Belém-Pa e o “Portal da Amazônia”: Padrão de Intervenção

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Juliano Pamplona Ximenes Ponte Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ) Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (UFPA) E-mail: [email protected] Belém-Pa e o “Portal da Amazônia”: Padrão de Intervenção Territorial e Desigualdade Sócio-Ambiental GT 2: Avaliação de resultados de projetos e instrumentos de monitoramento e gestão do espaço Resumo O projeto Portal da Amazônia, da Prefeitura Municipal de Belém, representa um momento de intervenção territorial na cidade onde coexistem o discurso ambiental e o planejamento urbano, e onde contradições socioambientais parecem estar contidas, já na fase inicial de execução, e em projeto. Discute-se o padrão de intervenção e as suas premissas, com base em documentos oficiais e declarações dos gestores públicos envolvidos. Palavras-chave: planejamento urbano; planejamento ambiental; orla fluvial. Abstract The “Projeto Portal da Amazônia”, by Belém Municipality, may be understood as a different instance in urban interventions in the contemporary city. Inside this project (where environmental discourse takes place at the same time as urban planning statements) there seems to be evident contradictions in conceptions and in the construction activities and technical projects also. This paper is a discussion on “Portal” urban intervention references, based on official documentation and public manager´s statements. Keywords: urban planning; environmental planning; waterfront.

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Juliano Pamplona Ximenes Ponte Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ)

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (UFPA) E-mail: [email protected]

Belém-Pa e o “Portal da Amazônia”: Padrão de Intervenção Territorial e Desigualdade Sócio-Ambiental GT 2: Avaliação de resultados de projetos e instrumentos de monitoramento e gestão do espaço Resumo O projeto Portal da Amazônia, da Prefeitura Municipal de Belém, representa um momento de intervenção territorial na cidade onde coexistem o discurso ambiental e o planejamento urbano, e onde contradições socioambientais parecem estar contidas, já na fase inicial de execução, e em projeto. Discute-se o padrão de intervenção e as suas premissas, com base em documentos oficiais e declarações dos gestores públicos envolvidos. Palavras-chave: planejamento urbano; planejamento ambiental; orla fluvial. Abstract The “Projeto Portal da Amazônia”, by Belém Municipality, may be understood as a different instance in urban interventions in the contemporary city. Inside this project (where environmental discourse takes place at the same time as urban planning statements) there seems to be evident contradictions in conceptions and in the construction activities and technical projects also. This paper is a discussion on “Portal” urban intervention references, based on official documentation and public manager´s statements. Keywords: urban planning; environmental planning; waterfront.

2 Belém-PA e o “Portal da Amazônia”: padrão de intervenção territorial e desigualdade sócio-ambiental Projetos de intervenção urbanística às margens das águas urbanas têm sido comuns nas últimas décadas. David Harvey, em trabalho pioneiro, ocupou-se inclusive de uma análise do caso americano de Baltimore (HARVEY, 1996; 2000). Naquela pesquisa, o autor reconhecia a relação entre estratégias de dinamização econômica do capitalismo local (ou da escala local de poder à qual o modo de produção vigente estava vinculado) e tais intervenções. Em resumo, parecia haver, naquele caso americano dos anos 1960, a situação de uma cidade portuária de economia atravessada pela modernização de portos e pela mudança do perfil econômico no capitalismo avançado. Instalar um equipamento urbano e articulá-lo a empreendimentos imobiliários parecia, então, uma estratégia de desenvolvimento — ou ao menos era anunciada como tal. Em Baltimore, EUA, o arquétipo do waterfrtont (que Vicente del Rio identificou muito bem) estaria materializado; cuidado urbanístico, arquitetural, paisagístico, visualidade impactante, parceria público-privado, capitalização sobre cascas históricas em dialética modernização/conservação (CHOAY, 2001), mudança de usos do solo e subseqüentes alterações de atividades econômicas e perfil de moradores. O espetáculo urbano controlado que de fala Harvey (2000), então, era o vetor do desenvolvimento, numa curiosa analogia da economia desenvolvimentista dos anos 1950, na idéia de “pólos” com efeitos irradiadores sobre os demais setores econômicos, a partir de uma intervenção pontual (VAINER, 2000). Há, desde então, uma narrativa comum a tais projetos, situados em contextos de crise: seus efeitos reprodutores seriam decorrentes de um incentivo a atividades da “indústria limpa” do Turismo, ou a setores do terciário em geral, e seriam capazes de dar melhores condições físicas a lugares onde o poder público teria demonstrado ser impotente e/ou omisso. Assim, um eventual aumento da receita pública decorrente de impostos e outras fontes seriam os principais fatores para um encadeamento de idéias já clássico: intervenções urbanísticas espetaculares dinamizam a economia e ajudam na reversão da crise, melhoram a avaliação das coletividades sobre os governos locais e, enfim, geram emprego e renda, e melhoram a arrecadação, colaborando no incremento da capacidade do Estado em prover serviços públicos essenciais. Juntando as “pontas” do raciocínio, é como se disséssemos que a parceria público-privado promove o resgate do papel social do Estado. Harvey (1996; 2000), entretanto, não viu este efeito em Baltimore. Historicamente, aliás, o projeto urbano desta matriz liberalizante não costuma resultar, necessariamente, em elevações de renda para camadas pobres ou em avanços da política social com redução de desigualdades. Representam, na verdade, retomadas de espaços urbanos contemporaneamente valorizados, mudanças de perfil da economia e alterações de padrão e usos do solo das atividades, diante dos novos marcos da acumulação capitalista. Uma forma mais atual de abordagem das chamadas águas urbanas incorpora também a dimensão ambiental, das porções de natureza que fazem parte da cidade (MELLO, 2005). Além da capitalização sobre aspectos, digamos, mais “culturais”, foi agregada esta outra dimensão, que entende que a “Natureza” — ou as variadas idéias de natureza, do que é externo ao Homem... (DESCOLA, 1997) — na cidade deva ser reapropriada e tratada de forma ecologicamente responsável. Além destes aspectos, persistem, sobretudo em países periféricos como o Brasil, a problemática da pobreza urbana e os conflitos decorrentes da ocupação de terras.

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Ilustração 1 Imagem do território continental de Belém-PA e parte de suas ilhas. A cidade tem nos rios e em sua baía elementos poderosos de estruturação urbana. Fonte: Belém, 2000.

No estágio atual, então, a instalação do waterfront também lida com aspectos do planejamento ambiental e a intervenção é exigida acerca de uma maneira adequada para “administrar” a pobreza urbana em suas áreas-programa. É neste contexto que podemos situar algumas políticas urbanas de intervenção espacial em áreas de interesse ambiental. Este trabalho lida, especificamente, com um tipo de caso que pode ser incluído nesta problemática, em linhas gerais. Na verdade, trata-se de um encontro entre várias situações que costumam ser experimentadas atualmente nas cidades brasileiras, em torno da água, da idéia de “resgate da Natureza” na cidade e também sobre a recorrente ligação que é feita entre pobreza urbana e degradação ambiental. Esta ligação é freqüente e se traduz em um dos argumentos mais comuns para justificar intervenções diversas que pretendem elevar a “qualidade de vida” das populações urbanas. São estes os pontos principais que balizam o escopo deste trabalho, tomando o caso da cidade de Belém-PA, no norte do Brasil, como estudo. Belém-PA: perfil da cidade frente à “retomada” do rio e de um rio “periférico” O caso de Belém-PA tem sido discutido no debate técnico, científico e político (inclusive em escala nacional) há alguns anos, no que diz respeito aos projetos de cunho “estratégico” (isto é, calcados no raciocínio já relatado anteriormente). Tem sido, sobretudo, divulgado, como forma de garantir o sucesso da busca pela “atratividade” e “competitividade” que fundamenta a política urbana classificada hoje como neoliberal. Taxonomias à parte, a cidade tem em seu caso a particularidade da presença da rede hidrográfica como dado forte da paisagem, e obviamente como elemento inseparável de parte significativa de sua economia e modos de vida. Historicamente, podemos relacionar a estruturação do território em Belém com a presença ou a proximidade da água; portanto, de alguns elementos que se identificam em potencial com aspectos das variadas concepções recentes da “Natureza” na cidade. Desde sua fundação a cidade de Belém teve na proximidade com os cursos d´água um fator relevante para a constituição do seu território, devido à sua função primordial de base militar, de defesa, e de suas atividades administrativas, o que acabou reforçando a permanência da localização do sítio físico primitivo, apesar de certa discussão e tentativas em torno da revisão do ponto de assentamento da vila (PENTEADO, 1973). Por outro lado, a localização estuarina de Belém-PA é expressão de um tipo particular de população rural, comum no norte brasileiro; o de comunidades chamadas de “ribeirinhas”, onde existe articulação entre produção e manejo agrícola, coleta e extrativismo, pequena produção de animais e áreas de várzea

4 (planícies de inundação com vegetação característica e margens em geral lodosas) e igapós — áreas alagadas sazonal ou permanentemente pelo depósito de águas fluviais e pluviais em “sulcos” próximos aos cursos d´água da região, onde costuma existir aproveitamento econômico tradicional (MOREIRA, 1970). O modo de vida “ribeirinho” (onde na verdade não se pode falar de um modo de vida, mas de certa variedade deles), na verdade, segue como dado cultural significativo da forma de reprodução social de populações rurais da região. Esta característica particular entrou inclusive na legislação urbanística do município de Belém, principalmente em seu Plano Diretor Urbano ainda vigente, de 1993. Nele, podemos ler que:

[...] especial ênfase será dada à recuperação da capacidade de ver e utilizar a orla do rio Guamá e da baía do Guajará pelo cidadão, resgatando, simbolicamente, as origens ribeirinhas de Belém (BELÉM, 1993, art. 143, inc. VII, p. 22.)

Em seguida podemos ler recomendações entre as diretrizes da política urbana do município: resgatar áreas da orla fluvial de Belém para uso coletivo, com a criação e ampliação de "janelas" para o rio Guamá e para baía do Guajará (BELÉM, 1993, art. 144, inc. III, p. 22.) Estes trechos da lei são representativos. Na cidade de Belém, sobretudo a partir de meados dos anos 1980, a classe política e parte das elites econômicas passaram a veicular a idéia da abertura de “janelas para o rio”, termo cunhado pelo jargão publicitário local para definir a “abertura” e a “desobstrução” de trechos das margens fluviais da cidade. No próprio Plano Diretor Urbano de 1993, portanto, há referências a esta espécie de “idéia-força”. Por outro lado, se existe um incipiente “desejo de desobstrução” das margens fluviais da cidade, há correspondente caracterização de tais margens (“obstruídas”) como “degradadas” e utilizadas inadequadamente, até os dias atuais. Na cidade, portanto, o período de surgimento da idéia de “janelas para o rio” (cuja origem foi relatada a esta pesquisa por agente envolvido no meio publicitário, acadêmico, de comunicação e artes plásticas da região) coincide, não por acaso, com a redemocratização do país e a crescente responsabilidade dos municípios diante da questão local. As Prefeituras Municipais se ocupam, portanto, dos temas caros às suas comunidades, e refletem suas diretrizes de planejamento a partir da correlação de forças e capacidades de mobilização institucional das classes, grupos e tendências políticas. É neste contexto que surge a caracterização negativa e depreciativa das ocupações irregulares das margens fluviais da cidade, bem como uma idéia curiosa de “orla fluvial” e, finalmente, tendências e projetos modelares para a intervenção neste espaço qualificado como “orla”. Sobre bairros periféricos da cidade, ocupados por populações mais pobres porém situados espacialmente próximos àqueles melhor

Ilustração 2 Habitação rural ribeirinha, situada na região do Baixo Tocantins, estado do Pará. Trata-se na verdade de um complexo de atividades, algumas para obtenção de ganho monetário, outras de subsistência e de serviços diversos — como a construção naval. Foto do autor, jun. 2007.

5 infra-estruturados, é que costumam recair os comentários da “degradação” social e ambiental, do “risco” e da necessidade de “desobstrução” da “orla” da cidade. O argumento oscila entre a remoção da atividade industrial ainda remanescente, a necessidade de regularização fundiária (já que boa parte dos ocupantes o fez em terrenos de acrescidos de Marinha ou através de ocupação não licenciada ou concedida pela Gerência do Patrimônio da União ou mesmo pela Prefeitura Municipal) ou contra a “privatização” das margens fluviais da cidade. Durante certo tempo a irregularidade fazia parte de uma estratégia de ocupação de terras em que o regime de doação (com obrigação de edificação para manter a posse) era comum (PENTEADO, 1973), bem como alguma licenciosidade das instituições, já que nas margens fluviais da cidade eram praticadas atividades econômicas relevantes para a base produtiva local e para sua receita, além da do transporte de passageiros e de carga. No entanto, como assinalado, recentemente o caso passa a ser qualificado como passível de intervenção pública, conforme declaração dada pelo então Secretário Municipal de Urbanismo:

O projeto orla [Nota do autor: nome dado à intervenção contemporânea comentada neste texto] é indissociável do projeto de macrodrenagem da bacia da Estrada Nova [Nota do autor: bacia hidrográfica de Belém-PA, com grande população pobre], eles se complementam. Muito mais do que a construção de uma orla, é um projeto de recuperação ambiental, importante para aquela área que está degradada social, econômica e ambientalmente (BELÉM, 2006d).

Seguindo a mesma inclinação, o titular da Prefeitura Municipal manifesta-se sobre intervenção a ser executada na cidade da seguinte forma:

"Esse projeto é o sonho dos moradores de Belém. Essa administração não tem medido esforços para concretizá-lo. É um projeto que está recebendo atenção especial, a exemplo da macrodrenagem do Una [Nota do autor: bacia hidrográfica de grande extensão territorial em Belém], financiado pelo BID, que trouxe melhorias significativas à população de Belém, queremos repetir o sucesso e trazer esses benefícios para os 250 mil moradores da Estrada Nova", comparou o prefeito. "A ocupação desordenada piorou muito a qualidade de vida das pessoas que moram naquela área. É preciso resgatar a dignidade daquelas pessoas". (BELÉM, 2006c).

Projeto Portal da Amazônia: desejo de “orla” e intervenção territorial Diante das declarações dos gestores municipais, avançamos na problemática. O caso particular de estudo deste texto é uma das “respostas” dadas à questão construída como “obstrução” das margens fluviais, qualificadas como “orla” de Belém. Por um lado, segundo Trindade Jr, Santos e Ravena (2005), a idéia de “orla” na cidade de Belém-PA está relacionada à influência do rio Guamá e da baía do Guajará sobre os usos do solo, as atividades e as formas espaciais da cidade, em “alcances” territoriais diversos. A rede hidrográfica local (onde o rio e a baía são predominantes) estruturaria e condicionaria atividades, modos de vida, dinâmicas territoriais e econômicas em geral, além de formas de sociabilidade bastante particulares. Acrescentamos a esta assertiva um outro aspecto: o de que, conforme se assinala entre as elites locais um “desejo de litoral” (CORBIN, 1988) e estratégias

6 de sobrevivência econômica via recolocação de atividades empresariais, coloca-se em pauta um modelo poderoso de intervenção territorial baseado em referências tidas como consolidadas, prestigiosas e “desejáveis” — chanceladas pelo gosto destes mesmos grupos que qualificam a ocupação irregular da “orla” como “degradada”, como início e fim do problema urbano. Em suma, uma variação do waterfront. A “orla” de Belém-PA, então, recebe um projeto de intervenção para a periferia próxima, já qualificada como “desejável” no mercado de terras após as intervenções territoriais anteriores, mais centrais (Estação das Docas, Complexo Feliz Lusitânia, Ver-O-Rio, Mangal das Garças). Este projeto, encabeçado pela Prefeitura Municipal, foi denominado Portal da Amazônia. O Portal da Amazônia consiste em um corredor viário com canteiros centrais, áreas de lazer e convivência, estacionamentos, praças arborizadas, marinas públicas, quiosques e mobiliário urbano em uma intervenção de 6,15 Km de extensão e cerca de 69 m de largura média (BELÉM, 2006e). O projeto está orçado em cerca de R$ 125 milhões, financiados parcialmente pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), e faz parte de uma concepção mais ampla de saneamento ambiental, denominada macrodrenagem da bacia da Estrada Nova. O Portal da Amazônia representa uma outra etapa no histórico de intervenções de margens fluviais em Belém-PA e encontra-se em execução de sua fase inicial, estimada em 260 m de extensão, vizinha ao parque ambiental Mangal das Garças, nas imediações do Centro Histórico de Belém. A etapa atual de execução compreende atividades de uma equipe social, cadastros de remanejamento e obras civis, onde está em construção uma espécie de enrocamento de pedra bruta para a consolidação de um dique de contenção, justamente na geometria viária de “curva” sugerida na primeira das três imagens das ortofotos montadas a partir do Projeto Básico (ver Ilustração 3).

Ilustração 3 Seqüência de ortofotos digitais com sobreposição do traçado viário do Portal da Amazônia. Geometria "variável", ora desconsiderando atividades existentes, ora obstruindo usos que dependem do acesso à água. Fonte: Belém, 2006e.

7 O Portal da Amazônia prevê, em imagens atualmente disponíveis através de simulações digitais, a instalação de um corolário do modelo de intervenção urbanística do parque urbano à beira-mar, onde os atrativos paisagísticos, de amenidades, lazer e consumo são os motes. Por outro lado, vincula a situação de pobreza urbana e carência de infra-estrutura à necessidade de urbanização de tais áreas. No entanto, prevê custos de remanejamento, uma classificação de usos a permanecer e outros a retirar e, ainda, subdimensiona as populações do programa de remoção e remanejamento. Segundo dados censitários, os bairros onde o projeto está sendo executado estão no distrito administrativo mais populoso de todo o município. Em material de audiência pública fala-se em 115 famílias remanejadas temporariamente para terreno próximo ao projeto e posterior construção de blocos de apartamentos em modelo COHAB, totalizando 360 unidades (BELÉM, 2006b). Ainda, é citado terreno de propriedade de cooperativa de funcionários da Universidade Federal do Pará, sugerindo assentamento de 1.800 lotes (BELÉM, op. cit.) Esta proporção, considerando a área do terreno, resultaria em algo próximo de 120 habitantes por hectare; densidade já econômica e confortável (MASCARO, 2003), até, para projetos de habitação de interesse social. No entanto, não há sequer estudos mais conclusivos a respeito, o que deixa descoberta a capacidade resolutiva do Portal da Amazônia em lidar com a questão da irregularidade urbanística e fundiária de áreas favelizadas, como é o caso em questão — o que é dado comum nas gestões urbanas atuais ao lidar com o problema do solo urbano (CARDOSO, 2003). O programa Portal da Amazônia, finalmente, tem em suas declarações o propósito de:

Dotar o Município de Belém de uma Orla Urbanizada valorizando as características locais, tendo como principal objetivo a melhoria social e ambiental da área, que durante décadas foi esquecida pelo poder público (BELÉM, 2006c, p. 3).

Ilustração 4 "Situação atual" de área inserida em território de intervenção do Portal da Amazônia. Fonte: Belém, 2006c.

Ilustração 5 Simulação da "plataforma urbanizada" do Portal da Amazônia; claro conflito de padrões e formas de apropriação do território. Fonte: Belém, 2006c.

8 Considerando a apreciação da comunidade, vemos que o material de divulgação da Prefeitura capta impressões positivas sobre o projeto Portal da Amazônia. Isto se deve, provavelmente, ao notável alcance obtido pela idéia generalizada do desejo de “orla” na cidade, cultivado já há alguns anos. Por outro lado, a possibilidade de implantação de melhorias urbanísticas em bairros mais pobres e periféricos costuma ser recebida favoravelmente, em geral. Segundo material de divulgação do projeto, o depoimento de moradora de um dos bairros inseridos no Portal tem o seguinte teor:

O Portal da Amazônia irá mudar a cara da cidade e abrir as portas de Belém para o rio, beneficiando um total de quase 300 mil pessoas. É o que a dona de casa Tereza de Nazaré, 64, moradora do bairro do Jurunas [Nota do autor: bairro populoso e relativamente mais pobre da cidade, porém vizinho a bairros centrais e bairros de caráter residencial de classe média em Belém-PA], sonha há 36 anos. " As crianças são as que mais sofrem com a falta de água tratada e opções de lazer". Problemas que a obra irá resolver ao garantir moradia digna, saneamento básico e qualidade de vida (BELÉM, 2007a, p. 1).

A política, entretanto, tem meandros e sutilezas diversas. Uma intervenção urbanística e ambiental deste porte, que interfere diretamente sobre centenas de milhares de pessoas (dados do cadastro social do projeto falavam em 150 mil e, como se nota, hoje falam em cerca de 300 mil), não poderia ter efeitos e apreciações tão homogêneos. Relatório produzido pela Câmara Municipal de Belém, em audiência pública com líderes comunitários e moradores atingidos pelo Portal da Amazônia, trazem registros de disputas eleitorais de bairro, algumas brigas corporais e, sobretudo, conflitos acerca do solo urbano, de sua ocupação e da “vocação” do novo espaço pensado no projeto.

Mas, (sic) outro pronunciamento que voltou a esquentar os ânimos e fez com que a sessão fosse encerrada foi de um morador e da esposa, despejados da casa onde residiam, na Estrada Nova. O terreno, disse ele, exibindo os documentos, foi repassado pela União

Ilustração 6 "Plataforma urbanizada" evidencia aspectos do "desejo de orla". Fonte: Belém, 2006c.

Ilustração 7 O vizinho parque Mangal das Garças e a vista do início das obras: conflito entre padrões, formas de uso e grupos sociais. Foto do autor, jan. 2007.

9 à Prefeitura, que lhe deu 15 dias para que se manifestasse sobre o pedido de retirada, pois o projeto passaria pela área onde está construída sua casa. O morador relatou que em quatro dias o batalhão de choque chegou e fez o despejo na marra (sic), do casal e dos filhos. Ele pediu muito cuidado aos moradores para que não viesse a ocorrer com outras famílias o que aconteceu com a dele. “Só peço agora que sejamos indenizados justamente, a minha casa foi avaliada em 50 mil reais e até hoje não recebi um tostão”. Sobre essa denúncia, a assessoria da prefeitura, esclareceu que a terra pertencia a União, sob a gerência regional do patrimônio da União, que teria sido o responsável pela retirada do morador. A Prefeitura, segundo a assessoria, apenas deu apoio técnico, cedendo caçamba e homens da guarda municipal (BELÉM, 2007b, p. 1).

Além da óbvia discordância acerca dos resultados e métodos de condução do projeto, parece evidente que exista uma conexão entre a caracterização dos aspectos “degradados” da pobreza urbana do local com a ausência de infra-estrutura. Em outras palavras, identifica-se um processo, bastante comum nos dias de hoje, de associação entre a pobreza urbana e a degradação; a este problema não se reage senão com medidas de saneamento ambiental, urbanização e remoção. Há, na verdade, um novo expediente de reprodução da desigualdade no acesso às benesses do território, em que a proximidade da água aparece como claro diferencial, ressaltado pela valorização recente (em termos simbólicos e materiais, fundiários inclusive) da idéia e do território de “orla” das margens fluviais. É neste sentido que o discurso ambiental dentro do planejamento e das gestões urbanos é convertido em fator relevante para a reconfiguração dos lugares na cidade; à preservação corresponde uma escolha de quais usos, padrões e populações devem ou não ocupar as parcelas do território. O discurso ambiental converte-se, então, em parte da disputa territorial pelos recursos do ambiente, diferenciais urbanísticos e infra-estruturais. A própria idéia de “sustentabilidade” entra neste conteúdo, como variação de sua matriz mais ligada à racionalidade econômica (ACSELRAD, 2001), propalando o soerguimento das economias locais estagnadas. Considerações finais Os comentários esboçados aqui sobre o projeto Portal da Amazônia, na verdade, servem como reflexão para o tratamento das áreas urbanas onde existe, declaradamente ou não, interesse ambiental. O planejamento ambiental, nos dias de hoje, tem sido ferramenta de compreensão de fenômenos da cidade, tem sido objeto de discussão bastante consistente sobre a necessidade de condensação de epistemologias para a superação da dicotomia cultura/natureza. Por outro lado, o campo ambiental também se estrutura como campo de poder. Assim, em áreas

Ilustração 8 Ilustração do Portal da Amazônia e padrão de estabelecimentos comerciais sugerido. Fonte: Belém, 2006c.

10 como a de Belém-PA, onde a pobreza urbana e o padrão socialmente desigual de instalação das benesses da urbanização se instalam, vê-se claramente a materialização de um projeto (no sentido político) de recolocação da desigualdade territorial no acesso aos recursos do ambiente. Vê-se, ainda, a formação de uma disputa em um novo campo: o ambiente, processado como dado da paisagem, e onde a paisagem passa a ser item de consumo visual, de disputa de poder junto às instituições. Diante deste quadro, constata-se uma espécie de nova forma de estabelecer o que VETTER e MASSENA (1982) tinham colocado como “causação circular” na urbanização brasileira; o reinvestimento em áreas centrais e a reprodução de um padrão desigual de territorialidade. Por outro lado, ao considerar que o PDU (BELÉM, 1993) de Belém, em seu artigo 266, já reconhecia as margens de cursos d´água do município como áreas de proteção permanente conforme o entendimento do Código Florestal, entendemos que se confirma e estrutura um quadro histórico para o questionamento da própria forma de incorporação do debate ambiental na cidade. Processos de mistificação, convertendo dados não-humanos, “animais”, da paisagem natural do entorno de Belém-PA são mobilizados para a criação de imagens dos seus habitantes como “seres ribeirinhos”. Por outro lado, diz-se que a orla fluvial da cidade pode retornar e se vingar, pelos maus tratos. Tais operações, que DESCOLA (1997) qualifica como animistas ou totemistas, servem aqui para construir sentidos do ambiente que, no plano material, estão ligados à consolidação daquele padrão do waterfront e, sobretudo, da despolitização da cidade em torno da idéia de que “todos” desejam o parque ambiental urbano, as amenidades, o lazer e o consumo – mesmo quando estão em vias de ser remanejados e perder os vínculos territoriais que permitem suas mais significativas estratégias de sobrevivência. Assim, a discussão do planejamento urbano acerca da dimensão ambiental da cidade não deve perder de vista o fundamento histórico da forma sócio-territorial do que é a cidade: artefato coletivo, construído nos marcos históricos das possibilidades. Em nossa compreensão, passível de ser interpelada a favor de formas social e ambientalmente justas do uso, da apropriação e da atribuição de sentidos sobre o ambiente e sobre o que convencionamos chamar de recursos naturais, dentre as quais a idiossincrasia da localização à água é um dos dados mais relevantes (MORAES, 1999). Referências bibliográficas ACSELRAD, Henri. Sentidos da sustentabilidade urbana. In: ___________. (org.) A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 27-55. (Coleção Espaços do Desenvolvimento). BELÉM, Prefeitura Municipal. Plano Diretor Urbano do Município de Belém. Lei nº. 7.603 de 13 de janeiro de 1993. Dispõe sobre o Plano Diretor do Município de Belém e dá outras providências. Belém: CEJUP/PMB, 1993. ________________________. Evolução urbana de Belém, 1977-1998. Belém: Prefeitura Municipal; Secretaria de Coordenação Geral do Planejamento e Gestão; Companhia de Desenvolvimento da Área Metropolitana de Belém, 2000. 1 CD-ROM. ________________________. Projeto oficial Portal da Amazônia. Belém: Prefeitura Municipal; Secretaria de Saneamento; Secretaria de Urbanismo, mar. 2006a. [Textos, imagens, desenhos técnicos e planilhas eletrônicos]. 1 CD-ROM. ________________________. Portal da Amazônia: urbanização da Bacia da

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