biernath_cag_me_bauru.pdf - Repositório Institucional UNESP
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO"
FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
LINHA DE PESQUISA: PRODUÇÃO DE SENTIDO NA COMUNICAÇÃO
MIDIÁTICA
CARLOS ALBERTO GARCIA BIERNATH
MARCAS DA IDENTIDADE DISCURSIVA NO JORNALISMO
POPULARESCO: ANÁLISE DO ETHOS NOS TELEVISIVOS DOCUMENTO
ESPECIAL, AQUI AGORA E BALANÇO GERAL
BAURU
2016
CARLOS ALBERTO GARCIA BIERNATH
MARCAS DA IDENTIDADE DISCURSIVA NO JORNALISMO POPULARESCO:
ANÁLISE DO ETHOS NOS TELEVISIVOS DOCUMENTO ESPECIAL, AQUI
AGORA E BALANÇO GERAL
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação da
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita
Filho", campus Bauru/SP, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Comunicação, sob orientação da Prof.ª. Dra. Eliza
Bachega Casadei.
BAURU
2016
Biernath, Carlos Alberto Garcia.
Marcas da identidade discursiva no jornalismo
popularesco: análise do ethos nos televisivos
Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral /
Carlos Alberto Garcia Biernath, 2016
141 f.
Orientador: Eliza Bachega Casadei
Dissertação (Mestrado)– Universidade Estadual
Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação, Bauru, 2016
1. Documento Especial. 2. Aqui Agora. 3. Balanço Geral. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título.
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, meu mais profundo agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado e São Paulo, por acreditar e financiar meu projeto de pesquisa, sob o nº 2014/10866-8.
O investimento me permitiu dedicação exclusiva ao projeto, o que amplificou ainda mais em
mim a motivação em transmitir à sociedade todos os conhecimentos e ensinamentos adquiridos,
sobretudo através do estímulo em seguir nesse ciclo de aprendizado.
Tornar-se mestre não significa dominar os segmentos da comunicação que estudei.
Muito pelo contrário. Em meu entendimento, a titulação favorece a uma vontade ainda maior
de seguir trilhando o caminho, sempre com vistas ao outro, à alteridade. Por isso mesmo, abro
meus agradecimentos citando grandes mestres com as quais tive o mais absoluto prazer de
conviver, e que nessa coexistência, mesmo que em um singelo cumprimento, já emanavam
aprendizado. Identificá-los não é tarefa fácil, uma vez que o discurso de todos os professores
que tive se entrecortam ao meu. Começo por mencionar o meu mestre, amigo e oxalá
companheiro de profissão Prof. Dr. Marcelo da Silva. Seus ensinamentos extrapolaram o
âmbito acadêmico e inferiram diretamente em meus caminhos. Minha motivação para o olhar
ao próximo e seguir em frente vem muito de você. Todos os dias comemoro a amizade contigo.
Agradeço muito aos professores que transmitiram valiosas discussões e aprendizados ao
longo destes 2 anos e meio de mestrado. Também aos professores que me deram aula ontem e
hoje se tornaram amigos. Tive a satisfação única de conviver com professores que tiveram toda
a atenção em analisar meu trabalho e me trazer apontamentos valiosíssimos, com a sensibilidade
de quem se preocupa em ajudar seu aluno a desenvolver seu potencial: Prof.ª. Ma. Daniela
Bochembuzo, uma líder, exemplo de jornalista correta e competente, além de grande
incentivadora; Profª. Dra. Lígia Carvalho, uma guerreira; Prof.ª. Dra. Roseane Andrelo, tão
cortês e gentil; Prof. Dr. Maximiliano Martin Vicente, que com suas visões e experiências
ensina que comunicar é enxergar ao próximo; Prof.ª. Dra. Érika de Moraes, sempre muito
atenciosa, que dedicou seu tempo a conduzir um curso de extensão que tão importante foi para
a minha pesquisa; Prof. Dr. Antônio Francisco Magnoni, com quem não cheguei a ter aulas,
infelizmente, mas que com sua garra em lutar ensina mesmo em conversas informais; Prof. Dr.
Arlindo Rebechi Junior, que, com seus sábios olhares, me permitiu enxergar aspectos
importantes para o desenvolvimento da minha pesquisa; Prof.ª. Dra. Rosana de Lima Soares,
de excelente trajetória acadêmica, que cordialmente aceitou nosso convite e nos honrará com a
participação na banca de defesa da pesquisa.
Não poderia deixar de mencionar também minha orientadora, a querida e
competentíssima Prof.ª. Dra. Eliza Bachega Casadei. Meus agradecimentos mais sinceros pela
confiança em mim e em um projeto que só ganhou corpo e se tornou pesquisa por sua
participação através de ensinamentos e estímulos. Agradeço também por sempre ser tão
atenciosa e prestativa nos momentos em que mais precisei, pelas conversas tão produtivas, pela
valiosa amizade e por todo o aprendizado. Aprendizado este que, aliás, se desenvolveu por meio
da simplicidade e de uma didática tão apurada na sensibilidade ao tratar com o próximo.
Direciono meus agradecimentos também aos colegas de mestrado, que boas discussões
geraram em aulas, me permitindo assimilar olhares que não faziam parte de mim, mas que me
ajudaram e ajudarão nos estudos sobre comunicação.
Agradeço aos amigos que tanta diferença fazem em minha vida. Victor, Bruno e Felipe,
que fazem parte do meu discurso e sempre estão comigo – apesar da distância –, e me trazem a
certeza de um convívio baseado em respeito, lealdade e admiração mútua. Também menciono
meu amigo e companheiro de jornada Fernando Strongren, que mantém sua trajetória
influenciando seus colegas a seguir firme na jornada, tal como me influenciou durante a
graduação.
Aos sempre atenciosos e prestativos funcionários do setor de pós-graduação da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, Hélder e Sílvio. Muito obrigado
pelas conversas prazerosas, ao mesmo tempo descontraídas, de ajuda e ensinamentos.
À minha família, epicentro do meu desenvolvimento como ser humano. Obrigado pela
confiança em meu trabalho, por acreditarem e apoiarem um propósito de vida que se desenvolve
a partir do bem que vocês fazem a mim e que tanto quero repassar à sociedade. Honradez,
honestidade e garra, para mim, são significados a partir da existência de vocês.
Por fim, e não menos importante, quero agradecer ao destino por uma herança muito
especial desse período de mestrado: meu amor, minha companheira, namorada, amiga e
confidente, Kelly De Conti Rodrigues. Tão logo o caminho demandou uma entrega ao
crescimento proporcionado pelo aprendizado, tão logo nos identificamos e nos apaixonamos.
A trajetória se tornou muito mais doce e sensível ao seu lado. Uma pessoa que exala compaixão
a cada palavra, cada gesto, cada discurso. Conviver com você é como enxergar a alma das
pessoas que nos rodeiam. Abraçá-la é sentir o lampejo da ternura; sentir suas mãos junto às
minhas é sentir uma injeção de alteridade que toma conta de mim. Sem você, o caminho não
seria de tanta esperança como é.
“A televisão serve para entreter, serve para
informar. Mas ela é, sobretudo, um meio de
expressão incrivelmente nobre” (Nelson Hoineff).
RESUMO
Em virtude das buscas por novas e ávidas informações, além da desenfreada luta pela audiência,
novos modelos de ‘fazer jornalismo’ aparecem nos veículos televisivos e alternam o discurso
identitário jornalístico. De tal modo, algumas produções, que conquistaram bons índices de
audiência, têm feito uso de algumas estratégias a fim de atingir seus objetivos, que vão desde a
utilização de diferentes discursos baseados em “verdades midiáticas” até os chamados “efeitos
de verdade”, que demarcam seu ethos discursivo. Em vista de tais apontamentos, esta pesquisa
pretende revisitar alguns modelos de jornalísticos popularescos significativos – em termos de
inovação no fazer noticioso e na representação discursiva – das décadas de 80, 90 e 2000/10 do
século XX: Documento Especial – Televisão Verdade (década de 80); Aqui Agora (década de
90); e Balanço Geral (surgido na primeira década dos anos 2000 e ainda no ar), à luz da análise
de discurso de tradição francesa, da análise retórica e da análise de elementos que compõe a
narrativa sonoro-imagética. Esse entrecruzamento metodológico nos possibilitou trabalhar com
o ethos projetado na enunciação de cada uma das atrações supracitadas, no qual procuramos
depreender como a identidade jornalística era construída em seu conteúdo discursivo através de
projeções ethópicas.
PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Ethos; Documento Especial; Aqui Agora;
Balanço Geral.
ABSTRACT
Because of the search for new and eager information, and the unbridled struggle for the hearing,
new models of 'journalism' appear on television vehicles and alternate journalistic identity
discourse. In this way, some productions that have won good audience ratings, have made use
of some strategies in order to achieve their goals, ranging from the use of different discourses
based on "media truth" to the so-called "real effects" that demarcate its discursive ethos. In view
of such notes, this research aims to revisit some models of significant popularescos journalism
- in terms of innovation in news making and discursive representation - of the 80, 90 and
2000/10 of the twentieth century: Documento Especial – Televisão Verdade (decade 80); Aqui
Agora (90s); and Balanço Geral (emerged in the first decade of the 2000s and still in the air) in
the light of discourse analysis of French tradition, rhetorical analysis and analysis of elements
that compose the sound-imagistic narrative. This methodological lathing enabled us to work
with the ethos designed in the enunciation of each of the above attractions, in which we try to
infer how the journalistic identity was built in its discursive content through ethopics
projections.
KEYWORDS: Discourse Analysis; Ethos; Documento Especial; Aqui Agora; Balanço Geral.
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................................................. 07
ABSTRACT ............................................................................................................................ 08
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1 – OS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO EM DIFERENTES MOMENTOS
E A NOTÍCIA COMO ACONTECIMENTO DISCURSIVO ........................................... 15 1.1 OS PRIMEIROS MOMENTOS DOS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO ....................... 15 1.2. OS TRÊS PONTOS DA CONFIGURAÇÃO DISCURSIVA .......................................... 17
1.3 A MECÂNICA DAS CONSTRUÇÕES DE SENTIDO DA NOTÍCIA ........................... 17 1.4 O ACONTECIMENTO E A NOTÍCIA ............................................................................. 19 1.5 O ‘REAL’ E AS CONSTRUÇÕES DE VERDADE NA PRODUÇÃO NOTICIOSA ..... 21
1.6 EFEITO DE VERDADE E VALORES DE VERDADE ................................................... 22
1.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE CULTURA POPULARESCA NA TELEVISÃO .............. 25 1.8 O LEITOR EMPÍRICO E O LEITOR-MODELO ............................................................. 26
CAPÍTULO 2 – ETHOS E DISCURSO JORNALÍSTICO ................................................ 31
2.1 A RETÓRICA ARISTOTÉLICA ....................................................................................... 32 2.2 A TRÍADE DISCURSIVA QUE MOBILIZA A PERSUASÃO: ETHOS, PATHOS E
LOGOS ..................................................................................................................................... 33
2.3 O ETHOS NA RETÓRICA ARISTOTÉLICA .................................................................. 35 2.3.1 Ethos retórico e ethos a partir da análise do discurso .............................................. 37
2.4 POR UM ETHOS CRÍVEL ................................................................................................ 38
2.5 A CONFORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO-JORNALISTA ............................. 41 2.6 O ETHOS POPULARESCO .............................................................................................. 43 2.7 PROBLEMAS INERENTES AO ETHOS ......................................................................... 44
CAPÍTULO 3 – A TELEVISÃO BRASILEIRA E SUAS IMBRICAÇÕES AOS
PROGRAMAS POPULARES ............................................................................................... 46 3.1 O SURGIMENTO DA TELEVISÃO ................................................................................ 46 3.1.1 Transmissões televisivas .............................................................................................. 46
3.1.2 O fazer-televisão .......................................................................................................... 47 3.2 OS PRIMÓRDIOS DA TELEVISÃO BRASILEIRA ....................................................... 49
3.2.1 Fase do surgimento ...................................................................................................... 51
3.2.2 Quando o popularesco assume formato nos programas televisivos ........................ 52 3.2.2.1 Os fait divers ......................................................................................................... 54
3.2.2.2 O primeiro programa “mundo cão” e o aumento da audiência televisiva .......... 58
3.2.3 Fase do autocentramento ............................................................................................ 59 3.2.4 O Povo na TV ................................................................................................................ 60
3.3 A AMPLIAÇÃO DO “POPULARESCO” E O SURGIMENTO DE NOVAS ATRAÇÕES
.................................................................................................................................................. 61 3.3.1 O Documento Especial – Televisão Verdade ............................................................... 61 3.3.2 O Aqui Agora ................................................................................................................ 64 3.3.3 O momento atual da televisão no Brasil e o início do Balanço Geral ...................... 67
CAPÍTULO 4 – A ANÁLISE DO DISCURSO DE TRADIÇÃO FRANCESA COMO
CAMPO TÉORICO-METODOLÓGICO ........................................................................... 69 4.1 O DISCURSO .................................................................................................................... 69
4.2 A ANÁLISE DO DISCURSO COMO METODOLOGIA ................................................ 72 4.2.1 A AD enquanto instrumento para análise ethópica .................................................. 72 4.3 ELEMENTOS ATUANTES NA FORMAÇÃO DO SENTIDO DISCURSIVO .............. 73 4.3.1 Pressuposições e subjetividades: o dito e o não-dito ................................................. 74
4.3.2 Condições de produção do discurso ........................................................................... 75 4.3.3 Interdiscuro .................................................................................................................. 76 4.3.4 Polissemia e Paráfrase ................................................................................................. 78 4.4 ELEMENTOS TÉCNICOS DE COMPOSIÇÃO IMAGÉTICA ....................................... 80
4.4.1 Ponto de vista e ponto de escuta na narrativa audiovisual ...................................... 80 4.4.2 O enquadramento ........................................................................................................ 81
4.4.3 Planos de câmera ......................................................................................................... 81
4.4.4 A trilha sonora ............................................................................................................. 83
4.5 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS .................................................................................. 83 4.6 RETÓRICAS ...................................................................................................................... 84 4.6.1 Argumento de autoridade ........................................................................................... 84
4.6.2 Elementos pathéticos .................................................................................................... 85 4.7 CORPUS DE ANÁLISE .................................................................................................... 86
4.7.1 Documento Especial – 1ª edição: A pungente “Guerra Social” ............................... 86
4.7.2 Documento Especial – 2ª edição: A ‘invasão’ de espaço em “Os Pobres vão à Praia”
.................................................................................................................................................. 88
4.7.3 Documento Especial – 3ª edição: As violentas “Noites Cariocas” ........................... 89
4.7.4 Aqui Agora – 1ª edição: A “gangue” que caçou o carro-forte em uma perseguição
“infernal” ................................................................................................................................. 90
4.7.5 Aqui Agora – 2ª edição: A chacina e o policial “covardemente” assassinado......... 92
4.7.6 Aqui Agora – 3ª edição: A “implacável” perseguição aos “matadores da
policial” .................................................................................................................................... 93 4.7.7 Balanço Geral – 1ª edição: A troca de tiros entre bandidos e polícia...................... 94 4.7.8 Balanço Geral – 2ª edição: O professor morto .......................................................... 95
4.7.9 Balanço Geral – 3ª edição: O “suspeito” que invadiu salão e matou a mulher ...... 96
CAPÍTULO 5 – ANÁLISES DOS OBJETOS EMPÍRICOS ............................................. 99 5.1 IMAGEM, SOM E RETÓRICA ........................................................................................ 99 5.1.1 Enquadramentos e tomadas de câmera ..................................................................... 99
5.1.1.1 Plano geral ......................................................................................................... 100
5.1.1.2 Plano médio ........................................................................................................ 101
5.1.1.3 Primeiro plano .................................................................................................... 102
5.1.1.4 Plano-sequência e câmera nervosa .................................................................... 104
5.1.2 Os efeitos sonoros ...................................................................................................... 110 5.1.3 Argumentos e provas retóricas na projeção de uma ‘verdade’ discursiva .......... 112
5.2 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS BASEADAS EM PARÁFRASES ......................... 123 5.2.1 A projeção ethópica a partir de termos compartilhados ........................................ 123 5.2.2 Paráfrases discursivas ............................................................................................... 126 5.3 A IDENTIDADE ETHÓPICA NO DISCURSO DAS ATRAÇÕES ............................... 130 5.3.1 Ethos crível e de violência ......................................................................................... 131
5.3.2 Ethos de indignação e impunidade ........................................................................... 132 5.3.3 Ethos de justiceiro e ethos policial ............................................................................ 133
À GUISA DE CONSIDERAÇÕES ..................................................................................... 134
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 138
11
INTRODUÇÃO
Desde 1950, quando a primeira emissora surgiu no Brasil (FEDERICO, 1982), o veículo
televisivo participou alternâncias significativas em seus produtos, logo após assumir produções
semelhantes aos do rádio. De início, a televisão era mais restrita a um nicho elitista da população
brasileira, por conta dos altos preços cobrados pelos aparelhos. Contudo, em 1964, com a queda
destes preços, a televisão se tornou mais acessível, chegando a um momento em que atingia um
público mais massivo. A partir de então, programas de auditório e mesmo aqueles tidos como
sensacionalistas assumem um bom espaço nas produções televisivas (MATTOS, 2010). Com
isso, produções de semelhante teor conquistaram espaço junto ao veículo televisivo pois,
embora para alguns tais programas aparentem esse “baixo nível”, há produções e escolhas
linguísticas e composicionais sofisticadas, que desenham um discurso muito bem trabalhado e
disposto.
Tais técnicas de produção podem ser reveladas através do ethos discursivo dos
programas. Quando enuncia um discurso, o orador externa uma imagem de si próprio ao seu
público. Essa imagem, quando bem trabalhada, remonta à persuasão, cumprindo o objetivo de
bem suceder o discurso – no caso dos objetos desta pesquisa, os telespectadores.
De tal modo, essas produções revelam também o que seria pertencente à cultura
popularesca. O entendimento sobre popularesco, que parece não deter uma definição exata,
perpassa o que alguns autores percebem ser uma tentativa de representar a cultura popular, mas
produzida por pessoas que não fazem parte dessa cultura. Disso decorre o entendimento de que
o popularesco se assenta como fragmentos de cultura popular, que na verdade representam a
visão dos produtores sobre esta cultura.
Dentre os programas que representam esse formato jornalístico peculiar, selecionamos
aqueles que entendemos terem sido relevantes em termos de inovação no fazer-jornalismo e nas
representações identitárias projetadas. Para isso, selecionamos o Documento Especial –
Televisão Verdade, exibido na Rede Manchete entre o final da década de 1980 e final da década
de 1990; o Aqui Agora, transmitido pelo SBT desde o início da década de 1990 até o final da
mesma década; e o Balanço Geral, veiculado pela Rede Record e televisionado desde o início
da década de 2000 até os dias atuais.
Pensar nestes programas significar entender como tais projeções discursivas se deram
no caráter jornalístico destas atrações. Se é a linguagem que demarca sentidos, “os processos
discursivos constituem a fonte da produção dos efeitos de sentido no discurso e a língua é o
lugar material em que se realizam os efeitos de sentido” (BRANDÃO, 2002, p. 35). Por isso,
12
enquanto discurso, a linguagem não deve ser considerada natural ou inocente. “Ela (a
linguagem) é o ‘sistema-suporte das representações ideológicas (...) é o ‘medium’ social em
que se articulam e defrontam agentes coletivos e se consubstanciam relações individuais”
(BRAGA 1980 apud BRANDÃO 2002).
Ainda sobre o suporte metodológico, a retórica assume uma função importante para
quem proclama este discurso. Constituir os elementos apresentados na retórica aristotélica pode
significar buscar a persuasão, por meio de um envolvimento com a plateia através da emoção
(pathos), da própria imagem de si (ethos), conforme apontamos anteriormente, e da
argumentação lógica (logos). Essas representações de ethos influenciam no sucesso do discurso.
Elas podem revelar as intenções do orador quando este participa sua enunciação.
Por se tratar de produtos audiovisuais, uma vez que são veiculados na televisão, os
programas popularescos mencionados também criam suas narrativas a partir de estratégias de
composição imagética, mais precisamente em enquadramentos e em planos de tomada. Cada
tipo de enquadramento indica uma forma diferente de contar uma história. Enquadramentos
mais aproximados revelam um favorecimento aos detalhes, enquanto os mais distantes visam o
contexto da cena. Os planos-sequência são empregados no sentido de aproximar o telespectador
ao fato retratado. Os expedientes sonoros, por sua vez, também auxiliam na produção de efeitos
de sentido do produto audiovisual. Uma trilha mais dramática, por exemplo, pode indicar um
efeito mais chocante ao conteúdo mostrado.
Em vista dos apontamentos citados acima, a presente pesquisa objetivará,
fundamentalmente, identificar a identidade discursiva dos programas selecionados, com base
nas diferenças e semelhanças ethópicas sobre como cada objeto empírico trabalhou a linguagem
e a retórica imagética. O estudo será desenvolvido tomando por base as metodologias da análise
do discurso de tradição francesa, da análise retórica e da análise de composição dos elementos
imagéticos-sonoro.
Assim, para as análises definimos o campo temático da violência social como critério
de escolha, centrando nosso foco em reportagens que versem sobre crimes de variados tipos de
violência, como assaltos, assassinatos e conflitos que envolvam, na cobertura popularesca
(re)tratada por nossos objetos empíricos, a sociedade. Decidimos explorar tal temática por esta
ser, em nosso entender, uma das que melhor representa a essência dos programas popularescos
através de um discurso comumente compartilhado entre os programas – apesar de alternância
no modo de fazer jornalismo –; de estereótipos engendrados entre o ‘bem’ X o ‘mal’; de
13
recorrentes premências duais de teor classista, alocadas em argumentos que se estruturam com
base na ‘impunidade’; e na emergência de levar tais pautas ao telespectador.
Nesse caminho, no primeiro capítulo discutiremos a questão discursiva como emergente
nos estudos da comunicação mais atuais. Também nos debruçaremos sobre os conceitos que
envolvem a criação e transformação do acontecimento em notícia. Discutiremos também
algumas estratégias que visam conferir uma “verdade” discursiva nos produtos jornalísticos,
reveladas através de opiniões e argumentos que envolvam o emocional da audiência. Na
discussão sobre popularesco, abordaremos algumas definições de autores clássicos, no
propósito de engendrarmos uma base teórica sobe o assunto. Por fim, comentaremos sobre
algumas disposições colocadas através de um leitor modelo – suposto no discurso – que pode
ser visado na constituição discursiva dos nossos objetos.
A partir do segundo capítulo entraremos no conceito de ethos sob o viés discursivo e
retórico. Por se tratar do conceito-chave de nossa pesquisa, exploraremos nossas observações
sobre o ethos na retórica aristotélica, sobre como o conceito pode criar uma identidade ao
sujeito-jornalista, como poderá ser trabalhado a fim de criar efeitos de credibilidade e as sutis
diferenças entre o ethos trabalhado na retórica por Aristóteles e como o conceito é entendido
nos quadros da análise de discurso de tradição francesa. Encerraremos a discussão relacionando
os problemas que um ethos pré-discursivo pode ocasionar.
Na sequência, no terceiro capítulo revisitaremos um breve histórico da televisão
brasileira a partir dos eventos que marcaram sua existência e o fazer-televisão por parte dos
produtores. Ainda no trajeto histórico, relembraremos alguns programas de cunho popularesco
que foram relevantes nessa trajetória. Discutiremos também como esse popularesco pode ser
colocado nos programas, ao analisarmos a cultura popular e seus vieses no veículo televisivo.
Por fim, discutiremos nossos objetos em um percurso histórico e conceitual.
No quarto capítulo, apresentaremos as metodologias que entrecruzarão este trabalho,
ressaltando a análise de discurso de tradição francesa e a análise da composição sonora e
imagética, ancoradas em preceitos linguísticos, argumento de autoridade, termos e estratégias
que visam representar os efeitos de verdade almejados pelos programas na busca da
identificação junto à audiência, e mesmo elementos que auxiliam no relato da narrativa
audiovisual, como planos de tomada da imagem, enquadramentos de câmera e trilhas sonoras.
Munidos do conteúdo teórico, no quinto capítulo analisaremos os objetos em função de
nossas observações sobre cada edição escolhida como corpus. Pretendemos assim discernir
14
sobre a configuração ethópica e sobre os pressupostos discursivos inerente aos programas de
cunho popularesco que delimitamos como nossos objetos empíricos.
Observar a constituição ethópica dos programas popularescos pode nos levar a entender
como estas produções conseguiram, de maneira tão bem sucedida, conquistar a audiência
através de traços do que seria o cotidiano da cultura popular – o que, conforme alocamos acima,
pertence ao popularesco. Nas conflituosas colocações em que os atores das reportagens são
dispostos, o discurso dos programas guarda em seu bojo intencionalidades quando da
divulgação de um fato. Quando estes conflitos se desdobram entre questões sociais e de
segurança pública, cada ‘lado’ parece assentar um lugar específico nessas narrativas: compõe-
se infindáveis cenários em que essas batalhas dicotômicas ganham a atenção das câmeras. Aos
produtores dos programas jornalísticos, a televisão reserva recursos que permitem captar, por
excelência, imagens e sons do que estaria em ruptura com a normalidade. Cabe a estes
operadores da notícia decidir sobre o nível de detalhamento que darão ao retratado, bem como
a oportunidade de estreitar laços com o telespectador na aproximação que uma sequência
imagética, sem cortes, pode representar. Como se não bastasse, trilhas sonoras são mobilizadas
em todo esse discurso, com fins de exaltar verdadeiros momentos de clímax nos programas. De
perseguições policiais a um tour por um cenário de violência; de nomeações simbólicas aos
atores das reportagens por parte dos produtores televisivos a comentários que reforçam
essencializações – que podem ser opacas –, o telespectador se entretém enquanto visita lugares
e situações que nunca poderia visitar se não estivesse assistindo televisão.
15
CAPÍTULO 1 – OS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO EM DIFERENTES MOMENTOS
E A NOTÍCIA COMO ACONTECIMENTO DISCURSIVO
A fim de cravarmos as bases de sustentação da presente pesquisa, inicialmente
elucidaremos a forma como os estudos da comunicação entenderam a produção noticiosa ao
longo do tempo. Em um primeiro momento, explicaremos a estruturação discursiva da notícia
– em comparação às fases primárias que estudavam os efeitos da comunicação a curto, a médio
e a longo prazo na audiência – e a questão de que toda reportagem se constitui sempre como
um acontecimento discursivo, oriundo de um olhar do sujeito-jornalista, mas que também sofre
transformações ao longo de todo o processo de produção. Por esse motivo, as construções de
verdade do fazer-noticioso são também edificadas em torno de um saber narrar característico.
Por fim, essas construções de verdade devem se apoiar em materializações específicas na
própria construção da notícia, de forma que o ethos discursivo se torna um conceito útil para
delimitarmos uma dessas materializações. Tais discussões serão esmiuçados a seguir.
1.1 OS PRIMEIROS MOMENTOS DOS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO
Na história das teorias da comunicação, muitos teóricos já tentaram estipular por que as
notícias são como são (TRAQUINA, 2005). Nesses estudos, as diversas teorias apresentadas
podem ser classificadas em dois períodos, de acordo com Wolf (2012): a fase inicial, que
contemplava as primeiras teorias, e nela as pesquisas indicavam uma maior preocupação nos
efeitos a curto-médio prazo1, e a segunda fase, composta por teorias que detinham uma
preocupação com os efeitos da mídia a longo praz. Essa fase inicial abarcou estudos que tiveram
início entre os anos 20 e 30 do século XX, com a teoria hipodérmica. Posteriormente, novos
modelos de superação da teoria surgiam e mostravam uma preocupação que extrapolava o
limite do efeito da mensagem na audiência.
Outra importante teoria desse período foi a teoria crítica, originária da Escola de
Frankfurt, que surge, de fato, no período pós-guerra, uma vez que o Instituto (então conhecido
como Escola de Frankfurt) fora fechado com o advento do nazismo. Assim, a teoria se
desenvolve partir de parâmetros marxistas e de uma crítica à racionalidade instrumental. Para
isso, utilizava o conceito de indústria cultural para explicar, essencialmente, conforme assevera
Wolf (2012, p 73), a “separação e (...) a oposição entre indivíduo e sociedade (como) o resultado
histórico da divisão de classe”. Dela surgiu o conceito de indústria cultural.
1 Não pretendemos entrar em pormenores das teorias da comunicação uma vez que o objetivo deste trabalho reside
na questão discursiva do jornalismo, que entendemos ser uma fase mais recente dos estudos da comunicação.
16
Já na segunda fase, as teorias mais recentes – estabelecida por Wolf (2012) como teorias
do jornalismo – enfatizam uma preocupação a longo prazo no estudo dos efeitos de
comunicação, conforme colocamos. A primeira destas linhas é representada pela hipótese2 da
agenda-setting ou hipótese do agendamento. Nela, há a ideia de que a mídia é a instância
responsável por impor os assuntos que irão ao conhecimento das pessoas, algumas vezes
destacando um determinado fato, mas, em contrapartida, omitindo outros, ao sabor de seus
interesses pré-estabelecidos.
A teoria do newsmaking é a segunda teoria que faz parte dessa fase mais atual dos
estudos da comunicação. Essencialmente, duas perguntas definem bem seu âmbito: “Qual
imagem do mundo passam os noticiários radiotelevisivos? Como essa imagem se correlaciona
com as exigências cotidianas da produção de notícias nas organizações radiotelevisivas?”
(GOLDING-ELLIOTT, 1979, p.1 apud WOLF, 2012, p. 193). Assim, na “criação da notícia”
(tradução do termo que dá nome a teoria), torna-se importante entender o contexto que envolve
a produção da informação. Para esse quadro teórico, também é preciso considerar as condições
e restrições ligadas à organização do trabalho, pois são elas “que determinam a definição de
notícia, legitimam o processo de produção e contribuem para prevenir as críticas do público”
(GARBARINO, 1982, p. 12 apud WOLF, 2012, p. 195). Essas condições é que determinaram
a noticiabilidade de cada informação, julgando assim se estas são aptas ou não a serem
publicadas. Estas mesmas condições são denominadas por alguns autores como ‘valores-
notícia’. Portanto, são eles que valorarão um fato que poderá ser publicado ou não.
Tais linhas explicam porque as notícias são como são a partir de óticas bastante
específicas que, de uma maneira geral, podem ter sido revistas pelos estudos mais recentes –
contudo, não nos debruçaremos sobre estes dois primeiros momentos dos estudos da
comunicação uma vez que consideramos mais adequado à nossa pesquisa abordarmos o terceiro
momento, de acordo com os objetos empíricos selecionados.
Uma terceira linha, que emerge a partir da década de 1960, pode ser destacada nos
estudos de comunicação por, diferentemente das anteriores, levar em consideração a
estruturação discursiva da notícia e dos processos noticiosos. Tal abordagem direciona o estudo
para o campo específico de como um evento se transforma em um acontecimento após uma
série de mecanismos de semantização específicos da prática jornalística. Portanto, é nesse
raciocínio que este trabalho pretende desenvolver seu percurso teórico-metodológico: a partir
2 Embora conste como teoria em alguns livros, trataremos essa ideia do agendamento como hipótese, uma vez que
Hohlfeldt (1997) assim a coloca por não ser um paradigma fechado e envolto à concretudes metodológicas.
17
da estruturação do discurso jornalístico. Aqui, a notícia se assenta em determinadas bases que
a conformarão.
1.2. OS TRÊS PONTOS DA CONFIGURAÇÃO DISCURSIVA
Este procedimento discursivo – por nós percebido como fulcral para o entendimento da
comunicação como um processo –, de acordo com Charaudeau (2012), pode ser percebido
como uma sequência de bases cruciais: a mecânica de construção dos sentidos; a natureza do
saber que é transmitido pelo acontecimento; e o efeito de verdade – assim interpretado pelo
receptor. O presente trabalho se insere nessa linha de estudos da comunicação: mais
especificamente, remeteremos ao uso dos estudos do discurso para aprofundarmo-nos no ethos
discursivo, a fim de entendermos como se constrói a informação jornalística nos programas
estudados, a partir da configuração de um discurso que constrói um enunciador jornalístico
bastante específico e historicamente marcado.
1.3 A MECÂNICA DAS CONSTRUÇÕES DE SENTIDO DA NOTÍCIA
Se é no discurso que buscaremos aprofundar nosso estudo, visando entender os
meandros que caracterizam a informação jornalística, é preciso compreender como a notícia se
constitui, desde sua observação por parte do sujeito-jornalista. De acordo com Rodrigues (1990,
p. 2), a notícia em si é “uma espécie de acontecimento segundo, provocado pela própria
existência do discurso jornalístico”. Com tal entendimento, é possível afirmar que o
‘acontecimento jornalístico’ será conformado por parte do sujeito-jornalista que o produziu e
do veículo midiático que o divulgou. Aqui, cabe ressaltar, a notícia será um tipo de produto
final composto pelo relato do observador de um acontecimento jornalístico somado aos critérios
do veículo que ao produz, podendo ser moldado de acordo com circunstâncias que envolvam
linha editorial do veículo, por exemplo. Portanto, após constituída, a notícia trará consigo um
outro acontecimento em sua própria narrativa.
É justamente nesse caminho que a mecânica de construção do sentido da notícia se
compõe por um duplo processo, segundo Charaudeau (2012): transformação e transação.
No processo de transformação, aponta Charaudeau (2012, p. 41), “há o movimento de
“transformar o ‘mundo a significar’ em ‘mundo significado’, estruturando-o segundo um certo
número de categorias que são, elas próprias, expressas por formas”. Nisso, tais categorias agirão
na identificação dos seres do mundo “nomeando-os”, “qualificando-os” com determinada
propriedades, “narrando” as ações destes seres, “argumentando” o motivo dessas ações e
18
“modalizando-os” conforme suas atitudes e ações (CHARAUDEAU, 2012). Pensando nos
programas jornalísticos de cunho popularesco, vislumbramos a participação dos personagens
retratados como algo fulcral na transformação da notícia: um crime – talvez a temática mais
abordada em tais programas –, por exemplo, envolverá a vítima, o criminoso e, possivelmente,
a polícia, daí prosseguindo com a narrativa do ocorrido a partir da identificação destes três
personagens. Em síntese, o processo de transformação deve: “descrever (identificar-qualificar
fatos), contar (reportar acontecimentos), explicar (fornecer as causas desses fatos e
acontecimentos)” (CHARAUDEAU, 2012, p. 41).
No processo de transação, o sujeito produtor do ato linguístico dará uma significação
psicossocial a seu discurso, conferindo a este um determinado objetivo. Retomando o exemplo
que trouxemos acima, de uma reportagem sobre um crime, é no processo de transação que os
seres identificados – representados por nossos personagens – tomarão o significado psicossocial
que o sujeito-jornalista lhes imporá. Disso decorre a base da reportagem: o ‘sofrimento’ da
vítima, a ‘audácia’ do criminoso e a busca pela justiça por parte da instituição que deve manter
a ordem. Aqui se coloca, portanto:
as hipóteses sobre a identidade do outro, o destinatário-receptor, quanto a seu
saber, sua posição social, seu estado psicológico, suas aptidões, seus interesses
etc.; o efeito que pretende produzir nesse outro; o tipo de relação que pretende
instaurar com esse outro e o tipo de regulação que prevê em função dos
parâmetros precedentes (CHARAUDEAU, 2012, p. 41).
Ainda neste processo de transação, podemos inferir que os sujeitos interagirão conforme
suas contribuições enquanto participam do jogo comunicativo: haverá uma espécie de
circulação de um objeto de saber que um pode possuir e o outro não, pois um deles será o
responsável por transmitir, enquanto o outro ficará com a função de receber, compreender e
interpretar, sofrendo assim uma alteração em seu estado inicial de conhecimento. De tal modo,
é no ato de informar – processo em que a notícia se insere – que o processo de transação se
insere.
O processo de transação comandará o processo de informação, ainda conforme
Charaudeau (2012). Esquematizando a constituição da notícia, teremos:
19
Figura 1 – O esquema constitutivo da notícia
Fonte: Charaudeau (2012, p. 42)
Assim, para entendermos as estruturações discursivas da notícia é preciso considerar,
ainda, que há uma diferença fundamental entre o acontecimento e a notícia. Fatores como o
olhar subjetivo do sujeito jornalista, as estratégias dos veículos para legitimar a notícia e até
mesmo a linha editorial destes veículos influenciam o processo de transformação de
acontecimentos à notícias, conforme apontamos acima.
1.4 O ACONTECIMENTO E A NOTÍCIA
Partindo da premissa de que há jornalismo – ou deve(ria) haver – no momento em que
ocorre a ruptura de um fato, ou seja, a ‘quebra’ da normalidade, entende-se que esse
acontecimento interessa ao veículo de comunicação, pois ali está algo novo a ser publicado.
Certeau (1994, p. 286) entende que “o grande silêncio das coisas muda-se no seu contrário
através da mídia”. Contudo, há indagações acerca deste momento em que a notícia surge.
Também é preciso considerar o posicionamento do jornalista enquanto profissional.
No processo de produção da notícia, as etapas de seleção dos assuntos que tornar-se-ão
pautas, a metodologia empregada na apuração destes, o sujeito-jornalista que se insere no
código deontológico de sua profissão, sua escrita e até mesmo a aceitação do seu grupo de
colegas profissionais, acaba por caracterizar uma identidade profissional e, também, de um
sistema de referências que compõe a definição de um saber de grupo. Essas ‘regras do meio’
denunciadas na produção noticiosa não denotam somente aquilo que os jornalistas estereotipam
de si mesmos, mas também implica em uma correlação direta com o “fazer notícia”, graças a
modos de produção inerentes à empresas jornalísticas e seus interesses.
Patrick Charaudeau (2012) assevera que algumas notícias podem extrapolar o ‘simples’
rompimento da normalidade, prolongando-se por mais tempo. É o caso de greves, conflitos,
20
casos de corrupção etc. Para ele, relacionar a origem da notícia à ruptura de algo, ou seja, a um
acontecimento, seria como confundir o próprio acontecimento e o surgimento deste
acontecimento. “Propomos chamar de ‘notícia’ a um conjunto de informações que se relaciona
a um mesmo espaço temático, tendo um caráter de novidade, proveniente de uma determinada
fonte e podendo ser diversamente tratado (CHARAUDEAU, 2012, p. 132).
Neste caminho, Traquina (2005) aponta o que, em sua opinião, poderia ser a essência
do sistema noticioso:
Podemos imaginar um sistema noticioso que desdenhasse o raro em favor do
típico, que ignorasse o proeminente, que dedicasse tanta atenção ao datado
quanto ao atual, ao legal como ao ilegal, à paz como à guerra, ao bem-estar
como à calamidade e à morte (STEPHENS, 1988, p. 43 apud TRAQUINA,
2005, p. 55).
Já para o teórico Rodrigo Alsina (2009, p. 133), há uma diferença básica entre o
acontecimento e a notícia: “Poderíamos diferenciar o acontecimento da notícia dizendo que o
acontecimento é uma mensagem recebida enquanto que a notícia é uma mensagem emitida”.
Neste primeiro momento, o autor, basicamente, define que a notícia reside em um fenômeno de
geração do sistema, enquanto o acontecimento faz parte da percepção desse sistema. Em outras
palavras, o acontecimento observado passa pela questão da subjetividade do sujeito – em se
tratando do sujeito-jornalista –, e a notícia é o relato da observação deste acontecimento. De tal
modo que, segundo Charaudeau (2012, p. 131), “para que o acontecimento exista é necessário
nomeá-lo”. E aí se constitui a práxis jornalística, uma vez que:
o acontecimento só significa enquanto acontecimento em um discurso. O
acontecimento significado nasce num processo evemencial que (...) se
constrói ao término de uma mimese tripla. É daí que nasce o que se
convencionou a chamar de “a notícia” (CHARAUDEAU, 2012, p. 131-132).
Ainda de acordo com Alsina (2009), o processo de produção da notícia é complexo
desde o nascer do acontecimento e não será preciso entender esse próprio acontecimento como
algo além da construção social da realidade do sujeito. Nesse ponto, Stuart Hall (1981, p. 364
apud ALSINA, 2009, p. 134), ressalta que “dar sentido é nós mesmos nos localizarmos dentro
dos discursos”. Dessa maneira, o próprio sujeito observador – nesse caso representado pelo
receptor da notícia gerada por um acontecimento – é que irá conferir sentido ao que vê, lê ou
ouve, significando a partir de seu retrato de mundo.
21
O sentido desta notícia, portanto, residirá no processo de interpretação do receptor. Nele
é que as notícias deterão efeitos e valores que a poderão ser entendida como ‘verdadeira’.
Tuchman (1976, p. 94 apud TRAQUINA 2005, p. 17), aborda um meandro importante do
discurso noticioso: “a notícia, através dos seus enquadramentos, oferece definições da realidade
social; conta ‘estórias’”. É neste caminho que o discurso jornalístico entorna efeitos de real em
sua essência.
1.5 O ‘REAL’ E AS CONSTRUÇÕES DE VERDADE NA PRODUÇÃO NOTICIOSA
A partir dos motivos expostos anteriormente, entendemos que o próprio conceito de
verdade no jornalismo não é, senão, uma construção discursiva, que tem como base um saber
narrar específico, inscrito nas regras profissionais do meio. Este narrar que faz parte de um
relato do acontecimento, não de uma narrativa criada a partir de um ponto de vista adotado pelo
sujeito que presenciou o acontecimento, de acordo com Traquina (2005). Isto porque,
assumindo essa proposição de que há uma narrativa criada, a legitimidade profissional dos
jornalistas pode ser colocada em jogo, pois: “Estes (os jornalistas) resistem bastante à noção de
que a notícia não é um relato mas uma construção” (HALL, 1984, p. 4 apud TRAQUINA, 2005,
p. 17).
O discurso jornalístico da televisão – veículo de comunicação dos objetos que
estudamos neste trabalho – engendra universos de sentidos ainda mais complexos do que as
notícias do impresso, graças à capacidade de unir os sentidos da audição, da fala e da imagem
– do visual em si. Essa estruturação de sentidos da televisão é, para Charaudeau (2012),
altamente solidária entre fala e imagem, ao ponto de ser difícil apontar qual das duas é mais
importante. A capacidade única da televisão envolve uma sequência temporal breve, que
sobrepuja a instância dos que a observa, norteando este olhar para os dramas de mundo
apresentados3. Portanto, “pode-se dizer que a televisão cumpre um papel social e psíquico de
reconhecimento de si através de um mundo que se fez visível” (CHARAUDEAU, p. 112).
O contato da audiência com a construção midiática do real se dá a todo tempo. A
instituição do real, por meio da informação, se dá “desde a manhã até a noite, sem pausa. (...)
Articulam nossas existências ensinando-nos o que elas devem ser” (CERTEAU, 1994, p. 287).
E isto é observado em reportagens televisivas, como nas exibidas pelo Documento Especial,
Aqui Agora e Balanço Geral, por meio de uma expressão reflexiva. Através de um tipo de
3 Os programas estudados por este trabalho, de cunho popularesco, parecem trabalhar bem com este método de
definir o olhar da audiência aos dramas do mundo. Cenas explícitas de violência, como a exibição de cadáveres,
por exemplo, atestam isso.
22
realismo, o relato do sujeito-jornalista contará com alguns elementos que imbricarão esse efeito
de realidade quando:
Passa ainda por uma nova definição do estatuto da personagem (que sai do
anonimato e se torna protagonista num perfil intermédio entre o herói da
tragédia e o da farsa, por vezes oscilando entre um e outro) e por uma
representação do espaço por formas fechadas, puras e abstractas, pela criação
de um “lugar fechado” onde a história contada se possa analisar como uma
série de reviravoltas e manobras (PONTE, 2005, p. 45).
Desta forma o real passa a conferir uma certa legitimação junto ao telespectador. Porém,
no discurso midiático também há estratégias que visam conferir ‘verdade’ ao seu conteúdo, de
diferentes maneiras, conforme abordaremos a seguir.
1.6 EFEITO DE VERDADE E VALORES DE VERDADE
Para entendermos a forma como as notícias são construídas discursivamente é
importante esmiuçarmos a diferenciação entre valor de verdade e efeito de verdade. Para
Charaudeau (2012), valor de verdade é o conceito que coloca a verdade como algo intrínseco à
boa oratória e às técnicas de saber dizer e definir paradigmas do mundo, assim representando
uma verdade. Desta forma, a verdade seria cunhada através de um conjunto de técnicas
objetivas utilizadas para relatar algo que seja encarado como legítimo. Estratégias que visam
valor de verdade a um discurso vão desde uma boa retórica até construções textuais rebuscadas,
que soem como legítimas devido ao teor ‘erudito’.
Por outro lado, e ainda na coxia de Charaudeau (2012), efeito de verdade está mais
ligado à subjetividade e a convicção do sujeito acerca de determinado assunto ou fato. O efeito
de verdade tem sua essência ligada à credibilidade de seu conteúdo, pois poderá ser considerado
como algo legítimo por seu teor crível. Assim, os tipos de discurso existentes afeiçoam seus
efeitos de verdade ao sabor de suas intencionalidades.
O discurso de informação modula-os segundo as supostas razões pelas quais
uma informação é transmitida (por que informar?), segundo os traços
psicológicos e sociais daquele que dá a informação (quem informa?) e
segundo os meios que o informador aciona para provar sua veracidade (quais
são as provas?) (CHARAUDEAU, 2012, p. 50).
Neste contexto, ainda para Charaudeau (2012), emergem verdades midiáticas que
sobrepujam o sentido através de especificações próprias. A verdade dos fatos coloca em riste a
23
questão do problema da autenticidade desses fatos; a verdade de origem, que questiona as
origens do mundo, do homem e dos sistemas de valores; e a verdade dos atos que, completando
essa tríade proposta pelo autor, emerge no momento de sua própria realização.
Todavia, há outros dois tipos de verdades inerentes ao espaço social, que podem
envolver a audiência através de estratégias predispostas no discurso dos veículos de
comunicação. São elas:
1. Verdade de opinião: Para Charaudeau (2012), esta verdade possui duas características
básicas: ela encontra embasamento em um sistema de crenças e pode ser
compartilhada pela maioria, o que confere um consenso quase que generalizado para seu valor.
Nas entranhas desta verdade, há opiniões comuns: a mais compartilhada por trabalhar com
enunciados simples de valor geral4, as opiniões relativas (discutíveis, mas geram convicção
graças a termos modalizados)5 e a opinião coletiva (na qual há a denotação de um julgamento
sobre os outros em uma categoria que os caracteriza)6.
2. Verdade de emoção: Esta verdade é aquela que encanta, provoca forte emoção,
podendo levar ao pranto do espectador. Ela é baseada na reação emocional que poderá provocar
no receptor pelo (re)trato dado a uma notícia – tal verdade está intrinsicamente ligada ao ethos
e ao pathos, que serão mais amplamente estudados7.
A própria construção das verdades possíveis na estruturação noticiosa, contudo, ainda
segundo Charaudeau (2012), se materializa em conteúdos narrativos específicos. Portanto, é na
notícia que as marcas discursivas são deixadas ao sabor da intenção dos jornalistas. Tal acepção
parece contravir aos ensejos da classe profissional jornalística. Conforme já mencionamos, os
jornalistas, enquanto insertos em sua classe profissional, parecem não tratar as notícias tanto
como narrativas, mas sim como relatos de acontecimentos (TRAQUINA, 2005).
4 Por exemplo: na abertura de uma das edições do jornalístico Aqui Agora, em 1995, o apresentador Ivo Morganti
diz, antes de anunciar os destaques daquela edição: “Daqui a pouquinho nós vamos começar o Aqui Agora, que
traz reportagens que mostram a vida como ela é”. 5 Um exemplo disso pode ser observado na edição “Perdidas na Noite” do programa Documento Especial, exibida
em 1989, o apresentador Roberto Maya refere-se aos travestis da seguinte maneira: “Fazendo da noite o seu passeio
público, os travestis desfilam a sua ambiguidade” 6 Em outra atração estudada por este trabalho, o Balanço Geral, é comum encontrar afirmações que generalizam
suspeitos como “vagabundos”, mesmo que não haja provas do crime (re)tratado. 7 Na edição de setembro de 1991 do programa Aqui Agora (uma das atrações estudadas por este trabalho), quando
são exibidas imagens de um sequestro de um ônibus em Apucarana-PR, durante a cobertura feita pelo programa o
repórter César Tralli narra o momento em que um dos sequestrados é assassinado dentro do ônibus, sob a imagem
do tiro destruindo os vidros frontais do veículo e da vítima sendo atingida. Ainda nesta reportagem, são exibidos
os corpos das vítimas fatais: o sequestrado, um dos sequestradores e um ex-policial rodoviário, que assistia ao
desenrolar do sequestro e fora atingido mortalmente.
24
Em vista das ricas contribuições teóricas de Charaudeau (2012), propomos a ampliação
de algumas categorias de efeito de verdade prementes aos nossos objetos empíricos.
Objetivamos, assim, adequar o escopo teórico à metodologia que percorrerá nossa pesquisa.
Nas verdades de opinião parecem tangenciar determinadas estratégias discursivas. Em
programas popularescos, as opiniões são quase sempre emitidas pelo apresentador e/ou pelo
comentarista. No momento em que expressa sua opinião, quase sempre a imagem se volta para
uma cena que ilustra o fato comentado: no caso de reportagens sobre crimes, a edição do
programa exibe o momento em que a violência fora cometida. Essa estratégia editorial, já
adotada desde nosso objeto empírico mais antigo, o Documento Especial, reforça ainda mais a
identificação da audiência com a verdade. Ainda na verdade de opinião, também nos guarda
atenção ao estado do apresentador/comentarista: ao proclamar seu comentário, quase sempre
observamos um aumento no tom de voz, clarificando um estado nervoso por parte do sujeito-
jornalista, dando a entender sua indignação. Em reportagens do Aqui Agora, observamos isso
no repórteres Wagner Montes e Gil Gomes; no programa mais recente, o Balanço Geral, é
possível encontrar esse posicionamento mais rude nos apresentadores Geraldo Luís e Luiz
Bacci, que elevam ou diminuem seu tom de voz conforme o assunto tratado no programa.
Na verdade de emoção, observamos recorrências discursivas que preenchem a estrutura
televisiva: a fim de se obter um efeito de verdade baseado na emoção, os produtores dos
programas popularescos trabalham com imagem visual, áudio e fala8. Em reportagens que
versem sobre violência, é comum observar o posicionamento do sujeito-jornalista a partir de
uma fala que preconiza ‘cenas fortes’ e ‘revoltantes aliado a uma trilha dramática e a uma
aproximação da câmera nas cenas comentadas. Soma-se a isso o transcorrer do programa, em
que uma reação humana de desespero, como um choro, uma súplica ou um surto de raiva,
também é explorado por tais programas. Estratégias estas que, provavelmente, surtirão efeitos
de verdade na audiência.
Isto posto, os conceitos de valor de verdade e efeito de verdade, mostram que há uma
relação dialética entre esses dois ‘fenômenos’, e daí é que o ‘mundo’ nunca será transmitido
como sua instância, pois ela passará por um trabalho de construção de sentido por um sujeito
produtor, ao passo em que o sujeito observador é que conferirá os meandros dessa notícia.
Os programas que analisamos, de cunho popularesco, oferecem efeitos e valores de
verdade à audiência, que se identifica com estes programas talvez até por conta do sabor de
8 Adentraremos mais essas recorrências discursivas no capítulo 4 da presente pesquisa.
25
‘realidade’ que estes apresentam em sua constituição. Para entendermos mais disso,
consideraremos a cultura popular.
1.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE CULTURA POPULARESCA NA TELEVISÃO
Os programas analisados por este trabalho9 visavam transpassar à audiência
representações do cotidiano social desta, talvez com o intuito de vislumbrar identificação. No
final da década de 1980, o Documento Especial apresentava temáticas pouco exploradas pela
televisão, como na edição em que exibia uma noite carioca violenta; o Aqui Agora exibia
reportagens policiais, de conflitos e até mesmo de assuntos mais populares(cos), como briga de
vizinhos; o Balanço Geral, por sua vez, também explora principalmente reportagens policiais,
mas, de forma semelhante aos seus precursores, abre espaço para o inusitado. Essas temáticas
parecem fazer parte de uma cultura popularesca (re)tratada por esses programas.
Cabe ressaltar que parece haver uma confusão entre os termos ‘popular’ e ‘popularesco’,
uma vez que ambos podem ser utilizados para indicar situações que talvez não lhes diz respeito.
A fim de tentarmos trazer esse conflito às nossas discussões, buscaremos as definições de
popularesco em termos semânticos, e também recorreremos ao que autores consagrados pensam
sobre.
O dicionário online Aulete10 define duplamente o termo popularesco, a saber: “1. Que
é vulgar ou de baixa qualidade: programa de televisão popularesco; 2. Que imita o que é
popular”. Em ambas definições, percebemos um certo sentido pejorativo ao termo, atrelando
este à baixa qualidade e à uma imitação do popular.
Nessa linha, França (2009) elucida diferentes significações ao termo, esclarecendo que
daí provém relações com o povo, que se destina e ele e lhe é característico. Voltando o termo
ao significado de cultura, “popular” representaria o que é produzido pelo povo, oriundo do
próprio povo.
Martín-Barbero (2001) analisa a cultura popular sob um viés histórico, investigando de
seu surgimento à sua viabilidade enquanto cultura ‘própria’. Nesse caminho, o autor aborda a
ideia de massa, destacando que esta não se trata de um processo isolável, mas uma forma recente
de sociabilidade. Deste modo, propõe que: “pensar o popular a partir do massivo não significa
(...) alienação e manipulação, e sim novas condições de existência e luta, um novo modo de
funcionamento de hegemonia” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 322). Todavia, França (2009,
9 Discorreremos mais sobre nossos objetos empíricos no terceiro capítulo do nosso trabalho. 10 Fonte: Aulete Digital. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/popularesco>. Acesso em: 29 jul. 2016.
26
p. 40) aponta que a cultura popular pura, hoje, já está quase extinta, e que os representantes
essências dessa cultura já não a produzem mais: “a ideia do popular enquanto produzido pelo
povo se esvazia: nesta nova dinâmica cultural, a ele só cabe o papel de recepção”. Deste modo,
o conteúdo midiático exibido não passa de algo investido de traços do popular: “Pode-se
também chamar de popular aquilo que se dirige ao povo e que, buscando ativar o consumo
pelos mecanismos de identificação, se parece com ele, assume algumas de suas características”
(FRANÇA, 2009, p. 41).
Buscando essa identificação do povo junto à TV, sobretudo aos tipos de programas que
observamos, Vera França (2009) mergulha na questão ao resgatar conceitos de autores
consagrados da comunicação. Citando Hall (2003a, 2003b), a autora relembra que, para os
autores ligados aos cultural studies, essa ideia de “popular” não remete somente ao oposto da
cultura elitista; na verdade, essa cultura popular seria uma segunda mão em comparação à
cultura erudita. Ainda no escopo de Hall, a autora observa que este popular seria influência dos
mídias na sociedade: “Não se trata de adotar o termo ‘cultura popular’ para designar o conjunto
da produção cultural difundida pelos modernos meios de comunicação” (FRANÇA, 2009, p.
225). Não seria delirante interpretar, portanto, que tal como fragmentos de cultura popular se
misturam ao conteúdo produzido pela televisão nos programas estudados, a que entendemos
como popularescos, projeções fragmentárias de personagens também são criadas nessas
atrações. Ao colocarem a violência como integrante da cultura de sua audiência, o próprio
veículo televisivo atua como agregadora de esterotipizações dos retratados. Isso posto,
utilizaremos o termo popularesco não a partir de seu sentido pejorativo, nem tampouco
relacionado a uma cultura popular mítica, mas sim, a partir das representações que os produtores
televisivos fazem daquela que seria a cultura do povo, inerente ao espaço popular.
A partir deste momento, nessa relação intersubjetiva entre o popular enquanto audiência
e enquanto produtor de conteúdo é preciso considerar a relação entre o sujeito-jornalista –
produtor da notícia – e o leitor. Há várias formas de abordar metodologicamente essa relação.
No presente trabalho, adotaremos uma abordagem que considera o leitor modelo como conceito
chave de análise para, em seguida, considerarmos o ethos discursivo.
1.8 O LEITOR EMPÍRICO E O LEITOR-MODELO
Entre os estudos da comunicação e os estudos da linguagem há determinados limiares
no que tange à constituição da notícia. Um deles refere-se justamente à relação discursiva
estabelecida entre autor e leitor. Os produtores de um discurso podem tentar, antecipadamente,
27
agir para capturar a audiência – isso em discursos dos mais variados tipos: do publicitário ao
informal. Nessa busca pelo que pode conquistar o leitor, o produtor do discurso irá vislumbrar
o que Eco (1968) chama de leitor-modelo.
O já amplamente discutido esquema da comunicação, que envolvia, tão somente, um
caminho linear entre emissor, mensagem e receptor, não é mais aceito nos estudos modernos
da comunicação. Isto porque este esquema desconsidera outros efeitos, como o feedback e o
ruído, por exemplo. Assim, podemos entender os componentes da comunicação num esquema
que envolva os elementos:
A fonte (ou emissor) é a originadora da comunicação.
A mensagem é o conteúdo da comunicação, a informação a ser trocada.
O codificador traduz a mensagem para um formato que não pode ser
diretamente interpretado pelos sentidos humanos.
O canal é o meio ou sistema de transmissão utilizado para transferir a
mensagem de um lugar a outro.
O decodificador reverte o processo de codificação.
O receptor é o destino final da comunicação.
Um mecanismo de resposta (feedback) entre a fonte e o receptor pode ser
utilizado para regular o fluxo da comunicação.
Ruído é qualquer distorção indesejada ou erro que pode ser introduzido
durante a troca de informação (SCHRAMM, 1982 apud STRAUBHAAR e
LAROSE, 2004, p.5).
Portanto, há questões a serem elucubradas no relacionamento emissor-receptor.
Umberto Eco (1968) modaliza a constituição da notícia justamente na relação entre o que ele
chama de “Emitente” ou “Autor” – o sujeito-jornalista que produz a notícia – e “leitor” ou
“destinatário” – o público desta notícia. Para ele, o texto “prevê o leitor”, pois os códigos
trocados por emitente e destinatário podem diferenciar-se. A fim de adentrarmos nas definições
de leitor-modelo, inicialmente resgatamos o entendimento acerca de um texto – o qual julgamos
ser semelhante ao discurso televisivo. Para Eco (1968, p. 36): “um texto representa uma cadeia
de artifícios de expressão que devem ser atualizados pelo destinatário”. Aqui está posta a
complexidade do texto: sua relação íntima com o não-dito11, uma vez que determinadas cadeias
serão preenchidas pela audiência através do subentendido. Ou seja, no que não está colocado,
mas traz em seu bojo significância por representar sentido, é que o texto vai contornando
interpretações ao leitor.
11 Abordaremos mais sobre não-dito no capítulo 4 desta pesquisa, no qual discutiremos nossas metodologias
norteadoras.
28
É nesse ponto de previsão que o emitente irá produzir seu discurso buscando atingir seu
leitor, mas também considerando as aptidões deste, conforme assevera Maingueneau (2004, p.
47):
Quando se trata de um texto impresso para um grande número de leitores, o
destinatário, antes de ser um público empírico, ou seja, o conjunto de
indivíduos que lerão efetivamente o texto, é apenas uma espécie de imagem à
qual o sujeito que escreve deve atribuir algumas aptidões.
Seguindo este raciocínio, Eco (1968) aborda diferentes tipos de competências entre
emitente e leitor. Serão elas as responsáveis por essa identificação buscada pelo autor. Nesse
sentido, o autor relata uma situação em que quando o emitente escreve um determinado texto
utilizando um vocábulo incomum, há a premissa de que o destinatário possui uma determinada
competência gramatical que o permita entender o contexto da mensagem. “Dizemos então que
toda mensagem postula uma competência gramatical da parte do destinatário, mesmo que seja
emitida numa língua conhecida somente pelo emitente” (ECO, 1968, p. 36).
Maingueneau (2004, p. 41) elucida estas competências como integrantes das “’leis do
discurso’ que regem a comunicação verbal”. A “competência genérica”, uma das competências
apresentadas, faz menção ao domínio das leis do discurso e dos gêneros do discurso. Por sua
vez, estas serão fundamentais para a “competência comunicativa” do indivíduo, pois será graças
a ela que haverá discernimento necessário para produzir e interpretar enunciados. A
“competência enciclopédica”, por si, será aquela responsável por trazer ao indivíduo um
entendimento sobre o que está a sua volta. Por exemplo: em uma sala de cinema, o indivíduo
sabe, graças à competência enciclopédica, que não deve fazer barulho para não atrapalhar os
demais que assistem ao filme; sabe, também, que é proibido fumar, para não causar incêndio
no cinema.
Outro ponto trazido por Eco (1968) faz menção ao ‘preenchimento’ semântico que o
leitor faz em determinados trechos de um texto, conforme apontamos no início do presente
item. Isso pode ser ilustrado quando uma situação é colocada através de um diálogo sem
pormenorizações. Portanto, o leitor age configurando os espaços deixados no texto ao sabor das
informações que lhe foram passadas anteriormente no texto. Outras considerações sobre o
trecho textual por parte do leitor imbricam a competência enciclopédia destes, que será acionada
quando houver tais espaços em brancos. Essa elucubração se entrelaça bem ao discurso
jornalístico, pensado previamente pelo sujeito-jornalista que o produz. A relação entre o autor
do discurso e sua audiência será decisiva em duplo sentido, conforme o pensamento de Ponte
29
(2005, p. 27), pois haverá “promotores e atores interessados e intervenientes na informação, por
um lado, e leitores comuns sem acesso nem controle sobre a ação reportada, por outro”.
Investido nessa ideia, o eminente deve projetar, fazer um cálculo e uma aposta sobre
quais são as competências partilhadas entre ele próprio e o seu leitor. Assim, estará prevendo o
que Eco chama de “Leitor-Modelo”, que será capaz de movimentar-se no texto de acordo com
o próprio autor.
No entanto, o autor também pode(rá) instituir a competência do “Leitor-Modelo”. Em
um texto literário que narre uma história antiga, por exemplo, o autor deve imaginar que seu
Leitor-Modelo não conhece a fundo os meandros da época narrada. Nesse caso, o autor propõe
uma inserção de competência no leitor, de modo que este compreenda a história conforme o
ensejo do autor.
Portanto, prever o próprio Leitor-Modelo não significa somente “esperar” que
exista, mas significa também mover o texto de modo a construí-lo. O texto
não apenas repousa numa competência, mas contribui para produzi-la (ECO,
1968, p. 40).
Outro aspecto importante a ser observado nesse processo é o da diferenciação entre
“Leitores-Modelo” que podem existir. Maingueneau (2004, p. 50) exemplifica essa distinção
ao citar textos jornalísticos que trabalham o “Leitor-Modelo” a partir da “exclusão (público
‘temático)” e aquelas que “excluem um mínimo de categorias de leitores (públicos
‘generalistas’). O título das reportagens televisivas12 – no caso dos objetos deste trabalho – é
um bom exemplo desta distinção.
Neste jogo de visualização de um “Leitor-Modelo” pelo autor, há uma imbricação mútua
entre a gênese do ‘empírico’ para o “Modelo”.
Se o Autor e o Leitor-Modelo constituem duas estratégias textuais, então nos
encontramos diante de uma dupla situação. De um lado, conforme dissemos
até aqui, o autor empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, formula
uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da própria
estratégia, configura a si mesmo autor na qualidade de sujeito do enunciado,
em termos igualmente “estratégicos”, como modo de operação textual (ECO,
1968, p. 47).
12 Uma das edições do Documento Especial trazia o título de Delírio na madrugada, por fazer referência à vida de
uma travesti, que dava aulas pela manhã, caracterizado como professor, e vestia-se como mulher em seus shows
noturnos.
30
Por consequência, para a construção do leitor-modelo será necessário a construção de
um ethos por parte do Emitente, que passa a ser trabalhado como uma noção da imagem de si
no próprio discurso. Isto é, ao tentar entender o “Leitor-Modelo”, o Emitente estará fazendo
uma imagem dele, buscando seu ethos.
Em suma, a partir do momento em que a comunicação passou a ser estudada sob a égide
da configuração discursiva, a estruturação da notícia recebeu uma maior atenção dos teóricos
da comunicação. Desde o acontecimento, que passa por uma série de olhares até virar notícia.
Os processos de transformação e transação irão contemplar o que partiu da observação do
sujeito-jornalista até que se torne notícia, efetivamente. Este ‘produto final’ será veiculado
investido de valores que confiram a ele “verdade”, sob os olhos da audiência, a partir de um
“efeito de real” discursivo. Neste procedimento, os veículos de comunicação fazem um certo
exercício de projeção de sua audiência, através de um modelo de leitor. Com isso, busca-se
projetar o ethos do leitor – telespectador, no caso de nossos objetos –, a partir de um ethos
próprio das peças jornalísticas – Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral – que
observamos para esta pesquisa.
Partindo dessas premissas, iremos discutir, no próximo capítulo, o modo como o ethos
(principal conceito operatório desse trabalho) se constitui discursivamente. Abordaremos, a
princípio, sua teorização geral a partir da retórica Aristotélica, ao lado do logos e do pathos. A
seguir, trabalharemos com a noção de credibilidade do sujeito produtor do discurso, através de
seu ethos, e com os problemas que um ethos prévio pode trazer à audiência. Também
discutiremos a configuração do ethos jornalístico, a partir das características que envolvem o
exercício da profissão.
31
CAPÍTULO 2 – ETHOS E DISCURSO JORNALÍSTICO
Neste capítulo abordaremos, primordialmente, o conceito de ethos – mote do nosso
estudo. Para tal, inicialmente elencaremos o estudo da tríade discursiva oferecida por
Aristóteles, a fim de abordarmos a constituição da retórica clássica e, posteriormente, as
atualizações do conceito trazidas por teóricos que observam a retórica a partir da vertente da
análise do discurso.
No longínquo período da antiguidade, alguns filósofos estudavam o ‘outro’ e suas
relações com o mundo e com os demais seres. Na Grécia, determinados estudos eram
direcionados a questões que envolvessem a eficácia de um discurso através do convencimento,
por meio da retórica. Em suma, é através de uma boa retórica que o orador de um determinado
discurso poderá persuadir sua audiência. Assim, com esse objetivo de buscar a persuasão, o
orador poderá se utilizar de uma retórica adequada com o fim de projetar um ethos que
conquiste a audiência.
Todavia, ressalvamos que o ethos se constituirá de acordo com a enunciação empregada
pelo orador, não somente no enunciado em si. Ou seja, a carga ethópica desejada será
viabilizada a partir do movimento em que o proclamador do discurso mobiliza determinados
aspectos em sua fala – como a retórica, por exemplo –, e consegue ‘prová-los’ ao longo do
tempo. Recorrendo aos nossos objetos empíricos, citamos uma reportagem constante na edição
do Aqui Agora de 13 de fevereiro de 1995. Nela, o programa relata as mortes de um policial e
de um assaltante em confronto. Já na chamada, os apresentadores Ivo Morganti e Christina
Rocha demarcam a posição entre “bandido” e “o policial morto” ao chamarem a notícia
afirmando que bandidos matam covardemente um policial da ROTA. Na sequência, com a
entrada da reportagem, a viúva do policial é exibida por alguns minutos, enquanto chora em
decorrência de sua perda, ao passo em que não há qualquer menção ao nome do assaltante
também morto. Desse modo, o programa parece ter convencido a audiência a partir do ato de
enunciação; após enunciar o teor da reportagem na chamada, a edição se municiou de elementos
que comprovassem o enunciado. Tal constatação encontra base em Ducrot (1984, p. 201 APUD
MAINGUENEAU, 2001, p. 13), que coloca: “o ethos se mostra no ato de enunciação, ele não
é dito no enunciado”. Portanto, na observação desse ethos, premências subjetivas não
congregam valia, pois essa análise “trata-se de apreender um sujeito construído pelo discurso e
não uma subjetividade que seria a fonte de onde emanaria o enunciado” (FIORIN, 2016, p. 70).
Muito embora aponte que não é fácil conferir uma única definição à retórica, Júnior
(2005) asserta que esta consiste em uma forma de comunicação com fins persuasivos,
32
fundamentalmente. Aristóteles (2005, p. 123) também a define de maneira semelhante, quando
coloca que a retórica é “a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de
persuadir”.
2.1 A RETÓRICA ARISTOTÉLICA
Anteriormente ensinada e exercida pelos sofistas13, a retórica ganhou novas designações
após ser estudada e publicada por Aristóteles. Essencialmente, o filósofo baseou sua obra como
um estudo sobre as técnicas de um discurso proclamado em público com fins persuasivos.
Junior (2005) ainda aponta que Aristóteles centra suas críticas aos teorizadores da retórica – os
sofistas – em alguns pontos, a saber: seus precedentes (os sofistas) voltaram suas atenções ao
discurso judicial em detrimento aos demais gêneros; também deram mais ênfase à emoção –
elementos pathéticos – do que à argumentação lógica – logos –; e a demasiada importância à
estrutura formal do discurso. Deste modo, a retórica aristotélica pode ser considerada uma teoria
da argumentação persuasiva, utilizável para a interpretação de qualquer forma de discurso.
Como forma de argumentação, a retórica equivale à dialética, no sentido de que fora
reconhecida como conhecimento prático por Aristóteles. Isso implica que, com ela, um debate
pode ocorrer em ambos os lados: aquele que dominar melhor a arte, sairá ‘vencedor’. Ao
apontar diferenças em relação à retórica sofista, Aristóteles (2005) argumenta que a arte retórica
funda-se em provas, que podem ser inartísticas e artísticas. A primeira, que não será trabalhada
pelo orador, reside na evidência de contratos escritos de testemunhos, confissões sob tortura
etc; a segunda – esta sim técnica –, se baseia em argumentos de persuasão criados pelo autor
do discurso.
Outrossim, estas provas de persuasão fornecidas pelo discurso podem ser de três
espécies, a saber: algumas residem no caráter moral do orador; outras, na disposição em que o
ouvinte se coloca; e as seguintes naquilo que o discurso demonstra ou parece demonstrar. No
primeiro caso, das provas de caráter, o discurso do orador será colocado de tal maneira que
imprimirá credibilidade à audiência, por conta da ‘honestidade’ do autor do discurso – prova
comum aos três objetos desta pesquisa, representados pelos apresentadores. As provas que se
relacionam à disposição dos ouvintes são aquelas que conferem um teor crível ao orador graças
às emoções que a audiência sente em seu discurso. Aristóteles (2005, p. 97) assevera que “os
13 Intelectuais, pensadores e cientistas residentes na Grécia antiga, nos séculos IV e V a.C., que ensinavam por
meio de uma designação geral em áreas que não eram abordadas pelas escolas, como física, geometria, medicina
e retórica. Detinham técnicas avançadas do discurso, a ponto de convencer rapidamente sua audiência. Fonte:
InfoEscola. Disponível em: <http://www.infoescola.com/filosofia/sofistas/>. Acesso em: 01 dez. 2015.
33
juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio”. Essa prova
é bem corriqueira aos programas popularescos que analisamos aqui: em todos há o uso de drama
nas reportagens, através de alguns que choram por seus familiares mortos, cidadãos revoltados
com a violência etc. Por fim, a prova do discurso é aquela constituída através de um discurso
que mostre – ou pareça mostrar – a verdade. Relacionamos tal prova aos valores e efeitos de
verdade colocadas por Charaudeau (2012) no capítulo anterior – no qual descrevemos algumas
estratégias usadas pela mídia para obter esta prova de verdade do discurso.
Transcorrendo seu estudo sobre retórica, Aristóteles explica a persuasão através de uma
tríade que buscava dividir os meios discursivos que entusiasmam o auditório: ethos, pathos e
logos.
2.2 A TRÍADE DISCURSIVA QUE MOBILIZA A PERSUASÃO: ETHOS, PATHOS E
LOGOS
Como em um triângulo isósceles, podemos entender o ethos e o pathos de um lado,
representando a emoção – o que torna possível emocionar; e de outro lado o logos, que
representa o racional – este responsável pela razão. O pathos e o ethos são ligados ao
inconsciente do auditório. Isso porque, conforme pontua Charaudeau (2013, p. 113, citando
BARTHES, 1970, p. 211), pathos e ethos participam de “demonstrações psicológicas que não
correspondem (...) ao estado psicológico real do orador ou do auditório, mas ao que o público
crê que os outros têm em mente”. Em outras palavras, se projetar uma boa imagem junto à
audiência, o sujeito que profere o discurso será considerado credível, uma vez que assim ele
pareceu para sua plateia.
De tal modo, se o pathos é voltado para o auditório – por conta das paixões que
despertará –, o ethos será voltado para o orador – por ser este que imprimirá a credibilidade do
orador. Ainda neste esquema que envolve a trilogia aristotélica, Maingueneau (2008, p. 14
citando GILBERT) relaciona os ‘argumentos’ ao logos, as ‘paixões’ ao pathos e as ‘condutas’
ao ethos.
34
Figura 2 – Esquema da tríade retórica que explica a persuasão, proposto com Aristóteles
Fonte: Adam (2008, p. 94)
Conforme mencionamos, o logos, por sua vez, será constituído por elementos que
causarão convencimento nos receptores do discurso proferido pelo orador. Esse convencimento
se dará através da persuasão. Munido de estratégias discursivas, o orador – no caso dos objetos
desta pesquisa, os sujeitos-jornalistas –, buscará, em seu logos, os argumentos lógicos para
persuadir o auditório. Essencialmente, Serra (2008, p. 6, apud CASADEI, 2009, p. 22) coloca
que a persuasão – ponto chave da retórica – se dá “através do qual um orador, dotado de um
certo caráter ou credibilidade (ethos), procura levar um determinado auditório, com as suas
emoções próprias (pathos), mediante um discurso incluindo um certo conjunto de argumentos
lógicos (logos)”.
Abordando a definição de persuasão – termo chave no estudo retórico –, Citelli (2002)
ressalta que persuadir é sinônimo de submeter, atrelando ao termo um sentido de autoritarismo,
pois “quem persuade leva o outro à aceitação de uma dada ideia” (CITELLI, 2002, p. 13). No
intuito de persuadir sua audiência, o sujeito que proclama um discurso pode trabalhar com uma
mensagem que atinja a verdade ou não, bastando esta conter elementos que pareçam
verossímeis14. Essencialmente, basta ao orador organizar seus argumentos no discurso, pois
assim conseguirá que a audiência o encare como verdadeiro.
14 Conforme discutimos no item 1.4 do capítulo anterior.
35
Verossímil é, pois, aquilo que se constitui em verdade a partir de sua própria
lógica. Daí a necessidade, para se construir o “efeito de verdade”, da
existência de argumentos, provas, perorações, exórdios (...). Persuadir não é
apenas sinônimo de enganar, mas também o resultado de certa organização do
discurso que o constitui como verdadeiro para o receptor (CITELLI, 2002, p.
14).
Neste caminho, unificar os três elementos e aplicá-los significa essa persuasão e
convencimento do auditório com o discurso apresentado. Todavia, embora possam parecer
semelhantes à primeira vista, há diferenças entre as técnicas argumentativas da persuasão e do
convencimento, trazidas por Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005) em sua “Nova
Retórica”. Ao passo em que a persuasão se coloca como uma técnica retórica diante de um
auditório particular, o convencimento reside na busca pela adesão de todo ser racional
(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Mesmo que essa questão possa parecer
imprecisa, a matiz entre os termos reside na imprecisão, pois, ainda de acordo com Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2005, p. 33): “ao passo em que as fronteiras entre a inteligência e a vontade,
entre a razão e o irracional, podem constituir um limite preciso, a distinção entre diversos
auditórios é muito mais incerta”. Ainda assim, pensando no caso da televisão – veículo
midiático que abriga os objetos analisados por este trabalho –, Rocco, em sua análise, (1989, p.
56) coloca que: “considerando pertinente a definição do auditório da TV enquanto ‘auditório
particular’, (...) a argumentação do verbal na TV será muito mais de natureza persuasiva”.
Assim, quando o orador orienta-se com o intuito de ‘modelar’ a imagem projetada de
si, ele está deixando sua marca no discurso através de seu ethos. É com este conceito, provindo
da retórica e adaptado aos estudos discursivos, que observaremos como os programas
jornalísticos estudados por esta pesquisa – Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral
– alternaram a representação discursiva do jornalismo popularesco ao longo das últimas
décadas.
2.3 O ETHOS NA RETÓRICA ARISTOTÉLICA
Fundamentalmente definido como a constituição da imagem de si que o emissor do
discurso visa imprimir junto à audiência, o conceito de ethos, com raízes filosóficas, busca
explicar essa relação entre a natureza do indivíduo e como esta será projetada no auditório.
Quando desenvolve sua retórica, Aristóteles desempenha novas atribuições ao conceito. Assim,
Vergnières (1998, p. 5) coloca que o ethos “pode significar o temperamento natural de uma
espécie animal ou de um indivíduo, mas também a maneira habitual de ser e de se comportar”.
Todavia, não há uma definição precisa sobre o termo. Na tradução que coloca em seu livro,
36
Vergnières afirma que o termo ethos não é de fácil tradução, mas pode ser considerado como
uma conduta e um estado de humor, e completa: “é um termo pelo qual os gregos exprimem o
acordo mais ou menos bem-sucedido entre uma natureza particular e uma norma social” (1998,
p. 71)15. Assim, Aristóteles mostra que ethos seria o constante de nossos próprios atos. Isso
implica em uma construção de caráter. Retomando essa ideia, Vergnières (1998, p. 105) entende
que “o caráter não é mais o que recebe suas determinações da natureza, da educação, da idade,
da condição social; é o produto da série de atos dos quais sou o princípio”. De tal modo,
conforme mencionamos, o orador pode ser considerado também o autor de seu próprio caráter
no discurso que proclama, no ato da enunciação.
Ruth Amossy (2008, p. 9) define como o ethos é caracterizado no discurso ao dissertar
que “todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é
necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades nem mesmo que fale
explicitamente de si”. Em outras palavras, é em seu discurso que o locutor passará a imagem
de si para o público; caso tenha se saído bem, ele construirá um ethos positivo16 junto à crítica.
Todavia, a noção de ethos se inscreve de maneiras distintas quando pensada em relação ao teor
do trabalho em que é aplicada. Embora sua definição teórica pareça ser clara, trabalhar com o
conceito de ethos mobiliza determinadas particularidades, que variam conforme a disciplina na
qual ela será aplicada.
Se quisermos de fato explorá-la, torna-la operacional, somos obrigados a
inscrevê-la numa problemática precisa, privilegiando esta ou aquela faceta,
em função, ao mesmo tempo, do corpus que nos propomos a analisar e dos
objetivos da pesquisa que conduzimos. (...) O importante, quando somos
confrontados com essa noção, é definir por qual disciplina ela é mobilizada,
no interior de que rede conceitual e com que olhar (MAINGUENEAU, 2008,
p. 12).
Quando na retórica, o entendimento de ethos perpassava, conforme já vimos, uma tríade
discursiva que envolvia emoção, razão e imagem do orador ante a seu público. Ao longo do
tempo, a noção passou a ser trabalhada nos estudos discursivos, abordada por teóricos da análise
do discurso que a adaptaram quando trabalhada na metodologia.
15 A julgar por essa colocação de “norma social”, ao olharmos para nossos objetos remontamos a ideia da “tribo
jornalística” (TRAQUINA, 2005), no qual os indivíduos mantém certo código deontológico no ambiente
profissional. 16 Tais qualidades podem ser observadas no posicionamento dos apresentadores do Balanço Geral – um dos
objetos analisados por este trabalho. Após a exibição das reportagens, os apresentadores, na busca por projetar
uma imagem positiva, compartilham de opiniões que pode vir a ser replicadas pela audiência. Um exemplo disto
é quando comentam matérias de violência. Há, quase sempre, a distinção entre protagonista (polícia) e antagonista
(criminoso), baseado em uma dualidade que remete ao bem X o mal.
37
2.3.1 Ethos retórico e ethos a partir da análise do discurso
Embora trabalhado anteriormente pela retórica, Maingueneau (2008) ressalta que o
ethos retomou importância nas pesquisas a partir de problemáticas relativas ao discurso, não
mais inserido nos quadros da retórica. Desde 1958, quando passou a ser incorporado à Nova
Retórica de Perelman, segundo Charaudeau (2013), nos anos 1980 a noção de ethos passou a
ser trabalhada em termos pragmáticos e discursivos, inserida no quadro teórico da análise do
discurso pelo próprio autor (1984, 1987).
Para Maingueneau (1980, p. 45), o entendimento de ethos na retórica aristotélica pode
ser basicamente definido como: “as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente,
através de sua maneira de dizer: não o que diziam a propósito deles mesmos, mas o que
revelavam pelo próprio modo de se expressarem. Isso implica que o efeito deste ethos, ainda
na retórica aristotélica, reside no atravessamento e carregamento dos enunciados sem explicitar
sua função (MAINGUENEGAU, 1980). Assim, o ethos retórico não detém um sentido de
estabilidade discursiva, mas sim agrupa disposições estáveis que são apresentadas sob dois
pontos de vista: o político e o outro da idade e da fortuna. No ponto de vista político, o ethos
aristotélico indicava uma preocupação com o discurso a ser adotado em determinado ambiente
político: o discurso a ser proclamado para monarcas deveria ser um; para um auditório que não
fosse favorável ao regime monárquico, o discurso deveria ser outro. Nos demais pontos de vista,
Aristóteles indica a preocupação que o orador deve ter com o perfil do seu auditório, ou seja,
este orador deve engendrar um discurso que vise a persuasão através da identificação junto ao
auditório (MAINGUENEAU, 2008).
Na análise do discurso, todavia, o entendimento de ethos adquire novos contornos.
Pode-se recorrer, para esse entendimento, às ideias trazidas por Michel Pêcheux (1969 apud
AMOSSY, 2008) quanto ao reconhecimento dos interlocutores no discurso. Nesse
entendimento, cada um dos membros do processo comunicativo faz uma imagem de si próprio
e de seu interlocutor. Então, esse ethos decorrerá de ambos. Essas funções no processo de
comunicação são também exploradas por Maingueneau (1980). O autor aponta que a análise do
discurso se permite contemplar o ethos retórico a partir de um duplo deslocamento. O primeiro
deslocamento indica que na análise do discurso não deverá haver uma preocupação com o
próprio sujeito-orador que anseia atingir seu auditório, pois não é ele em si que atingirá o ethos
desejado, mas sim a formação discursiva deste. Nessa linha, “do ponto de vista da AD, esses
efeitos são impostos, não pelo sujeito, mas pela formação discursiva” (MAINGUENEAU,
38
1980, p. 45). Assim, o tom e o conteúdo do discurso são inseparáveis e devem ser considerados
conjuntamente.
Em outro ponto de deslocamento em relação à retórica, Maingueneau (1980) pondera
que a análise do discurso deve entender o ethos a partir de uma ideia transversal à oposição
entre o oral e o escrito. Ou seja, não se deve considerar somente o que é dito pelo enunciado,
bem como somente por seus gestos ou aspectos físicos, mas sim entender que a oralidade deste
orador atua diretamente na projeção ethópica. Piris (2007, p. 183) disseca essa concepção ao
colocar que “o ethos é, assim, uma noção estritamente associada à imagem da instância
subjetiva que assume a enunciação do discurso, o enunciador”.
Visando conferir credibilidade à sua imagem, o orador poderá adotar algumas
estratégias neste sentido. Entornar em seu discurso uma voz de autoridade pode ajudar neste
caminho, inferindo na sensibilidade do seu receptor.
2.4 POR UM ETHOS CRÍVEL
Retomando a ideia da eficácia ethópica, Bourdieu (1982 apud AMOSSY, 2008, p. 120)
asserta que “o discurso não pode ter autoridade se não for pronunciado pela pessoa legitimada
a pronunciá-lo em uma situação legítima, portanto, diante dos receptores legítimos”. Em sua
proposição, Amossy (2008) denota que essa autoridade17 - elemento que confere credibilidade
ao discurso – provém de um alguém habilitado para tal. No caso do corpus de nossa pesquisa,
programas como o Aqui Agora e o Balanço Geral recobriam suas reportagens policiais com o
advento das declarações de delegados e demais membros da instituição de segurança pública,
justamente buscando reforçar seu ethos nessa autoridade supracitada. Na busca dessa
legitimação, ainda segundo Amossy (2008, p. 125), deve existir harmonia entre as imagens do
locutor e as competências do auditório, já que: “é preciso que (as imagens) sejam relacionadas
a modelos culturais pregnantes, mesmo se se tratar de modelos contestatórios”.
Cabe ressaltar também que o ethos envolve a sensibilidade do destinatário do discurso
– no caso desta pesquisa, a audiência dos programas televisivos. Isso porque o ethos “implica
uma experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do destinatário”
(MAINGUENEAU, 2008, p. 14). No jornalismo televisivo, a representação do ethos estará,
invariavelmente, ligada ao posicionamento dos elementos imagéticos, sonoros e mesmo da
relação do sujeito-jornalista com seu discurso. Atingindo a sensibilidade da audiência, os
17 Ampliaremos nossas considerações sobre e ‘autoridade’ no discurso a partir do capítulo 4.
39
programas popularescos podem, de quebra, projetar este desejado ethos de credibilidade através
de argumentos que atestem um caráter adequado ao seu discurso. Estes podem ser:
à parte as demonstrações, (os argumentos) determinam nossa crença: a
prudência (phronesis), a virtude (aretè) e a benevolência (eunoia). Se, de fato,
os oradores alteram a verdade sobre o que dizem enquanto falam ou
aconselham, é por causa de todas essas coisas de uma só vez ou de uma dentre
elas: ou bem, por falta de prudência, eles não são razoáveis; ou, sendo
razoáveis, eles calam suas opiniões por desonestidade; ou, prudentes e
honestos, não são benevolentes; é por isso que podem, mesmo conhecendo o
melhor caminho a seguir, não o aconselhar (1378a: 6-14 apud
MAINGUENEAU, 2008, p. 13).
No argumento da phronesis, relativo à prudência, relaciona-se as opiniões competentes
e razoáveis do orador do discurso. Silveira (2001, p. 50) a define como “a capacidade de
deliberar bem, isto é, de calcular exatamente os meios necessários para alcançar um fim bom”.
Mobilizando a aretè, o sujeito-jornalista denota virtude no discurso, baseada em sua imagem
de sinceridade. Já a eunoia representa a benevolência do orador, ou mesmo sua solidariedade.
De acordo com Fiorin (2016), cada um destes argumentos mobiliza cada recurso apresentado
na tríade retórica de Aristóteles: na phronesis, o orador do discurso se coloca com sensatez e
ponderação, recorrendo mais ao logos; aquele que utiliza da aretè se apresenta praticamente
como um ‘justiceiro’, empregando tal sentido em seu discurso mais graças ao ethos; por fim, o
orador que baseia seu discurso na eunoia visa despertar um sentimento de solidariedade na
audiência, até em um sentido de igualdade, mobiliando mais o pathos. Observando tais
estratégias retórico-argumentativas, entendemos haver mais de uma delas no Documento
Especial, no Aqui Agora e no Balanço Geral. No caso do Documento Especial, o apresentador
Roberto Maya parece apresentar seu discurso em argumentos munidos de phronesis, algo
percebido mesmo em relação ao cenário da atração em algumas edições; no caso dos outros
programas, talvez por manterem formatações jornalísticas parecidas – o telejornal –
enxergamos argumentos mais baseados na aretè e na eunoia. Isso porque os apresentadores do
Aqui Agora e do Balanço Geral, já nas chamadas das reportagens, se utilizam da aretè no
propósito de parecerem dotados de senso de justiça, bem como da eunoia quando tecem
comentários acerca de reportagens que versem sobre violência, no intuito de buscar
identificação junto à audiência.
Ainda no sentido de legitimação do discurso, podemos pensar na casualidade como um
tipo de argumentação utilizada no ethos do sujeito-jornalista. Isso indicaria que os programas,
no caso dos nossos objetos empíricos, mesmo que factuais, apresentam as causas que
40
originaram o exposto nas reportagens. No entanto, essa contextualização pode ser abordada ao
sabor dos interesses do programa jornalístico. Isso reforça a constatação de Fiorin (2016, p.
152), que aponta que “um mesmo fenômeno apresenta uma multiplicidade de causas e o
enunciador escolhe aquela ou aquelas que interessam para os propósitos argumentativos”.
Pensando em nossos objetos de análise, podemos pensar em uma reportagem que
envolva um crime praticado por um menor de idade. Ao que observamos em emergência
recente, alguns programas defendem a questão da redução da maioridade penal – algo que vem
sendo discutido para além do espectro político, como também na sociedade, talvez por conta
do espaço que a questão ganha nos televisivos popularescos. Em várias das reportagens
observadas – conforme esmiuçaremos no capítulo 5 desta pesquisa – atribui-se a sequencial
onda de violência à impunidade, o que reforça a defesa dos sujeitos-jornalistas para que
menores de 18 anos cumpram penas semelhantes aos maiores de idade. Essa constatação
sublinha que a questão dos crimes praticados por menores de idade fora apontada, em relação
de casualidade, com a impunidade.
Noutro exercício de breve observação, enxergamos determinadas marcas discursivas
nos programas popularescos. O posicionamento dos sujeitos-jornalistas parece ocupar um
patamar de superioridade em relação ao teor das reportagens, ou mesmo ao que entendemos por
popularesco – conforme colocamos no capítulo 1. Um exemplo disso é o cenário do programa
Documento Especial nas primeiras edições, ainda no final da década de 80, constante de uma
biblioteca e de móveis que, da forma com que estão dispostos, aparentam certa erudição ao
programa.
41
Figura 3 – O cenário do Documento Especial – Televisão Verdade
Fonte: Documento Especial – edição Delírio na Madrugada (1989, Rede Manchete)
Outro ponto que nos chama a atenção nesse aspecto faz menção à utilização de termos
não muito usuais da língua no discurso dos sujeitos-jornalista – neste caso, a observação é válida
para os três programas analisados. Isto posto, em suma deve interessar ao orador mais o
‘parecer’ ser honesto do que o ser de fato – neste ponto reside a fulcral importância de
observarmos a enunciação dos programas popularescos. Afinal, conforme pondera Fiorin
(2016, p. 70), “o ethos é uma imagem do autor, não é o autor real; é um autor discursivo, um
autor implícito”.
Outrossim, o ethos do sujeito-jornalista é demarcado por seu lugar social, enquanto
membro de seu “grupo profissional”, bem como por sua relação com o outro para quem escreve
– sua audiência.
2.5 A CONFORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO-JORNALISTA
A relação do homem com o ato de falar se dá por seu ensejo em se colocar em relação
ao outro, e não para recortar, descrever ou estruturar o mundo, de acordo com Charaudeau
(2012). Essa é a tônica da linguagem: nascer, viver e morrer na intersubjetividade. Igualmente,
é nessa fala com o outro – que o mesmo autor enfatiza ser falar a si mesmo – que há essa
estruturação de mundo pelo próprio homem.
Quando se utiliza da linguagem para falar ao outro e consigo mesmo, o homem atende
a uma necessidade humana e incontornável, de acordo com Wolton (2011). Para o autor, “viver
é se comunicar e realizar trocas com os outros do modo mais frequente e autêntico possível”
42
(WOLTON, 2011, p. 17). De tal modo, é essa relação com o outro que determinará como nos
colocamos no mundo, pois:
Tudo o que fazemos, tudo o que somos, como sujeitos e atores no mundo
social, dependem de nossa relação com os outros: de como os vemos, os
conhecemos nos relacionamos com eles, nos importamos com eles ou os
ignoramos. Vê-los é crucial (SILVERSTONE, 2005, p. 249).
Ao se colocar diante de sua audiência, o jornalista demarca sua posição no mundo,
enquanto profissional, como uma espécie de ‘porta-voz’ do cotidiano que bate à porta da
audiência – essencialmente levando em conta os programas de cunho popularesco –, relatando
aquilo que circunda ao que os produtores destas atrações entender ser pregnantes no dia-a-dia
da audiência.
Esse relacionamento entre o sujeito-jornalista e sua audiência também contribui para a
constituição da identidade do jornalista. Casadei e Avanaza (2013) ponderam que se toda fala
demarca uma determinada posição do sujeito que profere o discurso, será essa própria fala que
determinará o lugar social de seu pronunciamento. Na organização dos jornalistas, um discurso
será validado ante aos demais no momento em que ele estiver vinculado ao, conforme elucida
Certeau (1982, p. 63), “estatuto dos indivíduos que tem – e somente eles – o direito
regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir um
discurso semelhante”. Isso porque, “a identidade não é um, mas dois. Um e outro. No começo
existe o plural. É o princípio da escrita, da análise (analysis, divisão, decomposição) e da
história (CERTEAU, 1982, p. 280). Em sua atividade profissional, o sujeito-jornalista buscará
entender o mundo e suas correlações. E, conforme mencionado, essa relação com o outro será
a chave para o êxito deste processo. Além disso, o ato de comunicar-se, em sua essência, se
completa ao passo em que este outro é reconhecido. “Comunicar é ser livre, mas é, sobretudo,
reconhecer o outro como seu igual” (WOLTON, 2006. p. 26-27).
E quando se comunica, o homem apregoa seu discurso como sua própria existência. De
acordo com Charaudeau (2012, p.42), “todo discurso, antes de representar o mundo, representa
uma relação, ou, mais exatamente, representa o mundo ao representar uma relação”. Conforme
assevera Silverstone (2005), ao passo em que as relações entre os sujeitos humanos – receptores
da informação – passar por uma mediação eletrônica, em que o tratamento entre eles depende
da comunicação pela mesma mídia, a investigação ética se propõe como necessária. Deste
modo, “o sujeito informador, capturado nas malhas do processo de transação, só pode construir
43
sua informação em função dos dados específicos da situação de troca” (CHARAUDEAU, 2012,
p. 42).
Considerando a relação dos jornalistas com os programas popularescos, abordemos
algumas características ethópicas prementes às atrações de tal cunho.
2.6 O ETHOS POPULARESCO
Recorrendo à definição do ‘sensacionalismo’18 colocada por Angrimani (1995, p. 17)
como “imoral-moralista e (que) não limita com rigor o domínio da realidade e da
representação”. Essencialmente, as atrações analisadas parecem visar a conquista da audiência
com base em reportagens que versem sobre violência, retratando aquele que seria o cotidiano
da população – daí a origem do termo “popularesco”. Os apresentadores têm grande
importância nessa conquista da audiência, na medida em que se identificam com o público por
meio do ethos que criam de si a partir dos elementos discursivos que utilizam para tal.
Martín-Barbero (2001), para demonstrar essa afinidade, aponta a relação entre o circo e
o popular. Citando os estudos de Magnani, o autor aponta que essa identificação se dá através
de uma relação direta entre espectador e espetáculo – tal como o futebol, o teor melodramático
da conexão entre o gosto popular e os gestos enfáticos, a mistura entre elementos que unam
dramas do passado e paródias de telenovelas e o conjunto de sentimentos que a plateia absorve
dos atores circenses: a diversão do palhaço à emoção de ver artistas ao vivo. Isso porque, ainda
de acordo com o autor, “a disparidade dos elementos está articulada com um espetáculo que
ativa marcas de uma história cultural e ao mesmo tempo as adapta” (MARTÍN-BARBERO,
2001, p. 325). De tal modo, nos parece que esse ethos popular reside em atrações diárias que o
reforçam – caso de nossos objetos empíricos.
É essa realidade que parece despertar a importância dos programas observados. Assim,
levando em conta a identidade ‘frágil’ e o suposto esquecimento político por parte dos que
observam o popular, torna-se importante entender o porquê de a mídia exercer certo papel nessa
(re)tratação da identidade popular.
Quando este enunciador trabalha sob a vertente de uma imagem preestabelecida, seu
discurso poderá ser voltado ao cerceamento dessa ideia já existente. Esse pré ethos emerge no
interdiscurso da audiência, e dele surge uma imagem previamente disposta. Deste modo, pode
ser considerado um tipo de ‘problema’ junto à projeção de um arquétipo de jornalista fiduciário.
18 Adentraremos mais essa questão no capítulo 3.
44
2.7 PROBLEMAS INERENTES AO ETHOS
Ao passo em que esta noção implica a imagem de si, o orador também pode sofrer com
dificuldades neste processo. Afinal, a construção da imagem do enunciador pode já ter sido
feita antes mesmo que ele apareça como actante narrativo no relato – como no caso de um
político que tenha sido apontado como responsável por algum ato criminoso, por exemplo.
Nessa linha, Maingueneau (2008, p. 72) assevera que “parece necessário, então, estabelecer
uma distinção entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo19. É crucial, para o orador, entender
que o público já terá construído uma imagem prévia de si20. Aristóteles (2005) discorre sobre a
utilidade da retórica como aliada da justiça e da verdade. Trazendo o pensamento do filósofo
para o conceito de ethos pré-discursivo, entendemos que, nos objetos empíricos que analisamos,
há o uso da retórica a fim de ressignificar este ethos prévio das atrações. Uma vez que há
determinadas construções de real por parte dos programas – conforme colocamos no capítulo
anterior –, é possível entender que estes se utilizam da retórica “não para fazer uma ou outra
coisa – pois não se deve persuadir o que é imoral – mas para que não nos escape o real estado
da questão e para que (...) nós próprios estejamos habilitados a refutar os seus argumentos”
(ARISTÓTELES, 2005, p. 94).
Assim, os programas popularescos trabalham com essa noção21 a partir de um discurso
que mobilize previamente o pathos na audiência, através de situações que provoquem a emoção
destes. Deste modo, aliado à imagem prévia que a audiência detém, as atrações mobilizam um
determinado posicionamento:
O universo de sentido que o discurso libera impõe-se tanto pelo ethos quando
pela “doutrina”; as “ideias” apresentam-se por uma maneira de dizer que
remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em um vivido. (...) O
poder de persuasão de um discurso decorre em boa medida do fato de que leva
o leitor a identificar-se com a movimentação de um corpo investido de valores
historicamente especificados (MAINGUENEAU, 2008, p. 73).
Para além, o autor traça observações relativas à avaliação social de comportamento entre
o orador e seu público, quando assevera que a problemática do ethos, colocada como híbrida
por ser de espectro sociodiscursivo, “não pode ser apreendido fora de uma situação de
19 Pensando nessa definição do autor, podemos relacionar o Balanço Geral a essa dificuldade, uma vez que o
programa traz um formato popularesco já adotado por outras atrações, inclusive as estudadas neste trabalho. 20 Exceção colocada por Maingueneau (2008) em um romance literário, por exemplo. A condição de ethos pré-
discursivo se aplica aos programas que são corpus desta pesquisa, uma vez que estas atrações popularescas
parecem trazer em si um certo posicionamento ideológico. 21 Ver item 1.4 do capítulo 1.
45
comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica
(MAINGUENEAU, 2008, p. 17).
Por consequente, o termo ethos pode apresentar diversos sentidos em diferentes áreas.
Se para os sociólogos22 ethos pode significar costumes e práticas peculiares de um povo em
determinada época ou região, na retórica aristotélica o termo faz parte de um esquema triangular
que visa explicar a persuasão. Neste esquema, conforme já vimos, cada ponta representa um
modo de atingir essa persuasão: ethos representa o caráter do orador – a imagem deste; logos
representa o emprego da razão, do raciocínio que o orador utiliza em seu discurso; e o pathos
representa a emoção no discurso. Destarte, o produtor de um discurso – no caso de nosso
trabalho, o sujeito-jornalista – detém um ethos que envolve sua posição social enquanto
jornalista, mas também sua relação com o outro, no qual ele estabelece quem é. As atrações
jornalísticas que observamos, por sua vez, produzidas por estes sujeitos-jornalistas, podem ser
analisadas através de um olhar que tente explorar seu caráter, seu ethos, ou seja, a imagem que
projetam de si própria para sua audiência.
Estes programas popularescos, que serão observados mais à frente, conquistaram boa
assimilação junto ao público e fazem parte da história da televisão brasileira. Desde seu
primeiro ‘representante’, o programa O Homem do Sapato Branco, a audiência parece ter se
identificado com um formato que abordava temas populares e era rico em temáticas que
continham violência. Conforme veremos a seguir, as diferentes eras da televisão influenciaram
na constituição dessas atrações jornalísticas, que, embora se alternando, parecem manterem
viva o ethos que as caracteriza desde a primeira atração que explora o popular como elemento
para atrair uma maior audiência.
22 Fonte: Dicionário Priberam. Disponível em: <https://www.priberam.pt/DLPO/etos>. Acesso em: 26 fev.
2016.
46
CAPÍTULO 3 – A TELEVISÃO BRASILEIRA E SUAS IMBRICAÇÕES AOS
PROGRAMAS POPULARES
No presente capítulo, faremos um resgate da história da televisão brasileira com o
objetivo de entendermos como o jornalismo popularesco se inseriu em sua história. Seguindo
por essa trajetória, abordaremos nossos objetos empíricos – Documento Especial, Aqui Agora
e Balanço Geral – neste contexto histórico, adentrando as peculiaridades de cada atração desde
seu surgimento na TV brasileira.
3.1 O SURGIMENTO DA TELEVISÃO
Em longa trajetória percorrida, o meio televisivo transformou-se em um veículo de
comunicação que exerce verdadeiro fascínio junto aos telespectadores, influindo diretamente
na vida destes. Tal constatação se deve graças ao poder de identificação que a televisão
conquistou junto aos telespectadores. Os primeiros embriões da televisão datam de 1873,
segundo Mattos (2010), quando o norte-americano Willoughb Smith concluiu que o elemento
químico selênio detinha propriedades fotocondutoras. Ao seguir dos anos, outras pesquisas
foram sendo desenvolvidas e aperfeiçoaram as tecnologias que originariam a televisão. Uma
delas foi a do “sistema de varredura”, apresentada em 1880 pelo norte-americano Sawyer e pelo
francês Maurice Le Blanc. Este sistema consistia em transformar as imagens em linhas e
transmiti-las, uma a uma, em alta velocidade. Já em 1884, Heinrich Hertz constatou a existência
das ondas eletromagnéticas – que, por conta disso, passaram a ser chamadas de ondas hertzianas
–, que seriam responsáveis por transportas os sinais de televisão (MATTOS, 2010).
Posteriormente, já no século XX, cientistas alemães tiveram sucesso em substituir o
selênio da célula fotoelétrica por outro elemento, provindo do potássio, que propiciaria mais
sensibilidade à célula e, automaticamente, aumentando a velocidade de transmissão das linhas
de imagem. Após essas e outras experiências, em 1923, na Inglaterra, John Logie Baird
conseguiu reproduzir imagens em uma pequena tela, através do sistema de varreduras
(MATTOS, 2010). Daí para frente, o veículo televisivo seguiu em constante evolução.
3.1.1 Transmissões televisivas
Bem antes da televisão, no século XIX, as pessoas buscavam entretenimento através de
romances populares, que eram amplamente negociados às famílias de baixa renda. Com esses
livretos em mão, as pessoas permitiam-se sonhar, fantasiar e exprimir verdadeiras sensações de
ansiedade e prazer, algo que antes só era possível dessa forma. Isso mostra o quanto o homem
47
sempre valorizou e buscou a fantasia – daí, talvez, a identificação com os programas
popularescos. De tal modo, sua influência junto à audiência é inegável, pois a televisão, quando
de seu surgimento, passou a ser “um algo a mais” em relação à voz que vinha das ondas sonoras
transmitidas pelo rádio: a imagem apresentada ali parecia ser uma companhia ao telespectador,
que muitas vezes estava sozinho no ambiente, mas sentia-se acompanhado enquanto seguia seus
programas pela TV.
Ainda nesse sentido, muitas pessoas passaram a utilizar a televisão como uma
verdadeira companheira doméstica, pois a deixavam ligada concomitantemente às suas
atividades do lar, para lhes fazer companhia. Nesse contato, não é preciso responder – como
seria necessário se estivéssemos falando com alguém – e é possível deter o controle ‘total’ da
ação, podendo desligá-la ou mudar de canal no caso de inconveniência. Todavia, essa sensação
de contato com um alguém é entendida por alguns autores como residente apenas no campo da
fantasia.
Vendo apresentadores, cenas, entrevistas, elas têm a ilusão de participarem do
ambiente. Essa presença, contudo, é apenas imaginária, só existe na cabeça
do telespectador. Na realidade, ele está muito só, embora sua solidão seja
bastante diferente da solidão propriamente dita – a solidão existencial
(MARCONDES FILHO, 1988, p. 9).
Esse efeito de aproximação causado pelo aparelho televisivo influi diretamente no
imaginário do telespectador. E este será, ainda de acordo com Marcondes Filho (1988, p. 11),
seduzido pela televisão, pois “o elemento vivo das pessoas (...) não está no real, no cotidiano
nem no mundo do trabalho e sim no imaginário. E a televisão é a forma eletrônica mais
desenvolvida de dinamizar esse imaginário” – o que se explicaria com os fragmentos do popular
encontrados na cultura popularesca. Martín-Barbero (2001, p. 307) complementa colocando
que: “(a televisão detém) um discurso que produz seus efeitos a partir da mesma forma com
que organiza as imagens: do jeito que permitir maior transparência” – o que, em nosso
entendimento, perpassa uma construção discursiva municiada de elementos que possibilitem
essa aparente ‘transparência’. Essas acepções imbricam um sistema de produção peculiar ao
meio televisivo, uma vez que, a partir de seu surgimento, novos elementos poderiam ser
trabalhados pelos produtores: a junção, por excelência, de som e imagem.
3.1.2 O fazer-televisão
Por ter surgido depois do jornal impresso, do rádio e do cinema, a televisão apreendia
48
características de todos estes veículos. Ciro Marcondes Filho (1994), citando Marshall
McLuhan, ressalta que a televisão tem a capacidade de unir todos os sentidos do homem, algo
único a todos os meios de comunicação que existiam na época de seu nascedouro. Seguindo
este pensamento, Barbosa (2013, p. 265) aponta que “as imagens da TV constroem um
parâmetro identitário e, ao mesmo tempo, permitem a produção da imaginação que só se realiza
naquilo que se projeta, como ficção, nas imagens”. Ela completa argumentando que esse veículo
de comunicação transforma suas imagens em uma função da imaginação do público.
Corroborando a essa ideia, Martín-Barbero (2001) observa que os rostos que aparecem na
televisão não são nem misteriosos, nem encantadores ao extremo; são rostos ‘normais’, que
buscam uma familiarização da audiência. Nesse caminho, Charaudeau (2012, p. 109), ressalta
a junção perfeita entre imagem e som como uma “solidariedade tal, que não se saberia dizer de
qual das duas depende a estruturação do sentido”. Ao que a autora completa:
Através das imagens percebe-se não o lugar onde se está, mas um espaço
longínquo, o alhures, que, pela imaginação, torna-se próximo, ou seja, em
certa medida realizável. Olha-se o nenhures, ou seja, o que é transmitido pela
TV, um lugar que só existe como imagem potencial, para atingir o alhures (o
lugar onde gostaríamos de estar), que só se realiza com o complemento da
imaginação (BARBOSA, 2013, p. 65).
Mesmo assim, não há uma contradição com o dito “menor esforço”, já que a TV apela
ao espírito associativo/lírico, o que não envolve esforço psicológico. Seguindo este raciocínio,
Charaudeau (2012, p. 112) exprime que:
A imagem televisual é “a-contemplativa”, pois, para que a contemplação seja
possível, é preciso que o objeto olhado se fixe ou se desdobre na espessura do
tempo e que o sujeito que olha esteja livre para orientar o seu olhar. Ora, a
televisão se inscreve numa sequenciação temporal breve, que se impõe à
instância que olha, orientando-a em seu olhar sobre os dramas do mundo.
Assim, pode-se dizer que a televisão cumpre um papel social e psíquico de
reconhecimento de si através de um mundo que se faz visível.
Como lembra Marcondes Filho (1994), a televisão não trouxe somente mudanças na
maneira de transmitir acontecimentos e relatos, mas também foi responsável por uma
verdadeira transformação no ‘fazer’, sobretudo na narrativa, na qual é possível observar uma
sensível mudança naquilo que estávamos habituados a ver no cinema. No caso de programas
telejornalíticos – mote de nossos objetos empíricos –, Charaudeau (2012) ressalta que o
processo de significação será interdependente, uma vez que a imagem do veículo televisivo não
49
se constitui em estado puro, como são as imagens fotográficas ou de artes plásticas. Tal
constatação implica que “a imagem televisionada tem uma origem enunciativa múltipla com
finalidades de construção de um discurso ao mesmo tempo referencial e ficcional”
(CHARAUDEAU, 2012, p. 110).
Conforme elencamos no primeiro capítulo da presente pesquisa, os discursos
jornalísticos podem ser trabalhados no intuito de reproduzirem efeitos de sentido que causarão
efeitos de realidade e de verdade. No caso da televisão, Charaudeau (2012) aproxima tal
constatação junto ao discurso televisivo ao abordar, já especificamente, como se caracterizam
esses valores de realidade, de verdade, e traz à baila também um valor de ficção. O valor de
realidade pode ser projetado pela televisão na ideia de que esta transmitirá diretamente o que
acontece no mundo, noticiando estes fatos em relação direta ao telespectador; o efeito ficcional
se caracteriza, ainda segundo Charaudeau (2012), quando há uma reconstrução analógica de
um fato já ocorrido; quando o efeito de verdade se dá, na televisão, a partir de um desvelamento
de algo que não era visível ao telespectador. Algumas das técnicas utilizadas pelos produtores
televisivos podem ser: mapas, gráficos e diferentes tomadas de imagem, como a do close-up –
veremos mais sobre essa técnica no capítulo 4 deste trabalho. Essa técnicas “desrealizam e
fazem penetrar o universo oculto dos seres e dos objetos” (CHARAUDEAU, 2012, p. 111).
Ainda nesse sentido cabe-nos colocar que, pensando nos programas que analisamos, o estes
efeitos podem se entrelaçar, resultando em sequências que buscam identificação da audiência
respaldados como programas ‘reias’ e ‘verdadeiros’, mesmo a partir dos efeitos ficcionais de
reconstrução.
Na história da televisão brasileira, programas que trabalham estes efeitos existem há
décadas, observando que a audiência destes se manteve em tal ponto que, embora se alternando,
outras produções apareceram, mantendo vivo o formato popularesco. A seguir, resgataremos
brevemente o surgimento da televisão no Brasil e elencaremos a isso os programas
popularescos.
3.2 OS PRIMÓRDIOS DA TELEVISÃO BRASILEIRA
O Brasil foi um dos cinco primeiros países do mundo a contar com a televisão, e o
primeiro da América Latina. Antes disso, a televisão já havia chegado à Inglaterra, Estados
Unidos, França, Alemanha e Holanda.
Na noite de inauguração da TV em terras brasileiras ocorreu a primeira transmissão
aberta ao público, com a exibição de um programa especial que havia sido escrito especialmente
50
para celebrar o acontecimento. De acordo com Federico (1982), o programa chamava Canção
TV e havida sido escrito por Marcelo Tupinambá e Guilherme Almeida.
Mesmo sendo um sistema que já havia sido testado no país23, oficialmente a primeira
emissora a surgir no Brasil foi a TV Tupi. Em São Paulo, a estação ganhou o nome de PRF-3
TV, inaugurada em 18 de setembro 1950. Posteriormente, no dia 20 de janeiro de 1951, a TV
Tupi Canal 6 entrava no ar no Rio de Janeiro.
Ainda sem um público fiel, por conta da sua recém-chegada ao país, os profissionais
que trabalhavam na televisão viam-se sem uma referência para seguir no que tange à produção
de programas e atrações para a televisão. Como neste princípio de funcionamento o público que
acompanhava a televisão era majoritariamente elitizado – segundo Federico (1982, p. 82), em
1951 um aparelho receptor custava nove cruzeiros –, os produtores dos programas televisivos
decidiram apostar em produtos que copiassem a fórmula utilizada no rádio.
Assim, na televisão não havia uma preocupação consciente na experimentação de novos
produtos, afinal, o que era feito não passava de adaptações rudimentares do que havia em outros
veículos.
Nos anos subsequentes, a televisão apostou na entrada do teatro, o que trouxe novos
problemas na produção de programas dessa natureza, de acordo com Federico (1982, p. 84):
O problema de voltar aos primórdios do cinema com técnicas televisivas,
colocando apenas câmeras numa boca de cena, provou a ineficiências das
adaptações de velhas técnicas ao novo sistema. Transmitiram-se várias peças
que estavam em cartaz no teatro, usando esse esquema, que provou a
incompatibilidade com a TV, porque os atores, ao interpretarem à maneira
teatral, ficavam caricatos através das câmeras.
Pouco depois, com menos sofisticação, a TV passou a adaptar também filmes e
romances estrangeiros – algo que não gerava muitos custos, pois não havia a obrigação no
pagamento de direitos autorais, além de que esses filmes não eram dublados –, porém ainda
sem conseguir realizar grandes produções.
Mesmo com tantos esforços, o resultado obtido era de encenações bem parecidas às do
teatro, quadro este que só foi revertido com o tempo e as constantes adaptações, o que mostrou
23 De acordo com Federico (1982, p. 81), ocorreram várias demonstrações do sistema televisivo no país antes de
seu lançamento oficial. Em 1939, os alemães fizeram uma demonstração de seu sistema numa exposição. No Rio
de Janeiro, em 1946, a Rádio Nacional teria promovido as primeiras transmissões experimentais com o programa
“Rua 42”. Ainda com a promoção da Rádio Nacional, o primeiro programa televisado foi “Nada Além de Dois
Minutos”, de Paulo Roberto, e o segundo, de Renato Murce, levava o nome de “Papel Carbono”. Por conta da
indefinição das imagens, o resultado foi desastroso.
51
a especificidade da televisão em contraposição ao teatro e ao cinema: “uma linguagem mista
entre a verdade teatral e a verdade televisiva” (FEDERICO, 1982, p. 85).
Nos gêneros de variedade e auditório, as atrações musicais contavam com grande
audiência e nível de conteúdo. Esses programas apresentavam um conteúdo inversamente
proporcional às facilidades tecnológicas da época.
Dos programas jornalísticos, o primeiro que atingiu grande sucesso e audiência foi o
conhecido Repórter Esso24, no qual a garota propaganda do programa era a dinamizadora dos
comerciais que eram feitos ao vivo.
Quanto à trajetória que a televisão brasileira percorreu, podemos dividi-la em duas fases,
de acordo com Ciro Marcondes Filho (1988): “Fase do surgimento” e “fase da supremacia e
autocentramento”, a saber:
3.2.1 Fase do surgimento
Conforme mencionamos, no Brasil a televisão teve seu início na década de 50 – ainda
produzindo de forma precária – com profissionais oriundos do rádio, do cinema e do teatro, que
ainda se adaptavam à televisão com o propósito de ocupar os espaços na programação à base
de “experimentalismo”. Graças a essa falta de experiência dos profissionais que ingressaram
nesse meio, a televisão era considerada, nessa primeira fase, apenas como mais um meio de
comunicação buscando seu lugar entre o rádio e o cinema.
Já em meados da década de 60, alguns avanços puderam ser notados, com o crescimento
de novas emissoras, o que representou a primeira disputa pela audiência. Até 1964, a televisão
mantinha seu caráter elitista por conta dos altos preços dos aparelhos, restringindo-se aos mais
‘apoderados’ economicamente. Esse período é denominado por Mattos (2010) como “fase
elitista”.
Posteriormente, superada essa “fase elitista”, ainda no ano de 1964 surgia o momento
histórico que Mattos (2010, p. 95) chama de “fase populista”. A partir daí, diz o autor, “a
televisão era considerada um exemplo de modernidade; programas de auditório e de baixo nível
tomavam grande parte da programação”. A explanação do autor para o momento da televisão
faz justiça ao período em que os primeiros programas tidos como “popularesco” surgiram na
TV.
24 Criado originalmente no rádio, o programa foi apresentado de 10 de abril de 1952 até 31 de dezembro de 1970
na TV Tupi. Fonte: Integração Brasil. Disponível em: <http://integracaobrasil.blogspot.com.br/2011/08/ha-70-
anos-entrava-no-ar-o-reporter.html>. Acesso em: 28 jul. 2016.
52
3.2.2 Quando o popularesco assume formato nos programas televisivos
O gênero desse tipo de programa jornalístico é entendido como popularesco talvez por
conta da assimilação que adquire junto ao público, sobretudo por conta dos dramas apresentados
– visando conquistar a audiência por meio da identificação de seus próprios problemas lá
retratados. Nessa linha, J. S. R. Goodlad, citado por Marcondes Filho (1988, p. 52), assevera
que “o jornalismo e o telejornalismo são parentes muito próximos dos dramas”. Essa
identificação com a audiência poderá se dar, conforme pontua Martín-Barbero (2001, p. 305),
por um autorreconhecimento de sua ‘imagem’ na tela.
Se a televisão na América Latina ainda tem a família como unidade básica de
audiência é porque ela representa para a maioria das pessoas a situação
primordial de reconhecimento. E não se pode entender o modo específico que
a televisão emprega para interpelar a família sem interrogar a cotidianidade
familiar enquanto lugar social de uma interpelação fundamental para os
setores populares.
Isto posto, França (2009, p. 226) explica que os setores populares e de baixa renda não
têm acesso à produção midiática, considerando que “o popular a que estamos apontando não se
explica pela sua fonte, mas remete-se antes a características ligadas ao destinatário e ao
produto”. No bojo desse raciocínio, lembrando que a oferta das produções televisivas pode estar
relacionada às condições financeiras dos telespectadores, Martín-Barbero (2001, p. 304) lembra
que:
Quanto à relação dos ‘usuários’ com a televisão, no que diz respeito às grandes
maiorias, não só na América Latina, mas também na Europa, as mudanças de
oferta, apesar da propaganda sobre a descentralização e a pluralização,
parecem apontar para um aprofundamento da estratificação social, pois a
oferta diferenciada dos produtos de vídeo está ligada ao poder aquisitivo dos
indivíduos.
A relação entre sujeito-jornalista e sua audiência parte, então, de um discurso que talvez
não reflita essencialmente o que observa a audiência fora do mundo televisivo. No que tange
ao destinatário, França (2009) revela que o sujeito-produtor da notícia não visa neutralizar
diferenças ou atingir a um ensejo homogêneo, mas sim caça elementos que busquem uma
espécie de identificação coletiva – assim atingindo a audiência. O programa popular(esco), que
deve(ria) ser oriundo de uma cultura popular, como vimos, detém características peculiares em
sua constituição como produto televisivo. Vera França (2009) relaciona o popular na TV com
três características marcantes:
53
A famigerada “apelação” destes programas, que busca seduzir o telespectador – aqui
relacionamos os “efeitos” e “valores” de verdade apresentados por Charaurdeau
(2012), que trouxemos no capítulo 1 deste trabalho; A construção do destinatário, que se dá através do “leitor modelo” – termo utilizado
por ECO (1986) e também trabalhado no primeiro capítulo de nossa pesquisa.
França (2009, p. 227) exemplifica com uma fala comum nos apresentadores destes
programas: Você, “meu amigo, minha amiga meu igual. Mas esse próximo é
também o ‘qualquer um’”25. O terceiro ponto relacionado ao produto dos programas populares é o caráter híbrido.
Aqui, os apresentadores dos programas – no caso de nossos objetos – se colocam
como força dominante, detentores de um poder tal que convença a audiência – o que
opõe a influência de ambos, ainda de acordo com França (2009).
Um personagem bastante conhecido do telejornal Aqui Agora – que será um dos nossos
objetos de análise e será melhor apresentado mais abaixo – foi Gil Gomes. Provindo do rádio,
o ‘estilo’ do jornalista acabou por se tornar uma das marcas mais conhecida do programa. Ainda
que apresentado em um veículo que mantém sua produção distinta em relação as produções
televisivas, retomaremos a análise de Martín-Barbero (2001) sobre o programa de Gil Gomes
no rádio, pois mesmo que não faça uso de imagens – elemento fortemente carregado de efeito
de sentido –, as trilhas sonoras também foram empregadas no Aqui Agora, ressaltando o efeito
dramático. Escreve o autor, observando o programa:
Do lado do enunciado, é a interpelação à experiência das pessoas que escutam:
aproximando o estranho do cotidiano, descobrindo-o entre suas dobras – a
mão, a mãe amorosa, a que não vive senão para sua família, foi ela quem
matou o filho – e conectando a experiência individual com o curso do mundo
em forma de refrãos e provérbios, de saberes que conservam normas, critérios
para classificar os fatos em um ordem com a qual enfrentar a incoerência
insuportável da vida (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 330).
Essas características se repetem também na televisão. O programa popular irá buscar
trazer esse “estranho” ao cotidiano da audiência, trabalhando sentidos discursivos para isso. De
tal modo, esse popularesco será expressado também em ambientação – o cenário – e na
linguagem, colocada pelo autor como “a palavra convertida em arma e instrumento de revanche,
estratégia que, ao confundir o adversário, desarma-o” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 332).
Recorrendo aos nossos objetos, a ambientação e a linguagem trazem em seu bojo justamente
essa expressão do popular – o que já entendemos como popularesco. Conforme trouxemos no
25 Em nossos objetos, o Documento Especial não se recobre com tais falas; o Aqui Agora, por sua vez, já busca
uma aproximação com o telespectador quando os apresentadores olham para as câmera e mencionam a palavra
“você”; o Balanço Geral, a mais recente das atrações, é quem mais buscou essa identificação com a audiência: o
apresentador Luiz Bacci repete, seguidas vezes: Meu amigo, minha amiga.
54
primeiro capítulo, o discurso destes programas apresentam estratégias que ‘criam’ um real a
partir de imagens fortes e termos marcantes26. A esse forte clamor popular em reportagens,
emerge a ideia dos fait divers. Nesse momento, o que antes não se enquadrava em nenhuma
categoria editorial, agora passa a ser observado em função do seu apelo e identificação junto à
audiência.
3.2.2.1 Os fait divers
O termo fait divers, provindo da língua francesa, parece não encontrar uma tradução
concreta no idioma português. De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
(2008-2013)27, fait significa “fato” e divers significa “diverso”. Em tal acepção, o termo indica,
ainda de acordo com o dicionário online: “1. Conjunto de ocorrências e acontecimentos
variados e sem ligação entre eles, que correspondem a uma rubrica jornalística; 2. Fato ou
assunto pouco importante”. Nessa conjuntura, Barthes (1964, p. 1) entende que o termo sintetiza
“o refugo desorganizado das notícias informes; (...) só começaria a existir onde o mundo deixa
de ser nomeado, submetido a um catálogo conhecido (política, economia, guerras, espetáculos,
ciências etc)”.
No entendimento do autor francês, os faits divers se alocam em um sistema de
classificação alheio ao das demais notícias. Não há, para os faits divers, um enquadramento
possível nas editorias conhecidas porque sua essência reside, particularmente, no inusitado. Não
seria permissível publicar, numa editoria de negócios, que um grande empresário do setor
financeiro fora assassinado por seu enteado ciumento, por exemplo; tampouco entraria em uma
página esportiva uma notícia sobre a morte de um praticante de salto em distância, em que a
vara utilizada na atividade teria se que quebrado no momento do salto. Isso porque as notícias
hipotéticas que apontamos acima são dotadas de um elemento a mais que as complementa: “o
fait divers só começa onde a informação se desdobra e comporta por isso mesmo a certeza de
uma relação” (BARTHES, 1964, p. 2). Assim, nas notícias fantasiosas que utilizamos como
exemplo, o desdobramento da notícia considerada fait diver confere um teor elevado ao fato de
que o empresário fora assassinado por seu enteado ‘ciumento’, ou ao esportista que falecera
após seu instrumento de trabalho romper.
Apesar disso, cabe ressaltar, os faits divers não se orientam somente por assassinatos ou
mortes. Tudo o que circunda o universo do inusitado lhe interessa. Relembremos o Aqui Agora,
26 Veremos mais sobre esses elementos pathéticos no próximo capítulo. 27 Fonte: Dicionário Priberam. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/fait%20divers>. Acesso em: 06 jul.
2016.
55
que é observado nesta pesquisa. Em uma das reportagens da edição de 04 de dezembro de 1995,
a repórter entrevista um praticante da arte ninja. A legenda da reportagem indica: Mestre Ninja
revela segredo dos guerreiros. Nesse caso, o inusitado aqui perpassa o Mestre Ninja e os
segredos que este revelaria sobre a arte: não parece fazer parte de um telejornal policial a
reportagem supracitada; isso indica justamente o inusitado.
Figura 4 – A reportagem sobre o “Mestre Ninja” no telejornal popularesco Aqui Agora
Fonte: Aqui Agora – edição de 04/12/1995 (1995, SBT)
No entendimento de Dion (2007, p. 125), os faits divers guardam também interesse por:
suicídios, por certos tipos de acidentes, catástrofes naturais, monstros e
personagens anormais; por diversas curiosidades da natureza, tais como os
eclipses, os cometas, as manifestações do além, os atos heróicos, os erros
judiciários e, enfim, por anedotas e confusões.
A relação entre os fait divers pode ser reduzida a dois tipos, ainda segundo Barthes
(1964). A primeira delas ressalta a casualidade. Aqui, será sempre apontada a circunstância do
fato noticiado, especialmente se este puder ser trabalhado pelo insólito. É nessa relação que se
intensificam os estereótipos, sempre atrelando determinada causa ao acontecimento noticiado.
Mais uma vez retomando nossos hipotéticos exemplos, lembramos do crime cometido por
ciúme e da morte ocorrida por uma falha no instrumento de atividade do atleta; em outros
termos, o suposto motivo, detalhe inusitado desse acontecimento é o mote do fait diver. Barthes
(1964, p. 2) ainda lembra que mesmo em situações em que a casualidade é normal, a ênfase da
notícia de um fait diver será deslocada ao que ele chama de dramatis personae: “espécies de
56
essências emocionais encarregadas de vivificar o estereótipo”. Nessa relação de casualidade
reside, em seu cerne, o inexplicável. Este, por sua vez, ainda de acordo com Barthes (1964), se
desdobra em duas categorias de fatos: os prodígios e os crimes. Os primeiros se concentram no
espaço do céu, como os discos-voadores28, por exemplo. Os segundos, que reforçam o critério
de escolha que adotamos na seleção do corpus de análise, referem-se aos crimes. Em nossos
objetos empíricos, observamos tais recorrências constantemente. No Aqui Agora, por exemplo,
as reportagens sobre crimes, trazidas por Gil Gomes, comumente compartilhavam dessa
relação. O marido que assassinou a mulher por ciúme; o criminoso que matou o vizinho por
conta de uma fofoca; o idoso assassinado por precisar de ajuda são apenas alguns dos casos que
são mostrados. Assim, se é no inusitado, incomum e inconstante que recobre a gênese do fait
diver, então “não há fait divers sem espanto” (BARTHES, 1964, p. 2).
A segunda relação comum entre os fait divers traz à tona a coincidência. Nela, Barthes
(1964) precisa a situação da repetição como uma das utilizadas. “A repetição leva sempre, com
efeito, a imaginar uma causa desconhecida, tanto é verdadeiro que na consciências popular o
aleatório é sempre distributivo, nunca repetitivo” (BARTHES, 1964, p. 4). Essa notação de
coincidência será, assim, transposta na repetição a partir da informação trabalhada com precisão
para este fim no fait diver. Um exemplo dessa relação pode ser observada no Balanço Geral,
outro programa que analisamos aqui. Na edição paulistana de 10 de outubro de 2012, o
apresentador Geraldo Luís apresenta uma matéria em que percorre um túnel “fantasma” sob o
Hospital das Clínicas. Ao longo da reportagem, o apresentador diz que há relatos de décadas
em que os mortos passavam por esse túnel. Essa repetição – das décadas em que há relatos do
fantasma – confere justamente com a asserção de Barthes (1964).
28 Na entrevista concedida ao canal Sonhar TV, da qual falaremos mais abaixo, Nelson Hoineff, criador do
Documento Especial, revela que no programa-piloto apresentado à Rede Manchete, uma das matérias falava
justamente sobre discos-voadores que sobrevoavam uma cidade do Rio de Janeiro (não informada na entrevista).
Fonte: Canal Sonhar TV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=0hTNGDUhj_0>. Acesso em: 28
jul. 2016.
57
Figura 5 – O apresentador do Balanço Geral anunciando a reportagem em que visitaria o “túnel da
morte”
Fonte: Balanço Geral – edição de 10 de outubro de 2012 (2012, Rede Record)
Outra relação de coincidência é aquela que aproxima dois termos que parecem distantes.
Isso implica que os faits divers elevam ambos os termos, que soavam tão distintos, em um
mesmo sentido. “Cada termo, pertencendo em princípio a um percurso autônomo de
significação, a relação de coincidência tem por função paradoxal fundir dois percursos
diferentes em um único percurso” (BARTHES, 2012. p. 4). Essas considerações acerca dos fait
divers indicam uma aproximação ao sensacionalismo e ao popularesco. Conforme aponta
Foucault (1973, p. 269 apud DION, 2007, p. 269), o fait diver possibilita “mudar de escala,
crescer em proporções, fazer aparecer o grão minúsculo da história, abrir ao cotidiano o acesso
da narração”.
Nessa linha, de acordo com Marcondes Filho (1986 apud ANGRIAMI, 1995, p. 15), “o
sensacionalismo não se presta a informar, muito menos a formar. Presta-se básica e
fundamentalmente a satisfazer as necessidades instintivas do público, por meio de formas
sádica, caluniadora e ridicularizado das pessoas”.
Segundo J. S. R. Goodlad, (apud Marcondes Filho, 1988, p. 52): “O jornalismo e o
telejornalismo são parentes muito próximos dos dramas. Em questão de preferência popular, os
noticiários ocupam, aliás, o segundo lugar, logo após o drama”. Tal afirmação ilustra a
58
influência do drama junto à audiência. O pioneiro destes representantes do drama “popularesco”
na televisão pode ter sido, talvez, a atração comandada por Jacinto Figueira Júnior.
3.2.2.2 O primeiro programa “mundo cão” e o aumento da audiência televisiva
O programa O Homem do Sapato Branco estreou em 1966, comandado pelo
apresentador Jacinto Figueira Júnior. À época, como ainda não havia a utilização de recursos
tecnológicos, como o vídeo-tape, por exemplo – que hoje são grandes aliados deste tipo de
programa –, o comandante da atração recebia prostitutas e marginais ao vivo no palco. De
acordo com o jornal Folha de São Paulo29, o apresentador foi considerado o pioneiro em fazer
este tipo de programa, com “sensacionalismo” e apelações, conhecido como “mundo cão”30.
Dentre alguns casos apresentados no programa destacavam-se: discussões entre casais, dramas
de desconhecidos, transplante de córnea e até mesmo uma cesariana (ainda de acordo com o
autor, o programa foi o primeiro a mostrar esse tipo de cirurgia na televisão brasileira) e o
‘insólito’, como um marido que trocou a esposa por uma mula.
Como era exibido durante o regime militar, sofreu duras críticas, mas alegava que
mostrava a realidade “nua e crua”. Porém, essa visibilidade também garantiu ao apresentador
um papel de destaque. No final dos anos 60, Jacinto Figueira Júnior se tornou deputado pelo
MDB (hoje PMDB). Entretanto, as críticas não se restringiam aos setores do governo. Em 1967,
um homem tentou esfaqueá-lo, ao que o jornal Notícias Populares publicou como manchete:
“Sapato branco atacado a faca”.
Em ordem cronológica, O Homem do Sapato Branco passou pela TV Bandeirantes, TV
Globo, SBT e Record. Durante sua exibição na TV Globo, chegou a ser retirado do ar pelo AI-
531, em 13 de dezembro de 1968. Foi o grande precursor deste gênero jornalístico, que inspirou
outros como Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral – atrações que serão detalhadas
mais à frente. Durante o tempo em que esteve no ar, o programa compôs uma era de
massificação da televisão.
Marcondes Filho (1998, p. 9) coloca um importante acontecimento desse período ao
dissertar que: “a televisão pode ser um bom negócio. Começa a ampliar rapidamente a base da
29 Fonte: Folha de São Paulo. Disponível em: <http://f5.folha.uol.com.br/saiunonp/2013/11/1366785-o-homem-
do-sapato-branco.shtml>. Acesso em: 28 jul. 2016. 30 De acordo com o colunista Ivan Lessa, a expressão “mundo cão” indica uma exploração do inusitado e passou
a ser adotada em nosso linguajar a partir de dois filmes italianos que carregavam este título. Fonte: BBC Brasl.
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/05/120530_ivanlessa_tp.shtml>. Acesso em: 06
jul. 2016. 31 O Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, foi um decreto emitido pelo governo militar da época que
concedia poderes absolutos ao Presidente da República e anulava diversas garantias constitucionais.
59
audiência, os aparelhos já são comprados em grande escala e aos poucos vai se tornando uma
necessidade social geral da população”. Isto posto, a década de 60 marcaria, definitivamente, a
televisão como meio de comunicação massivo, graças à sua consolidação no mercado.
Somente na década de 70 é que esse cenário se alteraria, com o crescimento vertiginoso
da TV Globo, que assumira a liderança absoluta de audiência, principalmente por conta de sua
tecnologia moderna, dos investimentos que a tornaram acessível no país inteiro e de sua
essência empresarial, calcada na rentabilidade e eficiência, algo que previamente não existia
nas demais redes de televisão.
Ainda nesse período, as atrações popularescas sofreram fortes críticas dos setores mais
conservadores da sociedade brasileira. Tais críticas interferiram diretamente na produção
televisiva da década de 1970. Conforme pontua Roxo (2010, p. 179),
O ministro da Comunicação, Hygino Corsseti, chegou a cogitar a cassação da
concessão das emissoras que persistissem no uso do “sensacionalismo” e da
“baixaria”. O jornalista Eli Halfoun, do Última Hora, e Danton Jobim, diretor
do mesmo jornal e presidente da Associação Brasileira de Imprensa, criaram
uma cruzada jornalística para pedir ao governo militar que censurasse a
“televisão-espetáculo”, ou seja, programas de televisão especializados em
apresentar casos de desgraça humana e “a exploração sensacionalista da
miséria na TV”.
Com isso, ainda de acordo com o autor, os programas da TV Globo consolidaram-se em
um período de inflexão, uma vez que as novelas da emissora, mais o Globo Repórter e os recém-
lançados Jornal Nacional (1969) e Fantástico (1973) mobilizavam uma gama de aspectos
técnicos. Finalmente, tal período demarcava o que parecia ser o fim dos programas
“popularescos”.
Também é aqui – na transição da década de 60 para a década de 70 – que surgem as
teorias críticas sobre a televisão. Essas teorias a colocam como massificadora da sociedade,
impondo comportamentos, opiniões e agindo diretamente nas culturas da sociedade. Nesse
cenário, os donos das redes de televisão foram amplamente criticados, por agirem diretamente
na democracia do país por conta de seus canais e de seus interesses.
3.2.3 Fase do autocentramento
Na década de 80, houve uma grande transformação na relação entre a televisão e os
espectadores. Nesse período, a televisão já se colocou como total dominadora no mercado de
informações, modificando a relação com seu público e a forma de produzir programas. A
60
televisão dessa época ganhou fragmentação, dispersão e atomização do controle do sistema
televisivo.
Basicamente, a diferença entre a primeira e segunda fase colocadas por Marcondes Filho
(1988) caracterizava-se por meio da nova utilização do veículo televisivo; na primeira fase, ela
era percebida como “janela” para o mundo: o telespectador tinha acesso a informações que
circundavam seu cotidiano (nos referimos aqui ao que observavam os analistas da época; em
nosso entendimento, os produtos dos veículos televisivos perpassam estratégias discursivas que
agem na criação de um “efeito de realidade”). Já na segunda fase, a televisão tornara-se “opaca”,
pois ela não mais transmitia mundos, mas sim os fabricava.
A relação de verdade factual sobre a qual repousava a dicotomia entre
programas de informação e programas de ficção entra em crise e tende cada
vez mais a envolver a televisão em seu conjunto, transformando-a de um
veículo de fatos (considerado neutro) em um aparato para a produção de fatos,
de espelho da realidade em produtor de realidade (ECO apud MARCONDES
FILHO, 1994, p. 32).
Dessa maneira, com tal mudança, que passa a produzir o imaginário, a televisão ganha
status de criadora de espetáculos e indústria de sonhos. Com isso, passa a assumir essa
identidade, criando programas de esportes, humor, discussões políticas ou telejornais que tratam
e apresentam fatos ocorridos ou não, fazendo jus à sua nova caracterização. Nesse novo rumo,
a televisão deixa de se preocupar com a ‘verdade’ – verdade essa oriunda de estratagemas
discursivos atrelados ao facutal –; se outrora ela ocupava-se em transmitir a ‘verdade’, neste
momento, passa a produzir fábulas, encantos e sonhos, com o consentimento de todos.
Seguindo essa linha, Marcondes Filho ressalta:
O chamado “real”, como se vê, já não exista mais. Aquilo que se passa nas
ruas, que tem efeito de repercussão, impacto, envolvimento na opinião pública
é totalmente reformulado, rearranjado e montado em estúdio de televisão de
maneira que se construa a partir daí um novo tipo de ficção, um novo tipo de
fábula (MARCONDES FILHO, 1994, p. 55).
Certas atrações pareciam tentar se apoderar deste “real”, através de estratégias
discursivas preestabelecidas e de apelo popular. Isso no propósito de conquistar audiência junto
ao público, conforme fizera o programa O Povo na TV.
3.2.4 O Povo na TV
Ainda na década de 1980, surge outra atração que trazia em si a essência do popularesco:
61
o programa O Povo na TV, exibido todas as tardes e se apresentando como um serviço de
utilidade pública. Era composto por uma equipe que fez parte do Aqui e Agora, exibido um ano
antes na TV Tupi, mas vendido à TV Bandeirantes por problemas financeiros na derradeira
emissora. Dentre eles, Wilton Franco, Roberto Jefferson (o mesmo que, décadas mais tarde,
viria a ser o delator do chamado “mensalão), Christina Rocha, Sérgio Mallandro e Wagner
Montes.
Uma de suas marcas era, de acordo com Mira (2010), trazer reportagens policiais e
polêmicas através da exibição de pessoas pobres que iam ao palco pedir algum tipo de ajuda:
médica, jurídica e financeira. Basicamente, o apresentador Wilton Franco narrava um texto que
retratava a história do convidado. Por atender ao público assim, o SBT – emissora que transmitia
a atração – ficou conhecido como “a Porta dos Milagres”, por sempre estar lotada de gente que
buscava ajuda, ainda de acordo com Mira (2010).
A partir de então, com as características mencionadas por Marcondes Filho, outras
atrações de cunho “popularesco” surgem e parecem retomar a fórmula de O Homem do Sapato
Branco e de O Povo na TV.
3.3 A AMPLIAÇÃO DO “POPULARESCO” E O SURGIMENTO DE NOVAS ATRAÇÕES
O contexto dessa época envolvia também o período de evolução que compreendia o
desenvolvimento tecnológico (1974-1985), tido por Mattos (2010) como o período em que as
redes brasileiras aperfeiçoaram-se e passaram a produzir seus próprios programas com mais
intensidade de profissionalismo, inclusive exportando esses produtos.
Um destes produtos produzidos com o advento tecnológico foi produzido pela Rede
Manchete de televisão.
3.3.1 O Documento Especial – Televisão Verdade
Desenvolvido com a ideia de ser uma atração que exibia um lado do Brasil que até então
não era apresentado em nenhum outro programa da televisão, o jornalístico explorava temas
popularescos e tudo aquilo que residia no “insólito”.
A premissa do programa criado por Nelson Hoineff, então diretor da Rede Manchete,
surgiu quando Hoineff teve a chance de criar uma atração a seu gosto. Assim, em entrevista ao
canal Sonhar TV, do site de compartilhamento de vídeos Youtube, o diretor conta que pegou
uma folha de papel e começou a escrever tudo aquilo que não a Rede Manchete e outros canais
não exibiam: pessoa feia e pessoa pobre. Desta forma, o programa nasceu com a ideia de
62
apresentar temáticas que eram pautadas por duas premissas básicas: sexo e corrupção, algo que,
segundo o criador do programa, não eram mostrados na televisão à época, pois existiam dois
Brasis:” o que era mostrado na televisão e outro em que existia sexo e corrupção”, nas palavras
de Hoineff.
O piloto do programa, que tinha a duração de trinta minutos, contava com três
reportagens: socorristas da Rodovia Dutra, os chamados Anjos do Asfalto; outra sobre assalto
a bancos – algo crescente naquele ano de 1988, com o advento do crime organizado; e uma
última reportagem, sobre discos voadores que apareciam em uma cidade do Rio de Janeiro, mas
não mencionada na entrevista. Curiosamente, Hoineff revelou que esperava ser demitido após
a exibição do piloto do programa por conta das reportagens, o que não ocorreu.
No programa de estreia, assim como nas demais edições, a apresentação ficou por conta
do ator Roberto Maya, que comandava o Jornal da Manchete – Segunda Edição. O
apresentador começou sua carreira nas radionovelas, nas quais logo se destacou e foi trabalhar
no cinema. Nas telas do cinema, estreou em 1961, no filme Teus Olhos Castanhos. Na televisão
atuou em diversas novelas, com destaque para a novela Éramos Seis, de 1977, transmitida pela
TV Tupi.
O programa estreia em agosto de 1989, em uma quarta-feira, às 23h00, na instável Rede
Manchete, que passava por uma grave crise financeira. Nesta primeira edição, o programa
atingiu um pico de sete pontos de audiência, contrastando com a média da emissora no horário
das quartas-feiras anteriores, que era de um ponto; na segunda semana atingiu oito pontos; na
segunda semana, 8 pontos; na terceira, registrou 13 pontos de audiência, de acordo com Hoineff.
Por conta desta audiência elevada, os editores do programa tiveram liberdade para apostar em
temas polêmicos, algo que acabou marcando a história da atração. Com o tempo, o programa
ganhou 45 minutos de produção e passou a ser monotemático, além passar a ser exibido às
22h40, logo após as novelas de grande sucesso da emissora, como Pantanal e Ana Raio e Zé
Trovão.
Trazia um formato jornalístico semelhante ao adotado no consagrado Globo Repórter,
mas com temas polêmicos e imagens consideradas ‘fortes’, linguagem peculiar investida de
efeitos de sentido, o que o diferenciava de outros programas do mesmo gênero e formato. Por
conta disto, não é exagero colocar o Documento Especial – Televisão Verdade como um marco
na televisão brasileira, por sua coragem em investigar e exibir temas relacionados ao sexo,
tráfico de drogas, travestis, submundo dos guetos, de forma distinta aos seus antecessores no
que tange à investigação de tais pautas. Villela (2015) ressalta as premiações que o programa
63
conquistou: Troféu Imprensa (por três vezes), o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de
Arte e o Prêmio Príncipe Rainier III, em um Festival Internacional de Televisão de Monte Carlo,
em Mônaco, com a edição Vidas Secas.
Uma das marcas do programa foi, de acordo com Kneipp (2008), a utilização do plano-
sequência – técnica utilizada no cinema, por diretores como o italiano Pier Paolo Pasolini, que
veremos no próximo capítulo. Esse plano evidenciava uma sequência na cena retratada,
aproximando o telespectador do cenário exibido, como se a câmera fosse seu próprio olho.
Hoineff (apud KNEIPP, 2008, p. 13) explica: “Planos em televisão tem que ter dois ou três
segundos, quatro segundos estourando, mais que quatro segundos tem que cortar! Nós
começamos a fazer plano sequência de trinta segundos, um minuto, dois minutos, quatro
minutos”. Outro recurso inovador à época foi a produção de reportagens com a eliminação do
repórter físico quando da transmissão do programa; toda a narração ficava por conta do
apresentador Roberto Maya.
Em maio de 1992, em meio à grave crise que assolava a Manchete, culminando com a
sua venda para o Grupo IBF, Hoineff e a equipe do Documento Especial eram contratados pelo
SBT, mas sem a liberdade que possuíam na Manchete. Prova disto, foi a “censura” que o
programa sofreu logo em sua primeira exibição no canal, quando a edição O país da impunidade
não pôde ir ao ar. Ficou no canal até 1995, quando sai por desavenças entre Nelson Hoineff e
Sílvio Santos. Voltou ao ar em 1997 pela Rede Bandeirantes, onde permanece até 1998, ano em
que foi extinto.
Algumas edições marcantes
No período em que esteve na Rede Manchete, o programa exibiu edições como Os
pobres vão à praia, que continha imagens de preconceito explícito e de um homem morto; e
Muito feminina, que fazia uma abordagem à homossexualidade feminina,
Já no período em que esteve no SBT, o programa exibiu, dentre outras edições, A cultura
do ódio, que gerou processos à equipe do programa por suposta apologia ao nazismo, além de
terem sido acusados de apresentar depoimentos forjados de supostos neonazistas e O país da
impunidade, que fora censurado conforme explicado neste trabalho.
Na Rede Bandeirantes, o programa já apresentava sinais de derrocada uma vez que não
apresentou nenhuma reportagem marcante, somente algumas que versavam mais sobre
curiosidade, como a edição sobre a festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio, no Ceará.
Mencionamos também algumas edições produzidas a partir de obras clássicas. Uma
64
delas – talvez a mais emblemática – foi denominada Fragmentos de um Discurso Amoroso, e
discorria situações amorosas de pessoas a partir de citações extraídas do livro homônimo ao
nome da edição, de Roland Barthes.
Nesse período, apoiado pelo desenvolvimento tecnológico e democrático do país, surge
um programa de semelhante teor popularesco, que remontava características prementes ao rádio
e as apresentava na televisão.
3.3.2 O Aqui Agora
Aliando o formato sensacionalista do rádio ao telejornalismo, o Aqui Agora foi exibido
inicialmente no ano de 1991 e trazia o impactante slogan: um jornal vibrante, uma arma do
povo, que mostra na TV a vida como ela é.
Seu “primogênito” foi o Aqui e Agora, exibido pela TV Tupi inicialmente em 1979, às
13h15, e que herdava o formato ‘sensacionalista’ de O Homem do Sapato Branco, conforme já
expusemos. A atração do SBT inovava já na constituição de sua bancada ao contar com seis
membros, de acordo com Santos (2006). Destes, dois eram apresentadores e o restante
responsável por outras funções, como previsão do tempo, notícias internacionais e comentários.
O programa contou com diversos apresentadores em sua 1ª fase, quando absorvera o
formato dos famigerados O Homem do Sapato Branco e O Povo na TV, como Ivo Morganti,
Christina Rocha (que já participara de O Povo na TV), Sérgio Ewerton, Liliane Ventura e
Patrícia Godoy. Posteriormente, assumiu de vez o formato jornalístico, em 1996, centrado em
pautas mais noticiosas e sem tanto requinte sensacionalista, quando passou a ser apresentado
por Eliakim Araújo e Leila Cordeiro. Foi ao ar até 1997, apresentado por Ney Gonçalves Dias
e bem distinto em relação ao primeiro formato – agora o apresentador atuava também como
comentarista, algo semelhante ao que acompanhamos atualmente em programas como o
Balanço Geral – quando encerrou suas atividades. Ficou fora do ar por onze anos, regressando
em 2008, mas permanecendo poucos meses na grade de programação do SBT, encerrando assim
a vida do telejornal.
Uma das marcas do telejornal era o forte apelo popular. Além das temáticas congruentes
ao que entendemos por popularesco, a linguagem do programa também detinha características
popularescas. Wilfred Junior (1995 apud SANTOS, 2006) resgata o diálogo dos apresentadores
Ivo Morganti e Christina Rocha na chamada de uma reportagem sobre um traficante africano
em Recife.
As reportagens seguem um padrão em que quase não há edição. Planos-sequência são
65
dispostos em tempos razoáveis, aludindo ao telespectador um efeito de proximidade com a
notícia tal qual buscava o Documento Especial. Em sua dissertação, Santos (2006, p. 26)
relaciona algumas técnicas cinematográficas adotadas pelo telejornal:
Do Cinema Marginal, feito entre a década de 60 e 70 (período da censura
militar) por um grupo de jovens cineastas paulistanos contrários ao Cinema
Novo, o Aqui e Agora resgatou a improvisação, temas do submundo,
angulações imperfeitas, cortes displicentes e os personagens que vivem à
margem do sistema
Também são presentes alguns elementos do rádio na constituição do programa32. Alguns
deles influem no tom adotado pela reportagem, que pode ir da dramaticidade ao jocoso. “A
linguagem radiofônica não é constituída unicamente pela palavra, mas por um conjunto: a
dramaticidade, a música, a harmonia e ritmo, os efeitos sonoros, os ruídos e
o próprio silêncio” (SANTOS, 2006, p 32).
Outrossim, o programa se destacou ao apelo policialesco também, exibindo
perseguições de policiais a criminosos sem cortes, enquanto o repórter – que viajava no carro
da emissora, logo atrás das viaturas em perseguição – narrava os acontecimentos empregando
um tom – tido por Maingueneau (1980) como fulcral na constituição ethópica – ríspido, quase
dramático.
Ivo Morganti: Preto no Branco!!! Traficante africano é preso com seis quilos
de cocaína, em Recife!
Cristina Rocha: O repórter Jota Ferreira gasta todo o inglês que tem direito
e tenta arrancar alguma coisa do traficante.
Apelos ao popularesco à parte, nos parece permissivo afirmar que tais falas despejariam
críticas caso veiculadas hodiernamente. Este discurso dos apresentadores se assemelha à
essência dos fait divers. Tal qual chamada das reportagens, as legendas circunscritas entoavam
um sentido peculiar. Dentre as que observamos em nosso recorte temático, as legendas, aliadas
aos elementos composicionais da imagem, carregam um forte efeito de sentido.
32 Veremos mais sobre trilha sonora no próximo capítulo deste trabalho.
66
Figura 6 – A legenda utilizada em uma das reportagens observadas
Fonte: Aqui Agora – edição de 13 de fevereiro de 1995 (1995, SBT)
Em sua equipe de repórteres, destacam-se César Tralli, Celso Russomano, Gil Gomes,
Wagner Montes (que também já passou pelo O Povo na TV), Carlos Cavalcanti, dentre outros.
Sérgio Mattos (2010, p. 231) coloca o Aqui Agora como um “telejornal popular”, e
discorre que a atração surgiu “copiando o modelo de jornalismo popular usado nas emissoras
de rádios: sensacionalista, com notícias policiais e muito apelo sexual” – relembremos, essa
fora uma das premissas que inspirou Nelson Hoineff a criar o Documento Especial.
Edições marcantes
Conforme descreveu o autor, o programa exibia cenas fortes e impactantes, como em
uma edição de setembro de 1991, no qual exibia um sequestro a um ônibus em Cambira – PR,
mostrando um dos reféns levando um tiro fatal e, posteriormente, seu cadáver. Além disso,
‘aprofundando’ no quesito “sensacionalismo”, o então jovem repórter César Tralli – hoje na TV
Globo – entrevista um dos sequestradores no hospital após levar um tiro dos policiais. O Aqui
Agora mantém-se no ar até 1997, quando é extinto da grade de programação; porém, retorna
em 2008, buscando modernizar o formato de sucesso da primeira versão; sem êxito, deixou de
ser exibido, definitivamente, dois meses após seu regresso.
Em 5 de julho de 1993, a atração exibiu o suicídio de Daniele Alves Lopes, de 16 anos.
De acordo com o site Notícias da TV33, a jovem ficou 15 minutos sentada no beiral do prédio
33 Fonte: Notícias da TV. Disponível em: <http://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/em-1993-aqui-agora-
exibiu-suicidio-de-adolescente-e-chocou-o-brasil-4722>. Acesso em 5 de jun. de 2015.
67
antes de se suicidar. A equipe do Aqui Agora, que mantinha conexão com o rádio da polícia,
chegou ao local juntamente com o Corpo de Bombeiros, conseguindo gravar imagens do
momento em que a jovem se atirava para a morte. Neste dia, o programa aumentou sua
audiência em 33,5%.
Nesse período, a “baixaria” assumia um grande papel na televisão. Além ao Aqui Agora,
que revelava os elementos do “sensacionalismo” sob a égide telejornalística, outros programas
– de diferentes gêneros – seguiam caminho semelhante34.
3.3.3 O momento atual da televisão no Brasil e o início do Balanço Geral
No desenvolver da trajetória do veículo televisivo no Brasil, vivemos hodiernamente a
“fase da convergência e da qualidade digital”, caracterizadas por Sérgio Mattos como o
momento em que “o mercado de comunicação e o modelo de negócios vão se reestruturar
definitivamente”.
Neste contexto em que os produtos televisivos passam a assumir um papel
preponderante no faturamento das emissoras, surge o Balanço Geral. O programa estreou na
Rede Record no dia 3 de dezembro de 2007, assumindo o transladado formato de jornalismo
popularesco para combater o telejornal da Rede Globo SP-TV – 1ª edição. Anteriormente, já
contava com edições nos estados de Minas Gerais e Paraná desde 2005. A edição transmitida
via satélite pela Record Nacional corresponde à edição paulistana. Dentre seus apresentadores,
destacam-se Geraldo Luís (que já deixou a atração) e o atual apresentador Reinaldo Gottino.
Em abril de 2014, o programa explorou supostas evidências que apontavam para o fato de o
cantor Michael Jackson estar vivo. Foram entrevistas com um suposto fã que dizia ter provas,
exibição de vídeos que “mostravam” Michael Jackson saindo da ambulância que lhe levou ao
hospital, dentre outras “evidências”. Com isso, o programa mantém um formato “popularesco”,
apresentando notícias relacionadas a crimes das mais variadas espécies, lembrando, em termos
narrativos e conteudísticos, a fórmula adotada pelo Documento Especial e pelo Aqui Agora.
Nos dias atuais, o programa costuma manter a Rede Record na vice-liderança de audiência, com
34
Prova disso é uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça e financiada pela Unesco, em 1997, que
investigava o baixo nível dos programas televisivos. A investigação, apontada por Mattos (2010 apud
VALLADARES, 2000), revelou que “75% dos brasileiros gostariam que houvesse algum tipo de controle sobre o
que vai ao ar. Entre estes, 64% defenderam a classificação por faixa etária e horário e uma minoria, apenas 32%,
pediu a volta de alguma forma de censura”. Estes dados exemplificam bem o descontentamento majoritário do
telespectador com aquilo que lhe era projetado pela televisão. Entretanto, mesmo com tais dados ainda existem –
e se proliferam – programas que mantém o cunho “popularesco”.
68
7 pontos de média junto ao IBOPE35.
Como ainda está no ar e mantém-se em exibição em diversos estados, o Balanço Geral
acaba por atestar a influência dos programas de jornalismo popularesco junto à audiência, uma
vez que desde o surgimento de O Homem do Sapato Branco, muitos telespectadores
desenvolveram uma interessante identificação com semelhantes atrações jornalísticas,
independente do momento em que elas sejam exibidas.
Em suma, a história da televisão aponta alternâncias significativas ao longo de sua
existência. Momentos críticos do país, em termos políticos ou sociais, influenciaram no
desenvolvimento do veículo televisivo. Por consequente, os produtos televisivos também
seguiram esse mesmo teor. Conforme vimos durante o percurso histórico, recursos
tecnológicos, como a introdução do videoteipe, por exemplo, auxiliaram na produção de
programas jornalísticos. Constatamos isso em nossos objetos, que, exibindo reportagens
previamente gravadas, puderam ser editados de modo a trabalhar melhor os sentidos
discursivos, sobretudo quando comparados ao programa O Homem do Sapato Branco, como
exemplo, que trazia seus convidados ao vivo. Assim, com o influente papel que exerce junto à
audiência, o veículo televisivo partiu de uma absorção do rádio até os modelos atuais
No conteúdo das produções televisivas, estratégias discursivas são utilizadas no intuito
de atingirem seu telespectador. Esse discurso, sobretudo os prementes aos nossos objetos
empíricos, parece estar embasado em elementos que conformem metáforas, polissemias,
paráfrases, não-dito e silêncios. Além disso, também identificamos diferentes elementos que
compõe a imagem dos programas, como planos de tomada, enquadramentos e até mesmo trilhas
sonoras dramáticas, que atuam como produtores de sentidos discursivos. Nesse caminho,
abordaremos nossas metodologias de pesquisa no próximo capítulo, apresentando a análise do
discurso de tradição francesa, como campo teórico-metodológico, e a análise retórica da
imagem, através dos elementos composicionais.
35 Fonte: Portal R7. Disponível em: <http://noticias.r7.com/balanco-geral/saiba-mais-sobre-o-programa-balanco-
geral-sp-11022014>. Acesso em: 14 maio 2015.
69
CAPÍTULO 4 – A ANÁLISE DO DISCURSO DE TRADIÇÃO FRANCESA COMO
CAMPO TÉORICO-METODOLÓGICO
No caminho para analisarmos os programas televisivos popularescos que selecionamos
como objetos empíricos, nos municiaremos com as diretrizes da análise do discurso36 de
tradição francesa e da análise retórica, na qual envolveremos os elementos que compõe a
narrativa imagética e propõe efeitos de sentido, como os enquadramentos trabalhados, os planos
de câmera e as trilhas sonoras que constituem as peças jornalísticas.
Abordaremos, inicialmente, a concepção de discurso em um âmbito geral para,
posteriormente, utilizarmos a AD como campo teórico-metodológico. Assim, tencionamos
imbricar os sentidos apensos ao conteúdo verbal dos jornalistas, aos elementos que compõe a
imagem e o sonoro dos programas. Enfim, a tudo que revela o discurso que configurou a
identidade ethópica do jornalismo popularesco ao longo das décadas em que os programas
estiveram/estão no ar. Nesse caminho, nos embasaremos, quando na AD, em elementos da
linguística que atuam na criação de efeitos de sentido, como o interdiscurso, o silêncio no
discurso – residência do não-dito –, polissemia e paráfrase.
4.1 O DISCURSO
Para alguns, o termo discurso pode indicar, tão somente, a fala do sujeito que tece uma
mensagem ante a uma plateia. Consequentemente, o verbo ‘discursar’ é definido no dicionário
como: “1. Fazer discurso; 2. Discorrer; 3. Raciocinar”37. Porém, o discurso é entendido em um
contexto mais amplo para autores clássicos das ciências sociais. Como bem coloca Orlandi
(2012, p. 15), “a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso,
de correr por, de movimento”.
É bem verdade que um conteúdo textual denota uma interação linguística entre os
interlocutores de uma determinada situação retratada, por exemplo, por um texto. Todavia, em
um olhar mais profundo é possível observar que será no discurso que a posição do orador estará
demarcada. Isso porque “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo
é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (PÊCHEUX, 1975
apud ORLANDI, 2012, p. 17).
É no discurso que as relações de poder ficam demarcadas, conforme vimos. É nele,
também, que se revela as intenções do sujeito, permeadas por sua retórica e por seu ethos, sua
36 Doravante, utilizaremos a sigla AD para nos referimos à análise do discurso. 37 Fonte: Dicionário Priberam. Disponível em: <https://www.priberam.pt/DLPO/discursar>. Acesso em: 28 fev.
2016.
70
imagem. Nessa concepção de discurso, vale mencionarmos os estudos de Michel Foucault
(1999). Seguindo a visão foucaultiana, esse discurso que emana do sujeito tem forte relações
com o poder. Ele poderá ser moldado ao sabor de estratégias institucionais, que assim o mantém
sob ‘controle’ dentro de determinados padrões. Esse discurso, à primeira vista, representa pouca
coisa; porém, as interdições às quais está sujeito revela uma ligação com o desejo e o poder.
O discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e
visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar
(FOUCAULT, 1999, p. 10).
Esses discursos que se ligam ao poder revelam, em epítome, criações de efeitos de
verdade, à medida em que as instituições, mais uma vez, os colocam. Ainda segundo Foucault
(1999, p 8-9), em toda sociedade a produção do discurso é “controlada, selecionada, organizada
e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório”. Para isso, existem procedimentos que cerceiam
o discurso do sujeito, ou mesmo o controlam. Alguns destes processos indicam o que não pode
ser dito, chamado por Foucault (1999) de “exclusão”, e outros que podem ser pensados, mas
não pronunciados, denominados pelo autor como “controle do discurso38”.
No processo de exclusão, que Foucault (1999) coloca como procedimento externo, há a
interdição, que seria uma forma de exclusão estabelecida quando o sujeito sabe que não pode
falar qualquer coisa em qualquer lugar. O tabu do objeto é um exemplo. Nele, é de
conhecimento que alguns assuntos não devem ser trazidos à tona. A sexualidade e política são
dos lugares mais fortes nesse tabu, como se o discurso os fizesse exercer seus poderes. Ainda
na exclusão, Foucault (1999) também cita um processo de separação e rejeição: quando seu
discurso não é igual àquele estabelecido na interdição, se opondo ao que está disposto, este
discurso é tido como louco e é separado e rejeitado. Por fim, o autor cita a vontade de verdade,
que seria o discurso que busca ser aceito como legítimo, mesmo que não o seja – daqui
relembramos a essência do ethos: soar crível à audiência, e dos efeitos de verdade que um
discurso pode produzir O ethos não é senão a criação de um personagem do discurso, de uma
persona que se constrói a partir de estratégias discursivas para passar uma determinada imagem
38 Não entraremos em todos os modos de controle e exclusão do discurso trazidos por Foucault (1999), mas sim
aqueles em que entendemos ser relevantes lembrar em nosso escopo teórico, por serem congruentes aos nossos
objetos.
71
ao leitor. Essas situações, assim, “funcionam como sistemas de exclusão; concernem, sem
dúvida, à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo” (FOUCAULT, 1999, p. 21),
incidindo em um tipo de coerção nos indivíduos.
De outro lado, ainda na coxia de Foucault (1999), chamados pelo autor de
“procedimentos internos”, existem os discursos que se autocontrolam. No primeiro caso, há o
comentário. A égide deste procedimento seria a repetição de um discurso por outros. Como
exemplo, Foucault (1999) menciona os textos religiosos e jurídicos – a ideia de interdiscurso,
que veremos mais abaixo, nos parece glorificar esse procedimento interno de controle do
discurso. Outra colocação faz menção ao autor como outro princípio de cerceamento interno do
discurso. Aqui, Foucault (1999) afirma que a ‘autoridade’ do autor modifica o sentido do
discurso; quando identificado, detém um sentido maior. Diz Foucault (1999, p. 29): “O
comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma de
repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma
identidade que tem a forma da individualidade e do eu”. Assim, essa individualidade do autor
pode conferir um sentido mais crível ao seu discurso – relacionamos este caso ao discurso de
autoridade, que trabalharemos mais à frente. Finalmente, temos a disciplina, que age como
dispositivo de cerceamento na indicação de que os discursos são aceitos mediante proximidade
aos discursos daquele campo do saber específico; como exemplo, Foucault (1999) cita os
objetos e métodos distintos que Mendel empregava no século XIX, e que isso não era aceito
pelos biólogos da época.
Fundamentalmente, na concepção foucaultiana o discurso será o lugar da emergência
das falas, determinando a construção de saberes sobre o mundo e sobre uma suposta ‘verdade’
legítima – o que, em nosso ver, não passa de uma construção arbitrária. De tal modo, o discurso
está envolvido numa luta simbólica pelo significar o mundo sob um viés legitimado.
Em vista de tais considerações, acrescentamos que certos ethos só podem emergir de
acordo com certas construções discursivas – ou, em outros termos, a partir de certas estratégias
discursivas. O ethos, assim, não é senão um efeito do discurso, e será instituído sob uma série
de relações de poder que se dão no discurso. Serão justamente estas relações que investigaremos
em nossas análises.
Portanto, considerando o discurso como algo que vai muito além de uma ‘simples’
mensagem; indicando que dele emerge todo um mundo que há por trás do ato falante,
apresentemos a AD como metodologia.
72
4.2 A ANÁLISE DO DISCURSO COMO METODOLOGIA
A AD mantém filiações históricas em um espaço de questões criadas na relação entre
três domínios disciplinares: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise. Talvez a área que mais
tenha influenciado o desenvolvimento da AD, a linguística se conforma no entendimento de
que não há transparência na linguagem, ou seja, a língua é seu objeto próprio, regida por sua
ordem própria, conforme pontua Orlandi (2012).
Braga (1980 apud Brandão, 2002, p. 11) observa que a linguagem enquanto discurso “é
o sistema-suporte das representações ideológicas”. Assim, na AD, a língua não é mais encarada
somente como estrutura, mas sim como acontecimento. Cabe também a ressalva de
Maingueneau (1989, p. 18) nesse sentido, quando o autor coloca que “a AD não é, pois, uma
parte da linguística que estudaria os textos, da mesma forma que a fonética estuda os sons, mas
ela atravessa o conjunto de ramos da linguística”. Portanto, para a AD:
a. a língua tem sua ordem própria mas só é relativamente autônoma
(distinguindo-se da Linguística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação
na análise da linguagem);
b. a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos);
c. o sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e
também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o
afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo
inconsciente e pela ideologia. (ORLANDI, 2012, p. 19-20).
Trabalhando a linguagem como esse fenômeno entrecortado por outros discursos, nos
municiaremos com a AD, enquanto campo teórico-metodológico na presente pesquisa.
4.2.1 A AD enquanto instrumento para análise ethópica
A premissa da AD como metodologia pode ser entendida, em suma, como um método
de investigação que permite observar os sentidos investidos em um discurso – seja ele textual,
imagético ou da natureza que for, em nosso entendimento –, a fim de perceber as imbricações
ideológicas dos sujeitos produtores deste discurso. Assim, a AD “visa a compreensão de como
um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por
sujeitos” (ORLANDI, 2012, p. 26). Portanto, “à AD cabe não só justificar a produção de
determinados enunciados em detrimento de outros, mas deve, igualmente, explicar como eles
puderam mobilizar forças e investir em organizações sociais (MAINGUENEAU, 1989, p. 50).
Na análise de nossos objetos empíricos, iremos utilizar a AD como uma forma de
entrada para entendermos o ethos discursivo dos programas popularescos já citados. Além
73
disso, perseveramos a AD por entendermos a significância que Documento Especial, Aqui
Agora e Balanço Geral tiveram/tem enquanto atrações que marcaram época na televisão
brasileira. Maingueneau (1989) traz à baila o interesse da AD em objetos que representem
conflitos sócio-históricos, de textos produzidos por instituições que restringem a enunciação; e
de objetos que delimitem um lugar próprio no exterior de um interdiscurso. Referindo-se a esses
interesses, o autor recorre ao termo “formações discursivas” – aptas a serem melhor trabalhadas
pela AD – e o define como:
Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo
e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social,
econômica, geográfica ou linguista dada, as condições de exercício da função
enunciativa (FOUCAULT, 1980, p. 98 apud MAINGUENEAU, 1989, p. 14.)
Remontando o cerne desta pesquisa – a configuração ethópica dos programas
popularescos –, refletimos sobre como o ethos, conceito provindo da retórica, pode ser
trabalhado na AD. Maingueneau (1989) contribui com essa reflexão quando asserta que a
eficácia do ethos reside no fato de que estes carregam os enunciados, mas nunca revelam a
função. No caso dos programas observados, os apresentadores parecem dispor de um ethos
eficaz nesse sentido, pois se colocam como um tipo de defensores do povo, que brigam por eles
quando denunciam as ‘injustiças’ e os crimes cometidos, através de um discurso que os colocam
em tal posição graças a termos que o familiarizem com a audiência. Ainda argumentando sobre
como o ethos pode ser trabalhado na AD, Maingueneau (1989) observa que estes só poderão
integrar-se quando realizam um duplo deslocamento. O primeiro momento indica que deve
haver um esquecimento de qualquer preocupação “psicologizante e voluntarista” (1989, p. 45),
conforme o enunciador desempenharia o papel de acordo com os efeitos que deseja produzir
em sua audiência – o que atuaria nessa eficácia retórica seria a formação discursiva, mais do
que o sujeito; assim, o conteúdo discursivo e o tom do autor do discurso caminham juntos. Em
um segundo momento, Maingueneau (1989) coloca a importância de a AD, como metodologia,
entender o ethos como interligado o oral e ao escrito, para aí sim atingir pujança.
Trilhando um caminho que nos possibilitará analisar o ethos de nossos objetos
empíricos, imbricaremos, em tais análises, elementos da linguística e da composição imagética
na metodologia.
4.3 ELEMENTOS ATUANTES NA FORMAÇÃO DO SENTIDO DISCURSIVO
No propósito de utilizarmos a AD como metodologia, iremos nos debruçar sobre alguns
74
conceitos da linguística e da composição de uma narrativa cinematográfica – em nosso caso,
televisiva. Trabalharemos tais conceitos de acordo com nossas observações empíricas sobre os
objetos. Inicialmente, abordaremos aspectos que conformam o sentido do discurso no
‘silêncio’, como a noção de “dito e não-dito”. Tal ideia faz menção aos pressupostos, ou seja,
algo que não foi colocado claramente, mas que age nessa criação de sentido.
4.3.1 Pressuposições e subjetividades: o dito e o não-dito
Em um discurso, há diversas formas de não-dizer, como a noção de interdiscurso, de
ideologia e de formação discursiva – esta última conforme visto anteriormente. Colocando
determinada mensagem em um discurso, sempre permanecerá o não-dito, que indicará o oposto.
Por exemplo, dizer que a pessoa está “sem sono” caracteriza que ela está “descansada”. Eni
Orlandi (2012) pondera que no não-dizer pode se dar o pressuposto e o subentendido,
separando-os por aquilo que deriva da instância da linguagem/discurso (pressuposto) do que se
dá em contexto (subentendido).
Pensando no dito e não-dito a parit de argumentações, podemos trazer as asserções de
Fiorin (2016 apud PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005), que apresenta a questão da
incompatibilidade argumentativa. Assim, um argumento pode ser alocado no discurso a partir
de uma demonstração de incompatibilidade entre sentenças. Pensando em nossos objetos
empíricos, podemos pinçar uma frase colocada por um policial na edição Guerra Social, do
Documento Especial. Diz o policial: bandido bom é bandido morto e enterrado em pé para não
ocupar muito espaço. Na frase, fica clara a intenção do policial em ver os “bandidos” mortos,
sejam eles quais forem, de quais causas tenham originado o crime. Seguindo no exemplo, o
policial ainda visa sua persuasão retórica no argumento de que o “bandido” deve ser enterrado
de pé para não ocupar espaço; parte daí sua aversão argumentativa aos “bandidos”.
No discurso o não-dito pode ser trabalho pelo silêncio, que pode representar a
“respiração da significação, lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o
sentido faça sentido. É o silêncio como horizonte, como iminência de sentido” (ORLANDI,
2012, p. 83).
Ainda nesse sentido, alguns veículos de comunicação parecem engendrar suas intenções
no próprio discurso, mas através do que Ducrot (1972) chama de “o implícito do enunciado”.
Para ele, este procedimento faz menção à uma estratégia que visa implicar uma determinada
intenção não explicitamente no discurso. Como exemplo, o autor cita que “dizemos que o tempo
está bom para entender que vamos sair; falamos do que vimos fora para saber que vamos sair”
75
(DUCROT, 1972, p. 15). Verificamos, aqui, o não-dito que, mesmo sem voz, demarca sua
intenção no discurso.
Os dizeres e não-dizeres perpassam outras categorias discursivas, que estão ligadas às
condições de produção de um discurso. Entendê-las possibilita, ao analista, projetar o contexto
na qual o discurso, previamente recortado como corpus, pode ter sido proferido.
4.3.2 Condições de produção do discurso
Em um discurso, diversas situações podem influir quando de seu pronunciamento.
Desde o auditório, as condições da audiência, até o enredamento de elementos que serão
colocados neste discurso fazem parte de uma situação geral que presencia o nascedouro de um
discurso: o contexto imediato, em sentido estrito (ORLANDI, 2012). Essencialmente, essas
condições compreenderão os sujeitos e a situação.
Conforme aponta Orlandi (2012), tais condições de produção podem ser consideraras,
como circunstâncias da enunciação, também em sentido amplo, e aí elas envolvem o contexto
sócio-histórico e ideológico. Nesse raciocínio, é permissivo partir de uma análise que investigue
o contexto imediato considerando um teor mais ‘aparente’ do discurso. No programa
Documento Especial, a abertura de algumas edições era seguida de dizeres que indicavam,
sobre a cor vermelha como cor de fundo, que imagens fortes seriam exibidas e estariam a cargo
da audiência o acompanhamento destas; no Aqui Agora, as legendas das reportagens ficavam
dispostas sobre duas faixas: uma vermelha, outra preta.
Figura 7 – Dizeres alertam ao telespectador a inadequação de imagens a serem exibidas
Fonte: Documento Especial – edição Delírio na Madrugada (1989, Rede Manchete)
76
Pensando no contexto imediato, entendemos a cor vermelha utilizada em ambas como
atrelada ao sangue, dando essa ideia de violência, do insólito, quando aliada à mensagem que
versa sobre as cenas fortes que viriam a seguir – muito embora a cor seja congruente ao
movimento de esquerda, os programas traziam conteúdo popularesco, o que pode causar essa
confusão entre a utilização do vermelho atrelado ao violento ou ao popularesco.
Orlandi (2012, p. 31) também indica a necessidade de se observar as condições de
produção a partir de um contexto amplo: “é o que traz para a consideração dos efeitos de
sentidos elementos que deram da nossa forma de sociedade, com suas Instituições”. Mais uma
vez utilizando os casos que trouxemos, entendemos que as faixas vermelha e preta, utilizadas
nas reportagens do Aqui Agora, remetem à instituição de segurança pública do estado de São
Paulo: a Polícia Militar, que utiliza as cores da bandeira do estado.
Na AD, o dispositivo desenvolvido para auxiliar no entendimento das condições de
produção também imbricará em si a questão do interdiscurso. É nele que o já dito volta ao
presente e ressignifica na memória discursiva a partir do colocado.
4.3.3 Interdiscuro
Na referência que a memória faz a algum detalhe notado na mensagem no discurso–
como no caso de a cor vermelha ser relacionada à esquerda, ou a cor preta ao movimento
fascista – dá-se o nome de interdiscurso. Seria, assim, um conjunto de proposições ditas no
discurso anteriormente, por outros sujeitos, mas que nos remontam à memória, e do qual
partimos para tecer o nosso discurso. Isso indica que um discurso colocado traz em seu bojo
outros discursos já ditos, que o entrecortam: “é o que chamamos memória discursiva: o saber
discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito
que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra”. (ORLANDI, 2012, p. 31). A
formulação de um discurso será, assim, proveniente das formações discursivas (FD) que
congregam em cada sujeito.
Sírio Possenti (2003), nesse caminho, resgata o conceito de pré-construído, que irá
permitir à AD entender que algo já fora dito antes e alhures. Nessa questão, segundo o autor, o
que entra em jogo na AD será: “a posição segundo a qual os sujeitos falam a partir do já dito –
e isso é exatamente o que o interdiscurso lhes pões à disposição e/ou lhes impõe” (POSSENTI,
2003, p. 255). Dessa forma, o que o autor chama de “todo complexo” (o discurso proclamado
a partir dessas conceituações) envolve um conjunto X de pré-construídos, sendo que estes
somente serão atendidos pelos sujeitos quando lhe são aceitáveis.
77
De fato o que “pertence” a uma FD ou é retomado, afirmado, ou,
alternativamente, denegado. Mas o que pertence a outra FD, mesmo fazendo
parte do interdiscurso (o que é óbvio, dada a definição), só pode ser recusado,
ironizado, parodiado, tornado simulacro (POSSENTI, 2003, p. 256).
De tal modo, podemos pensar que os programas popularescos podem engendrar seus
discursos baseados em FD predispostas anteriormente. Vale lembrar que desde O Homem do
Sapato Branco o popularesco segue na televisão brasileira, revelando que a audiência se
identifica com este tipo de programa. Isso dá a ideia de que a FD da audiência recobre discursos
entrecortados por outros já lançados há décadas nestes programas.
Essa relação entre formação discursiva e interdiscurso também é abordada por
Maingueneau (19890 apud COURTINE e MARANDIN) na ideia de que a formação discursiva
tem de ser definida a partir do interdiscurso. Assim:
O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante
no qual uma formação discursiva é levada (...) a incorporar elementos
pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua
redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento
de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também
provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo
a denegação de determinados elementos.
Seguindo em seu entendimento do conceito de interdiscurso, Maingueneau (1989)
propõe três termos complementares que auxiliam na compreensão por parte do analista: o
universo discursivo, o campo discursivo e o espaço discursivo.
O “universo discursivo” compreende o conjunto de formações discursivas de todos os
tipos que se relacionam em conjuntura. Complementa Possenti (2003, p. 263): “Este universo
discursivo representa necessariamente um conjunto finito. (...) define apenas uma extensão
máxima, o horizonte a partir do qual serão construídos os domínios susceptíveis de serem
estudados”.
O “campo discursivo”, por sua vez, imbrica formações discursivas que se encontram em
concorrências, mas se delimitam por uma posição enunciativa em determinada região.
Por fim, o autor cita o “espaço discursivo”, que engloba um tipo de “subconjunto do
campo discursivo, ligando pelo menos duas formações discursivas que, supõe-se, mantêm
relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados”
(MAINGUENEAU, 1989, p. 117).
Quando alguma informação é publicada pelos veículos de comunicação, há uma
78
sensibilidade do interdiscurso que remonta essa memória discursiva. Se há uma notícia sobre
um ataque terrorista, por exemplo, a audiência poderá retomar, em seu interdiscurso, calcado
na FD, o atentado ocorrido nos Estados Unidos em 2001. Essencialmente, podemos colocar que
O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que
determinam o que dizemos. (...) é preciso que o que foi dito por um sujeito
específico, em um momento particular se apague na memória para que,
passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras
(ORLANDI, 2012, p. 33-34).
Além da determinação sobre tudo que já ocorreu e que define nosso discurso, polissemia
e paráfrase também são dois elementos linguísticos indispensáveis na análise discursiva, pois
revelam uma nova ‘roupagem’ ao discurso já colocado.
4.3.4 Polissemia e Paráfrase
Pensando na ideia da dicotomia entre o mesmo e o diferente no discurso, tal qual nos
indica o interdiscuro, dois elementos acabam vindo à tona nesse processo: a polissemia e a
paráfrase. Polissemia39 diz respeito aos vários significados que uma mesma palavra pode ter,
dependendo do contexto em que ela está inserida. Já a paráfrase indica a manutenção da mesma
mensagem originalmente colocada, mas com outras palavras de um novo autor, mas que voltam
ao mesmo significado quando colocadas sob uma formação discursiva semelhante. Orlandi
(2012, p. 36) coloca que: “a paráfrase representa, assim, o retorno aos mesmos espaços do dizer.
Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado”. Para Maingueneau (1989,
p. 96), “(a parafrasagem) define uma rede de desvios cuja figura desenha a identidade de uma
formação discursiva”.
Dessa forma, através da paráfrase e da polissemia é que a análise discursiva irá discernir
o sentido simbólico do sentido político, pois, conforme vimos, todo discurso é ideologicamente
marcado. Portanto, é no jogo de paráfrase e polissemia que a AD auxiliará o analista a
interpretar a criatividade do que já fora colocado outrora. Daí decorre, também, o jogo
parafrásico.
39 Por exemplo: ‘A manga da minha camisa é curta’: manga, aqui, refere-se a uma parte do tecido da camisa; ‘Suba
na árvore e pegue aquela manga’: neste outro exemplo, a palavra manga faz menção à fruta manga. Ou seja, a
mesma palavra traz dois significados distintos na língua portuguesa.
79
A “criação” em sua dimensão técnica é produtividade, reiteração de processos
já cristalizados. Regida pelo processo parafrástico, a produtividade mantém o
homem num retorno constante ao mesmo espaço dizível: produz a variedade
do mesmo (ORLANDI, 2012, p. 37).
No discurso, as palavras são colocadas de acordo com a ideologia do autor deste
discurso, remetendo à formação discursiva. Se produzimos discursos de acordo com nossas
vivências e ideologias, podemos dizer que o sentido em si não existe, mas que ele é determinado
por essas posições que colocamos em jogo no processo sócio-histórico das palavras. Orlandi
(2012) entende dois aspectos fulcrais a serem postos em riste, a saber:
a) O discurso terá um sentido porque aquilo que o sujeito coloca se inscreve em uma
formação discursiva e não em outra, para ter um determinado sentido e não outro – conforme
vimos na breve discussão sobre interdiscurso. As palavras não têm um sentido nelas mesmas,
pois ganharão este sentido nas formações discursivas em que se inscrevem. Já a formação
discursiva, conforme colocado, representa no discurso as formações ideológicas. Portanto, os
sentidos são sempre determinados ideologicamente, sem exceção. Logo, estes sentidos não
estão predeterminados por propriedades da língua, já que dependem das relações constituídas
nas formações discursivas. A partir daí, chega-se à noção de metáfora, definida por Lacan,
(1966) apud (ORLANDI, 2012, p. 44) como a tomada de uma palavra por outra. Segundo
Pêcheux (1975 apud ORLANDI, 2012, p. 44), “o sentido é sempre uma palavra, uma expressão
ou uma proposição por uma outra palavra, uma outra expressão ou uma proposição”, e o sentido
existe somente nas relações de metáforas nas quais uma formação discursiva é historicamente
o lugar mais ou menos provisório.
b) Os diferentes sentidos serão compreendidos na referência à formação discursiva. Por
exemplo: palavras iguais terão significados diferentes (polissemia) por conta da formação
discursiva distinta. A evidência do sentido, que não passa de um efeito ideológico, bloqueia
nossa percepção sobre seu caráter material, pois a evidência (ou identidade) do sujeito apaga o
fato de que ela resulta em identificação, já que o sujeito irá se constituir por uma interpelação.
Com os elementos que trouxemos acima, entendemos ser possível desenvolver nosso
protocolo de análise do discurso, observando como cada um destes elementos atuou na criação
de efeitos de sentido nos programas analisados. E para completarmos esse protocolo, traremos
na sequência outros elementos que julgamos influenciarem na configuração ethópica das peças
jornalísticas estudadas, como os elementos que influem na composição imagética, na
composição sonora, além de recorrências discursivas e retóricas.
80
4.4 ELEMENTOS TÉCNICOS DE COMPOSIÇÃO IMAGÉTICA
Ao observar uma imagem, é preciso considerar uma sequência de elementos que a
compõe. O que se revela aos olhos do telespectador – no caso da imagem dos televisivos que
observamos – apresenta uma organização articulada em sua composição, objetivando uma
representação de real. Conforme Pondera Aumont (2003), na relação que mantém com o real,
a imagem se mantém na esfera do simbólico. Isso implica que: “reconhecer alguma coisa em
uma imagem é identificar, pelo menos em parte, o que nela é visto com alguma coisa que se vê
ou se pode ver no real” (AUMONT, 2003, p. 82). Nesse processo de criação da imagem – que
influi diretamente no ethos dos programas analisados – há estratégias a serem levadas em conta.
Da relação entre imagem e som se constitui os efeitos de sentido imbricados no conteúdo
audiovisual – algo perceptível em nossos objetos de análise. No caminho de tentarmos
depreender os sentidos apensos a esse conteúdo dual, abordaremos as ideias de ponto de vista
e ponto de escuta.
4.4.1 Ponto de vista e ponto de escuta na narrativa audiovisual
Partindo para os meandros da ideia de ponto de vista, Vanoye e Goliot-Lété (2002)
abordam que essa expressão pode ser entendida por três vieses:
1) – Em um sentido visual: definida a partir dos questionamentos sobre onde se nota o
que visível; de qual lugar é tomada a imagem; e onde está posicionada a câmera.
2) – Em um sentido narrativo: questionamentos acerca de quem conta a histórica; a
partir de qual ponto de vista essa história é contada; e se esse ponto de vista é assimilável.
Indicam os autores:
As duas ordens de perguntas se combinam quando nos perguntamos: Quem
vê? O ponto de vista (visual) é o de um personagem (imagem às vezes
chamada de “subjetiva”) ou de um narrado exterior à história? A imagem é
atribuível a um personagem ou ao filme? (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 2002,
p. 51).
3) – Em um sentido ideológico: vale-se de um questionamento sobre o ponto de vista da
obra cinematográfica sobre personagens e enredo; e se este autor do filme se manifesta.
Com relação ao ponto de escuta, ainda para Vanoye e Goliot-Lété (2002), emergem os
questionamentos:
1) – De onde provém o som? Este ponto de escuta é coerente com o ponto visual? Ou
existe incoerência?
81
2) – Questionamentos acerca de: quem ouve, quem escuta e se o espectador e
personagem compartilham da mesma escuta.
Planos e enquadramentos de câmera também participam dessa engrenagem. Como nos
lembra Mascelli (2010, p. 227), “uma boa composição é a disposição de elementos visuais para
formar um todo unificado e harmonioso”. Nesse caminho, apresentaremos, resumidamente,
estes elementos que colocamos, a fim de os engessarmos em nossas análises.
4.4.2 O enquadramento
Enquadramento pode ser entendido, simplesmente, como o posicionamento que o
produtor do filme pretende dar ao quadro (Mascelli, 2010). Será esse enquadramento que irá
definir ao telespectador qual é o olhar que o produtor do filme pretende passar. Aumont (2003,
p. 153) traz uma sensível definição acerca do enquadramento:
O enquadramento é pois a atividade da moldura, sua mobilidade potencial, o
deslize interminável da janela à qual a moldura equivale em todos os modos
da imagem representativa baseados numa referência, primeira ou última, a um
olho genérico, um olhar, ainda que perfeitamente anônimo e desencarnado,
cuja imagem é o traço.
A escolha de um enquadramento nunca é aleatória, uma vez que se trata de um
instrumento que indica como cada cinegrafista escolhe contar uma história. De tal modo,
“enquadrar é, portanto, fazer deslizar sobre o mundo uma pirâmide visual imaginária”
(AUMONT, 2003, p. 154). E isso porque, ao passo que os planos gerais privilegiam a inserção
de personagens em contexto (ou seja, tanto os personagens quanto o cenário ganham destaque),
os planos médios tendem a privilegiar mais os personagens e os planos detalhes conotam
sempre uma noção de intimidade com o retratado. Pode-se tanto despersonalizar um ato ou
tornar um personagem responsável por essa mesma ação apenas a partir de uma escolha
cuidadosa do enquadramento.
4.4.3 Planos de câmera
Além do enquadramento, outro elemento em relação às construções dos efeitos de
verdade e do ethos nos três programas é a questão dos planos de tomada. Serão eles que irão
definir o efeito de verdade transpassado em cada imagem. Nesse método, uma boa escolha pode
substanciar o efeito dramático da imagem, ao passo em que uma má escolha por parte do
produtor da cena dificulta a compreensão do significado. Na definição de plano, Vanoye e
82
Goliot-Lété (2002, p. 37) asseveram: “porção de filme impressionada pela câmera entre o início
e o final de uma tomada”. Ainda sobre os planos, podemos colocar que são eles os definidores
de uma visão contínua da cena (MASCELLI, 2010).
Alguns dos planos40 podem ser divididos em: grande plano geral, plano geral, plano
médio e primeiro plano.
O grande plano geral é aquele mais aberto, que representa uma grande área vista,
utilizado em cenas que desejam mostrar um ambiente grande, como em imagens de helicóptero
que mostram uma perseguição, por exemplo; o plano geral exibe toda a área de ação do filme;
o plano médio, por sua vez, alterna entre o plano geral e o primeiro plano (ou close), no qual os
personagens retratados são mostrados acima dos joelhos ou abaixo da cintura (MASCELLI,
2010). O último que mencionaremos, o primeiro plano, que varia em relação à proximidade,
talvez seja aquele que confere a maior carga dramática à uma cena; é nele que o produtor da
cena destaca completamente um determinado detalhe. “(Os primeiros planos) são um dos
recursos narrativos mais poderosos disponíveis ao diretor. Eles devem ser reservados para
destaques de vital importância para a história” (MASCELLI, 2010, p. 199). Indicaremos mais
sobre o uso dos planos nos popularescos que escolhemos como corpus para esta pesquisa mais
à frente, quando em nossas análises.
Não menos importante é o plano-sequência, que se refere ao acompanhamento da
movimentação da cena sem cortes, ou seja, “à realização de uma sequência num único plano”
(VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 2002, p. 3.). Ainda sobre este plano, Pasolini (1985) observa que
nele não há qualquer escolha de ângulo por parte do produtor da cena. Além disso, o plano-
sequência será sempre um retrato do presente, do que observa, no instante, o espectador. Em
outros termos, é a sequência completa de uma cena, sem cortes, algo muito comum em
reportagens que mostram perseguições policiais.
Ainda no caminho do plano-sequência, também destacamos um recurso extra utilizado
nesse enquadramento sequencial: a chamada câmera nervosa. Este tipo de manejamento da
câmera é disposto a partir do início do plano-sequência e segue até determinado ponto,
ganhando esse status de “nervosa” porque acompanha o repórter na situação completa. Em uma
situação em que desembarque do veículo de imprensa, a câmera nervosa irá acompanhar o
repórter desde este desembarque, e é chamada assim também por conta do movimento de agito
que a câmera faz nesse acompanhamento. O jornalista Paulo Henrique Amorim (2015) define:
“a câmera nervosa, histérica, sai do repórter, vai ao ‘fato’, e volta, sem cortes, ao repórter”.
40 Trouxemos à baila os planos de enquadramento observados em nossos objetos.
83
Alguns autores, como o próprio Paulo Henrique Amorim, inclusive, atrelam o surgimento do
recurso ao Aqui Agora.
Além dos enquadramentos dispostos no ponto de vista, os efeitos sonoros também atuam
na formação de sentido, compondo uma importante harmonização sonoro-imagética para o
analista que deseja entender o produto audiovisual.
4.4.4 A trilha sonora
Um outro aspecto interessante que pode ser citado a respeito dos procedimentos
estéticos de cada um dos programas diz respeito ao modo como cada um deles articula a trilha
sonora das reportagens. E isso pode ser pensado a partir de dois eixos: os efeitos sonoros e o
uso de trilha musical, considerados sob o aspecto são colocados na edição dos programas
analisados.
Nos efeitos sonoros, outro elemento que compõe a carga sonora e ajuda na representação
ethópica, também é comum observar determinadas vinhetas que indicam o sentido de
determinada matéria, já na chamada desta. Aliada a esses efeitos, as trilhas carregam efeitos de
sentido: nas matérias policiais, por exemplo, essa referência ao sentido dramático era constante,
pois a trilha se mantinha, no Documento Especial, durante todo o período de exibição das
reportagens; nos programas mais recentes, o Aqui Agora e o Balanço Geral, essas trilhas
acompanhavam a chamada das matérias e retornavam após a exibição destas – no caso do
Balanço Geral, durante as considerações dos apresentadores e comentaristas.
Há também o uso de efeitos sonoros que podem ser ambiente ou ter sido inserido
artificialmente. Em uma cena de perseguição policial, por exemplo, parece haver uma busca
por ressaltar o barulho da sirene dos veículos policiais, bem como a alta rotação dos motores
das viaturas, indicando que essa perseguição se dá em alta velocidade. Porém, nas edições
observadas do telejornal Aqui Agora, é possível notar que os efeitos sonoros da sirene de polícia
são inseridos artificialmente, uma vez que, mesmo com os cortes na reportagem, os efeitos
seguem iguais. Isso reforça ainda o caráter policialesco da edição.
Outrossim, além dos elementos que arranjavam uma narrativa imagética e sonora,
também traremos alguns casos de recorrências discursivas e campos temáticos mais
observados.
4.5 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS
Buscando reunir a maior parte de elementos possível, que nos permita análises mais
84
robustas, analisaremos também quais foram os temos mais comumente usados entre as edições,
bem como os campos temáticos apresentados.
Premente às características do jornalismo popularesco, o sensacionalismo traz em seu
bojo propriedades elementares da violência, como a exploração de crimes, por exemplo. É nesse
sentido que “o discurso dos jornais popularesco (...) refere-se à repetição da temática da
violência. A violência vista como um conteúdo próprio do cotidiano das classes de baixa renda
familiar” (PEDROSO, 1994, p. 40). Igualmente, não será incomum encontrar a temática
violência em comum entre as atrações que atuam como objeto empírico deste trabalho, bem
como termos que nos conduzam ao tema.
4.6 RETÓRICAS
Por fim, manejaremos as análises para o entendemos como o discurso dos programas
agiam no sentido de afirmarem-se como verdadeiros, graças aos efeitos de verdade. O
argumento de autoridade é uma dessas estratégias usadas pelos programas. Outro viés em
atingir esse efeito de verdade seria por meio dos elementos pathéticos, que visam despertar
emoção no público.
4.6.1 Argumento de autoridade
Esse argumento, essencialmente, é atingido ao dispor de determinada pessoa que, na
presença de sua imagem ante a audiência, se afirma como verdadeira. Quando Foucault (1999)
aponta que um dos procedimentos para controle do discurso diz respeito ao autor deste discurso,
entendermos ser possível relacionar ao argumento de autoridade, proposto pela retórica.
Tais argumentos, então, são influenciado pelo prestígio. Podem ser utilizados para a
confirmação de uma ideia colocada, a partir da sentença de alguém reconhecidamente
habilitado para tal. Isso porque o argumento de autoridade “utiliza atos ou juízos de uma pessoa
ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese” (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 348).
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) apresenta como exemplo a situação em que alguém
diz dar a ‘palavra de honra’ como prova; nesse caso, a opinião que a outra pessoa terá sobre a
honra do primeiro é que poderá conferir essa autoridade suficiente, a ponto de julgá-la como
legítima. Trazendo aos nossos objetos, basta lembrarmos quando, durante alguma reportagem
que verse sobre algum crime, o delegado que observa o caso é entrevistado. Ou seja, ele é a
autoridade capacitada para falar sobre o crime cometido de nosso exemplo, portanto, ele diz a
85
‘verdade’, já que seu discurso poderá ser encarado pela audiência como um discurso imbuído
de efeitos de verdade.
Junto a esse argumento, é comum observar elementos que despertem emoção na
audiência, compondo mais um dos três lados da tríade retórica: o pathos.
4.6.2 Elementos pathéticos
Além do argumento de autoridade, outro método adotado pelos programas
popularescos, sempre em busca da legitimação do seu conteúdo junto à audiência, diz respeito
aos elementos pathéticos, trabalhados com base na noção de pathos como a própria audiência.
Isso vem ao encontro do que Fiorin (2004) relaciona, a partir da tríade retórica proposta por
Aristóteles, como ethos, pathos e logos representam enunciador, enunciatário e o discurso,
respectivamente.
Em vista de tais considerações, contudo é preciso considerar que o auditório – em nosso
caso representado pela audiência dos programas popularescos – não é totalmente passivo e
suscetível a qualquer discurso que possa ser bem trabalhado pelo enunciador. Fiorin (2004, p.
70) argumenta que vislumbrar o pathos “não é (enxergar) a disposição real do auditório, mas a
de uma imagem que o enunciador tem do enunciatário”. Isso implica que cada discurso deve
ser pensado pelo enunciatário – os produtores dos programas popularescos – a partir de sua
audiência, que não será sempre igual, pois é diferente falar em um programa de esportes e em
um programa popularesco.
Intrinsicamente, ethos e pathos devem atuar juntos para a eficácia discursiva. Nesse
caminho, Fiorin (2004) estabelece duas relações entre eles: harmônica ou complementar. Na
primeira, a ethos e pathos ajustam-se perfeitamente no discurso proferido, quando enunciador
e enunciatário comunicam-se em mesmo sentido. Já na relação complementar, aponta Fiorin, o
ethos completa uma certa “carência” do pathos.
Trazendo nossos objetos analíticos à discussão, podemos relacionar termos pathéticos,
utilizados nos discursos dos programas, como o choro de uma mãe que perde seu filho, a revolta
de alguém que sofreu algum tipo de violência ou mesmo o comentário do jornalista enquanto
enunciador. Tais características visam atuar, em nosso entendimento, como uma relação
complementar entre ethos e pathos.
Essas estratégias podem despertar o que Charaudeau (2012) chama de “verdade de
emoção” – conforme vimos no primeiro capítulo. Retomaremos estes elementos em nossas
análises.
86
Após relacionarmos o entrecruzamento metodológico que dispomos neste capítulo,
apresentando a AD e abarcando os elementos composicionais da imagem e do som, além das
recorrências discursivas e retóricas, iniciaremos nossas observações sobre os objetos empíricos:
Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral. Para isso, mobilizaremos três edições de
cada programa, que nos permitirá tecer olhares e relações sobre como o ethos das peças
jornalísticas se configurou ao longo das quatro últimas décadas. A seguir, descreveremos cada
uma das 9 edições observadas por esta pesquisa.
4.7 CORPUS DE ANÁLISE
Na sequência do trabalho, mobilizaremos as edições de cada atração escolhida, que
compreendem programas produzidos e veiculados no final da década de 1980, início e meados
da década de 1990, além da presente década. As reportagens escolhidas para as análises partiram
de um recorte embasado no campo temático da violência social, uma vez que este, em nossa
compreensão, circunda a essência dos programas popularescos através de representações de um
violento cotidiano social da audiência. A partir de então, organizamos um sorteio dentre as
edições disponíveis de cada programa – dispomos de 24 edições do Documento Especial, das
quais 19 postadas no site de compartilhamento de vídeos YouTube e 6 adquiridas junto a um
colecionador; 13 edições do Balanço Geral, postadas também no YouTube; e 22 vídeos do Aqui
Agora, dentre 11 edições completas (5 delas obtidas junto ao Sistema Brasileiro de Televisão –
SBT e 6 outras adquiridas de um colecionador) –, selecionando reportagens que refletissem os
critérios que preestabelecemos anteriormente.
A seguir, apresentaremos a descrição de cada uma das edições selecionadas, em ordem
cronológica, e as denominaremos, conforme essa ordem, pelas inicias do programa e pelo
número da edição. Tencionamos também vislumbrar um breve contexto da época, na tentativa
de conjecturarmos as condições de produção estabelecidas em cada uma delas.
4.7.1 Documento Especial – 1ª edição: A pungente “Guerra Social”
Produzida e veiculada pela Rede Manchete em 1989 – ano de estreia do programa –, a
edição, de 25’ e 42” se caracteriza, fundamentalmente, por uma ordem dicotômica
classista/social, através de confrontos que se originam a partir dessa ambivalência.
Na apresentação que faz à edição – o vídeo que detemos da edição foi obtido junto ao
site de compartilhamento de vídeos YouTube, e foi gravado quando da exibição no Canal Brasil
–, o diretor do programa Nelson Hoineff a introduz com os dizeres: A guerra social que atinge
87
o Rio de Janeiro hoje já atingia em 1989, e foi pela primeira vez mostrada na televisão, em
toda a sua amplitude, nessa incrível reportagem exibida na TV Manchete.
No ano em que a edição foi produzida, em 1989, o Brasil era presidido por José Sarney
– vice-presidente que assumiu o cargo após a morte de Tancredo Neves. 1989 também foi o ano
em que Fernando Collor de Mello ganharia as eleições presidenciais para assumir o cargo
máximo da nação, em 1990.
Este momento pós-ditadura motivou a introdução de Roberto Maya, que após a exibição
da vinheta de abertura sintetizou a edição com um discurso imbuído em termos de efeito –
marca do programa. De início, o apresentador lança um momento de dualidade, ao colocar que
apesar do momento de amadurecimento político vivido no Brasil, era latente o confronto entre
os integrados da sociedade e os excluídos. Outra frase de efeito proferida por Roberto Maya:
Não se sabe se é uma ação movida pela fome ou pelo ódio generalizado a uma situação social.
Ao longo da edição, são mostrados confrontos decorrentes desse conflito de classes,
como arrastões ocorridos em praias da Zona Sul41 e saques a supermercados. Os
desdobramentos dos arrastões também são acompanhados pela equipe de reportagem, que vai
à delegacia e mostra os suspeitos – dentre eles alguns menores de idade – sendo interrogados
por policiais.
Na sequência, é mostrada a guerra social representada, a partir deste momento da edição,
por policiais X traficantes de drogas. No decorrer deste trecho, algumas inovações jornalísticas
são observadas, como o acompanhamento dos jornalistas aos policias sem cortes, em plano-
sequência, evidenciando um momento em que, durante uma troca de tiros, um jornalista grita:
Estão atirando na gente!, além de uma entrevista com dois traficantes. Estes dois momentos
são os únicos em que se escuta a voz de algum jornalista do programa – é impossível identificar
se a voz pertence a algum repórter ou câmera –: a voz do produtor da notícia, que se cala nas
edições, grita ao que presencia em sua frente.
Já na parte final da edição, o programa dá voz a um policial – não informa sua ocupação
– e ao filósofo Leandro Konder – filósofo marxista e professor universitário, e morto em 2014.
Neste trecho, se eleva o contraponto de opiniões quando o policial suscita a frase: bandido bom
é bandido morto e enterrado em pé para não ocupar muito espaço, ao que o filósofo argumenta
ser equivocada a política de extermínio clamada por uma parcela da sociedade.
41 As imagens que ilustram esses arrastões são, provavelmente, de uma edição do programa chamada “Máfias
urbanas”, provavelmente também veiculada em 1989.
88
4.7.2 Documento Especial – 2ª edição: A ‘invasão’ de espaço em “Os Pobres vão à Praia”
Veiculada em 1990, a edição retomava uma situação levantada anteriormente, em
“Guerra Social”, referente à ‘invasão’ de moradores de áreas carentes do Rio de Janeiro à praias
da Zona Sul – mais uma vez, percebe-se essa dicotomia social. Tal qual a edição que
apresentamos anteriormente, “Os Pobres vão à Praia” também foi obtida junto ao YouTube, e
contém 26’ e 26”.
Na introdução gravada para a veiculação do programa no Canal Brasil, em sistema de
reprise, o diretor Nelson Hoineff apresenta o tema e diz: Uma das marcas do Documento
Especial, sobretudo na sua primeira fase, na Manchete, é a irreverência. E poucos programas
expressam tão bem essa irreverência quanto uma em que demos o nome de Os Pobres vão à
Praia. O programa mostrava a invasão das praias da Zona Sul pela população de baixa renda,
e contém cenas de preconceito explícito. O mais simples olhar na fala do diretor já revela que
o epicentro da edição será nas imagens de preconceito.
O ano de 1990 ficou marcado por ser o ano de posse do novo presidente do país:
Fernando Collor de Mello, primeiro comandante máximo da nação eleito democraticamente.
De início, o programa, traz imagens de uma grande fila, na estação de ônibus, formada
por cidadãos residentes em bairros carentes do Rio de Janeiro, que desejam rumar à praias
situadas em área nobre. Nessa espera, a equipe de reportagem ‘flagra’ batedores de carteira
agindo junto aos populares que aguardam sua vez na fila. Junto a este trecho, uma sequência de
trilhas recobre o conteúdo sonoro da edição, com canções do sambista Dicró – músico
conhecido por suas letras satíricas.
Seguindo a edição, é mostrado o trajeto no ônibus, centrando as imagens em rapazes
que tentam entrar sem pagar, e outros que viajam dependurados na janela do veículo, também
com o intuito de não pagar a passagem. Ainda na viagem de ida à praia, a reportagem lança,
mais uma vez, dois lados sobre uma questão: agora, sobre a vida. Inicialmente com imagens de
viajantes pendurados à janela, Roberto Maya diz: Se uns buscam o prazer arriscando a vida,
outros encontram a morte querendo apenas se divertir. Foi o caso do vereador Daniel Geraldo
dos Santos. Ao reagir a um assalto, no interior de um ônibus, foi morto com um tiro na cabeça.
Na chegada à praia, a edição se volta para as cenas de preconceito, protagonizadas pelos
‘ricos’, que seriam moradores daquela região, na própria Zona Sul. Alguns chegam a relatar
que a entrada dos visitantes, moradores das áreas menos abastadas, deveria ser proibida42,
42 No ano de 2015, a declaração preconceituosa de uma das frequentadoras da praia de Copacabana ganhou
repercussão na internet. Entretanto, a mulher se manifestou e pediu desculpas pelo que havia dito há 23 anos.
89
enquanto outros mostram sua indignação dizendo que estão lá para ficar com os meus, nas
palavras de um entrevistado. Ainda neste trecho, é exibida uma série de furtos praticados por
alguns dos visitantes das praias em supermercados, ao que a edição coloca como a solução para
a hora da fome destes.
Já no trecho final, após mostrar o trajeto de volta, Roberto Maya finaliza e edição
dizendo: Fim de festa, é hora de retornar à realidade do dia dia.
4.7.3 Documento Especial – 3ª edição: As violentas “Noites Cariocas”
Transmitida em 1992 pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), a edição, de 25’ e 44”
apresentava a escalada da violência no Rio de Janeiro daquele início da década de 1990,
extrapondo situações que evidenciavam a premissa da edição. Fundamentalmente, o programa
trabalhava sobre a dualidade colocada pelo apresentador Roberto Maya logo no início da
atração, quando narrou: A cidade, que é maravilhosa durante o dia, enfrenta noites de terror,
onde o que não falta são crimes e conflitos.
Contextualmente, o ano de 1992 já fervilhava com denúncias de corrupção ao presidente
Fernando Collor de Mello. Foi também o ano em que o Congresso Nacional aprovou a abertura
do processo de impeachment do então presidente. O ano também marcou o episódio que ficou
conhecido como “massacre do Carandiru”, envolvendo uma rebelião de presos na Casa
Penitenciário do Carandiru que, de acordo com dados ‘oficiais’, levou a morte de 111 presos
após a invasão da Tropa de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
A edição transcorre apresentado seguidas cenas de violência, que envolviam brigas e
assassinatos. Pouco mais à frente, relata a noite das travestis cariocas, dando a entender que
estes seriam outras protagonistas. Ao que Roberto Maya diz: Fazendo da noite o seu passeio
público, os travestis desfilam a sua ambiguidade. Depois de mostrar relatos de agressão sofridas
pelas travestis, a edição desenvolve-se a partir do ‘inusitado’ – lembremos, nas palavras de
Nelson Hoineff, em entrevista que trouxemos no capítulo 3, essa era uma das motivações que
o fizeram a produzir o Documento Especial –, a reportagem exibe uma das traves relatando um
caso com um francês que, no motel, pedia para usar suas roupas – neste momento, sobe uma
música de Cassia Eller, chamada “Que O Deus Venha”, especificamente em um trecho que diz:
Sou inquieta, áspera; e desesperançada”, ao que entra a imagem da travesti andando pelas
ruas, sob um vulto negro.
Fonte: G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/videos-de-1990-geram-polemica-
apos-arrastoes-rio-nao-mudou-diz-diretor.html>. Acesso em: 08 jul. 2016.
90
Em outro ponto da edição, a cena exibida, acompanhada por uma trilha de blues, mostra,
em close, uma mancha de sangue no chão, um veículo com o para-brisa estilhaçado por tiros e
corpos estendidos na calçada, denunciando uma chacina ocorrida. A câmera fecha em zoom na
mancha de sangue, percorre alguns metros, centra-se no carro envolto a tiros e persegue a
calçada com as vítimas estendidas mortalmente ao solo. Na sequência, a cena volta-se para a
mãe de um dos mortos – um traficante – que chora copiosamente, chamando por seu filho. O
trecho exibido ilustra uma tendência abordada pela equipe de produção do programa: a
utilização de recursos cinematográficos, com a alternância entre os planos de câmera e a
composição sonora, levando a cabo técnicas do cinema e que seriam utilizadas por programas
que viriam a seguir. Outra cena ‘forte’ e de teor semelhante ocorre na sequência quando,
relatando outro contraponto, o programa mostra assassinatos de policiais por traficantes.
Roberto Maya narra: A figura do policial tornou-se totalmente vulnerável diante da
desenvoltura dos bandidos. Em menos de uma semana, Documento Especial registrou o
assassinato de quatro policiais no Rio de Janeiro. Ilustrando a narração do apresentador são
exibidas imagens de um policial morto, com o rosto ensanguentado.
Na parte final do programa são mostradas atividades paralelas ao cotidiano violento
exibido até aqui: ciclistas que se organizam em pedaladas pela cidade, um garçom que trabalha
durante o dia e joga bola no período noturno. E finaliza na fala do apresentador: O sol ainda
não apareceu e já estão quebrando as melhores ondas do dia na praia do arpoador, iluminada
para o surfe noturno. Dentro da água, os surfistas assistem ao último suspiro da madrugada
cada vez mais violenta do Rio. Quando nasce o sol, é a vez da noite adormecer, levando com
ela seus fantasmas. Chega ao fim mais um pesadelo carioca e renasce a esperança de que o
futuro traga noites mais felizes – fala acompanhada por uma trilha sonora que transparece
calmaria.
4.7.4 Aqui Agora – 1ª edição: A “gangue” que caçou o carro-forte em uma perseguição
“infernal”
Transmitida em 07 de junho de 1994, a reportagem do telejornal Aqui Agora que
selecionamos como corpus de análise tem um tempo total de 09’ e 50”. Essa reportagem
marcara bem a essência do telejornal: a cobertura in loco em perseguições policiais.
O ano de 1994 ficou marcado, em contexto político e econômico, pelo lançamento do
Plano Real, lançado pelo então presidente Itamar Franco – que assumira o cargo após o
impeachment de Fernando Collor de Mello – que equilibrou a inflação do país. No mundo,
91
talvez o grande fato tenha sido a eleição de Nelson Mandela na África do Sul, o que o levou a
ser o primeiro presidente negro daquele país.
Reforçando o slogan do telejornal, uma arma do povo, que mostra na TV a vida como
ela é – repetido por diversas vezes – Ivo Morganti e Christina Rocha – a mesma que havia
trabalhado no popularesco O Povo na TV –, apresentadores do programa, chamam a matéria:
(Ivo Morganti) Ladrões de carro-forte atacam na noite e matam um segurança em São Paulo.
(Christina Rocha): A gangue perseguiu o blindado numa caçada infernal. O repórter Carlos
Cavalcanti tem os detalhes do caso. Vamos acompanhar. A reportagem – que a partir daqui
mantém 9’38” – inicia com o repórter no veículo da emissora, já seguindo uma viatura da polícia
militar. O jornalista diz que as informações dão conta de que houve um assalto e havia vigilantes
feridos.
Após esse trecho, há um corte na cena e o telespectador é levado até o momento em que
o repórter chega ao local do assalto. Ao descer do carro, de antemão o repórter avisa: As
informações inicias dão conta de que realmente os homens são bastante audaciosos (referindo-
se aos criminosos). Uma questão que fica evidente na reportagem diz respeito a esse
acompanhamento de perto que o repórter faz junto aos policiais. Na cena que surge a seguir, o
policial, que acabara de desembarcar da viatura, corre para obter informações e é interpelado
pelo repórter. Naturalmente, o policial não soube esclarecer detalhadamente o que acontecera.
Na sequência, o repórter se dirige ao carro-forte, que está capotado, no meio de uma
ribanceira, e cercado por policiais. Essa sequência de movimentação do repórter é reproduzida
praticamente sem cortes, em um enquadramento de plano-sequência. Ao chegar ao carro,
prontamente o repórter nota as marcas de tiro nos vidros blindados do veículo, ao que a câmera
se fecha de plano-médio para primeiro-plano e para um zoom. Novamente a câmera segue o
mesmo percurso após a ‘descoberta’ de várias manchas de sangue no veículo e fecha a imagem
na lataria encoberta de tiros e sangue. Enquanto os policiais conversam com um dos vigilantes
sobreviventes, o repórter interfere na conversa e faz suas perguntas, mas parece não ganhar a
atenção do vigilante de início – em outro ponto mais à frente, já um pouco distante do veículo,
o repórter consegue entrevistar o sobrevivente.
Posteriormente, o jornalista entrevista um homem, que alega ter tido seu carro roubado.
Mais uma vez a imagem corta para o repórter já no carro da emissora, seguindo as viaturas de
polícia, até o local em que o carro utilizado para fuga, do rapaz que reclamou do roubo, havia
sido encontrado. Em plano-sequência, a imagem mostra o repórter descendo do carro e se
dirigindo ao veículo roubado, já mostrando o interior deste, também com diversas manchas de
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sangue – que são, mais outra vez, mostrada em close.
No final da reportagem, o jornalista se dirige ao pronto socorro para saber notícia dos
vigilantes do carro-forte. E encerra a matéria: O triste de toda essa história é que o vigilante
José Fernandes Filho acabou falecendo aqui no pronto socorro.
4.7.5 Aqui Agora – 2ª edição: A chacina e o policial “covardemente” assassinado
Na edição de 13 de fevereiro de 1995, o telejornalístico Aqui Agora – que naquele dia
fora comandado por Ivo Morganti e Christina Rocha – apresentou outra reportagem, de 14’ e
54”, selecionada como corpus por este trabalho. Apresentada também com longas tomadas em
plano-sequência, a matéria já inicia com um som de sirene policial – inserida artificialmente,
pois mesmo em momentos em que as viaturas policiais de afastam do carro de reportagem, o
volume segue o mesmo. O repórter avisa que policiais de rota, em confronto com bandidos,
acabaram baleados. Seguindo, o repórter avisa que colherá mais informações com a redação e
os aciona via rádio – famigerada técnica de comunicação entre as viaturas policiais e o COPOM
(Centro de Operações da Polícia Militar); havia, portanto, uma inovação em relação à
reportagem do ano anterior, na busca de aproximar o telespectador ao universo policial.
O ano de 1995 marca o início do governo Fernando Henrique Cardoso, sucedendo a
Itamar Franco. Também é o ano em que o fundador da Rede Manchete, Adolpho Bloch, falece.
Após esse início em perseguição, em que planos-sequência são utilizado com pequenos
cortes, a edição mostra o repórter, já em solo, questionando aos policiais, que estão em suas
viaturas, se o policial da ROTA segue como refém. Ao que o policial informa: Segundo
informações o tenente se encontra como refém e há policiais feridos. Responde o repórter:
Policiais baleados, né?, talvez sem tanta certeza. Novamente a cena corta para nova
perseguição do repórter e dos policiais a um novo local. Na sequência, já em solo outra vez, a
cena mostra suspeitos detidos e algemados na viatura. O repórter chega para entrevistá-los e,
entoando um teor diferente em sua voz – talvez tentando demonstrar aversão – questiona o
motivo dos tiros disparados. Isso ao mesmo tempo em que os policiais interrogam os suspeitos.
Após mostrarem os armamentos encontrados com os suspeitos, a edição corta e exibe,
em plano-médio, a entrevista com um outro policial, referente a um outro crime, descrito por
policial e repórter como “execução” de um outro policial. Seguindo, a câmera segue para o
primeiro-plano e vai fechando em close no vidro estilhaçado por tiros, no automóvel do policial
morto – que não estava em serviço. Posteriormente, a imagem também parte para um primeiro-
plano no rosto da viúva do policial assassinado, que se lamuria em prantos com a cena que está
93
à sua frente. Por fim, mais uma vez o repórter se dirige ao pronto-socorro e informa que os
policiais sequestrados estão fora de perigo, mas o policial do veículo está falecido. Neste
momento, outro policial segura um documento pertencente ao colega morto, ao que a câmera
fecha em close na foto do documento. Finalmente, o repórter diz: Saldo final depois de toda
essa mobilização final: um policial militar assassinado, dois policiais feridos e um bandido
morto.
4.7.6 Aqui Agora – 3ª edição: A “implacável” perseguição aos “matadores da policial”
Como nossa terceiro corpus do programa Aqui Agora, sorteamos o programa gravado e
veiculado em 23 de março de 199543. Nele, selecionamos uma reportagem que mostrava a
perseguição de policiais a suspeitos, que teriam sequestrado uma escrivã da Polícia Militar do
Estado de São Paulo. O tempo total da reportagem é de 15’25”.
A reportagem começa com aquela que seria uma marca nas reportagens policiais do
programa: a primeira cena já traria o repórter no carro da emissora, seguindo as viaturas
policiais que perseguem os suspeitos. O repórter Herbeth de Souza informa que acabara de
ocorrer um assalto no qual uma mulher – até então não descrita como policial – teve seu carro
roubado enquanto buscava seus filhos na escola. Ao parar o carro de reportagem próximo a um
rio, o repórter desce e conversa com um dos policiais que observam o rio; o policial informa
que a mulher assaltada é uma escrivã da Polícia Militar, e que o carro havia sido abandonado
nas imediações daquele local. Após um corte, ainda no mesmo local, o repórter informa que o
esposo da mulher assaltada estava em um carro próximo, e pede ao câmera que se aproxime
desse veículo. Diz o repórter: Olha só o desespero dele no carro! Não vamos conversar com
ele, ele já pediu para não conversar. A gente entende. É um momento muito difícil. Olha só o
desespero dele com as mãos na cabeça. Tá saindo com alguns policiais que vão levando o carro
dele, porque ele não tem a mínima condição. No momento da fala do repórter, a imagem parte
de um plano geral de enquadramento para uma tentativa de primeiro-plano no marido da vítima.
Depois de novo corte, a imagem retoma o plano-sequência do repórter no carro da
emissora, seguindo, em perseguição junto dos policiais, na busca a um novo local. Novo plano-
sequência, dessa vez por 1’, mostra o repórter desembarcando do carro da emissora e seguindo
os policiais na busca, que correm. O repórter informa que há informação de um suspeito baleado
e diz algo que seria repetido por mais 3 vezes ao longo da reportagem: É o Aqui Agora na marca
43 Como a edição apresentada anteriormente – por nós denominada de AA2 – também era de 1995, manteremos
em mente o mesmo contexto sociopolítico trazido no item anterior.
94
da exclusividade. O jornalista também repete um termo já conhecido das reportagens do
Documento Especial: “fortemente armados”.
Mais um novo corte, após outro plano-sequência que indica o deslocamento do repórter
a um novo local, sempre junto aos policiais. Nisso, a edição mostra os policiais pulando um
muro acompanhados pelo repórter, lado a lado, que segue dizendo que as imagens são
“exclusivas”. Outro corte e agora policiais e repórter estão na casa de um suposto tio de um dos
suspeitos. Os policiais, então, levam esse tio do suspeito. Nesse momento, Herbeth de Souza
coloca o microfone próximo aos policiais e ao suspeito e capta a fala: (Tio do suspeito) Não
pode!; (Policial) Que não pode? Não podia!.
Mais à frente, na casa de outro suposto parente de mais um suposto suspeito, o repórter
avisa: Um lugar bastante perigoso. A imagem então corta para um dos policiais interrogando
outro tio de um dos supostos suspeitos.
No decorrer da reportagem, a informação inicial, que dava conta de um sequestro, vai
se metamorfoseando ao ponto de o repórter ter de atualizar o telespectador o tempo inteiro. De
início, o jornalista não sabia que a vítima era escrivã da Polícia Militar; não havia também
informações sobre o estado de saúde da mesma. Essa questão, embora faça parte de uma
cobertura ao vivo, fora mantida na edição do programa propositadamente, talvez com a intenção
de causar certo efeito de realidade e de verdade (Charaudeau, 2012) ainda maior, uma vez que
a reportagem era gravada, podendo ser editada antes de ir ao ar.
Após novo corte e novas tomadas em plano-sequência, o jornalista e a equipe policial
chegam a um outro local. A edição exibe imagens dos policiais já em uma residência, na qual
encontram o carro da escrivã. Ao se aproximar do veículo, o repórter nota manchas de sangue
no carro, que são exibidas ao telespectador em primeiro-plano. Por fim, assim como nas demais
edições, a equipe de reportagem vai ao pronto socorro para uma espécie de ‘balanço’ da
operação. É informada a identidade da escrivã e o seu falecimento. Também é mostrado, em
primeiro-plano, o rosto do viúvo.
4.7.7 Balanço Geral – 1ª edição: A troca de tiros entre bandidos e polícia
A reportagem separada para análise foi exibida no Balanço Geral, edição paulistana, em
5 de março de 2014. Diferentemente das anteriores citadas acima, esta teve uma duração curta,
de 1’11”. Neste dia, o programa foi comandado pelo apresentador Luiz Bacci.
O ano de 2014 marcaria a reeleição da presidenta Dilma Roussef, pela apertada margem
de 51,64% contra 48,36% do candidato derrotado Aécio Neves. Essa pequena diferença parecia
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ilustrar um pouco da polarização política que o país atravessava/atravessa. Talvez, esta
polarização já tenha sido apontada há décadas pelo Documento Especial, mas só tenha ganhado
voz nos anos atuais.
O apresentador anuncia a reportagem: Sobre Guarulhos, a polícia interceptou bandidos
que haviam acabado de roubar um carro. Veja só. A edição então exibe o automóvel que havia
sido roubado, envolto a tiros na lataria e nos vidros. A repórter introduz a cena: Pelo estado em
que ficou o carro é possível imaginar a dimensão do confronto entre bandidos em fuga e
policiais militares. Nesse momento, a câmera alterna o enquadramento de plano aberto para
primeiro-plano, fechando seu foco nas marcas de tiro.
No decorrer, a repórter apresenta o acontecido e afirma que os primeiros tiros partiram
dos bandidos, que não respeitaram uma ordem de parada dos policiais. Isso, segundo a repórter,
levou os policiais a persegui-los. A vítima do assalto, segundo a repórter, teria contado aos
policiais que os bandidos foram agressivos. Nisso entre o delegado, responsável pelo caso,
afirmando: Ele (a vítima) levou uma coronhada na região da testa, um tapa. Em suma, foi
agredido sim. A repórter anuncia que um dos bandidos baleados foi morto, e que o outro, de 15
anos, seria levado para a Fundação Casa.
Ao contrário das demais atrações, o Balanço Geral permitia a participação do
apresentador e de um comentarista para discorrerem sobre a reportagem exibida. Então, quando
a imagem volta ao apresentador, este diz: Que judiação. 15 anos e já nessa empreitada. O
comentarista Renato Lombardi – que já havia trabalhado em outros veículos de imprensa, dentre
eles o jornal Notícias Populares – coloca: É impressionante o número de menores envolvidos
em crimes nos últimos 2 anos em São Paulo. Triplicou o número de menores envolvidos. É essa
história: vai pra Fundação (Casa) e volta, vai e volta, e quando volta, volta pior. Em breve
exercício de observação, percebemos nesta reportagem a utilização do argumento de autoridade
(PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2005) no discurso do programa, através da fala do
delegado e do comentarista da atração.
4.7.8 Balanço Geral – 2ª edição: O professor morto
A edição carioca do Balanço Geral, exibida em 25 de abril de 2014, apresentava, como
grande destaque da atração, o assassinato de um professor ocorrido em um ônibus de transporte
público, na noite anterior. De início, não foi exibida uma reportagem gravada sobre o crime; o
tempo total em que o apresentador e o repórter do programa discorreram sobre o tema foi de
08’17”. O início da edição, ancorada por Wagner Montes – que já trabalhara anteriormente no
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popularesco O Povo na TV –, já mostrava cenas da avenida Brasil, que fora palco do assassinato
de um rapaz que reagiu a um assalto – a edição reforçava, a todo momento em que falava do
crime, que o morto se tratava de um professor.
Tão logo o apresentador anuncia o assassinato, entra uma trilha sonora de teor dramático
e imagens do local do assassinato são exibidas: Aí, o Balanço Geral começa com uma notícia
da noite. Um professor foi morto num assalto. E em seguida um tiroteio assustou motoristas.
Tudo isso aconteceu no mesmo local. Aonde? Na avenida Ziquizira, a avenida Brasil. O
cinegrafista Paulo Roberto acompanhou toda a ação. Bandidos em fuga atiraram depois de
praticar um arrastão. Policiais avançavam no meio dos carros, no congestionamento.
Motoristas chegaram a passar mal. O motivo do fechamento da avenida Brasil: pouco antes
do tiroteio, outro crime, que ocorreu mais cedo. Um professor de Educação Física foi morto
ao reagir a um assalto dentro de um ônibus.
Após este trecho inicial, o apresentador Wagner Montes já passa a adotar um discurso
pessoal, comentando a reportagem. Vê aí, ó. Ó o que eles estão fazendo, ó o terror que eles
estão tocando. Eu ainda falo de novo sobre aquele professor de Educação física, ali na Tijuca,
que também foi assassinado de modo covarde por dois vagabundos. Este trecho denota bem as
verdades discursivas impostas pelo apresentador, conforme veremos mais abaixo.
Posteriormente, o repórter do programa entra ao vivo, via link, do IML, aguardando os
familiares do professor assassinado. Após, Wagner Montes chama a reportagem, de 3’35” que
mostra o assassinato. Narrada pelo repórter, a matéria mostra imagens diversas da avenida
Brasil interditada, após o crime cometido. No transcorrer da reportagem, a cena é cortada pela
exibição do cadáver da vítima, mas ‘borrada’ por edição gráfica, algo que marca uma diferença
temporal no jornalismo popularesco: outrora, corpos eram exibidos explicitamente. Há também
a utilização de plano-sequência no momento em que a correria dos motoristas na avenida Brasil
se inicia.
Com as edições devidamente apresentadas, a partir das nossas considerações empíricas,
iniciaremos as análises com base no escopo teórico levantado nos capítulos anteriores da
presente pesquisa.
4.7.9 Balanço Geral – 3ª edição: O “suspeito” que invadiu salão e matou a mulher
Também transmitida em 2014, mais precisamente no dia 21 de maio, a edição carioca
do Balanço Geral apresentou uma reportagem que versava sobre o assassinato de uma
manicure, que supostamente teria sido morta por seu ex-companheiro. O tempo total da
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reportagem, sem os comentários do apresentador e do comentarista, é de 2’24”.
Ao começar a falar sobre a reportagem, o apresentador Rogério Forcolen diz: Ex-
companheiro vai lá onde a mulher trabalhava, no Leblon, num salão de beleza. Com uma faca
de cozinha mata a mulher. Depois, numa tentativa de... De tirar a própria vida, porque depois
ele vai alegar no tribunal que teve um surto, né? Então isso aí já faz parte de uma tática até de
defesa. O Denis Queiroz conta mais pra você. Então a reportagem entra com os dizeres do
repórter: Moradores do Leblon, um dos metros quadrados mais caros do Brasil, pararam
assustados em frente a galeria que serviu de cenário para o crime.
Decorrem imagens do crime e o repórter apresenta a identidade da vítima – como a
reportagem foi gravada na noite anterior ao dia em que foi ao ar, já de início o repórter informa
a identidade da vítima, algo distinto em relação ao Aqui Agora, uma vez que as reportagens da
atração do SBT acompanhavam o desdobramento da cobertura do crime quase que em tempo
real. Então a edição mostra a imagem da mãe da manicure, em prantos, exibida em primeiro-
plano. Também são mostradas amigas da vítima, em plano-médio. O repórter também informa
que, após matar sua ex-companheira, o assassino tentou se suicidar e foi levado ao hospital em
estado grave.
A edição volta para o estúdio. Então o apresentador inicia seus comentários, que
durariam 2’14”. Diz Rogério Forcolen: Esse é o problema, elas resolvem dar a segunda chance.
Um cara que já é agressivo, que já agride a mulher da primeira vez, ou ele vai fazer um
tratamento psiquiátrico... Na minha opinião, né?! E experiência de 25 anos na comunicação.
Já trabalhei dentro da Segurança Pública também. Ou ele vai fazer um tratamento sério
psiquiátrico, psicanálise, alguma coisa. Até medicação, e aí quem vai determinar é o médico.
Ou não adianta você... Tem um surto, bate na mulher (apresentador soca uma mão na outra),
soca ‘la pau’, aí passa um tempo: ‘Ah, meu amor, me perdoa’. Eu sou casado há 16 anos, nunca
houve agressão física nenhuma! Briga, sim: ‘Ah, pô, não enche o saco’. Mas o que fica é a
grande parceria que eu e minha esposa temos. Agora, porrada, você perder a cabeça e sentar
a porrada, a segunda chance que ele tiver ele vai fazer de novo. E a moça diz ali na reportagem:
‘Eu não sei o que aconteceu’. O sentimento de posse, minha querida. O sentimento de posse
aliado à impunidade. Eles assistem o jornal. Nesse momento, enquanto o jornal está no ar,
alguma mulher em algum canto do Rio de Janeiro está sendo agredida. Eles estão assistindo o
jornal: ‘Tá vendo, ó? Eu vou te matar’. O sentimento de impunidade é grande. Aí ele vai dizer
que se esfaqueou. Isso é premeditado, ele foi lá exatamente pra fazer isso. Durante a fala do
apresentador, o enquadramento varia entre plano médio e primeiro-plano, além de também
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exibir imagens da cena do crime.
Com todas essas características lançadas acima a partir de nossos olhares, os programas
integrantes de nosso corpus de pesquisa mantiveram uma fórmula popularesca ao longo dos
anos de exibição, muito por conta de uma projeção de ethos peculiar a cada um deles. Embora
os três pertençam ao mesmo gênero – telejornalístico informativo –, cada atração aparenta ter
articulado estratégias ethópicas distintas entre si, o que nos parece conferir relevância no estudo
que vislumbre como um mesmo gênero pode se desdobrar em estratégias midiáticas distintas.
Ao longo das análises, buscaremos pontuar essas diferenças que se desdobraram ao longo dos
anos em que cada programa esteve/está no ar.
Após apresentarmos todas as edições a partir de nossas visões, no próximo capítulo
iniciaremos as análises a partir de todo o escopo teórico apresentado até aqui, na tentativa de
respondermos como cada programa projetou sua identidade ethópica ao longo de sua veiculação
na televisão brasileira.
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CAPÍTULO 5 – ANÁLISES DOS OBJETOS EMPÍRICOS
Após indicarmos os direcionamentos e o escopo teórico da pesquisa, iniciaremos as
análises. Pretendemos aqui retomar as características indicadas anteriormente em nossos
olhares aos objetos empíricos, no propósito de percebermos como a identidade discursiva do
jornalismo televisivo popularesco se conformou em cada uma das três edições selecionadas
para análise.
Cumpre-nos esclarecer que buscaremos depreender a identidade ethópica dos
programas popularescos a partir da releitura do ethos retórico, sob a perspectiva de Dominique
Maingueneau (1989), com o conceito realocado nos quadros teóricos da análise do discurso de
tradição francesa. Interessa-nos colocar, assim, que observaremos esse ethos a partir das marcas
de oralidade projetadas na enunciação de cada uma das peças jornalísticas dispostas como
objetos de análise nesta pesquisa.
Nesse caminho, organizaremos nosso protocolo de análise tomando por base duas
frentes conceituais: na primeira delas, olharemos para as atrações a partir dos elementos de
composição sonoro-imagéticos X provas e argumentos retóricos X efeitos de verdade que
articulam sentido; na segunda frente, imbricaremos às análises os elementos linguístico-
discursivos que atuam na conformação ethópica através do conceito de paráfrase.
5.1 IMAGEM, SOM E RETÓRICA
Começaremos nossas observações a partir de uma breve organização para cada
programa. Após essas considerações, ao final do presente item lançaremos luz ao que
vislumbramos sobre cada atração, na tentativa de apresentar como o ethos das três atrações de
projetou ante aos conceitos observados.
Inicialmente, direcionaremos nosso olhar para os enquadramentos dispostos nos
programas, uma vez que este favorece a forma de contar história por parte do produtor da
imagem – aqui representada pelas reportagens dos programas. Com isso, pretendemos entender
como o ethos de cada peça jornalística se projetou a partir de tais conceitos.
5.1.1 Enquadramentos e tomadas de câmera
Embora as edições do Documento Especial contemplem durações superiores em relação
as reportagens selecionadas dos demais programas, indicamos que olharemos para o programa
a partir nos momentos em que as reportagens, tão somente, são exibidas. Isto posto, voltaremos
nossas observações aos enquadramentos de câmera, visando entender como os produtores dos
100
programas pensaram em compor o conteúdo imagético de cada atração. Os percentuais
informados decorrem de estimativas que fizemos conforme nossas ponderações acerca do
enquadramento disposto nas edições. Ressaltamos que são estimativas por conta da dificuldade
em precisar planos que são alternados durante as reportagens; em algumas delas, por exemplo,
na mesma cena ocorre aproximação ou distanciamento no enquadramento.
5.1.1.1 Plano geral
No Documento Especial, todas as edições utilizam o plano geral, principalmente durante
a exibição das cenas que abrem ou fecham as reportagens. Na edição Guerra Social, o plano
geral ocupou cerca de 15% do tempo total da edição, no qual representou algumas cenas como:
a “invasão” das praias por parte dos “excluídos” da sociedade, os assaltos cometidos por
menores de idade, e os momentos em que mostra os moradores descendo a favela em contraste
aos policiais que subiam. Em Os Pobres vão à Praia, segunda edição em ordem cronológica, o
plano geral foi trabalhado em 15% da edição, aproximadamente. Com ele, o programa
apresentou imagens dos moradores dos bairros carentes na viagem de ida à praia, quando
chegam na praia e mesmo na viagem de volta da praia, e a entrevista com os frequentadores da
praia – talvez o ponto alto do programa, que mais gerou repercussão por conta das “cenas de
preconceito explícitas”. Por fim, em Noites Cariocas, o plano geral ganhou mais espaço na
edição, ocupando cerca de 20% do tempo total. Com o uso deste plano, o programa apresentou
a violenta noite carioca a partir de pontos específicos: os homens que discutiam entre si na rua;
as travestis que se exibiam em busca de clientes; os frequentadores de um vazio salão de bilhar;
e ciclistas noturnos, que se “reconciliavam” com cidade.
Já no Aqui Agora, a primeira reportagem, de 07/06/94, apresenta um percentual
aproximado de 35% de projeção imagética com base no plano geral. Nela, o plano foi utilizado
para demonstrar as cenas que envolviam o assalto ao carro-forte que vitimou um vigia. Isso se
observa no momento da ida ao local do crime, no próprio lugar em que o crime ocorreu, na qual
é possível observar o carro virado e a escuridão do barranco em volta, e mesmo no hospital, já
ao final. Na segunda edição observada, de 13/02/1995, esse percentual cai para 20% do tempo
aproximado. O plano é utilizado para ilustrar o cenário de perseguição da polícia aos
criminosos, também no momento em que estes estão algemados na viatura, já na parte final,
quando, em poucos segundos, o plano geral revela a esposa do policial assassinado sendo
confortada por uma outra mulher, bem próximo ao carro do vítima e, por fim, quando o repórter
está no hospital para informar o estado de saúde dos envolvidos. A última edição do Aqui Agora,
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de 23/03/1995, aumenta o uso do plano geral em comparação à edição anterior, trabalhando
com ele por cerca de 40% do tempo total da reportagem. Isso decorre em praticamente todos os
momentos da edição: durante a ida dos policiais e da equipe de reportagem ao primeiro local,
em que um suspeito teria sido avistado; na sequência dessa busca, a um novo local; nos
momentos em que os policiais interrogam o tio da vítima e uma suposta conhecida; e mesmo
no momento final da edição, com o repórter já no pronto socorro.
No terceiro programa observado, o Balanço Geral, essa utilização parece ser distinta. A
primeira reportagem, de 05/03/2014, apresenta pouca utilização do plano geral, com
aproximadamente 15% do tempo total, ilustrando a rua em que o carro roubado estava. Na
segunda edição, de 25/04/2014, esse percentual aproximado sobe para 40% do tempo da
reportagem, no qual é mostrada a avenida Brasil, cenário do assassinato do professor de
Educação Física. A terceira edição, de 21/05/2014, contempla também 15% em plano geral,
exibindo, principalmente, a rua em que a manicure fora morta.
Nenhuma das três atrações privilegiou o plano geral em comparação aos demais planos
de enquadramento. Em média, o Documento Especial trabalhou com 16,7% do tempo total das
três edições com o plano geral; o Aqui Agora aumentou esse percentual na média de suas 3
edições, com um percentual de uso de 31,7%; o Balanço Geral, por sua vez, apresentou 23,4%
do tempo total das reportagens em plano geral.
5.1.1.2 Plano médio
Em Guerra Social, o plano médio perpassa cerca de 40% do tempo total da reportagem.
O plano recobre boa parte do programa: no trecho em que os rapazes que teriam cometido um
arrastão e são interrogados pela polícia, por exemplo, e em diversos momentos da edição em
que transcorrem movimentos. Já em Os Pobres vão à Praia, este percentual ocupou também
cerca de 50% do tempo total da edição, trabalhado em cenas que mostravam o interior do ônibus
que rumava à praia de Copacabana, no percurso dos “pobres” dentro do supermercado e mesmo
das pessoas na praia. Em Noites Cariocas, entendemos que o plano médio foi utilizado em 35%
da edição, aproximadamente. Nas cenas em que todos os crimes ocorrem é trabalhado mais o
plano médio mesmo, exibindo os personagens dessa violenta noite carioca do joelho para cima
quando em suas ações: os rapazes discutindo, os policiais, quando em confronto quando estão
recolhendo corpos, e mesmo os entrevistados.
Na primeira edição do Aqui Agora, o plano médio é utilizado em cerca de 40% do tempo
total da reportagem. Isso ocorre, principalmente, nas cenas em que há sequência de imagem
102
sem cortes – veremos mais sobre plano-sequência no próximo item. Na segunda edição do
telejornal do SBT, esse percentual chega a 35%, também evidenciado pelas sequências na
reportagem, e mesmo quando o repórter conversa com policiais e com os criminosos. Já a última
edição do Aqui Agora trabalha com aproximadamente 40% do tempo total da reportagem em
plano médio. Vislumbramos esse plano nos momentos em que decorre a perseguição do repórter
e da polícia aos locais em que há informações de suspeitos; em alguns dos momentos em que
os policiais interrogam conhecidos dos suspeitos; e mesmo ao final, em alguns momentos em
que Herbeth de Souza, o repórter, está no pronto socorro.
Com relação ao Balanço Geral, o plano médio, na primeira edição, ocupa um percentual
aproximado de 30% da reportagem, sobretudo nos momentos em que os criminosos são
mostrados já presos. A segunda edição compreende, aproximadamente, 40% do tempo total da
reportagem enquadrada em plano médio. Isso pôde ser observado em momentos de alternância
entre plano médio e plano geral, nas ocasiões em que a edição busca demonstrar o cenário posto
na avenida Brasil interditada após o assassinato do professor de Educação Física, e o posterior
arrastão ocorrido. A última edição do programa da Rede Record utilizou 25% do tempo total
enquadrado em plano médio. Essa utilização do plano médio foi empenhada nas cenas em que
populares acompanham o trabalho dos policiais e bombeiros na rua em que o corpo da manicure
estava; na chegada da mãe da vítima ao local do crime e no momento em que a equipe de
reportagem mostra, através de um vidro, o possível atirador, ex-companheiro da vítima, sendo
levado pelo resgate após tentar o suicídio.
Ainda sobre o plano médio, concluímos que o Documento Especial trabalhou com
41,7% de seu tempo total nas 3 edições; o Aqui Agora, nas 3 reportagens observadas, projetou
suas imagens em 38,4% do tempo total em plano médio; o Balanço Geral, por sua vez, dedicou
31,7% do tempo total de suas reportagens ao plano médio. Estes números nos trazem a
percepção de que o plano médio foi o mais utilizado no Documento Especial e no Aqui Agora.
Isso, talvez, venha ao encontro da maior utilização do plano-sequência por estes dois
programas.
5.1.1.3 Primeiro plano
O primeiro plano, empregado no sentido de buscar destaque a determinado objeto ou
detalhe, foi utilizado em proporções semelhantes ao longo dos três programas, exceto em uma
das edições, conforme veremos.
103
A primeira edição do Documento Especial trabalhou com 45% do tempo total em
primeiro plano. Isso pode ser notado nas entrevistas realizadas com os traficantes; com o
policial que se queixava do salário; com o funcionário da creche; e ao final, quando o programa
ouve um filósofo e um policial. Nesse detalhamento do primeiro plano, chama a atenção
algumas cenas: a pessoa que aparece sendo queimada viva, a arma do policial e a arma do
traficante. Na segunda edição, o programa trabalha com aproximadamente 35% do tempo em
primeiro plano, principalmente nas entrevistas com os frequentadores da praia, com os ‘pobres’,
e na exibição de alguns detalhes, como o cadáver do vereador que fora assassinado em uma das
viagens de ida à praia. A terceira edição, por sua vez, trabalhou com o primeiro plano em cerca
de 45% do tempo total. A maioria das entrevistas foram enquadradas também em primeiro
plano, além dos seguidos enfoques nos cadáveres do traficante e do policial, ambos
assassinados, e no sofrimento da mãe do traficante.
A primeira edição do Aqui Agora projetou a reportagem em primeiro plano por cerca de
25% do tempo total, sobretudo nas cenas em que aproxima a imagem do vidro e da lataria do
carro-forte, ambos atingidos por tiros, além da forte cena da mancha de sangue sobre o mesmo
veículo. Na segunda edição, contudo, esse percentual de uso do primeiro plano sobe para 45%
do tempo total, aproximadamente. Observamos isso nas entrevistas que o repórter Tony Castro
faz com os criminosos na viatura da polícia; quando conversa com os próprios policias; e na
cena que mostra o carro de um policial assassinado, em que há o enquadramento em primeiro
plano no próprio veículo e na viúva do policial. Na terceira edição, o Aqui Agora trabalha com
20% do tempo total em primeiro plano: nas cenas em que o marido da escrivã sequestrada se
lamenta – 2 cenas: a primeira em um carro; a segunda já no pronto socorro após saber do
falecimento de sua esposa; e nas cenas em que a edição mostra o interrogatório dos policiais
aos conhecidos dos suspeitos.
Já no Balanço Geral, essa cobertura em primeiro plano se monta da seguinte maneira:
55% do tempo total na primeira reportagem, visto nos momentos em que a repórter faz a
passagem e o delegado dá entrevista, além das cenas aproximadas do vidro do carro com marcas
de tiro. A segunda edição projeta a reportagem com cerca de 20% do tempo total enquadrada
em primeiro plano, no qual destacamos a exibição do cadáver do professor de Educação Física
– corpo exibido sob técnicas gráficas que não permitem a perfeita visualização da imagem. Por
fim, a terceira e última edição do programa parece ter trabalhado com 60% do tempo total em
primeiro plano, algo notado a partir das 4 entrevistadas enquadradas em proximidade, da
104
passagem do repórter e de alguns segundos em que a imagem se aproxima do rosto da mãe da
vítima.
Em suma, o Documento Especial enquadrou as imagens em 41,6% do tempo em
primeiro plano, na média das três edições observadas; o Aqui Agora, por si, trabalhou com o
plano médio em 30% do tempo médio nas reportagens selecionadas em nossas análises; já o
Balanço Geral projetou seu conteúdo imagético em primeiro plano por cerca de 45% do tempo
total nas reportagens observadas, privilegiando este como seu plano de enquadramento mais
utilizado.
5.1.1.4 Plano-sequência e câmera nervosa
No Documento Especial, notamos a utilização do plano-sequência na edição Guerra
Social em três oportunidades: na primeira delas, o plano é colocado por 1’28”, mostrando os
rapazes, que teriam cometido um arrastão na praia, sendo interrogados por um policial –
imagem essa enquadrada em primeiro plano; a câmera percorre cada suspeito, exibindo-os
quando são questionados, e enquadra o policial quando este faz as perguntas. Há um outro
momento, de 41” de plano-sequência, quando o repórter – que não se aparece em momento
algum – desce do veículo da emissora e segue os policiais que adentram a favela; essa
movimentação da câmera, que desembarca do veículo e persegue os policiais, projetando uma
imagem tremida, de movimento sequencial, é considerada como câmera nervosa, conforme
apontamos no capítulo anterior. Após um corte, há um novo plano-sequência de 36” que mostra
a câmera seguindo os policiais que correm no morro para se esconder, após o início de uma
troca de tiros – estes dois planos-sequência enquadrado em variações, mas majoritariamente em
plano médio; em ambas há o recurso da câmera nervosa.
A edição Os Pobres vão à Praia não contempla planos-sequência. A terceira edição,
contudo, apresenta o plano-sequência por duas vezes: na primeira, de 22”, a câmera percorre a
movimentação narrada por Roberto Maya, mostrando em sequência o relatado: Uma mancha
de sangue no chão, o para-brisa quebrado e os corpos estendidos no bar – imagem
completamente enquadrada em primeiro plano (vide figuras 6, 7 e 8). Outro momento, também
de 22”, mostra policiais revistando o carro de um suspeito – aqui enquadrado em plano médio.
105
Figura 8 – Uma mancha de sangue no chão...
Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)
Figura 9 – O para-brisa quebrado...
Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)
106
Figura 10 – E os corpos estendidos no bar
Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)
No Aqui Agora, o expediente técnico do plano-sequência foi amplamente utilizado. Na
primeira reportagem analisada há 4 planos-sequência observados: o primeiro, de 41”, mostra o
repórter desembarcando do carro da emissora e indo ao encontro do policial que acabara de
chegar; no segundo, de 52”, o repórter desce do carro novamente, mostrando o caminhão
utilizado para bloquear a pista no assalto ao carro-forte; o terceiro, de 49”, já mostra o carro-
forte tombado em um penhasco, com detalhe nas manchas de sangue do vigia e nas marcas de
tiro no vidro blindado; a última, de 55”, acompanha o repórter descendo do veículo da emissora
e se dirigindo a um carro roubado, que havia sido utilizado na fuga dos criminosos, também
com detalhe nas manchas de sangue que estão no banco traseiro – estes 4 plano-sequência
atuaram junto ao expediente da câmera nervosa.
A segunda reportagem contempla 6 planos-sequência: o primeiro, de 46”, mostra o
veículo da emissora seguindo as viaturas policiais, também revelando a conversa do repórter
com a redação via rádio comunicador; o segundo, de 43”, mostra o repórter desembarcando do
veículo da emissora e indo ao encontro de um bombeiro, finalizando com o repórter voltando
rapidamente ao veículo do SBT para seguir a busca pelos criminosos; já o terceiro, de 41”,
mostra o repórter descendo do carro de novo, caminhando até a viatura policial, e entrevista os
criminosos – já algemados – e os policiais; o quarto plano-sequência, de 1’08”, mostra o
repórter conversando com o policial enquanto caminham; o quinto, de 1’23”, exibe o carro do
policial morto, dando enfoque nas marcas de tiro e nos vidros já estilhaçados, além de o repórter
107
perguntar ao irmão do assassinado se o atirador era conhecido – chama a atenção neste plano-
sequência o momento em que o repórter Tony Castro informa que o criminoso estava morto, ao
que uma das mulheres responde: O cara morreu? Bem feito!; o sexto e último plano-sequência
recobre 1’ e mostra o choro da viúva que observa o carro onde seu marido fora assassinado – a
segunda e a terceira tomadas em plano-sequência utilizaram a câmera nervosa.
Por fim, a terceira reportagem do programa do SBT também utilizou planos-sequência:
na primeira, de 32”, a câmera, que mostrava o repórter Herbeth de Souza, se dirige ao veículo
do esposo da sequestrada e, a pedido do próprio repórter, tenta mostrar o rapaz em desespero;
o segundo plano-sequência, de 1’, mostra o repórter descendo do carro e seguindo os policiais
correndo, dizendo que era o Aqui Agora na marca da exclusividade; o terceiro, de 1’40”, já
mostra o repórter no carro da emissora, informando o falecimento da sequestrada e ressaltando
ser na marca da exclusividade; o quarto, de 58”, mostra o repórter indo em direção ao carro da
polícia e colocando o microfone no rádio da viatura, mostrando as informações que eram
passadas aos policias sobre o caso, além de chamar o câmera para acompanha-lo na
perseguição; o quinto e último plano-sequência, de 1’58” – o mais longo da reportagem – exibiu
o repórter descendo do carro da emissora, seguindo os policiais até a casa do tio de um dos
suspeitos, mostrando o microfone do repórter na boca dos policiais, durante o interrogatório, e
depois o mesmo com uma suposta amiga deste mesmo suspeito – neste último plano, chama a
atenção um enquadramento em close na arma de um dos policiais, enquanto este interroga o tio
de um dos suspeitos; os planos 2, 4 e 5 decorreram junto à câmera nervosa.
Figura 11 – O close na arma do policial que interrogava o tio de um dos suspeitos
Fonte: Aqui Agora – edição de 23/03/1995 (1995, SBT)
108
Por fim, no Balanço Geral detectamos somente um único plano-sequência nas 3 edições
analisadas: na reportagem de 25/04/2014, há um plano-sequência de 52”, em que a câmera
percorre a avenida Brasil congestionada, seguindo os policiais que buscavam criminosos.
Em linhas gerais, o Documento Especial trabalhou com um total de 3’29” de plano-
sequência nas edições analisadas; o Aqui Agora já despendeu um incrível tempo de 24’16” do
tempo total em plano-sequência; o Balanço Geral, contudo, só utilizou 52” de plano-sequência
ao longo das três reportagens.
Com tais dados levantados a partir dos planos de enquadramento e do plano-sequência,
enxergamos algumas semelhanças e alternâncias no ethos das três atrações. Nenhum dos
programas privilegiou o plano geral como principal forma de enquadramento, o que pode
revelar uma menor preocupação em apresentar o contexto geral do fato retratado. Já em relação
ao plano médio, Documento Especial e Aqui Agora privilegiaram este tipo de enquadramento
em suas edições, mesmo durante os planos-sequência mobilizados. Isso, em nosso
entendimento, já configura um ethos de proximidade do fato mostrado ao telespectador, através
de uma retórica imagética que favoreça um sentido de indignação, de impunidade ou policial.
O primeiro plano, por sua vez, é privilegiado no Balanço Geral, embora o Documento Especial
e o Aqui Agora também tenham trabalhado com ele em percentual quase igual ao do plano
médio. O primeiro plano, trabalhado em tal proporção pelos programas, parece revelar um
enfoque maior em um personagem – os conflitos, as mortes, as perseguições e/ou o resultado
destes – do que ao contexto geral da situação que envolve o fato relatado. Isso, acreditamos,
engendra um ethos que reside na essência dos fait divers, conforme as pontuações de Barthes
(1964): o interesse pelo inusitado, o além da notícia que se desdobra nela mesma. Daqui,
enxergamos privilégios às representações da violência e da indignação, fundamentalmente.
Esses expedientes, quando unidos ao plano-sequência, revelam algo ainda mais
interessante: no Documento Especial, os planos-sequência mostram a cena da chacina ocorrida,
da chegada dos policiais ao morro, em que são recebidos a tiros – e aqui a câmera nervosa
mostra a correria dos policiais para se esconderem dos tiros disparados –, da revista do policial
ao suspeito e do policial que conversava com suspeitos de terem praticado arrastões em uma
praia, com enquadramentos realizados, quase na totalidade do tempo do plano-sequência, em
plano médio; daqui, é possível perceber um possível interesse do programa em justificar seu
subtítulo – Televisão Verdade – através da reprodução do cenário da violenta noite carioca e
dos conflitos entre os “inseridos” e os “rejeitados” da sociedade – neste último com os policiais
agindo para garantir a segurança dos “inseridos” contra a “revolta” dos “excluídos”, o que nos
109
leva a uma projeção ethópica baseada na ‘realidade’ dos temas projetados – algo que, conforme
ponderou Nelson Hoineff, não era exibido na televisão brasileira até então.
No Aqui Agora, o plano-sequência foi trabalhado por 15 vezes, entre pequenos cortes
nas reportagens, buscando uma aproximação da câmera como observadora dos acontecimentos
prementes aos cenários de perseguição; essa impressão nos leva a observar que o telejornal
buscou ao máximo aproximar o telespectador das cenas em que transcorreram perseguições,
idas aos hospitais para constatar saldo final de mortes e feridos e, principalmente do trabalho
policial. Desde a coloração das legendas, que seguiam as mesmas cores da Polícia Militar –
preto e vermelho, também cores presentes na bandeira do Estado de São Paulo –, a comunicação
do repórter com a redação via rádio – semelhante ao sistema de comunicação utilizado pelos
policiais –, a utilização da câmera nervosa, que treme junto aos passos do repórter
cinematográfico, e as perseguições junto aos próprios policiais parecem configurar um ethos de
‘justiceiro’ ao Aqui Agora, através dessa exibição da cobertura quase que ‘in loco’ dos policiais
ao receberem chamados dos crimes – vide os longos planos-sequência –; talvez essa relação de
proximidade também tenha de desdobrado e buscado identificação da audiência a partir do teor
popularesco do programa, uma vez que ali parecia projetado o cotidiano dos populares, uma
vez que, conforme trouxemos anteriormente na definição do dicionário Aulete, popularesco
“imita o que é popular”; termo também que, conforme os apontamentos de França (2009),
representa o povo, se destina a ele e lhe é característico; ou seja, essas representações de
proximidade com a busca pela justiça, junto aos policias, projeta uma representação do
sentimento dos populares, daí conformado um ethos popularesco, também baseado nos
meandros dos fait divers.
Por fim, o Balanço Geral parece demarcar algumas diferenças em relação aos demais
programas: suas reportagens, que privilegiavam o primeiro plano, exibiam imagens censuradas
por técnicas gráficas. O primeiro-plano utilizado também parece ter buscado aproximar o
telespectador à perseguição dos policiais aos criminosos que haviam roubado um carro, na
mesma avenida que, momentos antes, foi cenário da morte do professor. Aliado a isso, o
telejornal da Rede Record também manteve imagens centradas nos policiais, embora em menor
escala, e relevou enquadramentos curtos, com diversos cortes entre eles. Essas observações nos
levam a enxergar uma identidade ethópica que busca mais um teor objetivo, tentando não se
ater tanto às sequências que retratassem as perseguições. Soma-se a isso a não revelação
explícita dos cadáveres da manicure e do professor de educação física, entendemos que o
Balanço Geral alternou o ethos premente aos outros popularescos de décadas anteriores,
110
buscando mais uma objetividade jornalística, mas não deixando de recobrir suas reportagens
com elementos do popular.
5.1.2 Os efeitos sonoros
Nos três programas, pudemos observar também a utilização de efeitos e trilhas sonoras
que parecem ter agido em conjunto com as imagens no intuito de criar efeitos de sentido.
Em Guerra Social, a edição não apresentou uso de trilhas sonoras, mas um efeito sonoro
chama a atenção. No momento da chegada dos policiais ao morro, os barulhos de tiro se aliam
ao plano-sequência e à câmera nervosa do repórter cinematográfico, que se agita e corre em
busca de abrigo junto a um muro; aqui, portanto, nos parece haver uma projeção de ethos
baseado na dramaticidade da cena. Já em Os Pobres vão à Praia, as trilhas parecem ser envoltas
a efeitos de sentido. No início da edição, quando as imagens mostravam os “pobres” nos metrôs
e ônibus, rumo à praia de Copacabana, o conteúdo sonoro era preenchido pela música “O
Suburbano”, do músico Zé da Gaita. Dentre os trechos que são ouvidos pela audiência, está um
que diz: Adeus Padre Miguel, Honório Gurgel, adeus Japeri, Vila Rosali, a zona sul vou gozar
a vista pro mar; em Copacabana tudo é bacana, cerveja e batucada no bar do calçadão, fico
muito à vontade, ando só de calção. As referências aos bairros considerados de classe-média
baixa corresponde, naturalmente, àqueles que buscavam as praias da zona sul. Outras músicas
apresentadas na edição: “Praia de Ramos”, do sambista Dicró, e “Nós Vamos Invadir Sua
Praia”, do Ultraje a Rigor. Ambas reflete, tal qual a primeira música, o que faria parte do
cotidiano dos “pobres”: a saída do morro para ida à praia dos “bacanas”, na música do Ultraje
a Rigor, e a Praia de Ramos, antes utilizada pelos moradores locais, mas que fora interditada
em 1980 para o impedimento dos banhistas – o “Piscinão de Ramos”, somente seria inaugurado
em 2001. Tais expedientes sonoros, nos parece, buscam retratar os viajantes que rumavam à
praia de Copacabana na edição, e encontram laços na descrição de popularesco, como uma
representação do popular, ou seja, um ethos popularesco. Contudo, a última edição do
programa da Rede Manchete, Noites Cariocas, trabalha com efeitos e trilhas sonoras. No plano-
sequência que mostra o resultado da chacina ocorrida no dia anterior, entra no ar o áudio de
uma trilha musical de blues. O volume da trilha é abaixado para que Roberto Maya, enquanto
narrador, descreva a cena: Uma mancha de sangue no chão, o para-brisa quebrado e os corpos
estendidos no bar. Ao final da descrição, o corte vai para os transeuntes carregando o corpo do
traficante morto, e nesse momento a trilha sonora aumenta o volume, sendo perceptível escutar
as falas do cantor: Don’t never leave-me, please don’t tell say goodbye. Traduzida para o
111
português, a frase diz algo como Nunca me deixe, por favor não me diga adeus. Logo após essa
fala do cantor, o som perde um pouco de volume para dar voz à mãe que chora a morte do seu
filho, suplicando Meu filho, meu filho. Este trecho denota que o ethos do programa se
caracterizaria pela emoção causada pela cena, com o propósito de corroborar com o tema da
edição: a violência carioca e os personagens que dela fazem parte, mas que não pareciam
explorados por nenhum jornalístico até então.
No Aqui Agora, os expedientes sonoros percebidos reportagens analisadas parecem
corroborar com a ligação do programa a temas policialescos. Em todas as edições percebemos
efeitos como sirene de polícia, alto giro dos motores dos veículos – o que demonstra aceleração
–, barulho de freadas também dos veículo e, especialmente na segunda edição, a ênfase no choro
da esposa que presenciava o veículo em que seu marido fora assassinado. Com isso, a identidade
sonora do programa parece recobrir, tal qual nos pareceu no conteúdo imagético, um ethos de
justiceiro da sociedade, como um alguém que está lá para mostrar a perseguição aos criminosos
e os crimes cometidos. Aliado a isso, o teor dramático, oriundo do choro da viúva, pode
corroborar a esse ethos um sentimento de revolta da audiência para com os criminosos, o que
também se aplica na fala da mulher que declarou: O cara morreu? Bem feito!, tão logo soube
da morte do criminoso. Essa ideia pode ser corroborada a uma relação de causalidade da
reportagem – que entendemos ser um exemplo de fait diver: a ênfase da notícia é deslocada ao
que Barthes (1964) chama de dramatis personae: o áudio do pranto da viúva aliado à fala de
revolta da outra mulher, que demonstra alívio ao saber da morte do criminoso, pode avigorar o
estereótipo da morte dos criminosos – lembremos que na edição Guerra Social do Documento
Especial, de 1989, um policial já afirmava que Bandido bom é bandido morto.
Por fim, no Balanço Geral, o expediente sonoro parece ter sido concebido a partir das
trilhas dramáticas. Na edição de 21/05/2014, por alguns transcorre uma trilha que traz a ideia
de dramaticidade ao mostrado. Essa trilha é inserida antes de a reportagem entrar no ar, quando
o apresentador fazia comentários inicias sobre o assassinato; quando a reportagem é exibida, a
trilha não é retirada – percebemos ser a mesma utilizada quando o apresentador comentava o
assassinato –, permanecendo no ar por cerca de 30” antes de sair em definitivo. Essa carga
sonora parece projetar um ethos de dramaticidade, que visa a credibilidade, ao telespectador,
baseado nas imagens da manicure morta e na trilha – quando ainda inserida na edição.
112
5.1.3 Argumentos e provas retóricas na projeção de uma ‘verdade’ discursiva
Dentre as conceituações teórico-metodológicas que levantamos até aqui, trouxemos
alguns elementos da retórica aristotélica, como argumentos e qualidades que conferem
legitimação ao discurso do orador. Na sequência da pesquisa, observaremos as provas retóricas
inartísticas apresentadas por Aristóteles (2005) – a saber: ethos, pathos e logos – com base no
protocolo de análise anteposto, e nelas tentaremos enxergar qualidades e estratégias que visem
a persuasão no discurso. Uma vez que já descrevemos pormenorizadamente as três edições de
cada programa, sintetizaremos brevemente o contexto de cada uma delas, principalmente no
que tange ao sentido dramático e pathético, para depois conjurarmos nossas análises.
Voltando ao Documento Especial, apontemos a edição Guerra Social: o programa
apresenta uma dicotomia social entre os “excluídos” e os “integrados” da sociedade, da qual
emergiriam crimes como arrastões, assaltos e tráfico de drogas. Essencialmente, a temática do
programa transcorre conforme a apresentação de Roberto Maya: A guerra social brasileira
resulta da combinação de vários fatores, que vão do desemprego até a impunidade. Frustrado
com a falta de perspectivas, um exército de marginalizados parte para um combate sangrento
contra a indiferença das elites. Na apresentação dos conflitos gerados a partir dessa disparidade
social, o programa exibe, dentre outras cenas, imagens de pessoas – ainda vivas – jogadas em
uma fogueira após serem linchadas. Tais imagens podem ter sido projetadas no intuito de buscar
identificação com a audiência através da emoção. Em quase todos os programas observamos
essa questão, que abordaremos de forma mais amplificada quando nas análises.
Figura 12 – Pessoas atiradas em fogueira após serem linchadas
Fonte: Documento Especial – edição Guerra Social (1989, Rede Manchete)
113
Em Os Pobres vão à Praia, a dualidade entre ‘ricos’ e ‘pobres’ se mostra latente no
discurso do programa. A atração adota uma produção jornalística baseada no ponto de vista dos
pobres: é mostrada a dificuldade que os ‘pobres’ teriam para embarcar nos transportes que
levam à praia de Copacabana; o preconceito que sofrem quando “invadem” uma praia que não
lhes pertenceria, de acordo com o retratado por parte dos frequentadores locais da praia de
Copacabana, e o regresso da viagem, no qual Roberto Maya encerra o programa: O fim de
semana acabou, a festa também. Agora é hora de retornar à realidade do dia-a-dia: a vida
dura de que mora nos distantes subúrbios cariocas. A necessidade de trabalhar impõe-se ao
prazer de uma praia distante e poluída. Uma praia difícil de se chegar, mais difícil ainda de se
sair e cheia de preconceitos. Conforme apontamos anteriormente, nas imagens de uma viagem
de ida à praia de Copacabana, a edição traz uma cena chamativa em que revela o assassinato de
um vereador, que teria reagido a um assalto. Novamente, enxergamos aqui um elemento que
busca despertar a emoção da audiência.
Figura 13 – O vereador morto após, supostamente, reagir a um assalto no ônibus
Fonte: Documento Especial – edição Os Pobres vão à Praia (1990, Rede Manchete)
Por fim, em Noites Cariocas o cerne da edição parece ser apresentar ao telespectadores
os meandros de uma noite violenta que ocorre na cidade do Rio de Janeiro. O apresentador
Roberto Maya compendia a que se referia a edição: A cidade, que é maravilhosa durante o dia,
enfrenta noites de terror, onde o que não falta são crimes e conflitos. Tão logo a fala do
apresentador termina, são exibidas imagens que ilustram o que seriam esses crimes e conflitos
114
enunciados. Portanto, já no início da edição há imagens que podem atingir o aspecto emocional
do telespectador.
Figura 14 – O primeiro cadáver exibido na edição
Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)
Figura 15 – O segundo cadáver apresentado ainda na abertura do programa
Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)
115
No Aqui Agora, as três edições transcorrem em perseguições policiais, no qual o
repórter, junto ao veículo da emissora, participa ativamente. A primeira delas, de 1994, mostra
a perseguição da polícia a criminosos que haviam roubado um carro forte. Decorre daí toda a
sequência: o repórter logo atrás dos policiais em toda a reportagem, até o momento em que
finaliza no hospital, informando a morte do vigia. Uma das tomadas em close exibe as manchas
de sangue que seriam do vigilante morto no assalto – talvez, na tentativa de causar o espanto
pela emoção.
Figura 16 – As manchas de sangue no carro-forte
Fonte: Aqui Agora – edição de 07/06/1994 (1994, SBT)
A segunda edição mostra a perseguição dos policiais – novamente seguidos pela equipe
de reportagem do programa – a criminosos que teriam baleado um policial, em suposta troca de
tiros. Transcorre a edição nessa toada, com o repórter pedindo informações aos policiais a cada
parada. Já na parte final, após toda a perseguição, a reportagem mostra outro crime – também
seguido pelos policiais que eram acompanhados pela equipe do Aqui Agora –, no qual um
policial fora assassinado por criminosos. Neste trecho, chama a atenção o enfoque que a edição
dá no sofrimento da mulher do policial morto, centrando a imagem em close e dando ênfase ao
seu pranto – imagem que pode buscar apelo junto à audiência pelo emocional. Também finaliza
com o repórter no hospital, anunciando a morte de um policial e de um criminoso.
116
Figura 17 – A aproximação da imagem na viúva do policial
Fonte: Aqui Agora – edição de 13/02/1995 (1995, SBT)
A terceira edição do Aqui Agora também transcorre em perseguição de policiais – tal
qual ocorrera nas edições anteriores. No caso desta reportagem, a perseguição se deu a
criminosos que teriam sequestrado uma escrivã da polícia. Na sequência, o repórter, sempre
seguindo os policiais, adentra matagais e casas e declara que o exibido era proveniente da
Marca da exclusividade. Após mostrar policiais interrogando um tio de um dos supostos
criminosos, a edição apresenta imagens de manchas de sangue encontradas no banco do carro
da escrivã – recorrência mais uma vez notada, talvez para apelar ao emocional da audiência.
Assim como nas edições anteriores, o repórter finaliza seu trabalho no hospital, anunciando a
morte da escrivão.
117
Figura 18 – Manchas de sangue que seriam da escrivã sequestrada e assassinada
Fonte: Aqui Agora – edição de 23/03/1995 (1995, SBT)
Por fim, nas três edições do Balanço Geral trabalham a violência social a partir da
subjetividade dos sujeitos-jornalistas, ao que nos parece. Na primeira edição, não há imagens
marcantes tal qual nos programas anteriores, mas há um comentário chamativo, proferido pelo
comentarista de segurança Renato Lombardi: É impressionante o número de menores
envolvidos em crimes nos últimos 2 anos em São Paulo. Triplicou o número de menores
envolvidos. É essa história: vai pra Fundação (Casa) e volta, vai e volta, e quando volta, volta
pior. À primeira vista, conforme colocamos no capítulo anterior, o sentido parece se colocar a
partir da autoridade do comentarista.
Na segunda reportagem é relatado o assassinato de um professor que teria reagido a um
assalto em um ônibus. O apresentador Wagner Montes conversa com o repórter responsável
pela matéria e parece tecer suas impressões com base em verdade de opinião comum.
Entretanto, também há uma registro imagético que pode causar apelo junto à audiência quando
é exibido o cadáver do professor morto – imagem censurada por técnicas gráficas.
118
Figura 19 – O cadáver do professor que teria sido morto por reagir a um assalto
Fonte: Balanço Geral – edição de 25/04/2014 (2014, Rede Record)
A terceira e última reportagem do Balanço Geral mostra um crime em que uma
manicure fora assassinada, supostamente, por seu ex-companheiro. Não há exibição de imagens
mais fortes na reportagem, mas o comentário do apresentador remete à verdade de opinião
coletiva, conforme veremos a seguir.
Em vista dos breves apontamentos que fizemos acima, entendemos que o discurso do
Documento Especial parece ter perpassado algumas estratégias que visassem a construção da
imagem positiva de si junto aos enunciatários. Quando constrói um discurso baseado em
conflitos sociais – conforme vimos nas duas primeiras atrações – e em diferentes cenários de
violência que ocorrem na noite carioca – a terceira edição –, o programa parece buscar um ethos
crível quando não se posiciona ante a nenhum dos dois lados do conflito social mostrado, como
se ocupasse um lugar de investigação neutro. Isso pode demonstrar o que Aristóteles (2005)
entende por prova inartística do discurso (logos), pois o programa parece não se imiscuir em
nenhum lado, o que pode soar como verdadeiro para a audiência. Também entendemos que as
causas dos conflitos são apresentadas a partir do que Charaudeau (2012) coloca como verdade
de opinião coletiva, pois há um julgamento que nos parece denotar “excluídos” e “inseridos”
da sociedade, assim como a violência que se dissipa ao raiar do dia carioca.
Ainda no Documento Especial, enxergamos o uso de argumentos de casualidade
(FIORIN, 2016) no discurso do programa. Isso porque a atração parece indicar causas para as
questões colocadas nas três edições – os conflitos sociais e a violência na noite carioca – e as
119
escolhe conforme seus próprios interesses. Ou seja, pode ter escolhido representar a violência
social com base na dualidade entre ‘pobres’ e ‘ricos’. Além de técnica argumentativa, a
casualidade também é uma relação comum entre os fait divers, conforme os apontamos de
Barthes (1964). É nela que os estereótipos se intensificam, algo que parece perceptível no
Documento Especial também quando os cidadãos de baixa renda são tidos como “excluídos da
sociedade” e os frequentadores das praias apresentados como “inseridos na sociedade”.
Ainda nesse caminho de busca pela projeção de credibilidade baseada em efeitos de real,
a atração recobre seu discurso com o que Charaudeau (2012) chama de verdade de emoção,
observada nas imagens fortes que podem causar emoção na audiência: a imagem de homens
em chamas após serem linchados – um deles estava sendo queimado vivo (figura 12); o plano-
sequência trabalhado no momento em que os policiais sobem o morro do Borel e o repórter
cinematográfico que grita por socorro; a imagem do vereador morto após supostamente reagir
a um assalto (figura 13); o enquadramento em primeiro-plano da mãe que se desesperava ao
saber da morte do seu filho (figura 20); e os corpos apresentados logo no início da edição Noites
Cariocas (figuras 14 e 15). Isso porque a verdade de emoção pode causar esse efeito de verdade
justamente por inferir no sensível dos telespectadores. Nesse contexto, lembramos da definição
que Aristóteles (2005) confere à prova retórica da disposição dos ouvintes (pathos): “Os juízos
que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio”. Assim, atingidos
por essa emoção transmitida pelas imagens, o programa pode atingir sua credibilidade
discursiva, através de um ethos que se fortalece em ocorrências pathéticas.
Figura 20 – O desespero da mãe que presenciava o cadáver do filho
Fonte Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)
120
No Aqui Agora observamos diferentes projeções ethópicas. As três reportagens se
desenvolvem a partir do acompanhamento do repórter junto aos policiais nas perseguições a
criminosos, o que parece reportar verdades de opiniões comuns (CHARAUDEAU, 2012). Isso
porque as reportagens se constituem à base da dualidade entre policiais versus criminosos, e o
programa acompanha sempre os profissionais de segurança pública, possivelmente revelando
uma opinião de que os criminosos matam inocentes, tão somente, estabelecendo aí um sistema
de crenças que pode ser compartilhado pela maioria. Daí podemos também pensar na
casualidade como estrutura de articulação do programa enquanto um fait diver. Na terceira
reportagem analisada é possível observar uma relação de causa que envolve o assassinato de
uma policial; o fato de a mulher ser policial parece conferir essa importância à perseguição,
algo que foi trabalhado pelos produtores do programa e faz parte do argumento de casualidade
(FIORIN, 2016). Essas estereotipizações também são prementes à casualidade, conforme as
ponderações de Barthes (1964).
Além da verdade de opinião disposta, o programa também recorreu ao argumento de
autoridade no sentido de conferir ainda mais legitimidade ao seu discurso. Em todas as edições
os repórteres entrevistam policiais e profissionais de segurança pública, o que faz menção ao
argumento de autoridade (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Isso confere
legitimação ao discurso, pois utiliza pessoas de autoridade suficiente para comprovar o dito.
Ainda nesse sentido, podemos pensar no autor como ratificador do discurso, uma vez que para
Foucault (1999) esse autor, quando identificado, emprega um sentido maior ao discurso,
evitando seu cerceamento.
Nessa projeção de ethos baseada em opiniões compartilhadas e elementos de autoridade,
o Aqui Agora também parece fazer uso das verdades de emoção (CHARAUDEAU, 2012) em
busca de efeitos de verdade. O conteúdo imagético do programa pode ter buscado um teor crível
junto à audiência com expedientes de forte carga dramática, dos quais observamos: as manchas
de sangue exibidas em close no carro-forte tomado (figura 16); o enquadramento em primeiro-
plano esposa do policial que chorava por sua perda (figura 17); novamente, manchas de sangue
no banco do carro da escrivã assassinada (figura 18); o rosto do marido que acabara de receber
a notícia da morte de sua esposa (figura 21). De tal modo, o ethos do Aqui Agora também se
articulou com o pathos na busca por esse convencimento da audiência através do apelo
emocional.
121
Figura 21 – A expressão desconsolada do marido que soubera da morte de sua esposa
Fonte Aqui Agora – edição de 23/03/1995 (1995, SBT)
Por fim, enxergamos no Balanço Geral projeções ethópicas baseadas em efeitos de
verdade a partir de verdades de opinião distintas. Na segunda reportagem observada, que mostra
o assassinato do professor de educação física em um ônibus municipal, o apresentador Wagner
Montes baseia seus comentários em enunciados de valor geral, como quando diz: Vê aí, ó. Ó o
que eles estão fazendo, ó o terror que eles estão tocando. Eu ainda falo de novo sobre aquele
professor de Educação física, ali na Tijuca, que também foi assassinado de modo covarde por
dois vagabundos. Suas impressões parecem não trazerem maiores problematizações, mas sim
remetem à dualidade – anteposta pelo Aqui Agora – ‘não se matam inocentes, são vagabundos’.
Isso denota uma verdade de opinião comum (CHARAUDEAU, 2012) mobilizada pelo
apresentador. Todavia, nas outras duas edições parece haver uma outra verdade de opinião. Na
primeira, o comentarista Renato Lombardi analisa a reportagem – que mostrava a prisão de
criminosos que teriam roubado um carro e trocado tiros com a polícia, com um menor entre os
envolvidos – afirmando que os menores que são detidos voltam às ruas, e que este ciclo se
mantém. Na terceira reportagem, o apresentador Rogério Forcolen comenta o assassinato
apresentado na reportagem – da manicure por parte do seu ex-companheiro, supostamente –
afirmando o crime ocorrera por conta de um sentimento de posse e da certeza da impunidade
por parte do assassino. As opiniões de Renato Lombardi e Rogério Forcolen parecem encontrar
respaldo no que Charaudeau (2012) entende por verdade de opinião coletiva, uma vez que
122
ambos os sujeitos-jornalistas emitem julgamentos sobre os atores – os menores e o ex-
companheiro da vítima – e os essencializam sob o viés da impunidade.
Tal qual no Aqui Agora, os sujeitos-jornalista, que se posicionam a partir de suas funções
profissionais, podem buscar projetar uma eficácia discursiva a partir do argumento de
autoridade (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005), o que pode inferir no logos da
atração. Ainda nesse sentido, as duas reportagens citadas acima – o assassinato da manicure e
o roubo do carro cometido por criminosos – também parecem investir em seu discurso
argumentos de casualidade. Em todas as edições as causas apontadas fazem menção a
estereótipos: o menor que cometeu o crime por saber que logo voltará às ruas e o homem que
matou sua companheira e arquitetou um possível falso suicídio para livrar-se da pena por ser
um criminoso certo da impunidade. Essa pode ter sido, portanto, as causas trabalhadas pelas
reportagens, conforme pontua Fiorin (2016), como essência do argumento de casualidade.
No que diz respeito à mobilização pathética, por meio do emocional da audiência, o
Balanço Geral parece ter apresentado a cena do professor morto (figura 19) como principal
expediente para esse fim. A exibição do cadáver também traz à tona a verdade de emoção
(CHARAUDEU, 2012), o que pode ocasionar um efeito de verdade com base nas reações
emocionais da audiência.
Essencialmente, entendemos que os três programas analisados apresentam projeções
ethópicas baseadas em verdades de opinião que se alternam. Ora as opiniões são comuns,
revelando enunciados de valor comum, como no Aqui Agora e em uma edição do Balanço
Geral; ora em verdades de opinião coletivas, baseada em julgamentos que parecem discutir
causas, mas se encerram em categorias que os essencializam, como em todas as edições do
Documento Especial e em duas edições do Balanço Geral.
Em comum entre os três programas temos as relações de casualidade, que os engendram
nos fait divers e parecem estereotipar os atores das reportagens. No Documento Especial, os
“pobres” e os “ricos” parecem demarcados dentro de seus espaços sociais; no Aqui Agora, a
relação entre policiais e criminosos parece emergir de uma dicotomia que representa a
segurança versus a criminalidade, em que atuar ao lado dos profissionais de segurança
tipificaria estar com a verdade; no Balanço Geral, essa relação de casualidade se coloca em
consonância com o estereótipo do criminoso como um alguém certo da impunidade, mesmo
que sejam menores de idade; não há, assim, uma maior apreciação das causas que levaram aos
crimes retratados pelas reportagens, pois nas três o espaço social dos indivíduos também parece
bem delimitado, entre policiais e sociedade de um lado, criminosos de outro.
123
Também em relação de consonância entre as três atrações está a mobilização dos
elementos pathéticos para a projeção de um ethos passível de credibilidade. Os dois primeiros
programas em ordem cronológica trabalharam com um conteúdo imagético de forte carga
dramática, apresentando cadáveres expostos sem qualquer tipo de censura (Documento
Especial) e manchas de sangue (Documento Especial e Aqui Agora), todos enquadrados em
primeiro-plano – o que, conforme vimos, busca ressaltar a dramaticidade da imagem. O
Balanço Geral também trabalhou com o expediente da verdade de emoção através do pathos,
mas com um tipo de censura técnica que não permitiu a visualização do cadáver em detalhes –
algo que parece demarcar uma diferença ethópica entre os três programas.
Seguindo por esse caminho, mobilizaremos a seguir alguns elementos que compõe o
campo teórico-metodológico da análise do discurso de tradição francesa, sempre com o intuito
de vislumbrarmos características que compões o ethos das três atrações observadas.
5.2 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS BASEADAS EM PARÁFRASES
Na segunda e última parte de nossas análises, observaremos as características dos
objetos empíricos com base em paráfrases atuantes no discurso dos programas – considerando
esta um dos tipos de funcionamento da formação discursiva (BRANDÃO, 2002), conforme
discussões trazidas no capítulo anterior desta pesquisa. Traremos essas observações sempre em
vista do nosso propósito neste trabalho: o de enxergarmos diferenças e semelhanças ethópicas
entre o Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral.
Para nos auxiliar em tais observações, de início elencaremos alguns termos recorrentes
entre as edições – que engendram sentidos pelo pathos –, já trazendo a eles a configuração
ethópica interligada ao discurso dos programas.
5.2.1 A projeção ethópica a partir de termos compartilhados
No primeiro programa observado, o Documento Especial, alguns termos chamam a
atenção por, quando pensados em contexto, conduzir a um ethos específico da atração da Rede
Manchete. Vamos a eles, separando-os por edição:
Eu, preso, e os marginais soltos – Um morador na janela de seu apartamento, na abertura
da edição Guerra Social (ethos de indignação e ethos de impunidade);
Quando os ‘homi’ chega a gente dá neles memo – Traficante entrevistado pela equipe
do programa (ethos policial – que pode justificar a ação dos policias, sem detalhá-la);
124
Policiais recebidos com tiros – Roberto Maya, ao apresentar a reportagem dos policiais
que subiam ao morro do Borel (novamente, um ethos polcial);
Apreensão nos morros causou prejuízo ao traficantes – Roberto Maya, sobre o balanço
da atividade policial (pela terceira vez, um termo que justifica a ação dos policiais);
Criminoso não tem limite orçamentário – O policial explicando as dificuldades dos
policiais perante as ações dos criminosos (ethos de impunidade);
Bandido bom é bandido morto – Um policial falando sobre o que ele pensa do conflito
entre policiais X criminosos (tal declaração pode levar à crença de que todos os policiais
pensam assim, estereotipando-os);
Venho à praia da Zona Sul para estar junto dos meus – Um frequentador da praia de
Copacabana, falando sobre a “invasão” dos “pobres”;
População pensa duas vezes antes de sair de casa – Roberto Maya, na abertura da
edição Noites Cariocas (ethos de indignação);
Enquanto a cidade dorme, a polícia entra em ação – Roberto Maya, na chamada da
reportagem que mostraria a ‘rotina’ policial na noite carioca (ethos policial);
Todos assaltantes (eram) menores de idade – Roberto Maya, durante a narração de uma
reportagem que mostra um arrastão ocorrido em um prédio de Copacabana;
Sou preso do manicômio, não sou responsável pelos meus atos – Um suposto criminoso,
quando já algemado (ethos policial);
Clima de insegurança que tomou conta – Roberto Maya, sobre a noite carioca (ethos de
indignação);
Uma mancha de sangue no chão, o para-brisa quebrado e os corpos estendidos no bar
– Roberto Maya, descrevendo o resultado de uma chacina (ethos de violência);
Mãe que chora pela morte do filho – Roberto Maya, sobre a mãe do traficante que
presenciava seu filho morto.
A seguir, traremos alguns termos observados no Aqui Agora, que também parecem
lançar sentidos em um contexto amplo, conformando representações ethópicas:
Os ladrões são audaciosos – Repórter Carlos Cavalcanti (ethos de indignação);
Audácia por parte dos assaltantes – Novamente o repórter, repetindo o mesmo termo;
Grande movimentação dos policiais – Carlos Cavalcanti (ethos de justiceiro);
Dentro (do carro mostrado na imagem) tá cheio de sangue – Carlos Cavalcanti (ethos
de violência);
O Aqui Agora chegando junto – Repórter Tony Castro (ethos de justiceiro);
125
Policiais recebidos à bala – Repórter (ethos da justificativa da ação dos policiais)
Seu pai queria enfrentar a polícia, né? – O repórter Tony Castro pergunta ao entrevistar
um dos supostos criminosos (outra vez, um ethos que justifica a ação policial);
O Aqui Agora chega junto na marca da exclusividade (ethos de justiceiro ao programa);
O Balanço Geral, por sua vez, apresentou também alguns termos que parecem justificar
certas construções ethópicas, a saber:
Um crime com 4 vagabundos! Eu falo vagabundo mesmo. Cidadão é quem trabalha
para sustentar a família – O apresentador Wagner Montes, comentando a reportagem sobre o
assassinato de um professor em um ônibus (ethos da indignação);
Só para a gente entender quem é cidadão nessa história: o dono do carro, esse sim é
cidadão, vítima da violência – O repórter Leonardo Lara, comentando a declaração do
apresentador e corroborando ao ethos desenhado;
Em vista das observações que fizemos acima, é possível depreender alguns sentidos
atuantes na constituição ethópica das três atrações. No primeiro programa em ordem
cronológica, o Documento Especial, enxergamos conformações de ethos que perpassam a
indignação que o programa parece demonstrar face ao cenário de violência e da situação social;
e a um tipo de justificativa da ação dos policiais sem problematizações, como um ethos policial,
uma vez que são exibidas declarações de um traficante que afirma que vai matar o policial.
O Aqui Agora também apresentou projeções ethópicas comuns entre as edições algumas
se desenhando de maneiras semelhantes na enunciação, outras de maneiras distintas. O ethos
crível projetado – aquele que entendemos se configurar por meio da emoção – parece ser
semelhante em todas as edições, com a exibição de imagens sem qualquer traço de censura –
conforme já vimos acima; o ethos de indignação, entretanto, parece ter sido projetado pelo
programa a partir da descrição do sujeito-jornalista sobre os criminosos, ancorando esta
representação ethópica junto a um ethos policial, que parece também justificar a ações policiais
sem outros esclarecimentos; o ethos da indignação, projetado a partir da fala dos repórteres
sobre os crimes relatados; já o ethos de justiceiro, parece se desenhar no acompanhamento bem
próximo do programa junto às atividades policiais, de tal forma que o próprio sujeito-jornalista
parecia ser o justiceiro que perseguirá os criminosos; por último, o ethos de violência parece
ter sido projetado de maneira semelhante ao programa antecessor, com a exibição de sangue
sem qualquer tipo de censura técnica por parte dos produtores do programa.
Por fim, o Balanço Geral representou um ethos de indignação sobretudo a partir do
posicionamento dos sujeitos sobre os crimes ocorridos, diferentemente do Documento Especial
126
e próximo ao ethos do Aqui Agora; um ethos de violência projetado na exibição do cadáver do
professor morto em um assalto, diferenciando-se dos demais por ser censurado por técnicas
gráficas; e um ethos de impunidade, baseado exclusivamente na declaração dos apresentadores
e comentaristas, que afirmam ter certeza quanto ao não cumprimento das penas por parte dos
criminosos – na primeira edição, Renato Lombardi critica as punições para criminosos menores
de idade; na terceira edição, Rogério Forcolen afirma que o rapaz, possível assassino da
manicure, premeditou o crime por saber da impunidade.
Na sequência, abordaremos algumas paráfrases que enxergamos nos programas,
conforme os apontamentos que fizemos em nosso protocolo de análise.
5.2.2 Paráfrases discursivas
Conforme apontamos no capítulo anterior, Orlandi (2012) assimila o retorno de um
mesmo dizer, em diferentes discursos, a partir da paráfrase. Algumas recorrências parafrásicas
puderam ser observadas nos três programas, as quais apontaremos a seguir:
Paráfrase 1 – A ‘impunidade’ premeditada do criminoso (ethos de impunidade)
Na edição Noites Cariocas, do Documento Especial, há uma reportagem que mostra a
prisão de um rapaz que teria assaltado um apartamento em Copacabana. Após a exibição das
imagens do apartamento, o prisioneiro ganha voz: Vocês podem me enfiar onde vocês quiserem.
Eu sou preso do manicômio. Eu não sou responsável pelos meus atos. Vou para o manicômio
e saio para a rua. Vou matar vocês todos. Este trecho parece chamar a atenção para a fala do
entrevistado, que afirma que logo sairá da prisão.
Ainda aqui, apresentamos brevemente a terceira reportagem observada no Balanço
Geral, que mostra o assassinato de uma manicure. Após a exibição da matéria, o apresentador
Rogério Forcolen analisa o que, em sua opinião, seria a motivação por parte do ex-companheiro
da manicure – supostamente o criminoso: O sentimento de posse aliado à impunidade. Eles
assistem o jornal. Nesse momento, enquanto o jornal está no ar, alguma mulher em algum
canto do Rio de Janeiro está sendo agredida. Eles estão assistindo o jornal: ‘Tá vendo, ó? Eu
vou te matar’. O sentimento de impunidade é grande. Aí ele vai dizer que se esfaqueou. Isso é
premeditado, ele foi lá exatamente pra fazer isso.
Observando a reportagem do Documento Especial e do Balanço Geral, enxergamos
uma projeção ethópica baseada na impunidade, através de um ethos de impunidade exaurido
pelos programas. No primeiro, o próprio criminoso coloca que logo irá sair do manicômio e
127
voltará; no segundo, o apresentador afirma que há um sentimento de impunidade por parte dos
próprios criminosos, e que isto teria motivado o assassinato da manicure. De tal forma, embora
proferido em anos distintos, os discursos dos programas parecem residir numa paráfrase que
retrata a impunidade presente na mente do criminoso já em 1992 e ainda imperante em 2014.
Paráfrase 2 – Menores criminosos (ethos de impunidade)
Novamente recorremos à edição Noites Cariocas, do Documento Especial. Em dado
momento, Roberto Maya apresenta uma outra reportagem sobre crimes, dessa vez anunciando
um arrastão ocorrido em um apartamento. Diz o apresentador: Quando a polícia chegou, os
quatro assaltantes já haviam rendido o zelador e estavam promovendo um arrastão no prédio,
que fica em Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Eles se aproveitaram do descuido de uma
moradora. Em outras reportagens semelhantes, que versavam sobre assaltos ou arrastões, em
nenhum momento o programa informou a idade dos criminosos, diferente do que ocorrera na
reportagem que mencionamos. Isto, possivelmente, faça relação ou a uma indignação do
programa com o fato de menores de idade praticarem o assalto, ou mesmo à possível
impunidade aos assaltantes.
Já na primeira edição do Balanço Geral, que mostra o roubo de um carro também por
parte de assaltantes, o apresentador Luiz Bacci diz: Que judiação. 15 anos e já nessa
empreitada. Renato Lombardi, comentarista do telejornal, complementa o comentário do
apresentador: É impressionante o número de menores envolvidos em crimes nos últimos 2 anos
em São Paulo. Triplicou o número de menores envolvidos. É essa história: vai pra Fundação
(Casa) e volta, vai e volta, e quando volta, volta pior.
Em vista das duas reportagens supracitadas, notamos uma paráfrase discursiva por meio
do Balanço Geral em referência ao apresentado no Documento Especial, quando ambos
parecem, de maneiras distintas na descrição, projetar uma indignação com uma suposta
impunidade aos criminosos menores de idade – exposto abertamente no comentário de Renato
Lombardi.
Paráfrase 3 – A conformidade com a morte e a ‘justiça’ pela vingança (ethos de
indignação e ethos de justiceiro)
No Documento Especial, novamente em Noites Cariocas, recordemos a cena – exibida
em plano-sequência – que mostrava o corpo de um traficante assassinado em uma chacina. A
128
edição revela, durante as imagens que mostram a senhora chorando: A família tenta confortar
a mão que chora a morte do filho. Ele era um traficante da favela de Ramos. A seguir, o irmão
da vítima, que consolava a mãe, diz: Tinha que encontrar ele morto mesmo. Não sei quem
matou ou deixou de matar. Se foi polícia, se foi vagabundo, não interessa. O que interessa é
que temos de fazer o enterro dele. E continua: Eu não me conformo de ele ter morrido, mas foi
melhor assim para a minha mãe e para o meu pai. Para ela parar de sofrer. O sentido aqui
indica uma indignação por parte do irmão do traficante assassinado, mas, ao mesmo tempo, a
conformação de que “foi melhor” para que sua mãe parasse de sofrer. Ainda em Documento
Especial, chamamos a atenção para a fala de um policial na edição Guerra Social, que diz:
Bandido bom é bandido morto e enterrado em pé para não ocupar muito espaço.
No Aqui Agora, a reportagem de 13/02/1995, que mostrou a perseguição da polícia
resultando na morte de um criminoso e também de um policial, enfocou, sumariamente, o
policial morto, apresentando a esposa do profissional de segurança pública chorando. Nesse
ponto, o repórter Tony Castro comenta com populares que o criminoso também foi morto, ao
que uma mulher diz: Ele também morreu? Bem feito!. Depois, ainda na mesma reportagem, o
programa mostrou um colega de profissão do assassinado, que ostentava a carteira de
identificação da Polícia Militar com a foto da vítima. O sentido, aqui, parece emergir do fato
da indignação com a morte do policial.
Já no Balanço Geral, na segunda edição observada, a morte do professor, que teria
reagido a um assalto, é exaustivamente comentada por Wagner Montes. Em seu comentário,
que já discutimos anteriormente, o apresentador torna pública sua vontade em ver o criminoso
– assassino do professor, mas até aquele momento sem identidade –, morto.
Apresentados os três casos, entendemos haver um jogo parafrásico no discurso das três
edições. Muito embora o Documento Especial tenha trazido à tona a dor da mãe que deparou
com seu filho morto, o programa comandado por Roberto Maya finaliza a cena com o
conformismo do irmão, que já esperava ver a morte de seu ente e se sentiu aliviado por não
perceber mais a mãe sofrendo. Já o Aqui Agora parece ter se preocupado em relatar somente a
dor da família do policial morto, talvez assumindo um posicionamento de chamar a atenção
para a morte daquele que representaria o ‘bem’, mantendo, de certa forma, o discurso já adotado
pelo Documento Especial. Por consequente, o Balanço Geral pareceu externar um discurso
mais explícito quando, na figura de apresentador e sujeito-jornalista, Wagner Montes declara
seu desejo em ver o criminoso enterrado, morto, no que parece projetar mais o discurso da
impunidade. O ethos dos dois primeiros programas, nesse sentido, parece ter projetado o que
129
entendemos por ethos policial, que assegura uma proximidade junto à instituição de segurança
pública, e também um ethos de justiceiro, no qual, talvez, o próprio policial tenha agido como
um justiceiro ao matar o criminoso que matara seu colega, ao passo em que o Balanço Geral
talvez não tenha produzido algo nesse sentido.
Paráfrase 4 – A traumatização da população (ethos de violência)
Em Noites Cariocas, ainda na abertura da edição, Roberto Maya diz: As noites cariocas
tem sido marcadas pelo medo de uma população, que pensa duas vezes na horas de sair de
casa. Na sequência, os crimes cometidos na noite carioca, retratados pelo programa, são
mostrados.
Na terceira edição do Balanço Geral, que exibe o assassinato da manicure, em
determinado momento o repórter Dennes Queiroz afirma: Clientes da galeria (local de trabalho
da manicure) ficaram traumatizados com a cena de violência.
Embora proferidas em circunstâncias distintas, as duas enunciações – de Roberto Maya
e de Dennes Queiroz – indicam o trauma da população ao sair de casa, haja vista as cenas de
violência que encontrariam – violência cometida por meio de assaltos ou mesmo de
assassinatos, ao deparar com um cadáver na rua.
De tal modo, também entendemos haver um jogo parafrásico erguido sob um ethos de
violência estabelecido pelas duas atrações televisivas.
Paráfrase 5 – A representação da violência ‘sanguinária’ (ethos de violência)
Nas três edições do Documento Especial algumas cenas explícitas de violência foram
exibidas: as manchas de sangue após a chacina (figura 8), os corpos estendidos (figura 10),
pessoas vivas jogadas em uma fogueira (figura 12), o vereador morto em um assalto (figura 13)
e outros dois cadáveres (figuras 14 e 15).
No Aqui Agora, embora em menor número, tais cenas também ganharam espaço nas
reportagens: manchas de sangue no carro-forte assaltado (figura 16) e outras manchas de sangue
no carro da escrivã sequestrada (figura 18).
O Balanço Geral também exibiu uma imagem de um cadáver, embora não
explicitamente, quando mostrou o corpo do professor também morto em um assalto (figura 19).
Retomando aquela que poderia ser a premissa básica dos fait diver, que seria o inusitado,
que se desdobra no além da notícia, conforme Barthes (1964), ponderamos que estes
expedientes imagéticos podem ter corroborado para uma representação ethópica desenhada a
130
partir da violência. Conforme já pontuamos, esse ethos parece ter se modificado na exibição
com uma certa censura por parte da imagem explícita, conforme o corpo do professor morto
exibido no Balanço Geral. Todavia, ressalvamos que os dois primeiros programas, Documento
Especial e Aqui Agora, inseriram um certo apelo ao sangue nessa projeção ethópica – e sem
qualquer traço de censura. No próprio logotipo do Aqui Agora constava uma cor vermelha de
fundo, sob o nome do programa em branco. Essa escolhe pode ter sido referente ao vermelho
do sangue.
Figura 22 – O logotipo do Aqui Agora
Fonte Aqui Agora (1994, SBT)
Após apresentarmos nossas análises, na sequência tentaremos apresentar, de maneira
descritiva, como cada ethos se constituiu nos três programas estudados, abordando também
diferenças entre eles.
5.3 A IDENTIDADE ETHÓPICA NO DISCURSO DAS ATRAÇÕES
Com base nos olhares que dispusemos acima, quando nas análises, apresentaremos cada
tipo de ethos depreendido em cada programa, com o propósito de elucidarmos quais foram as
semelhanças e diferenças na conformação da identidade discursiva de cada programa.
131
5.3.1 Ethos crível e de violência
Talvez o ethos mais semelhante nas três atrações seja aquele que visa a credibilidade
junto à audiência – buscando a persuasão através do discurso enunciado. No Documento
Especial, avaliamos que esse ethos, resultante de um efeito de verdade, pode ter sido ungido a
partir de uma estratégia de aproximação do espectador ao fato relatado. Em duas edições, Noites
Cariocas e Guerra Social, o uso de planos-sequência corrobora à essa aproximação, pois,
conforme já relatamos, essa sequencialidade, segundo Pasolini (1985), dá a impressão de ser
um retrato de presente, em relação ao exibido. Ainda nesse ponto, o programa também trabalha
com um alto percentual de alternância entre plano médio e primeiro plano, o que evidencia um
detalhe; esse detalhe, por sua vez, parece ter priorizado a emoção – no choro das vítimas, nos
cadáveres e nas manchas de sangue –, e essa emoção, segundo Charaudeau (2012), provoca
esse efeito de verdade no telespectador, tal qual assimila Aristóteles (2005), que pondera que
conforme sentimos emoção, emitimos juízos de valor. Ou seja, o pathos, nesse caso, parece ter
trabalhado em sintonia ao ethos na busca da credibilidade.
Outrossim, as opiniões do programa – que entendemos ser um efeito de verdade baseado
nas opiniões coletivas (CHARAUDEAU, 2012) – trabalham do mesmo modo em busca desse
teor ethópico crível. Em menor escala, o programa também se utilizou de um discurso de
autoridade com fins de legitimação do discurso, quando ouviu profissionais de segurança
pública, um morador de uma favela e mesmo um suposto traficante. Por fim, também
entendemos que as trilhas sonoras utilizadas podem ter ajudado nessa projeção ethópica de
credibilidade, pois os áudios transmitidos revelavam uma carga dramática na canção de blues
e no choro da mãe do traficante morto.
O Aqui Agora parece buscar projetar essa aproximação ao telespectador
fundamentalmente nos longos planos-sequência, que chegam a mais de 1’, e foram utilizados
15 vezes, e nos seguidos argumentos de autoridade. Conforme apontamos acima, o uso da
sequencialidade imagética pode criar efeitos de verdade junto à audiência, podendo tornar o
discurso crível, e um personagem, que representa autoridade, detém um poder de persuasão
ainda maior ao discurso.
Enxergamos no programa também efeitos de verdade baseados em opiniões comuns, no
qual parece haver uma apresentação que beira o confronto entre polícia X criminosos, tão
somente, sem outras problematizações. Também há um apelo ao emocional do telespectador
com as manchas de sangue exibidas em duas das três edições estudadas.
132
A atração da Rede Record, por fim, parece buscar esse ethos crível mais em opiniões
dos sujeitos-jornalistas, fundamentadas em opiniões comuns e coletivas. Em ambas, os
apresentadores se posicionam abertamente sobre o fato retratado pela reportagem e emitem seus
comentários visando, possivelmente, uma verdade propícia a ser compartilhada pela maioria e
uma outra verdade que julga os envolvidos, mas os essencializa em categorizações
(CHARAUDEAU, 2012) – ou estereotipações. Essa opiniões também podem ter atuado como
o argumento de autoridade, sobretudo nos momentos em que os apresentadores se autoconferem
a própria autoridade para tecer os comentários.
Notamos, nessa provável projeção de credibilidade, efeitos de verdade de emoção
também, embora em menor número quando comparado aos demais programas, na exibição do
cadáver do professor assassinado e da manicure também assassinada.
5.3.2 Ethos de indignação e impunidade
No Documento Especial, o ethos de indignação e de impunidade parece ter emergido
em situações que envolvam os confrontos sociais apontados: entre ‘pobres’ e ‘ricos’ e entre
‘policias X criminosos, movidos a partir de uma narrativa discursiva que parecia procurar
contextualizar esses conflitos. Há também um trecho que aponta para um comentário de um
criminoso preso, que afirmara logo sair da cadeia, o que parece desenhar uma representação
ethópica baseada na impunidade.
Com relação ao Aqui Agora, notamos o ethos de indignação e de impunidade no
posicionamento dos sujeitos-jornalistas em relação aos criminosos retratados nas reportagens e
as penalidades a que estariam sujeitos. Isso se refletiu nas entrevistas que os repórteres fizeram,
quando alteravam seu tom de voz ao conversar com os criminosos e quando ouviam populares.
As imagens dos parentes das vítima, em prantos, revelando tristeza, também corroborou para
tais ethos.
Por fim, no Balanço Geral essa indignação e impunidade também partiu dos sujeitos-
jornalistas, que comentavam os crimes mostrados com declarações que externassem essa
indignação, como por exemplo a fala de Wagner Montes, que adjetivava criminosos como
“vagabundos” e dizia que as penas eram brandas. Também o comentário de Rogério Forcolen
parece determinante para tais ethos, principalmente quando o apresentador crava que o acusado
da morte da manicure, ex-companheiro da vítima, premeditara o crime e já havia até adotado
uma estratégia para alegar insanidade e não cumprir a pena – mesmo quando a reportagem
informaba que o suspeito estava na UTI após tentar o suicídio.
133
5.3.3 Ethos de justiceiro e ethos policial
Em Documento Especial, essas representações ethópicas se deram nos momentos em
que o programa relata o confronto entre policiais X criminosos e acompanha a incursão dos
policiais a um morro, dominado por traficantes. Há também uma entrevista com um traficante,
que afirma já ter matado policiais – o que corrobora ao ethos policial e, possivelmente, justifica
a ação dos policiais sem questionamentos – e mesmo a entrevista com um policial que não se
identifica, mas revela ter um salário baixo.
No Aqui Agora, esses ethos são observados com mais frequência e dominam as
reportagens. As sequentes perseguições, encontradas nas três edições observadas, aproximam
o programa da instituição de segurança pública. Os repórteres, que acompanham as
perseguições de perto, literalmente, parecem conquistar para si esse ethos de justiceiro, como
se estivessem participando da ação para perseguir criminosos e fazer justiça ante aos delitos
cometidos. Termos recorrentes no programa, como “bandidos fortemente armados”, “crimes
chocantes” e “requintes de crueldade” se repetem entre as edições e projetam também esse ethos
policial – que, a exemplo do Documento Especial, pode justificar as ações dos policiais e não
as questiona ou problematiza.
No Balanço Geral, essas projeções ethópicas não parecem assumir um papel
determinante no discurso do programa. Embora apresente também prisões de suspeitos, o
programa pareceu mais voltado a lançar seu discurso na crítica aos sistemas penais e aos
criminosos.
Isto posto, esclarecemos que, embora revelando ethos semelhante, os programas
mantiveram produções discursivas distintas entre si, conforme nossas pontuações ao longo das
análises.
134
À GUISA DE CONSIDERAÇÕES
Em vista dos pontos teóricos elencados ao longo do desenvolvimento da presente
pesquisa, tencionamos abordar diferentes vieses que nos permitiram observar como o
jornalismo popularesco televisivo desenvolveu sua identidade discursiva através de
representações ethópicas. Para isso, tomamos um norte a partir de atrações que detém o
inusitado, calcado na violência, como premência discursiva. A partir de então, iniciamos uma
discussão que não se encerra por aqui, muito pelo contrário: a pretensão de iniciá-la refere uma
busca constante pela observação sobre o jornalismo popularesco transmitido na televisão.
Assertamos essa vontade com base no sucesso que a fórmula popularesca parece trazer aos
programas, haja vista os sequentes programas que surgem e a mantém em suas constituições
jornalísticas.
Nos processos de produção da notícia a partir do acontecimento observado,
determinados ingredientes – de ordem institucional e subjetiva aos sujeitos-jornalistas –
semelham encalacrar-se aos meandros da práxis jornalística. A partir de então, o discurso
jornalístico pode se contemplar sob um processo de dupla mecânica, que perpassará desde o
olhar do sujeito-jornalista ao fato inicial até as significações psicossociais que o profissional da
comunicação conferirá à notícia. Pregnante à produção noticiosa, estratégias são erguidas no
discurso noticioso com vistas aos efeitos de real revelados no conteúdo jornalístico, sejam eles
por de opiniões ou mesmo por meio do enfoque emocional. Este é, aliás, o efeito de verdade
que assenta projeções residentes em formações discursivas que eivam na violência, na
impunidade e mesmo na indignação. Tais recursos técnico-jornalísticos repousam
conjuntamente em representações do que seria pertencente ao cotidiano popular, o que
entendemos ser, em verdade, baseados na premissa do popularesco. Essa cadeia de fragmentos
dispostos no discurso jornalístico podem agir apanhando a audiência graças aos elementos
discursivos muito bem trabalhados pelos produtores dos programas popularescos. Parece-nos,
assim, que a Televisão Verdade ou o programa que mostra na tevê a vida como ela é visam
projetar um discurso realístico ao seu destinatário.
Nessa conjuntura, emerge o discurso do veículo jornalístico com base em uma tríade
retórica, que explica a persuasão na a imagem de projetada de si e no efeito desse discurso
baseado na emoção. Assim, ethos e pathos foram trabalhados em conjunto no Documento
Especial, Aqui Agora e Balanço Geral. O discurso baseado na credibilidade pôde ser observado
em todos os programas, fundamentalmente em uma organização argumentativa tal que
posicionamentos dos sujeitos-jornalistas – através de comentários – e estratégias que buscassem
135
a sensibilidade da audiência – no fazer-jornalismo – trabalharam conjuntamente nesse
propósito, visando a persuasão retórico-discursiva.
O fazer-jornalismo, aliás, detém algumas peculiaridades ao veículo televisivo: a união
entre os sentidos imagéticos e sonoros permite a criação de narrativas que exploram o
imaginário da audiência, trazendo até mesmo uma sensação de companhia àquele que mantém
sua televisão ligada. Os rostos que são revelados na tevê apostam em uma aproximação dos
telespectadores pela identificação, haja vista que, nos programas estudados, o teor popularesco
residia na afinidade com o que seria pertencente ao popular – mas não o era, pois tratava-se
apenas de fragmentações deste – fragmentações estas que contém em si estilhaços de
estereótipos e preconceitos sobre o popular. No transcorrer da trajetória televisiva no Brasil, o
popularesco passa a assumir papel predominante desde 1966, com a primeira atração que adotou
este teor. A partir de então, outros programas surgiram, caracterizados por congregarem
elementos dos fait divers. Essa conjuntura reside no entendimento de que estes programas se
desdobram no além da notícia, que os alocam em um sistema de classificação noticioso que vai
supera das editorias mais conhecidas. Em comum, estas peças jornalísticas mantém relações de
casualidade e coincidência. No Documento Especial, reportagens eram produzidas tomando por
base um tema preestabelecido, que, nas edições analisadas, percorreram justamente relações de
causalidade – por gerarem espanto – e repetição – concomitâncias envolvendo conflitos
classistas foram predominantes; no Aqui Agora, o interesse pelo além do noticiado permitia
uma exploração de todo o trabalho policial em ocorrências criminosas – não à toa, o ethos
policial observado foi imperante no telejornal; no Balanço Geral, esse dimensionamento do
além da notícia se colocou sob comentários e julgamentos dos sujeitos-jornalistas, que por vezes
puderam estereotipar atores das reportagens sem outras problematizações acerca do noticiado.
Todos estes meandros jornalísticos nos trouxeram à baila questões que percorrem a
produção dos programas e seus conteúdos. Pensar nisso remonta ao discurso projetado pelas
atrações. Conforme vimos, há mecanismos que agem para controles do discurso, que indica a
forte relação do discurso com o poder. Um destes procedimentos indica a manutenção de
comentários, que se alternam em dizeres, mas mantêm o cerne de um mesmo discurso, ou seja,
de um pelo outro. Isso pôde ser notado nos programas analisados. Não há diferenças
significativas entre o posicionamento das atrações e dos sujeitos-jornalistas ao trabalharem o
noticiado. Constatamos isso ao enxergarmos um ethos de justiceiro em comum nas três
atrações. Em todas elas, os programas se montam em discursos que os colocam dessa forma ao
demarcarem opiniões relativas e comuns, que julgam os fatos ora sobre argumentações comuns
136
– como ladrão tem de ser preso –, ora sobre opiniões relativas, que essencializa os personagens
das reportagens em categorias simples – como bandido é vagabundo. Outrossim, essas
opiniões, colocadas e reafirmadas sob argumentações que podem ser compartilhadas pela
maioria, remonta à memórias discursivas que reforçam o ethos de justiceiro das atrações.
Ainda neste ponto, pudemos observar situações que remeteram à paráfrases discursivas
alocadas pelos três programas ao longo do tempo. Quando o Documento Especial já atrelava
índices de criminalidade aos menores de idade, o Aqui Agora ressaltou esse discurso também
noticiando recorrências de menores de idade em crimes, algo prosseguido pelo Balanço Geral,
no qual o comentarista afirmara, sob um discurso de autoridade – engendrado por números –, a
impunidade aos criminosos de menoridade. Isso projetou nos três programas um ethos de
impunidade. Outras recorrências parafrásicas foram observadas, nas quais notamos projeções
ethópicas de indignação, de violência, e mesmo de policial, quando as três atrações, visando o
ethos de justiceiro, trabalharam as produções jornalísticas em proximidade aos policiais.
Assim, nossas observações aos programas revelaram alguns ethos consonantes, mas
erguidos sob apresentações discursivas distintas. Nas produções sonoro-imagéticas, cada
programa revelou certa peculiaridade. No Documento Especial, o conteúdo imagético se deu,
primordialmente, entre planos de enquadramento que variassem entre os planos médio e
primeiro plano, o que revela a intenção do programa em centrar a narrativa em detalhes dos
personagens e em cenas que mostrassem um detalhe e a reação dos personagens a estes detalhes.
Aliados a alguns planos-sequência, enxergamos aqui revelações ethópicas baseadas em
violência, indignação – embora outros ethos tenham aparecido no programa. Em termos de
áudio, encontramos trilhas que reforçam a dramaticidade das cenas e outras que trazem em suas
letras situações envolventes do que entendemos ser representações do popularesco, voltadas
aos ‘pobres’ que eram exibidos na edição Os Pobres vão à Praia.
O telejornal Aqui Agora, conforme colocamos, se colocou a partir de produções
imagéticas que aproximavam o programa junto da polícia, quando acompanhava perseguições
utilizando o expediente do plano-sequência e da câmera nervosa. Também nesses momentos a
atração mostrava o desdobramento dessas buscas por criminosos, exibindo a prisão destes e o
saldo final das operações, sempre com a equipe de reportagem em hospitais. Com
enquadramentos predominantes em planos gerais e planos médios, estes ethos policial e
justiceiro revelava-se em exibições de imagens que mostravam cenários abertos, no qual
policiais atuavam em perseguições e os repórteres acompanham sempre em sequência. Os
expedientes sonoros recobriam o discurso dos programas também na projeção dos ethos
137
supracitados, utilizando efeitos de sirene, aceleração do motor dos veículos e a comunicação do
repórter com a redação via rádio, tal qual fazem os próprios policiais.
O Balanço Geral favoreceu a cobertura imagética enquadrada em primeiro plano, o que
mostra uma intenção de centrar as imagens em detalhes das cenas filmadas. As projeções
ethópicas predominantes residem na indignação e na impunidade, expostas, sobretudo, no
posicionamento dos comentaristas das reportagens – enquadrados em primeiro plano. Os
elementos sonoros utilizados fizeram mais menção ao teor dramático de uma das reportagens.
Em vista do que observamos, muito embora as revelações ethópicas analisadas
construam as características do popularesco, nos parece errôneo negar o sucesso dos programas
analisados, tanto em suas inovações no que diz respeito às jornalísticas, quanto em seus
discursos que visam atingir à audiência. Quando se colocam como programas que relatam a
‘verdade’ – conforme subtítulo Televisão Verdade do Documento Especial e o slogan Um
programa vibrante, que mostra na tevê a vida como ela é, do Aqui Agora –, as atrações
jornalísticas buscam esse reconhecimento dos telespectadores nessa tentativa de projetarem um
ethos crível. E isso parece ser bem sucedido nos programas que estudamos. Muito embora essas
projeções ethópicas se constituam municiadas de estratégias retórico-discursivas que
perpassam elementos dos fait divers e de representações do popular sob a égide do popularesco,
a audiência dos programas faz com que a fórmula siga presente nas produções televisivas
hodiernas, alternando, contudo, o fazer-jornalismo. Assim, formações discursivas incorporadas
ao discurso dos programas de outrora aparentam seguir resgatadas em produções jornalísticas
atuais, e parecem ser acionadas novamente em jogos parafrásicos que remontam a atores novos,
mas com ‘papéis’ já distribuídos há algum tempo.
138
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