultura e da sociedade brasileira, incorporando elementos da linguagem e das manifestações ditas populares. Porém, é certo que o objeto lido, em se tratando de um recorte social, em se tratando de pessoas, também tem a capacidade não só de se autorreler, como ler o outro. E, é nesse ponto que gostaria de me deter. A produção de signos3 e símbolos4 de uma cidade – ainda mais uma cidade que se pretendia síntese de um território do tamanho do Brasil – ocorre pelo entrecruzamento de olhares e vozes, umas mais, outras menos privilegiadas no acesso aos meios de divulgação e amplificação dos signos e símbolos. Ainda assim, o espaço cognitivo das representações é, por sua natureza múltipla, um lugar de conflitos gerados por opiniões antagônicas, leituras não consensuais sobre cada novo fato, objeto, fenômeno, ação que se incorpora ao repertório dos acontecimentos cotidianos.

O morro, a favela, por exemplo, pode ser lido de infinitas nuances, dentro de um gradiente de representações que varia dos tons mais pessimistas – morro, lugar do degredo, da barbárie, da violência desmedida, da falta de Estado, das condições insalubres, lugar onde a cidade não chega – até as tonalidades mais amenas e amorosas – morro, lugar do samba, da poesia, do amor pertinho das estrelas, das relações de vizinhança e compadrio, das amizades desinteressa-das, da alegria franca e do trabalho duro e honesto. É claro que as mensagens

arte e cidades 2ed.indd 346 04/11/15 18:07

347

wa

lcle

r d

e l

ima

me

nd

es

jr

.

ö

emitidas através das letras dos sambas que colaboraram na construção desse imaginário foram contaminadas por todas as matizes de discursos provenien-tes de múltiplos sujeitos. Porém, pode-se afirmar que a apologia da vida do morro como contraposição à vida na cidade, para o bem ou para o mal, é uma construção cujos primórdios tem como principal plataforma o cancioneiro po-pular, em particular o samba. Desde a criação das primeiras Escolas de Samba, como a Mangueira, em 1929, cujo fundador, Cartola, é até hoje reverenciado como um mestre da música brasileira por pessoas de todas as camadas sociais, o morro passa a produzir uma voz própria que não mais está confinada às suas fronteiras, ao contrário, derrama-se sobre a cidade abaixo, ora chocando-se ora somando-se com as outras vozes que a cidade produz.

Assim, sem esquecer da miséria material e das agruras físicas, bastante palpáveis, do dia a dia de quem mora numa favela, podemos crer na existência igualmente palpável de um morro construído pelas letras dos sambas, a doar significado e a reforçar laços de pertencimento e vizinhança, principalmente, a seus habitantes, mas também aos outsiders, os moradores da cidade de asfal-to, que passam a ler o morro também sob o verniz de seus compositores que caem nas graças do rádio e da indústria cultural. Logo, podemos afirmar que as representações que o morro inspira cria míticas5 e tradições próprias suficien-temente fortes para se sustentarem no imaginário de seus moradores de forma positiva, dando fôlego ao sentido de comunidade e participação na continuidade histórica do lugar. Os sambas a seguir falam desse morro idealizado que tanto contribuiu para a manutenção e recriação do sentimento de topofilia.

Habitada por gente simples e tão pobre que só tem o sol que todos cobre como podes Mangueira cantarPois então saiba que não desejamos mais nada a noite e a lua prateada silenciosa ouve as nossas cançõesTens lá no alto um cruzeiro onde fazemos nossas orações e temos orgulho de ser os primeiros campeões.Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora e as outras escolas até choram invejando a sua posição.Minha mangueira na sala de recepção aqui se abraça o inimigo como se fosse um irmão.(CARTOLA, 2008)

arte e cidades 2ed.indd 347 04/11/15 18:07

348

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Mangueira teu cenário é uma beleza, que a natureza criou,O morro com seus barracões de zinco, quando amanhece que esplendor!Todo mundo te conhece ao longe pelo som do teu tamborimE o rufar do teu tambor ...Chegou ô ô ô ...A Mangueira chegou ô ôMangueira teu passado de glória está marcado na históriaé verde e rosa a tua bandeira para mostrar a essa gente que o samba é lá em Mangueira.(COSTA; SILVA, 2006)

Os meus grifos nas palavras passado e história, têm toda a relevância com o que está sendo proposto até aqui. Um dos reflexos mais desestrutura-dores da história da sociabilidade na cidade do Rio de Janeiro – observado por Angelina Peralva em Violência e democracia, e localizado pela autora, cronologi-camente, na década de 1980 – é justamente o enfraquecimento dos vínculos de comunidade e continuidade histórica do lugar, que vai ter como primeira consequência o enfraquecimento do diálogo entre as representações – expres-sões artístico-culturais que exaltam o lugar e sua gente – e o cotidiano do lugar e, como consequência final, a vulnerabilidade do lugar em relação ao discurso da violência urbana que invade o noticiário para delírio dos jornalistas. Peralva observa que as transformações econômico-sociais que ganham corpo a partir dos anos de 1980, consequência, em grande parte, da abertura política, apon-tam para uma mudança radical na forma de inserção social do pobre. Peralva dá as pistas de como o modelo individualista e competitivo, antes exclusivo da classe média e da elite, passa a ser adotado pelo pobre como estratégia de inserção na sociedade. O consumo substitui a forma de inserção social anterior, baseada em laços de família, vizinhança e trabalho regular – muitas vezes, do operário fabril que se percebia como um igual entre familiares, vizinhos e, claro, companheiros de trabalho. Esse vínculo – representado pelo sindicato, cuja ação política se dava ali, no ambiente de trabalho, entre iguais – fazia das conquistas por melhores condições de vida um exercício da coletividade, e não do indivíduo, com características de manifestações democráticas e participativas. Nos anos de 1980, reconhece-se o enfraquecimento desses laços.

Dos sambas abaixo, os dois primeiros abordam o tema do individualismo, da falta de honestidade, que orbita o modelo de vida até então identificado com as classes privilegiadas onde proliferariam indivíduos obcecados pela ideia de subir de padrão econômico sob qualquer circunstância, coisa típica da socieda-

arte e cidades 2ed.indd 348 04/11/15 18:07

349

wa

lcle

r d

e l

ima

me

nd

es

jr

.

ö

de arrivista carioca vivida por Noel Rosa nas primeiras décadas do século XX. Arriscando um pouco, podemos sugerir que esse mesmo sentimento retorna com bastante força na década de 1980, apoiado pelo renascimento do discurso neoliberal de empresários e empreendedores (sic). Paulinho da Viola capta essa tendência, com alguns anos de antecedência, (em meados dos anos setenta) no samba Pecado Capital. O terceiro samba trata de cooperação, de laços de amizade, reconhecimento e solidariedade que se estabelecem entre indivíduos de uma mesma comunidade, diante das adversidades materiais e das dificuldades de inserção social pelas vias formais.

Você tem palacete reluzente tem jóias e criados a vontadeSem ter nenhuma herança ou parente só anda de automóvel na cidadeE o povo já pergunta com maldade...onde está a honestidade ?O seu dinheiro nasce de repente e embora não de saiba se é verdadeVocê acha nas ruas, diariamente, anéis, dinheiro e felicidadeVassoura dos salões da sociedade que varre o que estiver na sua frentePromove festivais de caridade em nome de qualquer defunto ausente(ROSA, 1996)

Dinheiro na mão é vendaval, é vendavalna vida de um sonhador, de um sonhadorQuanta gente aí se engana e cai da cama com toda a ilusão que sonhouE a grandeza se desfaz quando a solidão é mais, alguém já falou:Mas é preciso viver e viver não é brincadeira nãoQuando o jeito é se virar cada um cuida de si irmão desconhece irmão e aíDinheiro na mão é vendaval dinheiro na mão é solução e solidão.(VIOLA, 2003)

O Antonico, vou lhe pedir um favor, que só depende da sua boa vontadeÉ necessário uma viração pro Nestor que está vivendo em grande dificuldadeEle está mesmo dançando na corda bamba, ele é aquele que na Escola de SambaToca cuíca, toca surdo e tamborim, faça por ele como se fosse por mimAté muamba já fizeram pro rapaz, porque no samba ninguém faz o que ele fazMas hei de vê-lo muito bem, se Deus quiser, e agradeço pelo que você fizer(SILVA, 2001)

arte e cidades 2ed.indd 349 04/11/15 18:07

350

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Podemos nos questionar até que ponto esse sentimento individualista e arrivista do empreendedor, revigorado diante das condições atuais de segregação e enclaves sociais que por sua vez apoiam-se na redescoberta do paradigma etnocentrista lombrosiano capaz de selecionar numa multidão o indivíduo e a classe perigosa, não estaria colaborando no fenômeno de cancelamento da cidade, cancelamento da publicidade da vida em cidade. Isto é, o cancelamento do caráter público que a vida em cidade pressupõe. (PECHMAN, 2004) Que eu percebo como sendo uma espécie de interrupção entre a história da cidade e a história dos seus habitantes, como se estes, a exemplo das sociedades organi-zadas em feudos e estamentos, pudessem prescindir daquela, encastelados em condomínios e escritórios. Numa sociedade atravessada pelo solapamento da leitura da grande imprensa – que, grosso modo, necessita produzir informações urgentes, que, por sua vez, resultam em análises, quase sempre incompletas para a complexidade social que pretendem abordar – podemos pensar até que ponto certas práticas de criação e autoria que dialogam com o lugar podem ser trans-formadoras no sentido de possibilitar a redescoberta de singularidades que por sua vez revertam o quadro que sentencia as cidades aos condomínios, shoppings e favelas (espaços supercontrolados) e os indivíduos à ameaça da convivência normatizada pela barbárie. Iniciativas como associações comunitárias, centros de formação profissionalizante, centros de cultura, rádios comunitárias, jornais comunitários, produção local de documentários, festividades e manifestações culturais, atividades esportivas e artísticas desenvolvidas na comunidade, para a comunidade e por cidadãos da comunidade6, com o objetivo de ampliar a inserção dos indivíduos na sociedade, seriam exemplos dessa prática, que poderia sugerir a categoria do sujeito-autoral, propondo-o como o autor que, através de seu discurso, denuncia o esvaziamento e a despolitização do conflito urbano, promovidos, pelo menos em parte, propositalmente ou não, pelos meios de comunicação de massa. O sujeito-autoral seria capaz de confeccionar um tecido simbólico que adere ao espaço vivido, construindo narrativas que buscam interromper o esvaziamento do espaço público, ao mesmo tempo em que se caracteriza como alternativa à leitura monolítica que a grande imprensa faz do seu lugar. A música, a dança, o teatro, a literatura, a pintura, as artes em geral, quando produzidas por sujeitos pertencentes ao lugar, prestam-se como representações alternativas, como plataformas de representação simbólica do lugar, propondo usos e formas de relacionar-se com o espaço em que se vive que vão questionar as leituras monolíticas, cegas às singularidades e tessituras

arte e cidades 2ed.indd 350 04/11/15 18:07

351

wa

lcle

r d

e l

ima

me

nd

es

jr

.

ö

cotidianas, que, por exemplo, abordam a favela e a periferia, quase sempre, com notícias de violência e degredo. O sujeito-autoral caracteriza-se por re-escrever – conscientemente ou não – a escritura urbana, através de pequenos gestos, leituras e olhares sobre o espaço cotidiano de forma a propor, em suas práticas, uma nova escritura urbana, onde o espaço-cidadão, a ágora moderna, reassuma o seu lugar no “centro” da cidade. Esse sujeito está plasmado no cida-dão comum, isto é, em todo indivíduo sensível ao minguar do espaço-cidadão. Este é o ponto nevrálgico do artigo a partir do qual já é possível a elaboração do argumento de inspirações arendtianas que aponta para a importância da prática autoral nas relações de pertencimento entre a pessoa e a cidade.

Ao interagir como ser social, público e participante da história da cidade (ou do lugar ao qual se sente motivado a exercitar práticas de pertencimento), o sujeito desenvolve em si um sentido de imortalidade, isto é, a história de sua vida se confunde com a história da própria cidade que tem por princípio e função ser o tópos central da linguagem e das representações que perpetuam a existência.7 Hannah Arendt8 (2000) afirma que a luta pela imortalidade é o modo de vida do cidadão. Porém, ao ser quebrado o elo entre o homem finito e a cidade longeva, ou, numa perspectiva arendtiana, ao ser quebrado o elo entre o sujeito e sua criação, a mortalidade apodera-se das práticas e percepções do indivíduo, não mais cidadão, não mais sujeito, nem autor e nem criador do espaço urbano. A partir desse cisma, entre indivíduo e espaço público, a neces-sidade de experimentar e consumir emoções de caráter individualista, tal qual a exigência por resultados cada vez mais imediatos e funcionais torna-se o mote que governa as práticas. Na lógica desse indivíduo imediatista e pragmático, a morte e o desaparecimento da memória são inevitáveis. Esse desaparecimento ocorreria durante o processo de experimentação de desejos individualistas que pouco ou nada dialogam com a ideia de obra, de autoria, e muito se aproximam da prática do consumo de massa que, ex-post, reafirma ao indivíduo sua condição mortal.9 Sob o imediatismo da realização do desejo de consumo, imposto pela lógica racional da sociedade contemporânea, sempre respondendo às leis do mercado, tornariam-se exíguas as chances de desenvolvimento de laços afetivos entre indivíduo e cidade, visto que a construção desses laços raramente se dá de forma correlata às expectativas de reprodução e acúmulo de capital, ex-ante, propostas pela prática do consumo e pela inserção social do indivíduo como consumidor, diferente de uma inserção pela via do trabalho, pelas relações de vizinhança ou pela ação política no sentido amplo do termo.10

arte e cidades 2ed.indd 351 04/11/15 18:07

352

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Trocando em miúdos, essa interrupção entre a história da pessoa e a história da cidade pode ser desfeita. Numa perspectiva de inspiração arendtia-na, quando a pessoa se percebe integrada e participante da história da cidade através de seu trabalho, de sua obra e ações que colaboram comunitariamente na produção de signos representativos da cidade e do seu lugar na cidade, ela desenvolve para si uma espécie de sentido de imortalidade. A história de sua vida torna-se imbricada com a história da própria cidade que, a princípio, é longeva. Ao contrário, quando o elo homem-cidade é rompido, não há o que justifique o sentido comunitário, emerge daí um modo de vida regido pela égide da satisfação e dos resultados individualistas, em que o desaparecimento da memória individual é eminente. Sob tais perspectivas, tornam-se mínimas as chances de reconhecimento dos laços históricos entre o indivíduo e a cidade. Vinícius de Moraes capta esse sentimento de exílio em seu próprio chão, que ocorre quando as referências do lugar já não são capazes de doar significados afetivos à vida das pessoas.

Pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se vê,que nem se sorri, se beija e se abraça e sai caminhandoDançando e cantando cantigas de amor.E no entanto é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade...(MORAES; LYRA, 1966)

Esse processo de individualização que se agudiza, principalmente, a partir da década de 1980, com os primeiros abalos sobre uma sociedade ainda estruturada pelo trabalho regular, com forte presença dos sindicatos, guarda aspectos em comum com o arrivismo da sociedade do Rio de Janeiro do início do século XX. Porém, podemos apontar uma diferença estrutural entre o arri-vismo da sociedade carioca belle-epoquiana e a aderência ao discurso neoliberal da sociedade atual: enquanto na sociedade da belle-èpoque carioca este arrivismo está circunscrito à elite ou a burguesia ascendente, nos anos de 1980, esse sen-timento, ou modo de vida, se expande democraticamente para o pobre, com consequências ainda mais esgarçantes à manutenção das regras mínimas de convivência e laços afetivos entre os indivíduos e a cidade.

Na contramão do que vem sendo discutido até aqui, o samba, a seguir, composto na década de 1970 – isto é, antes de se desencadear o processo de transformação social do pobre emulando o modelo burguês de consumo –

arte e cidades 2ed.indd 352 04/11/15 18:07

353

wa

lcle

r d

e l

ima

me

nd

es

jr

.

ö

é um forte exemplo da importância da manutenção das tradições e do amor ao lugar. É interessante destacar na letra o sentido de continuidade da tradição materializada na valorização do compositor popular que cruza as gerações.

Essa velha Mangueira que nos deu Cartola e Nelson CavaquinhoÉ a mesma Mangueira que nos dá Zagaia e PandeirinhoEla é a tradição dos nossos carnavais, quando me lembro que saudade me trazA mocidade vai seguindo a mesma trilha, e a Mangueira como sempre ainda brilhaBrilha igual as estrelas e tanto seduz, Mangueira, fiel companheira de Oswaldo CruzCartola sempre em seus versos já dizia que a Estação Primeira dava poesiaE Nelson Cavaquinho ainda diz se lutares pela Mangueira serás feliz, bem feliz(MONARCO, 1984)

Benjamim Costallat, em A Favela que eu vi, escrito em 1924, exclama: “Deus protege a Favela!”, para depois afirmar que a Favela merece a proteção divina por que ela é alegre em sua miséria. “Aquela gente que não tem nada dá uma profunda lição de alegria àqueles que têm tudo”. Mais adiante torna a criticar a sociedade burguesa consumista e blasé: “A Favela que samba quando deveria chorar, é um maravilhoso exemplo para aqueles que tem tudo e que ainda não estão satisfeitos”. Alguns anos antes, João do Rio em visita ao morro de Santo Antônio no Centro, através da ambiguidade de seus comentários, ora carregados de valores preconcebidos pela moral burguesa, ora não, nos dá uma boa ideia do quão árdua não foi a luta do samba e do morro para construir seus laços afetivos e sua identidade:

E quando de novo cheguei ao alto do morro, dando outra vez com os olhos na cidade, que embaixo dormia iluminada, imaginei chegar de uma longa viagem a um outro ponto da terra, de uma corrida pelo arraial da sordidez alegre, pelo horror inconsciente da miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, refestelado na indigência em vez de trabalhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, livre de todas as leis. De repente, me lembrei de que a varíola cairia ali, ferozmente, que talvez eu tivesse passado pela toca de variolosos. Então apressei o passo de todo. Vinham a empalidecer na pérola da

arte e cidades 2ed.indd 353 04/11/15 18:07

354

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

madrugada as estrelas palpitantes e canoramente galos cantavam por trás das ervas altas, nos quintais vizinhos. (COSTALLAT, 1995)

O morro de Santo Antônio acabou tendo o mesmo triste fim do morro do Castelo, foi posto abaixo e sua população expulsa. O tragicômico da história é que em 1921 o morro de Santo Antônio chegou a ser cotado, junto com o Pão de Açúcar e com o Corcovado, para receber estátua do Cristo Redentor.

Orestes Barbosa, compositor de Chão de estrelas, faz o seguinte comentário sobre o morro da Favela, o mesmo, visitado anos antes por Costallat: “Há, sem dúvida, duas cidades no Rio. A misteriosa é a que mais me encanta. Eu gosto de vê-la e senti-la na luta contra a outra – a cidade que todos têm muito prazer em conhecer [...]. Tão viciado e tão perverso quanto a Favela, Botafogo não entusiasma porque é postiço”. Antônio Maria, na década de 60, observando a difícil convivência entre ricos e pobres na Lagoa Rodrigo de Freitas, antes da remoção da Favela da Catacumba, diria que “só uma coisa os une: a lagoa, que todos gostam de olhar, com a mesma humildade, o mesmo consolo e o mesmo enlevo, a mesma fortuna. Só a beleza nivela os homens economicamente des-nivelados”. Antônio Maria, compositor de Manhã de Carnaval e Samba de Orfeu, completa a observação acima: “A humanidade está necessitando urgentemente de afeto e milagre”. O mesmo afeto que inúmeros sambas fazem referência ao descreverem seu “lugar” e sua “gente”.

Manhã tão bonita, manhã de um dia feliz que chegou.O sol no céu surgiu e em cada cor brilhou.Voltou o sonho então ao coração...Canta o meu coração alegria voltou tão feliz a manhã desse amor(BONFÁ; MARIA, 2000)

Para completar a ideia de apropriação e criação de símbolos de afetivi-dade do lugar, vale citar a felicíssima observação do cronista Marques Rabelo sobre o bairro do qual guarda mais afeto na cidade: “Só compreendo viver no Rio. Conheço o Rio como meu coração. E não moro em Vila Isabel só para ter saudades de lá”.

Quem nasce lá na Vila nem sequer vacilaem abraçar o samba.Que faz dançar os galhos do arvoredo e faz a lua nascer mais cedo.

arte e cidades 2ed.indd 354 04/11/15 18:07

355

wa

lcle

r d

e l

ima

me

nd

es

jr

.

ö

Lá em Vila Isabel quem é bacharel não tem medo de bamba.São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba.A Vila tem um feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém que nos faz bem.Tendo um nome de princesa transformou o samba num feitiço decente. Que prende a gente...Eu sei tudo que faço, sei por onde passo,paixão não me aniquilaMas tenho que dizer, modéstia a parte meus senhores,eu sou da Vila! (ROSA; VADICO, 2001)

É justamente quando o lugar se torna fonte de inspiração e criação de ícones próprios como Cartola, Nelson Cavaquinho, Sinhô, Tia Ciata, Noel Rosa, Carlos Cachaça, Madame Satã, ou espaços históricos como o Buraco quente, o Pendura-a-saia, o Cabaré dos Bandidos e todos os personagens e símbolos que permitem a produção de uma cartografia afetiva desse lugar; quando tal fenômeno se põe em andamento é que se percebe a importância da memória coletiva, como fio condutor, prolongando a memória do indivíduo para além do seu tempo de vida, perpetuando-a, colando-a com a perenidade dos símbolos afetivos do lugar, que, por sua vez, convida a toda hora, este mesmo indivíduo, a ser ator e audiência do espetáculo urbano, autor e leitor da escrita afetiva da história da cidade.

Mas o sambista vive eternamente no coração da gente,os versos da Mangueira são modestosmas há sempre força de expressão,nossos barracos são castelos em nossa imaginação (CAVAQUINHO; QUEIROZ, 2001)

Alvorada lá no morro que belezaninguém chora não há tristeza ninguém sente dissabor O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo e a natureza sorrindo tingindo, tingindo(CARTOLA, CACHAçA; CARVALHO, 2008)

Nicholas Entrinkin, citado em O humanismo contemporâneo em geografia, de Mello (1991) afirma que “o lugar é um foco de ação emocional do homem”.

arte e cidades 2ed.indd 355 04/11/15 18:07

356

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Daí a importância de se estabelecer, segundo a terminologia de Milton Santos, símbolos fixos como: o Bondinho do Pão de Açúcar... “Hoje o Pão de Açúcar está mais acolhedor, tomem seus lugares no Bondinho por favor”; o Maracanã... “Domingo, eu vou pro Maracanã, vou ver o meu time jogar, o time que sou fã”, a Confeitaria Colombo... “O velho na porta da Colombo, foi um assombro, saçaricando” ou a Avenida Central (Rio Branco)... “Encontrei o meu pedaço na Avenida de camisa amarela, cantando a Florisbela [...]”. Estes símbolos fixos, segundo Milton Santos, interagem com os fluxos, que, por sua vez, repre-sentam o consumo, o movimento, a circulação e a distribuição de coisas e de pessoas no espaço geográfico da cidade. Os fixos são a marca do homem no espaço que ocorre de duas formas: pela construção arquitetônica que interfere diretamente no meio ambiente (prédios, túneis, pontes, avenidas, aterros) ou pelo simples ato de conferir significado extra a elementos da natureza (como o significado especial de uma montanha como o Corcovado ou o Pão de Açúcar; de uma pedra como a Pedra da Gávea ou a Pedra Bonita; de uma praia como Copacabana ou Barra da Tijuca; de uma lagoa como a Rodrigo de Freitas ou a de Marapendi). Por isso Milton Santos afirma que os fixos ao mesmo tempo provocam e necessitam da atenção dos fluxos.

Dentro das representações possíveis que a cidade permite sobre seus “fixos”, o compositor Braguinha, sem imaginar no que a Barra da Tijuca se transformaria, compôs, em 1957, a marchinha Vai com Jeito, quando a Barra não passava de um conjunto inóspito de areais e matagais à beira-mar, classificada, a exemplo da Ilha de Paquetá e do Joá, como espaço público discreto e reservado para práticas sexuais... “se alguém lhe convidar, pra tomar banho em Paquetá, pra piquenique na Barra da Tijuca ou pra fazer um programa no Joá, menina vai, com jeito vai, se não um dia a casa cai”.11

Ainda sobre representações, a partir dos anos vinte, o samba cantou a cidade desejada e exaltou o morro como lugar de paz, de natureza singela, de gente honesta, alegre, trabalhadora, romanceando a malandragem, as relações de apreço entre moradores, a beleza da cabrocha, da mulata, o gingado, o luxo das fantasias e a exuberância das escolas que cresciam da simplicidade e da pobreza. Ainda que não correspondessem à realidade de fato, essas represen-tações fortaleciam vínculos e solidificavam o desejo do pobre por inserção, cidadania e reconhecimento social, coisas que lhe foram, desde o início do século, sistematicamente, negadas pelas elites.

arte e cidades 2ed.indd 356 04/11/15 18:07

357

wa

lcle

r d

e l

ima

me

nd

es

jr

.

ö

Hoje, a mudança que Peralva observou nos anos de 1980 agudiza-se, fazendo com que a imagem do morro se turve. Hoje, ainda que o samba, teimosamente, faça-se presente nas quadras, nos barracões, nos bares, nas esquinas e nos espaços do carnaval, o fato é que o morro, cada vez mais, traveste-se do paradigma da violência, tornando-se o locus da guerra do tráfico que atinge proporções inimagináveis, tanto reais quanto simbólicas. Quebrar esse paradigma que se materializa no inconsciente coletivo é condição primeira para a retomada dos laços afetivos e para a valorização dos espaços cognitivos de representação, tornando os espaços marginalizados, como o morro ou os bairros populares, novamente regidos pelo ethos da malandragem (diferente do banditismo) e da resistência pacífica e festiva ao modelo social burguês (lá não existe felicidade de arranha-céu...).

Esse desencantamento da alma carioca é exemplarmente pontuado por Eduardo Portella (1988) em Rio, síntese aberto.

A cidade perdeu, a uma só vez, a alma e a aura. A primeira porque deixou que se degradassem as relações interpessoais [...], a segunda porque se entregou às fantasiosas promessas de eficácia do produtivismo mais cego. Por isso busca reverter a experiência de desencantamento mais até do que alinhar o esforço de reconstrução.

A terra que constantemente se move sob os pés de quem pára para pensá-la, infelizmente, ou não, segue seu movimento. Voltar aos tempos idos, nem pensar, mesmo porque a memória, obcecada pelo saudosismo, é quase sempre perdulária, otimista e condescendente, com as agruras, maus tratos e injustiças do passado. Também o samba, como ritmo representativo da favela, já deu lugar faz tempo para o funk, o rap e a cultura do hip-hop que cala mais forte nos corações e mentes dos jovens pobres das favelas e periferias. Sendo que a batida sincopada do funk e do rap se funde com outros ritmos, como o maracatu, gerando o movimento do “Manguebeat”, o rock e o próprio samba, como no caso de artistas como Ivo Meirelles, Pedro Luís e a banda O Rappa, cujas letras de Marcelo Yuka já deram o que pensar e discutir. Quando as ex-pressões de representação do lugar assumem uma postura, não de exaltação do lugar, como no samba, mas de assunção de uma condição de exclusão e marginalização que agora esperneia e grita para ingressar no mundo globaliza-do, outras tessituras devem ser consideradas. Segundo Souza (2004), a figura

arte e cidades 2ed.indd 357 04/11/15 18:07

358

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

do malandro, claramente nascida das classes baixas e utilizando-se de um simulacro de indumentária e prática burguesa,12 sintetiza uma espécie de tipo social híbrido que em última análise propõe o apagar das classes sociais e do conflito. O malandro seria assim o protótipo do brasileiro como raça singular e original ao propor uma miscigenação, um estreitamento relacional entre a cultura de elite e a popular:

O rap de MV Bill apresenta da perspectiva do próprio excluído, uma visão diferenciada e que se opõe diametralmente à imagem da interpenetração entre as classes e as raças e do brasileiro como tipo único. Pela primeira vez o pária fala com voz própria, com idéias que são suas e não tomadas de empréstimo. Ao fazê-lo, ele ocupa uma espécie de vanguarda crítica que ainda não tem o seu contraponto erudito. Afinal não basta descrever e constatar a nossa anomia. (SOUZA, 2004)

Por isso, o rap brasileiro, de uma maneira geral, não se presta à “glori-ficação do oprimido”, como o tipo esperto e safo expresso na figura do ma-landro, como o oprimido que espera o reino dos céus prometido pela Igreja ou como o proletariado valoroso “guardião da verdade e do futuro” expresso no Manifesto Comunista. Ao contrário, o rap propõe tocar na ferida aberta da miséria, do lúmpen incompreendido pelo marxismo, expondo a dor, a vio-lência e a injustiça que não tem nada de original e de bacana, a começar pelo ritmo que se reproduz como sendo basicamente o mesmo, mundo afora, com pequenas nuances regionais. Quem sabe, através dessa estética internacional, o rap não nos esteja sinalizando que a dor, a fome e a miséria do indiano, do africano ou do brasileiro – fora pequenas nuances – não têm nada de original e nada de bacana.

Independentemente de tratar-se de samba, rap, ou maracatu, o fato é que a música popular tem se sustentado como plataforma doadora de senti-dos à vida das pessoas, através da expressão simbólica de cotidianos, eventos, lugares e espaços. O objetivo aqui era analisar essas conexões, levantando aspectos singulares e contraditórios da relação entre a música, o sujeito e o lugar, destacando a utilização da canção popular como discurso mediador das fronteiras de ordem e desordem urbana, assim como das fronteiras geo-sociais urbanas, ora propondo a conciliação, o consenso, ora acentuando as alteridades, denunciando as injustiças e as desigualdades sócio-territoriais.

arte e cidades 2ed.indd 358 04/11/15 18:07

359

wa

lcle

r d

e l

ima

me

nd

es

jr

.

ö

notas

1 “O lugar em sua condição de estabilidade, fechado, íntimo, humanizado, é um centro de bem querência, afetividade e encontros, o qual se desbrava no dia-a-dia. O espaço, por oposição, é amplo, vulnerável, temido e rejeitado”. (TUAN, 1983; MELLO, 1991) “Experiências, símbolos, significados e permanências contribuem para forjar o sentido de lugar”. (MELLO, 2004)

2 O tal brinquedo de Entrudo/ Que lhe chamam carnaval/ É uma idéia infernal/ Confundem-se hierarquias/ É tudo igual em três dias/ Há um cisma entre o povo/ Que são dias de loucura/ E que sofra a criatura/ Que não gosta do brinquedo/ [...] Oh! e o que mais revolta/ É ver ousado pretinho/ Vir jogar seu limãozinho/ Na linda branca donzela/ Que incauta chega à janela/ Vir de lá um sevandija/ Um devasso, um beberrão/ Macular com negra mão/ O seio da castidade/ E prosseguir com a maldade. (E. de Sá. O Mágico, 29 de fev. de 1852).

3 Signo sob a leitura de Wittgeinstain (1999) que incorpora o significante (coisa) e o significado (o que se diz da coisa) tendo em vista que são construídos de forma simultânea pelo sujeito no ato de produção do signo.

4 Símbolo como a parte representativa a ser destacada do todo. (TUAN, 1980)

5 “Locais próximos ou distantes, em diferentes escalas, mesmo não vividos pessoalmente, podem se tornar lugares concebidos ou míticos a partir dos relatos ou quando cantados, na medida em que haveria, neste tipo de comunicação, uma certa relação de intimidade. [...] O lugar mítico situado em um dos níveis mais sofisticados do pensamento humano diz respeito aos eldorados ou terras fantásticas relativas aos projetos irrealizáveis ou cultivado como um éden a ser alcançado nesta ou em outra dimensão”. (MELLO, 2004)

6 Alguns exemplos atuais dessas pequenas iniciativas são: 1) A luta dos quilombolas da Ilha de Marambaia contra a Marinha do Brasil, primeiro pelo reconhecimento do grupo como quilombo, depois pelo reconhecimento do direito de uso da terra, atualmente em poder da Marinha. 2) A criação da Rádio Grande Tijuca que atende às comunidades do Borel e adjacências. A trajetória da rádio, que começou como “rádio poste” (autofalantes pregados aos postes da favela), transformando-se em “rádio pirata”, e finalmente em rádio comunitária é caracterizada pelo desejo de ser uma voz da comunidade que se antagoniza à representação espetacular da violência e do medo promovida pelos meios de comunicação de massa ao selecionar e noticiar os fatos que ocorrem na comunidade do Borel. 3) A criação do centro de recreação e atividades culturais de “Vila Aliança” em Bangu, sob a direção de Dona Zica que, junto à associação de moradores, atende crianças e jovens através de atividades esportivas, artísticas e educativas, com ênfase no teatro, dança, futebol, capoeira e leitura de contos infantis. 4) A iniciativa da escola comunitária de música: Meu Kantinho, Centro de Cultura, do músico Sebastião Cloves, violonista de Jamelão, que desenvolve um trabalho voluntário voltado para os moradores da região da Penha Circular. O centro é um foco de resistência e divulgação de gêneros musicais “genuinamente brasileiros” como o Samba e o Choro. Acontecem no local várias festividades como festas juninas, Dia dos Pais e Dia das Mães, Festa de N. S. da Penha, Santa Cecília e São Jorge. 5) A criação da TV-ROC, TV comunitária a cabo que, a preços subsidiados, disponibiliza uma quantidade considerável de canais de vários países (Espanha, Itália, França, Inglaterra, Portugal etc.) aos moradores da Favela da Rocinha, abrindo opções de programação ao monopólio da Rede Globo. 6) A formação do Corpo de Dança da Maré, com 63 integrantes, adolescentes, da Favela da Maré, organizados pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, que resultaram

arte e cidades 2ed.indd 359 04/11/15 18:07

360

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

em três espetáculos: Mãe Gentil, Danças da Maré e Folias Guanabaras. Uma das integrantes declarou: “Depois que entrei no grupo de dança comecei a freqüentar lugares bonitos, viajar para São Paulo, Salvador, de avião, fico triste de ver meus pais que trabalham tanto sem ter oportunidade de viver as mesmas coisas”. (VARELLA, et al., 2002, p. 109)

7 Ao descrever a cidade benjaminiana, Matos afirma que: “A história individual e a coletiva são inseparáveis, a rua lateja fora e dentro daquele que vai percorrê-la e mapeá-la”. (MATOS, 1944, p. 44)

8 Arendt em A condição humana observa que: “Inserida num cosmo onde tudo era imortal, a mortalidade passou a ser o emblema da existência humana. Os homens são os mortais, as únicas coisas mortais que existem porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como membros de uma espécie cuja imortalidade é garantida pela procriação. A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual, com uma história vital identificável desde o nascimento até a morte, advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso retilíneo de seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico. [...] A tarefa e a grandeza potencial dos mortais tem a ver com sua capacidade de produzir coisas – obras, feitos e palavras – que mereceriam pertencer e, pelo menos até certo ponto, pertencem à eternidade, de sorte que através delas, os mortais possam encontrar o seu lugar num cosmo onde tudo é imortal exceto eles próprios. Por sua capacidade de feitos imortais, por poderem deixar atrás de si vestígios imorredouros, os homens, a despeito de sua mortalidade individual, atingem seu próprio tipo de imortalidade e demonstram sua natureza <<divina>>.” (ARENDT, 2000, p. 27)

9 Não é por acaso que, Everardo Rocha, em A sociedade do sonho, propõe que a temporalidade da publicidade seja circular e anti-histórica, com a finalidade de ludibriar o consumidor ao vender a imortalidade desse universo como que agregada aos produtos.

10 Peralva, em Violência e democracia, o paradoxo brasileiro, assinala “a oposição perceptível entre as atitudes e as representações típico-ideais dos trabalhadores adultos e dos jovens pobres. Os primeiros – homens, chefes de família, no mais das vezes operários da construção ou prestadores de serviços – reivindicavam ativamente os valores do trabalho e consideravam-se provedores das necessidades familiares. Os jovens tinham de si mesmos uma imagem de consumidores potenciais. Tal mudança era evidentemente fundamental do ponto de vista das condições de estruturação do vínculo social. O trabalho não havia deixado de ser no Brasil uma experiência cotidiana da juventude pobre, mas já havia deixado de ser um elemento central de articulação da experiência popular. Ele havia deixado de ser meio de vida para tornar-se vetor de um consumo personalizado. O acesso ao consumo havia-se ampliado em comparação com o passado, ao mesmo tempo, já não era mais exclusivamente determinado pelas prioridades coletivas familiares, individualizando-se cada vez mais”. (PERALVA, 2000, p. 31)

11 Observação pertinente: a transformação que os três “fixos” sofreram impossibilitariam, hoje em dia, qualquer dos três convites à menina da música: Paquetá está poluída, a Barra está super povoada e o Joá transformou-se em zona de condomínios cercados e vigiados por guaritas particulares.

12 “Ele se veste como o burguês sendo uma espécie de seu arremedo na aparência, desfrutando de uma condição de vida que lhe permite, livrá-lo dos constrangimentos da disciplina burguesa”. (SOUZA, 2004)

arte e cidades 2ed.indd 360 04/11/15 18:07

361

wa

lcle

r d

e l

ima

me

nd

es

jr

.

ö

referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

BONFÁ, Luiz; MARIA, Antonio. Manhã de Carnaval. In: BONFÁ, Luiz. Enciclopédia musical brasileira: Luiz Bonfá e as raízes da bossa. São Paulo: Warner Music Brasil, p2000. Faixa 11.

CARTOLA, Sala de recepção. In: MOREIRA, Cid. Angenor. São Paulo: Lua Music, p2008. 1 CD. Faixa 8.

CARTOLA; CACHAçA, Carlos; CARVALHO, Hermínio Bello de. Alvorada. In: MOREIRA, Cid. Angenor. São Paulo: Lua Music, p2008. 1 CD. Faixa 2.

CAVAQUINHO, Nelson; QUEIROZ, Geraldo. Sempre Mangueira. In: CAVAQUINHO, Nelson. A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes. São Paulo: Sesc, p2001. 1CD. Faixa 17.

CERTEAU, Michel de. Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: SZMERECSANYI, Maria Irene (Org.). Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano. São Paulo: FAUUSP, 1985.

COSTA, Aloísio Magalhães da; SILVA, Éneas Brites da Exaltação à mangueira. Intérprete: Elizeth Cardoso. In: CARDOSO, Elizeth. A enluarada Elizeth: participação especial de Clementina de Jesus, Cartola, Codó, Pixinguinha. Rio de Janeiro: Copacabana, p2006. 1CD.

COSTALLAT, Benjamim. A favela que eu vi. In: COSTALLAT, Benjamim. Mistérios do Rio. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1995.

FERREIRA, Felipe. Inventado carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século XIX e outras questões. Rio de Janeiro: UERJ, 2005.

MATOS, Olgária. O direito à paisagem. In: PECHMAN, Robert (Org.). Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.

MELLO, J. B. F. O Rio de Janeiro dos compositores populares: uma introdução à Geografia Humanística. 1991. Dissertação (Mestrado em Geografia). Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

MELLO, J. B. F. Espaços da escuridão e lugares da luminosidade na perspectiva humanística em Geografia. 2004. <www.igeo.uerj.br/VICBG-2004/Eixo3/E3_048.htm> Acesso em jan. 2006.

MONARCO. Mangueira e suas tradições. Intérprete: Beth Carvalho. In: CARVALHO, Beth. Coração Feliz. [S. C.]: RCA Victor, p1984. Faixa 5.

arte e cidades 2ed.indd 361 04/11/15 18:07

362

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

MORAES, Vinícius; LYRA, Carlos. Marcha de quarta-feira de Cinzas. In: MORAES, Vinícius. Vinícius: poesia e canção [s. l.]: Forma, p1966. 2LP, v. 1, faixa 5.

PECHMAN, Robert. Pedra e discurso: cidade, história e literatura. Semear, Revista da Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses; Rio de Janeiro, n. 3, 1999.

PERALVA, Angelina. Violência e democracia: o paradoxo brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

PORTELLA, Eduardo. Rio, síntese aberta. Cidade e literatura, Rio de Janeiro, n. 2, 1988.

ROSA, Noel. Onde está a honestidade? Intérprete: Marília Batista. In: BATISTA, Marília. História musical de Noel Rosa. [Gravataí, RS] MUSIDISC, P1996. 2 v.

ROSA, Noel; VADICO. Feitiço da vila. Intérprete: Aracy de Almeida. In: ALMEIDA, Aracy. A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes. São Paulo: Sesc, p2001. 1CD. Faixa 6.

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. São Paulo: HUCITEC, 1978.

SILVA, Ismael. Antonico. In: SILVA, Ismael. A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes. São Paulo: Sesc, p2001. 1CD, faixa 11.

SOUZA, Jessé. As metamorfoses do malandro. In: CAVALCANTE, Berenica; STARLING, Heloisa; EISENBERG, José (Org.). Decantando a república, inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2004. v. 3

TUAN, Yi-Fu. Topofilia. São Paulo: DIFEL, 1980.

TUAN, YI-Fu. Espaço e lugar. São Paulo: DIFEL, 1983.

VELLOSO. Mônica Pimenta. A cultura das ruas no Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2004.

VARELLA, Dráuzio et al. Maré, vida na Favela. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: J. Zahar: UFRJ, 1995.

VIOLA, Paulinho. Pecado Capital. In: PAULINHO da Viola: perfil. São Paulo: Som Livre, p2003. 1 CD, faixa 7.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

arte e cidades 2ed.indd 362 04/11/15 18:07

363 ö

nivaldo vieira de andrade Junior

na cidade em que me perco: a tropicália e a representação do espaço urbano contemporâneo

O objetivo deste trabalho é investigar como as letras das canções pro-duzidas por Caetano Veloso e Gilberto Gil percebem e representam o espaço urbano das grandes cidades brasileiras, em especial, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo – as mais recorrentes –, a partir de meados da década de 1960. Uma ênfase particular é dada ao período em que os autores estiveram à frente do movimento musical conhecido como Tropicália e às relações entre a visão de cidade apresentada em suas canções e as diversas teorias e práticas urbanísticas que se desenvolveram no cenário internacional a partir do segundo pós-guerra, no processo de crítica, revisão e contestação do urbanismo moderno.

A Tropicália foi, de acordo com Carlos Calado,

Um movimento que veio para acabar com os outros movimentos’. Ou não? A Tropicália [...] distendeu o cordão sanitizado da bossa, abrindo as comportas da obra de arte para as margens do brega nativo e do pop internacional, numa operação programática de ‘sair e entrar de todas as estruturas. (CALADO, 1997)

a Pré-tropicália de Caetano e Gil: saudades da bahia e permanência da bossa

As letras das primeiras composições gravadas de Caetano Veloso e Gilberto Gil, do período que vai do seu aparecimento no cenário musical brasileiro, na

arte e cidades 2ed.indd 363 04/11/15 18:07

364

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

primeira metade da década de 1960, até o surgimento da Tropicália, no final de 1967, não diferiam significativamente da produção brasileira daqueles anos e das décadas anteriores, demonstrando uma grande proximidade com a chamada “música de protesto” então em voga1 e, principalmente, com a Bossa Nova.2

A análise das primeiras composições de Caetano e Gil, gravadas em seus discos de estreia,3 demonstra que sua produção musical não diferia na temática ou na linguagem daquela de outros artistas da mesma geração e ligados à Bossa Nova, à música de protesto ou ao samba tradicional, como Milton Nascimento, Edu Lobo, Chico Buarque, Sidney Miller, Geraldo Vandré e Dori Caymmi, por exemplo.

A Bossa Nova, ainda que trouxesse uma série de inovações musicais ao velho samba, na medida em que se deixava influenciar pelo jazz norte--americano, de certa forma manteve nas letras as mesmas temáticas românticas e saudosistas dos tradicionais sambas de vinte ou trinta anos antes. É apenas a partir de 1967, com a Tropicália, liderada por Caetano Veloso e Gilberto Gil, que irá ocorrer de fato uma revolução nas letras da música popular brasileira, que passam a apresentar uma nova visão da sociedade e, também, do espaço urbano, que é o objeto da análise deste artigo.

Para compreender as mudanças que levarão ao Tropicalismo, é preciso retroceder um pouco ao período de formação dos dois baianos que foram os principais compositores do movimento. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram criados em pequenas cidades do interior baiano e, somente no final da infância ou no início da adolescência, se transferiram para Salvador. A partir de 1964, ambos deixam a capital baiana, indo viver primeiramente no Rio de Janeiro e, em seguida, em São Paulo; o contato com a cidade grande, no momento em que se consolidava o processo de industrialização brasileiro, exercerá grande influência na visão de mundo dos dois compositores baianos.

As canções compostas por Caetano e Gil ainda na Bahia ou logo após a chegada ao Rio de Janeiro se inspiravam na Bossa Nova e, despudoradamente românticas,4 tinham como mote, a beleza do mar da Bahia – um atestado da herança caymmiana:

é o azul que a gente fitano azul do mar da Bahia é a cor que lá principiae que habita em meu coração (GIL; VELOSO, 1967)5

arte e cidades 2ed.indd 364 04/11/15 18:07

365

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

ou a pracinha tranquila

roda, toda a gente rodaao redor desta praça e esta praça é formosa e a rosa pousada no meio da roda no meio da tarde de um imenso jardim (VELOSO, 1967a).

O saudosismo – outra prova da influência de Caymmi – é recorrente

ai, quem me dera voltar, quem me dera um diameu Deus, não tenho alegriaBahia no coração ai, quem me dera o diade ter de novo a Bahia todinha no coração(VELOSO, 1967b)

e a Bahia é vista de forma extremamente lúdica

na minha terra, Bahia entre o mar e a poesia tem um porto, Salvador as ladeiras da cidade descem das nuvens pro mar e num tempo que passoutoda a cidade desciavinha pra feira comprar.(CAPINAN; GIL, 1967)6

Talvez o melhor exemplo deste período de intensa “saudade da Bahia”, parafraseando o Caymmi (1957) de quase uma década antes, seja Eu Vim da Bahia, de Gilberto Gil – não por acaso, na gravação joãogilbertiana que lançou Gal Costa, a mais importante intérprete do movimento tropicalista e que seria por décadas a mais frequente intérprete de Caetano e Gil:

arte e cidades 2ed.indd 365 04/11/15 18:07

366

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Eu vim / eu vim da Bahia cantarEu vim da Bahia contar / tanta coisa bonita que tem / na Bahia, que é meu lugarTem meu chão, tem meu céu, tem meu mar A Bahia que vive pra dizer / como é que se faz pra viverOnde a gente não tem pra comer / mas de fome não morre Porque na Bahia tem mãe Iemanjá / de outro lado o Senhor do BonfimQue ajuda o baiano a viver / pra cantar, pra sambar pra valer / pra morrer de alegriaNa festa de rua, no samba de roda / na noite de lua, no canto do marEu vim da Bahia / mas eu volto pra láEu vim da Bahia / mas algum dia eu volto pra lá.(GIL, 1965)

a revolução da tropicália: contestação em um país em convulsão

A Tropicália surge inserida num contexto artístico e cultural muito mais amplo e suas interfaces com outras manifestações artísticas contemporâneas foram múltiplas e diversificadas. Os maestros Rogério Duprat e Júlio Medaglia, de formação erudita, fizeram os arranjos da maioria das canções tropicalistas, enquanto o artista gráfico Rogério Duarte, autor dos cartazes de alguns dos principais filmes brasileiros da década de 1960, como Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, e Meteorango Kid, herói intergaláctico (1969), de André Luiz Oliveira, compôs músicas em parceria com Caetano Veloso (Anunciação) e Gilberto Gil (A última valsa e Objeto semi-identificado) e fez as capas de alguns dos principais discos da Tropicália.

Além disso, o próprio nome do movimento nasceu de uma analogia, feita por Luiz Carlos Barreto, fotógrafo dos filmes de Glauber Rocha, com a obra Tropicália, do artista plástico Hélio Oiticica:

Exibida pela primeira vez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em abril de 1967, a Tropicália de Hélio Oiticica consistia em um ambiente formado por duas tendas, que o autor chamava de penetráveis. Areia e brita espalhadas pelo chão, araras e vasos com plantas criavam um cenário tropical. Depois de atravessar uma espécie de labirinto, já dentro da tenda principal, quase às escuras, o público

arte e cidades 2ed.indd 366 04/11/15 18:07

367

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

encontrava um aparelho de televisão, devidamente ligado. (CALADO, 1997, p. 163)

Uma outra obra de Oiticica, uma bandeira com a inscrição “seja marginal, seja herói”, em homenagem ao “bandido” Cara-de-Cavalo, foi utilizada pela trupe tropicalista num show na Boate Sucata em outubro de 1968, gerando grande repercussão na imprensa. Oiticica foi ainda o autor da bela capa do LP Le-Gal, lançado por Gal Costa em 1970. Outros artistas cuja identificação com o grupo de músicos baianos não pode ser esquecida são o dramaturgo José Celso Martinez Correa e seu grupo de teatro Oficina (que provocaram rebuliço em 1967 com uma montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade) e os cineastas ligados ao Cinema Novo e ao cinema udigrúdi, como Júlio Bressane e o baiano Gláuber Rocha – cujo revolucionário filme Terra em Transe entrou em cartaz em maio de 1967.

Acumulando as influências mais diversas, do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade à Poesia Concreta de Décio Pignatari e dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, buscando mesclar a sofisticação cool de João Gilberto ao exagero brega de Vicente Celestino, o iê-iê-iê dos Beatles à baianidade estilizada de Carmen Miranda, os ritmos latinos e caribenhos ao batuque do candomblé, a dimensão do papel dos tropicalistas na Música Popular Brasilei-ra não foi imediatamente compreendida. Uma exceção é justamente o poeta concreto Augusto de Campos, defensor de primeira hora do movimento, que escreveu ainda em 1968:

Nem todos estão entendendo a atuação do grupo da Tropicália (prefiro falar em Tropicália em vez de Tropicalismo, como sempre preferi falar em Poesia Concreta em lugar de Concretismo). ‘Ismo’ é o sufixo preferentemente usado pelos adversários dos movimentos de renovação, para tentar historicizá-los e confiná-los. Os baianos estão usando uma metalinguagem musical, vale dizer, uma linguagem crítica, através da qual estão passando em revista tudo o que se produziu musicalmente no Brasil e no mundo, para criarem conscientemente o novo, em primeira mão. Por isto seus discos são uma antiantologia de imprevistos, onde tudo pode acontecer e o ouvinte vai, de choque em choque, redescobrindo tudo e reaprendendo a ‘ouvir com ouvidos livres’ tal como Oswald de Andrade proclamava em seus manifestos: ‘ver com olhos livres’.

arte e cidades 2ed.indd 367 04/11/15 18:07

368

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Os compositores e intérpretes da Tropicália nem ignoram a contribuição de João Gilberto, nem pretendem continuar, linearmente, diluindo-as, as suas criações. Eles deglutem, antropofagicamente, a informação do mais radical inovador da BN. E voltam a pôr em xeque e em choque toda a tradição musical brasileira, bossa-nova inclusive, em confronto com os novos dados do contexto universal. Superbomgosto e supermaugosto, o fino e o grosso, a vanguarda e a jovem guarda, berimbau e beatles, bossa e bolero são inventariados e reinventados, na compreensão violenta desses disco-happenings onde até o redundante ‘coração materno’ volta a pulsar com os tiros de canhão da informação nova. (CAMPOS, 1993, p. 261-262, grifos nossos)

No que se refere ao contexto político, no ano de 1968 – quando o mo-vimento chega a seu ápice e quando são gravadas as suas principais canções – o Brasil se encontrava há quatro anos sob uma ditadura militar que ainda duraria outros dezessete e que, a partir da decretação do Ato Institucional n. 5, em 13 de dezembro do mesmo ano, cercearia cada vez mais as liberdades individuais. No contexto internacional, 1968 é o ano dos movimentos de contestação por todo o mundo, sendo particularmente marcantes as manifestações estudantis de maio em Paris, a primavera de Praga e os protestos contra a guerra do Vietnã, nos Estados Unidos.

Toda esta situação de instabilidade e de contestação está refletida nas canções tropicalistas. A cidade representada nas letras é, muitas vezes, uma cidade em convulsão provocada pelas manifestações populares. A marcha É Proibido Proibir, que Caetano Veloso defendeu no III Festival Internacional da Canção, em 1968, e que o levou a ser vaiado pelo público e desclassificado do Festival, teve seu título inspirado numa foto publicada na revista Manchete de uma pichação feita por estudantes em Paris (défense d’interdire) e, em versos como “os automóveis ardem em chamas/ derrubar as prateleiras/ as estantes, as estátuas, as vidraças/ louças, livros, sim” (VELOSO, 1968c), reflete a ocupação dos espaços públicos urbanos pelos estudantes e pela população em geral, seja em Paris, seja no Rio de Janeiro, Praga ou Washington D.C.

As relações diretas entre o movimento estudantil de maio de 1968 em Paris, com suas repercussões mundo afora, e as canções tropicalistas não se resumem, contudo, a É proibido proibir. Defendida por Gilberto Gil no mesmo festival, Questão de ordem já falava de comícios, desaparecimentos de militantes e de palavras de ordem ligadas às manifestações populares de contestação ao regime:

arte e cidades 2ed.indd 368 04/11/15 18:07

369

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

se eu ficar em casa fico preparandopalavras de ordempara os companheirosque esperam nas ruaspelo mundo inteiro [...] se eu sair agorapode haver demorademora tão grande que eu nunca mais volte.(GIL, 1968)

O clima de uma cidade em convulsão fica claro em pelo menos duas can-ções do disco-manifesto do movimento tropicalista, intitulado Tropicália ou Panis et Circensis, também de 1968. O bolero Lindonéia, de Caetano e Gil, inspirado no quadro Lindonéia ou a Gioconda do subúrbio de Rubens Gershman, alertava:

despedaçadosatropelados cachorros mortos nas ruaspoliciais vigiando.(GIL; VELOSO, 1968a)

O ritmo de bolero e a delicadeza da voz de Nara contrastam fortemente com a força da letra, em que as referências à ditadura são mais do que claras.

Enquanto seu lobo não vem, do mesmo disco, é uma canção apenas de Caetano, que também reflete a situação política e na qual referências aos mi-litares (botas, bombas, bandeiras) se misturam a outras imagens antagônicas, de alegria ou tranquilidade, como flores e o carnaval carioca:

Vamos passear / nos Estados Unidos do Brasil / vamos passear escondidosVamos desfilar / pela rua onde Mangueira passou / vamos por debaixo das ruasDebaixo das bombas, das bandeiras, debaixo das botasDebaixo das rosas, dos jardins, debaixo da lama Debaixo da cama.(VELOSO, 1968d)

arte e cidades 2ed.indd 369 04/11/15 18:07

370

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Mas nem tudo era política e contestação. Esse clima revolucionário (comício, noite escura, perigo) ainda se mesclava, algumas vezes na mesma música, com o velho romantismo pré-tropicalista:

Coisa mais linda nesse mundo / é sair por um segundo / e te encontrar por aíE ficar sem compromisso / pra fazer festa ou comício / com você perto de mimNa cidade em que me perco / na praça em que me resolvo / na noite da noite escura. (GIL, TORQUATO NETO, 1969)

Para Caetano e Gil (1969), nesta situação tensa, “é preciso estar atento e forte [...] pra este sol, para esta escuridão”, pois “tudo é perigoso”. Tudo pode ser “divino, maravilhoso” a partir da transformação efetivada por cada indiví-duo sobre a sua realidade; o homem é sujeito ativo na modificação do espaço urbano. Como canta Gal Costa em Mamãe Coragem:

eu por aqui vou indo muito bem de vez em quando brinco carnaval e vou vivendo assim: felicidadena cidade que eu plantei pra mime que não tem mais fim não tem mais fim. (VELOSO, TORQUATO NETO, 1968, grifos nossos)

A mesma situação de tranquilidade predomina em Baby, que se destaca das demais canções pelo romantismo saudosista e pelo lirismo, apesar da tensão contida nas entrelinhas:

não sei, comigo vai tudo azulcontigo vai tudo em paz vivemos na melhor cidadeda América do Sul, da América do Sul.(VELOSO, 1968b)

O oposto absoluto de Baby, pela morbidez e surrealismo da letra, será a música-título do disco, Panis et circensis, outra parceria de Gil e Caetano, entoado pelo grupo de rock Os mutantes:

arte e cidades 2ed.indd 370 04/11/15 18:07

371

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

mandei fazer de puro aço luminoso um punhalpara matar o meu amor e mateiàs cinco horas na avenida Centralmas as pessoas da sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer.(GIL; VELOSO, 1968b)

a tropicália e a internacional situacionista

Considerando os espaços urbanos – particularmente aqueles públicos, como praças, largos, ruas e avenidas – como cenário das ações desenvolvidas nas letras das canções tropicalistas, é muito difícil não fazer comparações entre a perspectiva de cidade da Tropicália e as teorias e movimentos urbanos que, em diversos países, surgiram entre as décadas de 1950 e 1970 para questionar o urbanismo modernista.

Um dos grupos que talvez mais se identifique com essa visão tropicalista da cidade é a Internacional Situacionista (IS). As influências dadaístas e surre-alistas podem ser percebidas em ambos os movimentos e é interessante notar que o pensamento situacionista teve grande influência nos acontecimentos revolucionários de maio de 1968 na França, que por sua vez guardam relações, como vimos, com a Tropicália.

Tecendo críticas ao capitalismo, ao turismo, à publicidade e à “felicidade” burguesa e ao urbanismo de uma maneira geral, a IS era a favor da criação de situações construídas e da aplicação de mecanismos concretos como o “jogo psicogeográfico da semana”. O Urbanismo Unitário, apresentado na revista Internacional Situacionista de dezembro de 1959, propõe a prática da deriva na apreensão do espaço urbano. Defendia uma cidade dinâmica, em constante transformação; uma cidade radicalmente mutante que, ao mover-se, deixa seu rastro – a zona de deriva:

O urbanismo unitário coincide objetivamente com os interesses de subversão do todo. [...] Opõe-se ao espetáculo passivo, típico de nossa cultura porque o homem pode cada vez mais interferir de novas maneiras. [...] o UU vê o meio urbano como terreno de um jogo do qual se participa.

arte e cidades 2ed.indd 371 04/11/15 18:07

372

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

O urbanismo unitário não aceita a fixação das cidades no tempo. Induz, ao contrário, à transformação permanente, a um movimento acelerado de abandono e de reconstrução da cidade no tempo e, ocasionalmente, também no espaço. [...]

O urbanismo unitário é contra a fixação das pessoas em determinados pontos de uma cidade. (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 2003, p. 102-104)

A construção ativa da cidade, feita por cada indivíduo, vista em Mamãe coragem (“a cidade que eu plantei pra mim”) ou a crítica à passividade das “pessoas na sala de jantar”, incapazes de intervir na realidade urbana, apre-sentada em Panis et Circensis são representativas de uma afinidade entre o ideal tropicalista e as propostas situacionistas. Caetano Veloso afirmou, em 1968, que desejava entrar e sair de todas as estruturas, e que o tropicalismo levaria impreterivelmente ao seu próprio fim. Estas ideias são extremamente próximas daquelas situacionistas de quase dez anos antes: “a primeira lição da deriva é a sua própria existência em jogo” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 2003, p. 104); assim como no caso da Tropicália, o próprio êxito levou ao fim da Internacional Situacionista:

Apesar da visibilidade conquistada nas diversas ações situacionistas que marcaram os acontecimentos de Maio de 1968, a IS, depois de um fortalecimento fugaz, entrou em crise. O seu súbito reconhecimento atraiu muitos novos membros de vários países, tornando a organização cada vez mais complexa e praticamente incontrolável. Assim, a IS se dissolveu em 1972, um fim que para o seu fundador, Débord, seria o verdadeiro começo:

O movimento das ocupações [de maio de 1968] foi o início da revolução situacionista, mas foi só o começo, como prática da revolução e como consciência situacionista da história. É só agora que toda uma geração, internacionalmente, começou a ser situacionista. (JACQUES, 2003, p. 18)

A deriva situacionista pode ser captada claramente em uma das principais canções do primeiro LP tropicalista de Caetano Veloso, de 1968: “Sem lenço, sem documento / nada no bolso ou nas mãos”. (VELOSO, 1968a)

arte e cidades 2ed.indd 372 04/11/15 18:07

373

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

Passear pela cidade, bombardeado por informações, “fotos e nomes”, “bomba e Brigitte Bardot”, é uma experiência única e irreproduzível.

a tropicália e a Cidade Pós-Moderna

A canção-manifesto Tropicália, assim como grande parte das canções produzidas por Caetano e Gil naqueles anos, apresenta a visão de uma cidade--colagem, uma cidade-cenário fragmentada, próxima à cidade pós-moderna tal qual é apresentada por David Harvey em seu livro Condição Pós-Moderna:

O que parece ser o fato mais espantoso sobre o pós-modernismo: sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico que formavam uma metade do conceito baudelairiano de modernidade. [...] Foucault (1983, XIII) nos instrui, por exemplo, a ‘desenvolver a ação, o pensamento e os desejos através da proliferação, da justaposição e da disjunção’ e a ‘preferir o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os arranjos móveis aos sistemas. Acreditar que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade. (HARVEY, 1989, p. 49)

Mais especificamente no campo da arquitetura e do projeto urbano, Harvey acredita que a cidade é uma colagem de usos e formas superpostos ao longo do tempo, em claras referências aos livros L’architettura della città (ROSSI, 1995) – originalmente publicado na Itália em 1966 – e Collage city (ROWE; KOETTER, 1978):

O pós-modernismo cultiva [...] um conceito de tecido urbano como algo necessariamente fragmentado, um ‘palimpsesto’ de formas passadas superpostas umas às outras e uma ‘colagem’ de usos correntes, muitos dos quais podem ser efêmeros.[...] Se experimentarmos a arquitetura como comunicação, se, como Barthes (1975-92) insiste, ‘a cidade é um discurso e esse discurso é na verdade uma linguagem’, então temos de dar estreita atenção ao que está sendo dito, em particular porque é típico absorvermos essas mensagens em meio a todas as outras múltiplas distrações da vida urbana. (HARVEY, 1989, p. 69)

Harvey considera o livro Soft city, de Jonathan Raban (publicado em 1974), que retrata a Londres do início dos anos de 1970, como uma das primei-

arte e cidades 2ed.indd 373 04/11/15 18:07

374

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

ras apologias da cidade pós-moderna em formação. Para Raban, nas palavras de Harvey, a cidade é, acima de tudo, uma colagem de símbolos, espaço do convívio entre realidade e fantasia:

À tese [levantada por Jane Jacobs] de que a cidade estava sendo vitimada por um sistema racionalizado e automatizado de produção e consumo de massa de bens materiais, Raban opôs a idéia de que, na prática, se tratava principalmente da produção de signos e imagens. [...] Ao suposto domínio do planejamento racional, Raban opôs a imagem da cidade como uma ‘enciclopédia’ ou ‘empório de estilos’ em que todo o sentido de hierarquia e até de homogeneidade de valores estava em vias de dissolução.[...] A cidade, insiste Raban, é um lugar demasiado complexo para ser disciplinada dessa forma; labirinto, enciclopédia, empório, teatro, a cidade é lugar em que o fato e a imaginação simplesmente têm de se fundir. (HARVEY, 1989, p. 15-17)

Ainda que apenas em 1969, Caetano Veloso e Gilberto Gil fossem travar contato pessoalmente com esta Londres, onde passaram a residir, podemos per-ceber que Caetano, na canção Alegria, alegria, ao invés de retratar um lugar, um “pedaço” de cidade e descrevê-lo romanticamente, como costumavam fazer os compositores populares brasileiros até a Bossa Nova,7 apresenta uma justapo-sição de imagens, uma superposição de informações, um percurso dinâmico e fragmentado pela cidade. Em Alegria, alegria e em outras canções da Tropicália, o roteiro é mais importante que o cenário; o lugar só tem valor pelas ações que nele se desenvolvem; o espaço é percebido de maneira dinâmica, através dos percursos: “eu vou”.

Poderíamos, portanto, considerar o imaginário urbano tropicalista uma antecipação da visão de cidade pós-moderna, que na teoria do urbanismo só viria a se afirmar e se desenvolver quando o projeto tropicalista já se extinguira como utopia? Ainda que críticas e revisões ao projeto de cidade modernista existissem desde a virada dos anos de 1950 para os de 1960 (JACOBS, 2000; BARONE, 2002; INTERNATIONAL SITUACIONISTA; 2003), Harvey concorda com Charles Jencks (1985) em considerar o ano de 1972 como marco na superação da visão moderna de cidade e na afirmação da pós-modernidade:

No tocante à arquitetura, Charles Jencks data o final simbólico do modernismo e a passagem para o pós-moderno de 15h32m de 15 de

arte e cidades 2ed.indd 374 04/11/15 18:07

375

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

julho de 1972, quando o projeto de desenvolvimento da habitação Pruitt-Igoe [...] foi dinamitado como um ambiente inabitável para as pessoas de baixa renda que abrigava. Doravante, as idéias do CIAM, de Le Corbusier e de outros apóstolos do ‘alto modernismo’ cederam cada vez mais espaço à irrupção de diversas possibilidades, dentre as quais as apresentadas pelo influente Learning from Las Vegas, de Venturi, Scott Brown e Izenour (também publicado em 1972) mostraram ser apenas uma das fortes lâminas cortantes. O centro dessa obra, como diz o seu título, era insistir que os arquitetos tinham mais a aprender com o estudo de paisagens populares e comerciais (como as dos subúrbios e locais de concentração de comércio) do que com a busca de ideais abstratos, teóricos e doutrinários. Era a hora, diziam os autores, de construir para as pessoas, e não para o Homem. (HARVEY, 1989, p. 45)

Em 1972, Robert Venturi, Steven Izenour e Denise Scott-Brown pu-blicam Learning from Las Vegas: the forgotten symbolism of architectural form (2003), onde defendem a importância dos símbolos, signos e imagens na arquitetura e no espaço urbano, usando como referência a cidade norte-americana de Las Vegas e os subúrbios das grandes metrópoles da América do Norte:

São os cartazes da estrada, por meio de suas formas esculturais ou silhuetas pictóricas, com sua posição específica no espaço, suas formas inclinadas e seus significados gráficos que identificam e unificam a megatextura. Eles fazem conexões verbais e simbólicas através do espaço, comunicando uma complexidade de significados mediante centenas de associações feitas em poucos segundos e à distância. O símbolo domina o espaço. A arquitetura não é suficiente. Uma vez que as relações espaciais são feitas mais por símbolos do que por formas, a arquitetura nessa paisagem se torna mais símbolo no espaço do que forma no espaço. A arquitetura define muito pouco [...]. O letreiro é mais importante do que a arquitetura. (VENTURI; IZENOOR; SCOTT-BROWN, 2003, p. 39-40; grifos nossos)

Em duas canções de seu LP tropicalista de 1968, Caetano Veloso se mostrava precursor desta leitura da cidade como cenário ou teatro, e do espaço urbano como espaço fragmentado e ocupado pela propaganda, onde prevale-cem os símbolos representados pelos letreiros de publicidade. Em Superbacana, ainda que o cenário seja a mesma Copacabana já retratada anteriormente por tantos outros compositores, como João de Barro (Braguinha) e Alberto Ribeiro

arte e cidades 2ed.indd 375 04/11/15 18:07

376

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

(Copacabana, 1946) e Dorival Caymmi e Carlos Guinle (Sábado em Copacabana, 1951), o bairro carioca é retratado pela primeira vez de forma fragmentada, e nela o mundo todo está representado:

estilhaços sobre Copacabanao mundo em Copacabana tudo em Copacabana

ou

o mundo explode longe, muito longe o sol responde, o tempo esconde e o vento espalha e as migalhas caem todas sobre Copacabana,

o espaço é dominado pela propaganda (“Superbacana, super-homem, superflit, supervinc, superist”); há ainda referências aos desenhos animados e às histórias em quadrinhos, que por sua vez nos remetem às publicações do grupo britânico Archigram e suas propostas iconoclastas e visionárias que surgiram cerca de quatro anos antes e que, em 1968, ainda eram produzidas sob a forma de qua-drinhos e grafismos com super-heróis, em uma atitude pop tipicamente inglesa:

a moeda número um do Tio Patinhas não é minha um batalhão de cowboys barra a entrada da legião de super-heróis e eu superbacana copacabana me engana, esconde o superamendoim e o espinafre biotônico(VELOSO, 1968f)

Outra canção do mesmo disco, Paisagem útil, é uma resposta a Inútil paisagem (1964), melancólica canção composta por Tom Jobim e Aloysio de Oliveira cinco anos antes. A paisagem útil apresentada por Caetano Veloso pode ser considerada como um paradigma da paisagem urbana pós-moderna, dominada pela publicidade e cosmopolita, sem contudo deixar de ser genui-namente carioca e fazer referências a uma das principais obras do urbanismo moderno brasileiro:

arte e cidades 2ed.indd 376 04/11/15 18:07

377

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

no alto do céu uma lua oval, vermelha e azul no alto do céu do Rio uma lua oval da Esso

ou

olhos abertos em vento sobre o espaço do Aterro sobre o espaço sobre o mar o mar vai longe do Flamengo. (VELOSO, 1968e)

Uma paisagem urbana na qual o novo e o antigo, natureza e construção se misturam (“frio palmeiral de cimento”), em um cenário com fortes tintas surrealistas

o céu vai longe e suspenso em mastros firmes e lentos

e

os automóveis parecem voar(VELOSO, 1968e)

o exílio londrino e a deriva no Carnaval baiano

O fim do tropicalismo decorre da partida de Gilberto Gil e Caetano Veloso para o exílio em Londres, em 1969, do qual só retornariam em 1972. A insatisfação de Caetano pela distância da terra natal é tamanha que, em um depressivo disco gravado em inglês em 1971, ele afirma que “everybody knows that our cities were built to be destroyed” (VELOSO, 1971c), e compõe uma canção de estranhamento à cidade que lhe dava asilo, na qual a liberdade de caminhar em deriva, “sem lenço sem documento”, é substituída pela melan-colia dos versos:

arte e cidades 2ed.indd 377 04/11/15 18:07

378

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

I choose no face to look at, choose no way I just happen to be here and it’s ok green grass, blue eyes, grey sky, god bless silent pain and happiness.(VELOSO, 1971b)

Gilberto Gil, ao contrário, parece estar satisfeito com as novidades que descobre na capital britânica e envereda por experiências místicas e alucinóge-nas na swinging London do início dos anos de 1970. Em Crazy pop rock, parceria com Jorge Mautner – outro artista brasileiro autoexilado em Londres –, ser humano e máquina se confundem na eletrizante cidade cinzenta:

From the city runs electricity in my brainsfrom the cars runs gasoline up in my veins I’m part of the problem, I’m not the solution I’m really the product of city pollution.(GIL; MAUTNER, 1971)

Apesar das posteriores transformações da obra destes dois baianos, há uma parte da produção de Caetano Veloso que, por alguns anos, ainda vai trazer resquícios da deriva tropicalista: as canções compostas para o carnaval de Salvador a partir de 1968.8 Esta produção tenta retratar a dionisíaca cidade transformada pelo carnaval, com hordas de pessoas circulando à deriva, em ritmo acelerado e em busca apenas de diversão e alegria, através de versos como os de Um frevo novo:

mete o cotovelo e vai abrindo o caminho pegue no meu cabelo para não se perdere terminar sozinho o tempo passa mas na raça eu chego lá é aqui nessa Praça que tudo vai ter que pintar(VELOSO, 1973)

abordagem semelhante encontramos na catarse de Cara a Cara:

arte e cidades 2ed.indd 378 04/11/15 18:07

379

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

nas suas andançasdançasna multidão veja se de vez em quando encontra contra os pedaços do meu coração. (VELOSO, 1977)

Chuva, suor e cerveja é, provavelmente, um dos primeiros e melhores retratos desta busca por situações urbanas tão tipicamente situacionistas:

Não se perca de mim não se esqueça de mim não desapareçaQue a chuva tá caindo e quando a chuva começa eu acabo perdendo a cabeçaNão saia do meu lado segure o meu pierrot molhado e vamos embolar ladeira abaixoAcho que a chuva ajuda a gente a se verVenha, veja, deixa, beija, sejao que Deus quiser.(VELOSO, 1971a)

o resgate da tradição e o retorno do saudosismo

A partir da segunda metade da década de 1970, a abordagem da cidade nas obras de Caetano e Gil tomará uma nova direção, mais conservadora. Isto pode ser percebido ao analisarmos duas canções produzidas pela dupla no final dos anos 1970 e quase se mostram ainda saudosistas das cidades das suas infâncias.

Em Trilhos urbanos, uma ode à sua cidade natal, Santo Amaro da Purifi-cação, composta em 1979, Caetano Veloso (1979) defende que

o melhor o tempo esconde longe muito longe mas bem dentro aqui quando o bonde dava a volta ali[...]

arte e cidades 2ed.indd 379 04/11/15 18:07

380

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

bonde da Trilhos Urbanos vão passando os anos e eu não te perdi meu trabalho é te traduzir.

Gilberto Gil, por sua vez, compusera dois anos antes o samba Tradição, retratando a cidade da Bahia da sua adolescência, no final dos anos 1950, “no tempo que preto não entrava no Bahiano nem pela porta da cozinha”. Nesta canção, Gil (1979) circula por uma Salvador do tempo do

lotação de Liberdade que passava pelo ponto dos Quinze Mistérios indo do bairro pra cidade pra cidade, quer dizer, pro Largo do Terreiro pra onde todo mundo ia todo dia, todo santo dia.

Mesmo nesta retomada das letras saudosistas e de ritmos musicais típi-cos dos anos de 1950, como o samba-canção de Tradição, não podemos dizer que Caetano e Gil estivessem se afastando da visão de cidade pós-moderna, já que justamente neste momento, o pensamento urbano sinalizava um retorno à tradição e um interesse pelas manifestações artísticas e culturais do passado. Basta observar que é no final dos anos de 1970 que arquitetos e urbanistas como Aldo Rossi, Paolo Portoghesi, Leon Krier e Robert Venturi adotarão uma abordagem historicista, sob o discurso da defesa da identidade cultural.

Como se vê, o percurso tropicalista – e da obra como um todo de Caetano Veloso e Gilberto Gil – está marcado por uma visão pós-moderna do espaço urbano, em toda a sua complexidade e correspondendo, em momentos distintos e em maior ou menor escala, às diversas características da pós-modernidade urbana, desde a fragmentação até o resgate do passado.

notas

1 O principal expoente da chamada “música de protesto”, cujo apogeu aconteceu em meados da década de 1960, foi Geraldo Vandré. Outros nomes importantes da “música de protesto” que, como Vandré, tinham origem na Bossa Nova, foram Edu Lobo, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo.

2 O ano de 1958 é considerado como o marco inicial da Bossa Nova, devido à gravação do disco Canção do amor demais por Elizeth Cardoso, então uma das mais respeitadas e populares

arte e cidades 2ed.indd 380 04/11/15 18:07

381

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

cantoras brasileiras. Todas as 13 canções do disco eram de autoria de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e nas músicas Chega de saudade e Outra vez, pode ser ouvida pela primeira vez a revolucionária batida do violão de João Gilberto. Alguns meses depois no mesmo ano, João Gilberto – que se firmaria com Tom Jobim e Vinícius de Moraes como a santíssima trindade da Bossa Nova – grava seu primeiro long-play solo, intitulado Chega de saudade, com músicas de novos compositores como Tom Jobim, Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli e com reinterpretações de velhos sambas-canções de Dorival Caymmi, Ary Barroso e Marino Pinto.

3 Nos referimos a dois long-plays lançados pela Polygram em 1967. O LP Louvação, de Gilberto Gil, possui repertório exclusivamente autoral (incluindo parcerias com Caetano Veloso, José Carlos Capinan, Torquato Neto, Geraldo Vandré e João Augusto), com arranjos de Dori Caymmi e Carlos Monteiro de Sousa. O LP Domingo, gravado por Caetano Veloso e Gal Costa com arranjos de Dori Caymmi, Roberto Menescal e Francis Hime, inclui oito canções bossa-novistas de Caetano, além de duas da dupla Gilberto Gil/Torquato Neto, uma de Edu Lobo e uma de Sidney Miller.

4 Ainda que algumas vezes – principalmente no caso de Gilberto Gil – se alinhassem com o que se convencionou chamar de “canção de protesto”.

5 A canção foi composta em 1965.

6 Sobre a construção da imagem mítica de Salvador – a “Cidade da Bahia” – como “terra da felicidade”, “da magia, dos feitiços e da fé” através do cancioneiro popular, cf. Andrade Junior (2004).

7 Para uma análise das visões da cidade e do espaço urbano recorrentes entre a consolidação do samba como “estilo” e símbolo nacional, entre as décadas de 1930 e 1950, e o apogeu da Bossa Nova (1958-67), cf. Andrade Junior (2004, 2005).

8 A primeira das músicas compostas por Caetano Veloso especialmente para o Carnaval é Atrás do trio elétrico, lançada em 1968.

referências

ANDRADE JUNIOR, Nivaldo Vieira de. Bahia, terra da felicidade? A imagem e as transformações de Salvador através do cancioneiro popular. In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO, 8., 2004. Niterói: Anais... Universidade Federal Fluminense, 2004.

_____. Metrópoles em formação: o crescimento e as transformações das cidades brasileiras através do cancioneiro popular. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 11., 2005, Salvador. Anais... Salvador: ANPUR: UFBA, 2005.

BARONE, Ana Cláudia Castilho. Team 10: arquitetura como crítica. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002.

BARRO, João de; RIBEIRO, Alberto. Copacabana. In: FARNEY, Dick. Dick Farney. São Paulo: Continental, p1946.

arte e cidades 2ed.indd 381 04/11/15 18:07

382

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

BUARQUE, Chico. Chico Buarque – letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma evolução musical. São Paulo: Editora 34, 1997.

CAMPOS, Augusto. É proibido proibir os baianos. In: _____. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1993.

CAPINAN, José Carlos; GIL, Gilberto. Água de Meninos. In: GIL, Gilberto. Louvação. São Paulo: Polygram, 1967.

CAYMMI, Dorival. Saudade da Bahia. In: _____. Eu vou pra maracangalha. [s. l.] Odeon, 1957.

CAYMMI, Dorival; GUINLE, Carlos. Sábado em Copacabana. In: ALVES, Lúcio. Lúcio Alves. São Paulo: Continental, p1951.

DÉBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.

GIL, Gilberto. Eu vim da Bahia. In: COSTA, Gal. Compacto Simples. [São Paulo]: RCA-Victor, 1965.

GIL, Gilberto. Questão de ordem. In: _____. Compacto Simples. [São Paulo]: Polygram, p1968.

GIL, Gilberto. Tradição. In: _____. Realce. São Paulo: WEA, p1979.

GIL, Gilberto; MAUTNER, Jorge. Crazy pop rock. In: GIL, Gilberto. Gilberto Gil. Nonesuch, p1971.

GIL, Gilberto; RENNÓ, Carlos (Org.). Gilberto Gil: todas as letras. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

GIL, Gilberto; TORQUATO NETO. A coisa mais linda que existe. In: COSTA, Gal. Gal Costa. São Paulo: Polygram, p1969.

GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Beira-mar. In: GIL, Gilberto. Louvação. São Paulo: Polygram, p1967.

GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Divino maravilhoso. In: COSTA, Gal. Gal Costa. São Paulo: Polygram, p1969.

GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Lindonéia. In: TROPICÁLIA ou Panis et Circensis. São Paulo: Polygram, p1968a.

GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Panis et circensis. In: TROPICÁLIA ou Panis et Circensis. São Paulo: Polygram, p1968b.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1989.

arte e cidades 2ed.indd 382 04/11/15 18:07

383

niv

ald

o v

ieir

a d

e a

nd

ra

de

jr

.

ö

INTERNACIONAL SITUACIONISTA. O urbanismo no fim dos anos de 1950. In: INTERNACIONAL SITUACIONISTA; JAQUES, Paola Berenstein (Org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p. 100-105.

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

JACQUES, Paola Berenstein. Apresentação. In: INTERNACIONAL SITUACIONISTA; JAQUES, Paola Berenstein (Org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 13-36.

JENCKS, Charles. Movimentos modernos em arquitetura. Lisboa: Edições 70, 1985.

JOBIM, Tom; OLIVEIRA, Aloysio de. Inútil paisagem. In: JOBIM, Tom; CAYMMI, Dorival. Caymmi visita Tom. [Rio de Janeiro]: Elenco, p1964.

MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.

MELLO, Zuza Homem de; SEVERIANO, Jairo. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, 1901-1957. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 1.

_____. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, 1958-1985. São Paulo: Editora 34, 1998. v. 2.

ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Collage city. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1978.

SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo: decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo, 2000.

VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. In: CAETANO Veloso. São Paulo: Philips, p1968a.

VELOSO, Caetano. Baby. In: TROPICÁLIA ou Panis et Circensis. São Paulo: Polygram, p1968b.

VELOSO, Caetano. Cara a cara. In: _____. Muitos Carnavais. São Paulo: Polygram, 1977.

VELOSO, Caetano. Chuva, suor e cerveja. In: _____. Compacto Duplo: O Carnaval de Caetano. São Paulo: Polygram, 1971a.

VELOSO, Caetano. Domingo. In: COSTA, Gal; VELOSO, Caetano. Domingo. São Paulo: Polygram, p1967a.

arte e cidades 2ed.indd 383 04/11/15 18:07

384

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

VELOSO, Caetano. É proibido proibir. In: VELOSO, Caetano; MUTANTES. Compacto ao vivo Caetano e Mutantes (Festival). São Paulo: Polygram, 1968c.

VELOSO, Caetano. Enquanto seu lobo não vem. In: TROPICÁLIA ou Panis et Circensis. São Paulo: Polygram, p1968d.

VELOSO, Caetano. Paisagem útil. In: _____. Caetano Veloso. São Paulo: Polygram, p1968e.

VELOSO, Caetano. Um frevo novo. In: _____. Compacto Simples. São Paulo: Polygram, 1973.

VELOSO, Caetano. London, London. In: _____. Caetano Veloso. [s. l.] Nonesuch, p1971b.

VELOSO, Caetano. Maria Bethânia. In: _____. Caetano Veloso. Nonesuch, p1971c.

VELOSO, Caetano. Quem me dera. In: COSTA, Gal; VELOSO, Caetano. Domingo. São Paulo: Polygram, p1967b.

VELOSO, Caetano. Superbacana. In: _____. Caetano Veloso. São Paulo: Polygram, 1968f.

VELOSO, Caetano. Trilhos urbanos. In: _____. Cinema Transcendental. São Paulo: Polygram, 1979.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

VELOSO, Caetano; FERRAZ, Eucanaã (Org.). Caetano Veloso: letra só. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

VELOSO, Caetano; TORQUATO NETO. Mamãe coragem. In: TROPICÁLIA ou Panis et Circensis. São Paulo: Polygram, 1968.

VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; SCOTT-BROWN, Denise. Aprendendo com Las Vegas: o simbolismo (esquecido) da forma arquitetônica. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

arte e cidades 2ed.indd 384 04/11/15 18:07

385 ö

PasQualino roMano MaGnavita

arte/cidade no pensamento pós-estruturalista. saber, Poder e subjetivação

Os afectos são precisamente estes devires não humanos do homem, como os perceptos (entre eles a cidade), são as paisagens não humanas da natureza. Deleuze/Guattari

Basicamente, existem três formas de pensar e criar de naturezas diferen-tes, heterogêneas: a Arte, a Filosofia e a Ciência, à guisa de uma rede, um sistema aberto. Estas formas se cruzam, se entrelaçam, todavia, sem síntese nem identificação e fazem do pensamento uma Heterogênese. A Arte cria novas percepções (Perceptos) e Afetos; a Filosofia cria Conceitos; a Ciência cria novas funções (Functivos e pressupõe variáveis, limites, proposições, enunciados, formações discursivas e lógicas. (DELEUZE; GUATTARI, 2000)

A arte é a única coisa no mundo que se conserva em si, embora não dure mais que seu suporte e seus materiais, independente daquele que cria:

[...] que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos [...] As sens ações. Perceptos e afectos são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido [...] O objetivo da arte, com os meios materiais, é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações,

arte e cidades 2ed.indd 385 04/11/15 18:07

386

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

um puro ser de sensações. (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 213, 217, grifos nossos)

A arte deve ser entendida como uma linguagem das sensações traduzidas em cores, sons, pedras, palavras. Ela não é discursiva, não tem opinião, desfaz qualquer intenção nesse sentido, embora os blocos de sensações que dela ema-nam fazem as vezes de linguagem possuem a dimensão de um Monumento, de uma Fabulação, e isto, no sentido não de uma comemoração ou de cele-bração de algo, mas visa transmitir para o futuro as sensações que persistem e encarnam Acontecimentos, no sentido da criação de Figuras estéticas. Estas correspondem ao Estilo que as cria (“tom”, linguagem das sensações ou a língua estrangeira na língua). A Composição é a única definição da arte:

[...] A Composição é estética e o que não é composto não é uma obra de arte. Não confundiremos todavia a composição técnica, o trabalho do material que faz freqüentemente intervir a ciência (matemática, física, química, anatomia) e a composição estética, que é trabalho da sensação. Só este último merece plenamente o nome de composição, e nunca uma obra de arte e feito por técnica ou pela técnica. Certamente, a técnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra: as palavras e a sintaxe em literatura; não apenas a tela na pintura mas sua preparação, os pigmentos, suas misturas, os métodos de perspectiva, ou então os doze sons da música ocidental, os instrumentos as escalas...E a relação entre os dois planos, o plano da composição técnica e o plano de composição estético, não cessa de

variar historicamente. (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 247)

Portanto, a sensação se realiza no material, e não existe fora desta reali-zação, e o material entra na sensação. Sabe-se que existem muitos problemas técnicos em arte e a ciência pode intervir em resolvê-los, todavia eles só se colocam em função de problemas de natureza estética, de composição estéti-ca, sempre no sentido de encontrar que monumento erguer sobre o plano de composição ou que plano estender sobre tal monumento, e os dois ao mesmo tempo. Entretanto, deve-se entender que a sensação composta feita de perceptos e afectos promove processos de desterritorialização do sistema de opiniões que reúne as percepções e afecções dominantes (senso comum), tanto num meio natural quanto histórico e social.

arte e cidades 2ed.indd 386 04/11/15 18:07

387

Pas

qu

ali

no

Ro

ma

no

ma

gn

avit

a

ö

Todavia, essa sensação composta feita de perceptos e afetos que se reter-ritorializam sobre o Plano de Composição da Arte, a exemplo de casas que se erguem sobre ele, de pintura de paisagens tornadas puros perceptos e na litera-tura personagens tornados puros afectos. E, por sua vez, o plano de composição arrasta a sensação numa desterritorialização superior que a abre e a fende numa dimensão cósmica infinita. “[...] Talvez seja próprio da arte passar pelo finito para reencontrar, restituir o infinito”. (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 253)

Não há como saber quando e em que contexto histórico surgiram na lin-guagem os termos Arte e Cidade, e isto, como Acontecimento, no sentido estritamente conceitual. Arte e Cidade são elementos virtuais, incorporais e, como conceitos, não possuem coordenadas espaço-temporais. Todavia, ao longo de milênios, esses virtuais vêm se atualizando1 em estados de coisas, corpos e vividos, através de variedades de expressões, uma multiplicidades de “blocos de sensações”. No sentido epistemológico (FOUCAULT), ao longo de diferentes épocas, diferentes formações discursivas, foram realizadas, no sentido da for-mação de conjuntos de enunciados como Formas de expressão (o que se diz, no caso, sobre a Arte e a Cidade) e Formas de conteúdo (o que se vê como realidades concretas, edificações, quadros, esculturas etc.), formas estas que se estratificaram. Essa dupla articulação do dizer e do ver, “As palavras e as coisas”, constituem, como estratificações históricas, saberes, os quais se caracterizam por suas exterioridades (dizer e ver). No caso do tema em questão, os saberes artísticos e urbanos.

Há, portanto, duas multiplicidades que não cessam de se cruzar, multi-plicidades discursivas e multiplicidades não discursivas. “não adianta dizer o que se vê, o que se vê não habita no que se diz”. (FOUCAULT, 1987) O Saber, nesse sentido, é um Agenciamento prático, um “dispositivo” de enunciados e de visibilidades (exterioridades), e ele existe em função de limiares bastante variados, que assinalam um número equivalente de camadas, clivagens e orien-tações sobre os estratos. Vale observar, entretanto, que por formas de conteúdo (o que se vê), não se deve atribuir esta denominação apenas aos artefatos em si (arquiteturas, esculturas, pintura etc., por exemplo), mas entender que essas formas, em conjunto, se relacionam com uma máquina social técnica que a elas preexiste, constituindo estados de forças, ou formação de potências (pode-res). Por sua vez, as formas de expressão (o que se diz, enunciados), não devem ser confundidas com a linguagem, mas se encontram relacionadas com uma máquina semiótica que a elas preexiste e constitui um regime de signos.

arte e cidades 2ed.indd 387 04/11/15 18:07

388

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Um regime de signos é muito mais que uma língua. Essas máquinas atuam antes como elementos determinantes e seletivos, tanto para a construção das ferramentas, das línguas, quanto para seus usos, comunicação e difusão mútua.

Contudo, esses saberes artísticos (no caso da cidade, ela deve ser enten-dida como uma multiplicidade de “blocos de sensações”, portanto, em con-junto, como uma obra de arte), entretanto, esses como os demais saberes são permeados por relações de poderes. Estas relações, diferentes dos processos de estratificação dos saberes nas formas de expressão e formas de conteúdo, não são estratificáveis, não são exterioridades como o que se diz e o que se vê, são interioridades. “O poder não vê nem fala, mas faz ver e falar”. (FOUCAULT, 1999) Ver e falar sempre estiveram inteiramente ligados às relações de poder que resultam de forças móveis, evanescentes, difusas (micropoderes) que todavia não se encontram fora dos estratos (saberes), mas são o seu lado de Fora. Se ver e falar são formas de exterioridade, o Pensamento (pensar) se orienta a um lado de Fora que não possui forma. Ver é pensar, falar é pensar, mas o pensar opera na disjunção, no interstício entre falar e ver.

O poder não é essencialmente repressivo, ele se exerce antes de se possuir. O poder é como uma força não localizável tomada independente das formas concretas em que ele se encarna, dos objetivos que satisfaz e dos meios que emprega. E, no dizer de Deleuze, corresponde a uma física de ação abstrata, uma pura matéria não formada, tomada independentemente das substân-cias formadas, dos seres, dos objetos qualificados. Entre o poder e o saber há uma diferença de natureza, são elementos heterogêneos, entretanto, mantêm uma pressuposição recíproca e capturas mútuas, e há primado de um sobre o outro. O poder não passa por formas, mas apenas por forças, por pontos, pontos singulares que marcam a cada vez, a aplicação de uma força, a ação ou reação de uma força em relação às outras, um afeto no sentido de um “estado de poder sempre local e instável”.

Comentando o que diz Foucault sobre o Poder, Deleuze também o en-tende como uma relação de forças, todavia, relação esta que não se estabelece entre as duas formas de exterioridade como no Saber foucaultiano. O poder é o não-estratificável. É um conjunto de ações possíveis, de ações sobre ações, uma relação de forças, uma multiplicidade de poderes, no sentido de incitar, induzir, dividir, tornar fácil ou difícil, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos provável essa relação de forças. A exemplo de se dividir o Espaço, (enquadrar, ordenar, colocar em série), ou ordenar no Tempo (subdividir o

arte e cidades 2ed.indd 388 04/11/15 18:07

389

Pas

qu

ali

no

Ro

ma

no

ma

gn

avit

a

ö

tempo, programar o ato, decompor o gesto). Neste sentido, o Poder se exerce, não é essencialmente repressivo. O poder de ser afetado é como uma “maté-ria” de força e poder de afetar, é como uma “função” da força: não-localizável, tomada independente das formas concretas em que ela se encarna, dos objeti-vos que satisfaz e dos meios que emprega. Segundo Deleuze: é uma física de ação abstrata, uma pura matéria não formada, tomada independentemente das substâncias formadas, dos seres, dos objetos qualificados. (DELEUZE, 1988)

As forças constituem estratégias (diagramas) enquanto exercício do não estratificado. Uma das questões concernentes às relações de poder diz respeito à Resistência na medida em que as relações de poderes se conservam por inteiro como diagrama de forças hegemônicas e resiste às mudanças de natureza, permitindo apenas diferenças de grau na repetição de seu exercício. Um campo social quando cria estratégias resistindo a esse exercício de poder, concentrando suas energias e utilizando suas forças para escapar às armadilhas do poder estabelecido, trata-se de uma força ou um novo diagrama de forças que resiste, visando subverter ou derrubar o poder vigente. Quando isso ocor-re, há como que um impasse, pois o poder se coloca tanto em nossas vidas quanto em nosso pensamento, e chegamos a nos colocar contra ele nas mais íntimas verdades, fato esse que permite perguntar se haveria uma saída dessa relação conflituosa, o que levaria a admitir um novo eixo distinto ao mesmo tempo daquele do saber/poder como “lado de fora” que também poderia ser entendido, simultaneamente, como uma não relação, um “lado de dentro”?. O que caracterizaria, então, o pensamento?

A questão do Duplo constitui uma obsessão em Foucault, suscitando as seguintes questões: seria o “lado de dentro” mais profundo que todo o mundo interior? Seria o “lado de fora” o mais longínquo que todo o mundo exterior? Deleuze adverte que o Duplo em Foucault nunca é uma projeção do interior, é, pelo contrário, uma interiorização do lado de fora (o pensamento); não é um desdobramento de Um, mas a reduplicação do Outro. Não é a reprodução do Mesmo, mas a Repetição do Diferente. Não é a encarnação do Eu, mas a instauração da imanência de um sempre-outro, ou de um Não-eu, de um Devir-outro.

As forças constituem Estratégias (diagramas) enquanto exercício do não-estratificado. O exercício de poder continua irredutível a toda prática de saber e para marcar essa diferença, Foucault dirá que o poder remete a uma microfísica, todavia, não no sentido de uma miniaturização das formas visíveis

arte e cidades 2ed.indd 389 04/11/15 18:07

390

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

ou enunciáveis, mas como um outro domínio, um novo tipo de relação. Se ver e falar são formas de exterioridade, o Pensamento (pensar) se orienta a um lado de fora que não tem forma; Pensar é também chegar ao não-estratificado. O Devir deve ser entendido como mudança, mutação, e concerne às forças componentes e não às formas compostas. O lado de fora constitui sempre a abertura de um futuro com o qual nada acaba, pois nunca começou, tudo apenas se metamorfoseia.

Em sequência, a terceira variável diz respeito à relação consigo mesmo como domínio “é um poder que se exerce sobre si mesmo dentro do poder que se exerce sobre os outros”. Trata-se de um poder de se afetar a si mesmo. Neste sentido, a ideia fundamental de Foucault é a de uma dimensão subjetiva que se relaciona com o saber e com o poder, mas não depende deles, trata-se do afeto de si por si [...] A subjetividade é construída, é produzida, consiste num construtivismo, um território autorreferencial, individual e coletivo, uma máquina desejante no âmbito de um campo social. (GUATTARI, 1993)

Não é nunca o outro que é um duplo, na reduplicação, sou eu que me vejo como duplo do outro, eu não me encontro no exterior, eu encontro o outro em mim. Diz ainda Deleuze [...] “É exatamente como a invaginação de um tecido na embriologia ou a feitura de um forro na costura: torcer, dobrar, cerzir”. (DELEUZE, 1988, p. 105)

O Pensamento sempre perturbou Foucault desde quando Heidegger havia formulado a questão: o que significa pensar? O que se chama pensar? Para Deleuze, entretanto, pensar é experimentar, é problematizar. Para ele, o Saber, o Poder e o Si são a tripla raiz de uma problematização do pen-samento. Em relação ao saber como problema, pensar é ver e falar, entretanto, o pensar se faz no entremeio, no interstício, ou na disjunção do ver e do falar. Em relação ao poder como problema, diz ele, pensar é emitir singularidades, uma espécie de lançamento de dados que vem do lado de fora, uma espécie de linha que não para de misturar o acaso e dependências e, portanto, assume novas conotações: singularidades, sorteio (lançamento de dados) e invenção (criatividade), as quais são figuras originais do ato de pensar. Ressalta, todavia, que há uma outra figura: o pensamento se afeta a si próprio, descobrindo o lado de fora, como seu próprio impensado. Esta afecção de si, este sentido do longínquo e do próximo, acaba criando “um espaço do lado de dentro”, co-presente no “espaço do lado de fora”, à guisa de uma dobra. Portanto, dobrar é duplicar o fora como um dentro coexistente. Trata-se de uma topo-

arte e cidades 2ed.indd 390 04/11/15 18:07

391

Pas

qu

ali

no

Ro

ma

no

ma

gn

avit

a

ö

logia geral do pensamento que partindo da “vizinhança” das singularidades, se efetua dobrando o lado de fora ao lado de dentro, “no interior do exterior” e inversamente.

Não devemos esquecer, todavia, que o pensamento pressupõe, por sua vez, a própria história, o Passado, a Memória, ou seja, a Duração bergsonia-na que continua coexistindo, no presente, constituindo, assim, o paradoxo do Tempo. O Presente do qual o pensamento tenta se liberar, procurando pensar de outra forma, isto é, visando não propriamente o Futuro mas um Devir-outro. Instâncias temporais essas que são relativamente independen-tes e estão em constante troca mútua, cabendo aos estratos (estratificações históricas, saberes), fazer ver ou dizer algo de novo, no tempo. Igualmente, cabe em relação ao fora, colocar em questão as relações de forças estabelecidas (poderes), criando novos diagramas, bem como, cabe à relação consigo chamar e produzir novos modos de subjetivação. Portanto, tanto a Arte como a Cidade implicam considerar todo esse conjunto de pressupostos acima brevemente abordados, ou seja, as relações do Saber, Poder e Si presentes nas formas de pensar, isto é, no Pensamento, no entre, no intermezzo dos constantes processos de transformações, de mudanças e de acontecimentos.

Pensar hoje a Arte e a Cidade como um universo de suas expressões frente às grandes mudanças que ocorreram, particularmente, a partir do final dos anos de 1950 do século XX e que continuam ocorrendo, pressupõem um radical questionamento às formas de pensar a Arte e a Cidade herdadas da modernidade, modos de pensar que então se encontravam sob a hegemonia do saber científico e tecnológico, da lógica binária e do modelo arborescente de pensar, e isto, em detrimento do saber filosófico e artístico, embora estes saberes tivessem contribuído, no período, com resultados importantíssimos tanto no campo da arte quanto da filosofia.

Sem dúvida, a dimensão artística esteve sempre presente ao longo da história em diferentes sociedades com maior ou menor intensidade de ex-pressões. Trata-se de uma constatação, uma realidade, um fato. Todavia, é no seculo XIX, sob a égide do capitalismo industrial, que a cidade assume plena-mente a necessidade e condição de ser planejada como uma totalidade, e isso, impulsionada pelas força produtivas que passaram a lhe atribuir novas funções e múltiplas variáveis, fazendo com que nela e em seu território prevalecesse o sentido especulativo, elevando a cidade à condição de mercadoria específica: o solo urbano. E isto, através de uma pressuposta racionalidade com base em

arte e cidades 2ed.indd 391 04/11/15 18:07

392

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

indicadores de natureza científica, os quais traçavam os destinos “geométricos” das cidades, embora a metáfora biológica da cidade como Organismo alimen-tasse, analiticamente, no pensamento, os pressupostos do seu desenvolvimento.

Com a experiência paradigmática de intervenção em Paris do barão Hauss-mann por demais conhecida e os enunciados formulados por Cerdá para o Plano urbanístico de Barcelona, alguns parâmetros foram estabelecidos no sentido de uma “formação discursiva” sobre a Cidade, e na qual os fluxos urbanos e as edificações atendiam à lógica de um antecipado determinismo geométrico, numa abstrata e universal racionalidade cujos objetivos de natureza utópica tinham em sua base a escala hierárquica de caráter econômico/político/social de uma pressuposta funcionalidade. Esteticamente, promovendo um perspec-tivismo contemplativo de espaços, que visavam, de regra, o embelezamento da cidade, abrigando monumentos, edificações destinadas às instituições de poder, e a infraestrutura e equipamentos coletivos, a exemplo de redes de água e esgoto, transporte, estações de trens e/ou portos, praças, jardins, avenidas, ruas, estabelecimentos comerciais, conjuntos habitacionais, entre outros, na constituição de novos saberes permeados de “invisíveis” poderes e do desco-nhecimento, então, dos processos de subjetivação dos cidadãos na construção de suas máquinas desejantes.

Tratava-se então de um Planejamento Integrado e a questão artística era problematizada no sentido de como integrar as artes plásticas na arquitetura e na “Arquitetura da cidade”. (ROSSI, 1966) Muitos textos teóricos dos anos de 1960 e 1970 sobre arquitetura e urbanismo tinham em mente essa integra-ção no sentido do entendimento da cidade como um Todo, uma Unidade, um Organismo, uma Totalidade em que as Partes que a compõem nela se “encaixassem” plenamente e mantivesse a sua Identidade, seja qual fosse a escala da cidade, singularidade ou diferença, e isto, no sentido de uma univer-salidade de propósitos a serviço do Homem. Este, também, entendido como um Universal, independente, portanto, de gênero, idade, cor, etnia, condição social, econômica, cultural, preferência sexual etc. O homem dimensional de Leonardo da Vinci , o “modulor” de Le Corbusier, traduzem bem essa exigên-cia de universalidade de um homem abstratamente concebido e idealizado em suas medidas e proporções racionalizadas à guisa de um equivocado paradigma dimensional tanto para a arquitetura quanto para a cidade.

Com o advento da “Condição cultural pós-moderna”, constata-se a emer-gência de um conjunto de diferentes pensadores que com maior ou menor

arte e cidades 2ed.indd 392 04/11/15 18:07

393

Pas

qu

ali

no

Ro

ma

no

ma

gn

avit

a

ö

intensidades empreenderam a “deconstrução” das formas de pensar herdadas da modernidade em sua expressão mais elaborada: o Estruturalismo. Saberes como a Linguística, a Antropologia, a Psicanálise e o Neo-marxismo, entre outros, caracterizaram, basicamente, o panorama e a hegemonia cultural do pós--guerra até o ano de 1968 quando, então, a exemplo de um Acontecimento de imprevisível repercussão, ocorreram intensos e irreversíveis questionamentos às formas de pensar da modernidade. O conjunto dessa nova produção teóri-ca, conceitual voltada à contestação dos valores estabelecidos no pensamento moderno resultou na afirmação de uma multiplicidade de novos pressupostos filosóficos, artísticos e científicos, um amplo e vigoroso repertório de enun-ciados, constituindo, assim, diferentes discursos e vertentes que em conjunto denominou-se Pós-estruturalismo.

Paralelamente a essa “revolução” cultural, ocorreu uma mudança nas relações de produção geradas pelos avanços da ciência e da tecnologia, trans-formando o capitalismo industrial em capitalismo pós-industrial ou informa-cional, responsável pelo processo de globalização e voltado para a produção do consumo. Neste contexto, com muito maior potencialidade e desempenho que no período moderno anterior, qualquer coisa que se considera, adquire a dimensão e a condição exponencial de mercadoria e nelas se encontram a Arte e a Cidade. Pois, no atual momento, o Planejamento Integral cede lugar ao denominado Planejamento estratégico, o qual, renunciando a pressu-posta Totalidade do urbano, e a impossibilidade de seu real controle, admite segmentar a cidade e privilegiar áreas específicas ou explorar algumas de suas singularidades. E isto, visando o mercado competitivo entre cidades, parti-cularmente em função da indústria cultural que tem no turismo sua maior alavanca no consumo de cidades, sejam elas de maior ou menor porte, desde que possuam alguma singularidade de natureza histórica, promovam eventos culturais, artísticos, religiosos e esportivos ou proporcionem fruição ambiental (paisagem, clima, reservas ecológicas), lazer e entretenimento em geral.

O tema específico deste seminário Arte e Cidade tem seu recorte na produção de arquiteturas, artes visuais e literaturas relacionadas com a cidade. A arquitetura no contexto contemporâneo prossegue o seu papel que desem-penhou ao longo da história da cidade e do urbanismo, agora numa escala ampliada de multiplicidade de intervenções de naturezas bem diferenciadas e com base nas novas tecnologias de construção direcionadas para assegurar e aumentar o poder em exercício das instituições de controle social, ao tempo

arte e cidades 2ed.indd 393 04/11/15 18:07

394

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

em que promovem, de regra, um criativo nível de sedução, tanto nos suntuosos empreendimentos comerciais privados, a exemplo de shoppings, hotéis, torres de escritórios, torres de transmissão (à guisa de símbolos referenciais, marinas, teleféricos etc.), e equipamentos coletivos (aeroportos, estações rodoviárias, marítimas, fluviais, centros administrativos, esportivos, parques públicos, instituições culturais (museus de toda natureza, bibliotecas informatizadas, teatros, monumentos, memoriais, centros de convenções, entre outros).

Em conjunto, todas essas realizações arquitetônicas e urbanísticas pas-sam pelo viés da arte e, como “blocos de sensações”, emprestam à cidade um peculiar atrativo estético e muitos deles visam em suas fruições promover o consumo e, portanto, visam, de alguma forma, um retorno financeiro, pois, a arte, particularmente as artes plásticas em sua história, nunca, como hoje, foram exponencialmente elevada à condição de mercadoria. Basta acompanhar os leilões de arte, as bienais, onde colecionadores e investidores encontram--se presentes, à guisa de uma bolsa de valores, ou mesmo, constatar o elevado número de exposições (com ingresso pago) de grandes mestres e/ou de épo-cas, períodos, as quais circulam pelo mundo visitando metrópoles. E mais, a promoção e acessibilidade a monumentos e momentos singulares da arte e culturas específicas, bem como uma produção e reprodução sem limites, tanto de textos ilustrados quanto de audiovisuais que abastecem os shoppings de redes de museus, das estantes de bibliotecas e dos mega bookstores.

Muitas das edificações que abrigam em seus espaços murais, esculturas, obras de arte em geral, exibem com suas formas exteriores e interiores elevado conteúdo estético. De regra, elas são localizadas em espaços públicos (praças, parques e jardins) e passam a ser referências urbanas e, até mesmo, elementos de orientação para aqueles que visitam as cidades. Vale salientar, também, que em algumas dessas realizações da própria arquitetura, acabam por transmitir uma densa carga estética e simbólica na caracterização de cidades. São muitos os exemplos ao longo da história da arquitetura que confirmam essa prática a qual, hoje, mais do que nunca, constata-se uma proliferação incontrolável da forma/espetáculo com elevada carga emocional e de sedução. Alguns exem-plos, entre muitos, confirmam essa tendência: o museu de Bilbao, a nova sede da Prefeitura e o edifício de escritório denominado pela população de “pepino” em Londres, a torre de transmissão e o “peixe”/cobertura em Barcelona, as torres gêmeas na Malásia, o Arco da Defesa e a Pirâmide do Louvre, o Parque da Villete em Paris, a cobertura do Parlamento em Berlim, entre muitos outros

arte e cidades 2ed.indd 394 04/11/15 18:07

395

Pas

qu

ali

no

Ro

ma

no

ma

gn

avit

a

ö

exemplos. No Brasil, vale lembrar que desde a década 30, realizações como a mega-escultura do Cristo no Corcovado, o Ministério de Educação e Saúde, o Museu de Arte Moderna – MAM, o Sambódromo no Rio, a igrejinha da Pampulha em Belo Horizonte/MG, o Elevador Lacerda, em Salvador/BA, o Palácio da Alvorada e o Eixo Monumental em Brasília, a Ópera de Arame em Curitiba, o Museu de Niterói, o Memorial da América Latina em São Paulo, entre outros, passaram a ser marcos referenciais para as suas respectivas cidades, e isto, justamente, pela Composição estética, o bloco de sensações que essas arquiteturas transmitem no sentido de obras de arte.

Vale observar, também, que toda obra de arquitetura implica saberes constituídos, e se situa no campo da arte, embora possam contribuir para a sua realização, contribuições científicas e filosóficas. Todavia, em função das refe-rências feitas anteriormente, esses saberes arquitetônicos são indissociáveis dos poderes e micropoderes que socialmente são exercidos em diferentes níveis, e isto, em função do destino das edificações e da heterogeneidade das “máquinas desejantes” de seus usuários, máquinas estas que resultam da posição que as mes-mas ocupam na escala hierárquica do poder e, portanto, dependem da construção de processos de subjetivação individual e/ou coletiva. Nenhuma edificação está isenta de relações de poderes ou de contrapoderes, desde um simples barraco de favela (contrapoder), por exemplo, à um condomínio fechado de luxo, conjunto habitacional popular, sede de banco, torre de transmissão, aeroporto, enfim, multiplicidade de edificações e de suas destinações funcionais que expressam as máquinas desejantes de seus usuários.

Nessa produção artística relacionada especificamente com os espaços urbanos, algumas dessas realizações resultam da promoção de iniciativas de democratização da arte com a realização de concursos públicos e com a partici-pação ampla de artistas plásticos, arquitetos, urbanistas, paisagistas e designs entre outras áreas de conhecimento. Entretanto, muitas das intervenções resultam do exercício de poderes daqueles que decidem o que fazer na cidade e que indicam determinados artistas plásticos ou escritórios/empresas de arquitetura e urbanismo, em função da posição que os mesmos ocupam na hierarquia social e da competência que possuem no exercício dos saberes específicos, obtendo encargos nas intervenções programadas para a cidade e, na maioria das vezes, tais concessões resultam de competitivas gestões e estratégias de “bastidores” e/ou de “tráfico de influência” (exercício de poderes).

arte e cidades 2ed.indd 395 04/11/15 18:07

396

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Tanto no caso de concursos públicos quanto no da indicação por aqueles que detêm o poder de decidir, aflora a questão da Subjetivação, pois, depen-dendo dos modos de semiotização e subjetivação, surgirão os mais diferentes espaços urbanos construídos. A respeito desta questão dos processos de “sub-jetivação parcial”, Félix Guattari (1993, p. 157-161, grifos nossos) ressalta:

[...] Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo...Os edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de subjetivação [...] O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensações, máquinas abstratas2 [...] São as peças das engrenagens urbanísticas e arquiteturais, até em seus menores subconjuntos, que devem ser tratadas como componentes maquínicos [...] não seria demais enfatizar que a consistência de um edifício não é unicamente de ordem material, ela envolve dimensões maquínicas e universos incorporais que lhe conferem sua autoconsistência subjetiva.

Vale salientar que a referência a processos de subjetivação não se limita a falar de uma enunciação individuada (no sentido de um sujeito em geral), mas também de componentes parciais e heterogêneos de subjetividade e de Agenciamentos coletivos de enunciação que implicam multiplicidades humanas. Pois o componente estético trazido pelos produtores de arte pode se tornar um elemento fundamental no interior do Agenciamento,3 que pres-supõe muitas exigências funcionais, sociais, econômicas, de materiais, meio ambiente etc. Fato este que implica uma dimensão ética, uma escolha por parte dos produtores de artes que com os seus saberes e micropoderes são ine-vitavelmente levados a fazer. No contexto atual, caracterizado pelo processo de globalização, muitos fatores vêm contribuindo para que a produção de arte e de arquitetura, em geral, perca sua especificidade estética, enquanto definição de uma estética autonomizada, pois trata-se de uma questão que passa por todos os níveis da atividade humana, pressupondo um eixo ético-estético, questão esta que não pode mais ser considerada como produção de bens mate-riais com base na economia de mercado, fundada no lucro e no valor de troca. A produção de subjetividade deve superar esse condicionamento do sistema

arte e cidades 2ed.indd 396 04/11/15 18:07

397

Pas

qu

ali

no

Ro

ma

no

ma

gn

avit

a

ö

capitalista vigente e redefinir as relações dos territórios existenciais da Arte e da Cidade, tornando-as de cunho político (no sentido de novas composições de forças, novos poderes), pois os avanços da informática, telemática, robótica, engenharia genética, entre outras contribuições de saberes, conduzem à criação de uma disponibilidade sempre maior das atividades humanas. Disponibilidade que poderá ser convertida em atividades de produção de subjetividade tanto in-dividual quanto coletiva em presença do emergente paradigma ético-estético.

Essa globalização de forças produtivas e de poderes difusos do sistema capitalista não deve ser entendido apenas como uma homogeneização do mer-cado, antes, pelo contrário, tem-se constatado a não existência de uma cidade, mais de um “arquipélago de cidades”, ou seja, conjuntos e subconjuntos de cidades, ligados instantaneamente por meios telemáticos e uma grande diver-sidade de meios de comunicação. As cidades podem ser consideradas “mega-máquinas” como afirmava Lewis Munford e, segundo Guattari, produtoras de subjetividade individual e coletiva. A “crise” urbana que se apresenta neste início de milênio faz parte de uma crise maior e fundamental que envolve a espécie humana, atingindo a biosfera, criando um desequilíbrio generalizado incompatível com a vida humana e animal no planeta. O “Tratado de Kioto” voltado para a sobrevivência humana e não subscrito pelos USA, e outros países, deve ser considerado uma evidente preocupação com o controle do excesso da competição econômica entre empresas multinacionais e nações em geral, que promovem um elevado nível de poluição. Essa preocupação não se limita à ecologia ambiental, mas também às devastações ecológicas que ocorrem no campo social e mental, particularmente aos efeitos sobre a construção das sub-jetividades individuais e coletivas promovidas pela mídia em uma sociedade orientada para o consumo de bens materiais e simbólicos sob a égide e sedução do marketing. É a cidade, como afirma Guattari que

[...] produz o destino da humanidade: suas promoções, assim como suas segregações, a formação de suas elites, o futuro da inovação social, da criação de todos os domínios. Constata-se muito freqüentemente um desconhecimento deste aspecto global das problemáticas urbanas como meio de produção da subjetividade. (GUATTARI, 1993, p. 173)

Anteriormente, falou-se em “máquina abstratas”, entretanto, segundo a forma de pensar adotada na Lógica da Multiplicidade (rizomática, formulada por Deleuze; Guattari) elas podem ser máquinas axiomáticas ou máquinas

arte e cidades 2ed.indd 397 04/11/15 18:07

398

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

de guerra. As primeiras se identificam com os saberes e práticas constituídas (sobrecodificadas) em “espaços estriados”,4 que reproduzem com diferenças de grau os saberes, os poderes e as subjetivações, sob a égide do aparelho de Estado. As segundas, as máquinas de guerra, são aquelas que não se deixam sobrecodificar pelo saber constituído e pelo aparelho de Estado. Trata-se do pensamento nômade voltado para um Devir-outro, para o mundo da criação, do novo. Face a presença destas máquinas, o aparelho de Estado cria os apa-relhos de captura que procuram inibir e/ou cooptar as máquinas de guerra. Ao longo tanto da história das artes quanto da arquitetura e do urbanismo, constata-se a presença de máquinas axiomáticas (conservadoras e competentes na reprodução das formas de expressão e nas formas de conteúdo dos saberes constituídos) e de máquinas de guerra (inovadoras, performáticas), e também de aparelhos de captura, os quais acabam cooptando ou incorporados à produção das máquinas de guerra aos saberes instituídos e oficializados no exercício dos poderes dominantes. Um exemplo a esse respeito é o advento do movimento moderno em arquitetura, inicialmente contestado e posteriormente incorpo-rado às práticas do poder dominante, inclusive em regimes totalitários, todavia coexistindo com práticas muito conservadoras. Na cidade do Salvador, a título de exemplo, no mesmo período (1949, ano do quarto centenário da cidade), realizou-se a construção promovida pelo Estado do Fórum Ruy Barbosa (estilo neoclássico/eclético, exigido pela ala mais conservadora do poder judiciário, portanto, um espaço estriado, de Direito consensual) e o Hotel da Bahia (“estilo funcional”, moderno), símbolo de um espaço liso visando o atendimento de uma indústria turística então emergente para a cidade).

Relacionado com os tópicos acima abordados em relação à arte e a cidade, torna-se imprescindível tecer algumas considerações sobre a formação profissio-nal de artistas, arquitetos, urbanistas e das profissões em geral. De regra, esquece--se que as instituições de ensino são “dispositivos” de poder, os quais procuram reproduzir e produzir conhecimentos, saberes (estratificações) adequados ao exercício dos poderes dominantes. Agenciadas pelo Aparelho de Estado, essas instituições de micropoderes, (em função das disciplinas que ministram e da interdisciplinaridade que estabelecem com base nas leis de Diretrizes e Bases da Educação, dos currículos mínimos, das regulamentações profissionais, das organizações sindicais etc.), são sobrecodificados pelo aparelho de Estado), elas constituem máquinas abstratas de ensino e as disciplinas que ministram são

arte e cidades 2ed.indd 398 04/11/15 18:07

399

Pas

qu

ali

no

Ro

ma

no

ma

gn

avit

a

ö

elementos maquínicos de enunciação coletiva e de práticas consensuais, ou seja, o que se deve dizer e o que se deve fazer: “as palavras e as coisas”.

Vale salientar também que o termo criatividade, hoje, tornou-se um imperativo categórico que chegou ao nível da extrema banalização. É verdade que toda a atividade humana pressupõe que deve ser condicionada pelo viés da criação. Todavia a criatividade pode ser avaliada em dois diferentes níveis de ocorrências De regra, no senso comum, diz-se que algo é criativo quando na repetição de alguma atividade e/ou prática emerge uma diferença, trata-se do reconhecimento que há algo de diferente, de novo, entretanto, algo permanece, trata-se da Diferença na Repetição, repete-se na diferença. Neste caso, trata-se de uma Diferença de nível (ou grau). É justamente o que ocorre na infini-dade de atividades e práticas humanas. Diferente deste tipo de criatividade é quando ocorre não uma diferença de nível, mas de Diferença de natureza: um Acontecimento, algo de imprevisível, no nível de um novo paradigma ético/ estético.

Os termos competência e performance correspondem, o primeiro, quando ocorre no ato criativo, uma diferença de nível; o segundo, quando acontece uma diferença de natureza. Alguém é chamado de competente quando em suas práticas demonstra dominar e aplicar conhecimentos consolidados, arquivados num espaço estriado, manipulando-os, e de conformidade com as circunstâncias (acirrada competição, fatores econômicos, sociais, políticos etc.) introduz diferenças de nível nos empreendimentos que assume. Essas dife-renças na manipulação de informações estabelecidas lhe conferem o atributo de ser um profissional criativo. Trata-se de enfrentar o Real e o Possível, ou seja, de criar algo diferente no âmbito de parâmetros e funções previamente estabelecidos.

Diferente é a condição do performático. De regra, é uma máquina de guerra, questiona o saber constituído, procurando sair deste território movido por um fluxo que o atravessa, uma “linha de fuga”, a qual o orienta para uma nova territorialidade, “navegando” num espaço liso nunca antes navegado. Trata-se de criar algo de novo, de natureza diferente, diferente da relação Real/Possível, expressando a relação Virtual/Atual. Trata-se de enfrentar o Caos (o lugar de todas as possibilidades, o “oceano da dessemelhança”, o lugar da criação), dando consistência ao Virtual (à problematização de novas questões) que se atualiza (Atual) nos estados de coisas (nas obras de arte). Trata-se da emergência, do Acontecimento, do Devir-outro.

arte e cidades 2ed.indd 399 04/11/15 18:07

400

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Nesse sentido, as instituições de ensino, de regra, se propõem a formar competências para o mercado, e este estimula, em nível competitivo, a cria-tividade pautada na diferença de nível (ou grau). No âmbito da publicidade, da moda, do cinema, da música, da mídia em geral, de todas as expressões artísticas exige-se competência, no sentido de promover diferenças nas repeti-ções, repetições que tragam consigo alguma diferença que, todavia, não muda a natureza daquilo que se consome, à exemplo da produção de automóveis, cervejas, cosméticos, edifícios de apartamentos, entre tantos produtos, os quais tem como objetivo maior seduzir com forte apelo os valores estéticos na criação de “blocos de sensações” que se repetem diferenciando-se. Nas sociedades de consumo, pós-industriais, denominadas por Deleuze Sociedades de con-trole, há pouco espaço para as máquinas de guerra que procuram um novo paradigma ético-estético no sentido proposto por Guattari na adoção das três ecologias: a ambiental, a mental e a social.

Considerações finais

O presente texto com base em uma das vertentes do pensamento Pós--estruturalista que tem em Gilles Deleuze e Felix Guattari seus promotores, procurou caracterizar que a questão Arte e Cidade relaciona-se com as novas formas de pensar e criar, tendo na coexistência e conexão da Arte, Filosofia e Ciência sua maior consistência, elementos estes de naturezas diferentes que fazem do pensamento uma Heterogênese. Superando a tradicional opo-sição Arte/Ciência, herdada do pensamento moderno e da forma de pensar estruturalista que a caracterizou, fez-se um resumido enfoque de um novo entendimento conceitual da Arte como “bloco de sensações” e um conjunto de atributos a ela pertinente, utilizando um novo repertório conceitual para o entendimento da Arte e da Cidade.

O ponto focal do texto relaciona-se em evidenciar as três variáveis que caracterizam qualquer forma de pensar, e isso, independente de sua especifici-dade: Saber, Poder e Subjetivação e as conexões que se efetuam entre essas variáveis. O Saber como estratificação histórica em sua exterioridade, em suas formas de expressão e formas de conteúdo; o Poder como o não-estratificado, por sua interioridade como relação de forças que afetam e são afetadas em seu exercício; os processos de Subjetivação que é o poder que se exerce sobre si mesmo dentro do poder que se exerce sobre os outros.

arte e cidades 2ed.indd 400 04/11/15 18:07

401

Pas

qu

ali

no

Ro

ma

no

ma

gn

avit

a

ö

Pensar a Cidade e Arte no contexto contemporâneo da globalização no início do novo milênio pressupõe a utilização de diferente repertório conceitual tanto em relação à teoria e história da arte, da cidade e do urbanismo, quanto de suas práticas em relação à produção contemporânea. Particularmente, no que se denominou de Planejamento estratégico de cidades, e isto, num mundo altamente competitivo no qual qualquer atividade humana assume o papel de mercadoria e, portanto, nele se incluem tanto a Arte como a Cidade.

Outras considerações formuladas relevando as noções de Agenciamen-tos, Território, Espaço liso, Espaço estriado, Nômade e Sedentário, Máquinas abstratas axiomáticas, Máquinas de guerra, Aparelho de Estado, Aparelhos de captura, entre outras, visaram caracterizar tanto a nova condição cultural no emprego de novo repertório conceitual, quanto a da formação profissional de artistas, arquitetos e urbanistas nas instituições de ensino, e tudo, no sentido de estabelecer um novo paradigma ético-estético com base nas três ecologias: ambiental, mental e social pensadas por Guattari (1999).

Tanto a Cidade como um “arquipélago de cidades”, quanto a Arte como uma multiplicidade de heterogeneidade de expressões formais, no sentido de “blocos de sensações”, constituem uma Totalidade segmentária, no sentido de um conjunto onde coexistem uma multiplicidade de manifestações urba-nísticas e artísticas, que se conectam, se sobrepõem, se contaminam, mantêm entre elas zonas de vizinhanças, temporalidades diferentes, entre outras mo-dalidades de relacionamentos. Multiplicidades permeadas de poderes e mi-cropoderes (máquinas axiomáticas, sedentárias), e também de contra-poderes (máquinas de guerra, nômades), tanto coletivas quanto individuais, resultantes de processos de subjetivação como construções sociais. A esse respeito, vale salientar que tanto o ensino da História da Arte quanto a História da Cidade e do Urbanismo, apesar das contribuições conceituais oferecidas pelas diferentes vertentes do pensamento pós-estruturalista, continuam a ser entendidas nos moldes do pensamento moderno, reciclado, todavia, mantendo ainda uma pos-tura “dialética”, na busca de “origens”, das “Coisas em si”, das Essências (e não do meio, do “entre” do intremezzo e das conexões imprevisíveis em diferentes situações); do tempo cronológico (passado, presente e futuro) em detrimento da noção bergsoniana de “Duração” e da Memória (paradoxo do Tempo); da metáfora do organismo (e não do Corpo sem Órgãos); da pressuposta e equi-vocada Unidade (e não da Multiplicidade na heterogeneidade); da Identidade (e não da Diferença), da Totalidade (do Todo e das Partes que se encaixam e

arte e cidades 2ed.indd 401 04/11/15 18:07

402

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

não dos elementos que coexistem nas Totalidades segmentárias, e isto, sem identificação e integração dos elementos heterogêneos que as compõem); da Verdade (e não do Acontecimento); da Verdade como algo preexistente a ser encontrada (e não da Verdade socialmente construída, pois ela não existe fora dessa construção). Enfim, as diferentes Histórias das Artes e as Histórias das Cidades e dos Urbanismos, embora mais eruditas e ricas em dados e informa-ções, continuam, nas formas de pensar, a utilizar a lógica binária e o modelo arborescente, permeadas das relações de poderes de quem as elabora com base na construção de seus processos subjetivos mais sedentários que nômades. De regra, segundo Deleuze; Guattari. (1997, v. 1)

[...] Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista do sedentário, e em nome de um aparelho unitário de Estado, pelo menos possível, inclusive quando se falava sobre nômade. O que falta é uma Nomadologia, o contrário de uma história.

“Nomadologia” aqui entendida como a expressão de uma nova forma de pensar a história da Arte e da Cidade, contestando o pensamento conformista, nas versões consensuais e oficializadas que, de regra, prolifera nas instituições do poder dominante e nas academias. Este texto teve a intenção de adotar uma postura nômade, questionando a forma de pensar estruturalista da condição cultural moderna e reconhecer a emergência de novas formas de pensar, “for-mações discursivas” com base em novos repertórios conceituais, portanto, a construção de novos saberes que devem expressar novas relações de poderes e novos processos de subjetivação no entendimento da Arte e da Cidade.

notas

1 No plano conceitual, plano de imanência, filosófico, a relação Virtual/Aatual, pressupõe, considerando uma situação problemática, a emergência de algo que resulta do enfrentamento do caos empreendido pelo pensamento, na velocidade infinita, e isto, na procura de dar consistência à essa emergência que constitui um Acontecimento, um virtual, um incorporal, o qual se atualiza (Atual) em estados de coisas, corpos ou vividos. As diferentes realizações artísticas e também as heterogêneas construções de cidades são atualizações de conceitos filosóficos (acontecimentos) no universo da Arte/Cidade. A relação Virtual/Atual da lógica da Multiplicidade (pensamento rizomático) se opõe à relação Real/Possível do mundo da representação e da forma de pensar arborescente.

arte e cidades 2ed.indd 402 04/11/15 18:07

403

Pas

qu

ali

no

Ro

ma

no

ma

gn

avit

a

ö

2 A noção de Máquina abstrata excede toda a mecânica. Consistem em matérias não formadas e funções não formais, cada máquina abstrata é um conjunto consolidado de matérias-funções. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 227)

3 A noção de Agenciamento é distinta da noção de Estrato, contudo os agenciamentos se fazem nos estratos, porém, operam na descodificação dos meios e extraem dos meios um Território, pois todo agenciamento é territorial. (DELEUZE; GUATTARI, 1997)

4 Deleuze e Guattari usam duas categorias de espaço, o “espaço estriado” e o “espaço liso”, o primeiro, também denominado de espaço sedentário, do saber instituído pelo aparelho de Estado; o segundo, denominado também de espaço nômade, é aquele onde se desenvolve a “máquina de guerra”, a qual não tem como objetivo a guerra. Ela é exterior ao aparelho de Estado e não se deixa sobrecodificar por ele.

referências

DELEUZE, Gilles. Conversações. (Epílogo - Sociedades de Controle). São Paulo: Editora 34, 2000.

DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: ed. Brasiliense, 1988.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: ed. Escuta, 1998.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de janeiro: Editora 34, 2000.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs, capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, v. 1 - 5, 1997.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

FOUCAULT, Michel. Micro-física do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. São Paulo: Vozes, 1999.

GUATTARI, Félix. Caosmose, um novo paradigma ético/estético. São Paulo: Editora 34, 1993.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. São Paulo: Papirus, 1999.

arte e cidades 2ed.indd 403 04/11/15 18:07

arte e cidades 2ed.indd 404 04/11/15 18:07

405 ö

elyane lins Corrêa

o silêncio das imagens

Ele se apaixona por uma ilusão incorpórea... Ele admira tudo o que o torna admirável... Crédula criança, por que te obstinas a apanhar uma imagem fugitiva?...O objeto que tu amas... voltate e ele desaparecerá... Ele morre vítima de seus próprios olhos (Ovídio, Metamorfoses)

Os estudos de Estética tiveram, nas últimas décadas, uma irresistível ascensão. Esta disciplina era, há pelo menos umas quatro décadas, um estudo menor dentro da academia. Pensar sobre o poder que o belo exerce sobre nós era visto com desconfiança, pois assim era resumida a Estética. Diante dos estudos de ontologia, ética, lógica ou metafísica, a Estética era vista como auxiliar, quase insignificante, tanto pelo seu caráter, considerado suntuoso, como pelo modo inferior de seu conhecimento, inscritos dentro de limites precisos e determinados. Por não transmitir nenhum conhecimento objetivo demonstrável através de argumentos, era tida como incapaz de oferecer res-postas metódicas que pudessem ser contrastadas, como nas ciências teóricas, ou como na universalidade da razão prática. Assim é como alguns estudiosos vêm, nas últimas décadas, descrevendo a história da Estética.1

Mas, diante da “virada imagética”, a Estética, que começou como discipli-na filosófica, definida inicialmente como “teoria da sensibilidade” e, posterior-mente, como “teoria da arte e das práticas artísticas”, vem-se convertendo, no entanto, em um dos mais importantes temas de debates públicos, pesquisas e publicações, sendo cada vez mais necessária e imprescindível para entendermos

arte e cidades 2ed.indd 405 04/11/15 18:07

406

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

a sociedade contemporânea, especialmente quando se estabelecem relações entre imagem, simulacro e realidade. Ao admitir-se que a Estética trata para além de questões relacionadas ao mero gosto, ornamentação ou entretenimento, estes estudos vêm-se tornando a área de pesquisa mais relevante socialmente, com um número, cada vez maior, de interessados, mesmo sendo ainda, muitas vezes, confundida com o ramo da cosmética e da cirurgia.

Nesse panorama cultural, onde vivemos a plena indistinção entre re-alidade e ficção, os estudos de Estética tornaram-se imprescindíveis para o entendimento não apenas de como, por exemplo, a sociedade de consumo, a publicidade e as imagens digitais, vêm, paulatinamente, deslocando as questões que antes eram indesculpavelmente políticas, éticas e de justiça – dirigidas às lutas sociais – para o campo da Estética. Estes estudos mostram ainda como, no estágio atual da economia das sociedades consideradas mais desenvolvidas, tudo vai se transformando não só em mercadorias, mas imagem, em simulacros, sobretudo aquelas imagens que nos chegam da televisão, da publicidade, do cinema, da arquitetura e do urbanismo de consumo.

Numa breve retrospectiva, lembremos que, com as vanguardas histó-ricas do início do século XX, ocorreu uma singular espécie de “o artístico”. Parte de suas correntes pretendeu vincular, indissoluvelmente, o estético e o político, e aspiraram “superar” a cisão entre arte e vida, poesia e história, so-nho e ação, seja estetizando o mundo ou mundanizando a arte e cujo objetivo era produzir uma realidade histórica radicalmente nova. Este sonho, como se sabe, transformou-se em pesadelo com as duas guerras mundiais, quando se extinguiram. Daí que, como às vezes acontece, não podem ser resumidas a meros movimentos e fenômenos artísticos.

Nesse panorama cultural do início do século XX, a estetização do mun-do foi adotada também pelo fascismo, como forma de manipular as massas, segundo as conhecidas definições aportadas por Walter Benjamin, que já havia prevenido sobre a estetização da política e a politização da Estética, ao mostrar o uso intenso de técnicas propriamente Estéticas que então se inauguravam nos regimes totalitários. O excelente filme Arquitetura da Destruição (Undergangens Arkitektur), de Peter Cohen, mostra como o projeto de Hitler tinha também um fundamento estético.

As grandes cidades serão os lugares privilegiados deste fenômeno. Elas serão o cenário da sociedade de massas, que encontrou em Baudelaire um de seus primeiros poetas, considerado um dos fundadores da Modernidade, como

arte e cidades 2ed.indd 406 04/11/15 18:07

407

Ely

an

E l

ins

Co

RR

êa

ö

podemos ler nas famosíssimas “O prazer de estar entre a multidão expressa o misterioso prazer da multiplicação dos números”, e “Embriaguez religiosa das grandes cidades – Panteísmo. Eu sou todos; todos sou eu. Torvelinho”. Estas são consideradas pelos especialistas como as primeiras exclamações de surpresa e espanto diante do anonimato, da impunidade e da dissolução do indivíduo, na massa amorfa, que já oferecia a vida nas grandes cidades, capitais, quando começou um processo que ainda as devora. E o habitante destas metrópoles, descrito por Baudelaire, recorrerá à visão como seu sentido mais privilegiado, pois ele será, antes de tudo, um observador. Trata-se, assim, de um panorama cultural onde haverá uma predominância do olhar – presentes nas pinturas Le Déjeuner sur l’herbe e Olympia, de Manet: Um olhar que busca outro.

Este panorama urbano proporcionou a matéria-prima à correntes eco-nômicas, filosóficas e literárias (Engels e Marx, dentre outros), de denúncia da miséria silenciosa que se ocultava a poucos metros da mais arrogante suntuo-sidade, aflorando assim como o testemunho mais eloquente dos fundamentos sobre os quais se construía a sociedade burguesa, segundo sua terminologia conceitual, e sistema capitalista. Mostram em seus textos, especialmente Engels em A situação da classe operária da Inglaterra, como esse amontoado de pessoas quadruplica suas forças, mas, ao mesmo tempo, sacrificam a melhor parte de sua humanidade para consumar todas as maravilhas da civilização das quais a cidade usufrui, se adverte também que forças, que dormiam nelas, perma-neciam inativas, e foram reprimidas. O “formigueiro” das ruas tem algo de repugnante, algo contra o qual se indigna a natureza humana. Esses milhares que se apertam uns contra os outros, não são todos eles homens e com as mesmas propriedades e capacidades e com o mesmo interesse em ser felizes? E, no entanto, correm como se nada tivessem em comum, nada que fazer uns com os outros, com um único acordo tácito: cada um se mantenha no lado do passeio que está a sua direita, para que as duas correntes da aglomeração, que se disparam em um e outro sentido não se detenha, e a ninguém ocorre dignar-se a lançar um só olhar ao outro. Cada um se comporta de modo alheio com respeito ao destino dos demais.

A indiferença brutal, o isolamento insensível de cada um em seus inte-resses privados, resultam ainda mais repelente, quando todos se apertam em um pequeno espaço. A multidão, deste então, é parte indissociável da moderna paisagem urbana. O habitante da cidade, em seu deambular por ruas, praças, se verá submetido a uma desconhecida densidade de estímulos e a novas e inéditas

arte e cidades 2ed.indd 407 04/11/15 18:07

408

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

perspectivas visuais. O importante não serão apenas as enormes dimensões que adquirem as cidades, o antigo regime conhecia perfeitamente as vantagens que proporcionava o manuseio da monumentalidade espacial (sendo Paris, o modelo exaustivamente estudado) e a visão dos grandes espaços públicos.

O que este juízo negativo revelava era a nostalgia que surge diante daquilo que se considera como a crise definitiva de uma concepção do homem que pro-vinha da Ilustração e das seculares correntes humanistas. As multidões formam, na opinião de quem observa “desde fora”, uma massa que engole, anula, destrói, ou devora, a este homem. O julgamento negativo deste panorama pode ser considerado um dos fundamentos disto que se denomina antiurbanismo, onde se filiam muitos pensadores e arquitetos. Mas esse fenômeno urbano, em uma perspectiva “desde dentro”, desde o interior da multidão, onde quem observa forma parte, assinala a diferença essencial entre Engels, Simmel e Baudelaire. Para estes dois últimos autores, nem tudo é negativo neste quadro desenhado com traços grossos e escuros, como o é para aquele que fala, ou desde o passado, ou do desconcerto e a inquietação que as mudanças produzem.

A formação dessa paisagem e cultura urbana se caracteriza por uma hie-rarquia dos sentidos que tem na visão sua supremacia. A visão, no mundo das artes, foi considerada por vários filósofos, como Hegel, por exemplo, ao lado da audição, o mais teórico e intelectual dos sentidos, pois o olfato, o gosto e o tato estão excluídos da relação com as obras de arte e o prazer artístico; eles apenas se referem ao puramente material da obra e suas qualidades imediata-mente sensíveis, “devorando-as”, sem atingir seu caráter espiritual,2 em outras palavras “o olho pensa”.

Este predomínio da visão expande-se para toda a sociedade, e foi apontado por Simmel quando descreve que a Metrópole traz, junto a si, uma avalanche de impressões sensíveis e o contato com milhares de pessoas.3 São tantas as impressões e informações, que não é mais possível organizar, guardar e refletir. Na Metrópole, os cidadãos estão submetidos a uma profusão de imagens e ofertas de toda ordem que não serão, em sua maioria, absorvidas. E, quando são acumuladas, o são de modo fragmentado, casual e transitório, sendo logo substituídas pela pressão de outras também fragmentadas e transitórias (isto é o contrário de uma educação que permita organizar o saber de modo arti-culado e coerente), mas também cumpre a finalidade de proteção, controle e sobrevivência.

arte e cidades 2ed.indd 408 04/11/15 18:07

409

Ely

an

E l

ins

Co

RR

êa

ö

Simmel explica as profundas e aceleradas transformações que sucediam desde finais do século XIX, quando a Alemanha deixa de ser um país feudal para entrar no mundo moderno. A partir de então, milhares de pessoas deixa-vam suas aldeias e lugarejos para migrar para a cidade grande. Ele, que nasceu e morou ininterruptamente, em Berlim, de 1858 a 1914, acompanhou as transformações pelas quais passou a cidade, até transformar-se em uma grande cidade moderna. Mas aquilo que foi específico desta cidade, naquele período, ainda pode contribuir para pensarmos as cidades de hoje e aquela que virá.

O autor descreve a cidade grande como o lugar histórico do estilo de vida moderno e aponta como um de seus principais problemas o conflito entre indivíduo e sociedade, entre individual e supra-individual, entre cultura inte-rior e cultura exterior. Na condição moderna, o sujeito resiste a ser nivelado e consumido em um mecanismo técnico-social, e por isso se recolhe em sua interioridade e caracteriza a comentada reserva do habitante das grandes cidades, as Metrópoles.

Daí seu interesse em estudar as relações e reações do indivíduo frente ao mundo urbano. Questões como os desafios representados pela coerção social, a herança histórica, a crescente mecanização/tecnificação da vida podiam ser resumidos numa primordial: como era possível preservar e manter a autonomia e a existência individual frente às grandes forças impessoais da época. Como não perder características pessoais e comportamentos de sociabilidade próprios das pequenas cidades como a singeleza e afabilidade? Como não se paralisar frente aos mecanismos impessoais que agiam sobre ele?

Nas formas de organização social tradicional, anteriores ao surgimento da Metrópole moderna, as relações sentimentais existentes entre seus habitan-tes proporcionavam uma hierarquia também afetiva, que lhes permitiam ser reconhecidos pelo primeiro nome, ou sobrenome, pelo apelido, pela função ou ainda pelo papel social que desempenhavam. Estas comunidades estavam assentadas em um território, em um espaço físico definido, que permitia pro-ximidade e vizinhança, ou parentesco, entre seus habitantes, e concedia, em consequência, proteção afetiva e sentimental. Com o surgimento da Metrópole moderna, seus habitantes já não podem manter os laços de proximidade e se-gurança que oferecia a rede de afetos e laços familiares. Ao perderem-se estes laços, perdem-se, também sua contrapartida, os desafetos, ódios e vinganças de sangue entre indivíduos, ou entre famílias inteiras, que podiam perdurar por gerações.

arte e cidades 2ed.indd 409 04/11/15 18:07

410

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Mas, na Metrópole – espaço da técnica moderna, dos meios de comu-nicação, dos transportes e de todas as operações financeiras –, dois aspectos principais impossibilitam estas relações: a permanente presença de milhares de outros seres humanos e a mediação financeira que permeia todas as relações. Estas se revestem de um aspecto econômico, quer dizer, é o dinheiro quem determina a ordem, os valores e as relações entre os cidadãos, resultando em um tratamento objetivo que está determinado pela capacidade e poder de com-pra de cada um, o que determinará também sua posição na hierarquia social, podendo ser, portanto, provisória, rápida, casual e instável. Antes de Simmel, Marx já havia mostrado como o dinheiro serve de meio entre a necessidade e o objeto, entre a vida e o meio dos homens.4

Esta é, segundo Simmel, a raiz da conhecida indiferença do cidadão metropolitano que, diante dos miseráveis, dos acidentados ou agonizantes nas ruas públicas, se nega a ver, ouvir, tocar e falar, em uma espécie de “cegueira e surdez”, denunciadas como uma falta de humanidade. Mas, diante das con-dições de vida que proporciona a Metrópole para a vida psíquica, o cidadão não pode responder com afetos, emoções e sentimentos, e ele recorre à força adaptativa que lhe possibilita o intelecto. Ele (o intelecto) permite a acomo-dação às mudanças e aos contrastes dos fenômenos e o protege da ambiência da Metrópole com suas correntes e discrepâncias ameaçadoras e avassaladoras, que o levariam a um desenraizamento e a uma desproteção e desequilíbrio de sua vida subjetiva e psíquica. Disto surge uma das características do homem metropolitano, o comportamento blasé, que consiste no embotamento do poder de discriminar seu entorno. Os fatos, os objetos e os estímulos são percebidos mas destituídos de substância; são vistos como uniformes, planos e foscos, e esta atitude é um modo de se proteger das rápidas mudanças e compressão impostas aos nervos. É o spleen baudelariano. É uma melancolia autorreflexiva, que caracteriza bem o modo de ser do metropolitano.

Essa indiferença generalizada pode ser interpretada como uma atitude consciente de negação para proteger uma minúscula parte de sua interioridade, sem a qual cairia na enfermidade mental. Simultaneamente, as impressões ca-pazes de perfurar esta couraça são cada vez mais violentas. Mas essa indiferença generalizada produz uma amplíssima margem de ação e comportamento que frequentemente se denomina também de “liberdade”.

Se no século XVIII, o individuo pôde libertar-se dos elos que o liga-vam e submetiam ao Estado e a Igreja, possibilitando-lhe autonomia moral

arte e cidades 2ed.indd 410 04/11/15 18:07

411

Ely

an

E l

ins

Co

RR

êa

ö

e econômica, o habitante da Metrópole moderna pode assim entregar-se a ações extravagantes e inclusive aberrantes, com a certeza de que ninguém vai reconhecê-lo, impedi-lo, e que ninguém se importará. Caso esta “liberdade” não se exerça – por exemplo, por desencanto ou melancolia –, o cidadão se sente abandonado e isolado. Simmel também já havia advertido que na Metrópole moderna havia um excesso de visão e uma ausência de diálogo.

A intensificação de experiências proporcionadas pela Metrópole faz com que o habitante destas cidades sejam insatisfeitos, nervosos, entediados, ansiosos – e, diríamos hoje, estressados , e sempre em movimento. E esta velocidade da vida está relacionada com processos que ocorrem na consciência, porque na cidade grande o sujeito se vê diante de uma variedade incomensurável e fugaz de imagens que se apresentam sem cessar à sua consciência.

Já era exigido do indivíduo, naquela época, a especialização que o dotava de uma prática e uma função mas, ao mesmo tempo, fazia-o sentir-se ainda mais solitário e com a sensação de ser uma minúscula e alienada parte de uma cadeia de produção interminável, como mostra Fritz Lang (Metrópolis) e Dziga Vertov (Um homem com uma câmera).

Na condição moderna há um encontro violento, como vimos antes, entre o mundo interno do individuo e o mundo externo, este último, aparece inva-sivo, inquebrantável. A experiência espaço-temporal dar-se como transitória, efêmera, causal, fortuito. É um presente imediato, descontínuo e fragmentado. A cidade pode ser descrita como “castigo” imposto ao homem moderno, tendo assim uma clara valoração negativa. Desde esta perspectiva, a cidade moderna contribui para a experiência da alienação e a vivência do homem como um ser isolado, em uma solidão limitadora, que o faz suscetível de ser transformado em “mercadoria”.

Mas a imersão no seio da multidão facilita, por outro lado, o anonimato e propicia justamente um isolamento a partir do qual pode consolidar-se uma consciência de “identidade”. O número, portanto, garante a existência de um espaço de liberdade individual. Sem a multidão e sem a dissolução dos vínculos tradicionais, não há espaço de manobra para o indivíduo e não poderia crescer a “liberdade” burguesa, a que tão claramente aponta a planificação urbana. Ainda mais, a incessante atividade que exige a vida metropolitana “afina” a sensibilidade do homem, que deve por em jogo todos os seus recursos físicos e mentais se deseja sobreviver em um meio hostil. Ao ser lançado à voragem

arte e cidades 2ed.indd 411 04/11/15 18:07

412

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

da Metrópole, ele é abandonado a seus próprios recursos – que talvez nem supunha ter – e obrigado a utilizá-los para sobreviver.

Para seguir este movimento, deve ajustar-se e adaptar-se e aprender não só a ir na mesma marcha, ou senão, a ir um passo além. Deve fazer-se um expert em sobressaltos e movimentos bruscos, em giros desconjuntados e contorsões súbitas, não só do corpo, mas da mente e da sensibilidade.

Disto tudo decorre a característica das relações que o estilo metropoli-tano de vida determina entre seus habitantes, que é vista como dissociação, ou seja, afastamento, desunião, separação e desagregação; mas isto, para Simmel, é apenas uma de suas formas elementares de socialização, pois a grande cida-de representa a vitória do racionalismo e individualismo. Em uma constante despersonalização das relações, o indivíduo deve abdicar do interesse e da compaixão pelos outros, prevalecendo a indiferença diante do sofrimento e da humilhação alheia.

Por isso não se pode estranhar que as valorações sobre a Metrópole se movem, muitas vezes, em meio de ambiguidades, paradoxos e contradições; entre o elogio e o rechaço.

Porém, este estágio acima descrito, ainda não é o do predomínio do simulacro. As Exposições Universais, do século XIX, são os acontecimentos iniciais da história do simulacro e da era da reprodutibilidade mecânica da arte, dos objetos e das imagens descritos por W. Benjamin.

Este modo de vida vem assumindo, nas Metrópoles contemporâneas, uma nova forma espacial, arquitetônica e urbanística, cujo primeiro modelo podemos atribuir à cidade de Las Vegas e, depois, Celebration (Flórida) da Disney World Company, que não surgiram de nenhum modelo original histórico, foram invenções copiadas, posteriormente, por Seaside (cidade do filme Show de Truman), ou ainda, aqui no Brasil, pelos Alphavilles (São Paulo, Salvador, Belo Horizonte etc.), e os inúmeros condomínios fechados (do litoral norte de Salvador, por exemplo). Estamos no âmago da arquitetura e do urbanismo do simulacro.5

Se, no esquema interpretativo clássico platônico, sobre as artes plásticas, existiam a ideia e sua cópia, agora temos cópia da cópia da cópia, de modo que a cópia (neste caso, a cidade existente) não responde analogicamente a uma ideia senão a uma imagem. Nestas urbanizações, assim como nas correntes predominantes da arte e da cultura atual, a diferença entre cópia e original, imitação e realidade não é mais um problema ontológico como em Platão.

arte e cidades 2ed.indd 412 04/11/15 18:07

413

Ely

an

E l

ins

Co

RR

êa

ö

Dentro da controvérsia filosófica do papel da imagem na constituição de nosso conhecimento do real, já encontramos neste filósofo, na célebre A República, que a imagem criada pelas artes plásticas é sempre uma imitação. É conhe-cido que, no Livro X desta obra, o filósofo aconselha a expulsá-los da pólis. As belezas particulares das obras plásticas, onde ele inclui também os poetas, são sonhos vãos: sombras da realidade que se tomam pela realidade mesma. Por isso o filósofo expulsa os artistas (miméticos) da cidade, porque considera que a cópia é inferior à ideia, são mentiras e enganos desnecessários, dupla-mente distantes da verdadeira realidade.

Este esquema elaborado por Platão ainda vigora em nosso modo de co-nhecimento, pois as verdadeiras obras de arte parecem possuir falsas réplicas ou sombras espúrias que as acompanham e que pretende passar por arte. Este pensamento considera a cópia, a imitação, e a ficção como uma versão desvalo-rizada da verdade, mas a ficção conta hoje com sua própria história e verdade.

No entanto, se abolirmos a diferença entre original e cópia caímos numa espiral de contradições e aporias. O esquema platônico está profundamente enquistado em nossos hábitos de reconhecimento e esta é ainda, todavia, a interpretação mais frequente. Porém, este modelo hermenêutico, quer dizer, esta reflexão filosófica interpretativa ou compreensiva sobre os símbolos e os mitos em geral, está em crise. Para ficarmos apenas em alguns exemplos da arquitetura e do urbanismo, a mera experiência (por exemplo, de viver em Celebration ou Seaside) já equivale a viver uma “realidade”.

Guy Debord, um dos críticos da cultura que antecipa, ainda na década de 1960, essa mudança e cujas ideias previram, de forma certeira, o modo de vida de nosso tempo mediante o conceito de espetáculo, retira desta noção toda a carga afetiva, estética, política e econômica necessária para “atualizar” a noção marxista de mercadoria. Espetáculo como tendência a ver um mundo que já não se pode tocar, que media as relações sociais e são a motivação eficiente de um comportamento. Ele é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem, é o contrário do diálogo.6

Voltando às cidades-simulacro dos condomínios privados, quais são as razões desse distanciamento e isolamento? Segurança, proteção contra a violên-cia urbana? A partir do que nos diz Simmel e depois Debord, pode-se concluir que este sistema econômico se funda no isolamento, que fundamenta a técnica, ao mesmo tempo, que a técnica isola, conformando as “multidões solitárias”. 7

arte e cidades 2ed.indd 413 04/11/15 18:07

414

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

Tratando-se da arquitetura e da cidade, tanto dos condomínios privados, como das revitalizações dos centros históricos, podemos interpretar a cultura do simulacro como um mascaramento das condições de vida e dos processos arquitetônicos e técnicos da habitação. É um ocultamento da luta de classes ou uma exibição de falsos privilégios. A ordem social não é mais legível na forma urbana, na nova recombinação da cidade, particularmente nas “revitalizações” de seus centros históricos. A legibilidade desta ordem vem sendo dramaticamente manipulada e, com frequência, completamente obscurecida.8 Quase todos os tratadistas relacionam o fenômeno do simulacro, ou melhor, da cultura do simulacro, com a passagem de uma economia industrial a uma economia de consumo e serviços. J. Baudrillard é, provavelmente, um dos que melhor des-creve, desde a década de 1970, esse novo estágio do capitalismo pós-industrial.

Este processo de simulação dos espaços, que parece impossível de deter--se, satisfaz com toda exatidão as fantasias e os desejos dos seus usuários, pois os arquitetos e urbanistas, entre outros especialistas, trabalham para satisfazê-las, criando imagens que lhes correspondem.

Em síntese, podemos dizer que a crescente influência da Estética nas humanidades deve-se há pelo menos dois fatores. O primeiro deles, seguindo Eagleton, é porque em uma época que presume não ter ideologia, a Estética assume esta condição, substituindo a política em sociedades desencantadas da política e que desejam passar sem ela. E, principalmente, complementa este autor, porque a arte foi encarregada pela razão ilustrada, no sentido mais amplo do termo, a tarefa de “guardar o segredo da imaginação humana”, cujos mecanismos passam inadvertidos a consciência. Apesar de sua ambivalência, a imaginação contém a fonte da esperança social de um progresso moral da humanidade, quer dizer, de uma conciliação entre as leis da natureza refletidas na técnica e as aspirações de liberdade refletidas na moralidade.9

O outro fator, que permite esta importância à Estética, deve-se, hoje, como qualquer um pode averiguar, à onipresença do audiovisual em nossa sociedade, ao constatarmos que a formação intelectual de gerações vem sendo feita através da televisão, Internet, do cinema de consumo e, de modo abruma-dor, pela publicidade. Esta última, vem assumindo, cada vez mais, o papel de formadora do gosto, da opinião, dos hábitos e costumes, e inclusive, daquela que constrói as “verdades”. Não deixa de surpreender o fato de que um ameri-cano médio vê, como afirma Margareth Crawford,10 aproximadamente, 350.000

arte e cidades 2ed.indd 414 04/11/15 18:07

415

Ely

an

E l

ins

Co

RR

êa

ö

anúncios de televisão antes de completar os vinte anos, o que provavelmente acontece também no Brasil.

Para essas gerações, a montagem ou a justaposição de imagens, a relação entre imagem, cópia e real não se coloca enquanto um problema, como disse Félix de Azúa, quem vive positivamente no simulacro veio a este mundo para divertir-se, e toda política educativa dos últimos decênios insistiu no direito a diversão, ao entretenimento e ao lúdico, e no rechaço ao esforço, a disciplina, a tenacidade e o sacrifício, valores típicos da etapa anterior, a das vanguardas11.

A separação entre cópia e original, realidade e simulacro, verdade e ficção, é cada vez mais tênue e desconcertante. A dificuldade em entender este fenô-meno vem, conscientemente ou não, da separação platônica que fazemos entre realidade e cópia, realidade e simulacro, cópia e original. Viver confortavelmente na cópia e no simulacro significa não precisar reagir, Estética e moralmente, contra o inadequado e o injusto, para que então reagir ante uma ficção?

Voltando à arquitetura e ao urbanismo, viver na cidade cópia da cópia, na cidade do simulacro, neste terceiro grau de abstração, e o fato de que este seja existente, vivido como experiência por seus habitantes e usuários, intro-duz uma dúvida fundamental no modo habitual de conceber a vida urbana porque a experiência autêntica de viver na cidade/simulacro é a de participar como protagonista de um espetáculo. O espetáculo, por definição, ainda que constitua uma experiência, só é algo específico em tanto que negação da ex-periência verdadeira. Se diluímos a diferença entre espetáculo e experiência verdadeira, entramos em uma espiral de paradoxos.12

Para voltarmos à arte em geral, qual poderia ser seu papel hoje? Os re-síduos e efeitos secundários das vanguardas históricas foram, em sua quase totalidade, “reciclados” em estilos artísticos intitulados de neovanguarda, pós-vanguarda, transvanguarda, cuja dependência do mercado e das adminis-trações dos setores culturais do Estado neutralizou seu ingrediente político. E na política, com a supervalorização dos seus recursos estéticos, ela dirige-se, através da publicidade, mais à nossa sensibilidade que ao nosso entendimento e raciocínio, mais à nossa capacidade de sentir do que de pensar.

Parte destas correntes artísticas desembocou e se refugiou, num dos mais desafortunados qualificativos, a arte de vanguarda, ou na aberração semântica, que se presta a todo tipo de equívocos, denominada “arte contemporânea”. E neste ambiente artístico, ainda reina uma espécie de melancolia de uma

arte e cidades 2ed.indd 415 04/11/15 18:07

416

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

história que sobrevive como vestígios, em parte como ironia, em parte como desilusão ou silêncio.

Mas o silêncio, do qual falamos, não é o silêncio do amor, ou da experiên-cia mística, do indizível ou inefável. É o silêncio do isolamento e da indiferença em relação ao outro. O silêncio da imagem como abolição ou fim da palavra; palavra como pedaço de sentido do real. É o silêncio da substituição da coisa por sua imagem. É a imagem como geradora de um vazio de comunicação e compreensão, como perda de um saber sobre nós e o mundo, como perda de experiência sensível, de corporeidade, de tatilidade, em decorrência de uma excessiva visualidade que não se dirige mais ao entendimento.

Neste momento, em que a experiência de uma cidade telemática ou cibernética vem emergindo junto às novas tecnologias, nos estimula e obriga a criar outra compreensão sobre o que se chama a realidade, o tempo, o passado, a tradição, o futuro, a relação com o espaço e o lugar, as relações com o outro etc. Pensar sobre alguns desses aspectos da vida nas Metrópoles contemporâneas pode servir como medida comparativa do nosso sucesso, do nosso otimismo, da nossa ingenuidade e, quem sabe, do nosso fracasso.

Há dificuldades em dizer o que é a estetização de esferas da sociedades atuais: em que consiste? que aspecto tem? onde começa e onde acaba? e quais seus “verdadeiros sintomas”? Ainda que contenha certas contradições em suas respostas, elas veem sendo reescritas.

Assim, embora a Estética ainda possa parecer, para alguns, uma investiga-ção inútil, estes estudos passam a ter, cada vez mais, importância até para saber-mos como tudo isto começou – e o caráter de intersecção que tem a Estética –, considerada mais como uma forma de pensar e de interpretar que como uma disciplina com limites totalmente determinados, abre o debate para uma variedade de outras disciplinas, que formam uma rede que dá suporte e que permite formar uma ideia do mundo, onde se considera a imagem visual como uma fonte de conhecimento da ordem social e do mundo em que vivemos. É certo que a Estética é uma fonte privilegiada para a compreensão de nosso mundo, ela é verdade e é diálogo, mas, a uma só vez, ela também é uma forma irredutível de experiência individual, subjetiva e silenciosa, que é o que vem prevalecendo. E, por mais paradoxal que seja a pura imagem, a extrema visua-lidade em si mesma, ela forma uma espécie de nebulosa, de vazio, impedindo que nos situemos em uma sociedade cada vez mais empobrecida culturalmente,

arte e cidades 2ed.indd 416 04/11/15 18:07

417

Ely

an

E l

ins

Co

RR

êa

ö

e violenta. Mas será o silêncio das massas consumidoras-votantes, inacessíveis a todo esforço de conscientização?

Assim, com essa estetização da vida, aquilo que estava vinculado à história e ao peso da economia-política, aos conflitos locais e mundiais, foi-se deslo-cando desde o terreno do entendimento e da razão até o da sensibilidade, onde as imagens, a aparência e a beleza assumem um supremo valor, ignorando-se qualquer consideração moral em seu julgamento, onde o sentido de justiça e responsabilidade aparece como uma vaga ideia.

Isto é um problema nosso. E o que podemos fazer?Será, como propõe Baudrillard, que se é certo que a lógica deste sistema

é irreversível, também o é que ele desenvolve, ao mesmo tempo, uma reversão procedente tanto do exterior quanto do seu interior, pois a própria vocação totalizadora e totalitária do sistema de simulação (o excesso gera sempre o seu contrário), que parece escapar da crítica do discurso teórico, será o campo de cultivo de movimentos e fenômenos de resistência igualmente irrefreáveis.13

Ou, será como pergunta Eagleton, que a esta estetização da política e da vida e a esta despolitização da arte –, onde incluiríamos a arquitetura e o urbanismo – pode-se responder com sua repolitização, para enfrentar a arro-gância do poder?14

Em outras palavras, é preciso pensar como elucidar criticamente as tendências sociais de uma vinculação da Estética com a política e a moral, em sociedades cada vez mais estetizadas, que vêm trazendo as questões e os proble-mas do terreno da discussão política e pública, da justiça e da responsabilidade, para o do gosto individual, subjetivo, indiscutível e mudo –, para o silêncio.

notas

1 EAGLETON, Terry. A idelogia da Estética. SP: Zahar, 1993. Ver ainda PARDO, José Luis. La banalidad. Barcelona, Anagrama, 1989.

2 HEGEL, GWF. Lecciones sobre la Estética. Barcelona: AKAL, 1989, p. 32,

3 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

4 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 2 ed. (Os Pensadores), p. 29.

5 Em outro texto intitulado “Urbanizações temáticas: arquiteturas do desejo”, este tema já foi desenvolvido, porém, seus argumentos sobre o esquema platônico, repito nos próximos parágrafos para uma melhor compreensão daquilo que aqui se propõe.

arte e cidades 2ed.indd 417 04/11/15 18:07

418

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

6 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 4

7 Id.,ibid., p. 23

8 SORKIN, Michel. Nos vemos en Disneylandia. In: SORKIN, Michel (Ed.) Variaciones sobre un parque temático. Barcelona: GG, 2004.

9 EAGLETON, Ferry. A idelogia da Estética, op.cit., p. 264-300.

10 CRAWFORD, Margareth. El mundo en un centro comercial. In: SORKIN, Michel (org.). Variaciones sobre un parque temático, op. cit.

11 AZÚA, Felix. La necessidad y el deseo. In: La arquitectura de la no-ciudad. Pamplona: Universidad Publica de Navarra, 2004. p. 193.

12 AZÚA, op.cit. p. 185

13 BAUDRILLARD, J. A la sombra de las mayorías silenciosas. In: Cultura y simulacro. Barcelona: Kairós, 1993. 4ª ed.

14 EAGLETON, T. A idelogia da Estética, op.cit., p. 264-300.

referências

AZÚA, Felix. La necessidad y el deseo. In: La arquitectura de la no-ciudad. Pamplona: Universidad Publica de Navarra, 2004.

BAUDRILLARD, J. A la sombra de las mayorías silenciosas. In: Cultura y simulacro. 4ª ed. Barcelona: Kairós, 1993.

BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: Filosofia da imaginação criadora. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1993.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CRAWFORD, Margareth. El mundo en un centro comercial. In: SORKIN, Michel (org.). Variaciones sobre un parque temático. Barcelon: Gustavo Gilli, 2004.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

EAGLETON, Terry. A idelogia da Estética. São Paulo: Zahar, 1993.

ENZENSBERGER, Hans Magnus. Sobre la ignorancia. In: Mediocridad y delirio. Barcelona: Anagrama, 2002.

HAYS, K. Michael. Modernism and the posthumanist subject. Cambridge: MIT Press, 1995.

HEGEL, GWF. Lecciones sobre la Estética. Barcelona: AKAL, 1989.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Col. Os Pensadores).

arte e cidades 2ed.indd 418 04/11/15 18:07

419

Ely

an

E l

ins

Co

RR

êa

ö

PARDO, José Luis. La banalidad. Barcelona, Anagrama, 1989.

PARDO, José Luis. La metafísica. Preguntas sin respuestas y problemas sin solución. Valencia: Pre-Textos, 2006.

PHILOSOPHICAL STREET: new approaches to urbanism. Edited by Dennis Crow, Washington: Maisonneuve Press, 1990.

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

SORKIN, Michel. Nos vemos en Disneylandia. In: SORKIN, Michel (Ed.) Variaciones sobre un parque temático. Barcelona: Gustavo Gilli, 2004.

arte e cidades 2ed.indd 419 04/11/15 18:07

arte e cidades 2ed.indd 420 04/11/15 18:07

421 ö

sobre os autores

ALEILTON SANTANA DA FONSECA é escritor, ensaísta e professor de Literatura, possui graduação em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia, em 1982, mestrado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba, em 1992, e doutorado em Letras (Literatura Brasileira), pela Universidade de São Paulo, em 1997. Atualmente, é professor titular da Universidade Estadual de Feira de Santana, atuando na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural (PPGLDC). Foi professor convidado na Université d’Artois (França), em 2003. Foi coeditor de: Iararana - Revista de arte, crítica e literatura (1998-2007) e é coeditor de Légua & Meia: Revista de literatura e diversidade cultural, pela Universidade Estadual de Feira de Santana. É membro da Academia de Letras da Bahia, do PEN Clube do Brasil e da União Brasileira de Escritores, em São Paulo. Foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural, de julho 2008 a julho de 2012. Foi membro da Câmara Linguagens e Artes da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, no período 2011-2012. E-mail: [email protected]

ANDREA JEFTANOVIC socióloga e doutorada em literatura ibero-americana pela Universidad de California, Berkeley. Tem una produção ensaística sobre literatura e dramaturgia contemporânea, parte deles reunidos no livro Hablan los hijos. Discursos y estéticas en la perspectiva infantil (Cuarto Propio, 2011). É autora de ficção com títulos como Escenario de guerra (Alfaguara, 2000; Baladí, 2010; premio Consejo Nacional de la Cultura y las Artes para melhor obra editada e Juegos literarios Gabriela Mistral) e Geografía de la Lengua (Uqbar, 2007), assim como entrevistas Conversaciones con Isidora Aguirre (Frontera Sur, 2009) e coautora do livro Crónicas de oreja de vaca (Bartleby, 2011). Ao longo de sua

arte e cidades 2ed.indd 421 04/11/15 18:07

422

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

trajetória tem recebido bolsas da Fundação Ford, Aecid, Fondart e Fondo del Libro para realizar projetos criativos individuais e interdisciplinar. Atualmente, atua como professora da Universidad de Santiago de Chile e trabalha em novos projetos literários. E-mail: [email protected]

ANDRÉA QUEIROZ DA SILVA FONSECA REGO é Doutor em Urba-nismo, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB), pela UFRJ, em 2006. Mestre em Arquitetura, pela UFRJ, no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura (PROARQ), em 1993. Fez especialização em Urbanismo, pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFRJ), em 1986, e graduação em Arquitetura (FAU/UFRJ), em 1985. Professor adjunto III da FAU/UFRJ. Docente e vice--coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura PROARQ/FAU/UFRJ. Coordenadora da disciplina de Projeto Paisagístico I. Membro do Núcleo Docente Estruturante da FAU/UFRJ. Conselheira e diretora do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), no Rio de Janeiro. Membro do Conselho Deliberativo do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), no Rio de Janeiro. Possui ampla experiência em projeto urbano e da paisagem e conforto do ambiente, participando como consultora em empresas de Arquitetura e Engenharia. E-mail: [email protected]

CARLOS EDUARDO DIAS COMAS Bolsista de Produtividade em Pesquisa 1A. Formou-se em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1966. É mestre em Planejamento Urbano e mestre em Arquitetura pela University of Pennsylvania, em 1977, e doutor em Projet Architectural et Urbain, pela Université de Paris VIII, em 2002. É professor titular da UFRGS, onde atua em projeto e em Teoria, História e Crítica de Arquitetura. Foi coordenador de 2005 a 2008 do Programa de Pesquisa e Pós--Graduação em Arquitetura (PROPAR) da UFRGS, assumindo em 2009 a coordenação editorial. Foi coordenador do DOCOMOMO Núcleo-RS, de 2005 a 2007, e coordenador geral do DOCOMOMO Brasil, de 2008 a 2011, voltando a coordenar o DOCOMOMO Núcleo-RS, em 2012. Membro do comité assessor da área no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico em duas ocasiões. Representante adjunto da área na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior no triênio 2005-2007. Integra o conselho editorial das revistas Arqtexto (UFRGS), Arcos (Escola Superior de

arte e cidades 2ed.indd 422 04/11/15 18:07

423

so

br

e o

s a

uto

re

s

ö

Desenho Industrial, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Arquitextos- Vitruvius e Architectural Research Quarterly (Cambridge University). E-mail: [email protected]

DOUGLAS VIEIRA AGUIAR Graduação em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1975. Arquiteto da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Secretaria Municipal de Educação e Cultura (1975-1978), Secretaria do Planejamento Municipal (1978-1988). Especialização em Planejamento Urbano, pela University College London em 1977/8. Mestrado pela Bartlett School, University College London, em 1987, doutorado pela University College London, em 1991. Professor associado do Departamento de Arquitetura da UFRGS (1988 - ), professor do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, da UFRGS. Professor visitante na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Sydney, Austrália (2003/4), professor visitante na Architectural Association School of Architecture, Inglaterra (1993/2008), professor visitante no City and Regional Planning Department da California Polytechnic State University, EUA (2008). Publica regularmente em periódicos especializados em arquitetura e urbanismo. Consultorias diversas. E-mail: [email protected]

ELOISA PETTI PINHEIRO Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2. Orien-tadora de doutorado. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1981. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, em 1992, e doutora em Historia de la Arquitectura, Historia Urbana pela Universidad Politécnica de Cataluña, em 1998. Realizou o pós-doutorado na Universidad Politécnica de Cataluña, de 2007-2008. É professora titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, de 2004-2006, e coordenadora do Mestrado Profissional em Con-servação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos, de 2008-2012. Atua na área de Arquitetura e Urbanismo, sendo suas áreas de interesse: história da cidade e do urbanismo, memória urbana, núcleos históricos, intervenção urbana, expressão gráfica, iconografia e forma urbana. E-mail: [email protected]

ELYANE LINS CORRÊA Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo e mestrado em Filosofia (área de concentração em Filosofia da Arte), ambos pela Universidade Federal da Paraíba e doutorado em Estética e Teoria da Arquitetura, pela Universitat Politecnica de Catalunya. É professora adjunta

arte e cidades 2ed.indd 423 04/11/15 18:07

424

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

da Universidade Federal da Bahia, onde leciona desde 2002 na Faculdade de Arquitetura, atuando igualmente no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da mesma Universidade. Foi co-organizadora dos livros Arte e Cida-des: imagens, Discursos e Representações - Coletânea I (2008); Reconceituações Con-temporâneas do Patrimônio (2011); Estado e Sociedade na Preservação do Patrimônio (2013). Publicou os ensaios: “Visões da História”; “O Urbanismo depois do fim da História”; “Urbanizações temáticas: arquiteturas do desejo”; “As artes contemporâneas e a necessidade da Filosofia”; “O silêncio das Imagens”; “Os limites da Estética: breve ensaio sobre as artes e a arquitetura contemporâneas”; “As últimas ruínas”. Desenvolve atividades de ensino e pesquisa nos seguintes temas: estética e teoria da arquitetura e da cidade contemporânea; e estética/filosofia da arte contemporânea. E-mail: [email protected]

FÁBIO LOPES DE SOUZA SANTOS Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1980, mestrado de Artes pelo Royal College Of Arts, em 1984, e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, em 2000. Realizou diversas exposições de artes plásticas. Atualmente, é professor doutor efetivo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo em São Carlos, Uni-versidade de São Paulo. É membro do Conselho Editorial da Revista Risco (São Carlos). Tem experiência docente na área de Arquitetura e Urbanismo, atuando principalmente nos temas arte e cidade, identidade nacional e artes plásticas. E-mail: [email protected]

GABRIEL GIRNOS ELIAS DE SOUZA Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo, em 2002, e mestrado em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo, em 2006, ambas pela Escola de Engenharia de São Carlos, Univer-sidade de São Paulo. Tem experiência acadêmica em Teoria, História e Crítica de Arte Urbana; Design Gráfico e Narrativa Visual; expressão, representação e estudo da forma arquitetônica. Atualmente, é professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e doutorando em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]; [email protected]

LUCIANA BONGIOVANNI MARTINS SCHENK Graduação em Ar-quitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), em 1990. Graduação em Filosofia pela

arte e cidades 2ed.indd 424 04/11/15 18:07

425

so

br

e o

s a

uto

re

s

ö

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), pela USP, em 2001. Mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP, em 1997. Dou-torado em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, USP, em 2008. Atualmente, é professora doutora junto ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU), USP, Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, especialização em Arquitetura da Paisagem e Paisagismo. Participa como pes-quisadora IAU/USP, responsável pelo núcleo São Carlos, junto ao Quadro Do Paisagismo No Brasil (QUAPA), em Pesquisa Temática Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]

MARIA HELENA MATUE OCHI FLEXOR Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo, em 1961, e doutoramento em História Social, pela mesma Universidade, em 1980. É professora emérita da Universidade Federal da Bahia, onde exerceu várias funções, incluindo ensino de graduação e pós-graduação, de 1965 a 2005, na Faculdade Arquitetura e Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e Escola de Belas Artes, tendo se aposentado, em 1994, como adjunto 4. Continuou a colaborar, com Bolsa de Permanência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior por quatro anos, com os Programas de Pós-Graduação das duas unidades Faculdade de Arquitetura (FA) e Escola de Belas Artes (EBA), gratuitamente, até 2005. Foi assessora do Cadastramento dos Bens Culturais Móveis e Agregados da Bahia, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Fundação Vitae, 1994-2005). Atualmente, é professora adjunta da Universidade Católica do Salvador, no mestrado, em Planejamento Urbano e Desenvolvimento Social (acadêmico). Recebeu, em 2007, o prêmio Clarival do Prado Valladares, da Odebrecht; em 2008 o prêmio Sérgio Milliet, da Associação Brasileira de Críticos de Arte. E-mail: [email protected]; [email protected]

MARIA STELLA MARTINS BRESCIANI Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), nível 1. Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo, em 1970, doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo, em 1976, pós-doutorado pela Centre National de la Recherche Scientifique, em 1995, pós-doutorado pela Centre National de la Recherche Scientifique, em 2003, e pós-doutorado pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, em

arte e cidades 2ed.indd 425 04/11/15 18:07

426

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

2003. Atualmente, é professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), membro do corpo editorial da Resgate (Unicamp), membro do corpo editorial da Genèses (Paris), membro do corpo editorial da Estudos His-tóricos (Rio de Janeiro), membro do corpo editorial da Topoi (Rio de Janeiro) e membro do corpo editorial da Brésil(s). Sciences humaines et sociales. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contem-porânea. E-mail: [email protected]

MARTA LLORENTE DIAZ Arquiteta e doutora em Arquitetura pela Uni-versidad Politécnica da Cataliña (UPC). Professora titular do Departamento de Composición Arquitectónica na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona, UPC. Desenvolve sua atividade acadêmica e de pesquisa no âmbito da Teoria da Arquitetura. Criou a linha de docência e pesquisa de an-tropologia do espaço urbano, na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona (ETSAB). É autora de diversos livros e artigos, em torno de temas de teoria arquitetônica sobre o espaço específico da mulher. Tem colaborado em projetos de investigação relacionados com o maltrato às mulheres, em co-laboração com a Faculdade de Psicologia, da Universidade de Barcelona. Está vinculada a duas linhas de pesquisa da UPC: Arte, Estética e Antropologia do espaço e ao grupo Group for Equal Opportunities on Architecture, Science and Technology (GIOPACT). E-mail: [email protected]

NIVALDO VIEIRA DE ANDRADE JR. Possui graduação (2002), mestrado (2006) e doutorado (2012) em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor adjunto do Departamento de Teoria e Prá-tica do Planejamento da Faculdade de Arquitetura da UFBA, é vice-presidente extraordinário da Direção Nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB); secretário executivo da Federación Panamericana de Asociaciones de Arqui-tectos; secretário geral do Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento da Bahia, do qual foi presidente no biênio 2012-2014. É membro suplente do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), na condição de representante do IAB. Recebeu diversos prêmios e menções honrosas em certames nacionais pela sua produção acadêmica e pela atuação profissional, com destaque para a menção honrosa no Prêmio CAPES de Tese, edição 2013, para três menções honrosas no Prêmio Opera Prima, Concurso Nacional de Trabalhos Finais

arte e cidades 2ed.indd 426 04/11/15 18:07

427

so

br

e o

s a

uto

re

s

ö

de Graduação, e para o primeiro lugar no Prêmio Caixa-IAB 2006, Concurso Nacional de Idéias e Soluções para a Habitação Social no Brasil. Projetos de sua autoria têm sido publicados em revistas especializadas e exibidos em exposições no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected]

PASQUALINO ROMANO MAGNAVITA Bolsista de Produtividade em Pesquisa 1. Orientador de doutorado. Possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1951. Doutor em Arquite-tura pela Universidade de Roma, em 1964. Aposentado em março de 1995 da UFBA, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), nível 1A e, por três mandatos, participou do Comité Assessor em Arquitetura e Urbanismo do CNPq. Integra o quadro docente permanente do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, ministrando disciplinas no mestrado e doutorado, orientando teses e dissertações. Possui experiência em projetos de Arquitetura e Design e vem desenvolvendo estudos e pesquisas, em nível conceitual, relacionados com a Teoria da Produção da Arquitetura Contemporânea. Pró-reitor de extensão da UFBA, em 1992/93. Professor emérito da UFBA, em 2001. Agraciado com o Colar de Ouro do Conselho Superior do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), em 2000. E-mail: [email protected]

RENATO CYMBALISTA é docente do Departamento de História da Arqui-tetura e Estética do Projeto, grupo de disciplinas Urbanização e Urbanismo. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1996, mestrado em Estru-turas Ambientais Urbanas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 2001, e doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 2006. Coordenador do Núcleo de Urbanismo do Instituto de Es-tudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, no período de 2003-2008. Pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Campinas, no projeto temático Dimensões do Império Português, de 2008-2010. Parecerista ad hoc Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia. Editor adjunto da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, de 2010-2012. E-mail: [email protected]

arte e cidades 2ed.indd 427 04/11/15 18:07

428

Ar

te e

Cid

Ad

es

imag

ens,

dis

curs

os e

rep

rese

ntaç

ões

]

ROBERT MOSES PECHMAN Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2. Orientador de Doutorado. Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo, em 1977. Mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1985. Doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas, em 1999 e pós-doutorado pela Ècole des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris, em 2004. Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experi-ência na área de Cultura e suas representações sobre a cidade, com ênfase na discussão sobre a convivência na cidade e seus desdobramentos na reflexão sobre a sociabilidade e sobre a cidadania. Atua principalmente nos seguintes temas: política, pacto social, sociabilidade, ordem, urbano, urbanidade, poder, multidão, cidade, discurso, literatura, imaginário, representações da cultura, Rio, cidade, violência, pacto urbano, história urbana, processo civilizatório. E-mail: [email protected]

SELMA PASSOS CARDOSO Graduada em Arquitetura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1996, e doutorado em Teoria y História de La Arquitectura, pela Universidad Politécnica de Cataluña/Espanha, em 2003. Bolsista recém-doutor na Faculdade de Arquitetura da UFBA, no período de março de 2004 a julho de 2006. Professora visitante do Centro de Estudios Bra-sileños da Universidad de Salamanca com bolsa de pós-doutorado, no período de março a julho de 2007, através do convênio da Universidad de Salamanca (USAL) com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-gico (CNPq). Bolsista pós-doutorado júnior do CNPq, no período de 2007 a 2009, atuando como professor/pesquisador da Universidade Federal da Bahia. É professora adjunto III da Universidade Federal do Vale do São Francisco. Experiência na área de Arte, Arquitetura e Cidade, com ênfase em História da Arte e da Arquitetura. Atualmente se dedica aos seguintes temas: preservação patrimonial, memórias e identidades. E-mail: [email protected]

WALCLER DE LIMA MENDES JR. Graduado em Comunicação Social, Jor-nalismo. Mestre e doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Pós-Graduação em Ciências Sociais (NPGCS), pela Faculdade Integrada Tiradentes (Fits) e professor titular I da Fits (Alagoas). Coordena pesquisa do Grupo de Pesquisa Nordestanças, da

arte e cidades 2ed.indd 428 04/11/15 18:07

429

so

br

e o

s a

uto

re

s

ö

Universidade Federal de Alagoas, no projeto Instituto do Patrimônio Histó-rico e Artístico Nacional intitulado: Mapeamento do Patrimônio Cultural do Agreste Alagoano. Área de interesse em: Etnomusicologia, Cinema, Antro-pologia da Imagem, Análise do Discurso, operando as categorias: discurso, imagem, identidade, território e cultura. Autor do livro O Sujeito arquiautor: conflitos do discurso urbano e midiático, RJ, Editora Lamparina, 2010. Produtor de documentários etnográficos, programas jornalísticos e institucionais. E-mail: [email protected]

arte e cidades 2ed.indd 429 04/11/15 18:07

formato

tipografia

Papel

impressão

Capa e acabamento

tiragem

ColoFão

18 x 25 cm

aldine 405 bt 11,5/16 (texto) swiss721 bt (títulos)

alcalino 75 g/m2 (miolo) Cartão supremo 300 g/m2 (capa)

edufba

Cian Gráfica

400 exemplares

arte e cidades 2ed.indd 430 04/11/15 18:07