biernath_cag_me_bauru.pdf - Repositório Institucional UNESP

143
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO LINHA DE PESQUISA: PRODUÇÃO DE SENTIDO NA COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA CARLOS ALBERTO GARCIA BIERNATH MARCAS DA IDENTIDADE DISCURSIVA NO JORNALISMO POPULARESCO: ANÁLISE DO ETHOS NOS TELEVISIVOS DOCUMENTO ESPECIAL, AQUI AGORA E BALANÇO GERAL BAURU 2016

Transcript of biernath_cag_me_bauru.pdf - Repositório Institucional UNESP

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO"

FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

LINHA DE PESQUISA: PRODUÇÃO DE SENTIDO NA COMUNICAÇÃO

MIDIÁTICA

CARLOS ALBERTO GARCIA BIERNATH

MARCAS DA IDENTIDADE DISCURSIVA NO JORNALISMO

POPULARESCO: ANÁLISE DO ETHOS NOS TELEVISIVOS DOCUMENTO

ESPECIAL, AQUI AGORA E BALANÇO GERAL

BAURU

2016

CARLOS ALBERTO GARCIA BIERNATH

MARCAS DA IDENTIDADE DISCURSIVA NO JORNALISMO POPULARESCO:

ANÁLISE DO ETHOS NOS TELEVISIVOS DOCUMENTO ESPECIAL, AQUI

AGORA E BALANÇO GERAL

Dissertação apresentada ao programa de Pós-

Graduação em Comunicação da Faculdade de

Arquitetura, Artes e Comunicação da

Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita

Filho", campus Bauru/SP, como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre em

Comunicação, sob orientação da Prof.ª. Dra. Eliza

Bachega Casadei.

BAURU

2016

Biernath, Carlos Alberto Garcia.

Marcas da identidade discursiva no jornalismo

popularesco: análise do ethos nos televisivos

Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral /

Carlos Alberto Garcia Biernath, 2016

141 f.

Orientador: Eliza Bachega Casadei

Dissertação (Mestrado)– Universidade Estadual

Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e

Comunicação, Bauru, 2016

1. Documento Especial. 2. Aqui Agora. 3. Balanço Geral. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de

Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título.

AGRADECIMENTOS

Inicialmente, meu mais profundo agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa do

Estado e São Paulo, por acreditar e financiar meu projeto de pesquisa, sob o nº 2014/10866-8.

O investimento me permitiu dedicação exclusiva ao projeto, o que amplificou ainda mais em

mim a motivação em transmitir à sociedade todos os conhecimentos e ensinamentos adquiridos,

sobretudo através do estímulo em seguir nesse ciclo de aprendizado.

Tornar-se mestre não significa dominar os segmentos da comunicação que estudei.

Muito pelo contrário. Em meu entendimento, a titulação favorece a uma vontade ainda maior

de seguir trilhando o caminho, sempre com vistas ao outro, à alteridade. Por isso mesmo, abro

meus agradecimentos citando grandes mestres com as quais tive o mais absoluto prazer de

conviver, e que nessa coexistência, mesmo que em um singelo cumprimento, já emanavam

aprendizado. Identificá-los não é tarefa fácil, uma vez que o discurso de todos os professores

que tive se entrecortam ao meu. Começo por mencionar o meu mestre, amigo e oxalá

companheiro de profissão Prof. Dr. Marcelo da Silva. Seus ensinamentos extrapolaram o

âmbito acadêmico e inferiram diretamente em meus caminhos. Minha motivação para o olhar

ao próximo e seguir em frente vem muito de você. Todos os dias comemoro a amizade contigo.

Agradeço muito aos professores que transmitiram valiosas discussões e aprendizados ao

longo destes 2 anos e meio de mestrado. Também aos professores que me deram aula ontem e

hoje se tornaram amigos. Tive a satisfação única de conviver com professores que tiveram toda

a atenção em analisar meu trabalho e me trazer apontamentos valiosíssimos, com a sensibilidade

de quem se preocupa em ajudar seu aluno a desenvolver seu potencial: Prof.ª. Ma. Daniela

Bochembuzo, uma líder, exemplo de jornalista correta e competente, além de grande

incentivadora; Profª. Dra. Lígia Carvalho, uma guerreira; Prof.ª. Dra. Roseane Andrelo, tão

cortês e gentil; Prof. Dr. Maximiliano Martin Vicente, que com suas visões e experiências

ensina que comunicar é enxergar ao próximo; Prof.ª. Dra. Érika de Moraes, sempre muito

atenciosa, que dedicou seu tempo a conduzir um curso de extensão que tão importante foi para

a minha pesquisa; Prof. Dr. Antônio Francisco Magnoni, com quem não cheguei a ter aulas,

infelizmente, mas que com sua garra em lutar ensina mesmo em conversas informais; Prof. Dr.

Arlindo Rebechi Junior, que, com seus sábios olhares, me permitiu enxergar aspectos

importantes para o desenvolvimento da minha pesquisa; Prof.ª. Dra. Rosana de Lima Soares,

de excelente trajetória acadêmica, que cordialmente aceitou nosso convite e nos honrará com a

participação na banca de defesa da pesquisa.

Não poderia deixar de mencionar também minha orientadora, a querida e

competentíssima Prof.ª. Dra. Eliza Bachega Casadei. Meus agradecimentos mais sinceros pela

confiança em mim e em um projeto que só ganhou corpo e se tornou pesquisa por sua

participação através de ensinamentos e estímulos. Agradeço também por sempre ser tão

atenciosa e prestativa nos momentos em que mais precisei, pelas conversas tão produtivas, pela

valiosa amizade e por todo o aprendizado. Aprendizado este que, aliás, se desenvolveu por meio

da simplicidade e de uma didática tão apurada na sensibilidade ao tratar com o próximo.

Direciono meus agradecimentos também aos colegas de mestrado, que boas discussões

geraram em aulas, me permitindo assimilar olhares que não faziam parte de mim, mas que me

ajudaram e ajudarão nos estudos sobre comunicação.

Agradeço aos amigos que tanta diferença fazem em minha vida. Victor, Bruno e Felipe,

que fazem parte do meu discurso e sempre estão comigo – apesar da distância –, e me trazem a

certeza de um convívio baseado em respeito, lealdade e admiração mútua. Também menciono

meu amigo e companheiro de jornada Fernando Strongren, que mantém sua trajetória

influenciando seus colegas a seguir firme na jornada, tal como me influenciou durante a

graduação.

Aos sempre atenciosos e prestativos funcionários do setor de pós-graduação da

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, Hélder e Sílvio. Muito obrigado

pelas conversas prazerosas, ao mesmo tempo descontraídas, de ajuda e ensinamentos.

À minha família, epicentro do meu desenvolvimento como ser humano. Obrigado pela

confiança em meu trabalho, por acreditarem e apoiarem um propósito de vida que se desenvolve

a partir do bem que vocês fazem a mim e que tanto quero repassar à sociedade. Honradez,

honestidade e garra, para mim, são significados a partir da existência de vocês.

Por fim, e não menos importante, quero agradecer ao destino por uma herança muito

especial desse período de mestrado: meu amor, minha companheira, namorada, amiga e

confidente, Kelly De Conti Rodrigues. Tão logo o caminho demandou uma entrega ao

crescimento proporcionado pelo aprendizado, tão logo nos identificamos e nos apaixonamos.

A trajetória se tornou muito mais doce e sensível ao seu lado. Uma pessoa que exala compaixão

a cada palavra, cada gesto, cada discurso. Conviver com você é como enxergar a alma das

pessoas que nos rodeiam. Abraçá-la é sentir o lampejo da ternura; sentir suas mãos junto às

minhas é sentir uma injeção de alteridade que toma conta de mim. Sem você, o caminho não

seria de tanta esperança como é.

“A televisão serve para entreter, serve para

informar. Mas ela é, sobretudo, um meio de

expressão incrivelmente nobre” (Nelson Hoineff).

RESUMO

Em virtude das buscas por novas e ávidas informações, além da desenfreada luta pela audiência,

novos modelos de ‘fazer jornalismo’ aparecem nos veículos televisivos e alternam o discurso

identitário jornalístico. De tal modo, algumas produções, que conquistaram bons índices de

audiência, têm feito uso de algumas estratégias a fim de atingir seus objetivos, que vão desde a

utilização de diferentes discursos baseados em “verdades midiáticas” até os chamados “efeitos

de verdade”, que demarcam seu ethos discursivo. Em vista de tais apontamentos, esta pesquisa

pretende revisitar alguns modelos de jornalísticos popularescos significativos – em termos de

inovação no fazer noticioso e na representação discursiva – das décadas de 80, 90 e 2000/10 do

século XX: Documento Especial – Televisão Verdade (década de 80); Aqui Agora (década de

90); e Balanço Geral (surgido na primeira década dos anos 2000 e ainda no ar), à luz da análise

de discurso de tradição francesa, da análise retórica e da análise de elementos que compõe a

narrativa sonoro-imagética. Esse entrecruzamento metodológico nos possibilitou trabalhar com

o ethos projetado na enunciação de cada uma das atrações supracitadas, no qual procuramos

depreender como a identidade jornalística era construída em seu conteúdo discursivo através de

projeções ethópicas.

PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Ethos; Documento Especial; Aqui Agora;

Balanço Geral.

ABSTRACT

Because of the search for new and eager information, and the unbridled struggle for the hearing,

new models of 'journalism' appear on television vehicles and alternate journalistic identity

discourse. In this way, some productions that have won good audience ratings, have made use

of some strategies in order to achieve their goals, ranging from the use of different discourses

based on "media truth" to the so-called "real effects" that demarcate its discursive ethos. In view

of such notes, this research aims to revisit some models of significant popularescos journalism

- in terms of innovation in news making and discursive representation - of the 80, 90 and

2000/10 of the twentieth century: Documento Especial – Televisão Verdade (decade 80); Aqui

Agora (90s); and Balanço Geral (emerged in the first decade of the 2000s and still in the air) in

the light of discourse analysis of French tradition, rhetorical analysis and analysis of elements

that compose the sound-imagistic narrative. This methodological lathing enabled us to work

with the ethos designed in the enunciation of each of the above attractions, in which we try to

infer how the journalistic identity was built in its discursive content through ethopics

projections.

KEYWORDS: Discourse Analysis; Ethos; Documento Especial; Aqui Agora; Balanço Geral.

SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................................................. 07

ABSTRACT ............................................................................................................................ 08

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 – OS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO EM DIFERENTES MOMENTOS

E A NOTÍCIA COMO ACONTECIMENTO DISCURSIVO ........................................... 15 1.1 OS PRIMEIROS MOMENTOS DOS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO ....................... 15 1.2. OS TRÊS PONTOS DA CONFIGURAÇÃO DISCURSIVA .......................................... 17

1.3 A MECÂNICA DAS CONSTRUÇÕES DE SENTIDO DA NOTÍCIA ........................... 17 1.4 O ACONTECIMENTO E A NOTÍCIA ............................................................................. 19 1.5 O ‘REAL’ E AS CONSTRUÇÕES DE VERDADE NA PRODUÇÃO NOTICIOSA ..... 21

1.6 EFEITO DE VERDADE E VALORES DE VERDADE ................................................... 22

1.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE CULTURA POPULARESCA NA TELEVISÃO .............. 25 1.8 O LEITOR EMPÍRICO E O LEITOR-MODELO ............................................................. 26

CAPÍTULO 2 – ETHOS E DISCURSO JORNALÍSTICO ................................................ 31

2.1 A RETÓRICA ARISTOTÉLICA ....................................................................................... 32 2.2 A TRÍADE DISCURSIVA QUE MOBILIZA A PERSUASÃO: ETHOS, PATHOS E

LOGOS ..................................................................................................................................... 33

2.3 O ETHOS NA RETÓRICA ARISTOTÉLICA .................................................................. 35 2.3.1 Ethos retórico e ethos a partir da análise do discurso .............................................. 37

2.4 POR UM ETHOS CRÍVEL ................................................................................................ 38

2.5 A CONFORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO-JORNALISTA ............................. 41 2.6 O ETHOS POPULARESCO .............................................................................................. 43 2.7 PROBLEMAS INERENTES AO ETHOS ......................................................................... 44

CAPÍTULO 3 – A TELEVISÃO BRASILEIRA E SUAS IMBRICAÇÕES AOS

PROGRAMAS POPULARES ............................................................................................... 46 3.1 O SURGIMENTO DA TELEVISÃO ................................................................................ 46 3.1.1 Transmissões televisivas .............................................................................................. 46

3.1.2 O fazer-televisão .......................................................................................................... 47 3.2 OS PRIMÓRDIOS DA TELEVISÃO BRASILEIRA ....................................................... 49

3.2.1 Fase do surgimento ...................................................................................................... 51

3.2.2 Quando o popularesco assume formato nos programas televisivos ........................ 52 3.2.2.1 Os fait divers ......................................................................................................... 54

3.2.2.2 O primeiro programa “mundo cão” e o aumento da audiência televisiva .......... 58

3.2.3 Fase do autocentramento ............................................................................................ 59 3.2.4 O Povo na TV ................................................................................................................ 60

3.3 A AMPLIAÇÃO DO “POPULARESCO” E O SURGIMENTO DE NOVAS ATRAÇÕES

.................................................................................................................................................. 61 3.3.1 O Documento Especial – Televisão Verdade ............................................................... 61 3.3.2 O Aqui Agora ................................................................................................................ 64 3.3.3 O momento atual da televisão no Brasil e o início do Balanço Geral ...................... 67

CAPÍTULO 4 – A ANÁLISE DO DISCURSO DE TRADIÇÃO FRANCESA COMO

CAMPO TÉORICO-METODOLÓGICO ........................................................................... 69 4.1 O DISCURSO .................................................................................................................... 69

4.2 A ANÁLISE DO DISCURSO COMO METODOLOGIA ................................................ 72 4.2.1 A AD enquanto instrumento para análise ethópica .................................................. 72 4.3 ELEMENTOS ATUANTES NA FORMAÇÃO DO SENTIDO DISCURSIVO .............. 73 4.3.1 Pressuposições e subjetividades: o dito e o não-dito ................................................. 74

4.3.2 Condições de produção do discurso ........................................................................... 75 4.3.3 Interdiscuro .................................................................................................................. 76 4.3.4 Polissemia e Paráfrase ................................................................................................. 78 4.4 ELEMENTOS TÉCNICOS DE COMPOSIÇÃO IMAGÉTICA ....................................... 80

4.4.1 Ponto de vista e ponto de escuta na narrativa audiovisual ...................................... 80 4.4.2 O enquadramento ........................................................................................................ 81

4.4.3 Planos de câmera ......................................................................................................... 81

4.4.4 A trilha sonora ............................................................................................................. 83

4.5 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS .................................................................................. 83 4.6 RETÓRICAS ...................................................................................................................... 84 4.6.1 Argumento de autoridade ........................................................................................... 84

4.6.2 Elementos pathéticos .................................................................................................... 85 4.7 CORPUS DE ANÁLISE .................................................................................................... 86

4.7.1 Documento Especial – 1ª edição: A pungente “Guerra Social” ............................... 86

4.7.2 Documento Especial – 2ª edição: A ‘invasão’ de espaço em “Os Pobres vão à Praia”

.................................................................................................................................................. 88

4.7.3 Documento Especial – 3ª edição: As violentas “Noites Cariocas” ........................... 89

4.7.4 Aqui Agora – 1ª edição: A “gangue” que caçou o carro-forte em uma perseguição

“infernal” ................................................................................................................................. 90

4.7.5 Aqui Agora – 2ª edição: A chacina e o policial “covardemente” assassinado......... 92

4.7.6 Aqui Agora – 3ª edição: A “implacável” perseguição aos “matadores da

policial” .................................................................................................................................... 93 4.7.7 Balanço Geral – 1ª edição: A troca de tiros entre bandidos e polícia...................... 94 4.7.8 Balanço Geral – 2ª edição: O professor morto .......................................................... 95

4.7.9 Balanço Geral – 3ª edição: O “suspeito” que invadiu salão e matou a mulher ...... 96

CAPÍTULO 5 – ANÁLISES DOS OBJETOS EMPÍRICOS ............................................. 99 5.1 IMAGEM, SOM E RETÓRICA ........................................................................................ 99 5.1.1 Enquadramentos e tomadas de câmera ..................................................................... 99

5.1.1.1 Plano geral ......................................................................................................... 100

5.1.1.2 Plano médio ........................................................................................................ 101

5.1.1.3 Primeiro plano .................................................................................................... 102

5.1.1.4 Plano-sequência e câmera nervosa .................................................................... 104

5.1.2 Os efeitos sonoros ...................................................................................................... 110 5.1.3 Argumentos e provas retóricas na projeção de uma ‘verdade’ discursiva .......... 112

5.2 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS BASEADAS EM PARÁFRASES ......................... 123 5.2.1 A projeção ethópica a partir de termos compartilhados ........................................ 123 5.2.2 Paráfrases discursivas ............................................................................................... 126 5.3 A IDENTIDADE ETHÓPICA NO DISCURSO DAS ATRAÇÕES ............................... 130 5.3.1 Ethos crível e de violência ......................................................................................... 131

5.3.2 Ethos de indignação e impunidade ........................................................................... 132 5.3.3 Ethos de justiceiro e ethos policial ............................................................................ 133

À GUISA DE CONSIDERAÇÕES ..................................................................................... 134

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 138

11

INTRODUÇÃO

Desde 1950, quando a primeira emissora surgiu no Brasil (FEDERICO, 1982), o veículo

televisivo participou alternâncias significativas em seus produtos, logo após assumir produções

semelhantes aos do rádio. De início, a televisão era mais restrita a um nicho elitista da população

brasileira, por conta dos altos preços cobrados pelos aparelhos. Contudo, em 1964, com a queda

destes preços, a televisão se tornou mais acessível, chegando a um momento em que atingia um

público mais massivo. A partir de então, programas de auditório e mesmo aqueles tidos como

sensacionalistas assumem um bom espaço nas produções televisivas (MATTOS, 2010). Com

isso, produções de semelhante teor conquistaram espaço junto ao veículo televisivo pois,

embora para alguns tais programas aparentem esse “baixo nível”, há produções e escolhas

linguísticas e composicionais sofisticadas, que desenham um discurso muito bem trabalhado e

disposto.

Tais técnicas de produção podem ser reveladas através do ethos discursivo dos

programas. Quando enuncia um discurso, o orador externa uma imagem de si próprio ao seu

público. Essa imagem, quando bem trabalhada, remonta à persuasão, cumprindo o objetivo de

bem suceder o discurso – no caso dos objetos desta pesquisa, os telespectadores.

De tal modo, essas produções revelam também o que seria pertencente à cultura

popularesca. O entendimento sobre popularesco, que parece não deter uma definição exata,

perpassa o que alguns autores percebem ser uma tentativa de representar a cultura popular, mas

produzida por pessoas que não fazem parte dessa cultura. Disso decorre o entendimento de que

o popularesco se assenta como fragmentos de cultura popular, que na verdade representam a

visão dos produtores sobre esta cultura.

Dentre os programas que representam esse formato jornalístico peculiar, selecionamos

aqueles que entendemos terem sido relevantes em termos de inovação no fazer-jornalismo e nas

representações identitárias projetadas. Para isso, selecionamos o Documento Especial –

Televisão Verdade, exibido na Rede Manchete entre o final da década de 1980 e final da década

de 1990; o Aqui Agora, transmitido pelo SBT desde o início da década de 1990 até o final da

mesma década; e o Balanço Geral, veiculado pela Rede Record e televisionado desde o início

da década de 2000 até os dias atuais.

Pensar nestes programas significar entender como tais projeções discursivas se deram

no caráter jornalístico destas atrações. Se é a linguagem que demarca sentidos, “os processos

discursivos constituem a fonte da produção dos efeitos de sentido no discurso e a língua é o

lugar material em que se realizam os efeitos de sentido” (BRANDÃO, 2002, p. 35). Por isso,

12

enquanto discurso, a linguagem não deve ser considerada natural ou inocente. “Ela (a

linguagem) é o ‘sistema-suporte das representações ideológicas (...) é o ‘medium’ social em

que se articulam e defrontam agentes coletivos e se consubstanciam relações individuais”

(BRAGA 1980 apud BRANDÃO 2002).

Ainda sobre o suporte metodológico, a retórica assume uma função importante para

quem proclama este discurso. Constituir os elementos apresentados na retórica aristotélica pode

significar buscar a persuasão, por meio de um envolvimento com a plateia através da emoção

(pathos), da própria imagem de si (ethos), conforme apontamos anteriormente, e da

argumentação lógica (logos). Essas representações de ethos influenciam no sucesso do discurso.

Elas podem revelar as intenções do orador quando este participa sua enunciação.

Por se tratar de produtos audiovisuais, uma vez que são veiculados na televisão, os

programas popularescos mencionados também criam suas narrativas a partir de estratégias de

composição imagética, mais precisamente em enquadramentos e em planos de tomada. Cada

tipo de enquadramento indica uma forma diferente de contar uma história. Enquadramentos

mais aproximados revelam um favorecimento aos detalhes, enquanto os mais distantes visam o

contexto da cena. Os planos-sequência são empregados no sentido de aproximar o telespectador

ao fato retratado. Os expedientes sonoros, por sua vez, também auxiliam na produção de efeitos

de sentido do produto audiovisual. Uma trilha mais dramática, por exemplo, pode indicar um

efeito mais chocante ao conteúdo mostrado.

Em vista dos apontamentos citados acima, a presente pesquisa objetivará,

fundamentalmente, identificar a identidade discursiva dos programas selecionados, com base

nas diferenças e semelhanças ethópicas sobre como cada objeto empírico trabalhou a linguagem

e a retórica imagética. O estudo será desenvolvido tomando por base as metodologias da análise

do discurso de tradição francesa, da análise retórica e da análise de composição dos elementos

imagéticos-sonoro.

Assim, para as análises definimos o campo temático da violência social como critério

de escolha, centrando nosso foco em reportagens que versem sobre crimes de variados tipos de

violência, como assaltos, assassinatos e conflitos que envolvam, na cobertura popularesca

(re)tratada por nossos objetos empíricos, a sociedade. Decidimos explorar tal temática por esta

ser, em nosso entender, uma das que melhor representa a essência dos programas popularescos

através de um discurso comumente compartilhado entre os programas – apesar de alternância

no modo de fazer jornalismo –; de estereótipos engendrados entre o ‘bem’ X o ‘mal’; de

13

recorrentes premências duais de teor classista, alocadas em argumentos que se estruturam com

base na ‘impunidade’; e na emergência de levar tais pautas ao telespectador.

Nesse caminho, no primeiro capítulo discutiremos a questão discursiva como emergente

nos estudos da comunicação mais atuais. Também nos debruçaremos sobre os conceitos que

envolvem a criação e transformação do acontecimento em notícia. Discutiremos também

algumas estratégias que visam conferir uma “verdade” discursiva nos produtos jornalísticos,

reveladas através de opiniões e argumentos que envolvam o emocional da audiência. Na

discussão sobre popularesco, abordaremos algumas definições de autores clássicos, no

propósito de engendrarmos uma base teórica sobe o assunto. Por fim, comentaremos sobre

algumas disposições colocadas através de um leitor modelo – suposto no discurso – que pode

ser visado na constituição discursiva dos nossos objetos.

A partir do segundo capítulo entraremos no conceito de ethos sob o viés discursivo e

retórico. Por se tratar do conceito-chave de nossa pesquisa, exploraremos nossas observações

sobre o ethos na retórica aristotélica, sobre como o conceito pode criar uma identidade ao

sujeito-jornalista, como poderá ser trabalhado a fim de criar efeitos de credibilidade e as sutis

diferenças entre o ethos trabalhado na retórica por Aristóteles e como o conceito é entendido

nos quadros da análise de discurso de tradição francesa. Encerraremos a discussão relacionando

os problemas que um ethos pré-discursivo pode ocasionar.

Na sequência, no terceiro capítulo revisitaremos um breve histórico da televisão

brasileira a partir dos eventos que marcaram sua existência e o fazer-televisão por parte dos

produtores. Ainda no trajeto histórico, relembraremos alguns programas de cunho popularesco

que foram relevantes nessa trajetória. Discutiremos também como esse popularesco pode ser

colocado nos programas, ao analisarmos a cultura popular e seus vieses no veículo televisivo.

Por fim, discutiremos nossos objetos em um percurso histórico e conceitual.

No quarto capítulo, apresentaremos as metodologias que entrecruzarão este trabalho,

ressaltando a análise de discurso de tradição francesa e a análise da composição sonora e

imagética, ancoradas em preceitos linguísticos, argumento de autoridade, termos e estratégias

que visam representar os efeitos de verdade almejados pelos programas na busca da

identificação junto à audiência, e mesmo elementos que auxiliam no relato da narrativa

audiovisual, como planos de tomada da imagem, enquadramentos de câmera e trilhas sonoras.

Munidos do conteúdo teórico, no quinto capítulo analisaremos os objetos em função de

nossas observações sobre cada edição escolhida como corpus. Pretendemos assim discernir

14

sobre a configuração ethópica e sobre os pressupostos discursivos inerente aos programas de

cunho popularesco que delimitamos como nossos objetos empíricos.

Observar a constituição ethópica dos programas popularescos pode nos levar a entender

como estas produções conseguiram, de maneira tão bem sucedida, conquistar a audiência

através de traços do que seria o cotidiano da cultura popular – o que, conforme alocamos acima,

pertence ao popularesco. Nas conflituosas colocações em que os atores das reportagens são

dispostos, o discurso dos programas guarda em seu bojo intencionalidades quando da

divulgação de um fato. Quando estes conflitos se desdobram entre questões sociais e de

segurança pública, cada ‘lado’ parece assentar um lugar específico nessas narrativas: compõe-

se infindáveis cenários em que essas batalhas dicotômicas ganham a atenção das câmeras. Aos

produtores dos programas jornalísticos, a televisão reserva recursos que permitem captar, por

excelência, imagens e sons do que estaria em ruptura com a normalidade. Cabe a estes

operadores da notícia decidir sobre o nível de detalhamento que darão ao retratado, bem como

a oportunidade de estreitar laços com o telespectador na aproximação que uma sequência

imagética, sem cortes, pode representar. Como se não bastasse, trilhas sonoras são mobilizadas

em todo esse discurso, com fins de exaltar verdadeiros momentos de clímax nos programas. De

perseguições policiais a um tour por um cenário de violência; de nomeações simbólicas aos

atores das reportagens por parte dos produtores televisivos a comentários que reforçam

essencializações – que podem ser opacas –, o telespectador se entretém enquanto visita lugares

e situações que nunca poderia visitar se não estivesse assistindo televisão.

15

CAPÍTULO 1 – OS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO EM DIFERENTES MOMENTOS

E A NOTÍCIA COMO ACONTECIMENTO DISCURSIVO

A fim de cravarmos as bases de sustentação da presente pesquisa, inicialmente

elucidaremos a forma como os estudos da comunicação entenderam a produção noticiosa ao

longo do tempo. Em um primeiro momento, explicaremos a estruturação discursiva da notícia

– em comparação às fases primárias que estudavam os efeitos da comunicação a curto, a médio

e a longo prazo na audiência – e a questão de que toda reportagem se constitui sempre como

um acontecimento discursivo, oriundo de um olhar do sujeito-jornalista, mas que também sofre

transformações ao longo de todo o processo de produção. Por esse motivo, as construções de

verdade do fazer-noticioso são também edificadas em torno de um saber narrar característico.

Por fim, essas construções de verdade devem se apoiar em materializações específicas na

própria construção da notícia, de forma que o ethos discursivo se torna um conceito útil para

delimitarmos uma dessas materializações. Tais discussões serão esmiuçados a seguir.

1.1 OS PRIMEIROS MOMENTOS DOS ESTUDOS DA COMUNICAÇÃO

Na história das teorias da comunicação, muitos teóricos já tentaram estipular por que as

notícias são como são (TRAQUINA, 2005). Nesses estudos, as diversas teorias apresentadas

podem ser classificadas em dois períodos, de acordo com Wolf (2012): a fase inicial, que

contemplava as primeiras teorias, e nela as pesquisas indicavam uma maior preocupação nos

efeitos a curto-médio prazo1, e a segunda fase, composta por teorias que detinham uma

preocupação com os efeitos da mídia a longo praz. Essa fase inicial abarcou estudos que tiveram

início entre os anos 20 e 30 do século XX, com a teoria hipodérmica. Posteriormente, novos

modelos de superação da teoria surgiam e mostravam uma preocupação que extrapolava o

limite do efeito da mensagem na audiência.

Outra importante teoria desse período foi a teoria crítica, originária da Escola de

Frankfurt, que surge, de fato, no período pós-guerra, uma vez que o Instituto (então conhecido

como Escola de Frankfurt) fora fechado com o advento do nazismo. Assim, a teoria se

desenvolve partir de parâmetros marxistas e de uma crítica à racionalidade instrumental. Para

isso, utilizava o conceito de indústria cultural para explicar, essencialmente, conforme assevera

Wolf (2012, p 73), a “separação e (...) a oposição entre indivíduo e sociedade (como) o resultado

histórico da divisão de classe”. Dela surgiu o conceito de indústria cultural.

1 Não pretendemos entrar em pormenores das teorias da comunicação uma vez que o objetivo deste trabalho reside

na questão discursiva do jornalismo, que entendemos ser uma fase mais recente dos estudos da comunicação.

16

Já na segunda fase, as teorias mais recentes – estabelecida por Wolf (2012) como teorias

do jornalismo – enfatizam uma preocupação a longo prazo no estudo dos efeitos de

comunicação, conforme colocamos. A primeira destas linhas é representada pela hipótese2 da

agenda-setting ou hipótese do agendamento. Nela, há a ideia de que a mídia é a instância

responsável por impor os assuntos que irão ao conhecimento das pessoas, algumas vezes

destacando um determinado fato, mas, em contrapartida, omitindo outros, ao sabor de seus

interesses pré-estabelecidos.

A teoria do newsmaking é a segunda teoria que faz parte dessa fase mais atual dos

estudos da comunicação. Essencialmente, duas perguntas definem bem seu âmbito: “Qual

imagem do mundo passam os noticiários radiotelevisivos? Como essa imagem se correlaciona

com as exigências cotidianas da produção de notícias nas organizações radiotelevisivas?”

(GOLDING-ELLIOTT, 1979, p.1 apud WOLF, 2012, p. 193). Assim, na “criação da notícia”

(tradução do termo que dá nome a teoria), torna-se importante entender o contexto que envolve

a produção da informação. Para esse quadro teórico, também é preciso considerar as condições

e restrições ligadas à organização do trabalho, pois são elas “que determinam a definição de

notícia, legitimam o processo de produção e contribuem para prevenir as críticas do público”

(GARBARINO, 1982, p. 12 apud WOLF, 2012, p. 195). Essas condições é que determinaram

a noticiabilidade de cada informação, julgando assim se estas são aptas ou não a serem

publicadas. Estas mesmas condições são denominadas por alguns autores como ‘valores-

notícia’. Portanto, são eles que valorarão um fato que poderá ser publicado ou não.

Tais linhas explicam porque as notícias são como são a partir de óticas bastante

específicas que, de uma maneira geral, podem ter sido revistas pelos estudos mais recentes –

contudo, não nos debruçaremos sobre estes dois primeiros momentos dos estudos da

comunicação uma vez que consideramos mais adequado à nossa pesquisa abordarmos o terceiro

momento, de acordo com os objetos empíricos selecionados.

Uma terceira linha, que emerge a partir da década de 1960, pode ser destacada nos

estudos de comunicação por, diferentemente das anteriores, levar em consideração a

estruturação discursiva da notícia e dos processos noticiosos. Tal abordagem direciona o estudo

para o campo específico de como um evento se transforma em um acontecimento após uma

série de mecanismos de semantização específicos da prática jornalística. Portanto, é nesse

raciocínio que este trabalho pretende desenvolver seu percurso teórico-metodológico: a partir

2 Embora conste como teoria em alguns livros, trataremos essa ideia do agendamento como hipótese, uma vez que

Hohlfeldt (1997) assim a coloca por não ser um paradigma fechado e envolto à concretudes metodológicas.

17

da estruturação do discurso jornalístico. Aqui, a notícia se assenta em determinadas bases que

a conformarão.

1.2. OS TRÊS PONTOS DA CONFIGURAÇÃO DISCURSIVA

Este procedimento discursivo – por nós percebido como fulcral para o entendimento da

comunicação como um processo –, de acordo com Charaudeau (2012), pode ser percebido

como uma sequência de bases cruciais: a mecânica de construção dos sentidos; a natureza do

saber que é transmitido pelo acontecimento; e o efeito de verdade – assim interpretado pelo

receptor. O presente trabalho se insere nessa linha de estudos da comunicação: mais

especificamente, remeteremos ao uso dos estudos do discurso para aprofundarmo-nos no ethos

discursivo, a fim de entendermos como se constrói a informação jornalística nos programas

estudados, a partir da configuração de um discurso que constrói um enunciador jornalístico

bastante específico e historicamente marcado.

1.3 A MECÂNICA DAS CONSTRUÇÕES DE SENTIDO DA NOTÍCIA

Se é no discurso que buscaremos aprofundar nosso estudo, visando entender os

meandros que caracterizam a informação jornalística, é preciso compreender como a notícia se

constitui, desde sua observação por parte do sujeito-jornalista. De acordo com Rodrigues (1990,

p. 2), a notícia em si é “uma espécie de acontecimento segundo, provocado pela própria

existência do discurso jornalístico”. Com tal entendimento, é possível afirmar que o

‘acontecimento jornalístico’ será conformado por parte do sujeito-jornalista que o produziu e

do veículo midiático que o divulgou. Aqui, cabe ressaltar, a notícia será um tipo de produto

final composto pelo relato do observador de um acontecimento jornalístico somado aos critérios

do veículo que ao produz, podendo ser moldado de acordo com circunstâncias que envolvam

linha editorial do veículo, por exemplo. Portanto, após constituída, a notícia trará consigo um

outro acontecimento em sua própria narrativa.

É justamente nesse caminho que a mecânica de construção do sentido da notícia se

compõe por um duplo processo, segundo Charaudeau (2012): transformação e transação.

No processo de transformação, aponta Charaudeau (2012, p. 41), “há o movimento de

“transformar o ‘mundo a significar’ em ‘mundo significado’, estruturando-o segundo um certo

número de categorias que são, elas próprias, expressas por formas”. Nisso, tais categorias agirão

na identificação dos seres do mundo “nomeando-os”, “qualificando-os” com determinada

propriedades, “narrando” as ações destes seres, “argumentando” o motivo dessas ações e

18

“modalizando-os” conforme suas atitudes e ações (CHARAUDEAU, 2012). Pensando nos

programas jornalísticos de cunho popularesco, vislumbramos a participação dos personagens

retratados como algo fulcral na transformação da notícia: um crime – talvez a temática mais

abordada em tais programas –, por exemplo, envolverá a vítima, o criminoso e, possivelmente,

a polícia, daí prosseguindo com a narrativa do ocorrido a partir da identificação destes três

personagens. Em síntese, o processo de transformação deve: “descrever (identificar-qualificar

fatos), contar (reportar acontecimentos), explicar (fornecer as causas desses fatos e

acontecimentos)” (CHARAUDEAU, 2012, p. 41).

No processo de transação, o sujeito produtor do ato linguístico dará uma significação

psicossocial a seu discurso, conferindo a este um determinado objetivo. Retomando o exemplo

que trouxemos acima, de uma reportagem sobre um crime, é no processo de transação que os

seres identificados – representados por nossos personagens – tomarão o significado psicossocial

que o sujeito-jornalista lhes imporá. Disso decorre a base da reportagem: o ‘sofrimento’ da

vítima, a ‘audácia’ do criminoso e a busca pela justiça por parte da instituição que deve manter

a ordem. Aqui se coloca, portanto:

as hipóteses sobre a identidade do outro, o destinatário-receptor, quanto a seu

saber, sua posição social, seu estado psicológico, suas aptidões, seus interesses

etc.; o efeito que pretende produzir nesse outro; o tipo de relação que pretende

instaurar com esse outro e o tipo de regulação que prevê em função dos

parâmetros precedentes (CHARAUDEAU, 2012, p. 41).

Ainda neste processo de transação, podemos inferir que os sujeitos interagirão conforme

suas contribuições enquanto participam do jogo comunicativo: haverá uma espécie de

circulação de um objeto de saber que um pode possuir e o outro não, pois um deles será o

responsável por transmitir, enquanto o outro ficará com a função de receber, compreender e

interpretar, sofrendo assim uma alteração em seu estado inicial de conhecimento. De tal modo,

é no ato de informar – processo em que a notícia se insere – que o processo de transação se

insere.

O processo de transação comandará o processo de informação, ainda conforme

Charaudeau (2012). Esquematizando a constituição da notícia, teremos:

19

Figura 1 – O esquema constitutivo da notícia

Fonte: Charaudeau (2012, p. 42)

Assim, para entendermos as estruturações discursivas da notícia é preciso considerar,

ainda, que há uma diferença fundamental entre o acontecimento e a notícia. Fatores como o

olhar subjetivo do sujeito jornalista, as estratégias dos veículos para legitimar a notícia e até

mesmo a linha editorial destes veículos influenciam o processo de transformação de

acontecimentos à notícias, conforme apontamos acima.

1.4 O ACONTECIMENTO E A NOTÍCIA

Partindo da premissa de que há jornalismo – ou deve(ria) haver – no momento em que

ocorre a ruptura de um fato, ou seja, a ‘quebra’ da normalidade, entende-se que esse

acontecimento interessa ao veículo de comunicação, pois ali está algo novo a ser publicado.

Certeau (1994, p. 286) entende que “o grande silêncio das coisas muda-se no seu contrário

através da mídia”. Contudo, há indagações acerca deste momento em que a notícia surge.

Também é preciso considerar o posicionamento do jornalista enquanto profissional.

No processo de produção da notícia, as etapas de seleção dos assuntos que tornar-se-ão

pautas, a metodologia empregada na apuração destes, o sujeito-jornalista que se insere no

código deontológico de sua profissão, sua escrita e até mesmo a aceitação do seu grupo de

colegas profissionais, acaba por caracterizar uma identidade profissional e, também, de um

sistema de referências que compõe a definição de um saber de grupo. Essas ‘regras do meio’

denunciadas na produção noticiosa não denotam somente aquilo que os jornalistas estereotipam

de si mesmos, mas também implica em uma correlação direta com o “fazer notícia”, graças a

modos de produção inerentes à empresas jornalísticas e seus interesses.

Patrick Charaudeau (2012) assevera que algumas notícias podem extrapolar o ‘simples’

rompimento da normalidade, prolongando-se por mais tempo. É o caso de greves, conflitos,

20

casos de corrupção etc. Para ele, relacionar a origem da notícia à ruptura de algo, ou seja, a um

acontecimento, seria como confundir o próprio acontecimento e o surgimento deste

acontecimento. “Propomos chamar de ‘notícia’ a um conjunto de informações que se relaciona

a um mesmo espaço temático, tendo um caráter de novidade, proveniente de uma determinada

fonte e podendo ser diversamente tratado (CHARAUDEAU, 2012, p. 132).

Neste caminho, Traquina (2005) aponta o que, em sua opinião, poderia ser a essência

do sistema noticioso:

Podemos imaginar um sistema noticioso que desdenhasse o raro em favor do

típico, que ignorasse o proeminente, que dedicasse tanta atenção ao datado

quanto ao atual, ao legal como ao ilegal, à paz como à guerra, ao bem-estar

como à calamidade e à morte (STEPHENS, 1988, p. 43 apud TRAQUINA,

2005, p. 55).

Já para o teórico Rodrigo Alsina (2009, p. 133), há uma diferença básica entre o

acontecimento e a notícia: “Poderíamos diferenciar o acontecimento da notícia dizendo que o

acontecimento é uma mensagem recebida enquanto que a notícia é uma mensagem emitida”.

Neste primeiro momento, o autor, basicamente, define que a notícia reside em um fenômeno de

geração do sistema, enquanto o acontecimento faz parte da percepção desse sistema. Em outras

palavras, o acontecimento observado passa pela questão da subjetividade do sujeito – em se

tratando do sujeito-jornalista –, e a notícia é o relato da observação deste acontecimento. De tal

modo que, segundo Charaudeau (2012, p. 131), “para que o acontecimento exista é necessário

nomeá-lo”. E aí se constitui a práxis jornalística, uma vez que:

o acontecimento só significa enquanto acontecimento em um discurso. O

acontecimento significado nasce num processo evemencial que (...) se

constrói ao término de uma mimese tripla. É daí que nasce o que se

convencionou a chamar de “a notícia” (CHARAUDEAU, 2012, p. 131-132).

Ainda de acordo com Alsina (2009), o processo de produção da notícia é complexo

desde o nascer do acontecimento e não será preciso entender esse próprio acontecimento como

algo além da construção social da realidade do sujeito. Nesse ponto, Stuart Hall (1981, p. 364

apud ALSINA, 2009, p. 134), ressalta que “dar sentido é nós mesmos nos localizarmos dentro

dos discursos”. Dessa maneira, o próprio sujeito observador – nesse caso representado pelo

receptor da notícia gerada por um acontecimento – é que irá conferir sentido ao que vê, lê ou

ouve, significando a partir de seu retrato de mundo.

21

O sentido desta notícia, portanto, residirá no processo de interpretação do receptor. Nele

é que as notícias deterão efeitos e valores que a poderão ser entendida como ‘verdadeira’.

Tuchman (1976, p. 94 apud TRAQUINA 2005, p. 17), aborda um meandro importante do

discurso noticioso: “a notícia, através dos seus enquadramentos, oferece definições da realidade

social; conta ‘estórias’”. É neste caminho que o discurso jornalístico entorna efeitos de real em

sua essência.

1.5 O ‘REAL’ E AS CONSTRUÇÕES DE VERDADE NA PRODUÇÃO NOTICIOSA

A partir dos motivos expostos anteriormente, entendemos que o próprio conceito de

verdade no jornalismo não é, senão, uma construção discursiva, que tem como base um saber

narrar específico, inscrito nas regras profissionais do meio. Este narrar que faz parte de um

relato do acontecimento, não de uma narrativa criada a partir de um ponto de vista adotado pelo

sujeito que presenciou o acontecimento, de acordo com Traquina (2005). Isto porque,

assumindo essa proposição de que há uma narrativa criada, a legitimidade profissional dos

jornalistas pode ser colocada em jogo, pois: “Estes (os jornalistas) resistem bastante à noção de

que a notícia não é um relato mas uma construção” (HALL, 1984, p. 4 apud TRAQUINA, 2005,

p. 17).

O discurso jornalístico da televisão – veículo de comunicação dos objetos que

estudamos neste trabalho – engendra universos de sentidos ainda mais complexos do que as

notícias do impresso, graças à capacidade de unir os sentidos da audição, da fala e da imagem

– do visual em si. Essa estruturação de sentidos da televisão é, para Charaudeau (2012),

altamente solidária entre fala e imagem, ao ponto de ser difícil apontar qual das duas é mais

importante. A capacidade única da televisão envolve uma sequência temporal breve, que

sobrepuja a instância dos que a observa, norteando este olhar para os dramas de mundo

apresentados3. Portanto, “pode-se dizer que a televisão cumpre um papel social e psíquico de

reconhecimento de si através de um mundo que se fez visível” (CHARAUDEAU, p. 112).

O contato da audiência com a construção midiática do real se dá a todo tempo. A

instituição do real, por meio da informação, se dá “desde a manhã até a noite, sem pausa. (...)

Articulam nossas existências ensinando-nos o que elas devem ser” (CERTEAU, 1994, p. 287).

E isto é observado em reportagens televisivas, como nas exibidas pelo Documento Especial,

Aqui Agora e Balanço Geral, por meio de uma expressão reflexiva. Através de um tipo de

3 Os programas estudados por este trabalho, de cunho popularesco, parecem trabalhar bem com este método de

definir o olhar da audiência aos dramas do mundo. Cenas explícitas de violência, como a exibição de cadáveres,

por exemplo, atestam isso.

22

realismo, o relato do sujeito-jornalista contará com alguns elementos que imbricarão esse efeito

de realidade quando:

Passa ainda por uma nova definição do estatuto da personagem (que sai do

anonimato e se torna protagonista num perfil intermédio entre o herói da

tragédia e o da farsa, por vezes oscilando entre um e outro) e por uma

representação do espaço por formas fechadas, puras e abstractas, pela criação

de um “lugar fechado” onde a história contada se possa analisar como uma

série de reviravoltas e manobras (PONTE, 2005, p. 45).

Desta forma o real passa a conferir uma certa legitimação junto ao telespectador. Porém,

no discurso midiático também há estratégias que visam conferir ‘verdade’ ao seu conteúdo, de

diferentes maneiras, conforme abordaremos a seguir.

1.6 EFEITO DE VERDADE E VALORES DE VERDADE

Para entendermos a forma como as notícias são construídas discursivamente é

importante esmiuçarmos a diferenciação entre valor de verdade e efeito de verdade. Para

Charaudeau (2012), valor de verdade é o conceito que coloca a verdade como algo intrínseco à

boa oratória e às técnicas de saber dizer e definir paradigmas do mundo, assim representando

uma verdade. Desta forma, a verdade seria cunhada através de um conjunto de técnicas

objetivas utilizadas para relatar algo que seja encarado como legítimo. Estratégias que visam

valor de verdade a um discurso vão desde uma boa retórica até construções textuais rebuscadas,

que soem como legítimas devido ao teor ‘erudito’.

Por outro lado, e ainda na coxia de Charaudeau (2012), efeito de verdade está mais

ligado à subjetividade e a convicção do sujeito acerca de determinado assunto ou fato. O efeito

de verdade tem sua essência ligada à credibilidade de seu conteúdo, pois poderá ser considerado

como algo legítimo por seu teor crível. Assim, os tipos de discurso existentes afeiçoam seus

efeitos de verdade ao sabor de suas intencionalidades.

O discurso de informação modula-os segundo as supostas razões pelas quais

uma informação é transmitida (por que informar?), segundo os traços

psicológicos e sociais daquele que dá a informação (quem informa?) e

segundo os meios que o informador aciona para provar sua veracidade (quais

são as provas?) (CHARAUDEAU, 2012, p. 50).

Neste contexto, ainda para Charaudeau (2012), emergem verdades midiáticas que

sobrepujam o sentido através de especificações próprias. A verdade dos fatos coloca em riste a

23

questão do problema da autenticidade desses fatos; a verdade de origem, que questiona as

origens do mundo, do homem e dos sistemas de valores; e a verdade dos atos que, completando

essa tríade proposta pelo autor, emerge no momento de sua própria realização.

Todavia, há outros dois tipos de verdades inerentes ao espaço social, que podem

envolver a audiência através de estratégias predispostas no discurso dos veículos de

comunicação. São elas:

1. Verdade de opinião: Para Charaudeau (2012), esta verdade possui duas características

básicas: ela encontra embasamento em um sistema de crenças e pode ser

compartilhada pela maioria, o que confere um consenso quase que generalizado para seu valor.

Nas entranhas desta verdade, há opiniões comuns: a mais compartilhada por trabalhar com

enunciados simples de valor geral4, as opiniões relativas (discutíveis, mas geram convicção

graças a termos modalizados)5 e a opinião coletiva (na qual há a denotação de um julgamento

sobre os outros em uma categoria que os caracteriza)6.

2. Verdade de emoção: Esta verdade é aquela que encanta, provoca forte emoção,

podendo levar ao pranto do espectador. Ela é baseada na reação emocional que poderá provocar

no receptor pelo (re)trato dado a uma notícia – tal verdade está intrinsicamente ligada ao ethos

e ao pathos, que serão mais amplamente estudados7.

A própria construção das verdades possíveis na estruturação noticiosa, contudo, ainda

segundo Charaudeau (2012), se materializa em conteúdos narrativos específicos. Portanto, é na

notícia que as marcas discursivas são deixadas ao sabor da intenção dos jornalistas. Tal acepção

parece contravir aos ensejos da classe profissional jornalística. Conforme já mencionamos, os

jornalistas, enquanto insertos em sua classe profissional, parecem não tratar as notícias tanto

como narrativas, mas sim como relatos de acontecimentos (TRAQUINA, 2005).

4 Por exemplo: na abertura de uma das edições do jornalístico Aqui Agora, em 1995, o apresentador Ivo Morganti

diz, antes de anunciar os destaques daquela edição: “Daqui a pouquinho nós vamos começar o Aqui Agora, que

traz reportagens que mostram a vida como ela é”. 5 Um exemplo disso pode ser observado na edição “Perdidas na Noite” do programa Documento Especial, exibida

em 1989, o apresentador Roberto Maya refere-se aos travestis da seguinte maneira: “Fazendo da noite o seu passeio

público, os travestis desfilam a sua ambiguidade” 6 Em outra atração estudada por este trabalho, o Balanço Geral, é comum encontrar afirmações que generalizam

suspeitos como “vagabundos”, mesmo que não haja provas do crime (re)tratado. 7 Na edição de setembro de 1991 do programa Aqui Agora (uma das atrações estudadas por este trabalho), quando

são exibidas imagens de um sequestro de um ônibus em Apucarana-PR, durante a cobertura feita pelo programa o

repórter César Tralli narra o momento em que um dos sequestrados é assassinado dentro do ônibus, sob a imagem

do tiro destruindo os vidros frontais do veículo e da vítima sendo atingida. Ainda nesta reportagem, são exibidos

os corpos das vítimas fatais: o sequestrado, um dos sequestradores e um ex-policial rodoviário, que assistia ao

desenrolar do sequestro e fora atingido mortalmente.

24

Em vista das ricas contribuições teóricas de Charaudeau (2012), propomos a ampliação

de algumas categorias de efeito de verdade prementes aos nossos objetos empíricos.

Objetivamos, assim, adequar o escopo teórico à metodologia que percorrerá nossa pesquisa.

Nas verdades de opinião parecem tangenciar determinadas estratégias discursivas. Em

programas popularescos, as opiniões são quase sempre emitidas pelo apresentador e/ou pelo

comentarista. No momento em que expressa sua opinião, quase sempre a imagem se volta para

uma cena que ilustra o fato comentado: no caso de reportagens sobre crimes, a edição do

programa exibe o momento em que a violência fora cometida. Essa estratégia editorial, já

adotada desde nosso objeto empírico mais antigo, o Documento Especial, reforça ainda mais a

identificação da audiência com a verdade. Ainda na verdade de opinião, também nos guarda

atenção ao estado do apresentador/comentarista: ao proclamar seu comentário, quase sempre

observamos um aumento no tom de voz, clarificando um estado nervoso por parte do sujeito-

jornalista, dando a entender sua indignação. Em reportagens do Aqui Agora, observamos isso

no repórteres Wagner Montes e Gil Gomes; no programa mais recente, o Balanço Geral, é

possível encontrar esse posicionamento mais rude nos apresentadores Geraldo Luís e Luiz

Bacci, que elevam ou diminuem seu tom de voz conforme o assunto tratado no programa.

Na verdade de emoção, observamos recorrências discursivas que preenchem a estrutura

televisiva: a fim de se obter um efeito de verdade baseado na emoção, os produtores dos

programas popularescos trabalham com imagem visual, áudio e fala8. Em reportagens que

versem sobre violência, é comum observar o posicionamento do sujeito-jornalista a partir de

uma fala que preconiza ‘cenas fortes’ e ‘revoltantes aliado a uma trilha dramática e a uma

aproximação da câmera nas cenas comentadas. Soma-se a isso o transcorrer do programa, em

que uma reação humana de desespero, como um choro, uma súplica ou um surto de raiva,

também é explorado por tais programas. Estratégias estas que, provavelmente, surtirão efeitos

de verdade na audiência.

Isto posto, os conceitos de valor de verdade e efeito de verdade, mostram que há uma

relação dialética entre esses dois ‘fenômenos’, e daí é que o ‘mundo’ nunca será transmitido

como sua instância, pois ela passará por um trabalho de construção de sentido por um sujeito

produtor, ao passo em que o sujeito observador é que conferirá os meandros dessa notícia.

Os programas que analisamos, de cunho popularesco, oferecem efeitos e valores de

verdade à audiência, que se identifica com estes programas talvez até por conta do sabor de

8 Adentraremos mais essas recorrências discursivas no capítulo 4 da presente pesquisa.

25

‘realidade’ que estes apresentam em sua constituição. Para entendermos mais disso,

consideraremos a cultura popular.

1.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE CULTURA POPULARESCA NA TELEVISÃO

Os programas analisados por este trabalho9 visavam transpassar à audiência

representações do cotidiano social desta, talvez com o intuito de vislumbrar identificação. No

final da década de 1980, o Documento Especial apresentava temáticas pouco exploradas pela

televisão, como na edição em que exibia uma noite carioca violenta; o Aqui Agora exibia

reportagens policiais, de conflitos e até mesmo de assuntos mais populares(cos), como briga de

vizinhos; o Balanço Geral, por sua vez, também explora principalmente reportagens policiais,

mas, de forma semelhante aos seus precursores, abre espaço para o inusitado. Essas temáticas

parecem fazer parte de uma cultura popularesca (re)tratada por esses programas.

Cabe ressaltar que parece haver uma confusão entre os termos ‘popular’ e ‘popularesco’,

uma vez que ambos podem ser utilizados para indicar situações que talvez não lhes diz respeito.

A fim de tentarmos trazer esse conflito às nossas discussões, buscaremos as definições de

popularesco em termos semânticos, e também recorreremos ao que autores consagrados pensam

sobre.

O dicionário online Aulete10 define duplamente o termo popularesco, a saber: “1. Que

é vulgar ou de baixa qualidade: programa de televisão popularesco; 2. Que imita o que é

popular”. Em ambas definições, percebemos um certo sentido pejorativo ao termo, atrelando

este à baixa qualidade e à uma imitação do popular.

Nessa linha, França (2009) elucida diferentes significações ao termo, esclarecendo que

daí provém relações com o povo, que se destina e ele e lhe é característico. Voltando o termo

ao significado de cultura, “popular” representaria o que é produzido pelo povo, oriundo do

próprio povo.

Martín-Barbero (2001) analisa a cultura popular sob um viés histórico, investigando de

seu surgimento à sua viabilidade enquanto cultura ‘própria’. Nesse caminho, o autor aborda a

ideia de massa, destacando que esta não se trata de um processo isolável, mas uma forma recente

de sociabilidade. Deste modo, propõe que: “pensar o popular a partir do massivo não significa

(...) alienação e manipulação, e sim novas condições de existência e luta, um novo modo de

funcionamento de hegemonia” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 322). Todavia, França (2009,

9 Discorreremos mais sobre nossos objetos empíricos no terceiro capítulo do nosso trabalho. 10 Fonte: Aulete Digital. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/popularesco>. Acesso em: 29 jul. 2016.

26

p. 40) aponta que a cultura popular pura, hoje, já está quase extinta, e que os representantes

essências dessa cultura já não a produzem mais: “a ideia do popular enquanto produzido pelo

povo se esvazia: nesta nova dinâmica cultural, a ele só cabe o papel de recepção”. Deste modo,

o conteúdo midiático exibido não passa de algo investido de traços do popular: “Pode-se

também chamar de popular aquilo que se dirige ao povo e que, buscando ativar o consumo

pelos mecanismos de identificação, se parece com ele, assume algumas de suas características”

(FRANÇA, 2009, p. 41).

Buscando essa identificação do povo junto à TV, sobretudo aos tipos de programas que

observamos, Vera França (2009) mergulha na questão ao resgatar conceitos de autores

consagrados da comunicação. Citando Hall (2003a, 2003b), a autora relembra que, para os

autores ligados aos cultural studies, essa ideia de “popular” não remete somente ao oposto da

cultura elitista; na verdade, essa cultura popular seria uma segunda mão em comparação à

cultura erudita. Ainda no escopo de Hall, a autora observa que este popular seria influência dos

mídias na sociedade: “Não se trata de adotar o termo ‘cultura popular’ para designar o conjunto

da produção cultural difundida pelos modernos meios de comunicação” (FRANÇA, 2009, p.

225). Não seria delirante interpretar, portanto, que tal como fragmentos de cultura popular se

misturam ao conteúdo produzido pela televisão nos programas estudados, a que entendemos

como popularescos, projeções fragmentárias de personagens também são criadas nessas

atrações. Ao colocarem a violência como integrante da cultura de sua audiência, o próprio

veículo televisivo atua como agregadora de esterotipizações dos retratados. Isso posto,

utilizaremos o termo popularesco não a partir de seu sentido pejorativo, nem tampouco

relacionado a uma cultura popular mítica, mas sim, a partir das representações que os produtores

televisivos fazem daquela que seria a cultura do povo, inerente ao espaço popular.

A partir deste momento, nessa relação intersubjetiva entre o popular enquanto audiência

e enquanto produtor de conteúdo é preciso considerar a relação entre o sujeito-jornalista –

produtor da notícia – e o leitor. Há várias formas de abordar metodologicamente essa relação.

No presente trabalho, adotaremos uma abordagem que considera o leitor modelo como conceito

chave de análise para, em seguida, considerarmos o ethos discursivo.

1.8 O LEITOR EMPÍRICO E O LEITOR-MODELO

Entre os estudos da comunicação e os estudos da linguagem há determinados limiares

no que tange à constituição da notícia. Um deles refere-se justamente à relação discursiva

estabelecida entre autor e leitor. Os produtores de um discurso podem tentar, antecipadamente,

27

agir para capturar a audiência – isso em discursos dos mais variados tipos: do publicitário ao

informal. Nessa busca pelo que pode conquistar o leitor, o produtor do discurso irá vislumbrar

o que Eco (1968) chama de leitor-modelo.

O já amplamente discutido esquema da comunicação, que envolvia, tão somente, um

caminho linear entre emissor, mensagem e receptor, não é mais aceito nos estudos modernos

da comunicação. Isto porque este esquema desconsidera outros efeitos, como o feedback e o

ruído, por exemplo. Assim, podemos entender os componentes da comunicação num esquema

que envolva os elementos:

A fonte (ou emissor) é a originadora da comunicação.

A mensagem é o conteúdo da comunicação, a informação a ser trocada.

O codificador traduz a mensagem para um formato que não pode ser

diretamente interpretado pelos sentidos humanos.

O canal é o meio ou sistema de transmissão utilizado para transferir a

mensagem de um lugar a outro.

O decodificador reverte o processo de codificação.

O receptor é o destino final da comunicação.

Um mecanismo de resposta (feedback) entre a fonte e o receptor pode ser

utilizado para regular o fluxo da comunicação.

Ruído é qualquer distorção indesejada ou erro que pode ser introduzido

durante a troca de informação (SCHRAMM, 1982 apud STRAUBHAAR e

LAROSE, 2004, p.5).

Portanto, há questões a serem elucubradas no relacionamento emissor-receptor.

Umberto Eco (1968) modaliza a constituição da notícia justamente na relação entre o que ele

chama de “Emitente” ou “Autor” – o sujeito-jornalista que produz a notícia – e “leitor” ou

“destinatário” – o público desta notícia. Para ele, o texto “prevê o leitor”, pois os códigos

trocados por emitente e destinatário podem diferenciar-se. A fim de adentrarmos nas definições

de leitor-modelo, inicialmente resgatamos o entendimento acerca de um texto – o qual julgamos

ser semelhante ao discurso televisivo. Para Eco (1968, p. 36): “um texto representa uma cadeia

de artifícios de expressão que devem ser atualizados pelo destinatário”. Aqui está posta a

complexidade do texto: sua relação íntima com o não-dito11, uma vez que determinadas cadeias

serão preenchidas pela audiência através do subentendido. Ou seja, no que não está colocado,

mas traz em seu bojo significância por representar sentido, é que o texto vai contornando

interpretações ao leitor.

11 Abordaremos mais sobre não-dito no capítulo 4 desta pesquisa, no qual discutiremos nossas metodologias

norteadoras.

28

É nesse ponto de previsão que o emitente irá produzir seu discurso buscando atingir seu

leitor, mas também considerando as aptidões deste, conforme assevera Maingueneau (2004, p.

47):

Quando se trata de um texto impresso para um grande número de leitores, o

destinatário, antes de ser um público empírico, ou seja, o conjunto de

indivíduos que lerão efetivamente o texto, é apenas uma espécie de imagem à

qual o sujeito que escreve deve atribuir algumas aptidões.

Seguindo este raciocínio, Eco (1968) aborda diferentes tipos de competências entre

emitente e leitor. Serão elas as responsáveis por essa identificação buscada pelo autor. Nesse

sentido, o autor relata uma situação em que quando o emitente escreve um determinado texto

utilizando um vocábulo incomum, há a premissa de que o destinatário possui uma determinada

competência gramatical que o permita entender o contexto da mensagem. “Dizemos então que

toda mensagem postula uma competência gramatical da parte do destinatário, mesmo que seja

emitida numa língua conhecida somente pelo emitente” (ECO, 1968, p. 36).

Maingueneau (2004, p. 41) elucida estas competências como integrantes das “’leis do

discurso’ que regem a comunicação verbal”. A “competência genérica”, uma das competências

apresentadas, faz menção ao domínio das leis do discurso e dos gêneros do discurso. Por sua

vez, estas serão fundamentais para a “competência comunicativa” do indivíduo, pois será graças

a ela que haverá discernimento necessário para produzir e interpretar enunciados. A

“competência enciclopédica”, por si, será aquela responsável por trazer ao indivíduo um

entendimento sobre o que está a sua volta. Por exemplo: em uma sala de cinema, o indivíduo

sabe, graças à competência enciclopédica, que não deve fazer barulho para não atrapalhar os

demais que assistem ao filme; sabe, também, que é proibido fumar, para não causar incêndio

no cinema.

Outro ponto trazido por Eco (1968) faz menção ao ‘preenchimento’ semântico que o

leitor faz em determinados trechos de um texto, conforme apontamos no início do presente

item. Isso pode ser ilustrado quando uma situação é colocada através de um diálogo sem

pormenorizações. Portanto, o leitor age configurando os espaços deixados no texto ao sabor das

informações que lhe foram passadas anteriormente no texto. Outras considerações sobre o

trecho textual por parte do leitor imbricam a competência enciclopédia destes, que será acionada

quando houver tais espaços em brancos. Essa elucubração se entrelaça bem ao discurso

jornalístico, pensado previamente pelo sujeito-jornalista que o produz. A relação entre o autor

do discurso e sua audiência será decisiva em duplo sentido, conforme o pensamento de Ponte

29

(2005, p. 27), pois haverá “promotores e atores interessados e intervenientes na informação, por

um lado, e leitores comuns sem acesso nem controle sobre a ação reportada, por outro”.

Investido nessa ideia, o eminente deve projetar, fazer um cálculo e uma aposta sobre

quais são as competências partilhadas entre ele próprio e o seu leitor. Assim, estará prevendo o

que Eco chama de “Leitor-Modelo”, que será capaz de movimentar-se no texto de acordo com

o próprio autor.

No entanto, o autor também pode(rá) instituir a competência do “Leitor-Modelo”. Em

um texto literário que narre uma história antiga, por exemplo, o autor deve imaginar que seu

Leitor-Modelo não conhece a fundo os meandros da época narrada. Nesse caso, o autor propõe

uma inserção de competência no leitor, de modo que este compreenda a história conforme o

ensejo do autor.

Portanto, prever o próprio Leitor-Modelo não significa somente “esperar” que

exista, mas significa também mover o texto de modo a construí-lo. O texto

não apenas repousa numa competência, mas contribui para produzi-la (ECO,

1968, p. 40).

Outro aspecto importante a ser observado nesse processo é o da diferenciação entre

“Leitores-Modelo” que podem existir. Maingueneau (2004, p. 50) exemplifica essa distinção

ao citar textos jornalísticos que trabalham o “Leitor-Modelo” a partir da “exclusão (público

‘temático)” e aquelas que “excluem um mínimo de categorias de leitores (públicos

‘generalistas’). O título das reportagens televisivas12 – no caso dos objetos deste trabalho – é

um bom exemplo desta distinção.

Neste jogo de visualização de um “Leitor-Modelo” pelo autor, há uma imbricação mútua

entre a gênese do ‘empírico’ para o “Modelo”.

Se o Autor e o Leitor-Modelo constituem duas estratégias textuais, então nos

encontramos diante de uma dupla situação. De um lado, conforme dissemos

até aqui, o autor empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, formula

uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da própria

estratégia, configura a si mesmo autor na qualidade de sujeito do enunciado,

em termos igualmente “estratégicos”, como modo de operação textual (ECO,

1968, p. 47).

12 Uma das edições do Documento Especial trazia o título de Delírio na madrugada, por fazer referência à vida de

uma travesti, que dava aulas pela manhã, caracterizado como professor, e vestia-se como mulher em seus shows

noturnos.

30

Por consequência, para a construção do leitor-modelo será necessário a construção de

um ethos por parte do Emitente, que passa a ser trabalhado como uma noção da imagem de si

no próprio discurso. Isto é, ao tentar entender o “Leitor-Modelo”, o Emitente estará fazendo

uma imagem dele, buscando seu ethos.

Em suma, a partir do momento em que a comunicação passou a ser estudada sob a égide

da configuração discursiva, a estruturação da notícia recebeu uma maior atenção dos teóricos

da comunicação. Desde o acontecimento, que passa por uma série de olhares até virar notícia.

Os processos de transformação e transação irão contemplar o que partiu da observação do

sujeito-jornalista até que se torne notícia, efetivamente. Este ‘produto final’ será veiculado

investido de valores que confiram a ele “verdade”, sob os olhos da audiência, a partir de um

“efeito de real” discursivo. Neste procedimento, os veículos de comunicação fazem um certo

exercício de projeção de sua audiência, através de um modelo de leitor. Com isso, busca-se

projetar o ethos do leitor – telespectador, no caso de nossos objetos –, a partir de um ethos

próprio das peças jornalísticas – Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral – que

observamos para esta pesquisa.

Partindo dessas premissas, iremos discutir, no próximo capítulo, o modo como o ethos

(principal conceito operatório desse trabalho) se constitui discursivamente. Abordaremos, a

princípio, sua teorização geral a partir da retórica Aristotélica, ao lado do logos e do pathos. A

seguir, trabalharemos com a noção de credibilidade do sujeito produtor do discurso, através de

seu ethos, e com os problemas que um ethos prévio pode trazer à audiência. Também

discutiremos a configuração do ethos jornalístico, a partir das características que envolvem o

exercício da profissão.

31

CAPÍTULO 2 – ETHOS E DISCURSO JORNALÍSTICO

Neste capítulo abordaremos, primordialmente, o conceito de ethos – mote do nosso

estudo. Para tal, inicialmente elencaremos o estudo da tríade discursiva oferecida por

Aristóteles, a fim de abordarmos a constituição da retórica clássica e, posteriormente, as

atualizações do conceito trazidas por teóricos que observam a retórica a partir da vertente da

análise do discurso.

No longínquo período da antiguidade, alguns filósofos estudavam o ‘outro’ e suas

relações com o mundo e com os demais seres. Na Grécia, determinados estudos eram

direcionados a questões que envolvessem a eficácia de um discurso através do convencimento,

por meio da retórica. Em suma, é através de uma boa retórica que o orador de um determinado

discurso poderá persuadir sua audiência. Assim, com esse objetivo de buscar a persuasão, o

orador poderá se utilizar de uma retórica adequada com o fim de projetar um ethos que

conquiste a audiência.

Todavia, ressalvamos que o ethos se constituirá de acordo com a enunciação empregada

pelo orador, não somente no enunciado em si. Ou seja, a carga ethópica desejada será

viabilizada a partir do movimento em que o proclamador do discurso mobiliza determinados

aspectos em sua fala – como a retórica, por exemplo –, e consegue ‘prová-los’ ao longo do

tempo. Recorrendo aos nossos objetos empíricos, citamos uma reportagem constante na edição

do Aqui Agora de 13 de fevereiro de 1995. Nela, o programa relata as mortes de um policial e

de um assaltante em confronto. Já na chamada, os apresentadores Ivo Morganti e Christina

Rocha demarcam a posição entre “bandido” e “o policial morto” ao chamarem a notícia

afirmando que bandidos matam covardemente um policial da ROTA. Na sequência, com a

entrada da reportagem, a viúva do policial é exibida por alguns minutos, enquanto chora em

decorrência de sua perda, ao passo em que não há qualquer menção ao nome do assaltante

também morto. Desse modo, o programa parece ter convencido a audiência a partir do ato de

enunciação; após enunciar o teor da reportagem na chamada, a edição se municiou de elementos

que comprovassem o enunciado. Tal constatação encontra base em Ducrot (1984, p. 201 APUD

MAINGUENEAU, 2001, p. 13), que coloca: “o ethos se mostra no ato de enunciação, ele não

é dito no enunciado”. Portanto, na observação desse ethos, premências subjetivas não

congregam valia, pois essa análise “trata-se de apreender um sujeito construído pelo discurso e

não uma subjetividade que seria a fonte de onde emanaria o enunciado” (FIORIN, 2016, p. 70).

Muito embora aponte que não é fácil conferir uma única definição à retórica, Júnior

(2005) asserta que esta consiste em uma forma de comunicação com fins persuasivos,

32

fundamentalmente. Aristóteles (2005, p. 123) também a define de maneira semelhante, quando

coloca que a retórica é “a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de

persuadir”.

2.1 A RETÓRICA ARISTOTÉLICA

Anteriormente ensinada e exercida pelos sofistas13, a retórica ganhou novas designações

após ser estudada e publicada por Aristóteles. Essencialmente, o filósofo baseou sua obra como

um estudo sobre as técnicas de um discurso proclamado em público com fins persuasivos.

Junior (2005) ainda aponta que Aristóteles centra suas críticas aos teorizadores da retórica – os

sofistas – em alguns pontos, a saber: seus precedentes (os sofistas) voltaram suas atenções ao

discurso judicial em detrimento aos demais gêneros; também deram mais ênfase à emoção –

elementos pathéticos – do que à argumentação lógica – logos –; e a demasiada importância à

estrutura formal do discurso. Deste modo, a retórica aristotélica pode ser considerada uma teoria

da argumentação persuasiva, utilizável para a interpretação de qualquer forma de discurso.

Como forma de argumentação, a retórica equivale à dialética, no sentido de que fora

reconhecida como conhecimento prático por Aristóteles. Isso implica que, com ela, um debate

pode ocorrer em ambos os lados: aquele que dominar melhor a arte, sairá ‘vencedor’. Ao

apontar diferenças em relação à retórica sofista, Aristóteles (2005) argumenta que a arte retórica

funda-se em provas, que podem ser inartísticas e artísticas. A primeira, que não será trabalhada

pelo orador, reside na evidência de contratos escritos de testemunhos, confissões sob tortura

etc; a segunda – esta sim técnica –, se baseia em argumentos de persuasão criados pelo autor

do discurso.

Outrossim, estas provas de persuasão fornecidas pelo discurso podem ser de três

espécies, a saber: algumas residem no caráter moral do orador; outras, na disposição em que o

ouvinte se coloca; e as seguintes naquilo que o discurso demonstra ou parece demonstrar. No

primeiro caso, das provas de caráter, o discurso do orador será colocado de tal maneira que

imprimirá credibilidade à audiência, por conta da ‘honestidade’ do autor do discurso – prova

comum aos três objetos desta pesquisa, representados pelos apresentadores. As provas que se

relacionam à disposição dos ouvintes são aquelas que conferem um teor crível ao orador graças

às emoções que a audiência sente em seu discurso. Aristóteles (2005, p. 97) assevera que “os

13 Intelectuais, pensadores e cientistas residentes na Grécia antiga, nos séculos IV e V a.C., que ensinavam por

meio de uma designação geral em áreas que não eram abordadas pelas escolas, como física, geometria, medicina

e retórica. Detinham técnicas avançadas do discurso, a ponto de convencer rapidamente sua audiência. Fonte:

InfoEscola. Disponível em: <http://www.infoescola.com/filosofia/sofistas/>. Acesso em: 01 dez. 2015.

33

juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio”. Essa prova

é bem corriqueira aos programas popularescos que analisamos aqui: em todos há o uso de drama

nas reportagens, através de alguns que choram por seus familiares mortos, cidadãos revoltados

com a violência etc. Por fim, a prova do discurso é aquela constituída através de um discurso

que mostre – ou pareça mostrar – a verdade. Relacionamos tal prova aos valores e efeitos de

verdade colocadas por Charaudeau (2012) no capítulo anterior – no qual descrevemos algumas

estratégias usadas pela mídia para obter esta prova de verdade do discurso.

Transcorrendo seu estudo sobre retórica, Aristóteles explica a persuasão através de uma

tríade que buscava dividir os meios discursivos que entusiasmam o auditório: ethos, pathos e

logos.

2.2 A TRÍADE DISCURSIVA QUE MOBILIZA A PERSUASÃO: ETHOS, PATHOS E

LOGOS

Como em um triângulo isósceles, podemos entender o ethos e o pathos de um lado,

representando a emoção – o que torna possível emocionar; e de outro lado o logos, que

representa o racional – este responsável pela razão. O pathos e o ethos são ligados ao

inconsciente do auditório. Isso porque, conforme pontua Charaudeau (2013, p. 113, citando

BARTHES, 1970, p. 211), pathos e ethos participam de “demonstrações psicológicas que não

correspondem (...) ao estado psicológico real do orador ou do auditório, mas ao que o público

crê que os outros têm em mente”. Em outras palavras, se projetar uma boa imagem junto à

audiência, o sujeito que profere o discurso será considerado credível, uma vez que assim ele

pareceu para sua plateia.

De tal modo, se o pathos é voltado para o auditório – por conta das paixões que

despertará –, o ethos será voltado para o orador – por ser este que imprimirá a credibilidade do

orador. Ainda neste esquema que envolve a trilogia aristotélica, Maingueneau (2008, p. 14

citando GILBERT) relaciona os ‘argumentos’ ao logos, as ‘paixões’ ao pathos e as ‘condutas’

ao ethos.

34

Figura 2 – Esquema da tríade retórica que explica a persuasão, proposto com Aristóteles

Fonte: Adam (2008, p. 94)

Conforme mencionamos, o logos, por sua vez, será constituído por elementos que

causarão convencimento nos receptores do discurso proferido pelo orador. Esse convencimento

se dará através da persuasão. Munido de estratégias discursivas, o orador – no caso dos objetos

desta pesquisa, os sujeitos-jornalistas –, buscará, em seu logos, os argumentos lógicos para

persuadir o auditório. Essencialmente, Serra (2008, p. 6, apud CASADEI, 2009, p. 22) coloca

que a persuasão – ponto chave da retórica – se dá “através do qual um orador, dotado de um

certo caráter ou credibilidade (ethos), procura levar um determinado auditório, com as suas

emoções próprias (pathos), mediante um discurso incluindo um certo conjunto de argumentos

lógicos (logos)”.

Abordando a definição de persuasão – termo chave no estudo retórico –, Citelli (2002)

ressalta que persuadir é sinônimo de submeter, atrelando ao termo um sentido de autoritarismo,

pois “quem persuade leva o outro à aceitação de uma dada ideia” (CITELLI, 2002, p. 13). No

intuito de persuadir sua audiência, o sujeito que proclama um discurso pode trabalhar com uma

mensagem que atinja a verdade ou não, bastando esta conter elementos que pareçam

verossímeis14. Essencialmente, basta ao orador organizar seus argumentos no discurso, pois

assim conseguirá que a audiência o encare como verdadeiro.

14 Conforme discutimos no item 1.4 do capítulo anterior.

35

Verossímil é, pois, aquilo que se constitui em verdade a partir de sua própria

lógica. Daí a necessidade, para se construir o “efeito de verdade”, da

existência de argumentos, provas, perorações, exórdios (...). Persuadir não é

apenas sinônimo de enganar, mas também o resultado de certa organização do

discurso que o constitui como verdadeiro para o receptor (CITELLI, 2002, p.

14).

Neste caminho, unificar os três elementos e aplicá-los significa essa persuasão e

convencimento do auditório com o discurso apresentado. Todavia, embora possam parecer

semelhantes à primeira vista, há diferenças entre as técnicas argumentativas da persuasão e do

convencimento, trazidas por Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005) em sua “Nova

Retórica”. Ao passo em que a persuasão se coloca como uma técnica retórica diante de um

auditório particular, o convencimento reside na busca pela adesão de todo ser racional

(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Mesmo que essa questão possa parecer

imprecisa, a matiz entre os termos reside na imprecisão, pois, ainda de acordo com Perelman e

Olbrechts-Tyteca (2005, p. 33): “ao passo em que as fronteiras entre a inteligência e a vontade,

entre a razão e o irracional, podem constituir um limite preciso, a distinção entre diversos

auditórios é muito mais incerta”. Ainda assim, pensando no caso da televisão – veículo

midiático que abriga os objetos analisados por este trabalho –, Rocco, em sua análise, (1989, p.

56) coloca que: “considerando pertinente a definição do auditório da TV enquanto ‘auditório

particular’, (...) a argumentação do verbal na TV será muito mais de natureza persuasiva”.

Assim, quando o orador orienta-se com o intuito de ‘modelar’ a imagem projetada de

si, ele está deixando sua marca no discurso através de seu ethos. É com este conceito, provindo

da retórica e adaptado aos estudos discursivos, que observaremos como os programas

jornalísticos estudados por esta pesquisa – Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral

– alternaram a representação discursiva do jornalismo popularesco ao longo das últimas

décadas.

2.3 O ETHOS NA RETÓRICA ARISTOTÉLICA

Fundamentalmente definido como a constituição da imagem de si que o emissor do

discurso visa imprimir junto à audiência, o conceito de ethos, com raízes filosóficas, busca

explicar essa relação entre a natureza do indivíduo e como esta será projetada no auditório.

Quando desenvolve sua retórica, Aristóteles desempenha novas atribuições ao conceito. Assim,

Vergnières (1998, p. 5) coloca que o ethos “pode significar o temperamento natural de uma

espécie animal ou de um indivíduo, mas também a maneira habitual de ser e de se comportar”.

Todavia, não há uma definição precisa sobre o termo. Na tradução que coloca em seu livro,

36

Vergnières afirma que o termo ethos não é de fácil tradução, mas pode ser considerado como

uma conduta e um estado de humor, e completa: “é um termo pelo qual os gregos exprimem o

acordo mais ou menos bem-sucedido entre uma natureza particular e uma norma social” (1998,

p. 71)15. Assim, Aristóteles mostra que ethos seria o constante de nossos próprios atos. Isso

implica em uma construção de caráter. Retomando essa ideia, Vergnières (1998, p. 105) entende

que “o caráter não é mais o que recebe suas determinações da natureza, da educação, da idade,

da condição social; é o produto da série de atos dos quais sou o princípio”. De tal modo,

conforme mencionamos, o orador pode ser considerado também o autor de seu próprio caráter

no discurso que proclama, no ato da enunciação.

Ruth Amossy (2008, p. 9) define como o ethos é caracterizado no discurso ao dissertar

que “todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é

necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades nem mesmo que fale

explicitamente de si”. Em outras palavras, é em seu discurso que o locutor passará a imagem

de si para o público; caso tenha se saído bem, ele construirá um ethos positivo16 junto à crítica.

Todavia, a noção de ethos se inscreve de maneiras distintas quando pensada em relação ao teor

do trabalho em que é aplicada. Embora sua definição teórica pareça ser clara, trabalhar com o

conceito de ethos mobiliza determinadas particularidades, que variam conforme a disciplina na

qual ela será aplicada.

Se quisermos de fato explorá-la, torna-la operacional, somos obrigados a

inscrevê-la numa problemática precisa, privilegiando esta ou aquela faceta,

em função, ao mesmo tempo, do corpus que nos propomos a analisar e dos

objetivos da pesquisa que conduzimos. (...) O importante, quando somos

confrontados com essa noção, é definir por qual disciplina ela é mobilizada,

no interior de que rede conceitual e com que olhar (MAINGUENEAU, 2008,

p. 12).

Quando na retórica, o entendimento de ethos perpassava, conforme já vimos, uma tríade

discursiva que envolvia emoção, razão e imagem do orador ante a seu público. Ao longo do

tempo, a noção passou a ser trabalhada nos estudos discursivos, abordada por teóricos da análise

do discurso que a adaptaram quando trabalhada na metodologia.

15 A julgar por essa colocação de “norma social”, ao olharmos para nossos objetos remontamos a ideia da “tribo

jornalística” (TRAQUINA, 2005), no qual os indivíduos mantém certo código deontológico no ambiente

profissional. 16 Tais qualidades podem ser observadas no posicionamento dos apresentadores do Balanço Geral – um dos

objetos analisados por este trabalho. Após a exibição das reportagens, os apresentadores, na busca por projetar

uma imagem positiva, compartilham de opiniões que pode vir a ser replicadas pela audiência. Um exemplo disto

é quando comentam matérias de violência. Há, quase sempre, a distinção entre protagonista (polícia) e antagonista

(criminoso), baseado em uma dualidade que remete ao bem X o mal.

37

2.3.1 Ethos retórico e ethos a partir da análise do discurso

Embora trabalhado anteriormente pela retórica, Maingueneau (2008) ressalta que o

ethos retomou importância nas pesquisas a partir de problemáticas relativas ao discurso, não

mais inserido nos quadros da retórica. Desde 1958, quando passou a ser incorporado à Nova

Retórica de Perelman, segundo Charaudeau (2013), nos anos 1980 a noção de ethos passou a

ser trabalhada em termos pragmáticos e discursivos, inserida no quadro teórico da análise do

discurso pelo próprio autor (1984, 1987).

Para Maingueneau (1980, p. 45), o entendimento de ethos na retórica aristotélica pode

ser basicamente definido como: “as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente,

através de sua maneira de dizer: não o que diziam a propósito deles mesmos, mas o que

revelavam pelo próprio modo de se expressarem. Isso implica que o efeito deste ethos, ainda

na retórica aristotélica, reside no atravessamento e carregamento dos enunciados sem explicitar

sua função (MAINGUENEGAU, 1980). Assim, o ethos retórico não detém um sentido de

estabilidade discursiva, mas sim agrupa disposições estáveis que são apresentadas sob dois

pontos de vista: o político e o outro da idade e da fortuna. No ponto de vista político, o ethos

aristotélico indicava uma preocupação com o discurso a ser adotado em determinado ambiente

político: o discurso a ser proclamado para monarcas deveria ser um; para um auditório que não

fosse favorável ao regime monárquico, o discurso deveria ser outro. Nos demais pontos de vista,

Aristóteles indica a preocupação que o orador deve ter com o perfil do seu auditório, ou seja,

este orador deve engendrar um discurso que vise a persuasão através da identificação junto ao

auditório (MAINGUENEAU, 2008).

Na análise do discurso, todavia, o entendimento de ethos adquire novos contornos.

Pode-se recorrer, para esse entendimento, às ideias trazidas por Michel Pêcheux (1969 apud

AMOSSY, 2008) quanto ao reconhecimento dos interlocutores no discurso. Nesse

entendimento, cada um dos membros do processo comunicativo faz uma imagem de si próprio

e de seu interlocutor. Então, esse ethos decorrerá de ambos. Essas funções no processo de

comunicação são também exploradas por Maingueneau (1980). O autor aponta que a análise do

discurso se permite contemplar o ethos retórico a partir de um duplo deslocamento. O primeiro

deslocamento indica que na análise do discurso não deverá haver uma preocupação com o

próprio sujeito-orador que anseia atingir seu auditório, pois não é ele em si que atingirá o ethos

desejado, mas sim a formação discursiva deste. Nessa linha, “do ponto de vista da AD, esses

efeitos são impostos, não pelo sujeito, mas pela formação discursiva” (MAINGUENEAU,

38

1980, p. 45). Assim, o tom e o conteúdo do discurso são inseparáveis e devem ser considerados

conjuntamente.

Em outro ponto de deslocamento em relação à retórica, Maingueneau (1980) pondera

que a análise do discurso deve entender o ethos a partir de uma ideia transversal à oposição

entre o oral e o escrito. Ou seja, não se deve considerar somente o que é dito pelo enunciado,

bem como somente por seus gestos ou aspectos físicos, mas sim entender que a oralidade deste

orador atua diretamente na projeção ethópica. Piris (2007, p. 183) disseca essa concepção ao

colocar que “o ethos é, assim, uma noção estritamente associada à imagem da instância

subjetiva que assume a enunciação do discurso, o enunciador”.

Visando conferir credibilidade à sua imagem, o orador poderá adotar algumas

estratégias neste sentido. Entornar em seu discurso uma voz de autoridade pode ajudar neste

caminho, inferindo na sensibilidade do seu receptor.

2.4 POR UM ETHOS CRÍVEL

Retomando a ideia da eficácia ethópica, Bourdieu (1982 apud AMOSSY, 2008, p. 120)

asserta que “o discurso não pode ter autoridade se não for pronunciado pela pessoa legitimada

a pronunciá-lo em uma situação legítima, portanto, diante dos receptores legítimos”. Em sua

proposição, Amossy (2008) denota que essa autoridade17 - elemento que confere credibilidade

ao discurso – provém de um alguém habilitado para tal. No caso do corpus de nossa pesquisa,

programas como o Aqui Agora e o Balanço Geral recobriam suas reportagens policiais com o

advento das declarações de delegados e demais membros da instituição de segurança pública,

justamente buscando reforçar seu ethos nessa autoridade supracitada. Na busca dessa

legitimação, ainda segundo Amossy (2008, p. 125), deve existir harmonia entre as imagens do

locutor e as competências do auditório, já que: “é preciso que (as imagens) sejam relacionadas

a modelos culturais pregnantes, mesmo se se tratar de modelos contestatórios”.

Cabe ressaltar também que o ethos envolve a sensibilidade do destinatário do discurso

– no caso desta pesquisa, a audiência dos programas televisivos. Isso porque o ethos “implica

uma experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do destinatário”

(MAINGUENEAU, 2008, p. 14). No jornalismo televisivo, a representação do ethos estará,

invariavelmente, ligada ao posicionamento dos elementos imagéticos, sonoros e mesmo da

relação do sujeito-jornalista com seu discurso. Atingindo a sensibilidade da audiência, os

17 Ampliaremos nossas considerações sobre e ‘autoridade’ no discurso a partir do capítulo 4.

39

programas popularescos podem, de quebra, projetar este desejado ethos de credibilidade através

de argumentos que atestem um caráter adequado ao seu discurso. Estes podem ser:

à parte as demonstrações, (os argumentos) determinam nossa crença: a

prudência (phronesis), a virtude (aretè) e a benevolência (eunoia). Se, de fato,

os oradores alteram a verdade sobre o que dizem enquanto falam ou

aconselham, é por causa de todas essas coisas de uma só vez ou de uma dentre

elas: ou bem, por falta de prudência, eles não são razoáveis; ou, sendo

razoáveis, eles calam suas opiniões por desonestidade; ou, prudentes e

honestos, não são benevolentes; é por isso que podem, mesmo conhecendo o

melhor caminho a seguir, não o aconselhar (1378a: 6-14 apud

MAINGUENEAU, 2008, p. 13).

No argumento da phronesis, relativo à prudência, relaciona-se as opiniões competentes

e razoáveis do orador do discurso. Silveira (2001, p. 50) a define como “a capacidade de

deliberar bem, isto é, de calcular exatamente os meios necessários para alcançar um fim bom”.

Mobilizando a aretè, o sujeito-jornalista denota virtude no discurso, baseada em sua imagem

de sinceridade. Já a eunoia representa a benevolência do orador, ou mesmo sua solidariedade.

De acordo com Fiorin (2016), cada um destes argumentos mobiliza cada recurso apresentado

na tríade retórica de Aristóteles: na phronesis, o orador do discurso se coloca com sensatez e

ponderação, recorrendo mais ao logos; aquele que utiliza da aretè se apresenta praticamente

como um ‘justiceiro’, empregando tal sentido em seu discurso mais graças ao ethos; por fim, o

orador que baseia seu discurso na eunoia visa despertar um sentimento de solidariedade na

audiência, até em um sentido de igualdade, mobiliando mais o pathos. Observando tais

estratégias retórico-argumentativas, entendemos haver mais de uma delas no Documento

Especial, no Aqui Agora e no Balanço Geral. No caso do Documento Especial, o apresentador

Roberto Maya parece apresentar seu discurso em argumentos munidos de phronesis, algo

percebido mesmo em relação ao cenário da atração em algumas edições; no caso dos outros

programas, talvez por manterem formatações jornalísticas parecidas – o telejornal –

enxergamos argumentos mais baseados na aretè e na eunoia. Isso porque os apresentadores do

Aqui Agora e do Balanço Geral, já nas chamadas das reportagens, se utilizam da aretè no

propósito de parecerem dotados de senso de justiça, bem como da eunoia quando tecem

comentários acerca de reportagens que versem sobre violência, no intuito de buscar

identificação junto à audiência.

Ainda no sentido de legitimação do discurso, podemos pensar na casualidade como um

tipo de argumentação utilizada no ethos do sujeito-jornalista. Isso indicaria que os programas,

no caso dos nossos objetos empíricos, mesmo que factuais, apresentam as causas que

40

originaram o exposto nas reportagens. No entanto, essa contextualização pode ser abordada ao

sabor dos interesses do programa jornalístico. Isso reforça a constatação de Fiorin (2016, p.

152), que aponta que “um mesmo fenômeno apresenta uma multiplicidade de causas e o

enunciador escolhe aquela ou aquelas que interessam para os propósitos argumentativos”.

Pensando em nossos objetos de análise, podemos pensar em uma reportagem que

envolva um crime praticado por um menor de idade. Ao que observamos em emergência

recente, alguns programas defendem a questão da redução da maioridade penal – algo que vem

sendo discutido para além do espectro político, como também na sociedade, talvez por conta

do espaço que a questão ganha nos televisivos popularescos. Em várias das reportagens

observadas – conforme esmiuçaremos no capítulo 5 desta pesquisa – atribui-se a sequencial

onda de violência à impunidade, o que reforça a defesa dos sujeitos-jornalistas para que

menores de 18 anos cumpram penas semelhantes aos maiores de idade. Essa constatação

sublinha que a questão dos crimes praticados por menores de idade fora apontada, em relação

de casualidade, com a impunidade.

Noutro exercício de breve observação, enxergamos determinadas marcas discursivas

nos programas popularescos. O posicionamento dos sujeitos-jornalistas parece ocupar um

patamar de superioridade em relação ao teor das reportagens, ou mesmo ao que entendemos por

popularesco – conforme colocamos no capítulo 1. Um exemplo disso é o cenário do programa

Documento Especial nas primeiras edições, ainda no final da década de 80, constante de uma

biblioteca e de móveis que, da forma com que estão dispostos, aparentam certa erudição ao

programa.

41

Figura 3 – O cenário do Documento Especial – Televisão Verdade

Fonte: Documento Especial – edição Delírio na Madrugada (1989, Rede Manchete)

Outro ponto que nos chama a atenção nesse aspecto faz menção à utilização de termos

não muito usuais da língua no discurso dos sujeitos-jornalista – neste caso, a observação é válida

para os três programas analisados. Isto posto, em suma deve interessar ao orador mais o

‘parecer’ ser honesto do que o ser de fato – neste ponto reside a fulcral importância de

observarmos a enunciação dos programas popularescos. Afinal, conforme pondera Fiorin

(2016, p. 70), “o ethos é uma imagem do autor, não é o autor real; é um autor discursivo, um

autor implícito”.

Outrossim, o ethos do sujeito-jornalista é demarcado por seu lugar social, enquanto

membro de seu “grupo profissional”, bem como por sua relação com o outro para quem escreve

– sua audiência.

2.5 A CONFORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO-JORNALISTA

A relação do homem com o ato de falar se dá por seu ensejo em se colocar em relação

ao outro, e não para recortar, descrever ou estruturar o mundo, de acordo com Charaudeau

(2012). Essa é a tônica da linguagem: nascer, viver e morrer na intersubjetividade. Igualmente,

é nessa fala com o outro – que o mesmo autor enfatiza ser falar a si mesmo – que há essa

estruturação de mundo pelo próprio homem.

Quando se utiliza da linguagem para falar ao outro e consigo mesmo, o homem atende

a uma necessidade humana e incontornável, de acordo com Wolton (2011). Para o autor, “viver

é se comunicar e realizar trocas com os outros do modo mais frequente e autêntico possível”

42

(WOLTON, 2011, p. 17). De tal modo, é essa relação com o outro que determinará como nos

colocamos no mundo, pois:

Tudo o que fazemos, tudo o que somos, como sujeitos e atores no mundo

social, dependem de nossa relação com os outros: de como os vemos, os

conhecemos nos relacionamos com eles, nos importamos com eles ou os

ignoramos. Vê-los é crucial (SILVERSTONE, 2005, p. 249).

Ao se colocar diante de sua audiência, o jornalista demarca sua posição no mundo,

enquanto profissional, como uma espécie de ‘porta-voz’ do cotidiano que bate à porta da

audiência – essencialmente levando em conta os programas de cunho popularesco –, relatando

aquilo que circunda ao que os produtores destas atrações entender ser pregnantes no dia-a-dia

da audiência.

Esse relacionamento entre o sujeito-jornalista e sua audiência também contribui para a

constituição da identidade do jornalista. Casadei e Avanaza (2013) ponderam que se toda fala

demarca uma determinada posição do sujeito que profere o discurso, será essa própria fala que

determinará o lugar social de seu pronunciamento. Na organização dos jornalistas, um discurso

será validado ante aos demais no momento em que ele estiver vinculado ao, conforme elucida

Certeau (1982, p. 63), “estatuto dos indivíduos que tem – e somente eles – o direito

regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir um

discurso semelhante”. Isso porque, “a identidade não é um, mas dois. Um e outro. No começo

existe o plural. É o princípio da escrita, da análise (analysis, divisão, decomposição) e da

história (CERTEAU, 1982, p. 280). Em sua atividade profissional, o sujeito-jornalista buscará

entender o mundo e suas correlações. E, conforme mencionado, essa relação com o outro será

a chave para o êxito deste processo. Além disso, o ato de comunicar-se, em sua essência, se

completa ao passo em que este outro é reconhecido. “Comunicar é ser livre, mas é, sobretudo,

reconhecer o outro como seu igual” (WOLTON, 2006. p. 26-27).

E quando se comunica, o homem apregoa seu discurso como sua própria existência. De

acordo com Charaudeau (2012, p.42), “todo discurso, antes de representar o mundo, representa

uma relação, ou, mais exatamente, representa o mundo ao representar uma relação”. Conforme

assevera Silverstone (2005), ao passo em que as relações entre os sujeitos humanos – receptores

da informação – passar por uma mediação eletrônica, em que o tratamento entre eles depende

da comunicação pela mesma mídia, a investigação ética se propõe como necessária. Deste

modo, “o sujeito informador, capturado nas malhas do processo de transação, só pode construir

43

sua informação em função dos dados específicos da situação de troca” (CHARAUDEAU, 2012,

p. 42).

Considerando a relação dos jornalistas com os programas popularescos, abordemos

algumas características ethópicas prementes às atrações de tal cunho.

2.6 O ETHOS POPULARESCO

Recorrendo à definição do ‘sensacionalismo’18 colocada por Angrimani (1995, p. 17)

como “imoral-moralista e (que) não limita com rigor o domínio da realidade e da

representação”. Essencialmente, as atrações analisadas parecem visar a conquista da audiência

com base em reportagens que versem sobre violência, retratando aquele que seria o cotidiano

da população – daí a origem do termo “popularesco”. Os apresentadores têm grande

importância nessa conquista da audiência, na medida em que se identificam com o público por

meio do ethos que criam de si a partir dos elementos discursivos que utilizam para tal.

Martín-Barbero (2001), para demonstrar essa afinidade, aponta a relação entre o circo e

o popular. Citando os estudos de Magnani, o autor aponta que essa identificação se dá através

de uma relação direta entre espectador e espetáculo – tal como o futebol, o teor melodramático

da conexão entre o gosto popular e os gestos enfáticos, a mistura entre elementos que unam

dramas do passado e paródias de telenovelas e o conjunto de sentimentos que a plateia absorve

dos atores circenses: a diversão do palhaço à emoção de ver artistas ao vivo. Isso porque, ainda

de acordo com o autor, “a disparidade dos elementos está articulada com um espetáculo que

ativa marcas de uma história cultural e ao mesmo tempo as adapta” (MARTÍN-BARBERO,

2001, p. 325). De tal modo, nos parece que esse ethos popular reside em atrações diárias que o

reforçam – caso de nossos objetos empíricos.

É essa realidade que parece despertar a importância dos programas observados. Assim,

levando em conta a identidade ‘frágil’ e o suposto esquecimento político por parte dos que

observam o popular, torna-se importante entender o porquê de a mídia exercer certo papel nessa

(re)tratação da identidade popular.

Quando este enunciador trabalha sob a vertente de uma imagem preestabelecida, seu

discurso poderá ser voltado ao cerceamento dessa ideia já existente. Esse pré ethos emerge no

interdiscurso da audiência, e dele surge uma imagem previamente disposta. Deste modo, pode

ser considerado um tipo de ‘problema’ junto à projeção de um arquétipo de jornalista fiduciário.

18 Adentraremos mais essa questão no capítulo 3.

44

2.7 PROBLEMAS INERENTES AO ETHOS

Ao passo em que esta noção implica a imagem de si, o orador também pode sofrer com

dificuldades neste processo. Afinal, a construção da imagem do enunciador pode já ter sido

feita antes mesmo que ele apareça como actante narrativo no relato – como no caso de um

político que tenha sido apontado como responsável por algum ato criminoso, por exemplo.

Nessa linha, Maingueneau (2008, p. 72) assevera que “parece necessário, então, estabelecer

uma distinção entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo19. É crucial, para o orador, entender

que o público já terá construído uma imagem prévia de si20. Aristóteles (2005) discorre sobre a

utilidade da retórica como aliada da justiça e da verdade. Trazendo o pensamento do filósofo

para o conceito de ethos pré-discursivo, entendemos que, nos objetos empíricos que analisamos,

há o uso da retórica a fim de ressignificar este ethos prévio das atrações. Uma vez que há

determinadas construções de real por parte dos programas – conforme colocamos no capítulo

anterior –, é possível entender que estes se utilizam da retórica “não para fazer uma ou outra

coisa – pois não se deve persuadir o que é imoral – mas para que não nos escape o real estado

da questão e para que (...) nós próprios estejamos habilitados a refutar os seus argumentos”

(ARISTÓTELES, 2005, p. 94).

Assim, os programas popularescos trabalham com essa noção21 a partir de um discurso

que mobilize previamente o pathos na audiência, através de situações que provoquem a emoção

destes. Deste modo, aliado à imagem prévia que a audiência detém, as atrações mobilizam um

determinado posicionamento:

O universo de sentido que o discurso libera impõe-se tanto pelo ethos quando

pela “doutrina”; as “ideias” apresentam-se por uma maneira de dizer que

remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em um vivido. (...) O

poder de persuasão de um discurso decorre em boa medida do fato de que leva

o leitor a identificar-se com a movimentação de um corpo investido de valores

historicamente especificados (MAINGUENEAU, 2008, p. 73).

Para além, o autor traça observações relativas à avaliação social de comportamento entre

o orador e seu público, quando assevera que a problemática do ethos, colocada como híbrida

por ser de espectro sociodiscursivo, “não pode ser apreendido fora de uma situação de

19 Pensando nessa definição do autor, podemos relacionar o Balanço Geral a essa dificuldade, uma vez que o

programa traz um formato popularesco já adotado por outras atrações, inclusive as estudadas neste trabalho. 20 Exceção colocada por Maingueneau (2008) em um romance literário, por exemplo. A condição de ethos pré-

discursivo se aplica aos programas que são corpus desta pesquisa, uma vez que estas atrações popularescas

parecem trazer em si um certo posicionamento ideológico. 21 Ver item 1.4 do capítulo 1.

45

comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica

(MAINGUENEAU, 2008, p. 17).

Por consequente, o termo ethos pode apresentar diversos sentidos em diferentes áreas.

Se para os sociólogos22 ethos pode significar costumes e práticas peculiares de um povo em

determinada época ou região, na retórica aristotélica o termo faz parte de um esquema triangular

que visa explicar a persuasão. Neste esquema, conforme já vimos, cada ponta representa um

modo de atingir essa persuasão: ethos representa o caráter do orador – a imagem deste; logos

representa o emprego da razão, do raciocínio que o orador utiliza em seu discurso; e o pathos

representa a emoção no discurso. Destarte, o produtor de um discurso – no caso de nosso

trabalho, o sujeito-jornalista – detém um ethos que envolve sua posição social enquanto

jornalista, mas também sua relação com o outro, no qual ele estabelece quem é. As atrações

jornalísticas que observamos, por sua vez, produzidas por estes sujeitos-jornalistas, podem ser

analisadas através de um olhar que tente explorar seu caráter, seu ethos, ou seja, a imagem que

projetam de si própria para sua audiência.

Estes programas popularescos, que serão observados mais à frente, conquistaram boa

assimilação junto ao público e fazem parte da história da televisão brasileira. Desde seu

primeiro ‘representante’, o programa O Homem do Sapato Branco, a audiência parece ter se

identificado com um formato que abordava temas populares e era rico em temáticas que

continham violência. Conforme veremos a seguir, as diferentes eras da televisão influenciaram

na constituição dessas atrações jornalísticas, que, embora se alternando, parecem manterem

viva o ethos que as caracteriza desde a primeira atração que explora o popular como elemento

para atrair uma maior audiência.

22 Fonte: Dicionário Priberam. Disponível em: <https://www.priberam.pt/DLPO/etos>. Acesso em: 26 fev.

2016.

46

CAPÍTULO 3 – A TELEVISÃO BRASILEIRA E SUAS IMBRICAÇÕES AOS

PROGRAMAS POPULARES

No presente capítulo, faremos um resgate da história da televisão brasileira com o

objetivo de entendermos como o jornalismo popularesco se inseriu em sua história. Seguindo

por essa trajetória, abordaremos nossos objetos empíricos – Documento Especial, Aqui Agora

e Balanço Geral – neste contexto histórico, adentrando as peculiaridades de cada atração desde

seu surgimento na TV brasileira.

3.1 O SURGIMENTO DA TELEVISÃO

Em longa trajetória percorrida, o meio televisivo transformou-se em um veículo de

comunicação que exerce verdadeiro fascínio junto aos telespectadores, influindo diretamente

na vida destes. Tal constatação se deve graças ao poder de identificação que a televisão

conquistou junto aos telespectadores. Os primeiros embriões da televisão datam de 1873,

segundo Mattos (2010), quando o norte-americano Willoughb Smith concluiu que o elemento

químico selênio detinha propriedades fotocondutoras. Ao seguir dos anos, outras pesquisas

foram sendo desenvolvidas e aperfeiçoaram as tecnologias que originariam a televisão. Uma

delas foi a do “sistema de varredura”, apresentada em 1880 pelo norte-americano Sawyer e pelo

francês Maurice Le Blanc. Este sistema consistia em transformar as imagens em linhas e

transmiti-las, uma a uma, em alta velocidade. Já em 1884, Heinrich Hertz constatou a existência

das ondas eletromagnéticas – que, por conta disso, passaram a ser chamadas de ondas hertzianas

–, que seriam responsáveis por transportas os sinais de televisão (MATTOS, 2010).

Posteriormente, já no século XX, cientistas alemães tiveram sucesso em substituir o

selênio da célula fotoelétrica por outro elemento, provindo do potássio, que propiciaria mais

sensibilidade à célula e, automaticamente, aumentando a velocidade de transmissão das linhas

de imagem. Após essas e outras experiências, em 1923, na Inglaterra, John Logie Baird

conseguiu reproduzir imagens em uma pequena tela, através do sistema de varreduras

(MATTOS, 2010). Daí para frente, o veículo televisivo seguiu em constante evolução.

3.1.1 Transmissões televisivas

Bem antes da televisão, no século XIX, as pessoas buscavam entretenimento através de

romances populares, que eram amplamente negociados às famílias de baixa renda. Com esses

livretos em mão, as pessoas permitiam-se sonhar, fantasiar e exprimir verdadeiras sensações de

ansiedade e prazer, algo que antes só era possível dessa forma. Isso mostra o quanto o homem

47

sempre valorizou e buscou a fantasia – daí, talvez, a identificação com os programas

popularescos. De tal modo, sua influência junto à audiência é inegável, pois a televisão, quando

de seu surgimento, passou a ser “um algo a mais” em relação à voz que vinha das ondas sonoras

transmitidas pelo rádio: a imagem apresentada ali parecia ser uma companhia ao telespectador,

que muitas vezes estava sozinho no ambiente, mas sentia-se acompanhado enquanto seguia seus

programas pela TV.

Ainda nesse sentido, muitas pessoas passaram a utilizar a televisão como uma

verdadeira companheira doméstica, pois a deixavam ligada concomitantemente às suas

atividades do lar, para lhes fazer companhia. Nesse contato, não é preciso responder – como

seria necessário se estivéssemos falando com alguém – e é possível deter o controle ‘total’ da

ação, podendo desligá-la ou mudar de canal no caso de inconveniência. Todavia, essa sensação

de contato com um alguém é entendida por alguns autores como residente apenas no campo da

fantasia.

Vendo apresentadores, cenas, entrevistas, elas têm a ilusão de participarem do

ambiente. Essa presença, contudo, é apenas imaginária, só existe na cabeça

do telespectador. Na realidade, ele está muito só, embora sua solidão seja

bastante diferente da solidão propriamente dita – a solidão existencial

(MARCONDES FILHO, 1988, p. 9).

Esse efeito de aproximação causado pelo aparelho televisivo influi diretamente no

imaginário do telespectador. E este será, ainda de acordo com Marcondes Filho (1988, p. 11),

seduzido pela televisão, pois “o elemento vivo das pessoas (...) não está no real, no cotidiano

nem no mundo do trabalho e sim no imaginário. E a televisão é a forma eletrônica mais

desenvolvida de dinamizar esse imaginário” – o que se explicaria com os fragmentos do popular

encontrados na cultura popularesca. Martín-Barbero (2001, p. 307) complementa colocando

que: “(a televisão detém) um discurso que produz seus efeitos a partir da mesma forma com

que organiza as imagens: do jeito que permitir maior transparência” – o que, em nosso

entendimento, perpassa uma construção discursiva municiada de elementos que possibilitem

essa aparente ‘transparência’. Essas acepções imbricam um sistema de produção peculiar ao

meio televisivo, uma vez que, a partir de seu surgimento, novos elementos poderiam ser

trabalhados pelos produtores: a junção, por excelência, de som e imagem.

3.1.2 O fazer-televisão

Por ter surgido depois do jornal impresso, do rádio e do cinema, a televisão apreendia

48

características de todos estes veículos. Ciro Marcondes Filho (1994), citando Marshall

McLuhan, ressalta que a televisão tem a capacidade de unir todos os sentidos do homem, algo

único a todos os meios de comunicação que existiam na época de seu nascedouro. Seguindo

este pensamento, Barbosa (2013, p. 265) aponta que “as imagens da TV constroem um

parâmetro identitário e, ao mesmo tempo, permitem a produção da imaginação que só se realiza

naquilo que se projeta, como ficção, nas imagens”. Ela completa argumentando que esse veículo

de comunicação transforma suas imagens em uma função da imaginação do público.

Corroborando a essa ideia, Martín-Barbero (2001) observa que os rostos que aparecem na

televisão não são nem misteriosos, nem encantadores ao extremo; são rostos ‘normais’, que

buscam uma familiarização da audiência. Nesse caminho, Charaudeau (2012, p. 109), ressalta

a junção perfeita entre imagem e som como uma “solidariedade tal, que não se saberia dizer de

qual das duas depende a estruturação do sentido”. Ao que a autora completa:

Através das imagens percebe-se não o lugar onde se está, mas um espaço

longínquo, o alhures, que, pela imaginação, torna-se próximo, ou seja, em

certa medida realizável. Olha-se o nenhures, ou seja, o que é transmitido pela

TV, um lugar que só existe como imagem potencial, para atingir o alhures (o

lugar onde gostaríamos de estar), que só se realiza com o complemento da

imaginação (BARBOSA, 2013, p. 65).

Mesmo assim, não há uma contradição com o dito “menor esforço”, já que a TV apela

ao espírito associativo/lírico, o que não envolve esforço psicológico. Seguindo este raciocínio,

Charaudeau (2012, p. 112) exprime que:

A imagem televisual é “a-contemplativa”, pois, para que a contemplação seja

possível, é preciso que o objeto olhado se fixe ou se desdobre na espessura do

tempo e que o sujeito que olha esteja livre para orientar o seu olhar. Ora, a

televisão se inscreve numa sequenciação temporal breve, que se impõe à

instância que olha, orientando-a em seu olhar sobre os dramas do mundo.

Assim, pode-se dizer que a televisão cumpre um papel social e psíquico de

reconhecimento de si através de um mundo que se faz visível.

Como lembra Marcondes Filho (1994), a televisão não trouxe somente mudanças na

maneira de transmitir acontecimentos e relatos, mas também foi responsável por uma

verdadeira transformação no ‘fazer’, sobretudo na narrativa, na qual é possível observar uma

sensível mudança naquilo que estávamos habituados a ver no cinema. No caso de programas

telejornalíticos – mote de nossos objetos empíricos –, Charaudeau (2012) ressalta que o

processo de significação será interdependente, uma vez que a imagem do veículo televisivo não

49

se constitui em estado puro, como são as imagens fotográficas ou de artes plásticas. Tal

constatação implica que “a imagem televisionada tem uma origem enunciativa múltipla com

finalidades de construção de um discurso ao mesmo tempo referencial e ficcional”

(CHARAUDEAU, 2012, p. 110).

Conforme elencamos no primeiro capítulo da presente pesquisa, os discursos

jornalísticos podem ser trabalhados no intuito de reproduzirem efeitos de sentido que causarão

efeitos de realidade e de verdade. No caso da televisão, Charaudeau (2012) aproxima tal

constatação junto ao discurso televisivo ao abordar, já especificamente, como se caracterizam

esses valores de realidade, de verdade, e traz à baila também um valor de ficção. O valor de

realidade pode ser projetado pela televisão na ideia de que esta transmitirá diretamente o que

acontece no mundo, noticiando estes fatos em relação direta ao telespectador; o efeito ficcional

se caracteriza, ainda segundo Charaudeau (2012), quando há uma reconstrução analógica de

um fato já ocorrido; quando o efeito de verdade se dá, na televisão, a partir de um desvelamento

de algo que não era visível ao telespectador. Algumas das técnicas utilizadas pelos produtores

televisivos podem ser: mapas, gráficos e diferentes tomadas de imagem, como a do close-up –

veremos mais sobre essa técnica no capítulo 4 deste trabalho. Essa técnicas “desrealizam e

fazem penetrar o universo oculto dos seres e dos objetos” (CHARAUDEAU, 2012, p. 111).

Ainda nesse sentido cabe-nos colocar que, pensando nos programas que analisamos, o estes

efeitos podem se entrelaçar, resultando em sequências que buscam identificação da audiência

respaldados como programas ‘reias’ e ‘verdadeiros’, mesmo a partir dos efeitos ficcionais de

reconstrução.

Na história da televisão brasileira, programas que trabalham estes efeitos existem há

décadas, observando que a audiência destes se manteve em tal ponto que, embora se alternando,

outras produções apareceram, mantendo vivo o formato popularesco. A seguir, resgataremos

brevemente o surgimento da televisão no Brasil e elencaremos a isso os programas

popularescos.

3.2 OS PRIMÓRDIOS DA TELEVISÃO BRASILEIRA

O Brasil foi um dos cinco primeiros países do mundo a contar com a televisão, e o

primeiro da América Latina. Antes disso, a televisão já havia chegado à Inglaterra, Estados

Unidos, França, Alemanha e Holanda.

Na noite de inauguração da TV em terras brasileiras ocorreu a primeira transmissão

aberta ao público, com a exibição de um programa especial que havia sido escrito especialmente

50

para celebrar o acontecimento. De acordo com Federico (1982), o programa chamava Canção

TV e havida sido escrito por Marcelo Tupinambá e Guilherme Almeida.

Mesmo sendo um sistema que já havia sido testado no país23, oficialmente a primeira

emissora a surgir no Brasil foi a TV Tupi. Em São Paulo, a estação ganhou o nome de PRF-3

TV, inaugurada em 18 de setembro 1950. Posteriormente, no dia 20 de janeiro de 1951, a TV

Tupi Canal 6 entrava no ar no Rio de Janeiro.

Ainda sem um público fiel, por conta da sua recém-chegada ao país, os profissionais

que trabalhavam na televisão viam-se sem uma referência para seguir no que tange à produção

de programas e atrações para a televisão. Como neste princípio de funcionamento o público que

acompanhava a televisão era majoritariamente elitizado – segundo Federico (1982, p. 82), em

1951 um aparelho receptor custava nove cruzeiros –, os produtores dos programas televisivos

decidiram apostar em produtos que copiassem a fórmula utilizada no rádio.

Assim, na televisão não havia uma preocupação consciente na experimentação de novos

produtos, afinal, o que era feito não passava de adaptações rudimentares do que havia em outros

veículos.

Nos anos subsequentes, a televisão apostou na entrada do teatro, o que trouxe novos

problemas na produção de programas dessa natureza, de acordo com Federico (1982, p. 84):

O problema de voltar aos primórdios do cinema com técnicas televisivas,

colocando apenas câmeras numa boca de cena, provou a ineficiências das

adaptações de velhas técnicas ao novo sistema. Transmitiram-se várias peças

que estavam em cartaz no teatro, usando esse esquema, que provou a

incompatibilidade com a TV, porque os atores, ao interpretarem à maneira

teatral, ficavam caricatos através das câmeras.

Pouco depois, com menos sofisticação, a TV passou a adaptar também filmes e

romances estrangeiros – algo que não gerava muitos custos, pois não havia a obrigação no

pagamento de direitos autorais, além de que esses filmes não eram dublados –, porém ainda

sem conseguir realizar grandes produções.

Mesmo com tantos esforços, o resultado obtido era de encenações bem parecidas às do

teatro, quadro este que só foi revertido com o tempo e as constantes adaptações, o que mostrou

23 De acordo com Federico (1982, p. 81), ocorreram várias demonstrações do sistema televisivo no país antes de

seu lançamento oficial. Em 1939, os alemães fizeram uma demonstração de seu sistema numa exposição. No Rio

de Janeiro, em 1946, a Rádio Nacional teria promovido as primeiras transmissões experimentais com o programa

“Rua 42”. Ainda com a promoção da Rádio Nacional, o primeiro programa televisado foi “Nada Além de Dois

Minutos”, de Paulo Roberto, e o segundo, de Renato Murce, levava o nome de “Papel Carbono”. Por conta da

indefinição das imagens, o resultado foi desastroso.

51

a especificidade da televisão em contraposição ao teatro e ao cinema: “uma linguagem mista

entre a verdade teatral e a verdade televisiva” (FEDERICO, 1982, p. 85).

Nos gêneros de variedade e auditório, as atrações musicais contavam com grande

audiência e nível de conteúdo. Esses programas apresentavam um conteúdo inversamente

proporcional às facilidades tecnológicas da época.

Dos programas jornalísticos, o primeiro que atingiu grande sucesso e audiência foi o

conhecido Repórter Esso24, no qual a garota propaganda do programa era a dinamizadora dos

comerciais que eram feitos ao vivo.

Quanto à trajetória que a televisão brasileira percorreu, podemos dividi-la em duas fases,

de acordo com Ciro Marcondes Filho (1988): “Fase do surgimento” e “fase da supremacia e

autocentramento”, a saber:

3.2.1 Fase do surgimento

Conforme mencionamos, no Brasil a televisão teve seu início na década de 50 – ainda

produzindo de forma precária – com profissionais oriundos do rádio, do cinema e do teatro, que

ainda se adaptavam à televisão com o propósito de ocupar os espaços na programação à base

de “experimentalismo”. Graças a essa falta de experiência dos profissionais que ingressaram

nesse meio, a televisão era considerada, nessa primeira fase, apenas como mais um meio de

comunicação buscando seu lugar entre o rádio e o cinema.

Já em meados da década de 60, alguns avanços puderam ser notados, com o crescimento

de novas emissoras, o que representou a primeira disputa pela audiência. Até 1964, a televisão

mantinha seu caráter elitista por conta dos altos preços dos aparelhos, restringindo-se aos mais

‘apoderados’ economicamente. Esse período é denominado por Mattos (2010) como “fase

elitista”.

Posteriormente, superada essa “fase elitista”, ainda no ano de 1964 surgia o momento

histórico que Mattos (2010, p. 95) chama de “fase populista”. A partir daí, diz o autor, “a

televisão era considerada um exemplo de modernidade; programas de auditório e de baixo nível

tomavam grande parte da programação”. A explanação do autor para o momento da televisão

faz justiça ao período em que os primeiros programas tidos como “popularesco” surgiram na

TV.

24 Criado originalmente no rádio, o programa foi apresentado de 10 de abril de 1952 até 31 de dezembro de 1970

na TV Tupi. Fonte: Integração Brasil. Disponível em: <http://integracaobrasil.blogspot.com.br/2011/08/ha-70-

anos-entrava-no-ar-o-reporter.html>. Acesso em: 28 jul. 2016.

52

3.2.2 Quando o popularesco assume formato nos programas televisivos

O gênero desse tipo de programa jornalístico é entendido como popularesco talvez por

conta da assimilação que adquire junto ao público, sobretudo por conta dos dramas apresentados

– visando conquistar a audiência por meio da identificação de seus próprios problemas lá

retratados. Nessa linha, J. S. R. Goodlad, citado por Marcondes Filho (1988, p. 52), assevera

que “o jornalismo e o telejornalismo são parentes muito próximos dos dramas”. Essa

identificação com a audiência poderá se dar, conforme pontua Martín-Barbero (2001, p. 305),

por um autorreconhecimento de sua ‘imagem’ na tela.

Se a televisão na América Latina ainda tem a família como unidade básica de

audiência é porque ela representa para a maioria das pessoas a situação

primordial de reconhecimento. E não se pode entender o modo específico que

a televisão emprega para interpelar a família sem interrogar a cotidianidade

familiar enquanto lugar social de uma interpelação fundamental para os

setores populares.

Isto posto, França (2009, p. 226) explica que os setores populares e de baixa renda não

têm acesso à produção midiática, considerando que “o popular a que estamos apontando não se

explica pela sua fonte, mas remete-se antes a características ligadas ao destinatário e ao

produto”. No bojo desse raciocínio, lembrando que a oferta das produções televisivas pode estar

relacionada às condições financeiras dos telespectadores, Martín-Barbero (2001, p. 304) lembra

que:

Quanto à relação dos ‘usuários’ com a televisão, no que diz respeito às grandes

maiorias, não só na América Latina, mas também na Europa, as mudanças de

oferta, apesar da propaganda sobre a descentralização e a pluralização,

parecem apontar para um aprofundamento da estratificação social, pois a

oferta diferenciada dos produtos de vídeo está ligada ao poder aquisitivo dos

indivíduos.

A relação entre sujeito-jornalista e sua audiência parte, então, de um discurso que talvez

não reflita essencialmente o que observa a audiência fora do mundo televisivo. No que tange

ao destinatário, França (2009) revela que o sujeito-produtor da notícia não visa neutralizar

diferenças ou atingir a um ensejo homogêneo, mas sim caça elementos que busquem uma

espécie de identificação coletiva – assim atingindo a audiência. O programa popular(esco), que

deve(ria) ser oriundo de uma cultura popular, como vimos, detém características peculiares em

sua constituição como produto televisivo. Vera França (2009) relaciona o popular na TV com

três características marcantes:

53

A famigerada “apelação” destes programas, que busca seduzir o telespectador – aqui

relacionamos os “efeitos” e “valores” de verdade apresentados por Charaurdeau

(2012), que trouxemos no capítulo 1 deste trabalho; A construção do destinatário, que se dá através do “leitor modelo” – termo utilizado

por ECO (1986) e também trabalhado no primeiro capítulo de nossa pesquisa.

França (2009, p. 227) exemplifica com uma fala comum nos apresentadores destes

programas: Você, “meu amigo, minha amiga meu igual. Mas esse próximo é

também o ‘qualquer um’”25. O terceiro ponto relacionado ao produto dos programas populares é o caráter híbrido.

Aqui, os apresentadores dos programas – no caso de nossos objetos – se colocam

como força dominante, detentores de um poder tal que convença a audiência – o que

opõe a influência de ambos, ainda de acordo com França (2009).

Um personagem bastante conhecido do telejornal Aqui Agora – que será um dos nossos

objetos de análise e será melhor apresentado mais abaixo – foi Gil Gomes. Provindo do rádio,

o ‘estilo’ do jornalista acabou por se tornar uma das marcas mais conhecida do programa. Ainda

que apresentado em um veículo que mantém sua produção distinta em relação as produções

televisivas, retomaremos a análise de Martín-Barbero (2001) sobre o programa de Gil Gomes

no rádio, pois mesmo que não faça uso de imagens – elemento fortemente carregado de efeito

de sentido –, as trilhas sonoras também foram empregadas no Aqui Agora, ressaltando o efeito

dramático. Escreve o autor, observando o programa:

Do lado do enunciado, é a interpelação à experiência das pessoas que escutam:

aproximando o estranho do cotidiano, descobrindo-o entre suas dobras – a

mão, a mãe amorosa, a que não vive senão para sua família, foi ela quem

matou o filho – e conectando a experiência individual com o curso do mundo

em forma de refrãos e provérbios, de saberes que conservam normas, critérios

para classificar os fatos em um ordem com a qual enfrentar a incoerência

insuportável da vida (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 330).

Essas características se repetem também na televisão. O programa popular irá buscar

trazer esse “estranho” ao cotidiano da audiência, trabalhando sentidos discursivos para isso. De

tal modo, esse popularesco será expressado também em ambientação – o cenário – e na

linguagem, colocada pelo autor como “a palavra convertida em arma e instrumento de revanche,

estratégia que, ao confundir o adversário, desarma-o” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 332).

Recorrendo aos nossos objetos, a ambientação e a linguagem trazem em seu bojo justamente

essa expressão do popular – o que já entendemos como popularesco. Conforme trouxemos no

25 Em nossos objetos, o Documento Especial não se recobre com tais falas; o Aqui Agora, por sua vez, já busca

uma aproximação com o telespectador quando os apresentadores olham para as câmera e mencionam a palavra

“você”; o Balanço Geral, a mais recente das atrações, é quem mais buscou essa identificação com a audiência: o

apresentador Luiz Bacci repete, seguidas vezes: Meu amigo, minha amiga.

54

primeiro capítulo, o discurso destes programas apresentam estratégias que ‘criam’ um real a

partir de imagens fortes e termos marcantes26. A esse forte clamor popular em reportagens,

emerge a ideia dos fait divers. Nesse momento, o que antes não se enquadrava em nenhuma

categoria editorial, agora passa a ser observado em função do seu apelo e identificação junto à

audiência.

3.2.2.1 Os fait divers

O termo fait divers, provindo da língua francesa, parece não encontrar uma tradução

concreta no idioma português. De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

(2008-2013)27, fait significa “fato” e divers significa “diverso”. Em tal acepção, o termo indica,

ainda de acordo com o dicionário online: “1. Conjunto de ocorrências e acontecimentos

variados e sem ligação entre eles, que correspondem a uma rubrica jornalística; 2. Fato ou

assunto pouco importante”. Nessa conjuntura, Barthes (1964, p. 1) entende que o termo sintetiza

“o refugo desorganizado das notícias informes; (...) só começaria a existir onde o mundo deixa

de ser nomeado, submetido a um catálogo conhecido (política, economia, guerras, espetáculos,

ciências etc)”.

No entendimento do autor francês, os faits divers se alocam em um sistema de

classificação alheio ao das demais notícias. Não há, para os faits divers, um enquadramento

possível nas editorias conhecidas porque sua essência reside, particularmente, no inusitado. Não

seria permissível publicar, numa editoria de negócios, que um grande empresário do setor

financeiro fora assassinado por seu enteado ciumento, por exemplo; tampouco entraria em uma

página esportiva uma notícia sobre a morte de um praticante de salto em distância, em que a

vara utilizada na atividade teria se que quebrado no momento do salto. Isso porque as notícias

hipotéticas que apontamos acima são dotadas de um elemento a mais que as complementa: “o

fait divers só começa onde a informação se desdobra e comporta por isso mesmo a certeza de

uma relação” (BARTHES, 1964, p. 2). Assim, nas notícias fantasiosas que utilizamos como

exemplo, o desdobramento da notícia considerada fait diver confere um teor elevado ao fato de

que o empresário fora assassinado por seu enteado ‘ciumento’, ou ao esportista que falecera

após seu instrumento de trabalho romper.

Apesar disso, cabe ressaltar, os faits divers não se orientam somente por assassinatos ou

mortes. Tudo o que circunda o universo do inusitado lhe interessa. Relembremos o Aqui Agora,

26 Veremos mais sobre esses elementos pathéticos no próximo capítulo. 27 Fonte: Dicionário Priberam. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/fait%20divers>. Acesso em: 06 jul.

2016.

55

que é observado nesta pesquisa. Em uma das reportagens da edição de 04 de dezembro de 1995,

a repórter entrevista um praticante da arte ninja. A legenda da reportagem indica: Mestre Ninja

revela segredo dos guerreiros. Nesse caso, o inusitado aqui perpassa o Mestre Ninja e os

segredos que este revelaria sobre a arte: não parece fazer parte de um telejornal policial a

reportagem supracitada; isso indica justamente o inusitado.

Figura 4 – A reportagem sobre o “Mestre Ninja” no telejornal popularesco Aqui Agora

Fonte: Aqui Agora – edição de 04/12/1995 (1995, SBT)

No entendimento de Dion (2007, p. 125), os faits divers guardam também interesse por:

suicídios, por certos tipos de acidentes, catástrofes naturais, monstros e

personagens anormais; por diversas curiosidades da natureza, tais como os

eclipses, os cometas, as manifestações do além, os atos heróicos, os erros

judiciários e, enfim, por anedotas e confusões.

A relação entre os fait divers pode ser reduzida a dois tipos, ainda segundo Barthes

(1964). A primeira delas ressalta a casualidade. Aqui, será sempre apontada a circunstância do

fato noticiado, especialmente se este puder ser trabalhado pelo insólito. É nessa relação que se

intensificam os estereótipos, sempre atrelando determinada causa ao acontecimento noticiado.

Mais uma vez retomando nossos hipotéticos exemplos, lembramos do crime cometido por

ciúme e da morte ocorrida por uma falha no instrumento de atividade do atleta; em outros

termos, o suposto motivo, detalhe inusitado desse acontecimento é o mote do fait diver. Barthes

(1964, p. 2) ainda lembra que mesmo em situações em que a casualidade é normal, a ênfase da

notícia de um fait diver será deslocada ao que ele chama de dramatis personae: “espécies de

56

essências emocionais encarregadas de vivificar o estereótipo”. Nessa relação de casualidade

reside, em seu cerne, o inexplicável. Este, por sua vez, ainda de acordo com Barthes (1964), se

desdobra em duas categorias de fatos: os prodígios e os crimes. Os primeiros se concentram no

espaço do céu, como os discos-voadores28, por exemplo. Os segundos, que reforçam o critério

de escolha que adotamos na seleção do corpus de análise, referem-se aos crimes. Em nossos

objetos empíricos, observamos tais recorrências constantemente. No Aqui Agora, por exemplo,

as reportagens sobre crimes, trazidas por Gil Gomes, comumente compartilhavam dessa

relação. O marido que assassinou a mulher por ciúme; o criminoso que matou o vizinho por

conta de uma fofoca; o idoso assassinado por precisar de ajuda são apenas alguns dos casos que

são mostrados. Assim, se é no inusitado, incomum e inconstante que recobre a gênese do fait

diver, então “não há fait divers sem espanto” (BARTHES, 1964, p. 2).

A segunda relação comum entre os fait divers traz à tona a coincidência. Nela, Barthes

(1964) precisa a situação da repetição como uma das utilizadas. “A repetição leva sempre, com

efeito, a imaginar uma causa desconhecida, tanto é verdadeiro que na consciências popular o

aleatório é sempre distributivo, nunca repetitivo” (BARTHES, 1964, p. 4). Essa notação de

coincidência será, assim, transposta na repetição a partir da informação trabalhada com precisão

para este fim no fait diver. Um exemplo dessa relação pode ser observada no Balanço Geral,

outro programa que analisamos aqui. Na edição paulistana de 10 de outubro de 2012, o

apresentador Geraldo Luís apresenta uma matéria em que percorre um túnel “fantasma” sob o

Hospital das Clínicas. Ao longo da reportagem, o apresentador diz que há relatos de décadas

em que os mortos passavam por esse túnel. Essa repetição – das décadas em que há relatos do

fantasma – confere justamente com a asserção de Barthes (1964).

28 Na entrevista concedida ao canal Sonhar TV, da qual falaremos mais abaixo, Nelson Hoineff, criador do

Documento Especial, revela que no programa-piloto apresentado à Rede Manchete, uma das matérias falava

justamente sobre discos-voadores que sobrevoavam uma cidade do Rio de Janeiro (não informada na entrevista).

Fonte: Canal Sonhar TV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=0hTNGDUhj_0>. Acesso em: 28

jul. 2016.

57

Figura 5 – O apresentador do Balanço Geral anunciando a reportagem em que visitaria o “túnel da

morte”

Fonte: Balanço Geral – edição de 10 de outubro de 2012 (2012, Rede Record)

Outra relação de coincidência é aquela que aproxima dois termos que parecem distantes.

Isso implica que os faits divers elevam ambos os termos, que soavam tão distintos, em um

mesmo sentido. “Cada termo, pertencendo em princípio a um percurso autônomo de

significação, a relação de coincidência tem por função paradoxal fundir dois percursos

diferentes em um único percurso” (BARTHES, 2012. p. 4). Essas considerações acerca dos fait

divers indicam uma aproximação ao sensacionalismo e ao popularesco. Conforme aponta

Foucault (1973, p. 269 apud DION, 2007, p. 269), o fait diver possibilita “mudar de escala,

crescer em proporções, fazer aparecer o grão minúsculo da história, abrir ao cotidiano o acesso

da narração”.

Nessa linha, de acordo com Marcondes Filho (1986 apud ANGRIAMI, 1995, p. 15), “o

sensacionalismo não se presta a informar, muito menos a formar. Presta-se básica e

fundamentalmente a satisfazer as necessidades instintivas do público, por meio de formas

sádica, caluniadora e ridicularizado das pessoas”.

Segundo J. S. R. Goodlad, (apud Marcondes Filho, 1988, p. 52): “O jornalismo e o

telejornalismo são parentes muito próximos dos dramas. Em questão de preferência popular, os

noticiários ocupam, aliás, o segundo lugar, logo após o drama”. Tal afirmação ilustra a

58

influência do drama junto à audiência. O pioneiro destes representantes do drama “popularesco”

na televisão pode ter sido, talvez, a atração comandada por Jacinto Figueira Júnior.

3.2.2.2 O primeiro programa “mundo cão” e o aumento da audiência televisiva

O programa O Homem do Sapato Branco estreou em 1966, comandado pelo

apresentador Jacinto Figueira Júnior. À época, como ainda não havia a utilização de recursos

tecnológicos, como o vídeo-tape, por exemplo – que hoje são grandes aliados deste tipo de

programa –, o comandante da atração recebia prostitutas e marginais ao vivo no palco. De

acordo com o jornal Folha de São Paulo29, o apresentador foi considerado o pioneiro em fazer

este tipo de programa, com “sensacionalismo” e apelações, conhecido como “mundo cão”30.

Dentre alguns casos apresentados no programa destacavam-se: discussões entre casais, dramas

de desconhecidos, transplante de córnea e até mesmo uma cesariana (ainda de acordo com o

autor, o programa foi o primeiro a mostrar esse tipo de cirurgia na televisão brasileira) e o

‘insólito’, como um marido que trocou a esposa por uma mula.

Como era exibido durante o regime militar, sofreu duras críticas, mas alegava que

mostrava a realidade “nua e crua”. Porém, essa visibilidade também garantiu ao apresentador

um papel de destaque. No final dos anos 60, Jacinto Figueira Júnior se tornou deputado pelo

MDB (hoje PMDB). Entretanto, as críticas não se restringiam aos setores do governo. Em 1967,

um homem tentou esfaqueá-lo, ao que o jornal Notícias Populares publicou como manchete:

“Sapato branco atacado a faca”.

Em ordem cronológica, O Homem do Sapato Branco passou pela TV Bandeirantes, TV

Globo, SBT e Record. Durante sua exibição na TV Globo, chegou a ser retirado do ar pelo AI-

531, em 13 de dezembro de 1968. Foi o grande precursor deste gênero jornalístico, que inspirou

outros como Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral – atrações que serão detalhadas

mais à frente. Durante o tempo em que esteve no ar, o programa compôs uma era de

massificação da televisão.

Marcondes Filho (1998, p. 9) coloca um importante acontecimento desse período ao

dissertar que: “a televisão pode ser um bom negócio. Começa a ampliar rapidamente a base da

29 Fonte: Folha de São Paulo. Disponível em: <http://f5.folha.uol.com.br/saiunonp/2013/11/1366785-o-homem-

do-sapato-branco.shtml>. Acesso em: 28 jul. 2016. 30 De acordo com o colunista Ivan Lessa, a expressão “mundo cão” indica uma exploração do inusitado e passou

a ser adotada em nosso linguajar a partir de dois filmes italianos que carregavam este título. Fonte: BBC Brasl.

Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/05/120530_ivanlessa_tp.shtml>. Acesso em: 06

jul. 2016. 31 O Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, foi um decreto emitido pelo governo militar da época que

concedia poderes absolutos ao Presidente da República e anulava diversas garantias constitucionais.

59

audiência, os aparelhos já são comprados em grande escala e aos poucos vai se tornando uma

necessidade social geral da população”. Isto posto, a década de 60 marcaria, definitivamente, a

televisão como meio de comunicação massivo, graças à sua consolidação no mercado.

Somente na década de 70 é que esse cenário se alteraria, com o crescimento vertiginoso

da TV Globo, que assumira a liderança absoluta de audiência, principalmente por conta de sua

tecnologia moderna, dos investimentos que a tornaram acessível no país inteiro e de sua

essência empresarial, calcada na rentabilidade e eficiência, algo que previamente não existia

nas demais redes de televisão.

Ainda nesse período, as atrações popularescas sofreram fortes críticas dos setores mais

conservadores da sociedade brasileira. Tais críticas interferiram diretamente na produção

televisiva da década de 1970. Conforme pontua Roxo (2010, p. 179),

O ministro da Comunicação, Hygino Corsseti, chegou a cogitar a cassação da

concessão das emissoras que persistissem no uso do “sensacionalismo” e da

“baixaria”. O jornalista Eli Halfoun, do Última Hora, e Danton Jobim, diretor

do mesmo jornal e presidente da Associação Brasileira de Imprensa, criaram

uma cruzada jornalística para pedir ao governo militar que censurasse a

“televisão-espetáculo”, ou seja, programas de televisão especializados em

apresentar casos de desgraça humana e “a exploração sensacionalista da

miséria na TV”.

Com isso, ainda de acordo com o autor, os programas da TV Globo consolidaram-se em

um período de inflexão, uma vez que as novelas da emissora, mais o Globo Repórter e os recém-

lançados Jornal Nacional (1969) e Fantástico (1973) mobilizavam uma gama de aspectos

técnicos. Finalmente, tal período demarcava o que parecia ser o fim dos programas

“popularescos”.

Também é aqui – na transição da década de 60 para a década de 70 – que surgem as

teorias críticas sobre a televisão. Essas teorias a colocam como massificadora da sociedade,

impondo comportamentos, opiniões e agindo diretamente nas culturas da sociedade. Nesse

cenário, os donos das redes de televisão foram amplamente criticados, por agirem diretamente

na democracia do país por conta de seus canais e de seus interesses.

3.2.3 Fase do autocentramento

Na década de 80, houve uma grande transformação na relação entre a televisão e os

espectadores. Nesse período, a televisão já se colocou como total dominadora no mercado de

informações, modificando a relação com seu público e a forma de produzir programas. A

60

televisão dessa época ganhou fragmentação, dispersão e atomização do controle do sistema

televisivo.

Basicamente, a diferença entre a primeira e segunda fase colocadas por Marcondes Filho

(1988) caracterizava-se por meio da nova utilização do veículo televisivo; na primeira fase, ela

era percebida como “janela” para o mundo: o telespectador tinha acesso a informações que

circundavam seu cotidiano (nos referimos aqui ao que observavam os analistas da época; em

nosso entendimento, os produtos dos veículos televisivos perpassam estratégias discursivas que

agem na criação de um “efeito de realidade”). Já na segunda fase, a televisão tornara-se “opaca”,

pois ela não mais transmitia mundos, mas sim os fabricava.

A relação de verdade factual sobre a qual repousava a dicotomia entre

programas de informação e programas de ficção entra em crise e tende cada

vez mais a envolver a televisão em seu conjunto, transformando-a de um

veículo de fatos (considerado neutro) em um aparato para a produção de fatos,

de espelho da realidade em produtor de realidade (ECO apud MARCONDES

FILHO, 1994, p. 32).

Dessa maneira, com tal mudança, que passa a produzir o imaginário, a televisão ganha

status de criadora de espetáculos e indústria de sonhos. Com isso, passa a assumir essa

identidade, criando programas de esportes, humor, discussões políticas ou telejornais que tratam

e apresentam fatos ocorridos ou não, fazendo jus à sua nova caracterização. Nesse novo rumo,

a televisão deixa de se preocupar com a ‘verdade’ – verdade essa oriunda de estratagemas

discursivos atrelados ao facutal –; se outrora ela ocupava-se em transmitir a ‘verdade’, neste

momento, passa a produzir fábulas, encantos e sonhos, com o consentimento de todos.

Seguindo essa linha, Marcondes Filho ressalta:

O chamado “real”, como se vê, já não exista mais. Aquilo que se passa nas

ruas, que tem efeito de repercussão, impacto, envolvimento na opinião pública

é totalmente reformulado, rearranjado e montado em estúdio de televisão de

maneira que se construa a partir daí um novo tipo de ficção, um novo tipo de

fábula (MARCONDES FILHO, 1994, p. 55).

Certas atrações pareciam tentar se apoderar deste “real”, através de estratégias

discursivas preestabelecidas e de apelo popular. Isso no propósito de conquistar audiência junto

ao público, conforme fizera o programa O Povo na TV.

3.2.4 O Povo na TV

Ainda na década de 1980, surge outra atração que trazia em si a essência do popularesco:

61

o programa O Povo na TV, exibido todas as tardes e se apresentando como um serviço de

utilidade pública. Era composto por uma equipe que fez parte do Aqui e Agora, exibido um ano

antes na TV Tupi, mas vendido à TV Bandeirantes por problemas financeiros na derradeira

emissora. Dentre eles, Wilton Franco, Roberto Jefferson (o mesmo que, décadas mais tarde,

viria a ser o delator do chamado “mensalão), Christina Rocha, Sérgio Mallandro e Wagner

Montes.

Uma de suas marcas era, de acordo com Mira (2010), trazer reportagens policiais e

polêmicas através da exibição de pessoas pobres que iam ao palco pedir algum tipo de ajuda:

médica, jurídica e financeira. Basicamente, o apresentador Wilton Franco narrava um texto que

retratava a história do convidado. Por atender ao público assim, o SBT – emissora que transmitia

a atração – ficou conhecido como “a Porta dos Milagres”, por sempre estar lotada de gente que

buscava ajuda, ainda de acordo com Mira (2010).

A partir de então, com as características mencionadas por Marcondes Filho, outras

atrações de cunho “popularesco” surgem e parecem retomar a fórmula de O Homem do Sapato

Branco e de O Povo na TV.

3.3 A AMPLIAÇÃO DO “POPULARESCO” E O SURGIMENTO DE NOVAS ATRAÇÕES

O contexto dessa época envolvia também o período de evolução que compreendia o

desenvolvimento tecnológico (1974-1985), tido por Mattos (2010) como o período em que as

redes brasileiras aperfeiçoaram-se e passaram a produzir seus próprios programas com mais

intensidade de profissionalismo, inclusive exportando esses produtos.

Um destes produtos produzidos com o advento tecnológico foi produzido pela Rede

Manchete de televisão.

3.3.1 O Documento Especial – Televisão Verdade

Desenvolvido com a ideia de ser uma atração que exibia um lado do Brasil que até então

não era apresentado em nenhum outro programa da televisão, o jornalístico explorava temas

popularescos e tudo aquilo que residia no “insólito”.

A premissa do programa criado por Nelson Hoineff, então diretor da Rede Manchete,

surgiu quando Hoineff teve a chance de criar uma atração a seu gosto. Assim, em entrevista ao

canal Sonhar TV, do site de compartilhamento de vídeos Youtube, o diretor conta que pegou

uma folha de papel e começou a escrever tudo aquilo que não a Rede Manchete e outros canais

não exibiam: pessoa feia e pessoa pobre. Desta forma, o programa nasceu com a ideia de

62

apresentar temáticas que eram pautadas por duas premissas básicas: sexo e corrupção, algo que,

segundo o criador do programa, não eram mostrados na televisão à época, pois existiam dois

Brasis:” o que era mostrado na televisão e outro em que existia sexo e corrupção”, nas palavras

de Hoineff.

O piloto do programa, que tinha a duração de trinta minutos, contava com três

reportagens: socorristas da Rodovia Dutra, os chamados Anjos do Asfalto; outra sobre assalto

a bancos – algo crescente naquele ano de 1988, com o advento do crime organizado; e uma

última reportagem, sobre discos voadores que apareciam em uma cidade do Rio de Janeiro, mas

não mencionada na entrevista. Curiosamente, Hoineff revelou que esperava ser demitido após

a exibição do piloto do programa por conta das reportagens, o que não ocorreu.

No programa de estreia, assim como nas demais edições, a apresentação ficou por conta

do ator Roberto Maya, que comandava o Jornal da Manchete – Segunda Edição. O

apresentador começou sua carreira nas radionovelas, nas quais logo se destacou e foi trabalhar

no cinema. Nas telas do cinema, estreou em 1961, no filme Teus Olhos Castanhos. Na televisão

atuou em diversas novelas, com destaque para a novela Éramos Seis, de 1977, transmitida pela

TV Tupi.

O programa estreia em agosto de 1989, em uma quarta-feira, às 23h00, na instável Rede

Manchete, que passava por uma grave crise financeira. Nesta primeira edição, o programa

atingiu um pico de sete pontos de audiência, contrastando com a média da emissora no horário

das quartas-feiras anteriores, que era de um ponto; na segunda semana atingiu oito pontos; na

segunda semana, 8 pontos; na terceira, registrou 13 pontos de audiência, de acordo com Hoineff.

Por conta desta audiência elevada, os editores do programa tiveram liberdade para apostar em

temas polêmicos, algo que acabou marcando a história da atração. Com o tempo, o programa

ganhou 45 minutos de produção e passou a ser monotemático, além passar a ser exibido às

22h40, logo após as novelas de grande sucesso da emissora, como Pantanal e Ana Raio e Zé

Trovão.

Trazia um formato jornalístico semelhante ao adotado no consagrado Globo Repórter,

mas com temas polêmicos e imagens consideradas ‘fortes’, linguagem peculiar investida de

efeitos de sentido, o que o diferenciava de outros programas do mesmo gênero e formato. Por

conta disto, não é exagero colocar o Documento Especial – Televisão Verdade como um marco

na televisão brasileira, por sua coragem em investigar e exibir temas relacionados ao sexo,

tráfico de drogas, travestis, submundo dos guetos, de forma distinta aos seus antecessores no

que tange à investigação de tais pautas. Villela (2015) ressalta as premiações que o programa

63

conquistou: Troféu Imprensa (por três vezes), o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de

Arte e o Prêmio Príncipe Rainier III, em um Festival Internacional de Televisão de Monte Carlo,

em Mônaco, com a edição Vidas Secas.

Uma das marcas do programa foi, de acordo com Kneipp (2008), a utilização do plano-

sequência – técnica utilizada no cinema, por diretores como o italiano Pier Paolo Pasolini, que

veremos no próximo capítulo. Esse plano evidenciava uma sequência na cena retratada,

aproximando o telespectador do cenário exibido, como se a câmera fosse seu próprio olho.

Hoineff (apud KNEIPP, 2008, p. 13) explica: “Planos em televisão tem que ter dois ou três

segundos, quatro segundos estourando, mais que quatro segundos tem que cortar! Nós

começamos a fazer plano sequência de trinta segundos, um minuto, dois minutos, quatro

minutos”. Outro recurso inovador à época foi a produção de reportagens com a eliminação do

repórter físico quando da transmissão do programa; toda a narração ficava por conta do

apresentador Roberto Maya.

Em maio de 1992, em meio à grave crise que assolava a Manchete, culminando com a

sua venda para o Grupo IBF, Hoineff e a equipe do Documento Especial eram contratados pelo

SBT, mas sem a liberdade que possuíam na Manchete. Prova disto, foi a “censura” que o

programa sofreu logo em sua primeira exibição no canal, quando a edição O país da impunidade

não pôde ir ao ar. Ficou no canal até 1995, quando sai por desavenças entre Nelson Hoineff e

Sílvio Santos. Voltou ao ar em 1997 pela Rede Bandeirantes, onde permanece até 1998, ano em

que foi extinto.

Algumas edições marcantes

No período em que esteve na Rede Manchete, o programa exibiu edições como Os

pobres vão à praia, que continha imagens de preconceito explícito e de um homem morto; e

Muito feminina, que fazia uma abordagem à homossexualidade feminina,

Já no período em que esteve no SBT, o programa exibiu, dentre outras edições, A cultura

do ódio, que gerou processos à equipe do programa por suposta apologia ao nazismo, além de

terem sido acusados de apresentar depoimentos forjados de supostos neonazistas e O país da

impunidade, que fora censurado conforme explicado neste trabalho.

Na Rede Bandeirantes, o programa já apresentava sinais de derrocada uma vez que não

apresentou nenhuma reportagem marcante, somente algumas que versavam mais sobre

curiosidade, como a edição sobre a festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio, no Ceará.

Mencionamos também algumas edições produzidas a partir de obras clássicas. Uma

64

delas – talvez a mais emblemática – foi denominada Fragmentos de um Discurso Amoroso, e

discorria situações amorosas de pessoas a partir de citações extraídas do livro homônimo ao

nome da edição, de Roland Barthes.

Nesse período, apoiado pelo desenvolvimento tecnológico e democrático do país, surge

um programa de semelhante teor popularesco, que remontava características prementes ao rádio

e as apresentava na televisão.

3.3.2 O Aqui Agora

Aliando o formato sensacionalista do rádio ao telejornalismo, o Aqui Agora foi exibido

inicialmente no ano de 1991 e trazia o impactante slogan: um jornal vibrante, uma arma do

povo, que mostra na TV a vida como ela é.

Seu “primogênito” foi o Aqui e Agora, exibido pela TV Tupi inicialmente em 1979, às

13h15, e que herdava o formato ‘sensacionalista’ de O Homem do Sapato Branco, conforme já

expusemos. A atração do SBT inovava já na constituição de sua bancada ao contar com seis

membros, de acordo com Santos (2006). Destes, dois eram apresentadores e o restante

responsável por outras funções, como previsão do tempo, notícias internacionais e comentários.

O programa contou com diversos apresentadores em sua 1ª fase, quando absorvera o

formato dos famigerados O Homem do Sapato Branco e O Povo na TV, como Ivo Morganti,

Christina Rocha (que já participara de O Povo na TV), Sérgio Ewerton, Liliane Ventura e

Patrícia Godoy. Posteriormente, assumiu de vez o formato jornalístico, em 1996, centrado em

pautas mais noticiosas e sem tanto requinte sensacionalista, quando passou a ser apresentado

por Eliakim Araújo e Leila Cordeiro. Foi ao ar até 1997, apresentado por Ney Gonçalves Dias

e bem distinto em relação ao primeiro formato – agora o apresentador atuava também como

comentarista, algo semelhante ao que acompanhamos atualmente em programas como o

Balanço Geral – quando encerrou suas atividades. Ficou fora do ar por onze anos, regressando

em 2008, mas permanecendo poucos meses na grade de programação do SBT, encerrando assim

a vida do telejornal.

Uma das marcas do telejornal era o forte apelo popular. Além das temáticas congruentes

ao que entendemos por popularesco, a linguagem do programa também detinha características

popularescas. Wilfred Junior (1995 apud SANTOS, 2006) resgata o diálogo dos apresentadores

Ivo Morganti e Christina Rocha na chamada de uma reportagem sobre um traficante africano

em Recife.

As reportagens seguem um padrão em que quase não há edição. Planos-sequência são

65

dispostos em tempos razoáveis, aludindo ao telespectador um efeito de proximidade com a

notícia tal qual buscava o Documento Especial. Em sua dissertação, Santos (2006, p. 26)

relaciona algumas técnicas cinematográficas adotadas pelo telejornal:

Do Cinema Marginal, feito entre a década de 60 e 70 (período da censura

militar) por um grupo de jovens cineastas paulistanos contrários ao Cinema

Novo, o Aqui e Agora resgatou a improvisação, temas do submundo,

angulações imperfeitas, cortes displicentes e os personagens que vivem à

margem do sistema

Também são presentes alguns elementos do rádio na constituição do programa32. Alguns

deles influem no tom adotado pela reportagem, que pode ir da dramaticidade ao jocoso. “A

linguagem radiofônica não é constituída unicamente pela palavra, mas por um conjunto: a

dramaticidade, a música, a harmonia e ritmo, os efeitos sonoros, os ruídos e

o próprio silêncio” (SANTOS, 2006, p 32).

Outrossim, o programa se destacou ao apelo policialesco também, exibindo

perseguições de policiais a criminosos sem cortes, enquanto o repórter – que viajava no carro

da emissora, logo atrás das viaturas em perseguição – narrava os acontecimentos empregando

um tom – tido por Maingueneau (1980) como fulcral na constituição ethópica – ríspido, quase

dramático.

Ivo Morganti: Preto no Branco!!! Traficante africano é preso com seis quilos

de cocaína, em Recife!

Cristina Rocha: O repórter Jota Ferreira gasta todo o inglês que tem direito

e tenta arrancar alguma coisa do traficante.

Apelos ao popularesco à parte, nos parece permissivo afirmar que tais falas despejariam

críticas caso veiculadas hodiernamente. Este discurso dos apresentadores se assemelha à

essência dos fait divers. Tal qual chamada das reportagens, as legendas circunscritas entoavam

um sentido peculiar. Dentre as que observamos em nosso recorte temático, as legendas, aliadas

aos elementos composicionais da imagem, carregam um forte efeito de sentido.

32 Veremos mais sobre trilha sonora no próximo capítulo deste trabalho.

66

Figura 6 – A legenda utilizada em uma das reportagens observadas

Fonte: Aqui Agora – edição de 13 de fevereiro de 1995 (1995, SBT)

Em sua equipe de repórteres, destacam-se César Tralli, Celso Russomano, Gil Gomes,

Wagner Montes (que também já passou pelo O Povo na TV), Carlos Cavalcanti, dentre outros.

Sérgio Mattos (2010, p. 231) coloca o Aqui Agora como um “telejornal popular”, e

discorre que a atração surgiu “copiando o modelo de jornalismo popular usado nas emissoras

de rádios: sensacionalista, com notícias policiais e muito apelo sexual” – relembremos, essa

fora uma das premissas que inspirou Nelson Hoineff a criar o Documento Especial.

Edições marcantes

Conforme descreveu o autor, o programa exibia cenas fortes e impactantes, como em

uma edição de setembro de 1991, no qual exibia um sequestro a um ônibus em Cambira – PR,

mostrando um dos reféns levando um tiro fatal e, posteriormente, seu cadáver. Além disso,

‘aprofundando’ no quesito “sensacionalismo”, o então jovem repórter César Tralli – hoje na TV

Globo – entrevista um dos sequestradores no hospital após levar um tiro dos policiais. O Aqui

Agora mantém-se no ar até 1997, quando é extinto da grade de programação; porém, retorna

em 2008, buscando modernizar o formato de sucesso da primeira versão; sem êxito, deixou de

ser exibido, definitivamente, dois meses após seu regresso.

Em 5 de julho de 1993, a atração exibiu o suicídio de Daniele Alves Lopes, de 16 anos.

De acordo com o site Notícias da TV33, a jovem ficou 15 minutos sentada no beiral do prédio

33 Fonte: Notícias da TV. Disponível em: <http://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/em-1993-aqui-agora-

exibiu-suicidio-de-adolescente-e-chocou-o-brasil-4722>. Acesso em 5 de jun. de 2015.

67

antes de se suicidar. A equipe do Aqui Agora, que mantinha conexão com o rádio da polícia,

chegou ao local juntamente com o Corpo de Bombeiros, conseguindo gravar imagens do

momento em que a jovem se atirava para a morte. Neste dia, o programa aumentou sua

audiência em 33,5%.

Nesse período, a “baixaria” assumia um grande papel na televisão. Além ao Aqui Agora,

que revelava os elementos do “sensacionalismo” sob a égide telejornalística, outros programas

– de diferentes gêneros – seguiam caminho semelhante34.

3.3.3 O momento atual da televisão no Brasil e o início do Balanço Geral

No desenvolver da trajetória do veículo televisivo no Brasil, vivemos hodiernamente a

“fase da convergência e da qualidade digital”, caracterizadas por Sérgio Mattos como o

momento em que “o mercado de comunicação e o modelo de negócios vão se reestruturar

definitivamente”.

Neste contexto em que os produtos televisivos passam a assumir um papel

preponderante no faturamento das emissoras, surge o Balanço Geral. O programa estreou na

Rede Record no dia 3 de dezembro de 2007, assumindo o transladado formato de jornalismo

popularesco para combater o telejornal da Rede Globo SP-TV – 1ª edição. Anteriormente, já

contava com edições nos estados de Minas Gerais e Paraná desde 2005. A edição transmitida

via satélite pela Record Nacional corresponde à edição paulistana. Dentre seus apresentadores,

destacam-se Geraldo Luís (que já deixou a atração) e o atual apresentador Reinaldo Gottino.

Em abril de 2014, o programa explorou supostas evidências que apontavam para o fato de o

cantor Michael Jackson estar vivo. Foram entrevistas com um suposto fã que dizia ter provas,

exibição de vídeos que “mostravam” Michael Jackson saindo da ambulância que lhe levou ao

hospital, dentre outras “evidências”. Com isso, o programa mantém um formato “popularesco”,

apresentando notícias relacionadas a crimes das mais variadas espécies, lembrando, em termos

narrativos e conteudísticos, a fórmula adotada pelo Documento Especial e pelo Aqui Agora.

Nos dias atuais, o programa costuma manter a Rede Record na vice-liderança de audiência, com

34

Prova disso é uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça e financiada pela Unesco, em 1997, que

investigava o baixo nível dos programas televisivos. A investigação, apontada por Mattos (2010 apud

VALLADARES, 2000), revelou que “75% dos brasileiros gostariam que houvesse algum tipo de controle sobre o

que vai ao ar. Entre estes, 64% defenderam a classificação por faixa etária e horário e uma minoria, apenas 32%,

pediu a volta de alguma forma de censura”. Estes dados exemplificam bem o descontentamento majoritário do

telespectador com aquilo que lhe era projetado pela televisão. Entretanto, mesmo com tais dados ainda existem –

e se proliferam – programas que mantém o cunho “popularesco”.

68

7 pontos de média junto ao IBOPE35.

Como ainda está no ar e mantém-se em exibição em diversos estados, o Balanço Geral

acaba por atestar a influência dos programas de jornalismo popularesco junto à audiência, uma

vez que desde o surgimento de O Homem do Sapato Branco, muitos telespectadores

desenvolveram uma interessante identificação com semelhantes atrações jornalísticas,

independente do momento em que elas sejam exibidas.

Em suma, a história da televisão aponta alternâncias significativas ao longo de sua

existência. Momentos críticos do país, em termos políticos ou sociais, influenciaram no

desenvolvimento do veículo televisivo. Por consequente, os produtos televisivos também

seguiram esse mesmo teor. Conforme vimos durante o percurso histórico, recursos

tecnológicos, como a introdução do videoteipe, por exemplo, auxiliaram na produção de

programas jornalísticos. Constatamos isso em nossos objetos, que, exibindo reportagens

previamente gravadas, puderam ser editados de modo a trabalhar melhor os sentidos

discursivos, sobretudo quando comparados ao programa O Homem do Sapato Branco, como

exemplo, que trazia seus convidados ao vivo. Assim, com o influente papel que exerce junto à

audiência, o veículo televisivo partiu de uma absorção do rádio até os modelos atuais

No conteúdo das produções televisivas, estratégias discursivas são utilizadas no intuito

de atingirem seu telespectador. Esse discurso, sobretudo os prementes aos nossos objetos

empíricos, parece estar embasado em elementos que conformem metáforas, polissemias,

paráfrases, não-dito e silêncios. Além disso, também identificamos diferentes elementos que

compõe a imagem dos programas, como planos de tomada, enquadramentos e até mesmo trilhas

sonoras dramáticas, que atuam como produtores de sentidos discursivos. Nesse caminho,

abordaremos nossas metodologias de pesquisa no próximo capítulo, apresentando a análise do

discurso de tradição francesa, como campo teórico-metodológico, e a análise retórica da

imagem, através dos elementos composicionais.

35 Fonte: Portal R7. Disponível em: <http://noticias.r7.com/balanco-geral/saiba-mais-sobre-o-programa-balanco-

geral-sp-11022014>. Acesso em: 14 maio 2015.

69

CAPÍTULO 4 – A ANÁLISE DO DISCURSO DE TRADIÇÃO FRANCESA COMO

CAMPO TÉORICO-METODOLÓGICO

No caminho para analisarmos os programas televisivos popularescos que selecionamos

como objetos empíricos, nos municiaremos com as diretrizes da análise do discurso36 de

tradição francesa e da análise retórica, na qual envolveremos os elementos que compõe a

narrativa imagética e propõe efeitos de sentido, como os enquadramentos trabalhados, os planos

de câmera e as trilhas sonoras que constituem as peças jornalísticas.

Abordaremos, inicialmente, a concepção de discurso em um âmbito geral para,

posteriormente, utilizarmos a AD como campo teórico-metodológico. Assim, tencionamos

imbricar os sentidos apensos ao conteúdo verbal dos jornalistas, aos elementos que compõe a

imagem e o sonoro dos programas. Enfim, a tudo que revela o discurso que configurou a

identidade ethópica do jornalismo popularesco ao longo das décadas em que os programas

estiveram/estão no ar. Nesse caminho, nos embasaremos, quando na AD, em elementos da

linguística que atuam na criação de efeitos de sentido, como o interdiscurso, o silêncio no

discurso – residência do não-dito –, polissemia e paráfrase.

4.1 O DISCURSO

Para alguns, o termo discurso pode indicar, tão somente, a fala do sujeito que tece uma

mensagem ante a uma plateia. Consequentemente, o verbo ‘discursar’ é definido no dicionário

como: “1. Fazer discurso; 2. Discorrer; 3. Raciocinar”37. Porém, o discurso é entendido em um

contexto mais amplo para autores clássicos das ciências sociais. Como bem coloca Orlandi

(2012, p. 15), “a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso,

de correr por, de movimento”.

É bem verdade que um conteúdo textual denota uma interação linguística entre os

interlocutores de uma determinada situação retratada, por exemplo, por um texto. Todavia, em

um olhar mais profundo é possível observar que será no discurso que a posição do orador estará

demarcada. Isso porque “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo

é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (PÊCHEUX, 1975

apud ORLANDI, 2012, p. 17).

É no discurso que as relações de poder ficam demarcadas, conforme vimos. É nele,

também, que se revela as intenções do sujeito, permeadas por sua retórica e por seu ethos, sua

36 Doravante, utilizaremos a sigla AD para nos referimos à análise do discurso. 37 Fonte: Dicionário Priberam. Disponível em: <https://www.priberam.pt/DLPO/discursar>. Acesso em: 28 fev.

2016.

70

imagem. Nessa concepção de discurso, vale mencionarmos os estudos de Michel Foucault

(1999). Seguindo a visão foucaultiana, esse discurso que emana do sujeito tem forte relações

com o poder. Ele poderá ser moldado ao sabor de estratégias institucionais, que assim o mantém

sob ‘controle’ dentro de determinados padrões. Esse discurso, à primeira vista, representa pouca

coisa; porém, as interdições às quais está sujeito revela uma ligação com o desejo e o poder.

O discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que

manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e

visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é

simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas

aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar

(FOUCAULT, 1999, p. 10).

Esses discursos que se ligam ao poder revelam, em epítome, criações de efeitos de

verdade, à medida em que as instituições, mais uma vez, os colocam. Ainda segundo Foucault

(1999, p 8-9), em toda sociedade a produção do discurso é “controlada, selecionada, organizada

e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e

perigos, dominar seu acontecimento aleatório”. Para isso, existem procedimentos que cerceiam

o discurso do sujeito, ou mesmo o controlam. Alguns destes processos indicam o que não pode

ser dito, chamado por Foucault (1999) de “exclusão”, e outros que podem ser pensados, mas

não pronunciados, denominados pelo autor como “controle do discurso38”.

No processo de exclusão, que Foucault (1999) coloca como procedimento externo, há a

interdição, que seria uma forma de exclusão estabelecida quando o sujeito sabe que não pode

falar qualquer coisa em qualquer lugar. O tabu do objeto é um exemplo. Nele, é de

conhecimento que alguns assuntos não devem ser trazidos à tona. A sexualidade e política são

dos lugares mais fortes nesse tabu, como se o discurso os fizesse exercer seus poderes. Ainda

na exclusão, Foucault (1999) também cita um processo de separação e rejeição: quando seu

discurso não é igual àquele estabelecido na interdição, se opondo ao que está disposto, este

discurso é tido como louco e é separado e rejeitado. Por fim, o autor cita a vontade de verdade,

que seria o discurso que busca ser aceito como legítimo, mesmo que não o seja – daqui

relembramos a essência do ethos: soar crível à audiência, e dos efeitos de verdade que um

discurso pode produzir O ethos não é senão a criação de um personagem do discurso, de uma

persona que se constrói a partir de estratégias discursivas para passar uma determinada imagem

38 Não entraremos em todos os modos de controle e exclusão do discurso trazidos por Foucault (1999), mas sim

aqueles em que entendemos ser relevantes lembrar em nosso escopo teórico, por serem congruentes aos nossos

objetos.

71

ao leitor. Essas situações, assim, “funcionam como sistemas de exclusão; concernem, sem

dúvida, à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo” (FOUCAULT, 1999, p. 21),

incidindo em um tipo de coerção nos indivíduos.

De outro lado, ainda na coxia de Foucault (1999), chamados pelo autor de

“procedimentos internos”, existem os discursos que se autocontrolam. No primeiro caso, há o

comentário. A égide deste procedimento seria a repetição de um discurso por outros. Como

exemplo, Foucault (1999) menciona os textos religiosos e jurídicos – a ideia de interdiscurso,

que veremos mais abaixo, nos parece glorificar esse procedimento interno de controle do

discurso. Outra colocação faz menção ao autor como outro princípio de cerceamento interno do

discurso. Aqui, Foucault (1999) afirma que a ‘autoridade’ do autor modifica o sentido do

discurso; quando identificado, detém um sentido maior. Diz Foucault (1999, p. 29): “O

comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma de

repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma

identidade que tem a forma da individualidade e do eu”. Assim, essa individualidade do autor

pode conferir um sentido mais crível ao seu discurso – relacionamos este caso ao discurso de

autoridade, que trabalharemos mais à frente. Finalmente, temos a disciplina, que age como

dispositivo de cerceamento na indicação de que os discursos são aceitos mediante proximidade

aos discursos daquele campo do saber específico; como exemplo, Foucault (1999) cita os

objetos e métodos distintos que Mendel empregava no século XIX, e que isso não era aceito

pelos biólogos da época.

Fundamentalmente, na concepção foucaultiana o discurso será o lugar da emergência

das falas, determinando a construção de saberes sobre o mundo e sobre uma suposta ‘verdade’

legítima – o que, em nosso ver, não passa de uma construção arbitrária. De tal modo, o discurso

está envolvido numa luta simbólica pelo significar o mundo sob um viés legitimado.

Em vista de tais considerações, acrescentamos que certos ethos só podem emergir de

acordo com certas construções discursivas – ou, em outros termos, a partir de certas estratégias

discursivas. O ethos, assim, não é senão um efeito do discurso, e será instituído sob uma série

de relações de poder que se dão no discurso. Serão justamente estas relações que investigaremos

em nossas análises.

Portanto, considerando o discurso como algo que vai muito além de uma ‘simples’

mensagem; indicando que dele emerge todo um mundo que há por trás do ato falante,

apresentemos a AD como metodologia.

72

4.2 A ANÁLISE DO DISCURSO COMO METODOLOGIA

A AD mantém filiações históricas em um espaço de questões criadas na relação entre

três domínios disciplinares: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise. Talvez a área que mais

tenha influenciado o desenvolvimento da AD, a linguística se conforma no entendimento de

que não há transparência na linguagem, ou seja, a língua é seu objeto próprio, regida por sua

ordem própria, conforme pontua Orlandi (2012).

Braga (1980 apud Brandão, 2002, p. 11) observa que a linguagem enquanto discurso “é

o sistema-suporte das representações ideológicas”. Assim, na AD, a língua não é mais encarada

somente como estrutura, mas sim como acontecimento. Cabe também a ressalva de

Maingueneau (1989, p. 18) nesse sentido, quando o autor coloca que “a AD não é, pois, uma

parte da linguística que estudaria os textos, da mesma forma que a fonética estuda os sons, mas

ela atravessa o conjunto de ramos da linguística”. Portanto, para a AD:

a. a língua tem sua ordem própria mas só é relativamente autônoma

(distinguindo-se da Linguística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação

na análise da linguagem);

b. a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos);

c. o sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e

também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o

afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo

inconsciente e pela ideologia. (ORLANDI, 2012, p. 19-20).

Trabalhando a linguagem como esse fenômeno entrecortado por outros discursos, nos

municiaremos com a AD, enquanto campo teórico-metodológico na presente pesquisa.

4.2.1 A AD enquanto instrumento para análise ethópica

A premissa da AD como metodologia pode ser entendida, em suma, como um método

de investigação que permite observar os sentidos investidos em um discurso – seja ele textual,

imagético ou da natureza que for, em nosso entendimento –, a fim de perceber as imbricações

ideológicas dos sujeitos produtores deste discurso. Assim, a AD “visa a compreensão de como

um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por

sujeitos” (ORLANDI, 2012, p. 26). Portanto, “à AD cabe não só justificar a produção de

determinados enunciados em detrimento de outros, mas deve, igualmente, explicar como eles

puderam mobilizar forças e investir em organizações sociais (MAINGUENEAU, 1989, p. 50).

Na análise de nossos objetos empíricos, iremos utilizar a AD como uma forma de

entrada para entendermos o ethos discursivo dos programas popularescos já citados. Além

73

disso, perseveramos a AD por entendermos a significância que Documento Especial, Aqui

Agora e Balanço Geral tiveram/tem enquanto atrações que marcaram época na televisão

brasileira. Maingueneau (1989) traz à baila o interesse da AD em objetos que representem

conflitos sócio-históricos, de textos produzidos por instituições que restringem a enunciação; e

de objetos que delimitem um lugar próprio no exterior de um interdiscurso. Referindo-se a esses

interesses, o autor recorre ao termo “formações discursivas” – aptas a serem melhor trabalhadas

pela AD – e o define como:

Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo

e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social,

econômica, geográfica ou linguista dada, as condições de exercício da função

enunciativa (FOUCAULT, 1980, p. 98 apud MAINGUENEAU, 1989, p. 14.)

Remontando o cerne desta pesquisa – a configuração ethópica dos programas

popularescos –, refletimos sobre como o ethos, conceito provindo da retórica, pode ser

trabalhado na AD. Maingueneau (1989) contribui com essa reflexão quando asserta que a

eficácia do ethos reside no fato de que estes carregam os enunciados, mas nunca revelam a

função. No caso dos programas observados, os apresentadores parecem dispor de um ethos

eficaz nesse sentido, pois se colocam como um tipo de defensores do povo, que brigam por eles

quando denunciam as ‘injustiças’ e os crimes cometidos, através de um discurso que os colocam

em tal posição graças a termos que o familiarizem com a audiência. Ainda argumentando sobre

como o ethos pode ser trabalhado na AD, Maingueneau (1989) observa que estes só poderão

integrar-se quando realizam um duplo deslocamento. O primeiro momento indica que deve

haver um esquecimento de qualquer preocupação “psicologizante e voluntarista” (1989, p. 45),

conforme o enunciador desempenharia o papel de acordo com os efeitos que deseja produzir

em sua audiência – o que atuaria nessa eficácia retórica seria a formação discursiva, mais do

que o sujeito; assim, o conteúdo discursivo e o tom do autor do discurso caminham juntos. Em

um segundo momento, Maingueneau (1989) coloca a importância de a AD, como metodologia,

entender o ethos como interligado o oral e ao escrito, para aí sim atingir pujança.

Trilhando um caminho que nos possibilitará analisar o ethos de nossos objetos

empíricos, imbricaremos, em tais análises, elementos da linguística e da composição imagética

na metodologia.

4.3 ELEMENTOS ATUANTES NA FORMAÇÃO DO SENTIDO DISCURSIVO

No propósito de utilizarmos a AD como metodologia, iremos nos debruçar sobre alguns

74

conceitos da linguística e da composição de uma narrativa cinematográfica – em nosso caso,

televisiva. Trabalharemos tais conceitos de acordo com nossas observações empíricas sobre os

objetos. Inicialmente, abordaremos aspectos que conformam o sentido do discurso no

‘silêncio’, como a noção de “dito e não-dito”. Tal ideia faz menção aos pressupostos, ou seja,

algo que não foi colocado claramente, mas que age nessa criação de sentido.

4.3.1 Pressuposições e subjetividades: o dito e o não-dito

Em um discurso, há diversas formas de não-dizer, como a noção de interdiscurso, de

ideologia e de formação discursiva – esta última conforme visto anteriormente. Colocando

determinada mensagem em um discurso, sempre permanecerá o não-dito, que indicará o oposto.

Por exemplo, dizer que a pessoa está “sem sono” caracteriza que ela está “descansada”. Eni

Orlandi (2012) pondera que no não-dizer pode se dar o pressuposto e o subentendido,

separando-os por aquilo que deriva da instância da linguagem/discurso (pressuposto) do que se

dá em contexto (subentendido).

Pensando no dito e não-dito a parit de argumentações, podemos trazer as asserções de

Fiorin (2016 apud PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005), que apresenta a questão da

incompatibilidade argumentativa. Assim, um argumento pode ser alocado no discurso a partir

de uma demonstração de incompatibilidade entre sentenças. Pensando em nossos objetos

empíricos, podemos pinçar uma frase colocada por um policial na edição Guerra Social, do

Documento Especial. Diz o policial: bandido bom é bandido morto e enterrado em pé para não

ocupar muito espaço. Na frase, fica clara a intenção do policial em ver os “bandidos” mortos,

sejam eles quais forem, de quais causas tenham originado o crime. Seguindo no exemplo, o

policial ainda visa sua persuasão retórica no argumento de que o “bandido” deve ser enterrado

de pé para não ocupar espaço; parte daí sua aversão argumentativa aos “bandidos”.

No discurso o não-dito pode ser trabalho pelo silêncio, que pode representar a

“respiração da significação, lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o

sentido faça sentido. É o silêncio como horizonte, como iminência de sentido” (ORLANDI,

2012, p. 83).

Ainda nesse sentido, alguns veículos de comunicação parecem engendrar suas intenções

no próprio discurso, mas através do que Ducrot (1972) chama de “o implícito do enunciado”.

Para ele, este procedimento faz menção à uma estratégia que visa implicar uma determinada

intenção não explicitamente no discurso. Como exemplo, o autor cita que “dizemos que o tempo

está bom para entender que vamos sair; falamos do que vimos fora para saber que vamos sair”

75

(DUCROT, 1972, p. 15). Verificamos, aqui, o não-dito que, mesmo sem voz, demarca sua

intenção no discurso.

Os dizeres e não-dizeres perpassam outras categorias discursivas, que estão ligadas às

condições de produção de um discurso. Entendê-las possibilita, ao analista, projetar o contexto

na qual o discurso, previamente recortado como corpus, pode ter sido proferido.

4.3.2 Condições de produção do discurso

Em um discurso, diversas situações podem influir quando de seu pronunciamento.

Desde o auditório, as condições da audiência, até o enredamento de elementos que serão

colocados neste discurso fazem parte de uma situação geral que presencia o nascedouro de um

discurso: o contexto imediato, em sentido estrito (ORLANDI, 2012). Essencialmente, essas

condições compreenderão os sujeitos e a situação.

Conforme aponta Orlandi (2012), tais condições de produção podem ser consideraras,

como circunstâncias da enunciação, também em sentido amplo, e aí elas envolvem o contexto

sócio-histórico e ideológico. Nesse raciocínio, é permissivo partir de uma análise que investigue

o contexto imediato considerando um teor mais ‘aparente’ do discurso. No programa

Documento Especial, a abertura de algumas edições era seguida de dizeres que indicavam,

sobre a cor vermelha como cor de fundo, que imagens fortes seriam exibidas e estariam a cargo

da audiência o acompanhamento destas; no Aqui Agora, as legendas das reportagens ficavam

dispostas sobre duas faixas: uma vermelha, outra preta.

Figura 7 – Dizeres alertam ao telespectador a inadequação de imagens a serem exibidas

Fonte: Documento Especial – edição Delírio na Madrugada (1989, Rede Manchete)

76

Pensando no contexto imediato, entendemos a cor vermelha utilizada em ambas como

atrelada ao sangue, dando essa ideia de violência, do insólito, quando aliada à mensagem que

versa sobre as cenas fortes que viriam a seguir – muito embora a cor seja congruente ao

movimento de esquerda, os programas traziam conteúdo popularesco, o que pode causar essa

confusão entre a utilização do vermelho atrelado ao violento ou ao popularesco.

Orlandi (2012, p. 31) também indica a necessidade de se observar as condições de

produção a partir de um contexto amplo: “é o que traz para a consideração dos efeitos de

sentidos elementos que deram da nossa forma de sociedade, com suas Instituições”. Mais uma

vez utilizando os casos que trouxemos, entendemos que as faixas vermelha e preta, utilizadas

nas reportagens do Aqui Agora, remetem à instituição de segurança pública do estado de São

Paulo: a Polícia Militar, que utiliza as cores da bandeira do estado.

Na AD, o dispositivo desenvolvido para auxiliar no entendimento das condições de

produção também imbricará em si a questão do interdiscurso. É nele que o já dito volta ao

presente e ressignifica na memória discursiva a partir do colocado.

4.3.3 Interdiscuro

Na referência que a memória faz a algum detalhe notado na mensagem no discurso–

como no caso de a cor vermelha ser relacionada à esquerda, ou a cor preta ao movimento

fascista – dá-se o nome de interdiscurso. Seria, assim, um conjunto de proposições ditas no

discurso anteriormente, por outros sujeitos, mas que nos remontam à memória, e do qual

partimos para tecer o nosso discurso. Isso indica que um discurso colocado traz em seu bojo

outros discursos já ditos, que o entrecortam: “é o que chamamos memória discursiva: o saber

discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito

que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra”. (ORLANDI, 2012, p. 31). A

formulação de um discurso será, assim, proveniente das formações discursivas (FD) que

congregam em cada sujeito.

Sírio Possenti (2003), nesse caminho, resgata o conceito de pré-construído, que irá

permitir à AD entender que algo já fora dito antes e alhures. Nessa questão, segundo o autor, o

que entra em jogo na AD será: “a posição segundo a qual os sujeitos falam a partir do já dito –

e isso é exatamente o que o interdiscurso lhes pões à disposição e/ou lhes impõe” (POSSENTI,

2003, p. 255). Dessa forma, o que o autor chama de “todo complexo” (o discurso proclamado

a partir dessas conceituações) envolve um conjunto X de pré-construídos, sendo que estes

somente serão atendidos pelos sujeitos quando lhe são aceitáveis.

77

De fato o que “pertence” a uma FD ou é retomado, afirmado, ou,

alternativamente, denegado. Mas o que pertence a outra FD, mesmo fazendo

parte do interdiscurso (o que é óbvio, dada a definição), só pode ser recusado,

ironizado, parodiado, tornado simulacro (POSSENTI, 2003, p. 256).

De tal modo, podemos pensar que os programas popularescos podem engendrar seus

discursos baseados em FD predispostas anteriormente. Vale lembrar que desde O Homem do

Sapato Branco o popularesco segue na televisão brasileira, revelando que a audiência se

identifica com este tipo de programa. Isso dá a ideia de que a FD da audiência recobre discursos

entrecortados por outros já lançados há décadas nestes programas.

Essa relação entre formação discursiva e interdiscurso também é abordada por

Maingueneau (19890 apud COURTINE e MARANDIN) na ideia de que a formação discursiva

tem de ser definida a partir do interdiscurso. Assim:

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante

no qual uma formação discursiva é levada (...) a incorporar elementos

pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua

redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento

de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também

provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo

a denegação de determinados elementos.

Seguindo em seu entendimento do conceito de interdiscurso, Maingueneau (1989)

propõe três termos complementares que auxiliam na compreensão por parte do analista: o

universo discursivo, o campo discursivo e o espaço discursivo.

O “universo discursivo” compreende o conjunto de formações discursivas de todos os

tipos que se relacionam em conjuntura. Complementa Possenti (2003, p. 263): “Este universo

discursivo representa necessariamente um conjunto finito. (...) define apenas uma extensão

máxima, o horizonte a partir do qual serão construídos os domínios susceptíveis de serem

estudados”.

O “campo discursivo”, por sua vez, imbrica formações discursivas que se encontram em

concorrências, mas se delimitam por uma posição enunciativa em determinada região.

Por fim, o autor cita o “espaço discursivo”, que engloba um tipo de “subconjunto do

campo discursivo, ligando pelo menos duas formações discursivas que, supõe-se, mantêm

relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados”

(MAINGUENEAU, 1989, p. 117).

Quando alguma informação é publicada pelos veículos de comunicação, há uma

78

sensibilidade do interdiscurso que remonta essa memória discursiva. Se há uma notícia sobre

um ataque terrorista, por exemplo, a audiência poderá retomar, em seu interdiscurso, calcado

na FD, o atentado ocorrido nos Estados Unidos em 2001. Essencialmente, podemos colocar que

O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que

determinam o que dizemos. (...) é preciso que o que foi dito por um sujeito

específico, em um momento particular se apague na memória para que,

passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras

(ORLANDI, 2012, p. 33-34).

Além da determinação sobre tudo que já ocorreu e que define nosso discurso, polissemia

e paráfrase também são dois elementos linguísticos indispensáveis na análise discursiva, pois

revelam uma nova ‘roupagem’ ao discurso já colocado.

4.3.4 Polissemia e Paráfrase

Pensando na ideia da dicotomia entre o mesmo e o diferente no discurso, tal qual nos

indica o interdiscuro, dois elementos acabam vindo à tona nesse processo: a polissemia e a

paráfrase. Polissemia39 diz respeito aos vários significados que uma mesma palavra pode ter,

dependendo do contexto em que ela está inserida. Já a paráfrase indica a manutenção da mesma

mensagem originalmente colocada, mas com outras palavras de um novo autor, mas que voltam

ao mesmo significado quando colocadas sob uma formação discursiva semelhante. Orlandi

(2012, p. 36) coloca que: “a paráfrase representa, assim, o retorno aos mesmos espaços do dizer.

Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado”. Para Maingueneau (1989,

p. 96), “(a parafrasagem) define uma rede de desvios cuja figura desenha a identidade de uma

formação discursiva”.

Dessa forma, através da paráfrase e da polissemia é que a análise discursiva irá discernir

o sentido simbólico do sentido político, pois, conforme vimos, todo discurso é ideologicamente

marcado. Portanto, é no jogo de paráfrase e polissemia que a AD auxiliará o analista a

interpretar a criatividade do que já fora colocado outrora. Daí decorre, também, o jogo

parafrásico.

39 Por exemplo: ‘A manga da minha camisa é curta’: manga, aqui, refere-se a uma parte do tecido da camisa; ‘Suba

na árvore e pegue aquela manga’: neste outro exemplo, a palavra manga faz menção à fruta manga. Ou seja, a

mesma palavra traz dois significados distintos na língua portuguesa.

79

A “criação” em sua dimensão técnica é produtividade, reiteração de processos

já cristalizados. Regida pelo processo parafrástico, a produtividade mantém o

homem num retorno constante ao mesmo espaço dizível: produz a variedade

do mesmo (ORLANDI, 2012, p. 37).

No discurso, as palavras são colocadas de acordo com a ideologia do autor deste

discurso, remetendo à formação discursiva. Se produzimos discursos de acordo com nossas

vivências e ideologias, podemos dizer que o sentido em si não existe, mas que ele é determinado

por essas posições que colocamos em jogo no processo sócio-histórico das palavras. Orlandi

(2012) entende dois aspectos fulcrais a serem postos em riste, a saber:

a) O discurso terá um sentido porque aquilo que o sujeito coloca se inscreve em uma

formação discursiva e não em outra, para ter um determinado sentido e não outro – conforme

vimos na breve discussão sobre interdiscurso. As palavras não têm um sentido nelas mesmas,

pois ganharão este sentido nas formações discursivas em que se inscrevem. Já a formação

discursiva, conforme colocado, representa no discurso as formações ideológicas. Portanto, os

sentidos são sempre determinados ideologicamente, sem exceção. Logo, estes sentidos não

estão predeterminados por propriedades da língua, já que dependem das relações constituídas

nas formações discursivas. A partir daí, chega-se à noção de metáfora, definida por Lacan,

(1966) apud (ORLANDI, 2012, p. 44) como a tomada de uma palavra por outra. Segundo

Pêcheux (1975 apud ORLANDI, 2012, p. 44), “o sentido é sempre uma palavra, uma expressão

ou uma proposição por uma outra palavra, uma outra expressão ou uma proposição”, e o sentido

existe somente nas relações de metáforas nas quais uma formação discursiva é historicamente

o lugar mais ou menos provisório.

b) Os diferentes sentidos serão compreendidos na referência à formação discursiva. Por

exemplo: palavras iguais terão significados diferentes (polissemia) por conta da formação

discursiva distinta. A evidência do sentido, que não passa de um efeito ideológico, bloqueia

nossa percepção sobre seu caráter material, pois a evidência (ou identidade) do sujeito apaga o

fato de que ela resulta em identificação, já que o sujeito irá se constituir por uma interpelação.

Com os elementos que trouxemos acima, entendemos ser possível desenvolver nosso

protocolo de análise do discurso, observando como cada um destes elementos atuou na criação

de efeitos de sentido nos programas analisados. E para completarmos esse protocolo, traremos

na sequência outros elementos que julgamos influenciarem na configuração ethópica das peças

jornalísticas estudadas, como os elementos que influem na composição imagética, na

composição sonora, além de recorrências discursivas e retóricas.

80

4.4 ELEMENTOS TÉCNICOS DE COMPOSIÇÃO IMAGÉTICA

Ao observar uma imagem, é preciso considerar uma sequência de elementos que a

compõe. O que se revela aos olhos do telespectador – no caso da imagem dos televisivos que

observamos – apresenta uma organização articulada em sua composição, objetivando uma

representação de real. Conforme Pondera Aumont (2003), na relação que mantém com o real,

a imagem se mantém na esfera do simbólico. Isso implica que: “reconhecer alguma coisa em

uma imagem é identificar, pelo menos em parte, o que nela é visto com alguma coisa que se vê

ou se pode ver no real” (AUMONT, 2003, p. 82). Nesse processo de criação da imagem – que

influi diretamente no ethos dos programas analisados – há estratégias a serem levadas em conta.

Da relação entre imagem e som se constitui os efeitos de sentido imbricados no conteúdo

audiovisual – algo perceptível em nossos objetos de análise. No caminho de tentarmos

depreender os sentidos apensos a esse conteúdo dual, abordaremos as ideias de ponto de vista

e ponto de escuta.

4.4.1 Ponto de vista e ponto de escuta na narrativa audiovisual

Partindo para os meandros da ideia de ponto de vista, Vanoye e Goliot-Lété (2002)

abordam que essa expressão pode ser entendida por três vieses:

1) – Em um sentido visual: definida a partir dos questionamentos sobre onde se nota o

que visível; de qual lugar é tomada a imagem; e onde está posicionada a câmera.

2) – Em um sentido narrativo: questionamentos acerca de quem conta a histórica; a

partir de qual ponto de vista essa história é contada; e se esse ponto de vista é assimilável.

Indicam os autores:

As duas ordens de perguntas se combinam quando nos perguntamos: Quem

vê? O ponto de vista (visual) é o de um personagem (imagem às vezes

chamada de “subjetiva”) ou de um narrado exterior à história? A imagem é

atribuível a um personagem ou ao filme? (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 2002,

p. 51).

3) – Em um sentido ideológico: vale-se de um questionamento sobre o ponto de vista da

obra cinematográfica sobre personagens e enredo; e se este autor do filme se manifesta.

Com relação ao ponto de escuta, ainda para Vanoye e Goliot-Lété (2002), emergem os

questionamentos:

1) – De onde provém o som? Este ponto de escuta é coerente com o ponto visual? Ou

existe incoerência?

81

2) – Questionamentos acerca de: quem ouve, quem escuta e se o espectador e

personagem compartilham da mesma escuta.

Planos e enquadramentos de câmera também participam dessa engrenagem. Como nos

lembra Mascelli (2010, p. 227), “uma boa composição é a disposição de elementos visuais para

formar um todo unificado e harmonioso”. Nesse caminho, apresentaremos, resumidamente,

estes elementos que colocamos, a fim de os engessarmos em nossas análises.

4.4.2 O enquadramento

Enquadramento pode ser entendido, simplesmente, como o posicionamento que o

produtor do filme pretende dar ao quadro (Mascelli, 2010). Será esse enquadramento que irá

definir ao telespectador qual é o olhar que o produtor do filme pretende passar. Aumont (2003,

p. 153) traz uma sensível definição acerca do enquadramento:

O enquadramento é pois a atividade da moldura, sua mobilidade potencial, o

deslize interminável da janela à qual a moldura equivale em todos os modos

da imagem representativa baseados numa referência, primeira ou última, a um

olho genérico, um olhar, ainda que perfeitamente anônimo e desencarnado,

cuja imagem é o traço.

A escolha de um enquadramento nunca é aleatória, uma vez que se trata de um

instrumento que indica como cada cinegrafista escolhe contar uma história. De tal modo,

“enquadrar é, portanto, fazer deslizar sobre o mundo uma pirâmide visual imaginária”

(AUMONT, 2003, p. 154). E isso porque, ao passo que os planos gerais privilegiam a inserção

de personagens em contexto (ou seja, tanto os personagens quanto o cenário ganham destaque),

os planos médios tendem a privilegiar mais os personagens e os planos detalhes conotam

sempre uma noção de intimidade com o retratado. Pode-se tanto despersonalizar um ato ou

tornar um personagem responsável por essa mesma ação apenas a partir de uma escolha

cuidadosa do enquadramento.

4.4.3 Planos de câmera

Além do enquadramento, outro elemento em relação às construções dos efeitos de

verdade e do ethos nos três programas é a questão dos planos de tomada. Serão eles que irão

definir o efeito de verdade transpassado em cada imagem. Nesse método, uma boa escolha pode

substanciar o efeito dramático da imagem, ao passo em que uma má escolha por parte do

produtor da cena dificulta a compreensão do significado. Na definição de plano, Vanoye e

82

Goliot-Lété (2002, p. 37) asseveram: “porção de filme impressionada pela câmera entre o início

e o final de uma tomada”. Ainda sobre os planos, podemos colocar que são eles os definidores

de uma visão contínua da cena (MASCELLI, 2010).

Alguns dos planos40 podem ser divididos em: grande plano geral, plano geral, plano

médio e primeiro plano.

O grande plano geral é aquele mais aberto, que representa uma grande área vista,

utilizado em cenas que desejam mostrar um ambiente grande, como em imagens de helicóptero

que mostram uma perseguição, por exemplo; o plano geral exibe toda a área de ação do filme;

o plano médio, por sua vez, alterna entre o plano geral e o primeiro plano (ou close), no qual os

personagens retratados são mostrados acima dos joelhos ou abaixo da cintura (MASCELLI,

2010). O último que mencionaremos, o primeiro plano, que varia em relação à proximidade,

talvez seja aquele que confere a maior carga dramática à uma cena; é nele que o produtor da

cena destaca completamente um determinado detalhe. “(Os primeiros planos) são um dos

recursos narrativos mais poderosos disponíveis ao diretor. Eles devem ser reservados para

destaques de vital importância para a história” (MASCELLI, 2010, p. 199). Indicaremos mais

sobre o uso dos planos nos popularescos que escolhemos como corpus para esta pesquisa mais

à frente, quando em nossas análises.

Não menos importante é o plano-sequência, que se refere ao acompanhamento da

movimentação da cena sem cortes, ou seja, “à realização de uma sequência num único plano”

(VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 2002, p. 3.). Ainda sobre este plano, Pasolini (1985) observa que

nele não há qualquer escolha de ângulo por parte do produtor da cena. Além disso, o plano-

sequência será sempre um retrato do presente, do que observa, no instante, o espectador. Em

outros termos, é a sequência completa de uma cena, sem cortes, algo muito comum em

reportagens que mostram perseguições policiais.

Ainda no caminho do plano-sequência, também destacamos um recurso extra utilizado

nesse enquadramento sequencial: a chamada câmera nervosa. Este tipo de manejamento da

câmera é disposto a partir do início do plano-sequência e segue até determinado ponto,

ganhando esse status de “nervosa” porque acompanha o repórter na situação completa. Em uma

situação em que desembarque do veículo de imprensa, a câmera nervosa irá acompanhar o

repórter desde este desembarque, e é chamada assim também por conta do movimento de agito

que a câmera faz nesse acompanhamento. O jornalista Paulo Henrique Amorim (2015) define:

“a câmera nervosa, histérica, sai do repórter, vai ao ‘fato’, e volta, sem cortes, ao repórter”.

40 Trouxemos à baila os planos de enquadramento observados em nossos objetos.

83

Alguns autores, como o próprio Paulo Henrique Amorim, inclusive, atrelam o surgimento do

recurso ao Aqui Agora.

Além dos enquadramentos dispostos no ponto de vista, os efeitos sonoros também atuam

na formação de sentido, compondo uma importante harmonização sonoro-imagética para o

analista que deseja entender o produto audiovisual.

4.4.4 A trilha sonora

Um outro aspecto interessante que pode ser citado a respeito dos procedimentos

estéticos de cada um dos programas diz respeito ao modo como cada um deles articula a trilha

sonora das reportagens. E isso pode ser pensado a partir de dois eixos: os efeitos sonoros e o

uso de trilha musical, considerados sob o aspecto são colocados na edição dos programas

analisados.

Nos efeitos sonoros, outro elemento que compõe a carga sonora e ajuda na representação

ethópica, também é comum observar determinadas vinhetas que indicam o sentido de

determinada matéria, já na chamada desta. Aliada a esses efeitos, as trilhas carregam efeitos de

sentido: nas matérias policiais, por exemplo, essa referência ao sentido dramático era constante,

pois a trilha se mantinha, no Documento Especial, durante todo o período de exibição das

reportagens; nos programas mais recentes, o Aqui Agora e o Balanço Geral, essas trilhas

acompanhavam a chamada das matérias e retornavam após a exibição destas – no caso do

Balanço Geral, durante as considerações dos apresentadores e comentaristas.

Há também o uso de efeitos sonoros que podem ser ambiente ou ter sido inserido

artificialmente. Em uma cena de perseguição policial, por exemplo, parece haver uma busca

por ressaltar o barulho da sirene dos veículos policiais, bem como a alta rotação dos motores

das viaturas, indicando que essa perseguição se dá em alta velocidade. Porém, nas edições

observadas do telejornal Aqui Agora, é possível notar que os efeitos sonoros da sirene de polícia

são inseridos artificialmente, uma vez que, mesmo com os cortes na reportagem, os efeitos

seguem iguais. Isso reforça ainda o caráter policialesco da edição.

Outrossim, além dos elementos que arranjavam uma narrativa imagética e sonora,

também traremos alguns casos de recorrências discursivas e campos temáticos mais

observados.

4.5 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS

Buscando reunir a maior parte de elementos possível, que nos permita análises mais

84

robustas, analisaremos também quais foram os temos mais comumente usados entre as edições,

bem como os campos temáticos apresentados.

Premente às características do jornalismo popularesco, o sensacionalismo traz em seu

bojo propriedades elementares da violência, como a exploração de crimes, por exemplo. É nesse

sentido que “o discurso dos jornais popularesco (...) refere-se à repetição da temática da

violência. A violência vista como um conteúdo próprio do cotidiano das classes de baixa renda

familiar” (PEDROSO, 1994, p. 40). Igualmente, não será incomum encontrar a temática

violência em comum entre as atrações que atuam como objeto empírico deste trabalho, bem

como termos que nos conduzam ao tema.

4.6 RETÓRICAS

Por fim, manejaremos as análises para o entendemos como o discurso dos programas

agiam no sentido de afirmarem-se como verdadeiros, graças aos efeitos de verdade. O

argumento de autoridade é uma dessas estratégias usadas pelos programas. Outro viés em

atingir esse efeito de verdade seria por meio dos elementos pathéticos, que visam despertar

emoção no público.

4.6.1 Argumento de autoridade

Esse argumento, essencialmente, é atingido ao dispor de determinada pessoa que, na

presença de sua imagem ante a audiência, se afirma como verdadeira. Quando Foucault (1999)

aponta que um dos procedimentos para controle do discurso diz respeito ao autor deste discurso,

entendermos ser possível relacionar ao argumento de autoridade, proposto pela retórica.

Tais argumentos, então, são influenciado pelo prestígio. Podem ser utilizados para a

confirmação de uma ideia colocada, a partir da sentença de alguém reconhecidamente

habilitado para tal. Isso porque o argumento de autoridade “utiliza atos ou juízos de uma pessoa

ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese” (PERELMAN e

OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 348).

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) apresenta como exemplo a situação em que alguém

diz dar a ‘palavra de honra’ como prova; nesse caso, a opinião que a outra pessoa terá sobre a

honra do primeiro é que poderá conferir essa autoridade suficiente, a ponto de julgá-la como

legítima. Trazendo aos nossos objetos, basta lembrarmos quando, durante alguma reportagem

que verse sobre algum crime, o delegado que observa o caso é entrevistado. Ou seja, ele é a

autoridade capacitada para falar sobre o crime cometido de nosso exemplo, portanto, ele diz a

85

‘verdade’, já que seu discurso poderá ser encarado pela audiência como um discurso imbuído

de efeitos de verdade.

Junto a esse argumento, é comum observar elementos que despertem emoção na

audiência, compondo mais um dos três lados da tríade retórica: o pathos.

4.6.2 Elementos pathéticos

Além do argumento de autoridade, outro método adotado pelos programas

popularescos, sempre em busca da legitimação do seu conteúdo junto à audiência, diz respeito

aos elementos pathéticos, trabalhados com base na noção de pathos como a própria audiência.

Isso vem ao encontro do que Fiorin (2004) relaciona, a partir da tríade retórica proposta por

Aristóteles, como ethos, pathos e logos representam enunciador, enunciatário e o discurso,

respectivamente.

Em vista de tais considerações, contudo é preciso considerar que o auditório – em nosso

caso representado pela audiência dos programas popularescos – não é totalmente passivo e

suscetível a qualquer discurso que possa ser bem trabalhado pelo enunciador. Fiorin (2004, p.

70) argumenta que vislumbrar o pathos “não é (enxergar) a disposição real do auditório, mas a

de uma imagem que o enunciador tem do enunciatário”. Isso implica que cada discurso deve

ser pensado pelo enunciatário – os produtores dos programas popularescos – a partir de sua

audiência, que não será sempre igual, pois é diferente falar em um programa de esportes e em

um programa popularesco.

Intrinsicamente, ethos e pathos devem atuar juntos para a eficácia discursiva. Nesse

caminho, Fiorin (2004) estabelece duas relações entre eles: harmônica ou complementar. Na

primeira, a ethos e pathos ajustam-se perfeitamente no discurso proferido, quando enunciador

e enunciatário comunicam-se em mesmo sentido. Já na relação complementar, aponta Fiorin, o

ethos completa uma certa “carência” do pathos.

Trazendo nossos objetos analíticos à discussão, podemos relacionar termos pathéticos,

utilizados nos discursos dos programas, como o choro de uma mãe que perde seu filho, a revolta

de alguém que sofreu algum tipo de violência ou mesmo o comentário do jornalista enquanto

enunciador. Tais características visam atuar, em nosso entendimento, como uma relação

complementar entre ethos e pathos.

Essas estratégias podem despertar o que Charaudeau (2012) chama de “verdade de

emoção” – conforme vimos no primeiro capítulo. Retomaremos estes elementos em nossas

análises.

86

Após relacionarmos o entrecruzamento metodológico que dispomos neste capítulo,

apresentando a AD e abarcando os elementos composicionais da imagem e do som, além das

recorrências discursivas e retóricas, iniciaremos nossas observações sobre os objetos empíricos:

Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral. Para isso, mobilizaremos três edições de

cada programa, que nos permitirá tecer olhares e relações sobre como o ethos das peças

jornalísticas se configurou ao longo das quatro últimas décadas. A seguir, descreveremos cada

uma das 9 edições observadas por esta pesquisa.

4.7 CORPUS DE ANÁLISE

Na sequência do trabalho, mobilizaremos as edições de cada atração escolhida, que

compreendem programas produzidos e veiculados no final da década de 1980, início e meados

da década de 1990, além da presente década. As reportagens escolhidas para as análises partiram

de um recorte embasado no campo temático da violência social, uma vez que este, em nossa

compreensão, circunda a essência dos programas popularescos através de representações de um

violento cotidiano social da audiência. A partir de então, organizamos um sorteio dentre as

edições disponíveis de cada programa – dispomos de 24 edições do Documento Especial, das

quais 19 postadas no site de compartilhamento de vídeos YouTube e 6 adquiridas junto a um

colecionador; 13 edições do Balanço Geral, postadas também no YouTube; e 22 vídeos do Aqui

Agora, dentre 11 edições completas (5 delas obtidas junto ao Sistema Brasileiro de Televisão –

SBT e 6 outras adquiridas de um colecionador) –, selecionando reportagens que refletissem os

critérios que preestabelecemos anteriormente.

A seguir, apresentaremos a descrição de cada uma das edições selecionadas, em ordem

cronológica, e as denominaremos, conforme essa ordem, pelas inicias do programa e pelo

número da edição. Tencionamos também vislumbrar um breve contexto da época, na tentativa

de conjecturarmos as condições de produção estabelecidas em cada uma delas.

4.7.1 Documento Especial – 1ª edição: A pungente “Guerra Social”

Produzida e veiculada pela Rede Manchete em 1989 – ano de estreia do programa –, a

edição, de 25’ e 42” se caracteriza, fundamentalmente, por uma ordem dicotômica

classista/social, através de confrontos que se originam a partir dessa ambivalência.

Na apresentação que faz à edição – o vídeo que detemos da edição foi obtido junto ao

site de compartilhamento de vídeos YouTube, e foi gravado quando da exibição no Canal Brasil

–, o diretor do programa Nelson Hoineff a introduz com os dizeres: A guerra social que atinge

87

o Rio de Janeiro hoje já atingia em 1989, e foi pela primeira vez mostrada na televisão, em

toda a sua amplitude, nessa incrível reportagem exibida na TV Manchete.

No ano em que a edição foi produzida, em 1989, o Brasil era presidido por José Sarney

– vice-presidente que assumiu o cargo após a morte de Tancredo Neves. 1989 também foi o ano

em que Fernando Collor de Mello ganharia as eleições presidenciais para assumir o cargo

máximo da nação, em 1990.

Este momento pós-ditadura motivou a introdução de Roberto Maya, que após a exibição

da vinheta de abertura sintetizou a edição com um discurso imbuído em termos de efeito –

marca do programa. De início, o apresentador lança um momento de dualidade, ao colocar que

apesar do momento de amadurecimento político vivido no Brasil, era latente o confronto entre

os integrados da sociedade e os excluídos. Outra frase de efeito proferida por Roberto Maya:

Não se sabe se é uma ação movida pela fome ou pelo ódio generalizado a uma situação social.

Ao longo da edição, são mostrados confrontos decorrentes desse conflito de classes,

como arrastões ocorridos em praias da Zona Sul41 e saques a supermercados. Os

desdobramentos dos arrastões também são acompanhados pela equipe de reportagem, que vai

à delegacia e mostra os suspeitos – dentre eles alguns menores de idade – sendo interrogados

por policiais.

Na sequência, é mostrada a guerra social representada, a partir deste momento da edição,

por policiais X traficantes de drogas. No decorrer deste trecho, algumas inovações jornalísticas

são observadas, como o acompanhamento dos jornalistas aos policias sem cortes, em plano-

sequência, evidenciando um momento em que, durante uma troca de tiros, um jornalista grita:

Estão atirando na gente!, além de uma entrevista com dois traficantes. Estes dois momentos

são os únicos em que se escuta a voz de algum jornalista do programa – é impossível identificar

se a voz pertence a algum repórter ou câmera –: a voz do produtor da notícia, que se cala nas

edições, grita ao que presencia em sua frente.

Já na parte final da edição, o programa dá voz a um policial – não informa sua ocupação

– e ao filósofo Leandro Konder – filósofo marxista e professor universitário, e morto em 2014.

Neste trecho, se eleva o contraponto de opiniões quando o policial suscita a frase: bandido bom

é bandido morto e enterrado em pé para não ocupar muito espaço, ao que o filósofo argumenta

ser equivocada a política de extermínio clamada por uma parcela da sociedade.

41 As imagens que ilustram esses arrastões são, provavelmente, de uma edição do programa chamada “Máfias

urbanas”, provavelmente também veiculada em 1989.

88

4.7.2 Documento Especial – 2ª edição: A ‘invasão’ de espaço em “Os Pobres vão à Praia”

Veiculada em 1990, a edição retomava uma situação levantada anteriormente, em

“Guerra Social”, referente à ‘invasão’ de moradores de áreas carentes do Rio de Janeiro à praias

da Zona Sul – mais uma vez, percebe-se essa dicotomia social. Tal qual a edição que

apresentamos anteriormente, “Os Pobres vão à Praia” também foi obtida junto ao YouTube, e

contém 26’ e 26”.

Na introdução gravada para a veiculação do programa no Canal Brasil, em sistema de

reprise, o diretor Nelson Hoineff apresenta o tema e diz: Uma das marcas do Documento

Especial, sobretudo na sua primeira fase, na Manchete, é a irreverência. E poucos programas

expressam tão bem essa irreverência quanto uma em que demos o nome de Os Pobres vão à

Praia. O programa mostrava a invasão das praias da Zona Sul pela população de baixa renda,

e contém cenas de preconceito explícito. O mais simples olhar na fala do diretor já revela que

o epicentro da edição será nas imagens de preconceito.

O ano de 1990 ficou marcado por ser o ano de posse do novo presidente do país:

Fernando Collor de Mello, primeiro comandante máximo da nação eleito democraticamente.

De início, o programa, traz imagens de uma grande fila, na estação de ônibus, formada

por cidadãos residentes em bairros carentes do Rio de Janeiro, que desejam rumar à praias

situadas em área nobre. Nessa espera, a equipe de reportagem ‘flagra’ batedores de carteira

agindo junto aos populares que aguardam sua vez na fila. Junto a este trecho, uma sequência de

trilhas recobre o conteúdo sonoro da edição, com canções do sambista Dicró – músico

conhecido por suas letras satíricas.

Seguindo a edição, é mostrado o trajeto no ônibus, centrando as imagens em rapazes

que tentam entrar sem pagar, e outros que viajam dependurados na janela do veículo, também

com o intuito de não pagar a passagem. Ainda na viagem de ida à praia, a reportagem lança,

mais uma vez, dois lados sobre uma questão: agora, sobre a vida. Inicialmente com imagens de

viajantes pendurados à janela, Roberto Maya diz: Se uns buscam o prazer arriscando a vida,

outros encontram a morte querendo apenas se divertir. Foi o caso do vereador Daniel Geraldo

dos Santos. Ao reagir a um assalto, no interior de um ônibus, foi morto com um tiro na cabeça.

Na chegada à praia, a edição se volta para as cenas de preconceito, protagonizadas pelos

‘ricos’, que seriam moradores daquela região, na própria Zona Sul. Alguns chegam a relatar

que a entrada dos visitantes, moradores das áreas menos abastadas, deveria ser proibida42,

42 No ano de 2015, a declaração preconceituosa de uma das frequentadoras da praia de Copacabana ganhou

repercussão na internet. Entretanto, a mulher se manifestou e pediu desculpas pelo que havia dito há 23 anos.

89

enquanto outros mostram sua indignação dizendo que estão lá para ficar com os meus, nas

palavras de um entrevistado. Ainda neste trecho, é exibida uma série de furtos praticados por

alguns dos visitantes das praias em supermercados, ao que a edição coloca como a solução para

a hora da fome destes.

Já no trecho final, após mostrar o trajeto de volta, Roberto Maya finaliza e edição

dizendo: Fim de festa, é hora de retornar à realidade do dia dia.

4.7.3 Documento Especial – 3ª edição: As violentas “Noites Cariocas”

Transmitida em 1992 pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), a edição, de 25’ e 44”

apresentava a escalada da violência no Rio de Janeiro daquele início da década de 1990,

extrapondo situações que evidenciavam a premissa da edição. Fundamentalmente, o programa

trabalhava sobre a dualidade colocada pelo apresentador Roberto Maya logo no início da

atração, quando narrou: A cidade, que é maravilhosa durante o dia, enfrenta noites de terror,

onde o que não falta são crimes e conflitos.

Contextualmente, o ano de 1992 já fervilhava com denúncias de corrupção ao presidente

Fernando Collor de Mello. Foi também o ano em que o Congresso Nacional aprovou a abertura

do processo de impeachment do então presidente. O ano também marcou o episódio que ficou

conhecido como “massacre do Carandiru”, envolvendo uma rebelião de presos na Casa

Penitenciário do Carandiru que, de acordo com dados ‘oficiais’, levou a morte de 111 presos

após a invasão da Tropa de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

A edição transcorre apresentado seguidas cenas de violência, que envolviam brigas e

assassinatos. Pouco mais à frente, relata a noite das travestis cariocas, dando a entender que

estes seriam outras protagonistas. Ao que Roberto Maya diz: Fazendo da noite o seu passeio

público, os travestis desfilam a sua ambiguidade. Depois de mostrar relatos de agressão sofridas

pelas travestis, a edição desenvolve-se a partir do ‘inusitado’ – lembremos, nas palavras de

Nelson Hoineff, em entrevista que trouxemos no capítulo 3, essa era uma das motivações que

o fizeram a produzir o Documento Especial –, a reportagem exibe uma das traves relatando um

caso com um francês que, no motel, pedia para usar suas roupas – neste momento, sobe uma

música de Cassia Eller, chamada “Que O Deus Venha”, especificamente em um trecho que diz:

Sou inquieta, áspera; e desesperançada”, ao que entra a imagem da travesti andando pelas

ruas, sob um vulto negro.

Fonte: G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/videos-de-1990-geram-polemica-

apos-arrastoes-rio-nao-mudou-diz-diretor.html>. Acesso em: 08 jul. 2016.

90

Em outro ponto da edição, a cena exibida, acompanhada por uma trilha de blues, mostra,

em close, uma mancha de sangue no chão, um veículo com o para-brisa estilhaçado por tiros e

corpos estendidos na calçada, denunciando uma chacina ocorrida. A câmera fecha em zoom na

mancha de sangue, percorre alguns metros, centra-se no carro envolto a tiros e persegue a

calçada com as vítimas estendidas mortalmente ao solo. Na sequência, a cena volta-se para a

mãe de um dos mortos – um traficante – que chora copiosamente, chamando por seu filho. O

trecho exibido ilustra uma tendência abordada pela equipe de produção do programa: a

utilização de recursos cinematográficos, com a alternância entre os planos de câmera e a

composição sonora, levando a cabo técnicas do cinema e que seriam utilizadas por programas

que viriam a seguir. Outra cena ‘forte’ e de teor semelhante ocorre na sequência quando,

relatando outro contraponto, o programa mostra assassinatos de policiais por traficantes.

Roberto Maya narra: A figura do policial tornou-se totalmente vulnerável diante da

desenvoltura dos bandidos. Em menos de uma semana, Documento Especial registrou o

assassinato de quatro policiais no Rio de Janeiro. Ilustrando a narração do apresentador são

exibidas imagens de um policial morto, com o rosto ensanguentado.

Na parte final do programa são mostradas atividades paralelas ao cotidiano violento

exibido até aqui: ciclistas que se organizam em pedaladas pela cidade, um garçom que trabalha

durante o dia e joga bola no período noturno. E finaliza na fala do apresentador: O sol ainda

não apareceu e já estão quebrando as melhores ondas do dia na praia do arpoador, iluminada

para o surfe noturno. Dentro da água, os surfistas assistem ao último suspiro da madrugada

cada vez mais violenta do Rio. Quando nasce o sol, é a vez da noite adormecer, levando com

ela seus fantasmas. Chega ao fim mais um pesadelo carioca e renasce a esperança de que o

futuro traga noites mais felizes – fala acompanhada por uma trilha sonora que transparece

calmaria.

4.7.4 Aqui Agora – 1ª edição: A “gangue” que caçou o carro-forte em uma perseguição

“infernal”

Transmitida em 07 de junho de 1994, a reportagem do telejornal Aqui Agora que

selecionamos como corpus de análise tem um tempo total de 09’ e 50”. Essa reportagem

marcara bem a essência do telejornal: a cobertura in loco em perseguições policiais.

O ano de 1994 ficou marcado, em contexto político e econômico, pelo lançamento do

Plano Real, lançado pelo então presidente Itamar Franco – que assumira o cargo após o

impeachment de Fernando Collor de Mello – que equilibrou a inflação do país. No mundo,

91

talvez o grande fato tenha sido a eleição de Nelson Mandela na África do Sul, o que o levou a

ser o primeiro presidente negro daquele país.

Reforçando o slogan do telejornal, uma arma do povo, que mostra na TV a vida como

ela é – repetido por diversas vezes – Ivo Morganti e Christina Rocha – a mesma que havia

trabalhado no popularesco O Povo na TV –, apresentadores do programa, chamam a matéria:

(Ivo Morganti) Ladrões de carro-forte atacam na noite e matam um segurança em São Paulo.

(Christina Rocha): A gangue perseguiu o blindado numa caçada infernal. O repórter Carlos

Cavalcanti tem os detalhes do caso. Vamos acompanhar. A reportagem – que a partir daqui

mantém 9’38” – inicia com o repórter no veículo da emissora, já seguindo uma viatura da polícia

militar. O jornalista diz que as informações dão conta de que houve um assalto e havia vigilantes

feridos.

Após esse trecho, há um corte na cena e o telespectador é levado até o momento em que

o repórter chega ao local do assalto. Ao descer do carro, de antemão o repórter avisa: As

informações inicias dão conta de que realmente os homens são bastante audaciosos (referindo-

se aos criminosos). Uma questão que fica evidente na reportagem diz respeito a esse

acompanhamento de perto que o repórter faz junto aos policiais. Na cena que surge a seguir, o

policial, que acabara de desembarcar da viatura, corre para obter informações e é interpelado

pelo repórter. Naturalmente, o policial não soube esclarecer detalhadamente o que acontecera.

Na sequência, o repórter se dirige ao carro-forte, que está capotado, no meio de uma

ribanceira, e cercado por policiais. Essa sequência de movimentação do repórter é reproduzida

praticamente sem cortes, em um enquadramento de plano-sequência. Ao chegar ao carro,

prontamente o repórter nota as marcas de tiro nos vidros blindados do veículo, ao que a câmera

se fecha de plano-médio para primeiro-plano e para um zoom. Novamente a câmera segue o

mesmo percurso após a ‘descoberta’ de várias manchas de sangue no veículo e fecha a imagem

na lataria encoberta de tiros e sangue. Enquanto os policiais conversam com um dos vigilantes

sobreviventes, o repórter interfere na conversa e faz suas perguntas, mas parece não ganhar a

atenção do vigilante de início – em outro ponto mais à frente, já um pouco distante do veículo,

o repórter consegue entrevistar o sobrevivente.

Posteriormente, o jornalista entrevista um homem, que alega ter tido seu carro roubado.

Mais uma vez a imagem corta para o repórter já no carro da emissora, seguindo as viaturas de

polícia, até o local em que o carro utilizado para fuga, do rapaz que reclamou do roubo, havia

sido encontrado. Em plano-sequência, a imagem mostra o repórter descendo do carro e se

dirigindo ao veículo roubado, já mostrando o interior deste, também com diversas manchas de

92

sangue – que são, mais outra vez, mostrada em close.

No final da reportagem, o jornalista se dirige ao pronto socorro para saber notícia dos

vigilantes do carro-forte. E encerra a matéria: O triste de toda essa história é que o vigilante

José Fernandes Filho acabou falecendo aqui no pronto socorro.

4.7.5 Aqui Agora – 2ª edição: A chacina e o policial “covardemente” assassinado

Na edição de 13 de fevereiro de 1995, o telejornalístico Aqui Agora – que naquele dia

fora comandado por Ivo Morganti e Christina Rocha – apresentou outra reportagem, de 14’ e

54”, selecionada como corpus por este trabalho. Apresentada também com longas tomadas em

plano-sequência, a matéria já inicia com um som de sirene policial – inserida artificialmente,

pois mesmo em momentos em que as viaturas policiais de afastam do carro de reportagem, o

volume segue o mesmo. O repórter avisa que policiais de rota, em confronto com bandidos,

acabaram baleados. Seguindo, o repórter avisa que colherá mais informações com a redação e

os aciona via rádio – famigerada técnica de comunicação entre as viaturas policiais e o COPOM

(Centro de Operações da Polícia Militar); havia, portanto, uma inovação em relação à

reportagem do ano anterior, na busca de aproximar o telespectador ao universo policial.

O ano de 1995 marca o início do governo Fernando Henrique Cardoso, sucedendo a

Itamar Franco. Também é o ano em que o fundador da Rede Manchete, Adolpho Bloch, falece.

Após esse início em perseguição, em que planos-sequência são utilizado com pequenos

cortes, a edição mostra o repórter, já em solo, questionando aos policiais, que estão em suas

viaturas, se o policial da ROTA segue como refém. Ao que o policial informa: Segundo

informações o tenente se encontra como refém e há policiais feridos. Responde o repórter:

Policiais baleados, né?, talvez sem tanta certeza. Novamente a cena corta para nova

perseguição do repórter e dos policiais a um novo local. Na sequência, já em solo outra vez, a

cena mostra suspeitos detidos e algemados na viatura. O repórter chega para entrevistá-los e,

entoando um teor diferente em sua voz – talvez tentando demonstrar aversão – questiona o

motivo dos tiros disparados. Isso ao mesmo tempo em que os policiais interrogam os suspeitos.

Após mostrarem os armamentos encontrados com os suspeitos, a edição corta e exibe,

em plano-médio, a entrevista com um outro policial, referente a um outro crime, descrito por

policial e repórter como “execução” de um outro policial. Seguindo, a câmera segue para o

primeiro-plano e vai fechando em close no vidro estilhaçado por tiros, no automóvel do policial

morto – que não estava em serviço. Posteriormente, a imagem também parte para um primeiro-

plano no rosto da viúva do policial assassinado, que se lamuria em prantos com a cena que está

93

à sua frente. Por fim, mais uma vez o repórter se dirige ao pronto-socorro e informa que os

policiais sequestrados estão fora de perigo, mas o policial do veículo está falecido. Neste

momento, outro policial segura um documento pertencente ao colega morto, ao que a câmera

fecha em close na foto do documento. Finalmente, o repórter diz: Saldo final depois de toda

essa mobilização final: um policial militar assassinado, dois policiais feridos e um bandido

morto.

4.7.6 Aqui Agora – 3ª edição: A “implacável” perseguição aos “matadores da policial”

Como nossa terceiro corpus do programa Aqui Agora, sorteamos o programa gravado e

veiculado em 23 de março de 199543. Nele, selecionamos uma reportagem que mostrava a

perseguição de policiais a suspeitos, que teriam sequestrado uma escrivã da Polícia Militar do

Estado de São Paulo. O tempo total da reportagem é de 15’25”.

A reportagem começa com aquela que seria uma marca nas reportagens policiais do

programa: a primeira cena já traria o repórter no carro da emissora, seguindo as viaturas

policiais que perseguem os suspeitos. O repórter Herbeth de Souza informa que acabara de

ocorrer um assalto no qual uma mulher – até então não descrita como policial – teve seu carro

roubado enquanto buscava seus filhos na escola. Ao parar o carro de reportagem próximo a um

rio, o repórter desce e conversa com um dos policiais que observam o rio; o policial informa

que a mulher assaltada é uma escrivã da Polícia Militar, e que o carro havia sido abandonado

nas imediações daquele local. Após um corte, ainda no mesmo local, o repórter informa que o

esposo da mulher assaltada estava em um carro próximo, e pede ao câmera que se aproxime

desse veículo. Diz o repórter: Olha só o desespero dele no carro! Não vamos conversar com

ele, ele já pediu para não conversar. A gente entende. É um momento muito difícil. Olha só o

desespero dele com as mãos na cabeça. Tá saindo com alguns policiais que vão levando o carro

dele, porque ele não tem a mínima condição. No momento da fala do repórter, a imagem parte

de um plano geral de enquadramento para uma tentativa de primeiro-plano no marido da vítima.

Depois de novo corte, a imagem retoma o plano-sequência do repórter no carro da

emissora, seguindo, em perseguição junto dos policiais, na busca a um novo local. Novo plano-

sequência, dessa vez por 1’, mostra o repórter desembarcando do carro da emissora e seguindo

os policiais na busca, que correm. O repórter informa que há informação de um suspeito baleado

e diz algo que seria repetido por mais 3 vezes ao longo da reportagem: É o Aqui Agora na marca

43 Como a edição apresentada anteriormente – por nós denominada de AA2 – também era de 1995, manteremos

em mente o mesmo contexto sociopolítico trazido no item anterior.

94

da exclusividade. O jornalista também repete um termo já conhecido das reportagens do

Documento Especial: “fortemente armados”.

Mais um novo corte, após outro plano-sequência que indica o deslocamento do repórter

a um novo local, sempre junto aos policiais. Nisso, a edição mostra os policiais pulando um

muro acompanhados pelo repórter, lado a lado, que segue dizendo que as imagens são

“exclusivas”. Outro corte e agora policiais e repórter estão na casa de um suposto tio de um dos

suspeitos. Os policiais, então, levam esse tio do suspeito. Nesse momento, Herbeth de Souza

coloca o microfone próximo aos policiais e ao suspeito e capta a fala: (Tio do suspeito) Não

pode!; (Policial) Que não pode? Não podia!.

Mais à frente, na casa de outro suposto parente de mais um suposto suspeito, o repórter

avisa: Um lugar bastante perigoso. A imagem então corta para um dos policiais interrogando

outro tio de um dos supostos suspeitos.

No decorrer da reportagem, a informação inicial, que dava conta de um sequestro, vai

se metamorfoseando ao ponto de o repórter ter de atualizar o telespectador o tempo inteiro. De

início, o jornalista não sabia que a vítima era escrivã da Polícia Militar; não havia também

informações sobre o estado de saúde da mesma. Essa questão, embora faça parte de uma

cobertura ao vivo, fora mantida na edição do programa propositadamente, talvez com a intenção

de causar certo efeito de realidade e de verdade (Charaudeau, 2012) ainda maior, uma vez que

a reportagem era gravada, podendo ser editada antes de ir ao ar.

Após novo corte e novas tomadas em plano-sequência, o jornalista e a equipe policial

chegam a um outro local. A edição exibe imagens dos policiais já em uma residência, na qual

encontram o carro da escrivã. Ao se aproximar do veículo, o repórter nota manchas de sangue

no carro, que são exibidas ao telespectador em primeiro-plano. Por fim, assim como nas demais

edições, a equipe de reportagem vai ao pronto socorro para uma espécie de ‘balanço’ da

operação. É informada a identidade da escrivã e o seu falecimento. Também é mostrado, em

primeiro-plano, o rosto do viúvo.

4.7.7 Balanço Geral – 1ª edição: A troca de tiros entre bandidos e polícia

A reportagem separada para análise foi exibida no Balanço Geral, edição paulistana, em

5 de março de 2014. Diferentemente das anteriores citadas acima, esta teve uma duração curta,

de 1’11”. Neste dia, o programa foi comandado pelo apresentador Luiz Bacci.

O ano de 2014 marcaria a reeleição da presidenta Dilma Roussef, pela apertada margem

de 51,64% contra 48,36% do candidato derrotado Aécio Neves. Essa pequena diferença parecia

95

ilustrar um pouco da polarização política que o país atravessava/atravessa. Talvez, esta

polarização já tenha sido apontada há décadas pelo Documento Especial, mas só tenha ganhado

voz nos anos atuais.

O apresentador anuncia a reportagem: Sobre Guarulhos, a polícia interceptou bandidos

que haviam acabado de roubar um carro. Veja só. A edição então exibe o automóvel que havia

sido roubado, envolto a tiros na lataria e nos vidros. A repórter introduz a cena: Pelo estado em

que ficou o carro é possível imaginar a dimensão do confronto entre bandidos em fuga e

policiais militares. Nesse momento, a câmera alterna o enquadramento de plano aberto para

primeiro-plano, fechando seu foco nas marcas de tiro.

No decorrer, a repórter apresenta o acontecido e afirma que os primeiros tiros partiram

dos bandidos, que não respeitaram uma ordem de parada dos policiais. Isso, segundo a repórter,

levou os policiais a persegui-los. A vítima do assalto, segundo a repórter, teria contado aos

policiais que os bandidos foram agressivos. Nisso entre o delegado, responsável pelo caso,

afirmando: Ele (a vítima) levou uma coronhada na região da testa, um tapa. Em suma, foi

agredido sim. A repórter anuncia que um dos bandidos baleados foi morto, e que o outro, de 15

anos, seria levado para a Fundação Casa.

Ao contrário das demais atrações, o Balanço Geral permitia a participação do

apresentador e de um comentarista para discorrerem sobre a reportagem exibida. Então, quando

a imagem volta ao apresentador, este diz: Que judiação. 15 anos e já nessa empreitada. O

comentarista Renato Lombardi – que já havia trabalhado em outros veículos de imprensa, dentre

eles o jornal Notícias Populares – coloca: É impressionante o número de menores envolvidos

em crimes nos últimos 2 anos em São Paulo. Triplicou o número de menores envolvidos. É essa

história: vai pra Fundação (Casa) e volta, vai e volta, e quando volta, volta pior. Em breve

exercício de observação, percebemos nesta reportagem a utilização do argumento de autoridade

(PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2005) no discurso do programa, através da fala do

delegado e do comentarista da atração.

4.7.8 Balanço Geral – 2ª edição: O professor morto

A edição carioca do Balanço Geral, exibida em 25 de abril de 2014, apresentava, como

grande destaque da atração, o assassinato de um professor ocorrido em um ônibus de transporte

público, na noite anterior. De início, não foi exibida uma reportagem gravada sobre o crime; o

tempo total em que o apresentador e o repórter do programa discorreram sobre o tema foi de

08’17”. O início da edição, ancorada por Wagner Montes – que já trabalhara anteriormente no

96

popularesco O Povo na TV –, já mostrava cenas da avenida Brasil, que fora palco do assassinato

de um rapaz que reagiu a um assalto – a edição reforçava, a todo momento em que falava do

crime, que o morto se tratava de um professor.

Tão logo o apresentador anuncia o assassinato, entra uma trilha sonora de teor dramático

e imagens do local do assassinato são exibidas: Aí, o Balanço Geral começa com uma notícia

da noite. Um professor foi morto num assalto. E em seguida um tiroteio assustou motoristas.

Tudo isso aconteceu no mesmo local. Aonde? Na avenida Ziquizira, a avenida Brasil. O

cinegrafista Paulo Roberto acompanhou toda a ação. Bandidos em fuga atiraram depois de

praticar um arrastão. Policiais avançavam no meio dos carros, no congestionamento.

Motoristas chegaram a passar mal. O motivo do fechamento da avenida Brasil: pouco antes

do tiroteio, outro crime, que ocorreu mais cedo. Um professor de Educação Física foi morto

ao reagir a um assalto dentro de um ônibus.

Após este trecho inicial, o apresentador Wagner Montes já passa a adotar um discurso

pessoal, comentando a reportagem. Vê aí, ó. Ó o que eles estão fazendo, ó o terror que eles

estão tocando. Eu ainda falo de novo sobre aquele professor de Educação física, ali na Tijuca,

que também foi assassinado de modo covarde por dois vagabundos. Este trecho denota bem as

verdades discursivas impostas pelo apresentador, conforme veremos mais abaixo.

Posteriormente, o repórter do programa entra ao vivo, via link, do IML, aguardando os

familiares do professor assassinado. Após, Wagner Montes chama a reportagem, de 3’35” que

mostra o assassinato. Narrada pelo repórter, a matéria mostra imagens diversas da avenida

Brasil interditada, após o crime cometido. No transcorrer da reportagem, a cena é cortada pela

exibição do cadáver da vítima, mas ‘borrada’ por edição gráfica, algo que marca uma diferença

temporal no jornalismo popularesco: outrora, corpos eram exibidos explicitamente. Há também

a utilização de plano-sequência no momento em que a correria dos motoristas na avenida Brasil

se inicia.

Com as edições devidamente apresentadas, a partir das nossas considerações empíricas,

iniciaremos as análises com base no escopo teórico levantado nos capítulos anteriores da

presente pesquisa.

4.7.9 Balanço Geral – 3ª edição: O “suspeito” que invadiu salão e matou a mulher

Também transmitida em 2014, mais precisamente no dia 21 de maio, a edição carioca

do Balanço Geral apresentou uma reportagem que versava sobre o assassinato de uma

manicure, que supostamente teria sido morta por seu ex-companheiro. O tempo total da

97

reportagem, sem os comentários do apresentador e do comentarista, é de 2’24”.

Ao começar a falar sobre a reportagem, o apresentador Rogério Forcolen diz: Ex-

companheiro vai lá onde a mulher trabalhava, no Leblon, num salão de beleza. Com uma faca

de cozinha mata a mulher. Depois, numa tentativa de... De tirar a própria vida, porque depois

ele vai alegar no tribunal que teve um surto, né? Então isso aí já faz parte de uma tática até de

defesa. O Denis Queiroz conta mais pra você. Então a reportagem entra com os dizeres do

repórter: Moradores do Leblon, um dos metros quadrados mais caros do Brasil, pararam

assustados em frente a galeria que serviu de cenário para o crime.

Decorrem imagens do crime e o repórter apresenta a identidade da vítima – como a

reportagem foi gravada na noite anterior ao dia em que foi ao ar, já de início o repórter informa

a identidade da vítima, algo distinto em relação ao Aqui Agora, uma vez que as reportagens da

atração do SBT acompanhavam o desdobramento da cobertura do crime quase que em tempo

real. Então a edição mostra a imagem da mãe da manicure, em prantos, exibida em primeiro-

plano. Também são mostradas amigas da vítima, em plano-médio. O repórter também informa

que, após matar sua ex-companheira, o assassino tentou se suicidar e foi levado ao hospital em

estado grave.

A edição volta para o estúdio. Então o apresentador inicia seus comentários, que

durariam 2’14”. Diz Rogério Forcolen: Esse é o problema, elas resolvem dar a segunda chance.

Um cara que já é agressivo, que já agride a mulher da primeira vez, ou ele vai fazer um

tratamento psiquiátrico... Na minha opinião, né?! E experiência de 25 anos na comunicação.

Já trabalhei dentro da Segurança Pública também. Ou ele vai fazer um tratamento sério

psiquiátrico, psicanálise, alguma coisa. Até medicação, e aí quem vai determinar é o médico.

Ou não adianta você... Tem um surto, bate na mulher (apresentador soca uma mão na outra),

soca ‘la pau’, aí passa um tempo: ‘Ah, meu amor, me perdoa’. Eu sou casado há 16 anos, nunca

houve agressão física nenhuma! Briga, sim: ‘Ah, pô, não enche o saco’. Mas o que fica é a

grande parceria que eu e minha esposa temos. Agora, porrada, você perder a cabeça e sentar

a porrada, a segunda chance que ele tiver ele vai fazer de novo. E a moça diz ali na reportagem:

‘Eu não sei o que aconteceu’. O sentimento de posse, minha querida. O sentimento de posse

aliado à impunidade. Eles assistem o jornal. Nesse momento, enquanto o jornal está no ar,

alguma mulher em algum canto do Rio de Janeiro está sendo agredida. Eles estão assistindo o

jornal: ‘Tá vendo, ó? Eu vou te matar’. O sentimento de impunidade é grande. Aí ele vai dizer

que se esfaqueou. Isso é premeditado, ele foi lá exatamente pra fazer isso. Durante a fala do

apresentador, o enquadramento varia entre plano médio e primeiro-plano, além de também

98

exibir imagens da cena do crime.

Com todas essas características lançadas acima a partir de nossos olhares, os programas

integrantes de nosso corpus de pesquisa mantiveram uma fórmula popularesca ao longo dos

anos de exibição, muito por conta de uma projeção de ethos peculiar a cada um deles. Embora

os três pertençam ao mesmo gênero – telejornalístico informativo –, cada atração aparenta ter

articulado estratégias ethópicas distintas entre si, o que nos parece conferir relevância no estudo

que vislumbre como um mesmo gênero pode se desdobrar em estratégias midiáticas distintas.

Ao longo das análises, buscaremos pontuar essas diferenças que se desdobraram ao longo dos

anos em que cada programa esteve/está no ar.

Após apresentarmos todas as edições a partir de nossas visões, no próximo capítulo

iniciaremos as análises a partir de todo o escopo teórico apresentado até aqui, na tentativa de

respondermos como cada programa projetou sua identidade ethópica ao longo de sua veiculação

na televisão brasileira.

99

CAPÍTULO 5 – ANÁLISES DOS OBJETOS EMPÍRICOS

Após indicarmos os direcionamentos e o escopo teórico da pesquisa, iniciaremos as

análises. Pretendemos aqui retomar as características indicadas anteriormente em nossos

olhares aos objetos empíricos, no propósito de percebermos como a identidade discursiva do

jornalismo televisivo popularesco se conformou em cada uma das três edições selecionadas

para análise.

Cumpre-nos esclarecer que buscaremos depreender a identidade ethópica dos

programas popularescos a partir da releitura do ethos retórico, sob a perspectiva de Dominique

Maingueneau (1989), com o conceito realocado nos quadros teóricos da análise do discurso de

tradição francesa. Interessa-nos colocar, assim, que observaremos esse ethos a partir das marcas

de oralidade projetadas na enunciação de cada uma das peças jornalísticas dispostas como

objetos de análise nesta pesquisa.

Nesse caminho, organizaremos nosso protocolo de análise tomando por base duas

frentes conceituais: na primeira delas, olharemos para as atrações a partir dos elementos de

composição sonoro-imagéticos X provas e argumentos retóricos X efeitos de verdade que

articulam sentido; na segunda frente, imbricaremos às análises os elementos linguístico-

discursivos que atuam na conformação ethópica através do conceito de paráfrase.

5.1 IMAGEM, SOM E RETÓRICA

Começaremos nossas observações a partir de uma breve organização para cada

programa. Após essas considerações, ao final do presente item lançaremos luz ao que

vislumbramos sobre cada atração, na tentativa de apresentar como o ethos das três atrações de

projetou ante aos conceitos observados.

Inicialmente, direcionaremos nosso olhar para os enquadramentos dispostos nos

programas, uma vez que este favorece a forma de contar história por parte do produtor da

imagem – aqui representada pelas reportagens dos programas. Com isso, pretendemos entender

como o ethos de cada peça jornalística se projetou a partir de tais conceitos.

5.1.1 Enquadramentos e tomadas de câmera

Embora as edições do Documento Especial contemplem durações superiores em relação

as reportagens selecionadas dos demais programas, indicamos que olharemos para o programa

a partir nos momentos em que as reportagens, tão somente, são exibidas. Isto posto, voltaremos

nossas observações aos enquadramentos de câmera, visando entender como os produtores dos

100

programas pensaram em compor o conteúdo imagético de cada atração. Os percentuais

informados decorrem de estimativas que fizemos conforme nossas ponderações acerca do

enquadramento disposto nas edições. Ressaltamos que são estimativas por conta da dificuldade

em precisar planos que são alternados durante as reportagens; em algumas delas, por exemplo,

na mesma cena ocorre aproximação ou distanciamento no enquadramento.

5.1.1.1 Plano geral

No Documento Especial, todas as edições utilizam o plano geral, principalmente durante

a exibição das cenas que abrem ou fecham as reportagens. Na edição Guerra Social, o plano

geral ocupou cerca de 15% do tempo total da edição, no qual representou algumas cenas como:

a “invasão” das praias por parte dos “excluídos” da sociedade, os assaltos cometidos por

menores de idade, e os momentos em que mostra os moradores descendo a favela em contraste

aos policiais que subiam. Em Os Pobres vão à Praia, segunda edição em ordem cronológica, o

plano geral foi trabalhado em 15% da edição, aproximadamente. Com ele, o programa

apresentou imagens dos moradores dos bairros carentes na viagem de ida à praia, quando

chegam na praia e mesmo na viagem de volta da praia, e a entrevista com os frequentadores da

praia – talvez o ponto alto do programa, que mais gerou repercussão por conta das “cenas de

preconceito explícitas”. Por fim, em Noites Cariocas, o plano geral ganhou mais espaço na

edição, ocupando cerca de 20% do tempo total. Com o uso deste plano, o programa apresentou

a violenta noite carioca a partir de pontos específicos: os homens que discutiam entre si na rua;

as travestis que se exibiam em busca de clientes; os frequentadores de um vazio salão de bilhar;

e ciclistas noturnos, que se “reconciliavam” com cidade.

Já no Aqui Agora, a primeira reportagem, de 07/06/94, apresenta um percentual

aproximado de 35% de projeção imagética com base no plano geral. Nela, o plano foi utilizado

para demonstrar as cenas que envolviam o assalto ao carro-forte que vitimou um vigia. Isso se

observa no momento da ida ao local do crime, no próprio lugar em que o crime ocorreu, na qual

é possível observar o carro virado e a escuridão do barranco em volta, e mesmo no hospital, já

ao final. Na segunda edição observada, de 13/02/1995, esse percentual cai para 20% do tempo

aproximado. O plano é utilizado para ilustrar o cenário de perseguição da polícia aos

criminosos, também no momento em que estes estão algemados na viatura, já na parte final,

quando, em poucos segundos, o plano geral revela a esposa do policial assassinado sendo

confortada por uma outra mulher, bem próximo ao carro do vítima e, por fim, quando o repórter

está no hospital para informar o estado de saúde dos envolvidos. A última edição do Aqui Agora,

101

de 23/03/1995, aumenta o uso do plano geral em comparação à edição anterior, trabalhando

com ele por cerca de 40% do tempo total da reportagem. Isso decorre em praticamente todos os

momentos da edição: durante a ida dos policiais e da equipe de reportagem ao primeiro local,

em que um suspeito teria sido avistado; na sequência dessa busca, a um novo local; nos

momentos em que os policiais interrogam o tio da vítima e uma suposta conhecida; e mesmo

no momento final da edição, com o repórter já no pronto socorro.

No terceiro programa observado, o Balanço Geral, essa utilização parece ser distinta. A

primeira reportagem, de 05/03/2014, apresenta pouca utilização do plano geral, com

aproximadamente 15% do tempo total, ilustrando a rua em que o carro roubado estava. Na

segunda edição, de 25/04/2014, esse percentual aproximado sobe para 40% do tempo da

reportagem, no qual é mostrada a avenida Brasil, cenário do assassinato do professor de

Educação Física. A terceira edição, de 21/05/2014, contempla também 15% em plano geral,

exibindo, principalmente, a rua em que a manicure fora morta.

Nenhuma das três atrações privilegiou o plano geral em comparação aos demais planos

de enquadramento. Em média, o Documento Especial trabalhou com 16,7% do tempo total das

três edições com o plano geral; o Aqui Agora aumentou esse percentual na média de suas 3

edições, com um percentual de uso de 31,7%; o Balanço Geral, por sua vez, apresentou 23,4%

do tempo total das reportagens em plano geral.

5.1.1.2 Plano médio

Em Guerra Social, o plano médio perpassa cerca de 40% do tempo total da reportagem.

O plano recobre boa parte do programa: no trecho em que os rapazes que teriam cometido um

arrastão e são interrogados pela polícia, por exemplo, e em diversos momentos da edição em

que transcorrem movimentos. Já em Os Pobres vão à Praia, este percentual ocupou também

cerca de 50% do tempo total da edição, trabalhado em cenas que mostravam o interior do ônibus

que rumava à praia de Copacabana, no percurso dos “pobres” dentro do supermercado e mesmo

das pessoas na praia. Em Noites Cariocas, entendemos que o plano médio foi utilizado em 35%

da edição, aproximadamente. Nas cenas em que todos os crimes ocorrem é trabalhado mais o

plano médio mesmo, exibindo os personagens dessa violenta noite carioca do joelho para cima

quando em suas ações: os rapazes discutindo, os policiais, quando em confronto quando estão

recolhendo corpos, e mesmo os entrevistados.

Na primeira edição do Aqui Agora, o plano médio é utilizado em cerca de 40% do tempo

total da reportagem. Isso ocorre, principalmente, nas cenas em que há sequência de imagem

102

sem cortes – veremos mais sobre plano-sequência no próximo item. Na segunda edição do

telejornal do SBT, esse percentual chega a 35%, também evidenciado pelas sequências na

reportagem, e mesmo quando o repórter conversa com policiais e com os criminosos. Já a última

edição do Aqui Agora trabalha com aproximadamente 40% do tempo total da reportagem em

plano médio. Vislumbramos esse plano nos momentos em que decorre a perseguição do repórter

e da polícia aos locais em que há informações de suspeitos; em alguns dos momentos em que

os policiais interrogam conhecidos dos suspeitos; e mesmo ao final, em alguns momentos em

que Herbeth de Souza, o repórter, está no pronto socorro.

Com relação ao Balanço Geral, o plano médio, na primeira edição, ocupa um percentual

aproximado de 30% da reportagem, sobretudo nos momentos em que os criminosos são

mostrados já presos. A segunda edição compreende, aproximadamente, 40% do tempo total da

reportagem enquadrada em plano médio. Isso pôde ser observado em momentos de alternância

entre plano médio e plano geral, nas ocasiões em que a edição busca demonstrar o cenário posto

na avenida Brasil interditada após o assassinato do professor de Educação Física, e o posterior

arrastão ocorrido. A última edição do programa da Rede Record utilizou 25% do tempo total

enquadrado em plano médio. Essa utilização do plano médio foi empenhada nas cenas em que

populares acompanham o trabalho dos policiais e bombeiros na rua em que o corpo da manicure

estava; na chegada da mãe da vítima ao local do crime e no momento em que a equipe de

reportagem mostra, através de um vidro, o possível atirador, ex-companheiro da vítima, sendo

levado pelo resgate após tentar o suicídio.

Ainda sobre o plano médio, concluímos que o Documento Especial trabalhou com

41,7% de seu tempo total nas 3 edições; o Aqui Agora, nas 3 reportagens observadas, projetou

suas imagens em 38,4% do tempo total em plano médio; o Balanço Geral, por sua vez, dedicou

31,7% do tempo total de suas reportagens ao plano médio. Estes números nos trazem a

percepção de que o plano médio foi o mais utilizado no Documento Especial e no Aqui Agora.

Isso, talvez, venha ao encontro da maior utilização do plano-sequência por estes dois

programas.

5.1.1.3 Primeiro plano

O primeiro plano, empregado no sentido de buscar destaque a determinado objeto ou

detalhe, foi utilizado em proporções semelhantes ao longo dos três programas, exceto em uma

das edições, conforme veremos.

103

A primeira edição do Documento Especial trabalhou com 45% do tempo total em

primeiro plano. Isso pode ser notado nas entrevistas realizadas com os traficantes; com o

policial que se queixava do salário; com o funcionário da creche; e ao final, quando o programa

ouve um filósofo e um policial. Nesse detalhamento do primeiro plano, chama a atenção

algumas cenas: a pessoa que aparece sendo queimada viva, a arma do policial e a arma do

traficante. Na segunda edição, o programa trabalha com aproximadamente 35% do tempo em

primeiro plano, principalmente nas entrevistas com os frequentadores da praia, com os ‘pobres’,

e na exibição de alguns detalhes, como o cadáver do vereador que fora assassinado em uma das

viagens de ida à praia. A terceira edição, por sua vez, trabalhou com o primeiro plano em cerca

de 45% do tempo total. A maioria das entrevistas foram enquadradas também em primeiro

plano, além dos seguidos enfoques nos cadáveres do traficante e do policial, ambos

assassinados, e no sofrimento da mãe do traficante.

A primeira edição do Aqui Agora projetou a reportagem em primeiro plano por cerca de

25% do tempo total, sobretudo nas cenas em que aproxima a imagem do vidro e da lataria do

carro-forte, ambos atingidos por tiros, além da forte cena da mancha de sangue sobre o mesmo

veículo. Na segunda edição, contudo, esse percentual de uso do primeiro plano sobe para 45%

do tempo total, aproximadamente. Observamos isso nas entrevistas que o repórter Tony Castro

faz com os criminosos na viatura da polícia; quando conversa com os próprios policias; e na

cena que mostra o carro de um policial assassinado, em que há o enquadramento em primeiro

plano no próprio veículo e na viúva do policial. Na terceira edição, o Aqui Agora trabalha com

20% do tempo total em primeiro plano: nas cenas em que o marido da escrivã sequestrada se

lamenta – 2 cenas: a primeira em um carro; a segunda já no pronto socorro após saber do

falecimento de sua esposa; e nas cenas em que a edição mostra o interrogatório dos policiais

aos conhecidos dos suspeitos.

Já no Balanço Geral, essa cobertura em primeiro plano se monta da seguinte maneira:

55% do tempo total na primeira reportagem, visto nos momentos em que a repórter faz a

passagem e o delegado dá entrevista, além das cenas aproximadas do vidro do carro com marcas

de tiro. A segunda edição projeta a reportagem com cerca de 20% do tempo total enquadrada

em primeiro plano, no qual destacamos a exibição do cadáver do professor de Educação Física

– corpo exibido sob técnicas gráficas que não permitem a perfeita visualização da imagem. Por

fim, a terceira e última edição do programa parece ter trabalhado com 60% do tempo total em

primeiro plano, algo notado a partir das 4 entrevistadas enquadradas em proximidade, da

104

passagem do repórter e de alguns segundos em que a imagem se aproxima do rosto da mãe da

vítima.

Em suma, o Documento Especial enquadrou as imagens em 41,6% do tempo em

primeiro plano, na média das três edições observadas; o Aqui Agora, por si, trabalhou com o

plano médio em 30% do tempo médio nas reportagens selecionadas em nossas análises; já o

Balanço Geral projetou seu conteúdo imagético em primeiro plano por cerca de 45% do tempo

total nas reportagens observadas, privilegiando este como seu plano de enquadramento mais

utilizado.

5.1.1.4 Plano-sequência e câmera nervosa

No Documento Especial, notamos a utilização do plano-sequência na edição Guerra

Social em três oportunidades: na primeira delas, o plano é colocado por 1’28”, mostrando os

rapazes, que teriam cometido um arrastão na praia, sendo interrogados por um policial –

imagem essa enquadrada em primeiro plano; a câmera percorre cada suspeito, exibindo-os

quando são questionados, e enquadra o policial quando este faz as perguntas. Há um outro

momento, de 41” de plano-sequência, quando o repórter – que não se aparece em momento

algum – desce do veículo da emissora e segue os policiais que adentram a favela; essa

movimentação da câmera, que desembarca do veículo e persegue os policiais, projetando uma

imagem tremida, de movimento sequencial, é considerada como câmera nervosa, conforme

apontamos no capítulo anterior. Após um corte, há um novo plano-sequência de 36” que mostra

a câmera seguindo os policiais que correm no morro para se esconder, após o início de uma

troca de tiros – estes dois planos-sequência enquadrado em variações, mas majoritariamente em

plano médio; em ambas há o recurso da câmera nervosa.

A edição Os Pobres vão à Praia não contempla planos-sequência. A terceira edição,

contudo, apresenta o plano-sequência por duas vezes: na primeira, de 22”, a câmera percorre a

movimentação narrada por Roberto Maya, mostrando em sequência o relatado: Uma mancha

de sangue no chão, o para-brisa quebrado e os corpos estendidos no bar – imagem

completamente enquadrada em primeiro plano (vide figuras 6, 7 e 8). Outro momento, também

de 22”, mostra policiais revistando o carro de um suspeito – aqui enquadrado em plano médio.

105

Figura 8 – Uma mancha de sangue no chão...

Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)

Figura 9 – O para-brisa quebrado...

Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)

106

Figura 10 – E os corpos estendidos no bar

Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)

No Aqui Agora, o expediente técnico do plano-sequência foi amplamente utilizado. Na

primeira reportagem analisada há 4 planos-sequência observados: o primeiro, de 41”, mostra o

repórter desembarcando do carro da emissora e indo ao encontro do policial que acabara de

chegar; no segundo, de 52”, o repórter desce do carro novamente, mostrando o caminhão

utilizado para bloquear a pista no assalto ao carro-forte; o terceiro, de 49”, já mostra o carro-

forte tombado em um penhasco, com detalhe nas manchas de sangue do vigia e nas marcas de

tiro no vidro blindado; a última, de 55”, acompanha o repórter descendo do veículo da emissora

e se dirigindo a um carro roubado, que havia sido utilizado na fuga dos criminosos, também

com detalhe nas manchas de sangue que estão no banco traseiro – estes 4 plano-sequência

atuaram junto ao expediente da câmera nervosa.

A segunda reportagem contempla 6 planos-sequência: o primeiro, de 46”, mostra o

veículo da emissora seguindo as viaturas policiais, também revelando a conversa do repórter

com a redação via rádio comunicador; o segundo, de 43”, mostra o repórter desembarcando do

veículo da emissora e indo ao encontro de um bombeiro, finalizando com o repórter voltando

rapidamente ao veículo do SBT para seguir a busca pelos criminosos; já o terceiro, de 41”,

mostra o repórter descendo do carro de novo, caminhando até a viatura policial, e entrevista os

criminosos – já algemados – e os policiais; o quarto plano-sequência, de 1’08”, mostra o

repórter conversando com o policial enquanto caminham; o quinto, de 1’23”, exibe o carro do

policial morto, dando enfoque nas marcas de tiro e nos vidros já estilhaçados, além de o repórter

107

perguntar ao irmão do assassinado se o atirador era conhecido – chama a atenção neste plano-

sequência o momento em que o repórter Tony Castro informa que o criminoso estava morto, ao

que uma das mulheres responde: O cara morreu? Bem feito!; o sexto e último plano-sequência

recobre 1’ e mostra o choro da viúva que observa o carro onde seu marido fora assassinado – a

segunda e a terceira tomadas em plano-sequência utilizaram a câmera nervosa.

Por fim, a terceira reportagem do programa do SBT também utilizou planos-sequência:

na primeira, de 32”, a câmera, que mostrava o repórter Herbeth de Souza, se dirige ao veículo

do esposo da sequestrada e, a pedido do próprio repórter, tenta mostrar o rapaz em desespero;

o segundo plano-sequência, de 1’, mostra o repórter descendo do carro e seguindo os policiais

correndo, dizendo que era o Aqui Agora na marca da exclusividade; o terceiro, de 1’40”, já

mostra o repórter no carro da emissora, informando o falecimento da sequestrada e ressaltando

ser na marca da exclusividade; o quarto, de 58”, mostra o repórter indo em direção ao carro da

polícia e colocando o microfone no rádio da viatura, mostrando as informações que eram

passadas aos policias sobre o caso, além de chamar o câmera para acompanha-lo na

perseguição; o quinto e último plano-sequência, de 1’58” – o mais longo da reportagem – exibiu

o repórter descendo do carro da emissora, seguindo os policiais até a casa do tio de um dos

suspeitos, mostrando o microfone do repórter na boca dos policiais, durante o interrogatório, e

depois o mesmo com uma suposta amiga deste mesmo suspeito – neste último plano, chama a

atenção um enquadramento em close na arma de um dos policiais, enquanto este interroga o tio

de um dos suspeitos; os planos 2, 4 e 5 decorreram junto à câmera nervosa.

Figura 11 – O close na arma do policial que interrogava o tio de um dos suspeitos

Fonte: Aqui Agora – edição de 23/03/1995 (1995, SBT)

108

Por fim, no Balanço Geral detectamos somente um único plano-sequência nas 3 edições

analisadas: na reportagem de 25/04/2014, há um plano-sequência de 52”, em que a câmera

percorre a avenida Brasil congestionada, seguindo os policiais que buscavam criminosos.

Em linhas gerais, o Documento Especial trabalhou com um total de 3’29” de plano-

sequência nas edições analisadas; o Aqui Agora já despendeu um incrível tempo de 24’16” do

tempo total em plano-sequência; o Balanço Geral, contudo, só utilizou 52” de plano-sequência

ao longo das três reportagens.

Com tais dados levantados a partir dos planos de enquadramento e do plano-sequência,

enxergamos algumas semelhanças e alternâncias no ethos das três atrações. Nenhum dos

programas privilegiou o plano geral como principal forma de enquadramento, o que pode

revelar uma menor preocupação em apresentar o contexto geral do fato retratado. Já em relação

ao plano médio, Documento Especial e Aqui Agora privilegiaram este tipo de enquadramento

em suas edições, mesmo durante os planos-sequência mobilizados. Isso, em nosso

entendimento, já configura um ethos de proximidade do fato mostrado ao telespectador, através

de uma retórica imagética que favoreça um sentido de indignação, de impunidade ou policial.

O primeiro plano, por sua vez, é privilegiado no Balanço Geral, embora o Documento Especial

e o Aqui Agora também tenham trabalhado com ele em percentual quase igual ao do plano

médio. O primeiro plano, trabalhado em tal proporção pelos programas, parece revelar um

enfoque maior em um personagem – os conflitos, as mortes, as perseguições e/ou o resultado

destes – do que ao contexto geral da situação que envolve o fato relatado. Isso, acreditamos,

engendra um ethos que reside na essência dos fait divers, conforme as pontuações de Barthes

(1964): o interesse pelo inusitado, o além da notícia que se desdobra nela mesma. Daqui,

enxergamos privilégios às representações da violência e da indignação, fundamentalmente.

Esses expedientes, quando unidos ao plano-sequência, revelam algo ainda mais

interessante: no Documento Especial, os planos-sequência mostram a cena da chacina ocorrida,

da chegada dos policiais ao morro, em que são recebidos a tiros – e aqui a câmera nervosa

mostra a correria dos policiais para se esconderem dos tiros disparados –, da revista do policial

ao suspeito e do policial que conversava com suspeitos de terem praticado arrastões em uma

praia, com enquadramentos realizados, quase na totalidade do tempo do plano-sequência, em

plano médio; daqui, é possível perceber um possível interesse do programa em justificar seu

subtítulo – Televisão Verdade – através da reprodução do cenário da violenta noite carioca e

dos conflitos entre os “inseridos” e os “rejeitados” da sociedade – neste último com os policiais

agindo para garantir a segurança dos “inseridos” contra a “revolta” dos “excluídos”, o que nos

109

leva a uma projeção ethópica baseada na ‘realidade’ dos temas projetados – algo que, conforme

ponderou Nelson Hoineff, não era exibido na televisão brasileira até então.

No Aqui Agora, o plano-sequência foi trabalhado por 15 vezes, entre pequenos cortes

nas reportagens, buscando uma aproximação da câmera como observadora dos acontecimentos

prementes aos cenários de perseguição; essa impressão nos leva a observar que o telejornal

buscou ao máximo aproximar o telespectador das cenas em que transcorreram perseguições,

idas aos hospitais para constatar saldo final de mortes e feridos e, principalmente do trabalho

policial. Desde a coloração das legendas, que seguiam as mesmas cores da Polícia Militar –

preto e vermelho, também cores presentes na bandeira do Estado de São Paulo –, a comunicação

do repórter com a redação via rádio – semelhante ao sistema de comunicação utilizado pelos

policiais –, a utilização da câmera nervosa, que treme junto aos passos do repórter

cinematográfico, e as perseguições junto aos próprios policiais parecem configurar um ethos de

‘justiceiro’ ao Aqui Agora, através dessa exibição da cobertura quase que ‘in loco’ dos policiais

ao receberem chamados dos crimes – vide os longos planos-sequência –; talvez essa relação de

proximidade também tenha de desdobrado e buscado identificação da audiência a partir do teor

popularesco do programa, uma vez que ali parecia projetado o cotidiano dos populares, uma

vez que, conforme trouxemos anteriormente na definição do dicionário Aulete, popularesco

“imita o que é popular”; termo também que, conforme os apontamentos de França (2009),

representa o povo, se destina a ele e lhe é característico; ou seja, essas representações de

proximidade com a busca pela justiça, junto aos policias, projeta uma representação do

sentimento dos populares, daí conformado um ethos popularesco, também baseado nos

meandros dos fait divers.

Por fim, o Balanço Geral parece demarcar algumas diferenças em relação aos demais

programas: suas reportagens, que privilegiavam o primeiro plano, exibiam imagens censuradas

por técnicas gráficas. O primeiro-plano utilizado também parece ter buscado aproximar o

telespectador à perseguição dos policiais aos criminosos que haviam roubado um carro, na

mesma avenida que, momentos antes, foi cenário da morte do professor. Aliado a isso, o

telejornal da Rede Record também manteve imagens centradas nos policiais, embora em menor

escala, e relevou enquadramentos curtos, com diversos cortes entre eles. Essas observações nos

levam a enxergar uma identidade ethópica que busca mais um teor objetivo, tentando não se

ater tanto às sequências que retratassem as perseguições. Soma-se a isso a não revelação

explícita dos cadáveres da manicure e do professor de educação física, entendemos que o

Balanço Geral alternou o ethos premente aos outros popularescos de décadas anteriores,

110

buscando mais uma objetividade jornalística, mas não deixando de recobrir suas reportagens

com elementos do popular.

5.1.2 Os efeitos sonoros

Nos três programas, pudemos observar também a utilização de efeitos e trilhas sonoras

que parecem ter agido em conjunto com as imagens no intuito de criar efeitos de sentido.

Em Guerra Social, a edição não apresentou uso de trilhas sonoras, mas um efeito sonoro

chama a atenção. No momento da chegada dos policiais ao morro, os barulhos de tiro se aliam

ao plano-sequência e à câmera nervosa do repórter cinematográfico, que se agita e corre em

busca de abrigo junto a um muro; aqui, portanto, nos parece haver uma projeção de ethos

baseado na dramaticidade da cena. Já em Os Pobres vão à Praia, as trilhas parecem ser envoltas

a efeitos de sentido. No início da edição, quando as imagens mostravam os “pobres” nos metrôs

e ônibus, rumo à praia de Copacabana, o conteúdo sonoro era preenchido pela música “O

Suburbano”, do músico Zé da Gaita. Dentre os trechos que são ouvidos pela audiência, está um

que diz: Adeus Padre Miguel, Honório Gurgel, adeus Japeri, Vila Rosali, a zona sul vou gozar

a vista pro mar; em Copacabana tudo é bacana, cerveja e batucada no bar do calçadão, fico

muito à vontade, ando só de calção. As referências aos bairros considerados de classe-média

baixa corresponde, naturalmente, àqueles que buscavam as praias da zona sul. Outras músicas

apresentadas na edição: “Praia de Ramos”, do sambista Dicró, e “Nós Vamos Invadir Sua

Praia”, do Ultraje a Rigor. Ambas reflete, tal qual a primeira música, o que faria parte do

cotidiano dos “pobres”: a saída do morro para ida à praia dos “bacanas”, na música do Ultraje

a Rigor, e a Praia de Ramos, antes utilizada pelos moradores locais, mas que fora interditada

em 1980 para o impedimento dos banhistas – o “Piscinão de Ramos”, somente seria inaugurado

em 2001. Tais expedientes sonoros, nos parece, buscam retratar os viajantes que rumavam à

praia de Copacabana na edição, e encontram laços na descrição de popularesco, como uma

representação do popular, ou seja, um ethos popularesco. Contudo, a última edição do

programa da Rede Manchete, Noites Cariocas, trabalha com efeitos e trilhas sonoras. No plano-

sequência que mostra o resultado da chacina ocorrida no dia anterior, entra no ar o áudio de

uma trilha musical de blues. O volume da trilha é abaixado para que Roberto Maya, enquanto

narrador, descreva a cena: Uma mancha de sangue no chão, o para-brisa quebrado e os corpos

estendidos no bar. Ao final da descrição, o corte vai para os transeuntes carregando o corpo do

traficante morto, e nesse momento a trilha sonora aumenta o volume, sendo perceptível escutar

as falas do cantor: Don’t never leave-me, please don’t tell say goodbye. Traduzida para o

111

português, a frase diz algo como Nunca me deixe, por favor não me diga adeus. Logo após essa

fala do cantor, o som perde um pouco de volume para dar voz à mãe que chora a morte do seu

filho, suplicando Meu filho, meu filho. Este trecho denota que o ethos do programa se

caracterizaria pela emoção causada pela cena, com o propósito de corroborar com o tema da

edição: a violência carioca e os personagens que dela fazem parte, mas que não pareciam

explorados por nenhum jornalístico até então.

No Aqui Agora, os expedientes sonoros percebidos reportagens analisadas parecem

corroborar com a ligação do programa a temas policialescos. Em todas as edições percebemos

efeitos como sirene de polícia, alto giro dos motores dos veículos – o que demonstra aceleração

–, barulho de freadas também dos veículo e, especialmente na segunda edição, a ênfase no choro

da esposa que presenciava o veículo em que seu marido fora assassinado. Com isso, a identidade

sonora do programa parece recobrir, tal qual nos pareceu no conteúdo imagético, um ethos de

justiceiro da sociedade, como um alguém que está lá para mostrar a perseguição aos criminosos

e os crimes cometidos. Aliado a isso, o teor dramático, oriundo do choro da viúva, pode

corroborar a esse ethos um sentimento de revolta da audiência para com os criminosos, o que

também se aplica na fala da mulher que declarou: O cara morreu? Bem feito!, tão logo soube

da morte do criminoso. Essa ideia pode ser corroborada a uma relação de causalidade da

reportagem – que entendemos ser um exemplo de fait diver: a ênfase da notícia é deslocada ao

que Barthes (1964) chama de dramatis personae: o áudio do pranto da viúva aliado à fala de

revolta da outra mulher, que demonstra alívio ao saber da morte do criminoso, pode avigorar o

estereótipo da morte dos criminosos – lembremos que na edição Guerra Social do Documento

Especial, de 1989, um policial já afirmava que Bandido bom é bandido morto.

Por fim, no Balanço Geral, o expediente sonoro parece ter sido concebido a partir das

trilhas dramáticas. Na edição de 21/05/2014, por alguns transcorre uma trilha que traz a ideia

de dramaticidade ao mostrado. Essa trilha é inserida antes de a reportagem entrar no ar, quando

o apresentador fazia comentários inicias sobre o assassinato; quando a reportagem é exibida, a

trilha não é retirada – percebemos ser a mesma utilizada quando o apresentador comentava o

assassinato –, permanecendo no ar por cerca de 30” antes de sair em definitivo. Essa carga

sonora parece projetar um ethos de dramaticidade, que visa a credibilidade, ao telespectador,

baseado nas imagens da manicure morta e na trilha – quando ainda inserida na edição.

112

5.1.3 Argumentos e provas retóricas na projeção de uma ‘verdade’ discursiva

Dentre as conceituações teórico-metodológicas que levantamos até aqui, trouxemos

alguns elementos da retórica aristotélica, como argumentos e qualidades que conferem

legitimação ao discurso do orador. Na sequência da pesquisa, observaremos as provas retóricas

inartísticas apresentadas por Aristóteles (2005) – a saber: ethos, pathos e logos – com base no

protocolo de análise anteposto, e nelas tentaremos enxergar qualidades e estratégias que visem

a persuasão no discurso. Uma vez que já descrevemos pormenorizadamente as três edições de

cada programa, sintetizaremos brevemente o contexto de cada uma delas, principalmente no

que tange ao sentido dramático e pathético, para depois conjurarmos nossas análises.

Voltando ao Documento Especial, apontemos a edição Guerra Social: o programa

apresenta uma dicotomia social entre os “excluídos” e os “integrados” da sociedade, da qual

emergiriam crimes como arrastões, assaltos e tráfico de drogas. Essencialmente, a temática do

programa transcorre conforme a apresentação de Roberto Maya: A guerra social brasileira

resulta da combinação de vários fatores, que vão do desemprego até a impunidade. Frustrado

com a falta de perspectivas, um exército de marginalizados parte para um combate sangrento

contra a indiferença das elites. Na apresentação dos conflitos gerados a partir dessa disparidade

social, o programa exibe, dentre outras cenas, imagens de pessoas – ainda vivas – jogadas em

uma fogueira após serem linchadas. Tais imagens podem ter sido projetadas no intuito de buscar

identificação com a audiência através da emoção. Em quase todos os programas observamos

essa questão, que abordaremos de forma mais amplificada quando nas análises.

Figura 12 – Pessoas atiradas em fogueira após serem linchadas

Fonte: Documento Especial – edição Guerra Social (1989, Rede Manchete)

113

Em Os Pobres vão à Praia, a dualidade entre ‘ricos’ e ‘pobres’ se mostra latente no

discurso do programa. A atração adota uma produção jornalística baseada no ponto de vista dos

pobres: é mostrada a dificuldade que os ‘pobres’ teriam para embarcar nos transportes que

levam à praia de Copacabana; o preconceito que sofrem quando “invadem” uma praia que não

lhes pertenceria, de acordo com o retratado por parte dos frequentadores locais da praia de

Copacabana, e o regresso da viagem, no qual Roberto Maya encerra o programa: O fim de

semana acabou, a festa também. Agora é hora de retornar à realidade do dia-a-dia: a vida

dura de que mora nos distantes subúrbios cariocas. A necessidade de trabalhar impõe-se ao

prazer de uma praia distante e poluída. Uma praia difícil de se chegar, mais difícil ainda de se

sair e cheia de preconceitos. Conforme apontamos anteriormente, nas imagens de uma viagem

de ida à praia de Copacabana, a edição traz uma cena chamativa em que revela o assassinato de

um vereador, que teria reagido a um assalto. Novamente, enxergamos aqui um elemento que

busca despertar a emoção da audiência.

Figura 13 – O vereador morto após, supostamente, reagir a um assalto no ônibus

Fonte: Documento Especial – edição Os Pobres vão à Praia (1990, Rede Manchete)

Por fim, em Noites Cariocas o cerne da edição parece ser apresentar ao telespectadores

os meandros de uma noite violenta que ocorre na cidade do Rio de Janeiro. O apresentador

Roberto Maya compendia a que se referia a edição: A cidade, que é maravilhosa durante o dia,

enfrenta noites de terror, onde o que não falta são crimes e conflitos. Tão logo a fala do

apresentador termina, são exibidas imagens que ilustram o que seriam esses crimes e conflitos

114

enunciados. Portanto, já no início da edição há imagens que podem atingir o aspecto emocional

do telespectador.

Figura 14 – O primeiro cadáver exibido na edição

Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)

Figura 15 – O segundo cadáver apresentado ainda na abertura do programa

Fonte: Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)

115

No Aqui Agora, as três edições transcorrem em perseguições policiais, no qual o

repórter, junto ao veículo da emissora, participa ativamente. A primeira delas, de 1994, mostra

a perseguição da polícia a criminosos que haviam roubado um carro forte. Decorre daí toda a

sequência: o repórter logo atrás dos policiais em toda a reportagem, até o momento em que

finaliza no hospital, informando a morte do vigia. Uma das tomadas em close exibe as manchas

de sangue que seriam do vigilante morto no assalto – talvez, na tentativa de causar o espanto

pela emoção.

Figura 16 – As manchas de sangue no carro-forte

Fonte: Aqui Agora – edição de 07/06/1994 (1994, SBT)

A segunda edição mostra a perseguição dos policiais – novamente seguidos pela equipe

de reportagem do programa – a criminosos que teriam baleado um policial, em suposta troca de

tiros. Transcorre a edição nessa toada, com o repórter pedindo informações aos policiais a cada

parada. Já na parte final, após toda a perseguição, a reportagem mostra outro crime – também

seguido pelos policiais que eram acompanhados pela equipe do Aqui Agora –, no qual um

policial fora assassinado por criminosos. Neste trecho, chama a atenção o enfoque que a edição

dá no sofrimento da mulher do policial morto, centrando a imagem em close e dando ênfase ao

seu pranto – imagem que pode buscar apelo junto à audiência pelo emocional. Também finaliza

com o repórter no hospital, anunciando a morte de um policial e de um criminoso.

116

Figura 17 – A aproximação da imagem na viúva do policial

Fonte: Aqui Agora – edição de 13/02/1995 (1995, SBT)

A terceira edição do Aqui Agora também transcorre em perseguição de policiais – tal

qual ocorrera nas edições anteriores. No caso desta reportagem, a perseguição se deu a

criminosos que teriam sequestrado uma escrivã da polícia. Na sequência, o repórter, sempre

seguindo os policiais, adentra matagais e casas e declara que o exibido era proveniente da

Marca da exclusividade. Após mostrar policiais interrogando um tio de um dos supostos

criminosos, a edição apresenta imagens de manchas de sangue encontradas no banco do carro

da escrivã – recorrência mais uma vez notada, talvez para apelar ao emocional da audiência.

Assim como nas edições anteriores, o repórter finaliza seu trabalho no hospital, anunciando a

morte da escrivão.

117

Figura 18 – Manchas de sangue que seriam da escrivã sequestrada e assassinada

Fonte: Aqui Agora – edição de 23/03/1995 (1995, SBT)

Por fim, nas três edições do Balanço Geral trabalham a violência social a partir da

subjetividade dos sujeitos-jornalistas, ao que nos parece. Na primeira edição, não há imagens

marcantes tal qual nos programas anteriores, mas há um comentário chamativo, proferido pelo

comentarista de segurança Renato Lombardi: É impressionante o número de menores

envolvidos em crimes nos últimos 2 anos em São Paulo. Triplicou o número de menores

envolvidos. É essa história: vai pra Fundação (Casa) e volta, vai e volta, e quando volta, volta

pior. À primeira vista, conforme colocamos no capítulo anterior, o sentido parece se colocar a

partir da autoridade do comentarista.

Na segunda reportagem é relatado o assassinato de um professor que teria reagido a um

assalto em um ônibus. O apresentador Wagner Montes conversa com o repórter responsável

pela matéria e parece tecer suas impressões com base em verdade de opinião comum.

Entretanto, também há uma registro imagético que pode causar apelo junto à audiência quando

é exibido o cadáver do professor morto – imagem censurada por técnicas gráficas.

118

Figura 19 – O cadáver do professor que teria sido morto por reagir a um assalto

Fonte: Balanço Geral – edição de 25/04/2014 (2014, Rede Record)

A terceira e última reportagem do Balanço Geral mostra um crime em que uma

manicure fora assassinada, supostamente, por seu ex-companheiro. Não há exibição de imagens

mais fortes na reportagem, mas o comentário do apresentador remete à verdade de opinião

coletiva, conforme veremos a seguir.

Em vista dos breves apontamentos que fizemos acima, entendemos que o discurso do

Documento Especial parece ter perpassado algumas estratégias que visassem a construção da

imagem positiva de si junto aos enunciatários. Quando constrói um discurso baseado em

conflitos sociais – conforme vimos nas duas primeiras atrações – e em diferentes cenários de

violência que ocorrem na noite carioca – a terceira edição –, o programa parece buscar um ethos

crível quando não se posiciona ante a nenhum dos dois lados do conflito social mostrado, como

se ocupasse um lugar de investigação neutro. Isso pode demonstrar o que Aristóteles (2005)

entende por prova inartística do discurso (logos), pois o programa parece não se imiscuir em

nenhum lado, o que pode soar como verdadeiro para a audiência. Também entendemos que as

causas dos conflitos são apresentadas a partir do que Charaudeau (2012) coloca como verdade

de opinião coletiva, pois há um julgamento que nos parece denotar “excluídos” e “inseridos”

da sociedade, assim como a violência que se dissipa ao raiar do dia carioca.

Ainda no Documento Especial, enxergamos o uso de argumentos de casualidade

(FIORIN, 2016) no discurso do programa. Isso porque a atração parece indicar causas para as

questões colocadas nas três edições – os conflitos sociais e a violência na noite carioca – e as

119

escolhe conforme seus próprios interesses. Ou seja, pode ter escolhido representar a violência

social com base na dualidade entre ‘pobres’ e ‘ricos’. Além de técnica argumentativa, a

casualidade também é uma relação comum entre os fait divers, conforme os apontamos de

Barthes (1964). É nela que os estereótipos se intensificam, algo que parece perceptível no

Documento Especial também quando os cidadãos de baixa renda são tidos como “excluídos da

sociedade” e os frequentadores das praias apresentados como “inseridos na sociedade”.

Ainda nesse caminho de busca pela projeção de credibilidade baseada em efeitos de real,

a atração recobre seu discurso com o que Charaudeau (2012) chama de verdade de emoção,

observada nas imagens fortes que podem causar emoção na audiência: a imagem de homens

em chamas após serem linchados – um deles estava sendo queimado vivo (figura 12); o plano-

sequência trabalhado no momento em que os policiais sobem o morro do Borel e o repórter

cinematográfico que grita por socorro; a imagem do vereador morto após supostamente reagir

a um assalto (figura 13); o enquadramento em primeiro-plano da mãe que se desesperava ao

saber da morte do seu filho (figura 20); e os corpos apresentados logo no início da edição Noites

Cariocas (figuras 14 e 15). Isso porque a verdade de emoção pode causar esse efeito de verdade

justamente por inferir no sensível dos telespectadores. Nesse contexto, lembramos da definição

que Aristóteles (2005) confere à prova retórica da disposição dos ouvintes (pathos): “Os juízos

que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio”. Assim, atingidos

por essa emoção transmitida pelas imagens, o programa pode atingir sua credibilidade

discursiva, através de um ethos que se fortalece em ocorrências pathéticas.

Figura 20 – O desespero da mãe que presenciava o cadáver do filho

Fonte Documento Especial – edição Noites Cariocas (1992, Rede Manchete)

120

No Aqui Agora observamos diferentes projeções ethópicas. As três reportagens se

desenvolvem a partir do acompanhamento do repórter junto aos policiais nas perseguições a

criminosos, o que parece reportar verdades de opiniões comuns (CHARAUDEAU, 2012). Isso

porque as reportagens se constituem à base da dualidade entre policiais versus criminosos, e o

programa acompanha sempre os profissionais de segurança pública, possivelmente revelando

uma opinião de que os criminosos matam inocentes, tão somente, estabelecendo aí um sistema

de crenças que pode ser compartilhado pela maioria. Daí podemos também pensar na

casualidade como estrutura de articulação do programa enquanto um fait diver. Na terceira

reportagem analisada é possível observar uma relação de causa que envolve o assassinato de

uma policial; o fato de a mulher ser policial parece conferir essa importância à perseguição,

algo que foi trabalhado pelos produtores do programa e faz parte do argumento de casualidade

(FIORIN, 2016). Essas estereotipizações também são prementes à casualidade, conforme as

ponderações de Barthes (1964).

Além da verdade de opinião disposta, o programa também recorreu ao argumento de

autoridade no sentido de conferir ainda mais legitimidade ao seu discurso. Em todas as edições

os repórteres entrevistam policiais e profissionais de segurança pública, o que faz menção ao

argumento de autoridade (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Isso confere

legitimação ao discurso, pois utiliza pessoas de autoridade suficiente para comprovar o dito.

Ainda nesse sentido, podemos pensar no autor como ratificador do discurso, uma vez que para

Foucault (1999) esse autor, quando identificado, emprega um sentido maior ao discurso,

evitando seu cerceamento.

Nessa projeção de ethos baseada em opiniões compartilhadas e elementos de autoridade,

o Aqui Agora também parece fazer uso das verdades de emoção (CHARAUDEAU, 2012) em

busca de efeitos de verdade. O conteúdo imagético do programa pode ter buscado um teor crível

junto à audiência com expedientes de forte carga dramática, dos quais observamos: as manchas

de sangue exibidas em close no carro-forte tomado (figura 16); o enquadramento em primeiro-

plano esposa do policial que chorava por sua perda (figura 17); novamente, manchas de sangue

no banco do carro da escrivã assassinada (figura 18); o rosto do marido que acabara de receber

a notícia da morte de sua esposa (figura 21). De tal modo, o ethos do Aqui Agora também se

articulou com o pathos na busca por esse convencimento da audiência através do apelo

emocional.

121

Figura 21 – A expressão desconsolada do marido que soubera da morte de sua esposa

Fonte Aqui Agora – edição de 23/03/1995 (1995, SBT)

Por fim, enxergamos no Balanço Geral projeções ethópicas baseadas em efeitos de

verdade a partir de verdades de opinião distintas. Na segunda reportagem observada, que mostra

o assassinato do professor de educação física em um ônibus municipal, o apresentador Wagner

Montes baseia seus comentários em enunciados de valor geral, como quando diz: Vê aí, ó. Ó o

que eles estão fazendo, ó o terror que eles estão tocando. Eu ainda falo de novo sobre aquele

professor de Educação física, ali na Tijuca, que também foi assassinado de modo covarde por

dois vagabundos. Suas impressões parecem não trazerem maiores problematizações, mas sim

remetem à dualidade – anteposta pelo Aqui Agora – ‘não se matam inocentes, são vagabundos’.

Isso denota uma verdade de opinião comum (CHARAUDEAU, 2012) mobilizada pelo

apresentador. Todavia, nas outras duas edições parece haver uma outra verdade de opinião. Na

primeira, o comentarista Renato Lombardi analisa a reportagem – que mostrava a prisão de

criminosos que teriam roubado um carro e trocado tiros com a polícia, com um menor entre os

envolvidos – afirmando que os menores que são detidos voltam às ruas, e que este ciclo se

mantém. Na terceira reportagem, o apresentador Rogério Forcolen comenta o assassinato

apresentado na reportagem – da manicure por parte do seu ex-companheiro, supostamente –

afirmando o crime ocorrera por conta de um sentimento de posse e da certeza da impunidade

por parte do assassino. As opiniões de Renato Lombardi e Rogério Forcolen parecem encontrar

respaldo no que Charaudeau (2012) entende por verdade de opinião coletiva, uma vez que

122

ambos os sujeitos-jornalistas emitem julgamentos sobre os atores – os menores e o ex-

companheiro da vítima – e os essencializam sob o viés da impunidade.

Tal qual no Aqui Agora, os sujeitos-jornalista, que se posicionam a partir de suas funções

profissionais, podem buscar projetar uma eficácia discursiva a partir do argumento de

autoridade (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005), o que pode inferir no logos da

atração. Ainda nesse sentido, as duas reportagens citadas acima – o assassinato da manicure e

o roubo do carro cometido por criminosos – também parecem investir em seu discurso

argumentos de casualidade. Em todas as edições as causas apontadas fazem menção a

estereótipos: o menor que cometeu o crime por saber que logo voltará às ruas e o homem que

matou sua companheira e arquitetou um possível falso suicídio para livrar-se da pena por ser

um criminoso certo da impunidade. Essa pode ter sido, portanto, as causas trabalhadas pelas

reportagens, conforme pontua Fiorin (2016), como essência do argumento de casualidade.

No que diz respeito à mobilização pathética, por meio do emocional da audiência, o

Balanço Geral parece ter apresentado a cena do professor morto (figura 19) como principal

expediente para esse fim. A exibição do cadáver também traz à tona a verdade de emoção

(CHARAUDEU, 2012), o que pode ocasionar um efeito de verdade com base nas reações

emocionais da audiência.

Essencialmente, entendemos que os três programas analisados apresentam projeções

ethópicas baseadas em verdades de opinião que se alternam. Ora as opiniões são comuns,

revelando enunciados de valor comum, como no Aqui Agora e em uma edição do Balanço

Geral; ora em verdades de opinião coletivas, baseada em julgamentos que parecem discutir

causas, mas se encerram em categorias que os essencializam, como em todas as edições do

Documento Especial e em duas edições do Balanço Geral.

Em comum entre os três programas temos as relações de casualidade, que os engendram

nos fait divers e parecem estereotipar os atores das reportagens. No Documento Especial, os

“pobres” e os “ricos” parecem demarcados dentro de seus espaços sociais; no Aqui Agora, a

relação entre policiais e criminosos parece emergir de uma dicotomia que representa a

segurança versus a criminalidade, em que atuar ao lado dos profissionais de segurança

tipificaria estar com a verdade; no Balanço Geral, essa relação de casualidade se coloca em

consonância com o estereótipo do criminoso como um alguém certo da impunidade, mesmo

que sejam menores de idade; não há, assim, uma maior apreciação das causas que levaram aos

crimes retratados pelas reportagens, pois nas três o espaço social dos indivíduos também parece

bem delimitado, entre policiais e sociedade de um lado, criminosos de outro.

123

Também em relação de consonância entre as três atrações está a mobilização dos

elementos pathéticos para a projeção de um ethos passível de credibilidade. Os dois primeiros

programas em ordem cronológica trabalharam com um conteúdo imagético de forte carga

dramática, apresentando cadáveres expostos sem qualquer tipo de censura (Documento

Especial) e manchas de sangue (Documento Especial e Aqui Agora), todos enquadrados em

primeiro-plano – o que, conforme vimos, busca ressaltar a dramaticidade da imagem. O

Balanço Geral também trabalhou com o expediente da verdade de emoção através do pathos,

mas com um tipo de censura técnica que não permitiu a visualização do cadáver em detalhes –

algo que parece demarcar uma diferença ethópica entre os três programas.

Seguindo por esse caminho, mobilizaremos a seguir alguns elementos que compõe o

campo teórico-metodológico da análise do discurso de tradição francesa, sempre com o intuito

de vislumbrarmos características que compões o ethos das três atrações observadas.

5.2 RECORRÊNCIAS DISCURSIVAS BASEADAS EM PARÁFRASES

Na segunda e última parte de nossas análises, observaremos as características dos

objetos empíricos com base em paráfrases atuantes no discurso dos programas – considerando

esta um dos tipos de funcionamento da formação discursiva (BRANDÃO, 2002), conforme

discussões trazidas no capítulo anterior desta pesquisa. Traremos essas observações sempre em

vista do nosso propósito neste trabalho: o de enxergarmos diferenças e semelhanças ethópicas

entre o Documento Especial, Aqui Agora e Balanço Geral.

Para nos auxiliar em tais observações, de início elencaremos alguns termos recorrentes

entre as edições – que engendram sentidos pelo pathos –, já trazendo a eles a configuração

ethópica interligada ao discurso dos programas.

5.2.1 A projeção ethópica a partir de termos compartilhados

No primeiro programa observado, o Documento Especial, alguns termos chamam a

atenção por, quando pensados em contexto, conduzir a um ethos específico da atração da Rede

Manchete. Vamos a eles, separando-os por edição:

Eu, preso, e os marginais soltos – Um morador na janela de seu apartamento, na abertura

da edição Guerra Social (ethos de indignação e ethos de impunidade);

Quando os ‘homi’ chega a gente dá neles memo – Traficante entrevistado pela equipe

do programa (ethos policial – que pode justificar a ação dos policias, sem detalhá-la);

124

Policiais recebidos com tiros – Roberto Maya, ao apresentar a reportagem dos policiais

que subiam ao morro do Borel (novamente, um ethos polcial);

Apreensão nos morros causou prejuízo ao traficantes – Roberto Maya, sobre o balanço

da atividade policial (pela terceira vez, um termo que justifica a ação dos policiais);

Criminoso não tem limite orçamentário – O policial explicando as dificuldades dos

policiais perante as ações dos criminosos (ethos de impunidade);

Bandido bom é bandido morto – Um policial falando sobre o que ele pensa do conflito

entre policiais X criminosos (tal declaração pode levar à crença de que todos os policiais

pensam assim, estereotipando-os);

Venho à praia da Zona Sul para estar junto dos meus – Um frequentador da praia de

Copacabana, falando sobre a “invasão” dos “pobres”;

População pensa duas vezes antes de sair de casa – Roberto Maya, na abertura da

edição Noites Cariocas (ethos de indignação);

Enquanto a cidade dorme, a polícia entra em ação – Roberto Maya, na chamada da

reportagem que mostraria a ‘rotina’ policial na noite carioca (ethos policial);

Todos assaltantes (eram) menores de idade – Roberto Maya, durante a narração de uma

reportagem que mostra um arrastão ocorrido em um prédio de Copacabana;

Sou preso do manicômio, não sou responsável pelos meus atos – Um suposto criminoso,

quando já algemado (ethos policial);

Clima de insegurança que tomou conta – Roberto Maya, sobre a noite carioca (ethos de

indignação);

Uma mancha de sangue no chão, o para-brisa quebrado e os corpos estendidos no bar

– Roberto Maya, descrevendo o resultado de uma chacina (ethos de violência);

Mãe que chora pela morte do filho – Roberto Maya, sobre a mãe do traficante que

presenciava seu filho morto.

A seguir, traremos alguns termos observados no Aqui Agora, que também parecem

lançar sentidos em um contexto amplo, conformando representações ethópicas:

Os ladrões são audaciosos – Repórter Carlos Cavalcanti (ethos de indignação);

Audácia por parte dos assaltantes – Novamente o repórter, repetindo o mesmo termo;

Grande movimentação dos policiais – Carlos Cavalcanti (ethos de justiceiro);

Dentro (do carro mostrado na imagem) tá cheio de sangue – Carlos Cavalcanti (ethos

de violência);

O Aqui Agora chegando junto – Repórter Tony Castro (ethos de justiceiro);

125

Policiais recebidos à bala – Repórter (ethos da justificativa da ação dos policiais)

Seu pai queria enfrentar a polícia, né? – O repórter Tony Castro pergunta ao entrevistar

um dos supostos criminosos (outra vez, um ethos que justifica a ação policial);

O Aqui Agora chega junto na marca da exclusividade (ethos de justiceiro ao programa);

O Balanço Geral, por sua vez, apresentou também alguns termos que parecem justificar

certas construções ethópicas, a saber:

Um crime com 4 vagabundos! Eu falo vagabundo mesmo. Cidadão é quem trabalha

para sustentar a família – O apresentador Wagner Montes, comentando a reportagem sobre o

assassinato de um professor em um ônibus (ethos da indignação);

Só para a gente entender quem é cidadão nessa história: o dono do carro, esse sim é

cidadão, vítima da violência – O repórter Leonardo Lara, comentando a declaração do

apresentador e corroborando ao ethos desenhado;

Em vista das observações que fizemos acima, é possível depreender alguns sentidos

atuantes na constituição ethópica das três atrações. No primeiro programa em ordem

cronológica, o Documento Especial, enxergamos conformações de ethos que perpassam a

indignação que o programa parece demonstrar face ao cenário de violência e da situação social;

e a um tipo de justificativa da ação dos policiais sem problematizações, como um ethos policial,

uma vez que são exibidas declarações de um traficante que afirma que vai matar o policial.

O Aqui Agora também apresentou projeções ethópicas comuns entre as edições algumas

se desenhando de maneiras semelhantes na enunciação, outras de maneiras distintas. O ethos

crível projetado – aquele que entendemos se configurar por meio da emoção – parece ser

semelhante em todas as edições, com a exibição de imagens sem qualquer traço de censura –

conforme já vimos acima; o ethos de indignação, entretanto, parece ter sido projetado pelo

programa a partir da descrição do sujeito-jornalista sobre os criminosos, ancorando esta

representação ethópica junto a um ethos policial, que parece também justificar a ações policiais

sem outros esclarecimentos; o ethos da indignação, projetado a partir da fala dos repórteres

sobre os crimes relatados; já o ethos de justiceiro, parece se desenhar no acompanhamento bem

próximo do programa junto às atividades policiais, de tal forma que o próprio sujeito-jornalista

parecia ser o justiceiro que perseguirá os criminosos; por último, o ethos de violência parece

ter sido projetado de maneira semelhante ao programa antecessor, com a exibição de sangue

sem qualquer tipo de censura técnica por parte dos produtores do programa.

Por fim, o Balanço Geral representou um ethos de indignação sobretudo a partir do

posicionamento dos sujeitos sobre os crimes ocorridos, diferentemente do Documento Especial

126

e próximo ao ethos do Aqui Agora; um ethos de violência projetado na exibição do cadáver do

professor morto em um assalto, diferenciando-se dos demais por ser censurado por técnicas

gráficas; e um ethos de impunidade, baseado exclusivamente na declaração dos apresentadores

e comentaristas, que afirmam ter certeza quanto ao não cumprimento das penas por parte dos

criminosos – na primeira edição, Renato Lombardi critica as punições para criminosos menores

de idade; na terceira edição, Rogério Forcolen afirma que o rapaz, possível assassino da

manicure, premeditou o crime por saber da impunidade.

Na sequência, abordaremos algumas paráfrases que enxergamos nos programas,

conforme os apontamentos que fizemos em nosso protocolo de análise.

5.2.2 Paráfrases discursivas

Conforme apontamos no capítulo anterior, Orlandi (2012) assimila o retorno de um

mesmo dizer, em diferentes discursos, a partir da paráfrase. Algumas recorrências parafrásicas

puderam ser observadas nos três programas, as quais apontaremos a seguir:

Paráfrase 1 – A ‘impunidade’ premeditada do criminoso (ethos de impunidade)

Na edição Noites Cariocas, do Documento Especial, há uma reportagem que mostra a

prisão de um rapaz que teria assaltado um apartamento em Copacabana. Após a exibição das

imagens do apartamento, o prisioneiro ganha voz: Vocês podem me enfiar onde vocês quiserem.

Eu sou preso do manicômio. Eu não sou responsável pelos meus atos. Vou para o manicômio

e saio para a rua. Vou matar vocês todos. Este trecho parece chamar a atenção para a fala do

entrevistado, que afirma que logo sairá da prisão.

Ainda aqui, apresentamos brevemente a terceira reportagem observada no Balanço

Geral, que mostra o assassinato de uma manicure. Após a exibição da matéria, o apresentador

Rogério Forcolen analisa o que, em sua opinião, seria a motivação por parte do ex-companheiro

da manicure – supostamente o criminoso: O sentimento de posse aliado à impunidade. Eles

assistem o jornal. Nesse momento, enquanto o jornal está no ar, alguma mulher em algum

canto do Rio de Janeiro está sendo agredida. Eles estão assistindo o jornal: ‘Tá vendo, ó? Eu

vou te matar’. O sentimento de impunidade é grande. Aí ele vai dizer que se esfaqueou. Isso é

premeditado, ele foi lá exatamente pra fazer isso.

Observando a reportagem do Documento Especial e do Balanço Geral, enxergamos

uma projeção ethópica baseada na impunidade, através de um ethos de impunidade exaurido

pelos programas. No primeiro, o próprio criminoso coloca que logo irá sair do manicômio e

127

voltará; no segundo, o apresentador afirma que há um sentimento de impunidade por parte dos

próprios criminosos, e que isto teria motivado o assassinato da manicure. De tal forma, embora

proferido em anos distintos, os discursos dos programas parecem residir numa paráfrase que

retrata a impunidade presente na mente do criminoso já em 1992 e ainda imperante em 2014.

Paráfrase 2 – Menores criminosos (ethos de impunidade)

Novamente recorremos à edição Noites Cariocas, do Documento Especial. Em dado

momento, Roberto Maya apresenta uma outra reportagem sobre crimes, dessa vez anunciando

um arrastão ocorrido em um apartamento. Diz o apresentador: Quando a polícia chegou, os

quatro assaltantes já haviam rendido o zelador e estavam promovendo um arrastão no prédio,

que fica em Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Eles se aproveitaram do descuido de uma

moradora. Em outras reportagens semelhantes, que versavam sobre assaltos ou arrastões, em

nenhum momento o programa informou a idade dos criminosos, diferente do que ocorrera na

reportagem que mencionamos. Isto, possivelmente, faça relação ou a uma indignação do

programa com o fato de menores de idade praticarem o assalto, ou mesmo à possível

impunidade aos assaltantes.

Já na primeira edição do Balanço Geral, que mostra o roubo de um carro também por

parte de assaltantes, o apresentador Luiz Bacci diz: Que judiação. 15 anos e já nessa

empreitada. Renato Lombardi, comentarista do telejornal, complementa o comentário do

apresentador: É impressionante o número de menores envolvidos em crimes nos últimos 2 anos

em São Paulo. Triplicou o número de menores envolvidos. É essa história: vai pra Fundação

(Casa) e volta, vai e volta, e quando volta, volta pior.

Em vista das duas reportagens supracitadas, notamos uma paráfrase discursiva por meio

do Balanço Geral em referência ao apresentado no Documento Especial, quando ambos

parecem, de maneiras distintas na descrição, projetar uma indignação com uma suposta

impunidade aos criminosos menores de idade – exposto abertamente no comentário de Renato

Lombardi.

Paráfrase 3 – A conformidade com a morte e a ‘justiça’ pela vingança (ethos de

indignação e ethos de justiceiro)

No Documento Especial, novamente em Noites Cariocas, recordemos a cena – exibida

em plano-sequência – que mostrava o corpo de um traficante assassinado em uma chacina. A

128

edição revela, durante as imagens que mostram a senhora chorando: A família tenta confortar

a mão que chora a morte do filho. Ele era um traficante da favela de Ramos. A seguir, o irmão

da vítima, que consolava a mãe, diz: Tinha que encontrar ele morto mesmo. Não sei quem

matou ou deixou de matar. Se foi polícia, se foi vagabundo, não interessa. O que interessa é

que temos de fazer o enterro dele. E continua: Eu não me conformo de ele ter morrido, mas foi

melhor assim para a minha mãe e para o meu pai. Para ela parar de sofrer. O sentido aqui

indica uma indignação por parte do irmão do traficante assassinado, mas, ao mesmo tempo, a

conformação de que “foi melhor” para que sua mãe parasse de sofrer. Ainda em Documento

Especial, chamamos a atenção para a fala de um policial na edição Guerra Social, que diz:

Bandido bom é bandido morto e enterrado em pé para não ocupar muito espaço.

No Aqui Agora, a reportagem de 13/02/1995, que mostrou a perseguição da polícia

resultando na morte de um criminoso e também de um policial, enfocou, sumariamente, o

policial morto, apresentando a esposa do profissional de segurança pública chorando. Nesse

ponto, o repórter Tony Castro comenta com populares que o criminoso também foi morto, ao

que uma mulher diz: Ele também morreu? Bem feito!. Depois, ainda na mesma reportagem, o

programa mostrou um colega de profissão do assassinado, que ostentava a carteira de

identificação da Polícia Militar com a foto da vítima. O sentido, aqui, parece emergir do fato

da indignação com a morte do policial.

Já no Balanço Geral, na segunda edição observada, a morte do professor, que teria

reagido a um assalto, é exaustivamente comentada por Wagner Montes. Em seu comentário,

que já discutimos anteriormente, o apresentador torna pública sua vontade em ver o criminoso

– assassino do professor, mas até aquele momento sem identidade –, morto.

Apresentados os três casos, entendemos haver um jogo parafrásico no discurso das três

edições. Muito embora o Documento Especial tenha trazido à tona a dor da mãe que deparou

com seu filho morto, o programa comandado por Roberto Maya finaliza a cena com o

conformismo do irmão, que já esperava ver a morte de seu ente e se sentiu aliviado por não

perceber mais a mãe sofrendo. Já o Aqui Agora parece ter se preocupado em relatar somente a

dor da família do policial morto, talvez assumindo um posicionamento de chamar a atenção

para a morte daquele que representaria o ‘bem’, mantendo, de certa forma, o discurso já adotado

pelo Documento Especial. Por consequente, o Balanço Geral pareceu externar um discurso

mais explícito quando, na figura de apresentador e sujeito-jornalista, Wagner Montes declara

seu desejo em ver o criminoso enterrado, morto, no que parece projetar mais o discurso da

impunidade. O ethos dos dois primeiros programas, nesse sentido, parece ter projetado o que

129

entendemos por ethos policial, que assegura uma proximidade junto à instituição de segurança

pública, e também um ethos de justiceiro, no qual, talvez, o próprio policial tenha agido como

um justiceiro ao matar o criminoso que matara seu colega, ao passo em que o Balanço Geral

talvez não tenha produzido algo nesse sentido.

Paráfrase 4 – A traumatização da população (ethos de violência)

Em Noites Cariocas, ainda na abertura da edição, Roberto Maya diz: As noites cariocas

tem sido marcadas pelo medo de uma população, que pensa duas vezes na horas de sair de

casa. Na sequência, os crimes cometidos na noite carioca, retratados pelo programa, são

mostrados.

Na terceira edição do Balanço Geral, que exibe o assassinato da manicure, em

determinado momento o repórter Dennes Queiroz afirma: Clientes da galeria (local de trabalho

da manicure) ficaram traumatizados com a cena de violência.

Embora proferidas em circunstâncias distintas, as duas enunciações – de Roberto Maya

e de Dennes Queiroz – indicam o trauma da população ao sair de casa, haja vista as cenas de

violência que encontrariam – violência cometida por meio de assaltos ou mesmo de

assassinatos, ao deparar com um cadáver na rua.

De tal modo, também entendemos haver um jogo parafrásico erguido sob um ethos de

violência estabelecido pelas duas atrações televisivas.

Paráfrase 5 – A representação da violência ‘sanguinária’ (ethos de violência)

Nas três edições do Documento Especial algumas cenas explícitas de violência foram

exibidas: as manchas de sangue após a chacina (figura 8), os corpos estendidos (figura 10),

pessoas vivas jogadas em uma fogueira (figura 12), o vereador morto em um assalto (figura 13)

e outros dois cadáveres (figuras 14 e 15).

No Aqui Agora, embora em menor número, tais cenas também ganharam espaço nas

reportagens: manchas de sangue no carro-forte assaltado (figura 16) e outras manchas de sangue

no carro da escrivã sequestrada (figura 18).

O Balanço Geral também exibiu uma imagem de um cadáver, embora não

explicitamente, quando mostrou o corpo do professor também morto em um assalto (figura 19).

Retomando aquela que poderia ser a premissa básica dos fait diver, que seria o inusitado,

que se desdobra no além da notícia, conforme Barthes (1964), ponderamos que estes

expedientes imagéticos podem ter corroborado para uma representação ethópica desenhada a

130

partir da violência. Conforme já pontuamos, esse ethos parece ter se modificado na exibição

com uma certa censura por parte da imagem explícita, conforme o corpo do professor morto

exibido no Balanço Geral. Todavia, ressalvamos que os dois primeiros programas, Documento

Especial e Aqui Agora, inseriram um certo apelo ao sangue nessa projeção ethópica – e sem

qualquer traço de censura. No próprio logotipo do Aqui Agora constava uma cor vermelha de

fundo, sob o nome do programa em branco. Essa escolhe pode ter sido referente ao vermelho

do sangue.

Figura 22 – O logotipo do Aqui Agora

Fonte Aqui Agora (1994, SBT)

Após apresentarmos nossas análises, na sequência tentaremos apresentar, de maneira

descritiva, como cada ethos se constituiu nos três programas estudados, abordando também

diferenças entre eles.

5.3 A IDENTIDADE ETHÓPICA NO DISCURSO DAS ATRAÇÕES

Com base nos olhares que dispusemos acima, quando nas análises, apresentaremos cada

tipo de ethos depreendido em cada programa, com o propósito de elucidarmos quais foram as

semelhanças e diferenças na conformação da identidade discursiva de cada programa.

131

5.3.1 Ethos crível e de violência

Talvez o ethos mais semelhante nas três atrações seja aquele que visa a credibilidade

junto à audiência – buscando a persuasão através do discurso enunciado. No Documento

Especial, avaliamos que esse ethos, resultante de um efeito de verdade, pode ter sido ungido a

partir de uma estratégia de aproximação do espectador ao fato relatado. Em duas edições, Noites

Cariocas e Guerra Social, o uso de planos-sequência corrobora à essa aproximação, pois,

conforme já relatamos, essa sequencialidade, segundo Pasolini (1985), dá a impressão de ser

um retrato de presente, em relação ao exibido. Ainda nesse ponto, o programa também trabalha

com um alto percentual de alternância entre plano médio e primeiro plano, o que evidencia um

detalhe; esse detalhe, por sua vez, parece ter priorizado a emoção – no choro das vítimas, nos

cadáveres e nas manchas de sangue –, e essa emoção, segundo Charaudeau (2012), provoca

esse efeito de verdade no telespectador, tal qual assimila Aristóteles (2005), que pondera que

conforme sentimos emoção, emitimos juízos de valor. Ou seja, o pathos, nesse caso, parece ter

trabalhado em sintonia ao ethos na busca da credibilidade.

Outrossim, as opiniões do programa – que entendemos ser um efeito de verdade baseado

nas opiniões coletivas (CHARAUDEAU, 2012) – trabalham do mesmo modo em busca desse

teor ethópico crível. Em menor escala, o programa também se utilizou de um discurso de

autoridade com fins de legitimação do discurso, quando ouviu profissionais de segurança

pública, um morador de uma favela e mesmo um suposto traficante. Por fim, também

entendemos que as trilhas sonoras utilizadas podem ter ajudado nessa projeção ethópica de

credibilidade, pois os áudios transmitidos revelavam uma carga dramática na canção de blues

e no choro da mãe do traficante morto.

O Aqui Agora parece buscar projetar essa aproximação ao telespectador

fundamentalmente nos longos planos-sequência, que chegam a mais de 1’, e foram utilizados

15 vezes, e nos seguidos argumentos de autoridade. Conforme apontamos acima, o uso da

sequencialidade imagética pode criar efeitos de verdade junto à audiência, podendo tornar o

discurso crível, e um personagem, que representa autoridade, detém um poder de persuasão

ainda maior ao discurso.

Enxergamos no programa também efeitos de verdade baseados em opiniões comuns, no

qual parece haver uma apresentação que beira o confronto entre polícia X criminosos, tão

somente, sem outras problematizações. Também há um apelo ao emocional do telespectador

com as manchas de sangue exibidas em duas das três edições estudadas.

132

A atração da Rede Record, por fim, parece buscar esse ethos crível mais em opiniões

dos sujeitos-jornalistas, fundamentadas em opiniões comuns e coletivas. Em ambas, os

apresentadores se posicionam abertamente sobre o fato retratado pela reportagem e emitem seus

comentários visando, possivelmente, uma verdade propícia a ser compartilhada pela maioria e

uma outra verdade que julga os envolvidos, mas os essencializa em categorizações

(CHARAUDEAU, 2012) – ou estereotipações. Essa opiniões também podem ter atuado como

o argumento de autoridade, sobretudo nos momentos em que os apresentadores se autoconferem

a própria autoridade para tecer os comentários.

Notamos, nessa provável projeção de credibilidade, efeitos de verdade de emoção

também, embora em menor número quando comparado aos demais programas, na exibição do

cadáver do professor assassinado e da manicure também assassinada.

5.3.2 Ethos de indignação e impunidade

No Documento Especial, o ethos de indignação e de impunidade parece ter emergido

em situações que envolvam os confrontos sociais apontados: entre ‘pobres’ e ‘ricos’ e entre

‘policias X criminosos, movidos a partir de uma narrativa discursiva que parecia procurar

contextualizar esses conflitos. Há também um trecho que aponta para um comentário de um

criminoso preso, que afirmara logo sair da cadeia, o que parece desenhar uma representação

ethópica baseada na impunidade.

Com relação ao Aqui Agora, notamos o ethos de indignação e de impunidade no

posicionamento dos sujeitos-jornalistas em relação aos criminosos retratados nas reportagens e

as penalidades a que estariam sujeitos. Isso se refletiu nas entrevistas que os repórteres fizeram,

quando alteravam seu tom de voz ao conversar com os criminosos e quando ouviam populares.

As imagens dos parentes das vítima, em prantos, revelando tristeza, também corroborou para

tais ethos.

Por fim, no Balanço Geral essa indignação e impunidade também partiu dos sujeitos-

jornalistas, que comentavam os crimes mostrados com declarações que externassem essa

indignação, como por exemplo a fala de Wagner Montes, que adjetivava criminosos como

“vagabundos” e dizia que as penas eram brandas. Também o comentário de Rogério Forcolen

parece determinante para tais ethos, principalmente quando o apresentador crava que o acusado

da morte da manicure, ex-companheiro da vítima, premeditara o crime e já havia até adotado

uma estratégia para alegar insanidade e não cumprir a pena – mesmo quando a reportagem

informaba que o suspeito estava na UTI após tentar o suicídio.

133

5.3.3 Ethos de justiceiro e ethos policial

Em Documento Especial, essas representações ethópicas se deram nos momentos em

que o programa relata o confronto entre policiais X criminosos e acompanha a incursão dos

policiais a um morro, dominado por traficantes. Há também uma entrevista com um traficante,

que afirma já ter matado policiais – o que corrobora ao ethos policial e, possivelmente, justifica

a ação dos policiais sem questionamentos – e mesmo a entrevista com um policial que não se

identifica, mas revela ter um salário baixo.

No Aqui Agora, esses ethos são observados com mais frequência e dominam as

reportagens. As sequentes perseguições, encontradas nas três edições observadas, aproximam

o programa da instituição de segurança pública. Os repórteres, que acompanham as

perseguições de perto, literalmente, parecem conquistar para si esse ethos de justiceiro, como

se estivessem participando da ação para perseguir criminosos e fazer justiça ante aos delitos

cometidos. Termos recorrentes no programa, como “bandidos fortemente armados”, “crimes

chocantes” e “requintes de crueldade” se repetem entre as edições e projetam também esse ethos

policial – que, a exemplo do Documento Especial, pode justificar as ações dos policiais e não

as questiona ou problematiza.

No Balanço Geral, essas projeções ethópicas não parecem assumir um papel

determinante no discurso do programa. Embora apresente também prisões de suspeitos, o

programa pareceu mais voltado a lançar seu discurso na crítica aos sistemas penais e aos

criminosos.

Isto posto, esclarecemos que, embora revelando ethos semelhante, os programas

mantiveram produções discursivas distintas entre si, conforme nossas pontuações ao longo das

análises.

134

À GUISA DE CONSIDERAÇÕES

Em vista dos pontos teóricos elencados ao longo do desenvolvimento da presente

pesquisa, tencionamos abordar diferentes vieses que nos permitiram observar como o

jornalismo popularesco televisivo desenvolveu sua identidade discursiva através de

representações ethópicas. Para isso, tomamos um norte a partir de atrações que detém o

inusitado, calcado na violência, como premência discursiva. A partir de então, iniciamos uma

discussão que não se encerra por aqui, muito pelo contrário: a pretensão de iniciá-la refere uma

busca constante pela observação sobre o jornalismo popularesco transmitido na televisão.

Assertamos essa vontade com base no sucesso que a fórmula popularesca parece trazer aos

programas, haja vista os sequentes programas que surgem e a mantém em suas constituições

jornalísticas.

Nos processos de produção da notícia a partir do acontecimento observado,

determinados ingredientes – de ordem institucional e subjetiva aos sujeitos-jornalistas –

semelham encalacrar-se aos meandros da práxis jornalística. A partir de então, o discurso

jornalístico pode se contemplar sob um processo de dupla mecânica, que perpassará desde o

olhar do sujeito-jornalista ao fato inicial até as significações psicossociais que o profissional da

comunicação conferirá à notícia. Pregnante à produção noticiosa, estratégias são erguidas no

discurso noticioso com vistas aos efeitos de real revelados no conteúdo jornalístico, sejam eles

por de opiniões ou mesmo por meio do enfoque emocional. Este é, aliás, o efeito de verdade

que assenta projeções residentes em formações discursivas que eivam na violência, na

impunidade e mesmo na indignação. Tais recursos técnico-jornalísticos repousam

conjuntamente em representações do que seria pertencente ao cotidiano popular, o que

entendemos ser, em verdade, baseados na premissa do popularesco. Essa cadeia de fragmentos

dispostos no discurso jornalístico podem agir apanhando a audiência graças aos elementos

discursivos muito bem trabalhados pelos produtores dos programas popularescos. Parece-nos,

assim, que a Televisão Verdade ou o programa que mostra na tevê a vida como ela é visam

projetar um discurso realístico ao seu destinatário.

Nessa conjuntura, emerge o discurso do veículo jornalístico com base em uma tríade

retórica, que explica a persuasão na a imagem de projetada de si e no efeito desse discurso

baseado na emoção. Assim, ethos e pathos foram trabalhados em conjunto no Documento

Especial, Aqui Agora e Balanço Geral. O discurso baseado na credibilidade pôde ser observado

em todos os programas, fundamentalmente em uma organização argumentativa tal que

posicionamentos dos sujeitos-jornalistas – através de comentários – e estratégias que buscassem

135

a sensibilidade da audiência – no fazer-jornalismo – trabalharam conjuntamente nesse

propósito, visando a persuasão retórico-discursiva.

O fazer-jornalismo, aliás, detém algumas peculiaridades ao veículo televisivo: a união

entre os sentidos imagéticos e sonoros permite a criação de narrativas que exploram o

imaginário da audiência, trazendo até mesmo uma sensação de companhia àquele que mantém

sua televisão ligada. Os rostos que são revelados na tevê apostam em uma aproximação dos

telespectadores pela identificação, haja vista que, nos programas estudados, o teor popularesco

residia na afinidade com o que seria pertencente ao popular – mas não o era, pois tratava-se

apenas de fragmentações deste – fragmentações estas que contém em si estilhaços de

estereótipos e preconceitos sobre o popular. No transcorrer da trajetória televisiva no Brasil, o

popularesco passa a assumir papel predominante desde 1966, com a primeira atração que adotou

este teor. A partir de então, outros programas surgiram, caracterizados por congregarem

elementos dos fait divers. Essa conjuntura reside no entendimento de que estes programas se

desdobram no além da notícia, que os alocam em um sistema de classificação noticioso que vai

supera das editorias mais conhecidas. Em comum, estas peças jornalísticas mantém relações de

casualidade e coincidência. No Documento Especial, reportagens eram produzidas tomando por

base um tema preestabelecido, que, nas edições analisadas, percorreram justamente relações de

causalidade – por gerarem espanto – e repetição – concomitâncias envolvendo conflitos

classistas foram predominantes; no Aqui Agora, o interesse pelo além do noticiado permitia

uma exploração de todo o trabalho policial em ocorrências criminosas – não à toa, o ethos

policial observado foi imperante no telejornal; no Balanço Geral, esse dimensionamento do

além da notícia se colocou sob comentários e julgamentos dos sujeitos-jornalistas, que por vezes

puderam estereotipar atores das reportagens sem outras problematizações acerca do noticiado.

Todos estes meandros jornalísticos nos trouxeram à baila questões que percorrem a

produção dos programas e seus conteúdos. Pensar nisso remonta ao discurso projetado pelas

atrações. Conforme vimos, há mecanismos que agem para controles do discurso, que indica a

forte relação do discurso com o poder. Um destes procedimentos indica a manutenção de

comentários, que se alternam em dizeres, mas mantêm o cerne de um mesmo discurso, ou seja,

de um pelo outro. Isso pôde ser notado nos programas analisados. Não há diferenças

significativas entre o posicionamento das atrações e dos sujeitos-jornalistas ao trabalharem o

noticiado. Constatamos isso ao enxergarmos um ethos de justiceiro em comum nas três

atrações. Em todas elas, os programas se montam em discursos que os colocam dessa forma ao

demarcarem opiniões relativas e comuns, que julgam os fatos ora sobre argumentações comuns

136

– como ladrão tem de ser preso –, ora sobre opiniões relativas, que essencializa os personagens

das reportagens em categorias simples – como bandido é vagabundo. Outrossim, essas

opiniões, colocadas e reafirmadas sob argumentações que podem ser compartilhadas pela

maioria, remonta à memórias discursivas que reforçam o ethos de justiceiro das atrações.

Ainda neste ponto, pudemos observar situações que remeteram à paráfrases discursivas

alocadas pelos três programas ao longo do tempo. Quando o Documento Especial já atrelava

índices de criminalidade aos menores de idade, o Aqui Agora ressaltou esse discurso também

noticiando recorrências de menores de idade em crimes, algo prosseguido pelo Balanço Geral,

no qual o comentarista afirmara, sob um discurso de autoridade – engendrado por números –, a

impunidade aos criminosos de menoridade. Isso projetou nos três programas um ethos de

impunidade. Outras recorrências parafrásicas foram observadas, nas quais notamos projeções

ethópicas de indignação, de violência, e mesmo de policial, quando as três atrações, visando o

ethos de justiceiro, trabalharam as produções jornalísticas em proximidade aos policiais.

Assim, nossas observações aos programas revelaram alguns ethos consonantes, mas

erguidos sob apresentações discursivas distintas. Nas produções sonoro-imagéticas, cada

programa revelou certa peculiaridade. No Documento Especial, o conteúdo imagético se deu,

primordialmente, entre planos de enquadramento que variassem entre os planos médio e

primeiro plano, o que revela a intenção do programa em centrar a narrativa em detalhes dos

personagens e em cenas que mostrassem um detalhe e a reação dos personagens a estes detalhes.

Aliados a alguns planos-sequência, enxergamos aqui revelações ethópicas baseadas em

violência, indignação – embora outros ethos tenham aparecido no programa. Em termos de

áudio, encontramos trilhas que reforçam a dramaticidade das cenas e outras que trazem em suas

letras situações envolventes do que entendemos ser representações do popularesco, voltadas

aos ‘pobres’ que eram exibidos na edição Os Pobres vão à Praia.

O telejornal Aqui Agora, conforme colocamos, se colocou a partir de produções

imagéticas que aproximavam o programa junto da polícia, quando acompanhava perseguições

utilizando o expediente do plano-sequência e da câmera nervosa. Também nesses momentos a

atração mostrava o desdobramento dessas buscas por criminosos, exibindo a prisão destes e o

saldo final das operações, sempre com a equipe de reportagem em hospitais. Com

enquadramentos predominantes em planos gerais e planos médios, estes ethos policial e

justiceiro revelava-se em exibições de imagens que mostravam cenários abertos, no qual

policiais atuavam em perseguições e os repórteres acompanham sempre em sequência. Os

expedientes sonoros recobriam o discurso dos programas também na projeção dos ethos

137

supracitados, utilizando efeitos de sirene, aceleração do motor dos veículos e a comunicação do

repórter com a redação via rádio, tal qual fazem os próprios policiais.

O Balanço Geral favoreceu a cobertura imagética enquadrada em primeiro plano, o que

mostra uma intenção de centrar as imagens em detalhes das cenas filmadas. As projeções

ethópicas predominantes residem na indignação e na impunidade, expostas, sobretudo, no

posicionamento dos comentaristas das reportagens – enquadrados em primeiro plano. Os

elementos sonoros utilizados fizeram mais menção ao teor dramático de uma das reportagens.

Em vista do que observamos, muito embora as revelações ethópicas analisadas

construam as características do popularesco, nos parece errôneo negar o sucesso dos programas

analisados, tanto em suas inovações no que diz respeito às jornalísticas, quanto em seus

discursos que visam atingir à audiência. Quando se colocam como programas que relatam a

‘verdade’ – conforme subtítulo Televisão Verdade do Documento Especial e o slogan Um

programa vibrante, que mostra na tevê a vida como ela é, do Aqui Agora –, as atrações

jornalísticas buscam esse reconhecimento dos telespectadores nessa tentativa de projetarem um

ethos crível. E isso parece ser bem sucedido nos programas que estudamos. Muito embora essas

projeções ethópicas se constituam municiadas de estratégias retórico-discursivas que

perpassam elementos dos fait divers e de representações do popular sob a égide do popularesco,

a audiência dos programas faz com que a fórmula siga presente nas produções televisivas

hodiernas, alternando, contudo, o fazer-jornalismo. Assim, formações discursivas incorporadas

ao discurso dos programas de outrora aparentam seguir resgatadas em produções jornalísticas

atuais, e parecem ser acionadas novamente em jogos parafrásicos que remontam a atores novos,

mas com ‘papéis’ já distribuídos há algum tempo.

138

REFERÊNCIAS

ADAM, Jean-Michel. Imagens de si e esquematização do orador: Pétain e De Gaulle em junho

de 1940. In: AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São

Paulo: Editora Contexto, 2008.

ALSINA, Miquel Rodrigo. A construção da Notícia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

AMORIM, Paulo Henrique. O quarto poder: uma outra história. São Paulo, SP: Hedra, 2015.

AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Editora

Contexto, 2008.

ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa.

São Paulo: Summus, 1995.

ARISTÓTELES. Retórica. 3ª. Edição. Obras completas de Aristóteles, Volume VIII, tomo I.

Coordenação de Antônio Pedro Mesquita. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo

Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,

2005.

AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 2003.

______. O ponto de vista. In: Eduardo Geada (org.). Estéticas do cinema. Lisboa: Dom

Quixote, 1983.

BARBOSA, Marialva. História da Comunicação no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2013.

BARTHES, Roland. A estrutura dos fait divers. Tradução revisada por: Artur Araujo. In:

BARTHES, Roland. Essais critiques. Paris: Seuil, 1964.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da

Unicamp, 2002.

CASADEI, Eliza Bachega. Jornalismo e figuras de retórica: O uso da história como mobilização

persuasiva. In: Revista Rhêtorikê, n. 2, p. 17-38, 2009.

______; AVANZA, Marcia Furtado. Esferas de sociabilidade na formação dos valores

profissionais dos estudantes brasileiros: entre a educação universitária e o mercado de trabalho.

In: Rebej, v. 3, n. 13, p. 202-219, 2013.

CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2002.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

______. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petropólis, RJ: Vozes, 1994.

139

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2012.

______. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2013.

DION, Sylvie. O fait divers como gênero narrativo. In: Revista Letras, n. 34, p. 123-131, 2007.

DUCROT, Oswald. Princípios de semântica lingüística: dizer e não dizer. São Paulo: Cultrix,

1972.

ECO, Humberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1968.

FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. História da comunicação: rádio e TV no Brasil.

Petrópolis: Vozes, 1982.

FIORIN, José Luiz. O pathos do enunciatário. In: Revista Alfa. São Paulo, v.48, n.2, p. 69-78,

2004.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.

FRANÇA, Vera. A TV, a janela e a rua. In: FRANÇA, Vera (Org.). Narrativas Televisivas:

programas populares na TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

______. O popular na TV e a chave de leitura dos gêneros. In: GOMES, Itania Maria Mota

(Org.). Televisão e realidade. Salvador: EDUFBA, 2009

GALINARI, Melliandro Mendes. Logos, ethos e pathos: três lados da mesma moeda. In:

Revista Alfa, v. 58, n. 2, p. 257-285, 2014.

HOHLFELDT, Antonio. Os estudos sobre a hipótese de agendamento. In: Revista Famecos,

n. 7, 1997. Disponível em:

<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/2983/2265>.

Acesso em: 09 fev. 2015.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru, SP: Edusc, 2001.

KNEIPP, Valquíria Passos. A identificação do jornalismo investigativo na televisão brasileira.

2008. Trabalho apresentado ao XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,

Natal, 2008, Natal.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: Cultura popular e lazer na cidade. São

Paulo: Hucitec, 1998.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2004.

______. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no

discurso: a construção do ethos. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

140

______. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Orgs.) Ethos

discursivo. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 11-29.

______. Novas tendências em análise do discurso. Campias: Pontes, 1989.

MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão. São Paulo: Scipione, 1994.

______. Televisão: a vida pelo vídeo. São Paulo: Moderna, 1988.

MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia.

Rio de Janeiro. UFRJ, 2001

MASCELLI, Joseph V. Os cinco Cs da cinematografia: técnicas de filmagem. São Paulo:

Summus, 2010.

MATTOS, Sérgio Augusto Soares. História da televisão brasileira: Uma visão econômica,

social e política. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

MAZIÈRE, Francine. A análise do discurso: histórias e práticas. São Paulo: Parábola Editorial,

2007

MIRA, Maria Celeste. O moderno e o popular na TV de Silvio Santos. In: RIBEIRO, Ana Paula

Goulart; SACRAMENTO Igor; ROXO, Marco (Orgs.). História da Televisão no Brasil: do

início aos dias de hoje. São Paulo: Contexto, 2010.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas:

Pontes Editores, 2012.

PASOLINI, Pier Paolo. Observações sobre o Plano-Sequência. In: GEADA, Eduardo (Org.).

Estéticas do cinema. Lisboa: Dom Quixote, 1985.

PEDROSO, Rosa Nívea. Elementos para uma teoria do jornalismo sensacionalista. In:

Revista de Biblioteconomia e Comunicação. 1994, v.6, p. 37-50.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova

Retórica. São Paulo: Martin Fontes, 2005.

POSSENTI, S. Observações sobre interdiscurso. In: Revista letras, especial, n. 61, p. 253-269,

2003.

PONTE, Cristina. Para entender as notícias: linhas de análise do discurso jornalístico.

Florianópolis: Insular, 2005.

RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor. A renovação estética da TV. In:

RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO Igor; ROXO, Marco (Orgs.). História da

Televisão no Brasil: do início aos dias de hoje. São Paulo: Contexto, 2010.

ROCCO, Maria Thereza Fraga. Linguagem autoritária: televisão e persuasão. São

Paulo: Brasilense, 1989.

141

RODRIGUES, Adriano. O Acontecimento. Revista de Comunicação e Linguagens, número

8, Lisboa, 1988.

SANTOS, Martha Isabel Alves dos. Telejornalismo do grotesco: telejornal Aqui e Agora. São

Paulo: UNIP, 2006. 100 p. Dissertação de mestrado – Programa de Pós Graduação em

Comunicação, Universidade Paulista, São Paulo, 2006.

SILVEIRA, Carla Edila. Notas sobre ethos, cena enunciativa e gênero digital. In: Revista

Icarahy, v.1, n.1, p. 1-14, 2009.

SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Edições Loyola, 2005.

STRAUBHAAR, Joseph. LAROSE, Robert. Comunicação, mídia e tecnologia. São Paulo:

Pioneira Thompson Learning, 2004.

TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis:

Insular, 2005.

______. Teorias do jornalismo: tribo jornalística: uma comunidade interpretativa

transnacional. Florianópolis: Insular, 2005.

VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas, SP:

Papirus, 1994.

VERGNIÈRES, Solange. Ética e Política em Aristóteles. São Paulo: Paulus, 1998.

WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

WOLTON, Dominique. É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus, 2006.

______. Informar não é comunicar. Porto Alegre: Sulina, 2011.